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EM MEMÓRIA DE JOHN MANUEL MONTEIRO (1956-2013)


Glória Kok Martins

John M. Monteiro na travessia do Canal de Beagle,


Argentina (dezembro de 2012)
Foto: Maria Helena Machado

O instante captado pela lente de Maria Helena Machado na foto


do historiador e antropólogo John Manuel Monteiro na paisagem de
água, céu e gelo da travessia do Canal de Beagle, na Argentina, é
revelador da personalidade luminosa de John, que aliava alegria,
gentileza e inovação ao rigor, conhecimento e exigência de um
intelectual que conquistou prestígio internacional e nacional.
Grande especialista em história indígena, John tinha vasta
experiência em pesquisa documental nas Américas, Europa e Índia.
Graduado em História, no Colorado College, em 1978, fez Mestrado e
Doutorado em História na Universidade de Chicago, nos Estados


Texto publicado na revista de História, Procesos, da Universidad Andina Simón Bolívar, sede
Ecuador

Pós-Doutoranda no Departamento de Arqueologia do Museu de Arqueologia e Etnologia/MAE-
USP
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Unidos, de 1980 a 1985, e, na sequência, mudou-se definitivamente


para o Brasil.
Publicou sua tese de doutorado com o título Negros da Terra:
índios e bandeirantes nas origens de São Paulo (1994a),1 que
redimensionou o lugar do índio – o negro da terra – no sistema
produtivo paulista durante os séculos XVI, XVII e XVIII, provocando
uma reviravolta na historiografia brasileira. A partir daí, as populações
indígenas ocupariam um papel central na historia social de São Paulo
e, de modo mais amplo, da América portuguesa.
No mesmo ano e com o objetivo de reunir informações sobre os
índios do Brasil, John, na qualidade de coordenador, publicou Guia de
fontes para a História indígena e do indigenismo em arquivos
brasileiros (1994b),2 um valioso instrumento de pesquisa que
descreveu o conteúdo de mais de 500 conjuntos documentais repletos
de pistas e fragmentos sobre o passado dos grupos indígenas.
“Repensar a história dos índios a partir da documentação textual e
iconográfica que é apenas arranhada aqui significa muito mais do que
simplesmente agregar mais estes ao crescente rol de ‘povos sem
história’ que vêm sendo ‘resgatados’ pela historiografia ocidental.
Significa reescrever capítulos inteiros da história do Brasil, para que
este novo conhecimento do passado possa lançar uma luz menos
pessimista e mais justa sobre o futuro dos povos indígenas”, escreve
John (MONTEIRO, 1994b: 11).
Entre 1986 e 1991, John foi professor da UNESP em Araraquara,
Assis e Franca, São Paulo, e coordenador do Centro de Estudos
Latino-Americanos (CELA) dessa universidade. Em 1994, tornou-se

1MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994.
2MONTEIRO, John Manuel (coordenação). Guia de fontes para a História indígena e do

indigenismo em arquivos brasileiros. Acervos das capitais. São Paulo: Núcleo de História Indígena
e do Indigenismo e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, 1994.
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professor do Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e


Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
em São Paulo, onde apresentou o trabalho de Livre-Docência, Tupis,
tapuias e historiadores: estudos da história indígena e do indigenismo
(2001), e, ainda, recebeu o título de Professor Titular em 2009.
Atuou também como professor visitante na Universidad Nacional
de San Martín (2012), em Harvard University (2003-04), University of
Michigan (1997 e 2010) e University of North Carolina-Chapel Hill
(1985-86). Foi "Directeur d'Études Invité" na EHESS em Paris (1999) e
pesquisador do CEBRAP de 1991 a 1998.
John foi um professor muito comprometido com a educação
brasileira e dedicado à formação dos alunos. Quando assumiu a chefia
do Departamento de Antropologia, de 2008 a 2011, e o cargo de
Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, em
dezembro de 2012, John, sempre bem-humorado e com a rotina cada
vez mais atribulada, não se furtava ao diálogo, à orientação e aos
intercâmbios de ideias, livros, documentos e vídeos. John orientou 14
teses de doutorado, das quais três foram premiadas, e 8 dissertações
de mestrado, além das supervisões de pós-doutorado e orientações
em curso.
Muito afável, generoso e querido, John teceu à sua volta uma
rede de amigos, colegas, pesquisadores e orientandos que se reuniam
na Unicamp, no Centro de Pesquisas em Etnologia Indígena (CPEI),
de que era coordenador, no Grupo de Trabalho que fundou na
Associação Nacional de História (ANPUH), “Os índios na História”, e
em diversos encontros nas universidades brasileiras de todas as
regiões do país, sobretudo nas bancas de mestrado e doutorado, que
John, por mais ocupado que estivesse, sempre aceitava participar.
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Para disponibilizar informações sobre História Indígena aos


pesquisadores, John criou o site "Os Índios na História do Brasil"
(www.ifch.unicamp.br/ihb). Impecavelmente organizado e visualmente
cuidado, o site contém fontes, bibliografia, iconografia, dissertações e
teses comentadas, além dos programas dos cursos no Departamento
de Antropologia da Unicamp e das reuniões científicas.
Ao longo de sua trajetória exemplar consolidou a História
Indígena como campo de pesquisa ao mesmo tempo em que repensou
criticamente o passado, o presente e o futuro dos povos indígenas das
terras baixas da América do Sul. O trabalho de John recuperou
múltiplas vozes, histórias e identidades ameríndias, negligenciadas até
então pela historiografia nacional e regional.
Em 26 de março de 2013, John faleceu em um acidente de
automóvel, na Rodovia dos Bandeirantes, região de Campinas. Leitor
voraz, grande escritor e pesquisador marcado pela originalidade,
integridade e disciplina, ele nos deixou um legado memorável de
artigos, livros, palestras, aulas e orientações - uma fonte inesgotável
de inspiração para os estudiosos.
Daqui prá frente, deslizando sobre as águas dos estudos de
História Indígena, cabe a nós, sobreviventes, prosseguir, com
entusiasmo e coragem, os caminhos e sendas trilhados pelo John e
agradecer sempre o convívio que só um verdadeiro mestre nos é
capaz de oferecer.

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