Professional Documents
Culture Documents
https://doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.1413
Resumo
Os estudos biográficos abrangem uma importante orientação teórico-metodológica que vem
sendo desenvolvida nas ciências humanas e sociais, nos quais há valorização do sentido atri-
buído pelo sujeito aos acontecimentos ou situações narradas. Este artigo tem como objetivo
discutir e comparar os métodos da história de vida, pesquisa narrativa e testimonio, por
meio da análise do contexto histórico de sua emergência, da definição de seu conceito cen-
tral, dos procedimentos metodológicos, de suas principais contribuições, bem como das crí-
ticas mais significativas, destacando assim, suas semelhanças e diferenças.
Palavras-chave: História de vida; Pesquisa narrativa; Testimonio; Estudos biográficos
Abstract
Biographical studies cover an important theoretical and methodological framework that
has been developed in the human and social sciences, in which there is an appreciation of
the meaning attributed by the subject to events or narrated situations. This study aims to
discuss and compare the methods of life history, narrative research and testimonio, by the
analysis of the historical context of its emergence, the definition of its central concept,
the methodological procedures, their main contributions, as well as the most significant
criticism, highlighting their similarities and differences.
Keywords: Life History; Narrative Research; Testimonio; Biographical Studies
278 Pereira, Eliane Regina; Pegoraro, Renata Fabiana & Rasera, Emerson Fernando
http://quadernsdepsicologia.cat
História de Vida, Pesquisa Narrativa e Testimonio: Perspectivas nos Estudos Biográficos 279
http://quadernsdepsicologia.cat
História de Vida, Pesquisa Narrativa e Testimonio: Perspectivas nos Estudos Biográficos 281
zagem, estes estudantes dão voz e sentido as que contar, narrar, provoca em si, mudanças
suas experiências. Maria Luiza Vassallo e João na forma como as pessoas compreendem a si
Telles (2008) investigam sua própria experi- e aos outros, o que poderia ser considerado
ência em aprender a língua estrangeira um do uma estratégia de formação e de emancipa-
outro. Com uma proposta conhecida como ção dos sujeitos pesquisados.
tandem, um aprendeu português e o outro
Clandinin e Connelly (2011) escrevem sobre
italiano. Anotações de campo, mensagens re-
desafios desse tipo de pesquisa: a) os comitês
flexivas de e-mails trocadas durante o período
de éticas, com seus guias técnicos, detalha-
e o conteúdo anotado durante as aulas consti-
dos e legalistas não permitem considerar as
tuem o método para análise narrativa. Nesse
“relações” entre pesquisadores e informan-
artigo os autores fazem destaque ao conceito
tes, dificultando o que, na pesquisa narrativa
de identidade e, portanto, discutem o proces-
é muito importante, desse modo, a definição
so de aprender a língua e constituir-se sujeito
de um projeto de pesquisa a priori, a assina-
através das historias narradas. Vera Lúcia Pai-
tura de um TCLE sem que o projeto pudesse
va (2008) apresenta reflexões sobre a aquisi-
ter sido construído no processo de pesquisar,
ção de língua inglesa, utilizando narrativas de
questões relacionadas a exigência de anoni-
aprendizagem de língua inglesa, em que os
mato interferem muitas vezes no tipo de pes-
narradores revelam aspectos de seus proces-
quisa realizada. b) Outro desafio destacado,
sos de aprendizagem por meio de textos, hi-
diz respeito a necessidade ou não de o pes-
pertextos, imagens e sons. Os narradores fa-
quisador identificar se a narração é fato ou
lam livremente sobre suas memórias e suas
ficção e, os autores defendem que as narrati-
emoções ao dar sua própria explicação sobre
vas não estão abertas a comprovações, uma
como aprendem outra língua. Segundo a auto-
vez que tanto ficção quanto fato são quase
ra, esses relatos ajudam a entender certos
completamente autobiográficas. c) Outro ris-
aspectos medo, ansiedade, influência familiar
co destacado é possibilidade de produção de
envolvidos na aquisição de uma língua. Em
enredos “Hollywoodianos” os típicos enredos
outro artigo, Lilian Landskron e Tania Sperb
suavizados, necessariamente com final feliz.
(2008) entrevistam nove professoras que nar-
d) E o ultimo desafio, talvez o mais difícil, é o
ram suas historias com alunos diagnosticados
da fluidez da pesquisa. Por não ter métodos
com TDAH. O estudo permite investigar como
fixos, previamente definidos, pode o pesqui-
essas professoras experienciam o cotidiano de
sador que não esteja em estado de alerta, se
trabalho, como percebem e lidam com o di-
perder, não estabelecendo critérios para si,
agnostico das crianças e como manejam situ-
não definindo limites, nem exigindo qualida-
ações concretas. Marcos Junior e Dione Carva-
de.
lho (2014) descrevem o espaço de supervisão
de estagio, onde os estagiários tinham como
tarefa escrever diários descritivos e reflexivos O testimonio
sobre as aulas observadas e lecionadas e, em
supervisão esses diários eram analisados. Nos Os estudos biográficos envolvem diferentes
diários haviam registros de situações instigan- formas de fazer pesquisa, com uma variedade
tes em relação ao processo de ensino e de orientações teóricas, técnicas de coleta e
aprendizagem dos alunos; de informações so- análise de dados, bem como compromissos
bre a prática para melhor entendê-las; estudo políticos e éticos. O testimonio é uma forma
e planejamento de ações a fim de abordá-las; de produzir e estudar narrativas biográficas
desenvolvimento da ação planejada; realiza- que produz um questionamento epistemológi-
ção de reflexão sobre o desenvolvimento da co e político radical, nos fazendo refletir so-
ação para propor mudanças; e, por fim, uma bre os objetivos do conhecimento científico e
reflexão geral sobre todo o processo. O estu- seu papel na transformação da sociedade.
do segundo os autores procurou analisar a O testimonio é objeto de reflexão especial-
constituição do professor nas tensões do dia a mente dos estudos literários, com diálogos no
dia. campo das ciências humanas e sociais. Sua
De modo geral, todos os artigos pesquisados, origem histórica se dá no contexto latino
defendem que a narrativa permite “dar voz americano da década de 1960 e 1970. Impor-
ao sujeito” da pesquisa, implicar o sujeito a tante para a identificação e difusão do testi-
historia que conta. Alguns defendem ainda, monio foi sua inclusão como uma categoria
para o concurso da Casa das Americas, em net, sendo que, no Brasil, é difícil localizar
Cuba, em 1971. Seu reconhecimento em um testimonios significativos. O uso de biografias
âmbito mais amplo, contudo, se deu nas dé- metonímicas tais como o testimonio tem sido
cadas de 1980 e 1990, a partir de sua inserção pouco frequente na literatura, estando mais
nos debates sobre multiculturalismo e estudos presentes nas campanhas e programas televi-
subalternos. No contexto americano, houve sivos das disputas políticas. Para além dos es-
um intenso debate, com centenas de artigos, tudos literários, no campo da Psicologia brasi-
livros e capítulos de livro. A obra ícone desse leira, parece ainda haver um completo desco-
movimento é “Meu nome é Rigoberta Menchú nhecimento sobre os usos e potencialidades
e assim nasceu minha consciência”, de Eliza- do testimonio.
beth Burgos (1993).
Tipicamente, o debate em torno do testimo-
Como um gênero literário, ele é complexo e nio se dá mais diretamente relacionado à sua
de difícil definição, sendo uma combinação condição de gênero literário e às perspectivas
de biografia, história oral, alegoria e coro de de emancipação social, portanto, em seus as-
vozes coletivas (Mueller, 2012). Marca carac- pectos epistemológicos e políticos, do que re-
terística do testimonio é a presença de um lativos aos procedimentos metodológicos efe-
pesquisador ou escritor profissional que grava tivos para a produção de um conhecimento
e transcreve o relato oral de um narrador que correto e válido. Contudo, apesar de não ha-
tem poucas condições de se expressar por es- ver uma literatura consistente sobre o assun-
crito. Uma definição muito citada sobre o que to, é possível se encontrar algumas orienta-
seria o testimonio é a de John Beverly, na ções sobre o processo de redação de um tes-
qual ele afirma: timonio. Assim, metodologicamente, a cons-
Por testimonio eu entendo um romance ou uma
trução de um testimonio requer a gravação
narrativa do tamanho de um romance em um li- dos relatos apresentados pelo narrador da his-
vro ou panfleto (ou seja, impresso ao invés de tória, a qual é transcrita e editada segundo os
acústico), apresentado em primeira pessoa por interesses do narrador. Entre as etapas para o
um narrador que também é o real protagonista ou
testemunha dos eventos que ela ou ele conta e
desenvolvimento de um testimonio estão:
cuja unidade narrativa é usualmente a “vida” ou preparar, desenvolver o roteiro de entrevista,
uma experiência de vida significativa (Beverly, entrevistar, usar o gravador, tomar notas,
1989, pp. 12-13). transcrever, criar arquivo e tomar cuidados
Essa definição de testimonio pode ser melhor éticos (Randall, 1985).
compreendida se comparada com alguns ou- A escrita dos testimonios traz várias contri-
tros tipos de pesquisa que guardam várias se- buições para o conhecimento social. De ma-
melhanças, porém, algumas diferenças. As- neira mais tradicional, podemos entender que
sim, em relação à história de vida, podemos os testimonios servem para preservar a histó-
entender que a organização narrativa privile- ria cultural popular, e mais do que isso, reco-
giada é a do interlocutor que produz o texto, nhecer a história social a partir de represen-
sendo o narrador apenas um informante. Já tantes do povo, e não das classes dominantes.
no testimonio, o narrador usa da oportunida- Trata-se, então, de uma estratégia de memó-
de oferecida pelo interlocutor e produz uma ria subalterna. Para além do valor intrínseco
“narrativa de urgência”, que busca mudar a dessa contribuição, podemos analisar as con-
história de seu grupo de pertencimento. Em sequencias epistemológicas e políticas da es-
relação à autobiografia, tipicamente, ela bus- crita de um testimonio. Nesse sentido, ele é
ca a afirmação da experiência pessoal, cen- uma forma de estudo biográfico que se com-
trada no indivíduo, numa perspectiva já pas- bina com um modo de intervenção social. Ele
sada e elaborada. No testimonio, a identida- é uma crítica às práticas de escrita da aca-
de do narrador não está separada de um gru- demia que são elas próprias formas de domi-
po subalterno ou situação de classe, e se dá nação e manutenção da subalternidade. As-
no momento vivido. (Berverly, 2005). sim, de maneira radical, o testimonio subver-
Segundo Christian Dutilleux (2011), exemplos te o lugar do intelectual e do subalterno. Po-
significativos de testimonios são obras como liticamente, ele possibilita aos intelectu-
“Se me deixam falar” de Domitilia Barris de ais/pesquisadores/escritores uma coalizão
Chungara e Noema Viezzer e “Biografia de un com os subalternos, uma participação na
cimarrón” de Esteban Montejo e Miguel Bar- transformação da sociedade. Na relação com
http://quadernsdepsicologia.cat
História de Vida, Pesquisa Narrativa e Testimonio: Perspectivas nos Estudos Biográficos 283
- Recurso da história moderna com - Origem histórica se dá no contexto - Origem histórica se dá no contexto
destaque a partir da Escola de Chica- da crise da modernidade, mas especi- latino americano da década de 1960 e
go, na década de 1920, nos Estados ficamente na crise da investigação po- 1970.
Unidos. sitivista. - Romance em primeira pessoa de um
- Narrativa do passado a partir do pre- - O modelo pergunta-resposta não ca- narrador que é o protagonista ou tes-
sente que permite relevar o retrato be na estrutura narrativa, é preciso temunha dos eventos apresentados; a
que o narrador faz de sua experiência, um convite para que o informante fa- unidade narrativa é uma experiência
reconstruindo acontecimentos vividos. le, seguindo três características: tex- de vida significativa; pesquisador que
- Registro de entrevistas por meio de tura detalhada, fixação de relevância grava e transcreve o relato oral de um
gravador e transcrição literal para lei- e fechamento de Gestalt. narrador que tem poucas condições de
tura e divisão das informações em - A pesquisa narrativa se baseia nas se expressar por escrito.
proposições indexadas e não- histórias que gera e, portanto, é aber- - Apesar de possuir alguns procedi-
indexadas, destacando-se os sentidos, ta quanto aos procedimentos analíti- mentos para sua construção, metodo-
as experiências vividas e os argumen- cos. logicamente, vai além de uma pers-
tos utilizados pelo entrevistado. - A narrativa permite “dar voz” ao su- pectiva de coleta e análise de dados,
- Permite conhecer transformações jeito da pesquisa e implica o sujeito à sendo o texto do testimonio o princi-
sobre valores e ideias culturais de gru- historia que conta. pal resultado do fazer intelectual.
pos específicos. - As narrativas não estão abertas a - Forma de estudo biográfico que se
- Documento histórico que revela a comprovações uma vez que tanto fic- combina com um modo de intervenção
tensão entre a singularidade da pessoa ção quanto fato, são quase completa- social, funcionando como uma estra-
que narra e conhecimentos e conven- mente autobiográficas. tégia de memória subalterna, além de
ções socioculturais. ser uma forma de resistência política.
- Necessidade de ser vista como re- - Críticas referentes à questão da au-
construção de experiência e superação tenticidade e da verdade.
de dicotomias “fato-ficção” e “reali-
dade externa-relato pessoal”.
http://quadernsdepsicologia.cat
História de Vida, Pesquisa Narrativa e Testimonio: Perspectivas nos Estudos Biográficos 285
Meihy, José Carlos Sebe Bom. (1996). Manual de mensões. Anais do VI CIPA - Congresso Internaci-
História Oral. São Paulo: Loyola. onal de Pesquisa (Auto)Biográfica – Modos de Vi-
ver, Narrar e Guardar (6) Rio de Janeiro.
Mueller, Roseane Maria (2012). Testimonio: história
oral de mulher a mulher. Revista Espaço Acadê- Priore, Mary Del (2009). Biografia: quando o indiví-
mico, 130, 51-57. duo encontra a história. Topoi, 10(19), 7-16.
http://dx.doi.org/10.1590/2237-101X010019001
Othero, Marília Bense & Ayres, José Ricardo de
Carvalho Mesquita (2012). Necessidades de saúde Randall, Margareth (1985). Testimonios: A Guide to
da pessoa com deficiência: a perspectiva dos su- Oral History. Toronto: Participatory Research
jeitos por meio de histórias de vida. Interface, Group.
16, 219-234. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-
32832012005000010 Santos, Sônia Maria & Araújo, Osmar Ribeiro
(2007). História oral: vozes narrativas e textos.
Paiva, Vera Lúcia (2008). Aquisição e complexidade Cadernos de História da Educação, 6, 191-201.
em narrativas multimídias de aprendizagem. Re-
vista Brasileira de Linguística Aplicada, 8(2), Schutze, Fritz (2014). Análise Sociológica e linguís-
321-339. http://dx.doi.org/10.1590/S1984- tica de narrativas. Civitas, 14(2), e11- e52.
http://dx.doi.org/10.15448/1984-
63982008000200004
7289.2014.2.17117
Pineau, Gaston (2006). As histórias de vida em
formação: gênese de uma corrente de pesquisa- Vassallo, Maria Luiza & Telles, João (2008). Apren-
ação-formação existencial. Educação em Pesqui- dendo línguas estrangeiras in-tandem: histórias
sa, 32, 329-343. https://doi.org/10.1590/s1517- de identidades. Revista Brasileira de Linguística
97022006000200009 Aplicada, 8(2), 341-381.
https://doi.org/10.1590/s1984-
Prado, Guilherme do Val; Soligo, Rosauro & Simas, 63982008000200005
Vanessa (2014). Pesquisa Narrativa em três di-
DIRECCIÓN DE CONTACTO
eliane@ufu.br
FORMATO DE CITACIÓN
Pereira, Eliane Regina; Pegoraro, Renata Fabiana & Rasera, Emerson Fernando (2017).História de Vida,
Pesquisa Narrativa e Testimonio: Perspectivas nos Estudos Biográficos. Quaderns de Psicologia, 19(3),
277-286. http://dx.doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.1413
HISTORIA EDITORIAL
Recibido: 17-05-2017
1ª Revisión: 15-08-2017
Aceptado: 19-08-2017
http://quadernsdepsicologia.cat