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5.

Antropologia clássica e gênero

“Os trabalhos das pioneiras merecem ser


valorizados, estudados e mantidos (através de
nossas releituras deles), pois se tratam de ‘nossos
clássicos’”. (Miriam Adelman, 2009, p. 125)

Carol Vance, em texto hoje clássico (1995) chama atenção para o lugar de
desbravadores do sexo (dos outros) que a Antropologia conferiu a si mesma.
Reivindicando por meio desta ousadia investigativa certo pioneirismo em
desenssencializar a sexualidade humana, imprimindo-lhe seu caráter marcadamente
cultural, aproximando-se, desta forma, e antecipando em alguma medida, a proposta
construcionista dos feminismos de segunda onda em relação à sexualidade humana, bem
como aos comportamentos esperados de homens e mulheres.
Mas é a própria Vance que aponta para a timidez da área em tratar do tema e
denuncia os constrangimentos acadêmicos que a discussão sobre sexualidade provocava
em seu metié. Gênero e sexualidade tornaram-se, no entanto, tema de grande interesse
para as ciências sociais brasileiras já a algumas décadas, com especial ênfase a partir do
início deste milênio. Antes de chegar ao cenário contemporâneo nacional e sem pretender
fazer um apanhado histórico amplo, inicio de maneira previsível, mas, espero, clássica,
esse breve ensaio.
A diferença sexual e seus significados sociais ocuparam o interesse da
Antropologia desde sua fundação enquanto disciplina. O “desejo colonial” (Young, xxxx)
sustentou e alimentou as discussões evolucionistas, as preocupações com o hibridismo
racial, na mesma medida em que silenciou sobre a sexualidade dos próprios
investigadores. Nas primeiras décadas do século XX, os espartilhos da moral vitoriana
começaram a ser timidamente forçados, de maneira que falar do sexo dos “selvagens”
pareceu não só relevante como algo deveras sério.
É lugar comum elencar os estudos de Bradislaw Malinowski e George Bateson,
Margareth Mead como pioneiros quando se trata de etnografar relações de gênero e
sexualidade. Sexo e gênero (conceito que não estava em voga à época dessas produções)
deixam, naqueles trabalhos, de serem termos secundários que permitiriam análises sobre
estruturas de parentescos e organizações sociais, para alcançar centralidade das análises
nas produções citadas.
Antes da tríade referenciada acima, Johann Jakob Bachofen e Lewis Morgan são
frequentemente lembrado como autores que inspiram, provocam e oferecem elementos
(mais teóricos que empíricos) para se pensar na centralidade do sexo biológico e da
reprodução como elementos naturais que pautam a ordem social e política. No
evolucionismo político que orienta as proposições daqueles pioneiros, a própria ideia de
civilização associa-se a assunção dos homens ao poder. Civilização é ordem, e o reino
feminino não soube/pode estabelecê-la. A discussão dos citados autores é mais sofisticada
do que a apresentada de forma tão apressada neste parágrafo, pois me interessa, de fato,
mais que considerar essas contribuições em si, dialogar com seus desdobramentos.
Tanto Bachhofen como Morgan inspiram a imaginação de Friedrich Engels, que
cita ambos em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, obra na qual
relaciona sexo, sexualidade, parentesco e dominação masculina com a economia política.
De certa forma a relação entre o privado e o político, o corpo e o poder, estavam ali
escondidas sob as camadas de materialismo histórico.
A tese central de Engels é que, na passagem da selvageria para a barbárie, ao final
do “comunismo primitivo”, nascem conjuntamente a opressão de classe, com o
surgimento da propriedade privada, inclusive de outros homens na forma de escravos, e
a opressão feminina com a subordinação da mulher ao direito paterno para garantir a
transmissão de sua linhagem e propriedade. Nesse sentido, ele afirma de forma lapidar,
que “a derrota histórica do gênero feminino” ocorreu com o advento da propriedade
privada.

Como os volumes do século XIX sobre a história do casamento e da família que


ele comenta, os fatos que apresenta em sua argumentação o tornam curiosamente
ultrapassado para um leitor familiarizado com os últimos avanços da
antropologia. Não obstante, é um livro cuja considerável perspicácia não deve ser
obscurecida por suas limitações. (Rubin, 2003 [1975], p, 09)

A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado ofereceu elementos


teóricos e analíticos para algumas feministas marxistas e socialistas discutirem, nos anos
de 1960/70, a opressão das mulheres tomando como ferramentas analíticas categorias
forjadas por aquele paradigma. Quando as mulheres passaram a teorizar sobre “opressão
feminina”, “dominação masculina”, “desigualdades entre sexos”, precisaram de teorias
tidas como sérias para fazer suas formulações. Gayle Rubin (Op. cit.) avalia que esses
empréstimos conceituais se deveram, justamente, pela ausência de uma teoria que fosse
tão potente para explicar a exploração e opressão das mulheres, quanto o materialismo
histórico e dialético para explicar a opressão de classe.
O valor dessas teorizações esta antes em seus esforços em desbiologizar e
desnatualizar comportamentos tidos como masculinos/femininos, do que na validade
histórica ou arqueológica desses argumentos. Ao questionarem a opressão/dominação de
homens sobre mulheres, estão deslocando pensando para além dos supostos
determinantes anatômicos.
Neste sentindo, as contribuições de Mead ([1935]1979) em Sexo e Temperamento
tornaram-se referências incontornáveis. Ao relativizar para a cultura ocidental
determinados “papéis” sexuais questionando a natureza biológica do gênero, a
antropóloga mostra que, mais do que obra da anatomia e da fisiologia, os comportamentos
sexuais e, assim, as expressões de gênero são “criações culturais às quais cada geração,
masculina e feminina, é treinada a conformar-se” (Mead, 1979, p. 269). Sua conclusão é
que a partir dos diferentes padrões culturais encontrados nas três sociedades que estuda
em relação aos ‘temperamentos’ dos homens e das mulheres “não nos resta mais a menor
base para considerar tais aspectos do comportamento como ligados ao sexo”, isto é, a
uma suposta natureza que fala mais alto que a cultura.
Segundo Miguel Vale de Almeida (2000, p. 104), “a partir de Mead a antropologia
estava pronta para o salto qualitativo do feminismo. Assim como as sociedades ocidentais
que a produzem estavam prontas para uma radical reformulação dos gêneros”.
Reformulações que, décadas mais tarde, não poupariam a própria Mead. Seu livro Macho
& Fêmea, lançado no mesmo ano do clássico O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir,
foi alvo de duras críticas por parte de muitas feministas que encontraram nele argumentos
que sustentaram a “mística feminina” (Sardenberg, 2000, p. 77), trouxeram reforços
essencialistas e binários que pareciam contradizer a inquestionável contribuição da
antropóloga para a desnaturalização das expressões de gênero.
Separar sexo de reprodução e esta como justificativa maior para as diferenças
entre homens e mulheres não foi tarefa fácil. Do feminismo liberal ao radical, ainda nos
anos de 1970, a anatomia aparecia como referente para se entender as hierarquias
estabelecidas entre homens e mulheres.
No caso das contribuições da Antropologia para a sofisticação desse debate
retorno ao texto, hoje já um clássico, “O tráfico de mulheres: Notas sobre a ‘Economia
Política’ do Sexo”, de Gayle Rubin. Dialogando com titãs, a então aluna de mestrado,
Gayle Rubin, enfrenta Lévi-Strauss, Freud e o Marxismo com o intuito de “desenvolver
conceitos para descrever adequadamente a organização social da sexualidade e da
reprodução das convenções de sexo” (Rubin, 2003, p.9).
Mesmo que se reconheça até o presente a potência do conceito de “sistema
sexo/gênero” cunhado por Rubin, aponta-se sua reverência (ainda que crítica) a modelo
estruturalista levistraussiano. O próprio título do artigo, apresentado como trabalho para
o fim da disciplina de Marshall Sahlins, brinca com a teoria de parentesco de Lévi-
Strauss, quando este mostra que é na circulação e troca de mulheres como termos
comunicantes que os homens estabelecem alianças exogâmicas e, assim, mantêm os
vínculos societários a partir do parentesco, que sai da ordem da natureza para a da cultura.

Parentesco é organização, e a organização cria poder. Mas quem é organizado?


Se o objeto das trocas são as mulheres, então são os homens que estão
estabelecendo laços por intermédio delas, e estas não são parceiras, apenas um
instrumento nesse intercâmbio. A troca de mulheres não implica necessariamente
que estas são transformadas em objeto no sentido moderno, uma vez que no
mundo primitivo atribuem-se aos objetos qualidades bastante “pessoais”. Mas ela
implica uma distinção entre o presente e aquele que o dá. Se as mulheres são os
presentes, então os homens é que são os parceiros nessa troca. E é aos parceiros,
não aos presentes, que essas trocas conferem o poder quase místico do laço social.
As relações desse sistema são tais que as mulheres não têm condições de perceber
claramente os benefícios trazidos pelas trocas de que são objeto. (Rubin, 2003, p,
21).

Para Lévi-Strauss a regra funda a cultura e a primeira delas, numa hipótese lógica
e não histórica, é o tabu do incesto que, ao negar/proibir o sexo e o casamento
endogâmico, isto é, dentro do mesmo grupo “natural”, obriga que se case com o de fora,
estabelecendo-se nessa troca o parentesco, desbiologizando a família e, mais, criando
linguagem, da qual as mulheres são um dos termos de comunicação. De maneira que,
como mostra Rubin, neste esquema a cultura, a lei e a regra conferem o poder da
organização social aos homens, emudece as mulheres, objetificadas como elementos de
troca. Mais que isso, a cultura se estabelece como heterossexual, de maneira que o tabu
do incesto implicaria também no tabu da homossexualidade.
“É interessante levar mais adiante esse trabalho de dedução de Lévi-Strauss, e
explicar a estrutura lógica subjacente a toda a sua análise do parentesco. Num nível mais
geral, a organização social do sexo baseia-se no gênero, na obrigatoriedade do
heterossexualismo e na repressão da sexualidade da mulher”. (Rubin, 2003, p. 27). Estava
dada aqui uma chave importante: sexo e gênero são termos relacionados, mas não são a
mesma coisa. Mais que isso, formam um sistema e têm a ver com relações de poder. Sexo
é, assim, tão social quanto gênero. Ainda que muitas críticas dirigidas posteriormente ao
conceito “sistema sexo/gênero” insistam que Rubin manteve o sexo como dado da
natureza, vejo que em sua vinculação do sexo com a “economia política” dos corpos, ele
(o sexo) já estava sendo tratado fora dos marcos biologizantes.
Se a opressão das mulheres estava relacionada à organização social fosse pela
divisão sexual do trabalho ou pelas alianças de parentesco, então a subordinação não era
natural, mas fruto dessa ordem que, para muitas antropólogas feministas, pareceu
universal. Como enfrentar esta aporia que coloca, por um lado, as relações de gênero no
campo da cultura, mas ancora universalismos numa natureza percebida como universal?
Em busca de resposta sobre a opressão feminina, antropólogas da geração de
Rubin saíram pelo mundo a etnografar e não voltaram com boas notícias. Em toda parte,
as diferenças de gênero tornam-se desigualdades e consequentemente subordinação
feminina. Um dos problemas dessas pesquisas, sobre as quais não me deterei aqui, foi a
de considerar a categoria sociológica de mulher como inequívoca.

Os textos antropológicos clássicos representam as mulheres das "outras culturas"


de uma maneira que sempre parece-nos inesperadamente familiar, é necessário
indagar até que ponto esses textos descrevem essas mulheres e/ou constroem o
feminino entre e para os portadores da cultura ocidental. (Suárez, 1997, p.42 ).

Ou seja, suspeita-se que havia nessas análises e propostas teóricas um olhar se não
etnocêntrico, pelo menos enviesado, altamente plasmado e orientado por categorias
ocidentais de ordenação dos gêneros como no caso dos estudos de Michele Rosaldo e sua
reiterada proposta explicativa que dicotomizava o público e o privado. Sendo esta última
território feminino, alijado da política como prática masculina e de ordenação do público.
Ao fim, a biologia e a fisiologia das mulheres justificava essa ordenação. Ordem esta que,
mais tarde, será colocada em xeque não só pela sua ancoragem na fisiologia feminina
como elemento que justificaria a ordem social e política, mas por tomar o Outro a partir
dos referentes de quem pesquisa, como manifesta Myreia Suárez, na citação apresentada
mais acima.
Porém,
a acumulação de informação sobre a diversidade de experiências femininas e a
sofisticação crescente das perspectivas acadêmicas orientadas pelo feminismo
conduziram, também, ao caminho oposto, isto é, à contestação de vários dos
conceitos e categorias com os quais o pensamento feminista estava operando. E
um dos primeiros alvos desses questionamentos foi a utilização do patriarcado
como categoria de análise. (Piscitelli, 2002, p. 16).

Acionado, desde os estudos evolucionistas como termo político capaz de falar


tanto de parentesco quanto de sistemas de governo, o conceito de patriarcado é, até hoje,
um dos mais disputados no campo dos estudos e movimentos feministas.
Na década de 70 do século passado, o conceito de patriarcado parecia se assentar
no corpo da mulher. Mesmo mulheres com experiências de classe, raça e geração
distintas, sofriam opressão devido a seus atributos naturais e o sistema responsável por
essas desigualdades era o patriarcado. Mesmo em sociedade de matriz ocidentais,
capitalistas, operando na lógica do mercado, mantinham-se instituições patriarcais, as
quais asseguravam os homens o controle sobre as mulheres. “Tomando como ponto de
partida a ideia de que os homens universalmente oprimem as mulheres, o pensamento
feminista procurou explicar a forma adquirida pelo patriarcado em casos específicos.”
(Piscitelli, 2002, p.13).
Rubin, preferiu a crítica ao termo propondo em seu lugar o conceito de “sistema
sexo gênero”. Para ela, o patriarcado perde sua potência descritiva a analítica pois
esconde outras distinções como aquelas que distinguem, por exemplo, sociedades tribais
das capitalistas. Além de tender a subsumir na esfera produtiva as relações subjetivas e
privadas. Como forma específica e histórica de dominação masculina, o patriarcado não
oferece elementos heurísticos para se pensar organização social da sexualidade e a
reprodução das convenções de sexo e gênero nas sociedades contemporâneas, sobretudo
aquelas de matriz ocidental.
Com o tempo, argumenta Piscitelli, o patriarcado tornou-se um conceito reificador
e essencializado, ainda que venha sendo mobilizado pelo feminismo jovem e pelos
ciberfeminismos como conceito ainda válido para se pensar as relações desiguais de
gênero. Seu caráter trans-histórico e trans-cultural não parece enfraquecê-lo, ao contrário,
para algumas feministas é justamente dessa capacidade universalista que nasce sua
potência. Foi, pois, na vaga crítica dos feminismos dos anos 70 que feministas marxistas
e socialistas cunham o conceito de “patriarcado capitalista”, o qual procurava mostrar que
o termo evoluíra teórica e historicamente, podendo dar conta das análises presentes agora
descoladas das perspectivas evolucionistas que ainda impregnavam algumas análises
inspiradas em “A origem da Família...”. Ainda assim, as interrogações céticas em torno
de sua validade descritiva seguiram.
Presente desde os clássicos do século XIX, persistindo nas já clássicas
contribuições de antropólogas feministas da segunda metade do século XX, o
“patriarcado” sobrevive. Hoje, na segunda década do século XXI, uma nova geração de
feministas brasileiras com distintas formações acadêmicas e/ou talhadas na prática
militante, ainda mobilizam o conceito para ler o presente. Talvez, como antropólogas,
devamos fazer o que aprendemos com nossa literatura clássica: levar a sério o que as
pessoas têm a dizer sobre o que fazem, procurando nas categorias nativas entradas para a
interpretação analítica das formas como organizam a vida, pensam a si mesmas e o mundo
que as rondeia.

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Miguel Vale de (2000). Senhores de si, uma interpretação antropológica da


masculinidade. 2.ed. Lisboa: Fim de Século.
PISCITELLI, Adriana. “Recriando a (categoria) mulher?” In: ALGRANTI, L. (org.) A
prática feminista e o conceito de gênero. Textos Didáticos, n. 48, pp. 7-42, 2002.
RUBIN, Gayle. 2003. “Pensando sobre Sexo: Notas para uma teoria radical da política
da sexualidade”. cadernos pagu, Campinas: Núcleo de Estudos de Gênero Pagu
UNICAMP, nº. 21. pp. 01-88.
SARDENBERG, Maria Cecília. “Um Diálogo Possível entre Margaret Mead e Simone
De Beauvoir”. Um Diálogo com Simone de Beauvoir e Outras Falas, organizado por
SARDENBERG, Cecilia, Alda Britto da Motta e Márcia Gomes. Salvador,
Bahia:NEIM/UFBA, 2000, p.75-107.

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