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4ª.

Aula: O belo não é – a questão do como fazer e do método

Foi assim que em sua viagem aos tristes trópicos – como o chamou – na

década de 1930 escreveu o jovem antropólogo Claude Lévi-Strauss: “Depois

disso, sinto-me ainda mais embaraçado para falar do Rio de Janeiro, que me

desagrada, apesar de sua beleza celebrada tantas vezes. Como direi? Parece-

me que a paisagem do Rio não está à altura de suas próprias dimensões. O

Pão de Açúcar, o Corcovado, todos esses pontos tão enaltecidos lembram ao

viajante que penetra na baía cacos perdidos nos quatro cantos de uma boca

desdentada” (Lévi-Strauss, 1996, p. 84).

Ao ver a mesma baía de Guanabara – e na mesma década de 1930 –

Cole Porter exclamou:"It's delightful!". Linda Porter, sua mulher, disse: "It's

delicious!" E um amigo, em um chiste, replicou: "It's de-lovely”. Esta sequência

está na canção It´s de-lovely, em que Cole Porter inspira-se na Baía de

Guanabara: “The night is young, the skies are clear, / So if you want to go

walking, dear, / It's delightful, it's delicious, it's de-lovely!” 1.

Foi assim que Caetano Veloso, na canção “O estrangeiro”, deu

passagem à discordância sensorial entre o antropólogo e o compositor – às

quais soma-se a do pintor Paul Gauguin, que esteve no Brasil na década de

1870: “O pintor Paul Gauguin amou a luz na Baía de Guanabara. /O compositor

Cole Porter adorou as luzes na noite dela. /O antropólogo Claude Lévi-Strauss

detestou a Baía de Guanabara. /Pareceu-lhe uma boca banguela. /E eu menos

1“A noite é jovem, o céu está iluminado. Então se vocês que ir dar uma caminhada, querida, Isto é
deslumbrante, isto é delicioso, isto é de-apaixonante” (Tradução nossa). A interpretação de Ella
Fitzgerald está disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=txBnEh-SpGg . A de Sarah Vaughan,
aqui: https://www.youtube.com/watch?v=-PREOtMaDvI .
a conhecera mais a amara? /Sou cego de tanto vê-la, de tanto tê-la estrela. /O

que é uma coisa bela? ”.

Entre a apreciação do antropólogo e a do compositor, Caetano Veloso

faz aparecer uma questão que se tornou premente em nosso último encontro –

lá onde começamos a pensar a junção entre a política e a estética: o que é

uma coisa bela? Mas era ao mesmo tempo bela e banguela a Guanabara – foi

assim também que cantou Caetano Veloso na mesma canção. A baía de

Guanabara, simultaneamente bela e banguela, força o compositor baiano à

questão: o que é uma coisa bela? E para nós, para a política que queremos

defender, o que é uma coisa bela? Seria esta de fato a nossa questão?

Da última vez, apresentamos um certo movimento que nos pareceu, ao

menos em alguma medida, tortuoso. Esse movimento tortuoso era o

movimento daquilo que, na história, se convencionou chamar de esquerda. Sob

a invenção jacobina na revolução francesa, passando pela acepção proletária

comunista e anarquista, pela revolução russa – e suas estranhas irmãs em

Cuba, na China, no Camboja, no Vietnã – até chegar ao que, junto com Felix

Guattari, chamamos de revolução molecular, o que se torna complicado para a

esquerda é a própria ideia de unidade. O campo da esquerda seria um campo

de disputa também – um campo sem essência, um campo em feitura, um

campo em devir. Neste campo fragmentário chamado esquerda, a perspectiva

da revolução molecular força a presença de uma modulação estética no gesto

revolucionário – esquerda estética jamais de todo esquecida, inclusive nas

modulações mais duras e ditatoriais, aliás, e para entender isso bastaria

lembrar a literatura de Maiakovski, o cinema de seu amigo Dziga Vertov (que

muda seu nome para insistir nesse sentido de movimento: DZIGA - palavra
ucraniana que significa roda que gira sem cessar e VERTOV - do russo vertet

que significa rodar) e a pintura de Maliévitch (O manifesto “Do Cubismo ao

Suprematismo”, assinado em 1915 por Malevitch e Mayakovski, defendia a

supremacia da sensibilidade sobre o próprio objeto. O essencial era a

sensibilidade em si mesma, independentemente do meio de origem), para

ficarmos na Rússia da revolução de 1917. Haveria, então, uma certa

modulação política do belo a qual gostaríamos de lentamente defender: a

defesa de uma estética na revolução molecular.

Em Abecedário Deleuze, programa de televisão feito em conjunto com a

jornalista Claire Parnet, o filósofo presta-se a definir temas os quais se colocam

na sequência do alfabeto. É assim que, chegada a vez da letra G, é convocado

a abordar o vocábulo Esquerda – Gauche, em francês. Já sob os efeitos do

governo François Mitterrand – uma suposta tomada de poder democrática pela

esquerda – é que Deleuze insinua colocações que não são nem um pouco

triviais. Diz ele: “Mas não existe governo de esquerda, pois a esquerda não tem

nada a ver com governo”. “E, segundo, ser de esquerda é ser, ou melhor, é

devir-minoria, pois é sempre uma questão de devir. Não parar de devir-

minoritário. A esquerda nunca é maioria enquanto esquerda por uma razão

muito simples: a maioria é algo que supõe – até quando se vota, não se trata

apenas da maior quantidade que vota em favor de determinada coisa – a

existência de um padrão. A esquerda é o conjunto dos processos de devir

minoritário”. Sob essa acepção da esquerda radicalmente distante de um

governo e absolutamente próxima do jogo dos devires é que se encontra aquilo

que no último encontro pudemos chamar de revolução molecular. Mas como

definir a proximidade entre a política e a estética a partir de tal direção que é a


do plano político – e não de projeto ou de programa? Sob essa acepção

política, o que seria uma coisa bela? Sob o jogo do devir minoritário, o que é

uma coisa bela? E de novo: seria essa de fato a nossa pergunta?

Esta questão – o que é uma coisa bela? – encontra lugar também na

empreitada crítica kantiana – aproximadamente vinte e um séculos depois do

diálogo Hípias Maior – diálogo socrático-platônico no qual a mesma questão se

coloca, tendo como marcas fundamentais a tradicional junção grega entre a

beleza e a ética e a impossibilidade de deliberação de uma beleza universal.

Ao perceber a insuficiência das definições defendidas por Hípias, Sócrates

afirma – após alguns movimentos dialógicos – que Belo é aquilo que é útil.

Neste momento do diálogo, percebe-se que o belo, para Sócrates, se relaciona

ao que é ético, pois é só quando a dýnamis – ou a potencialidade – é usada

para o bem que se pode dizer que há o Belo. Para o mundo grego talvez fosse

mesmo impossível separar o ético do estético e a beleza fosse uma qualidade

mais adequada a avaliar condutas e ações do que propriamente aplicável às

sensações. Talvez por isso, até o final do século XVIII, o belo não pudesse se

queixar de ser constantemente confundido com o útil ou o conveniente. Nos

gregos, o belo não tinha autonomia e não se diferenciava nem do bom nem do

verdadeiro: o belo era ético, formando com ele uma unidade essencial.

É Kant que no final do século XVIII dá ao problema estético sua solução

transcendental. Se na Crítica da razão pura o que é interrogado são as

condições transcendentais do conhecimento, se na Crítica da razão prática o

que é interrogado são as condições de um imperativo categórico moral

universal, é na Crítica das faculdades de julgar – a terceira e menos conhecida

crítica kantiana – que o problema estético se faz premente para o filósofo de


Königsberg. Kant tenta tornar o belo – ou o estético – transcendental. Em Kant,

o que é transcendental é o que é livre e autônomo, e na Crítica da faculdade

de julgar reaparece e é desenvolvido o adjetivo transcendental agregado ao

estético, o que já tinha sido prefigurado na primeira das críticas quando

distingue a estética, a analítica e a dialética transcendentais. É, pois, como um

gesto anti-platônico que o estético transcendental tenta se fazer em Kant:

separar o belo do bom e do verdadeiro.

Todavia, o ponto de partida da crítica kantiana – e da tentativa de uma

atribuição transcendental para a estética – não é o belo em si, mas o juízo

sobre o belo. Sua posição fica entre os intelectualistas – que defendiam a

universalidade do belo – e os empiristas – que defendiam a dimensão

necessariamente singular do sentimento estético. O problema kantiano era

manter, ao mesmo tempo, o atributo intelectualista – ou seja, uma certa

universalidade do belo – e a singularidade da sensação própria a cada

indivíduo. A expressão juízo estético se torna legítima na última crítica, pois,

nela, Kant não se refere ao objeto, mas ao sujeito e a seu sentimento: o juízo

do belo. O juízo de beleza, portanto, não é determinante – não está no objeto

em si – mas sim reflexionante – é no sujeito que ele se dá. Mas como

transformar isso em transcendental – meta da empreitada estética na terceira

crítica kantiana?

Apesar de a finalidade do juízo estético ser absolutamente subjetiva, ela

pode pretender a uma validade universal, uma vez que as condições do acordo

entre as faculdades, condições que propiciam o sentimento de prazer e

também a enunciação de que algo é belo, são comuns a todos os homens:

todos são capazes de sentir a beleza de algo. O transcendental estético não se


encontraria em um objeto – um objeto certamente belo, uma obra

universalmente bela – mas na sensação universal de que algo – por sua beleza

singular, por seu encontro com o sujeito – cause prazer: um prazer estético.

Nossa empreitada, todavia, não é nem platônica nem kantiana: não é em

busca de um universal do belo que nos encontramos, mas de uma perspectiva

política – e já podemos dizer micropolítica – da estética: uma estética na

revolução molecular, uma estética no devir, uma estética no plano político, uma

estética na esquerda – e se a esquerda está sempre em disputa, deve-se

concluir que também a estética estará. Trata-se, pois, na nossa empreitada, de

transformar o belo em político – forjar um belo próximo às políticas subjetivas

(da autonomia, da autopoiese, da revolução molecular) que defendemos em

nosso último encontro. Talvez devamos fazer a aposta no gesto artístico como

em um começo: uma experiência de ampliação do mundo que outra coisa não

é senão a singularização.

Se quisermos manter o paradoxo – quase a aporia – utilizada na aula

passada junto à esquerda, quando dissemos que a esquerda não é, diremos

que a resposta à questão que conduziu a aula de hoje – o que é uma coisa

bela? – indica que uma coisa bela não é. Nossos próximos passos

necessariamente nos levarão a modulações artísticas que, no nosso entender,

apresentam políticas – modos de se fazer o mundo – em gestos históricos e

em disputa: disputa estética, disputa política.

É no III Festival Internacional da Canção – no célebre ano de 1968 – que

Caetano Veloso, no discurso irado em que se transformou a canção “Proibido

proibir”, diz à juventude esquerdista anti-imperialista e nacionalista que o

vaiava: “Se vocês forem… se vocês, em política, forem como são em estética,
estamos feitos...”. Não estejamos feitos – sendo em política como em estética!

Devemos continuar nos fazendo.

Para a pergunta “o que é o belo?” temos respostas que não nos ajudam

a nos aproximar das questões quentes do contemporâneo, se buscamos

platonicamente pela utilidade da arte ou kantianamente pelo juízo sensível da

experiência estética. Talvez o desvio da pergunta nos ajude, colocando agora a

questão “como se faz o belo?”. Do quê ao como, nos desviamos de uma

discussão que tende a ficar delimitada no campo da filosofia, para atingir o

problema estético em sua interface com a política, entendida aqui como relativa

aos processos de produção da realidade, no caso, da realidade supostamente

bela.

Ficarmos ligados à pergunta “o que é o belo?” pode nos conduzir aos

perigos da fetichização – e, logo, de uma certa estagnação formal – da obra de

arte atendendo prontamente aos imperativos do mercado da arte com seus

apelos glamourizantes. Tirando o fetiche da obra, o que resta da arte? O que

dela resta é o que nela não resta, o que nela não para. A obra de arte é um

dispositivo de ativação de processos de mutação da sensibilidade e do

entendimento em sua inseparabilidade – sentir e pensar diferentemente – e,

nesse sentido, Kant nos deu a direção ao tomar o juízo estético nessa

dimensão aquém da experiência, já que sua condição de possibilidade, isso

que ele chamou de transcendental ou a priori: o pensamento reflexionante que

é prévio ao sujeito, embora subjetivo, reflexão subjetiva embora não do sujeito

que somos, reflexão fora de si ou subjetividade fora do sujeito como preferiu

dizer René Scherer. Há mutações da sensibilidade, há alterações da forma de

sentir o mundo a que corresponde formações subjetivas diferentes, sujeitos


diferentes. Foucault se mostrou no seu kantismo ao propor a ideia, central em

sua obra, de “a priori histórico” (A ordem do discurso), condição de

possibilidade do que somos e nos tornamos, condição determinada

historicamente: kantismo dinâmico ou kantismo político. Em seu último texto

atesta seu tributo a Kant (“O que são as Luzes”) fazendo o que designou de

“ontologia história de nós mesmos” para pensar as mutações das formas de

sentir, fazer e pensar. Há o “a priori histórico”, há o “diagrama” que se alteram

na história fazendo do tempo um plano transcendental de mutações subjetivas.

Se a obra de arte dispara processos, não o faz senão pelo que nela

insiste como processo de sua própria produção: o seu fazer. A obra de arte é,

portanto, o seu processo de produção e, consequentemente, se define pelo seu

modo de fazer-se, isto é, seu método. Nela, então, o sentir, o pensar e o fazer

diferentemente se entrelaçam.

Na etimologia da palavra método, voltamos à Grécia antiga e a estes

dois radicais que se conjugam com uma certa direção: meta, com o sentido de

movimento para além, mudança e hódos significando caminho. Na raiz

etimológica a palavra tem, portanto, este sentido de percurso com movimento

para além. A estes sentidos vão se acrescentando outros ao longo da história

das ideias no ocidente e, em especial, será Hegel que proporá um significado

particular para este “além” embutido na palavra. Trata-se da ideia de Absoluto,

enquanto “movimento próprio do conceito”. Segundo o filósofo romântico, o

método realiza a “atividade universal absoluta” que estabelece o percurso de

toda a realização da realidade. Seguindo esta tradição, o método torna-se,

portanto, um encaminhamento para a verdade ou um percurso em que se deve

garantir a adequação do caminho com um fim a ser alcançado. A verdade


comparece como o sentido do para além que todo caminho deve finalmente

alcançar. Com este sentido, méta-hodos é um caminho submetido a uma meta,

definição que, na experiência concreta dos encontros, se subverte. A subversão

que constatamos nos caminhos percorridos pela arte, por exemplo, é a que nos

obriga a pensar o avesso deste sentido tradicional de método, de tal forma a

considerar doravante uma meta que se constrói no próprio caminhar. Assim,

sem um a priori que confere ao mais além o valor de fim a ser alcançado – o

que pensamos na aula anterior como o porvir da revolução que contrasta com

o devir molecular –, o caminho torna-se, então, um ato de produção de si na

ação gerúndica do caminhando.

Eis que a intuição estético-clínica de Lygia Clark vem ao nosso auxílio.

No ano de 1964, ela propõe a obra Caminhando, que atribui “importância

absoluta ao ato imanente realizado pelo participante”. Nessa obra, Lygia

subverte radicalmente o sistema das artes ao construir uma maquínica

expressiva na qual o suporte material já não é quem garante ou confere o valor

estético. Desloca-se a obra do objeto ao ato, de tal maneira que se cria uma

“ligação com o mundo coletivo. Tratava-se de criar um espaço – tempo novo,

concreto – não apenas para mim, mas para os outros” (Lygia Clark,

MEC/FUNARTE, 1980).

Sigamos o método proposto por Lygia Clark. “Faça você mesmo um

Caminhando: Pegue uma dessas tiras de papel que envolve um livro, corte-a

em sua largura, torça e cole-a de maneira que obtenha uma fita de Moebius.

Em seguida tome uma tesoura, crave uma ponta na superfície e corte

continuamente no sentido do comprimento. Preste atenção para não cair no

corte já feito, o que separaria a faixa em dois pedaços. Quando vc tiver dado a
volta na fita de Moebius escolha, entre cortar à direita e cortar à esquerda do

corte já feito. Esta noção de escolha é decisiva. O único sentido desta

experiência reside no ato de fazê-lo. A obra é seu ato. À medida que se corta

na faixa ela se afina e se desdobra em entrelaçamentos. No fim, o caminho é

tão estreito que não se pode mais abri-lo. É o fim do atalho.” (p.26).

Não há dúvida de que estamos aqui diante de um método rigoroso, mas

que comporta uma subversão, que suporta uma e várias subversões: 1) a meta

não é prévia ao caminhar. Ao contrário, é no caminhar que a meta vai se

construindo até o ponto que o fim comparece menos como causa final e mais

como “fim do atalho”, esgotamento do percurso por sua completa realização; 2)

em sendo um método de orientação do ato de realização e não de um modo de

representação, cópia ou adequação a uma verdade, a um ideal ou modelo, o

que resulta é uma experiência expressiva que só tem como suporte o

experimentar ele mesmo. Neste sentido, a expressão da obra que segue tal

método não se concentra em nenhum objeto, mas só se faz por uma forma de

contágio entre os corpos que experimentam este método. Portanto, a obra

Caminhando não presente em nenhum suporte definitivo só se faz num

transbordamento pelo coletivo, de tal maneira que Lygia pode dizer “pela

primeira vez descobri uma nova realidade não em mim, mas no mundo.

Reencontrei um caminhando, um itinerário interior fora de mim... eu percebo a

totalidade do mundo como um ritmo único, global, que se estende de Mozart

aos gestos de futebol da praia... agora não estou mais só. Sou aspirada pelos

outros”. (Do Ato, 1965, em Lygia Clark, FUNARTE 1980); 3) subverte-se

também por este método a separação entre eu e outro, entre sujeito e objeto.

Quando Lygia propõe o Caminhando, se sente aspirada pelos outros, já que a


permanência de sua obra como ato e não como objeto só se dá na medida em

que o método é diferenciadamente repetido, repetido pelos outros. Daí a

consigna: “Faça você mesmo um Caminhando”. Por este mesmo gesto que

inaugura a obra, sujeito e objeto, artista e fita de papel se “aspiram” um no

outro; 4) por fim, no ato de se fazer a obra se subverte a separação entre

espaço e tempo, já que a espacialidade da obra se confunde a cada instante

com o momento do processo de um “Caminhando”. A obra é uma realidade

espaço-temporal.

Com o neoconcretismo de Lygia Clark e de Hélio Oiticica, que foi um

neomodernismo brasileiro, entendemos que o que resta é o método. O que foi

feito está sempre à mercê do instituído, dos museus da história, e, portanto,

passível de ser desfeito, frágil como é tudo que é concreto, na passagem de

um momento a outro da história. Mas o “o que foi feito” (o know what) coexiste

com o seu “como foi feito” (o know how). A questão do “como”, do “saber fazer”

responde à questão do que resta quando evadimos das instituições que

tendem a sufocar.

A linha de evasão faz o delineamento do ato estético-político ao

privilegiar o “como” no circuito conceito-ação-afeto. O que é dito, o que é feito e

o que é sentido deve ser considerado na sua relação ao modo como se dá o

circuito que entrelaça nossa forma de pensar, agir e sentir. Questão de método

que no neoconcretismo carioca impunha um reposicionamento não só estético

como também afetivo e político da obra de arte.

Lygia Clark realizou este movimento radical neoconcreto fazendo da

evasão uma forma de dissolvência paradoxal, já que dissolução criadora,

evasão invasiva de outras paisagens. Diz ela em “Pensamento Mudo” (Arte


Brasileira Contemporânea: Lygia Clark. MEC/FUNART, 1980): “Me sinto sem

categoria, onde meu lugar no mundo? Tomo horror a ser catalisadora de

minhas proposições. Quero que as pessoas as vivam e introjetem o seu próprio

mito independente de mim. Sonho: me vi nua, enorme. Eu era a paisagem, o

continente, o mundo”. Lygia não quer ser centro de sua obra, propondo sua

dissolvência na paisagem pela via do ato antropofágico de quem “consome”

seu trabalho. Esta alteração da atitude de Lygia terá consequências decisivas

na sua relação com o campo das artes. É no modo de fazer, isto é, nesta

aposta metodológica radical que o caminhando da artista definiu um desvio de

efeitos inassimiláveis para o mercado das artes. Lygia se dissolvia como

autora, dando passagem para bichos, para objetos relacionais, para a

experimentação do outro, experimentação alterizante.

Qual é, então, a unidade de uma obra que aspira ser aspirada pelo

outro? O que unifica um movimento artístico ou um movimento de esquerda?

Se o plano político ou estético se faz nessa deriva em que sua meta não é

dada de antemão, se fazendo no percurso, o sentido desse plano se faz pelo

que nele é função de guia, como se diz de um guia de cego que não define

para onde ele vai, que não dá o sentido que é sempre a do cego, mas faz

realizar a direção já em curso às cegas, tateante como é sempre nossa ação

antes de podermos juntos, em comunidade, conhecê-la (pois o “saber-fazer” só

se transmuta em ”fazer-saber” pela ação da comunidade de experiência, como

Annie Tardits fez ver no texto “Communauté d’éxperience, communauté de

savoir” apresentado no I Estados Gerais da Psicanálise e publicado na revista

Essaim, no.1 Érès, 1998, ao retomar o percurso da Escola Freudiana de Paris,

trazendo a questão da relação entre uma experiência interior, a sua


comunicação ou compartilhamento em uma comunidade e o saber aí

implicado). No lugar da unidade programática do movimento, no lugar da

identidade de suas metas, no lugar de um universal do belo, a experiência

multiplicadora do de-lovely sob a qual uma coisa bela não é.

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