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Fotografia e Cinema
Profa. Dra. Margarida Medeiros
20 de Junho de 2016
Os filmes de família no “cinema de cavação”
Mariana Costa
Resumo: Este trabalho irá abordar a contaminação recíproca entre a fotografia e o cinema nos
filmes de família pertencentes ao chamado “cinema de cavação”, denominação atribuida aos
curtas metragens feitos por encomenda no Brasil durante às décadas de 1920, 1930 e 1940. Para
atingir tal objetivo será realizada a análise do filme "A industria assucareira atravéz da Uzina
Estrelliana" pela companhia produtora Lux filmes em 1930 na cidade de Gameleira PE.
Palavraschave:
Filmes de família; Arquivo; Memória; Cinema de cavação;
Introdução
O termo “Cinema de cavação” foi criado durante a década de 1920 para designar às
atividades que circundavam a feitura de filmes por encomenda. Os cavadores eram os
cinegrafistas e cineastas que faziam curtas sobre grandes fazendeiros, capitães da indústria,
políticos bem sucedidos (ou seja, membros das famílias da aristocracia em geral), além de
divulgar empresas, obras do governo e campanhas políticas. Nesse espaço menosprezado de
sobrevivência no cinema, os fotógrafos eram chamados de “operadores”, os diretores de
“cinegrafistas” e os documentários de “ filmes tirados do natural”. É importante destacar que
eram os termos correntes da época e não havia nenhum sentido negativo ou pejorativo no seu
emprego. Todavia, com o desenvolvimento de uma crítica cinematográfica construída
paralelamente à formulação de um projeto cinematográfico para o país, essas palavras
adquiriram significados pejorativos, como ressalta Fernão Pessoa Ramos, em
Enciclopédia do
cinema brasileiro
.
O momento de desenvolvimento e riqueza vivido durante o ciclo do café e da caná de
açúcar permitiu a utilização de um dos mais novos veículos de comunicação – o cinema – para
registro dos feitos da classe dominante. Assim, entrelaçavamse os interesses desta classe com o
de gente que procurava ganhar dinheiro com cinema, fazendo filmes ditos de “cavação”. Na
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década de 40 são freqüentes os filmes feitos pelo interior do país e propiciando o
desenvolvimento de um tipo de produção que permeou a vida da maioria dos cineastas. Este
gênero de filme era uma maneira utilizada por alguns cineastas para a realização de suas
experiências mais artísticas: ganhavam dinheiro com filmes de encomenda, utilizando na feitura
de filmes de ficção (chamados de “filmes de enredo” ou “filmes posados”).
De acordo com Hernani Heffner, uma das maiores autoridades em preservação
audiovisual no Brasil, aproximadamente noventa por cento dessa produção já se perdeu
definitivamente seja pela degradação avançada que já não permite a restauração do material,
seja pela inexistência dos originais destruidos pela autocombustão da película de nitrato.
Todavia, dentre as produções que sobreviveram às condições de adversidade existem um
preciosos registros imagético de familias que desejaram ser “eternizadas” através do dispositivo
cinematográfico. De fato, o cinema de cavação não se ocupava exclusivamente dos filmes de
familia, porém, ao atender às exigencias dos poderosos clientes, acabava por suprir essa demanda
da elite aristocrática brasileira.
Dentro desse cenário, é realizado pela LuxFilm, em 1930, na cidade de Gameleira PE,
o filme “A industria assucareira atravéz da uzina estrelliana” com o intuito de exaltar a industria
nacional em desenvolvimento. Entretanto, o proprietário da Uzina Estrelliana, o Coronel João
Wanderley de Siqueira ordena que nessa película também seja feito um registro de sua família e
amigos. Assim, entre os planos que buscavam promover sua fazenda e construir um ideal
imaginário de uma nação forte, é possível observar as determinadas relações familiares e, mais
do que isso, as relações que se pretendiam forjar.
O objetivo desse artigo é investigar este filme, assim como discutir os filmes familiares e
importância que eles possuem na formação um imaginário ainda pouco explorado em termos
teóricos. Além disso, pretende investigar as relações entre a fotografia e o cinema dentro desse
contexto de produção. Nesse trabalho serão utilizadas as ideias defendidas por autores que se
dedicaram nos últimos anos à pesquisa sobre filmes domésticos, como JeanPierre Esquenazi e
Roger Odin, e que ressaltam a pouca atenção recebida pelo tema diante da renovação, ainda em
curso, nos estudos cinematográficos.
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Os filmes de familia nos estudos cinematográficos
“Os ‘Álbuns de Família’ que eram clássicos e pesadões em cima dos
panos de crochê feitos pela Nonoca quando estava no colégio, das mesinhas
delicadas das salas de visitas, ao lado daqueles grandes caracóis que as
crianças punham no ouvido para ouvir as ondas do mar...passaram a ser cinematográficos.”
(Cinearte, “O desenvolvimento do Cinema de amadores do nosso Paiz”, v.3, n.144, 1928, p.17)
Funcionando como um álbum de família em movimento, a intenção de muitos desses
registros cinematográficos era a perpetuação da memória. O efeito de autenticidade e a
capacidade de repor presenças em outro tempo e espaço devem ser considerados quando
analisamos ou tentamos definir o filme de família: o álbum e o filme de família são os
depositários potentes da memória familiar e da recordação de histórias de vida. Além disso,
mesmo que a dimensão emocional e onírica da imagem nos escape, a partir do momento que
esses objetos chegam a uma instituição pública existe a transferência de uma memória familiar
para uma memória coletiva.
Nesse sentido, Kupyer(1995, p.13) afirma: “le film de famille acquiert un tout autre
statut: il tombe dans le domaine public e devient alors un document à caractére spécifique, un
témoignage sur un certain aspect du quotidien d’une époque. D’objet de famille, il devient
fragment de la memóire collective. Il témoigne maintenant de ce qu’étaient ces autres temps, ces
autres moeurs, ces autres vies”.
No artigo “L’effet ‘film de famille’”, JeanPierre Esquenazi nos questiona: afinal, o que
define um filme de família? O autor inicia uma definição elencando três eixos possíveis: a
condição de produção (filmes realizados no círculo familiar), o seu conteúdo (filmes que
mostram eventos de família) e a sua estética (filmes mal feitos e precários tecnicamente). Para o
autor, nenhum desses recortes responde afirmativamente ao que é o filme de família (ou filme
doméstico) porque sempre existem casos que contrariam uma suposta regra.
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Todas essas questões pairam sobre muitos filmes do cinema de cavação e um recorte
temático ou estético mostrase é insuficiente. Se levarmos em conta o tipo de circulação e o
conjunto de expectativas envolvidas nos filmes de família, fica evidente a transformação dos
“ideais” e efeitos envolvidos na sua produção através do tempo, a mudança nas relações
familiares e a sua representação. O contexto de produção dessas imagens nunca é o mesmo e
uma investigação sobre a mobilização que articulou a filmagem é fundamental.
De acordo com Foster(2010, p.31), uma das diferenças mais evidentes é quando um filme
é produzido por um cinegrafista contratado. Esse fato é relevante porque indica outras relações
entre o retratante e o retratado e uma circulação posterior que almeja “efeitos” diferentes. Uma
particularidade dos filmes de família amadores é que eles trazem, por exemplo, uma relação
muito próxima da câmera com os retratados e são produzidos para consumo familiar. São
freqüentes as brincadeiras, registros que muitas vezes acompanham o crescimento das crianças,
os momentos de férias, o dia na praia. Também é comum que as imagens se restrinjam ao espaço
doméstico, não somente à casa, mas à esfera privada, desvinculada do trabalho. Por outro lado, o
filme de família profissional, envolve outra dinâmica. Contratados, os filmes que cobrem eventos
e cerimônias familiares trazem como característica mais marcante o distanciamento do
profissional ou até mesmo uma intenção de distanciamento para que se pareça mais profissional.
Para o mesmo autor, nas imagens feitas por profissionais, a família não é mais somente a
nuclear. Existe certo status que as imagens pretendem garantir acompanhando o próprio caráter
da cerimônia e de demonstração pública dos méritos individuais ou da família. É o caso de
filmagens de formaturas, casamentos, batizados. Esses filmes se situam na esfera pública mais do
que na esfera privada e, principalmente nos casos de filmes do primeiro período do cinema
brasileiro, compunham sessões públicas de projeção nos cinemas.
Uma outra dimensão da análise do filme doméstico é feita por, Roger Odin, em
Le film de
famille: usage privè, usage public
, sobre o papel do mesmo na manutenção de uma integridade
da história familiar. Para Odin, o efeito de autenticidade foi um dos primeiros catalisadores para
o início do trabalho com os filmes domésticos e ele será sempre considerado como um eixo
primordial de mobilização e interesse. Questões sobre o seu efeito de autenticidade causado no
receptor próximo (a família) ou no distante (o pesquisador) ressaltarão outro tipo de imaginário
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social, aquele que busca no filme de família a imagem espontânea, engendrada fora da
representação e por isso mais verdadeira.
No artigo “The Home Movie and Space of Communication”, o Odin sugere que o espaço
do filme familiar tem sido construido frequentemente como uma família na qual restrições são
colocadas especificamente por uma estrutura patriarcal sobre a unidade familiar. Assim, o filme
de família é frequentemente gerido pelo pai que preside sobre aspectos da vida familiar e
geralmente é responsável pela reconstrução da história da família e sua mitologização. O autor
propõe que esta era a leitura comum de filmes familiares produzido quando a família patriarcal
era ainda um elemento estruturante na sociedade burguesa. O autor afirma: “within this structure,
the father has a particular position; it is he who directs the formation of familial memory; it is he
who oversees the building of the cemetery grave; he who orders the painted family portraits; who
takes the photographs; and, obviously, it is he who shoots the films” (Odin, 2014, p 16). O
pesquisador ainda complementa: “On this level, it is the Family (the family as a structure) that is
the actual Enunciator of the work of memory: concerned with its preservation, the family
institution ensures that its harmony will be disturbed by nothing. The paternal censorship also
works as selfcensorship: in the home movie, there are things that should not be shown.” (Odin,
2014, p 16).
A partir desse breve levantamento de ideias de obras de referência sobre essa temática já
possível realizar algumas pontuações sobre o curta metragem que é o objeto de estudo do
presente trabalho.
“A industria assucareira atravez da Uzina Estrelliana”: um filme de família?
Dentro do contexto de produção do chamado cinema de cavação a visão dominante era a
da imagem da civilização moderna correspondente à da raça branca de descendência europeia,
associada ao progresso e à urbanidade. A associação entre a modernidade e a imagem, seja da
fotografia, do cinema ou do postal, acontece, principalmente, porque uma única imagem contém
em si um inventário de informações acerca de determinado momento: o espaço urbano, a
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arquitetura, as roupas, as poses e as aparências elaboradas dos personagens. Nesse sentido, esses
dispositivos de geração de imagens, enquanto produtos de seu tempo, encarnam, simbólica e
tecnicamente, as possibilidades cognitivas afetivas da modernidade. Além disso, “quanto mais
contato a pessoa tem com a cultura urbana, provavelmente ela tenderá mais a aceitar os valores
modernos. De modo similar, o status sócioeconômico está diretamente associado aos padrões de
modernidade” (Melo, 1976, p. 107). Assim, a partir da República (1889), a elite brasileira
procura ter contado com novos aparatos tecnológicos em busca da construção imagética de si
mesma. O filme que será estudado no presente trabalho apresenta, para os dias de hoje, aspectos
que transpassam a mera curiosidade de uma época. Iremos analisar inúmeras questões que dele
emergem e que o transformam em um rico objeto de estudo tanto para a historiografia do cinema
brasileiro quanto para os estudos relacionados aos filmes de família.
O curtametragem “A industria assucareira atravéz da Uzina Estrelliana” mostra a
grandiosa usina de cana de açúcar localizada no município de Gameleira, próximo a Ribeirão,
em Pernambuco, e que existe ainda hoje. O filme, produzido pela desconhecida Luz Film,
detalha o latifúndio nordestino, com 112 quilômetros quadrados, entroncamento ferroviário
próprio e produção anual de cem mil toneladas de açúcar. O documentário apresenta a vida na
fazenda: a família na varanda, o sacerdote que benze as máquinas da usina no primeiro dia da
moagem da cana, a colônia dos operários, a capela, o comércio local e a barragem. Tratase de
um dos poucos registros visuais conhecidos de um real usineiro da República Velha.
Embora este curta metragem tenha, a priori, a finalidade institucional de promover a
industria açucareira, carrega a particularidade de dedicar alguns minutos a registrar a familia do
proprietário da usina, o coronel João Wanderley de Siqueira.
Após os intertítulos iniciais que apresentam a produção, vemos uma panorâmica da usina
em que é possivel notar a fumaça saindo de uma grande chaminé. Em seguida, é exibido um
plano geral em que percebemos homens trabalhando em um dos prédios da propriedade e,
posteriormente, temos outra panorâmica, agora registrando a residência do coronel. Seguir
mostrase um intertítulo que anuncía: “
Entre os parentes e convidados em poses especiaes para
a LuxFilm”
. Rapidamente surgem os convidados posando para a camera, encostados no beiral
da varanda. O coronel João Wanderley de Siqueira, Dom Severino Vieira de Mello e dois amigos
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da familia. No mesmo plano, as crianças brincam atrás dos homens e, rapidamente, o filho do
coronel, Antonio Wanderley de Siqueira aparece segurando um de seus filhos para se juntar ao
grupo de composto exclusivamente por homens que posam para a filmagem.
Um novo intertítulo explicamnos sobre as cerimônias da fazenda: “
No dia da
“BOTADA” que é sempre festejado tradicionalmente com várias solemnidades, e benção dos
machinismos, reunemse na confortável residencia do Cel. João Wanderley de Siqueira os seus
parentes e amigos
”. O grupo de homens desce pelas escadas da residência, liderado por um
jovem rapaz trajado formalmente. A seguir, descem a esposa do Cel. João Wanderley com uma
criança no colo e a esposa do filho do coronel, igualmente segurando um bebê e acompanhada
por uma criança do sexo feminino.
Os planos a seguir são de especial interesse para essa pesquisa porque dizem muito sobre
a representação familiar que se pretendia construir com essa produção cinematográfica de cunho
familiar/propagandista. O Coronel João Wanderley posa, como se fosse para uma fotografia,
com um de seus netos no colo (Figura 1). O mesmo limitase a poucos e contídos movimentos
que demonstram afeto com a criança e, rapidamente, olha de forma direta para a filmadora. Em
segundo plano, bastante desfocada, vimos uma mulher provavelmente a esposa do coronel
que observa o gesto do homem com os braços cruzados.
Nesse momento, já é possivel notar que essa produção mostrarnos uma estrutura familiar
fortemente centrada na figura pai e que procura excluir e/ou subordinar ao núcleo familiar todas
mulheres pertencentes à familia. Ainda é possivel afirmar que esta caracteristica pontuada sobre
a representação da mulher neste filme ocorre tanto a nível de individuo quanto a nível de função
social. Mais exemplos que ilustram essa situação serão observados a diante.
Figura 1 O Coronel João Wanderley de Siqueira
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Em seguida ao coronel, as visitas são anunciadas na tela: “Cel. João Felippe de Souza
Leão e sua dilecta sobrinha” e “Doutor. Ismar Gomes de Amorim e sua filhinha” (Figura 2 e
Figura 3). Novamente, os homens da família surgem carregando “suas crianças”. Vale destacar
nesse momento que todas as mulheres que são registradas nessa a película, assim como todas as
crianças do sexo feminino, não tem seus nomes revelados.
Figura 2 Informação anunciada no intertútulo: “Cel. João Felippe de Souza Leão e sua dilecta sobrinha”.
Figura 3 Informação anunciada no intertútulo: “Doutor. Ismar Gomes de Amorim e sua filhinha”.
Sobre a contaminação entre o cinema e a fotografia no início do século XX, é importante
observar que, nesse contexto de produção, a todo momento as pessoas registradas pela camera
estabelecem com a mesma uma relação muito semelhante a que se tinha com o dispositivo
fotográfico. Os pesquisadores Lígia Diogo e Álvaro Furloni (2009), no artigo
Cadê o passarinho?
A ameaça de extinção da pose na imagem de família”
, trilham um breve caminho entre as poses
encenadas pelo homem a partir do momento em que este começa a ser retratado fielmente pela
fotografia e cinematografia. Eles dividem os tipos de poses em quatro categorias. Na “pose
estátua”, o personagem se mantém fixo (com ou sem ajuda de acessórios), aguardando o
momento do click da câmera. Ele se encontra sozinho ou acompanhado de outros membros da
família e se porta em poses padronizadas, previamente pensadas, distintas. Os modelos estão
sempre sérios e não demonstram emoção ou sentimentos. Aqui, nossos personagens parecem a
todo momento ter uma preocupação com a qualidade do registo que será feito dos mesmos e,
assim, portamse de maneira exemplar.
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De acordo com Mauad(2000, p. 152), é importante ressaltar que, desde o final do século
XIX, a fotografia instantânea já é uma possibilidade. Ao longo dos primeiros anos do século XX,
a fotografia democratizase, devido ao barateamento e a compactação das máquinas fotográficas.
Tal desenvolvimento tecnológico, inscreve a dimensão instantânea no ato fotográfico,
habilitando o registro do momento. Nesta mudança na pragmática fotográfica, a emoção
espontânea passa a ser valorizada pela idéia do flagrante. A pose, apesar de toda a agilização da
fotografia, permanece como elemento constitutivo da hierarquia de sentido na representação
fotográfica. Fotos de distinção, preparadas para servirem de emblema social, só poderiam ser
posadas. Nessa produção cinematográfica, a pose é utilizada tal como no dispositivo fotográfico.
No plano seguir, a familia e os amigos próximos posam novamente imóveis para a
camera (Figura 4). O intertítulo anuncia: “
Grupo, vendose alem do Cel. João Wanderley de
Siqueira, sua Exma. esposa, Sr. Antonio Wanderley de Siqueira, esposa e filhinhos, Cel. João
Felippe de Sousa Leão e Sr. José Dias
”. As crianças esboçam alguns movimentos, como
podemos prever. Entre os adultos, somente a esposa do filho do coronel me mexe a fim de
orientar suas crianças para uma melhor posição durante a gravação. O coronel permanece com os
braços sobre os ombros de sua esposa, gesto repetido por seu filho, Sr. Antonio Wanderley de
Siqueira. É importante destacar que uma das cadeiras permanece desocupada. .
Figura 4 Informação anunciada no intertítulo: “Grupo, vendose alem do Cel. João Wanderley de Siqueira, sua
Exma. esposa, Sr. Antonio Wanderley de Siqueira, esposa e filhinhos, Cel. João Felippe de Sousa Leão e Sr. José
Dias”.
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Observando esse fotograma que muito se assemelha a uma fotografia e tendo em vista o
arranjos estabelecidos entre as pessoas dessa estrutura familiar, fica evidente que a única pessoa
que poderia ocupar aquele lugar vazio seria uma mulher. Em todo o filme, porém, somente são
registradas essas duas figuras femininas adultas. Caso houvesse mais alguma, esta certamente
seria colocada na cadeira vazia, em uma posicão hierarquicamente inferior e sendo entendida
como uma posse.
A seguir, o Sr. Antonio Wanderley de Siqueira, filho do coronel, pessoa na qual está
confiada a gerencia da usina informação transmitida pelo intertítulo é registrado em um
momento de sua vida privada. Curiosamente, o mesmo é filmado alimentando um de seus filhos
com uma mamadeira (Figura 5). Durante esse gesto afetivo, a criança permanece de pé ao passo
que seu pai executa essa ação sentado e sorrindo para a camera. Esta ação é motivo de
estranhamento tendo em vista que cuidar dos filhos não é uma função social de um homem
pertencente a esse contexto histórico e social.
Posteriormente, nosso coronel reaparece e agora não a imagem, mas sim o texto quer nos
indicar que o mesmo se encontra em um ação de intimidade familar. “João e Antonio, netinhos
queridos nos braços de seu Vovô Cel. João Wanderley de Siqueira” (Figura 6). Destacase o uso
do diminutivo “netinhos”, do adjetivo “queridos” e substantivo “vovô” na tentativa de ampliar a
representação da relação afetiva entre os membros da família. Relembrase que, dessa vez, as
crianças do sexo masculino tem seus nomes revelados.
Figura 5 Informação anunciada no intertítulo: “Sr. Antonio Wanderley de Siqueira, filho do Cel. João Wanderley
de Siqueira, a quem está confiada a gerencia da Uzina”.
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Figura 6 Informação anunciada no intertítulo: “João e Antonio, netinhos queridos nos braços de seu Vovô Cel.
João Wanderley de Siqueira.”
As quatro cenas seguintes não registram cenas da vida familiar do Coronel, mas sim
passagens relacionadas ao trabalho na usina. Vemos: o coronel andando à cavalo e revistando os
outros animais de sua posse; dois grupos de operários capturados em plano geral e em poses
diferentes o coronel na volta do campo novamente andando a cavalo em um plano geral e,
posteriormente, em um plano fixo, posando em sua montaria; e, finalmente, um plano geral do
comboio que atravessa as terras da fazenda.
Com o fim dessa sequencia temos a ultima cena da vida intima da familia Siqueira:
deitado em uma rede, o coronel brinca com o seu netinho João enquanto uma das mulheres da
família (não identificada) segura a criança no colo. Essa imagem faznos lembrar da
representação de uma autoridade sendo abanada e servida por seus empregados, alegoria bastante
enraizada no imaginário popular. Tal interação entre os membros da familia é, no mínino,
curiosa, visto que percebese, claramente, que aquilo tratase apenas de uma representação para a
camera. Sendo assim, ao tentar forjar uma intimidade entre as gerações, o registro acaba por se
revelar como uma nítida encenação, uma farsa. Ressaltase, entretanto, que a preocupação com
as representações sociais adequadas são mantidas. O papel da mulher na familia permanece o
mesmo: figura subalterna e, para as gerações posteriores, desconhecida enquanto indivíduo.
Figura 6 Informação anunciada no intertítulo: “Cel. João Wanderley de Siqueira em sua rede brincando com o seu
netinho João.”
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Com esta passagem é finalizada a primeira parte do filme. Já a segunda metade da
produção não possui mais cenas relacionadas à vida intima da familia e dedicase
exclusivamente à exibição da industria de açúcar na usina Estrelliana e, sendo assim, não será
objeto de investigação dessa pesquisa.
Cabe ainda ressaltar que essa produção cinematografia não busca construir uma narrativa
através da montagem. Além disso, o que vemos é praticamente uma sequencia de planos que
poderiam ser fotografias, visto que as personagens tem pouca ou nenhuma mobilidade e que a
camera permanece sempre fixa em uma composição imagética previamente definida. Apenas
algumas tomadas deste curta metragem parecem interessadas na produção de ilusão do
movimento, como é o caso das sequencias que captam o coronel andando a cavalo na volta do
campo e o mesmo no pateo de sua residência revistando os animais. Esse filme é, portanto,
como um album de fotografias familiares.
Considerações finais
Embora tenha sido realizado com intuito inicial de promover a industria da
canadeaçucar, o filme apresenta cenas da vida familiar do Coronel. Tal produção foi exibida
em algumas sessões públicas no período de sua produção, fato que coloca em questão os limites
do espaço privado e do espaço público.
Desde o ínicio do século XX, a imagem adquiriu grande importância no contexto social.
Através da simplificação da técnica, a fotografia tornouse uma prática comum e passou a
cumprir funções sociais específicas, como celebrar e eternizar determinados acontecimentos do
relevo social. Como vimos, a prática do filme famíliar é carregada com o mesmo sentido. O
registro de família que citamos ao longo deste trabalho, assim como as algumas obras
remanecentes desse período, constituem um conjunto de imagens com algumas características
comuns. Para esse conjunto, a produção, a exibição e a forma de arquivar essas imagens, assim
como a forma de as pessoas se relacionarem com as imagens de si e de seus familiares, definiam
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uma prática social inserida num determinado contexto de significância. A família concentrava
grande importância enquanto instituição e representava um espaço demarcado e separado do
espaço público, mas que deveria garantir a manutenção dos princípios sociais vigentes na época.
O pai centralizava todas as decisões relacionadas ao núcleo familiar orientando, inclusive, a
própria representação dos gêneros em fotografias e filmes. O resultado do enfraquecimento dos
constrangimentos institucionais no seio da família é que novas produções intergeracionais não se
coíbem de revelar aspectos da vida familiar que até então permaneciam escondidas.
Em suma, o filme “A industria assucareira atravez da Uzina Estrelliana” tem o intuito
representar a potente industria assucareira com um interesse comercial futuro, porém, como o
passar dos anos, essas imagens perderam espaço para as cenas familiares que foram registradas.
O cinema e a fotografia são herdeiros de linguagens artisticas ancestrais e, assim como seus
predecessores, também receberam orientações (até mesmo institucionais) para que
representassem a sociedade da forma “correta”, pois já havia o entendimento que as obras seriam
incluidas na produção de memória do perído e contexto histórico em que foram realizadas.
Todavia, muitas vezes a tentativa de se forjar uma representação ideal, seja da família ou das
instituições, acabava por revelar exatamente o oposto do que se pretendia.
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