Professional Documents
Culture Documents
cia médica de uma nação é, sem dúvida, um sob pena de depois terem que negociar di-
componente estratégico para se reduzirem retamente com sua operadora. Sem nenhu-
as desigualdades sociais, manter o meio am- ma capacidade de barganha a posteriori, se-
biente saudável e favorecer o crescimento ria então cauteloso aderir a ele de imediato.
econômico do país.
Além do mais, a rigor, a direção da ANS não
Desde 1999, a falta de capacidade do Poder teria como garantir uma aterrissagem segu-
Executivo de construir consenso em torno ra em direção ao Plano Especial, com um
do desenho da política regulatória tem leva- percentual único de aumento das mensali-
do a uma sistemática reedição de medidas dades, com regra específica por faixa etária
provisórias, sob a guarda da Agência Nacio- e isenção de carências. Dado o caráter ine-
nal de Saúde Suplementar (ANS). Mas qual lástico da demanda, ou seja, como na maio-
foi a novidade trazida pela referida MP? ria dos casos não existe escolha e sim ne-
cessidade por atenção médica, a transição
Dada a inviabilidade administrativa de con- forçada para os novos contratos poderia
tinuar operando com duas bandas − uma re- significar dispêndios financeiros adicio-
gulada, outra não − e sob o risco de se tor- nais, perda de qualidade da atenção médi-
nar uma ouvidoria geral de reclamação dos ca, ou, em casos extremos, sérios danos à
usuários, o Poder Executivo agiu correta- saúde dos consumidores (principalmente
mente ao tentar estender a regulamentação no caso de planos individuais).
para o conjunto do mercado. Cabia a ele
promover a emigração dos planos antigos Em que consistia a adaptação sugerida pelo
para o âmbito do raio de ação regulatório. Plano Especial na perspectiva de convencer
o mercado a emigrar?
Em que pesem a manutenção do plano-re-
ferência (que cobre consultas, exames, in- À primeira vista, para tornar clara a cober-
ternação e obstetrícia) e de alguns avanços tura sobretudo dos pacientes crônicos e,
da legislação em curso, na tentativa de ga- portanto, reduzir as contestações relativas
nhar o mercado para fazer valer a emigra- às “pegadinhas” contratuais, a MP acaba-
ção por meio do “Plano Especial de Adesão ria, paradoxalmente, legalizando exclu-
a Contrato Adaptado”, o governo optou por sões e restrições ainda mais problemáticas.
alterar o espírito da lei. Vale dizer, na origem, a própria lei da re-
gulamentação permitiu considerável seg-
Houve contestação surpreendente da socie- mentação do mercado. Além do “plano-re-
dade civil organizada e o governo suspen- ferência”, foram definidos outros tipos de
deu a MP. As conseqüências das medidas so- plano, tais como: ambulatorial, hospitalar,
bre o acesso, a integralidade, a qualidade do hospitalar com obstetrícia, odontológico,
atendimento médico e, até mesmo, sobre a ou ainda a própria combinação deles. Ago-
fiscalização dos planos − já que a MP deso- ra, a MP autorizaria a ANS a sancionar pla-
brigava o seu registro nos conselhos profis- nos ainda mais segmentados − com per-
sionais da área − seriam desastrosas. versas conseqüências sobre a qualidade da
atenção médica.
A MP fez sinalização ameaçadora para per-
suadir os consumidores à adesão coletiva ao A criação da figura do médico generalista
Plano Especial, a qual contaria com o como porta de entrada obrigatória dos pla-
apoio logístico dos planos. Ela definia que nos de saúde cercearia também a já precária
consumidores com contratos anteriores à liberdade de escolha de prestadores no âm-
lei da regulamentação deveriam emigrar bito da rede credenciada. Isso permitiria a
até dezembro de 2003 para o novo plano, criação de protocolos administrativos para
POLÍTICAS SOCIAIS
acompanhamento e análise 105
criticar ou mesmo negar a demanda dos pa- É ponto pacífico entre os analistas de políti-
cientes e de profissionais de saúde por cas de saúde: é típico do “modelo assisten-
exames ou procedimentos de alto custo. cial” predominante no sistema de saúde dos
Na mesma linha, a MP condicionava o aten- EUA, o managed care, a organização de pla-
dimento e a cobertura do plano à disponibi- nos de saúde com as características consenti-
lidade de serviços em uma determinada das pela MP. Vale dizer, na perspectiva de re-
área geográfica, o que restringiria ainda duzir seus custos e gastos, esse modelo apre-
mais o grau de utilização dos serviços pelos senta resultados clínicos, epidemiológicos e
usuários. Ambas as medidas visavam atenuar sociais no mínimo controversos, se não
o custo dos planos pelo lado da emanda alarmantes [Anderson et alii, 2001].
(coibindo a indução da oferta) e tenderiam a
favorecer o lucro dos planos de saúde. Dada sua hegemonia, que é capitaneada
por pesados interesses econômicos das se-
Mas por que então certas fatias do mercado guradoras e planos de saúde em Wall Street,
de planos não ficaram satisfeitas frente a a nação mais rica e poderosa do mundo, ao
tais medidas, como seria de se esperar? mesmo tempo em que esbanja cortar im-
postos dos cidadãos, não consegue resol-
Na verdade, a regulação não é aceita na ver um notório problema social: são 43
prática por todo o mercado − pois afeta de- milhões de pessoas que, sem recursos fi-
sigualmente a rentabilidade e o padrão de nanceiros para ingressar no mercado dos
competição dos planos em um contexto de planos de saúde e sem pobreza suficiente
acelerada fusão de carteiras. Além do mais, para serem atendidos pelo Medicaid (pro-
pressionado pelos custos crescentes, altas grama público dirigido aos pobres), não
taxas de juros e salários reais médios estag- têm garantia de acesso aos bens e serviços
nados, o número de beneficiários não tem de saúde (os uninsured).
crescido no mercado de planos de saúde.
Desse modo, como não se levou em conta Além do mais, existe profunda insatisfa-
a diversidade das modalidades de atenção ção dos consumidores. Após seis anos de
médica supletiva, o pragmatismo emigra- debate, o Congresso dos EUA vem tentan-
tório poderia acabar favorecendo apenas do definir padrões mais rígidos de con-
os grandes grupos econômicos. trole sobre os planos de saúde. Está em
vias de aprovação o projeto de lei que
Resumindo: para garantir a extensão da re- trata do direito dos pacientes (Patients’
gulação − o que está correto − em um qua- Bill of Rights) − cuja polêmica entre os
dro de baixa capacidade de fiscalização da Partidos Democrata e Republicano reside
ANS e do próprio Poder Judiciário, o gover- em quão mais fácil será para o consumi-
no federal pretendeu alterar o espírito da dor processar diretamente seu plano de
lei, propondo medidas que institucionali- saúde e o seu empregador nas cortes esta-
zam de forma radical a segmentação dos duais, em função de decisões de trata-
planos e a restrição da demanda: seja por mento prejudiciais à saúde do paciente.
meio de uma suposta racionalização da re- No entanto, não existe nenhuma diver-
lação médico-paciente, seja condicionando gência quanto à necessidade de a legisla-
o atendimento e a cobertura do plano à dis- ção ampliar o direito de acesso dos con-
ponibilidade de serviços em uma determi- sumidores, que são sistematicamente
nada área geográfica. Como tais medidas contrafeitos pelos planos de saúde.
implicariam graves conseqüências no que
diz respeito à ampliação das desigualdades Enquanto nos Estados Unidos tenta-se
de acesso, a sociedade civil organizada agiu conter o caráter economicista do managed
rapidamente contra a adoção da MP. care, assistimos, de forma combinada, à
POLÍTICAS SOCIAIS
106 acompanhamento e análise