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Primeiro gostaria de agradecer a oportunidade de pensar junto com vocês o tema proposto

pela sessão. Dizer também que considero a tarefa tão difícil quanto interessante. E que

aproveitei a chamada do encontro “Sessão Livre” para compor uma fala despreocupada

em evocar nominalmente as autoras, autores, ideias e colegas de turma que me inspiram

aqui - muito também porque creio que não seja difícil reconhece-los.

Assim como eu a entendi, a questão que nos anima a pensar hoje é a mudança do oikos

antropológico provocada, nos últimos anos, pela entrada contínua de novos praticantes da

disciplina, sujeitos que, por suas feições e “origens”, tiveram um papel específico e

determinado na história da antropologia, o de nativos. Pois bem, esse tipo de perturbação

ecológica da universidade tem sido colocado e pensado de variadas maneiras. Uma das

formas menos interessantes de lidar com o fato é justamente aquela que desloca até os

espaços institucionais, por meio de posturas, falas e olhares, a dualidade antropólogo x

nativo, operando-a não como uma ferramenta heurística (aquela que a ciência cria para

forjar para si um objeto, ou uma objetividade) mas como um instrumento de poder e

exclusão desses novos sujeitos. O deslocamento de tal oposição constitutiva da disciplina

produz como um de seus efeitos, primeiro, a expectativa de que esses novos sujeitos irão

se comportar como eles acham que se comportam os nativos – pessoas preocupadas

demais com a própria vida para que possam pensar (mal!) em outras coisas que não em

si mesmas. E que depois, aqui o sentimento é de esperança, a partir dos treinamentos

corretos, da leitura de etnografias clássicas, e de experiências radicais de alteridade, em

laboratórios científicos, por exemplo, os outrora nativos poderão, finalmente, se

transformar, em alguma medida, em antropólogos, não na mesma medida que eles, claro.

Para além de seu equívoco lógico, essa maneira de colocar a questão é a mim

absolutamente desinteressante, pois traz como consequência nefasta, os mais diversos

tipos de constrangimentos e reduções desses novos sujeitos, entre os quais, eu me incluo.


Diversas são também as maneiras que nós estamos tentando criar para escapar, mais uma

vez, desse encerramento. E muito me alegra que hoje nós estejamos pensando nisso aqui,

coletivamente e em voz alta. Os mais fortes entre nós vêm dando o grito de indignação

desde sempre e graças a eles eu posso hoje transformar meu incômodo em algo mais do

que um silêncio corrosivo.

Dentro da antropologia venho me dedicando a conhecer os povos indígenas. Como alguns

aqui sabem, tenho toda uma dificuldade em englobar-me nos limites do subgrupo

formado pelos especialistas no assunto e apresentar-me como uma etnóloga. O fato de eu

ter uma cara, um cabelo e uma cor diferente da maioria daqueles que assim se denominam

etnólogos americanistas poderia ser suficiente para justificar esse meu sentimento de não

pertencer ao grupo, mas o fato de não existir entre eles muitos como eu, infelizmente, não

é tudo, nem o principal do problema. A questão é que, especialmente no doutorado, essa

minha diferença figura como espécie de determinante ou limite daquilo que posso vir a

pensar e dizer, do que é mais apropriado ou conveniente.

Para atravessar o oceano ou embrenhar-se pelas matas ou mesmo atravessar a rua, em

busca de um outro, a tal busca elementar da etnologia, é preciso estar na proa do navio,

ou nas fileiras de uma expedição, ou entre aqueles que podem andar livremente pela

cidade, para desde essa posição poder tirar as consequências intelectuais do trajeto, da

estada e da volta. Eu, que vim no subterrâneo dos negreiros, habitei os recônditos das

florestas, sertões e ilhas, e, agora, tenho que me preocupar pelas ruas por onde passo e a

que horas, se posso fruir a experiência, dizem, que seja só para dela dar notícias, para

dizer de mim e dos meus, das nossas mazelas e malemolências. O outro é artigo caro,

sujeito raro, assunto deles. Então, quando eu, mulher, algo negra, algo índia, filha de

operários da siderurgia, neta sabe-se lá de quem, ouso a dedicar-me a uma atividade

própria àqueles sem rosto, sem corpo e sem identidade, sou, educadamente interpelada,
acerca de minhas motivações existenciais, essenciais e políticas como se o fato de eu

pensar ou saber ler e escrever não bastasse, como basta a eles.

Sendo franca, eu não saberia muito bem dizer, o que é próprio ou específico da

antropologia praticada por pessoas como eu. Mas certamente nossas diferenças se

estendem para além do fato de termos menos poder e valor na economia da disciplina. Se

o caso é de tentar definir um pouco arrisco dizer que nossa prática é infletida por um

acontecimento que não cessa de se atualizar. Estou falando certamente dos genocídios

que fundaram o ocidente moderno e suas ciências, cujos sentidos e efeitos não se

encontram, para nós, na ordem da história, mas, mais propriamente, do mito. A partir dali,

todos os dias precisamos saber segurar as outras camadas do céu para que elas não

desabem em nossas cabeças. Os mundos estão acabando todos os dias. E não nos demos

conta disso ontem. Aquela preocupação dos antropólogos com o fim de algumas culturas

não era equivocada somente porque, como se mostrou, tudo se recria, mas também porque

não inclui na sentença o próprio mundo do antropólogo, o incontornável fato de que ele

também está acabando. Essa memória, que se atualiza em nós em alguma intuição e muita

dor, nos confere um sentido de urgência que nos possibilita outra disposição diante da

vida e das práticas de conhecimento.

De saída, pelo menos para mim, é impensável conceber a antropologia enquanto uma

prática sem riscos e sem consequências que se realiza pelo gosto da aventura e na medida

dos próprios talentos, tolerância e boa vontade. Também é um tanto impensável crer que

enquanto antropóloga eu tenha uma espécie de missão de inventariar o melhor possível a

vida alheia de modo a suplementar o corpus teórico de nosso campo disciplinar,

acrescentando às leis antropológicas novas exceções ou propondo novas reduções capazes

de sintetizar a experiência humana.


Se me desloco e, lá, pretendo estar e viver com o outro, faço isso porque creio, com outros

antropólogos e antropólogas, que encarar as diferenças, que sempre há de existir, sem

submetê-las a uma identidade torna-nos mais capazes de manter nosso pensamento ativo

e nos possibilita criar e recriar, com alegria, novas possibilidades para a vida. E também

para nossa disciplina. Se nossas outras antropologias podem e produzem efeitos na

disciplina antropológica espero que seja esse o de desativar de vez nossas máquinas

sobrecodificadoras, que possamos compreender de vez que passamos bem sem elas.

Outro efeito que pode ser divisado é que na antropologia possa vir a ser tornar uma

constante nosso senso de urgência, e que se torne cada vez mais impossível viver de renda

em nosso meio, por meio da compra de ações de certos autores lucrativos e do gozo de

seus dividendos. Assim como pão, nos ensina o corre corre da vida, a antropologia deve

ser garantida a cada dia.

E se o caso é também pensar nas obrigações e exigências que se impõem a nossas outras

antropologias diria que, por um lado, precisamos querer herdar alguma questão

antropológica e leva-la a campo por meio da observação, da imersão e da imaginação.

Não basta denunciar suas incoerências e limites, é preciso praticá-la para transformá-la.

E nesse ponto sou otimista. A antropologia já deu provas que fez muitas outras coisas

diante de seu destino. Outra obrigação é aquela que estejamos atentos para conjurar todas

as ações e dispositivos capazes de capturar nossas singularidades a fim de nos tornar

universais. Para fazer boa antropologia não é o caso de nos tornarmos menos marcados,

mas o de agir para que se torne cada vez mais explícito o quanto eles são tão marcados

quanto nós. Que façamos da antropologia um solo onde não fique de pé esses seres

polivalentes que se arrogam o direito de pensar desde nowhere. Não podemos escapar

também de fazer antropologia na presença do outro. E não se trata aqui de compor uma

etnografia que possa ser compreendida por não especialistas ou de se empenhar em algum
projeto de interesse do grupo com o qual se faz pesquisa, mas de fazer que a presença

deles seja produtiva no campo e na academia, a fim de impedir a estabilização de qualquer

espaço seguro, onde se permita e se aplauda um descolamento excessivo das condições

da vida que se arvoram em abstrações exageradas e, no limite, inúteis. Que a presença no

campo e na sala de aula nos leve a proposições conjuntas e mais comprometidas.

Por fim, o que as outras antropologias coloca como obrigação ao antropólogos de direito

é que eles passem a proceder sem se dar ao direito de pôr em jogo o grande divisor do

universal x particular, guardando para si a missão de refletir sobre a diferença e

reservando a nós à tarefa de especular sobre as identidades. Eu diria até mais, e de forma

mais contundente: sem se dar ao direito de dizer qualquer coisa sobre o que nos é

apropriado estudar. Da forma como eu entendo a antropologia e procuro praticá-la

ninguém está isento de lidar com suas tensões constitutivas, ninguém pode fazê-la sem

passar por suas dificuldades inerentes, e não existe entre nós, nenhum grupo social que

esteja ou seja intelectualmente melhor adaptado a lidar com elas. Se eles têm privilégios,

sim, têm, de muitas naturezas, mas nada além disso, eles têm de vantagem. Que, como

nós, se empenhem e se envergonhem e não saiam por aí achando que tal posição ou

instituição lhes dê o direito de falar toda e qualquer coisa.

Como canta Dona Ivone Lara, foram nos chamar, nós estamos aqui, o que que há? Eu

vim de lá, eu vim de lá pequeninho, mas eu vim de lá pequeninho, alguém me avisou pra

pisar nesse chão devagarinho, alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho. O

chamado aqui é ao cuidado que aprendemos ter e que é toda a nossa potência.
de um exercício bastante árduo pois exige colocar em perspectiva práticas e axiomas

antropológicos mais consolidados ao lado daqueles que vem se constituindo sob

sobre os efeitos, as obrigações e exigências do que a sessão propôs como outras

antropologias.

que se debruce sobre as práticas e axiomas antropológicos mais estabilizados para

Ecologia das práticas: o praticante não pode se mover livrando-se dos pertencimentos.

Mudança no oikos outras disposições são postas a funcionar.

Restrição limita o que você pode fazer/tem que fazer mas não determina o que você fará.

Espaço cosmopolítico afirmação coletiva dos seres sem princípio unificador, sem

unidade. Coexistência transversal.

Antropologia é uma ciência empírica, não dá pra deduzir.

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