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Articulações inovadoras entre ciência e política


TAGS: política

A posição política de Bourdieu está diretamente associada aos instrumentos de libertação fornecidos pela pesquisa científica
José Sérgio Leite Lopes

A visibilidade dos posicionamentos públicos de Pierre Bourdieu se deu amplamente com sua defesa dos direitos dos ferroviários e dos trabalhadores
e funcionários que fizeram uma greve em dezembro de 1995 paralisando a França. Nessa ocasião ele fora uma voz isolada a defender os
trabalhadores dentre a maioria dos intelectuais de renome, que se conformava com uma modernização inelutável diante do que era visto como um
movimento grevista desesperado em defesa do passado. Mas tal visibilidade se deu por ser ele um sociólogo de grande notoriedade científica,
produtor de uma obra enorme e inovadora e que havia galgado os postos mais prestigiosos de professor e pesquisador na Escola de Altos Estudos
em Ciências Sociais e no Collège de France. Dali até a sua morte, no início de 2002, ocupou a posição de intelectual contestatário com grande
presença na vida pública.
Dois anos antes da greve de 1995, Bourdieu havia sido condecorado com a medalha de ouro do Conselho Nacional de Pesquisa Científica da França
(CNRS) pelo conjunto de sua obra – mas 1993 é também o ano da publicação do livro A miséria do mundo, obra coletiva por ele organizada. Esse
livro – de mais de 600 páginas, com uma tiragem enorme, em várias reimpressões, inusitada para um livro de ciências sociais – chama atenção para
o sofrimento social causado pelas bruscas transformações capitalistas por que passava a França (como em diversas partes do mundo).
No livro é destacado o fenômeno da miséria de posição ressentida por grupos sociais e indivíduos que perdem a antiga sociabilidade e o sentido da
vida no trabalho, na vizinhança ou na família e têm o sentimento de piora com a diminuição do que ele chama de mão esquerda do Estado, o Estado
social de que nos fala dois anos depois Robert Castel (em seu livro Metamorfoses da questão social). É então que, perto da aposentadoria
compulsória aos 70 anos no ano 2000, Bourdieu torna-se um intelectual de projeção nos movimentos sociais e na resistência à intensificação da
entrada do capitalismo em todas as esferas da vida, fazendo aumentar as distâncias entre classes e grupos sociais, e, como salientado por ele,
ameaçando processos históricos de autonomização do campo cultural em relação ao poder econômico, revertendo o que foi sendo construído desde
séculos anteriores.
Estudo das formas de dominação
Essa posição de intelectual de grande visibilidade política dos anos 1990 surpreendeu a imagem que tinham de sua trajetória anterior colegas mais
distantes ou rivais e, portanto, certo senso comum na universidade francesa. De fato, Bourdieu distinguia-se por escolher novas formas inusitadas
de dominação para analisar, através de modos reflexivos de análise – inclusive a análise crítica da escola, da arte, da ciência e dos intelectuais –
ameaçando de certa maneira o conformismo escolar e universitário. Após sua experiência no mundo rural em transformação, tanto argelino como
francês – onde estuda o drama do celibato camponês em seu próprio povoado de origem (sem dizê-lo), reconciliando-se, através do que viu do
mundo rural argelino, com seu mundo de origem, do qual se distanciara por sua formação universitária – Bourdieu tem as condições materiais
(como diretor de pesquisa da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris aos 34 anos de idade) de estudar sistematicamente as formas
específicas de dominação que se manifestam na educação e na cultura.
Cria assim a noção de campo que dá destaque à autonomia de certo domínio de concorrência e disputa interna, noção que é um instrumento na
constituição de um método relacional de análise das dominações e práticas específicas a um determinado mundo social. Dotado de um impulso e
uma libido voltados para a análise crítica do mundo artístico e intelectual, possivelmente advindos de suas experiências de origem social
confrontadas às hierarquias e dos internatos escolares por que passou, mas pleno também dos instrumentos intelectuais e científicos para fazê-lo,
Bourdieu torna-se um colega maldito por muitos de seus pares concorrentes, que o vêem como um sociólogo rigoroso, pouco político no sentido
tradicional do intelectual total, mas incômodo na crítica reflexiva ao mundo intelectual. A relutância de Bourdieu de participar nas formas
tradicionais de assinatura de manifestos e petições acaba também ocultando o sentido político de sua prática de pesquisador. Essa prática é uma
contribuição política de longo prazo, investida nos resultados e na maneira de fazer pesquisa.
Desde o desvendamento da transmissão da herança familiar que traz o aluno diante da escola pública republicana, reproduzindo as desigualdades
na escola, o chamado capital cultural (ver a coletânea Escritos sobre educação, organizada por A. Catani e Maria Alice Nogueira, Ed. Vozes), até as
formas de poder criadas pelas grandes escolas do sistema universitário bi-partido francês que se cristalizam numa nova nobreza de Estado,
passando pela análise do campo político e pelo campo econômico, Bourdieu orienta-se para a dissecação crítica do campo do poder na sociedade
moderna. No entanto, aquilo que aprendeu nas sociedades tradicionais e camponesas e nos fenômenos de proletarização e sub-proletarização do
início de sua carreira, e que é trabalhado de forma teórica em seus livros Esboço de uma teoria da prática (1972) e O senso prático (1979), estará
sempre presente em sua noção de habitus, construída na primeira socialização familiar e também na ação de inculcação escolar ou profissional. Sua
insistência no entendimento da prática e das condições de possibilidade da ação humana faz par com sua aversão ao saber escolástico do mundo
acadêmico e intelectual, visto como uma forma de dominação. E é na virada dos anos 1990 que Bourdieu volta de forma analítica à empatia que tem
pelos dominados (e que se manifestara na sua produção sobre o campesinato argelino e francês), acionando sua rede de pesquisadores para os
apresentar de forma sensível, através de entrevistas aprofundadas, como em A miséria do mundo e em capítulos importantes de seu livro de
maturidade Meditações pascalianas.
Origens e características da trajetória
Mas essa forma diferente de construir um outro ponto de vista sobre a política vinha sendo feita desde o início de sua trajetória profissional, embora
somente reconhecida por um círculo mais próximo de colaboradores e leitores, incluindo uma rede internacional de pesquisadores que teve a
estratégia de longo prazo de estimular. Esse estilo de tomar posição através da prática científica, desvendando os mecanismos mais sutis de
dominação e vendo tal conhecimento servindo como instrumentos de libertação, pode explicar-se por algumas características de sua trajetória.
Uma dessas características é o fato de ter incorporado ao longo de sua obra um trabalho reflexivo permanente e sutil sobre os efeitos de sua origem,
incorporados à sua trajetória escolar e profissional, assim como à sua percepção dos processos sociais. Embora anteriormente à sua obra póstuma
de auto-análise os leitores familiares e atentos à sua obra pudessem perceber através de seus textos algo dos referidos efeitos de forma implícita,
somente após a publicação de Esboço de auto-análise (ver também o prefácio de Sergio Miceli na edição brasileira) que essa característica fica mais
evidenciada para um público leitor mais amplo. Como se sabe, Bourdieu teve uma infância passada num povoado rural dos Pirineus franceses, neto
de camponeses e filho de funcionário local dos correios, origem esta muito improvável de compatibilizar-se com o seu ótimo percurso escolar que o
levou pelo sistema meritocrático do ensino público francês a sucessivos internatos, primeiramente no ginásio da cidade maior da região, depois no
renomado liceu Louis le Grand de Paris e finalmente no setor de filosofia da Escola Normal Superior de Paris. No seu esboço de auto-análise
Bourdieu dá destaque à sua vivência das agruras entre os alunos internos da província e de origem popular, dos quais ele fazia parte, e os alunos
externos parisienses de alta origem, como que lhe proporcionando uma visão precoce e internalizada das desigualdades sociais no acesso à educação
e à cultura.
Uma segunda característica na formação de Bourdieu se dá através do seu treinamento na área de filosofia e história da ciência, que lhe propiciou
instrumentos de base epistemológica que compõem sua marca distintiva no campo das ciências sociais de seu tempo. Esses instrumentos poderão
ser ilustrados pela leitura do seu livro publicado em 1968 com seus colegas de então J. C. Passeron e J. C. Chamboredon, A profissão do sociólogo.
Essa opção na filosofia contribuiu para fazê-lo aproximar-se das ciências sociais e lhe deu uma sólida base para apropriar-se da etnologia, da
sociologia e das técnicas estatísticas de forma não-escolar e de forma autodidata. Além disso, deu-lhe condições de valorizar todos os procedimentos
do trabalho científico, mesmo as consideradas mais modestas, usualmente delegadas a alunos e auxiliares.
Período na Argélia
A sua conversão para a etnologia e depois para a sociologia se deu no impacto de sua estadia na Argélia. Logo após completar seus estudos na École
Normale, passar pelo concurso da agrégation que o habilita ao ensino secundário e universitário no sistema público de educação nacional (e que o
dispensou posteriormente de fazer o doutorado), Bourdieu é convocado aos 25 anos para o serviço militar na Argélia. Serviu numa guarnição que
protegia um enorme estoque de munição no interior da então colônia e depois passou para o serviço burocrático do governo geral francês em Argel.
Paralelamente a suas tarefas de escriturário e redator no gabinete militar, fazia para si mesmo anotações de suas observações sobre o país que
culminaram em seu primeiro livro, Sociologie de l’Algérie, publicado em 1958 na coleção “Que Sais-je?” (“Saber Atual”), onde sua empatia pelo povo
argelino dominado pela França se vestia do conhecimento da complexidade da tradição cultural de suas diferentes etnias, no momento mesmo em
que tal tradição é negada na metrópole colonial e mal conhecida pelos próprios intelectuais franceses engajados contra o colonialismo.
Ao término do serviço militar, deu cursos de filosofia e sociologia na Faculdade de Argel, onde pôde reunir um grupo de estudantes para fazer
pesquisas de campo, complementares aos cursos, e depois pesquisas etnográficas e estatísticas, desenvolvidas por uma associação que reuniu jovens
estatísticos do INSEE (o IBGE francês) e sua própria equipe de estudantes, onde se destacava seu futuro colega e amigo de toda a vida Abdelmalek
Sayad. Foi assim que na Argélia, fascinado pela tradição cabila que se perdia e pela transformação brusca do campesinato pela modernização
capitalista e pela política colonial, Bourdieu desenvolve de forma autodidata a pesquisa etnográfica e o aprendizado das técnicas estatísticas. É do
tesouro de aprendizados e de lições humanas vividos na Argélia, a que é levado de início ao acaso e compulsoriamente, que Bourdieu tirará
materiais analíticos pelo resto de sua vida, alimentando sua obra futura – e isso, mesmo quando ela se volta para realidades empíricas distintas.
Também é do período argelino o início da elaboração de suas posições políticas relacionadas ao conhecimento científico. Nesse caso, sua posição era
a de fazer a pesquisa etnológica, mesmo enfrentando os perigos da situação extrema de guerra colonial contra a insurreição nacionalista argelina, e
revelar ao público a análise de processos sociais desconhecidos das autoridades coloniais, bem como dos intelectuais críticos franceses, assim como
de boa parte da rede de militância e de apoio dos revoltosos. Isso é argumentado no verdadeiro manifesto que é o prólogo que inicia a segunda parte
do livro Trabalho e trabalhadores na Argélia, de 1963 (versão resumida em português, O desencantamento do mundo), onde se coloca contra as
posições de princípio destituídas do mínimo de conhecimento empírico dos processos sociais em questão da parte de intelectuais franceses críticos à
guerra colonial (tendo como mote o artigo de um etnólogo declarando ser impossível fazer-se pesquisa naquelas condições). A posição política
implícita de Bourdieu se dá através da valorização dos instrumentos de libertação que podem ser fornecidos pela pesquisa científica naquela
situação. Além disso, no prefácio do livro, sobre o que denomina de “fetichismo da estatística”, inicia uma linha de crítica aos artefatos estatísticos
utilizados para justificar efeitos de dominação social, análise que prosseguirá posteriormente com relação às sondagens de opinião pública que
regem cada vez mais a política eleitoral.
Legado
De fato, em sua trajetória ascendente fulminante no mundo universitário, Bourdieu contará com o acaso e o senso de oportunidade de oferecer
análises decisivas a fenômenos e processos sociais que estiveram no centro da atualidade política e social. Assim foi com suas análises das
sociedades argelina e cabila quando a guerra da Argélia era a questão decisiva para a França no início dos anos 1960; assim foi também com suas
análises, junto com J.C. Passeron, sobre o sistema escolar francês e sobre a centralidade ocupada pela escola nas sociedades contemporâneas,
antecipando a crise de 1968 e dando instrumentos para a sua compreensão (o livro Les heritiers, ainda não traduzido, é de 1964). Também esse
senso de estar tocando, pelos resultados de pesquisa, em problemas cruciais da atualidade, sem estar procurando para isso satisfazer à mídia (antes
pelo contrário, analisando seus efeitos nefastos), se produz também como vimos nos anos 1990, quando da publicação de A miséria do mundo.
Bourdieu dá importância aos imponderáveis da vida real, que acabam fazendo da necessidade virtude, baseado em sua própria trajetória pessoal.
Assim foi com o fato de fazer dos prolongamentos de seu serviço militar a ocasião de seus primeiros trabalhos científicos de peso, de fazer de sua
falta de capital cultural herdado um estímulo à análise crítica dos intelectuais e dos artistas após um enorme esforço de aquisição dos instrumentos
de conhecimento necessários; assim foi também transformar suas posições de desvantagem social vividas no impulso de desvendamento das
dominações e na sensibilidade que tem com os dominados. Mesmo o fato de trabalhar fortemente em equipe no início de suas pesquisas, formando
uma extensa rede de colaboradores na França e internacionalmente, deu-se pela sua necessidade (e ansiedade) de afrontar-se aos seus colegas
estabelecidos, afeitos às práticas de cátedra, nas instituições prestigiosas a que foi galgado. Não somente suas próprias obras, como a revista
inovadora Actes de la Recherche em Sciences Sociales, fundada em 1975, e as coleções que dirigiu, introduzindo em língua francesa autores de
outras tradições nacionais – e depois revistas como Liber, congregando uma rede de intelectuais europeus críticos e coleções de livros a baixo custo
numa linha militante como Raisons d´agir –, tomaram-lhe parte importante de seu ritmo impressionante de atividades.
Seu legado é constituído pela profusão de instrumentos de pesquisa, por ele formulados, para serem desenvolvidos em várias áreas das ciências
humanas. Embora ainda visto freqüentemente com antipatia no pequeno mundo dos colegas concorrentes, de alguns jornalistas e intelectuais
midiáticos, e da profusão de escolas de pensamento rivais na França, seu renome científico internacional é cada vez maior. No Brasil sua recepção
foi precoce, comparado particularmente aos campos acadêmicos norte-americano e inglês. Enquanto estes descobriram Bourdieu no final dos anos
1980 e durante os anos 1990, traduzindo já suas obras mais famosas e maduras, no Brasil ele é ensinado em algumas pós-graduações de
antropologia e sociologia (a partir de alguns poucos ex-alunos brasileiros) desde o início dos anos de 1970, através de artigos em revistas e seus
primeiros livros. Também desde 1974, com a publicação da coletânea A economia das trocas simbólicas, organizada por Sergio Miceli, seus artigos
iniciais esclarecedores, difíceis de serem encontrados hoje em francês, ficaram accessíveis para o público universitário brasileiro.
Além disso, suas reflexões inovadoras e sua própria prática, articulando atividade científica e intervenções políticas, chegando a resultados mais
gerais a partir de objetos de análise singulares inusitados, assim como trabalhando sobre objetos tradicionais – entre os quais aqueles banalizados
pelas atualidades da mídia – sob novos pontos de vista, constituem sua contribuição a perdurar, conservando seu poder inovador e sua atualidade
no futuro.
José Sérgio Leite Lopes é professor do Museu Nacional/UFRJ (Antropologia Social), autor de O vapor do diabo: O trabalho dos operários do
açúcar (1976) e organizador de A ambientalização dos conflitos sociais: Participação e controle público da poluição industrial (2004).

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