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Por que se interessar pela Europa medieval?

Jérôme Baschet – fichamento

1. A má reputação da Idade Média foi construída com o objetivo de permitir que as épocas
ulteriores (posteriores) pudessem forjar a convicção de sua própria modernidade.

2. Apesar da obstinação dos historiadores em desafiar os lugares-comuns (os mitos históricos),


a opinião comum continua sendo associar a Idade Média às ideias de barbárie, de
obscurantismo e de intolerância, de regressão econômica e de regressão política.

3. No entanto, a imagem da Idade Média é ambígua: há também aqueles que idealizam a


Idade Média como um passado mítico, romantizado.

4. Ao contrário do Iluminismo, o Romantismo irá, no século XIX, valorizar a Idade Média.

5. No século XIX, a oposição ressaltada por alguns pensadores se dá entre um racionalismo frio
e o reino do dinheiro a uma Idade Média em que predominava o maravilhoso e a
espiritualidade.

6. Todo o século XIX europeu se cobriu de um manto cinza de castelos e de igrejas neogóticas,
fenômeno no qual confluem a nostalgia de um passado idealizado e o esforço da Igreja
Romana para mascarar – sob as aparências de uma falsa continuidade, da qual o neotomismo
é um outro aspecto – as rupturas radicais que a afirmação da modernidade capitalista a
obrigava a aceitar então.

7. Baschet destaca que a Idade Média tanto é um sombrio contraponto dos partidários da
modernidade, quanto um ingênuo refúgio daqueles a quem o presente moderno horroriza.

8. Existe um ponto comum entre a idealização romântica e os sarcasmos modernistas: sendo a


Idade Média o inverso do mundo moderno (o que é inegável), a visão que se oferece dela é
inteiramente determinada pelo julgamento feito sobre o presente. É assim que uns a exaltam
para melhor criticar sua própria realidade, enquanto outros a denigrem para melhor valorizar
os progressos de seu tempo.

9. Baschet nos lembra de que a grande época da caça às feiticeiras não é a Idade Média, como
se acredita comumente, mas os séculos XVI e XVII, que pertencem aos chamados “Tempos
Modernos”.

10. Para Jérome Baschet, a Idade Média não é nem o buraco negro da história ocidental nem o
paraíso perdido. É preciso renunciar ao mito tenebroso tanto quanto ao conto de fadas.

11. O nascimento da expressão “Idade Média”, com um acentuado sentido negativo, se dá no


século XV (1469). Foram os humanistas italianos da segunda metade do século xv que
começaram a utilizar tal expressão para glorificar seu próprio tempo, ornando-o com
prestígios literários e artísticos da Antiguidade e diferenciando-o dos séculos imediatamente
anteriores.

12. No século XVII, o recorte da história em três idades (Antiguidade, Idade Média,Tempos
Modernos) se torna um instrumento historiográfico corrente.
13. No século XVIII, com o Iluminismo, essa visão da história se generaliza, enquanto se urde a
assimilação entre Idade Média e obscurantismo, da qual se percebem os efeitos ainda hoje.

14. Quer se trate dos humanistas do século XVI, dos eruditos do século XVII ou dos filósofos do
século XVIII, a Idade Média aparece claramente como o resultado de uma construção
historiográfica que visa valorizar o presente através de uma ruptura proclamada como passado
próximo.

15. Para a burguesia, que cedo se apropria do poder político, a Idade Média constitui um
contraponto perfeito: Adam Smith evoca a anarquia e a estagnação de um período feudal
enterrado nos corporativismos e nas regulamentações, por oposição ao progresso trazido pelo
liberalismo. Voltaire e Rousseau denunciam a tirania da Igreja e forjam a temática do
obscurantismo medieval, a fim de melhor valorizar as virtudes da liberdade de consciência.

16. Baschet cita Alain Guerreau, para quem: o Iluminismo procura mostrar que tudo “o que o
havia precedido era somente arbitrário na política, fanatismo na religião, marasmo na
economia”.

17. A construção historiográfica da Idade Média permite, assim, exaltar os valores em nome
dos quais a burguesia se apropria do poder e recompõe a organização social, ao mesmo tempo
em que legitima a ruptura revolucionária com a ordem antiga.

18. A maior parte das culturas teve grande necessidade da imagem dos bárbaros (ou dos
primitivos), pertencentes a um lugar distante exótico ou presentes para além de suas
fronteiras, a fim de se definirem elas mesmas como civilizações. O Ocidente não é exceção,
mas ele apresenta também essa particularidade de ter uma época bárbara alojada no seio de
sua própria história.

19. Para Jérôme Baschet, a história da Idade Média a história da Idade Média nos convida a
interrogar as noções de barbárie e de civilização e pôr em dúvida a possibilidade de julgar as
sociedades humanas em função de tal oposição.

20. Baschet assinala que a data de 1492, ponto de articulação convencional entre Idade Média
e Tempos Modernos, representa mais uma continuidade do que uma ruptura. Para ele, o laço
entre o fim da Reconquista e o início da aventura marítima lançada em direção ao oeste, que
rapidamente conduzirá à Conquista. Os dois fatos – assim como a expulsão dos judeus –
participam de um mesmo projeto de consolidação da unidade cristã.

21. Nesse sentido, Reconquista e Conquista revestem-se de uma profunda unidade e


participam de um mesmo processo de unificação e de expansão da cristandade.

22. Baschet cita um contemporâneo do século XVI (1552): “Desde que foi terminada a
conquista sobre os mouros [...] começou a conquista das Índias, de modo que os espanhóis
estiveram sempre em luta contra os infiéis e os inimigos da fé”.

23. 1492 não é a linha divisória entre duas épocas tão estranhas uma à outra, como o dia e a
noite, mas sim o ponto de junção de dois momentos históricos dotados de uma profunda
unidade. É verdade que a conquista não é uma reprodução idêntica da Reconquista, mas ela é
seu inegável prolongamento.

24. É preciso reconhecer que o recorte tradicionalmente admitido entre Idade Média e
Tempos Modernos deve ser amplamente repensado e que a Conquista mergulha suas raízes
na história medieval do Ocidente.

25. Os espanhóis que tomam pé no continente são impregnados de uma visão de mundo e de
valores medievais. Os primeiros dentre eles ignoram que atingiram um mundo desconhecido.

26. Cristóvão Colombo encontra o que não procurava e não sabe que o que ele encontra não é
o que procurava. Ele é um viajante medieval, inspirado por Marco Polo, mercador veneziano
do século XIII, e por Pedro de Ailly, cardeal e teólogo escolástico da virada do século XIV para o
século XV.

27. Os primeiros conquistadores exploram as terras americanas na esperança de ver ali se


materializar a geografia imaginária da Idade Média. Como sugeriu Claude Lévi-Strauss, os
espanhóis deixaram suas terras menos para adquirir conhecimentos inéditos do que para
confirmar suas velhas crenças; e eles projetaram sobre o Novo Mundo a realidade e as
tradições do antigo.

28. Para Baschet, os objetivos da descoberta e, depois, da conquista são: um material (do qual
o ouro é o símbolo) e outro espiritual (a evangelização); ou, ainda um político (a glória do rei) e
outro religioso (a glória de Deus). Tal apresentação viola radicalmente [ou parece violar] a
lógica dos quadros mentais em vigor naquela época.

29. No entanto, certos autores, como Pierre Vilar ou Tzvetan Todorov, sublinharam
corretamente que o ouro e a evangelização não deviam ser percebidos como objetivos
contraditórios. Eles combinam-se sem dificuldade no espírito dos conquistadores.

30. Se Colombo está preocupado até a obsessão com o ouro, é notadamente porque este deve
servir para financiar a expansão da cristandade e, em particular, o projeto da cruzada
destinada a retomar Jerusalém dos otomanos, do qual ele espera convencer Fernando de
Aragão.

31. O ouro dos conquistadores raramente é entesourado, sendo, antes, objeto de atitudes
dispendiosas, estranhas à mentalidade contemporânea. Muito mais do que um elemento de
riqueza que vale por si mesmo, ele parece ser um signo e uma ocasião de prestígio. Para
Colombo, ele é a prova da importância de sua descoberta e uma esperança de alta dignidade.

32. O ouro significa menos um valor econômico do que um estatuto social (“ele confere a
glória e o poder; ele é o símbolo tanto de uma como do outro”, sublinha Pierre Bonnassie).

33. Há um grande perigo em ler os fatos da aventura americana creditando aos seus autores
nossa própria mentalidade, quando é altamente provável que seus valores e a lógica de seus
comportamentos fossem, no essencial, aqueles dos séculos medievais.

34. A despeito de sua contribuição fundamental ao desenvolvimento do ocidente e à sua


dominação sobre a América e o mundo,a (longa) Idade Média deve ser considerada um
universo oposto ao nosso: mundo da tradição anterior à modernidade, mundo rural anterior à
a industrialização, mundo da todo-poderosa Igreja anterior à laicização, mundo da
fragmentação feudal anterior ao triunfo do Estado, mundo de dependências interpessoais
anterior ao assalariamento. Em resumo, a Idade Média é para nós um antimundo, anterior ao
reinado do mercado.

35. O estudo da Idade Média é uma experiência de alteridade, que nos obriga a nos
desprendermos de nós mesmos, a abandonar nossas evidências e a engajar um paciente
trabalho para captar um mundo do qual mesmo os aspectos mais familiares dizem respeito a
uma lógica que se tornou estranha para nós.

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