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A PRÁTICA DO URBANISM0
HERANÇAS
Aproximações diversas,embrionárias,
• Arquiteto, pesquisador do Laboratório de
incompletas e, às vezes, incertas só
História Arquitetural e Urbana e professor tomaram uma significação plena à
da Escola de Arquitetura de Paris-Versailles medida que diversas ocasiões pennitiram
associá-Ias em tomo de um objeto de estudo. Elas, no entanto,
tinham desde a origem um ponto comum que, sem dúvida,
favoreceu seu desenvolvimento e sua associação, qual seja
aquele de se situarem em oposição às práticas do meio arqui-
tetônico e aos discursos dominantes do ensino da arquitetura.
Este, de uma maneira caricatural na escola de belas-artes, e
mais sutilmente nas escolas estrangeiras, se caracteriza no
após Segunda Guerra pela aliança generalizada de duas
tendências até então opostas: a tradição acadêmica e o movi-
mento modemo. Tanto uma quanto o outro esvaziaram qualquer
referência à cidade existente, taxada de todos os males.
O formalismo modernista - em que os efeitos gráficos do
neoplasticismo substituíram a composição à Ia belas-artes
sobre uma folha branca e no qual a realidade é levada tanto
quanto possível a esta situação de tábula rasa pregada pelos
CIAMs2 - é concretamente produzido por aquisições fundiárias
de grande envergadura: grandes conjuntos habitacionais e arquiteturais e atividades aparecem aí como manifestações
pesadas operações de renovação urbana testemunham esse datadas cuja sucessão revela a permanência dos traçados
processo. e a inscrição de lógicas estáveis no solo. A cidade é aqui
Ao mesmo tempo, o urbanismo oscila entre um sonho de um momento, entre outros, de uma história dos territórios
planificação territorial, no qual os fluxos e as auto-estradas apreendida a partir do binôm io permanência/transformação,
tornam-se os elementos primordiais, e um desejo de derivando daí um interesse particular no estudo dos
racionalizar as relações sociais, em que a forma urbana, subúrbios onde esses fenômenos são observáveis em
considerada apenas como sua projeção, não é objeto de processo.
nenhum estudo específico. Partindo de uma escala mais familiar aos arquitetos, a
É nesse contexto, do qual nos apercebíamos, análise do construido constituiu uma primeira aproximação
confusamente, quão deslocado ele estava da realidade, que das fonnas urbanas. Experimentada primeiramente nos estudos
se desenvolveram nossas primeiras interrogações; com uma de vilarejos, onde o número de objetos é limitado, e depois
consciência viva, não desmentida depois, de que a crise da em alguns bairros parisienses (Castex, Panerai. 1971). a
arquitetura le de seu ensino) era, antes de mais nada, a crise tipologia revelou-se um meio de dar conta do conjunto das
das relações entre a arquitetura e as cidades. construções banais, conservando-se afàstada de abordagens
pitorescas e folclóricas. O caráter da distribuição dos edificios
AS PRIMEIRAS PISTAS E O DEBATE SOBRE A TIPOLOGIA e as lógicas da associação entre eles possibilitaram levar em
Sem fazer uma concessão ao fetichismo da conta a estrutura de parcelamento no interior da qual
pluridisciplinaridade, pode-se ver na criação das escolas de construções são edificadas e refletir sobre o papel dos espaços
arquitetura uma ocasião de reunir professores de disciplinas públicos como suporte dessa estrutura. Um trabalho
diferentes trazendo seus próprios métodos e problemáticas. sistemático sobre as modalidades físicas do crescimento das
A corrente que se desenvolveu na Escola de Arquitetura de cidades (ou dos vilarejos) permitiu relacionar a compreensão
Versailles a partir de meados dos anos 70, no interior da das formas arquitetônicas in situ àquela da organização do
Associação de Pesquisa ADROS e, depois, do Laboratório território e apreender, no tempo, a relação rua/estrada ou o
de Pesquisa sobre História Arquitetural e Urbana-Sociedades, parcelamento agrícola/tecido urbano.
é largamente tributária dos trabalhos e das preocupações Ainda nesse período (1970-1974), o interesse pela
anteriores de seus membros. Sucintamente, podemos citar arquitetura parisiense, particularmente a dos séculos XVIII e
quatro eixos de reflexão que, independentes na origem, foram XIX, permitiu que nos interrogássemos sobre as relações entre
progressivamente entremeando-se até se tornarem, hoje, um arquitetura erudita e arquitetura banal, assim como
conjunto de problemáticas comuns. mensurarmos a importância dos álbuns, dos catálogos, dos
A Escala Territorial manuais e dos tratados como veículos de modelos
A escala territorial e os grandes fatos de estrutura arquitetônicos e urbanos dos quais as cidades apresentam
dependem de uma abordagem de geógrafo (M. Demorgon), tantas manifestações concretas.
que relaciona a análise dos fatos urbanos à compreensão de Enfim, na linha de trabalhos de H. Lefebvre e do Instituto
um espaço geográfico moldado pela longa duração. Formas de Sociologia Urbana, uma reflexão sobre o espaço do
• o papel da tipologia para dar conta da construção banal
numa visão de conjunto que a história da arte tradicional se
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••• To?:5.~rf' mostra incapaz de apreender.
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a debate sobre a tipologia domina este período. Nós nos
lembraremos das primeiras traduções mimeografadas de
Aymonino assim como do artigo de C. Devillers (1974). Ele
se prolonga ainda nos anos que se seguem. Um artigo por
mim publicado em 1979 tentava fazer um balanço e propor
um método de análise tipológica sistematizando as proposições
de Muratori e Aymonino. Dele retomaremos duas passagens.
A propósito do trabalho de Muratori:
Em Veneza se desenvolve, durante esse período, um
trabalho paciente e modesto cujo interesse só aparecerá muito
mais tarde e que vai colocar em termos novos a relação da
arquitetura com a cidade. O trabalho de Saverio Muratori,
publicado em 1959, é o primeiro marco de uma série de estudos
e de pesquisas que marcam a reflexão arquitetônica
contemporânea. Nomeado em 1950 para a cadeira
"Características Distributivas dos Edifícios" e em 1954 para a
de "Composição Arquitetônica". Muratori orienta o seu ensino
para o duplo objetivo de evitar a ruptura entre as disciplinas
técnicas e as disciplinas históricas e teóricas, e de recolocar a
arquitetura (e a crise da arquitetura) na crise urbana. Durante 10
anos ele realiza, com os professores e estudantes do Instituto
de Arquitetura de Veneza, um estudo do tecido urbano da cidade
baseado no método tipológico. Cursos e trabalhos práticos
formam um todo que integra o estudo histórico, a análise
arquitetônica, o levantamento construtivo e que pode ser
habitante foi iniciada (J-Ch. Depaule). À diferença de outros definido como uma história do construído. Deste estudo
pesquisadores3 que procediam exclusivamente a partir da largamente documentado pelo levantamento e pela análise
análise do discurso dos habitantes, essas pesquisas concederam precisa de amostras importantes do tecido urbano, o autor tira
papel importante â observação das manifestações três lições fundamentais:
concretas da prática relacionando-as âs disposições do - "0 tipo não se caracteriza[ora de sua aplicação concreta.
construído e, portanto, à cidade. Localização dos objetos, isto é, fora do tecido construido";
levantamento das transformações e dos acréscimos, anotações - "o tecido urbano, por sua vez, não se caracteriza fora de
das apropriações diversas que não concernem apenas à esfera seu quadro, isto é, fora do estudo do conjunto da estrutura
íntima, familiar. Elas dependem de lógicas que se inscrevem urbana";
num tipo de parcelamento e se orientam em relação a um - ,.o estudo de uma estrutura urbana só se concebe em sua
espaço público. dimensão histórica pois sua realidade sefitnda no tempo por
Deste período largamente marcado pela assimilação uma sucessão de reações e de adições a partir de um eslado
de trabalhos italianos (Muratori, Aymonino, Rossi), anterior".
sobressaem algumas noções que continuam úteis a nosso Apreendido por "uma análise tipológica que tenta evitar
ver: cair na classificação puramente abstrata e que se recusa, por
• a importância do espaço público como organização do outro lado, a se isolar numa contemplação puramentc
tecido e a permanência de seu traçado; estética", o tecido urbano é tomado como um todo, onde as
• a importância do parcelamento como base da edificação edificações só desempenham o papel de elementos. De onde a
e como suporte das práticas; expressão de typologia edilizia que retomará Aymonino. isto
• a importância do conhecimento dos estados anteriores é. uma tipologia que engloba "não apenas as edificações, mas
para compreender as situações atuais, e isto em diferentes os muros, as ruas, osjardins, o construido da cidade, afim de
escalas de análise: território, cidade propriamente dita, bairros classificá-Ias em relação a uma forma urbana de um periodo
ou fragmentos do tecido, tipo de parcelamento; histórico dado". (Panerai, 1979.)
A propósito do trabalho de Aymonino:
A tipologia - o estudo dos tipos (é apenas por extensão
que a palavra designa as vezes a totalidade dos tipos estudados)
- é apresentada como "um instrumento e não uma categoria .
..é um dos instrumentos que permitem conduzir o estudo dos
fenômenos urbanos". Instrumento de trabalho, "é necessário
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não se prender a uma definição única da tipologia, mas a ):«It,,)~(d.~~)cits.:
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redefinições constantes emfimção das pesquisas". E Aymon ino, •••• ""')0(<0)0( ~ 'Vlo 00)11: ~ <<,:>-
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a partir do (seu) estudo sobre Pádua, do de Muratori sobre ~
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Veneza, dos trabalhos de Aldo Rossi sobre Milão, etc., estimula _ ~~;XôX q+.«( c••••.•••«+.
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a expansão de estudos análogos a fim de recolher material para
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distância, com efeito, não é tão grande quanto se possa pesquisas7• Ao pátio "residual", conseqüência de um longo
imaginar. Ao menos no que se refere à capacidade desses processo de densificação do tecido, se opõe o pátio
diferentes tipos em constituir tecidos urbanos, em associar-se ordenado que organiza, de uma só vez, a distribuição
na cidade, de onde deriva um trabalho sobre as lógicas e as das construções nas parcelas ao mesmo tempo que
dimensões dos parcelamentos, que busca relacionar a afirma sua unidade. Assim, o estudo do imóvel parisiense
organização geométrica, técnica ejurídica do solo com os mostra como, no final do século XVIII, desenvolve-se
tipos de edificações que aí podem serconstruídas (Mangin, um novo tipo de edificação destinada à habitação
Panerai, s/d). burguesa ao mesmo tempo em que explicita uma nova
A análise da organização do solo (traçado de vias e organização da vida familiar. O estudo tipológico nos
parcelamentos) e da estabilidade parece útil aqui para colocar
desta organização conduziram à em relação elementos de
reflexão sobre a persistência. nas uma configuração espacial:
cidades, das disposições espaciais o imóvel de pátio ordenado.
anteriores, que regiam um ter- uma localização na cidade.
ritório agrícola cujas rotas, cami- testemunho dos mecanismos
nhos, canais e campos formaram a fundiários da época. os
sua trama fisica. Diferentes pesqui- parcelamentos sobre os quais
sas sobre o subúrbio parisiense, a se edificam estes imóveiscom
periferia londrina, a periferia das as resoluções geométricas que
cidades espanholas ou do Cairo eles requerem, a incorporação.
pennitiram aprofundar essa questão na arquitetura, da evolução
(Demorgon et alii, 1985: Sabatier, dos modos de vida. cujas
1987)5. conseqüências afetam tanto
A forma da cidade não aparece a distribuição interna da ha-
aí como o produto de uma decisão bitação quanto aquela, geral.
voluntária (a fundação e o traçado do imóvel.
que a acompanha), nem como fruto Tais interrogações são
de uma longa maturação em que se esclarecidas por um paralelo,
superpõem os traços da história: a sobretudo com a Itália,onde a
cidade medieval reorganizada na tradiçãodo palácioaristocrático
época barroca e no século XIX. Ela marca profundamente o
é a conseqüência de uma extensão, desenvolvimento dospalazzi e
freqüentem ente rápida, devida ao a constituição do tecido de
crescimento da população. Ela tira cidades como Turim. Gênova
partido da lógica dos grandes Roma ou Milãonasampliaçàes
itinerários que estruturam o ter- urbanas do século XIX.
ritório, ligando a cidade ao campo O trabalho sobre Paris
e às cidades vizinhas, e da con- nos permite apreender uma
figuração do território cultivado evolução. Oedificio inventado
que fornece, às vezes quase sem no século XVI. racionalizado
modificações,o suportedaedificação. e codificado durante a Mo-
Tipos construídos e tecidos urbanos narquia de Julho8, forma a base, com modificações, das
Prendendo-se aos diferentes loteamentos que compõem operações haussmannianas. Com a cobertura do pátio. ele
a cidade, o estudo sobre Versalhes revelou diferentes tipologias. fornece o modelo da construção industrial e comercial
do fim do século, triunfo do vidro e do metal, que realiza Lançando a questão da forma urbana, os italianos,
no tecido urbano a integração das novas atividades logo seguidos por numerosos grupos aqui e acolá, tiveram
econômicas. o mérito de recolocar a questão da cidade no centro do
Suas transfonnações posteriores, a abertura do pátio sobre debate sobre arquitetura. Mas esta questão é ainda
a rua, a introdução de equipamentos de conforto, freqüentemente abordada de uma maneira formalista.
anunciam o inicio de uma desintegração do tecido. As O objeto "urbano" substitui o objeto puro mas continua
habitações coletivasY dos anos 30 marcam a última um objeto. As formas urbanas são apressadamente
tentativa de conciliar as convenções urbanas - o respeito reinterpretadas como peças urbanas, isto é, edifícios.
às formas estabelecidas - e as novas idéias sobre a higiene Certamente estes aceitam algumas restrições dos
e a aeração do tecido. A reconstrução e os grandes traçados da cidade, mas eles se destinam muito mais a
conjuntos consagram a ruptura entre a arquitetura e a aparecer que a organizar o território.
cidade: os edifícios tomados autônomos não se inscrevem Ora, é a organização do território - redes, malhas e
mais num tecido. parcelamentos - que condiciona a capacidade do tecido de
evoluir e de se adaptar a novas condições. Mais que colocar
fORMAS URBANAS E fORMALlSMO ARQUITETÔNICO em evidência formas-objetos oferecidas em modos
A autonomia dos edifícios e da arquitetura com relação à sucessivos, a análise urbana deve hoje perseguir a
cidade começa no século XIX com o isolamento dos compreensão dos fenômenos que ancoram a cidade
monumentos que, mesmo que ainda implantados em situação na duração.
urbana (praças, esplanadas, perspectivas), já se libertam das Pode-se, para concluir, lembrar que os instrumentos
restrições de parcelamento às quais as outras edificações existem e que o trabalho já começou de forma vigorosa.
continuam submetidas. Com o Movimento Moderno, assiste- Françoise Boudon já indicava, há 10 anos, essa necessidade,
se a uma monumentalização geral da construção, notadamente em tennos que nada perderam de sua atualidade: "A história
da habitação social que concentra a grande parte dessa da cidade está inscrita em seu tecido de parcelamentos.
produção. Essa monumentalização se faz acompanhar da Já é tempo de renunciar ao modo de análise tradicional.
segregação das atividades e do isolamento das formas que induz à dissociação entre os lugares onde se
arquitetônicas ..., ''jogo erudito. correIO e magnífico dos exercem as atividades urbanas e essas atividades elas
volumes sob a luz"lo. Ela procura sua justificativa na mesmas. A análise do parcelamento é o instrumento
esperança ingênua de uma nova distribuição da propriedade científico que faz aparecer em diacronia a ligação entre
fundiária em que o solo, inteiramente controlado pela lugar e função e permite desbloquear a solidariedade
coletividade, seria acessível a todos. Dessa maneira, ela ignora entre os lugares e a cidade: ela explica a relação de
os mecanismos concretos da produção do tecido urbano e da vizinhança. que é um dos aspectos fundamentais da
apropriação do construído pelos habitantes. paisagem urbana." (Boudon, 1977.)
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