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Os filmes de família no “cinema de cavação”

Mariana Costa 47407

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Fotografia e Cinema
Profa. Dra. Margarida Medeiros

20 de Junho de 2016
Os filmes de família no “cinema de cavação” 
Mariana Costa 
 
Resumo:  Este  trabalho  irá  abordar  a  contaminação  recíproca  entre  a  fotografia  e  o  cinema  nos 
filmes  de  família  pertencentes  ao  chamado  “cinema   de  cavação”,  denominação   atribuida  aos 
curtas  metragens  feitos   por  encomenda  no  Brasil  durante  às  décadas de 1920, 1930 e 1940. Para 
atingir  tal  objetivo  será  realizada  a  análise  do  filme  "A  industria  assucareira  atravéz  da  Uzina 
Estrelliana" pela companhia produtora Lux filmes em 1930 na cidade de Gameleira ­ PE. 
 
Palavras­chave: ​
Filmes de família; Arquivo; Memória; Cinema de cavação; 
 
Introdução 
 
O  termo  “Cinema  de  cavação”  foi  criado  durante  a  década  de  1920  para  designar  às 
atividades  que  circundavam  a  feitura  de  filmes  por  encomenda.  Os   cavadores  eram  os 
cinegrafistas  e  cineastas  que  faziam  curtas  sobre  grandes  fazendeiros,  capitães  da  indústria, 
políticos  bem  sucedidos  (ou  seja,  membros   das  famílias  da  aristocracia  em  geral),  além  de 
divulgar  empresas,  obras   do   governo  e  campanhas  políticas.  Nesse  espaço  menosprezado  de 
sobrevivência  no  cinema,  os  fotógrafos  eram  chamados  de  “operadores”,  os  diretores  de 
“cinegrafistas”  e  os  documentários  de  “  filmes  tirados  do  natural”.  É  importante  destacar  que 
eram  os  termos  correntes  da  época  e  não  havia  nenhum  sentido  negativo   ou   pejorativo  no  seu 
emprego.  Todavia,  com  o  desenvolvimento  de  uma  crítica  cinematográfica  construída 
paralelamente  à  formulação  de  um  projeto  cinematográfico  para  o  país,  essas  palavras 
adquiriram  significados   pejorativos,  como  ressalta  Fernão  Pessoa  Ramos,  em  ​
Enciclopédia  do 
cinema brasileiro​

O  momento  de  desenvolvimento  e   riqueza  vivido  durante  o  ciclo  do  café  e  da  caná  de 
açúcar  permitiu  a  utilização  de  um  dos  mais  novos  veículos  de  comunicação  –  o  cinema  –  para 
registro  dos  feitos  da  classe  dominante.  Assim,  entrelaçavam­se  os interesses desta classe com o 
de  gente  que  procurava  ganhar  dinheiro  com  cinema,  fazendo  filmes  ditos  de  “cavação”.  Na 


década  de   40   são  freqüentes  os  filmes  feitos  pelo  interior  do  país  e  propiciando  o 
desenvolvimento  de  um  tipo  de  produção  que  permeou  a  vida  da  maioria  dos  cineastas.  Este 
gênero  de  filme  era  uma  maneira  utilizada  por  alguns  cineastas  para  a  realização  de   suas 
experiências  mais  artísticas:  ganhavam  dinheiro  com  filmes  de  encomenda,  utilizando na feitura 
de filmes de ficção (chamados de “filmes de enredo” ou “filmes posados”). 
De  acordo  com  Hernani  Heffner,  uma  das  maiores  autoridades  em  preservação 
audiovisual  no  Brasil,  aproximadamente  noventa  por  cento  dessa  produção  já  se  perdeu 
definitivamente  ­  seja  pela  degradação  avançada  que  já  não  permite  a  restauração  do  material, 
seja  pela  inexistência  dos  originais  destruidos  pela  auto­combustão  da  película   de  nitrato. 
Todavia,  dentre  as  produções  que  sobreviveram  às  condições  de  adversidade  existem  um 
preciosos  registros  imagético  de  familias  que  desejaram  ser  “eternizadas”  através  do dispositivo 
cinematográfico.  De  fato,  o  cinema  de  cavação  não  se  ocupava  exclusivamente  dos  filmes  de 
familia, porém, ao atender às exigencias dos poderosos clientes, acabava por suprir essa demanda 
da elite aristocrática brasileira.  
Dentro  desse  cenário,  é  realizado  pela  Lux­Film,  em  1930,  na  cidade de Gameleira ­ PE, 
o  filme  “A  industria  assucareira  atravéz  da  uzina  estrelliana” com o intuito de exaltar a industria 
nacional  em  desenvolvimento.  Entretanto,  o  proprietário  da  Uzina  Estrelliana,  o  Coronel  João 
Wanderley  de  Siqueira  ordena  que  nessa  película  também  seja  feito um registro de sua família e 
amigos.  Assim,  entre  os  planos  que  buscavam  promover  sua  fazenda  e  construir  um  ideal 
imaginário  de  uma  nação  forte,  é  possível  observar  as  determinadas  relações  familiares  e,  mais 
do que isso,  as relações que se pretendiam forjar.  
O  objetivo  desse  artigo  é  investigar este filme, assim como discutir os filmes familiares e 
importância  que   eles  possuem  na  formação  um  imaginário  ainda  pouco  explorado  em  termos 
teóricos.  Além  disso,  pretende  investigar  as  relações  entre  a  fotografia  e  o  cinema  dentro desse 
contexto  de  produção.  Nesse  trabalho  serão  utilizadas  as  ideias  defendidas  por  autores  que  se 
dedicaram  nos  últimos  anos  à  pesquisa  sobre  filmes  domésticos,  como  Jean­Pierre  Esquenazi  e 
Roger  Odin,  e  que  ressaltam  a  pouca  atenção  recebida  pelo  tema  diante  da  renovação, ainda em 
curso, nos estudos cinematográficos. 
 


Os filmes de familia nos estudos cinematográficos 
 
 
“Os ‘Álbuns de Família’ que eram clássicos e pesadões em cima dos  
panos de crochê feitos pela Nonoca quando estava no colégio, das mesinhas  
delicadas das salas de visitas, ao lado daqueles grandes caracóis que as  
crianças punham no ouvido para ouvir as ondas do mar...passaram a ser cinematográficos.”  
(Cinearte, “O desenvolvimento do Cinema de amadores do nosso Paiz”, v.3, n.144, 1928, p.17) 
 

 
Funcionando  como  um  álbum  de  família  em  movimento,  a  intenção  de  muitos  desses 
registros  cinematográficos  era  a  perpetuação  da  memória.  O  efeito  de  autenticidade  e  a 
capacidade  de  repor  presenças  em  outro  tempo  e   espaço  devem  ser  considerados  quando 
analisamos  ou  tentamos  definir   o   filme  de  família:  o  álbum  e  o  filme  de  família  são  os 
depositários  potentes  da  memória  familiar  e  da  recordação  de  histórias  de  vida.  Além  disso, 
mesmo  que  a  dimensão  emocional  e  onírica  da  imagem  nos  escape,  a   partir  do  momento  que 
esses  objetos  chegam  a  uma   instituição  pública  existe  a  transferência  de  uma  memória  familiar 
para uma memória coletiva.  
Nesse  sentido,  Kupyer(1995,  p.13)  afirma:  “le  film  de  famille  acquiert   un   tout  autre 
statut:  il  tombe  dans  le  domaine  public  e  devient  alors  un  document  à  caractére  spécifique,  un 
témoignage  sur  un  certain  aspect  du  quotidien  d’une  époque.  D’objet  de  famille,  il  devient 
fragment  de  la  memóire  collective.  Il témoigne maintenant de ce qu’étaient ces autres temps, ces 
autres moeurs, ces autres vies”. 
No  artigo  “L’effet  ‘film  de  famille’”,  Jean­Pierre  Esquenazi  nos  questiona:  afinal,  o  que 
define  um  filme  de  família?  O  autor  inicia  uma  definição  elencando  três  eixos  possíveis:  a 
condição  de  produção  (filmes  realizados  no  círculo  familiar),  o  seu  conteúdo  (filmes  que 
mostram  eventos  de  família)  e  a  sua  estética  (filmes  mal feitos e precários tecnicamente). Para o 
autor,  nenhum  desses  recortes  responde  afirmativamente  ao  que  é  o  filme  de  família  (ou  filme 
doméstico) porque sempre existem casos que contrariam uma suposta regra.  


Todas  essas  questões  pairam   sobre  muitos  filmes  do  cinema  de  cavação  e  um  recorte 
temático  ou  estético  mostra­se  é  insuficiente.  Se  levarmos  em  conta  o  tipo  de  circulação  e  o 
conjunto  de  expectativas  envolvidas  nos  filmes  de  família,  fica  evidente  a  transformação  dos 
“ideais”  e  efeitos  envolvidos  na  sua  produção  através  do  tempo,  a  mudança  nas  relações 
familiares  e  a  sua   representação.  O  contexto  de  produção  dessas  imagens  nunca  é  o  mesmo  e 
uma investigação sobre a mobilização que articulou a filmagem é fundamental. 
De  acordo com Foster(2010, p.31), uma das diferenças mais evidentes é quando um filme 
é  produzido  por  um  cinegrafista  contratado.  Esse  fato  é  relevante  porque  indica  outras  relações 
entre  o  retratante  e  o  retratado  e  uma  circulação  posterior  que  almeja  “efeitos”  diferentes.  Uma 
particularidade  dos  filmes  de  família  amadores  é  que  eles  trazem,  por  exemplo,  uma  relação 
muito  próxima  da  câmera  com  os  retratados  e  são  produzidos  para  consumo  familiar.  São 
freqüentes  as  brincadeiras,  registros  que  muitas  vezes  acompanham  o  crescimento  das  crianças, 
os  momentos  de  férias, o dia na praia. Também é comum que as imagens se restrinjam ao espaço 
doméstico,  não  somente  à  casa, mas à esfera privada, desvinculada do trabalho. Por outro lado, o 
filme de família profissional, envolve outra dinâmica. Contratados, os filmes que cobrem  eventos 
e  cerimônias  familiares  trazem  como  característica  mais  marcante  o  distanciamento  do 
profissional ou até mesmo uma intenção de distanciamento para que se pareça mais profissional.  
Para  o  mesmo  autor,  nas  imagens  feitas por profissionais, a família não é mais somente a 
nuclear.  Existe  certo  status  que  as  imagens  pretendem  garantir   acompanhando  o  próprio  caráter 
da  cerimônia  e  de  demonstração  pública  dos  méritos  individuais  ou  da  família.  É  o  caso  de 
filmagens de formaturas,  casamentos, batizados. Esses filmes se situam na esfera  pública mais do 
que  na  esfera  privada  e,  principalmente  nos  casos  de  filmes  do  primeiro   período  do  cinema 
brasileiro, compunham sessões públicas de projeção nos cinemas.  
Uma outra dimensão da análise do filme doméstico é feita por, Roger Odin, em ​
Le film de 
famille:  usage  privè,  usage  public​
,  sobre  o  papel do mesmo  na manutenção de uma integridade 
da  história  familiar.  Para  Odin,  o  efeito  de  autenticidade  foi um dos primeiros catalisadores para 
o  início  do  trabalho  com  os  filmes  domésticos  e  ele  será  sempre  considerado  como  um  eixo 
primordial  de  mobilização  e  interesse.  Questões  sobre  o  seu  efeito  de  autenticidade  causado  no 
receptor  próximo  (a  família)  ou  no  distante  (o  pesquisador)  ressaltarão  outro  tipo  de  imaginário 


social,  aquele  que  busca  no  filme  de  família  a  imagem  espontânea,   engendrada  fora  da 
representação e por isso mais verdadeira. 
No  artigo  “The  Home  Movie  and Space of Communication”, o Odin sugere que o espaço 
do  filme  familiar  tem  sido  construido  frequentemente  como  uma  família  na  qual  restrições  são 
colocadas  especificamente  por  uma  estrutura  patriarcal  sobre  a  unidade  familiar.  Assim, o filme 
de  família  é   frequentemente  gerido  pelo  pai  que  preside  sobre  aspectos  da  vida  familiar  e 
geralmente  é  responsável  pela  reconstrução  da  história  da  família  e  sua  mitologização.  O  autor 
propõe  que  esta  era  a  leitura  comum  de  filmes  familiares  produzido  quando  a  família  patriarcal 
era  ainda um elemento estruturante na sociedade burguesa. O autor afirma: “within this structure, 
the  father  has  a  particular  position;  it is he who directs the formation of familial memory; it is  he 
who oversees the building of the cemetery grave; he who orders the painted family portraits; who 
takes  the  photographs;  and,  obviously,  it  is  he  who  shoots  the  films”  (Odin,  2014,  p  16).   O 
pesquisador  ainda  complementa:  “On  this  level, it is the Family (the family as a structure) that is 
the  actual  Enunciator  of  the  work  of  memory:  concerned  with  its  preservation,  the  family 
institution  ensures  that  its  harmony  will  be  disturbed  by  nothing.  The  paternal  censorship  also 
works  as  self­censorship:  in  the  home  movie,  there  are  things  that  should not be shown.” (Odin, 
2014, p 16). 
A  partir  desse  breve  levantamento  de  ideias  de  obras  de referência sobre essa temática já 
possível  realizar  algumas  pontuações  sobre  o  curta  metragem  que  é   o   objeto  de  estudo  do 
presente trabalho.  
 
 
“A industria assucareira atravez da Uzina Estrelliana”: um filme de família? 
 
Dentro  do  contexto  de  produção  do  chamado  cinema  de cavação a visão dominante era a 
da  imagem  da  civilização  moderna  correspondente  à  da  raça  branca  de  descendência  europeia, 
associada  ao  progresso  e  à  urbanidade.  A  associação  entre  a  modernidade  e  a  imagem,  seja  da 
fotografia,  do  cinema  ou  do  postal,  acontece,  principalmente, porque uma única imagem contém 
em  si  um  inventário  de  informações  acerca  de  determinado  momento:   o   espaço  urbano,  a 


arquitetura,  as  roupas,  as  poses  e  as aparências elaboradas  dos personagens. Nesse sentido, esses 
dispositivos  de  geração  de  imagens,  enquanto  produtos  de  seu  tempo,  encarnam,  simbólica  e 
tecnicamente,  as  possibilidades  cognitivas  afetivas  da  modernidade.  Além  disso,  “quanto  mais 
contato  a  pessoa  tem  com  a  cultura  urbana,  provavelmente   ela  tenderá  mais  a  aceitar  os  valores 
modernos.  De  modo similar, o status sócio­econômico está diretamente associado aos padrões de 
modernidade”  (Melo,  1976,  p.  107).  Assim,  a  partir  da  República  (1889),  a  elite  brasileira 
procura  ter  contado  com  novos  aparatos  tecnológicos  em  busca  da  construção  imagética  de  si 
mesma.  O  filme  que  será  estudado no presente trabalho apresenta,  para os dias de hoje, aspectos 
que  transpassam  a  mera  curiosidade  de  uma  época.  Iremos   analisar  inúmeras  questões  que  dele 
emergem  e  que  o transformam em um rico objeto de estudo tanto para a historiografia do cinema 
brasileiro quanto para os estudos relacionados aos filmes de família. 
O  curta­metragem  “A  industria  assucareira  atravéz  da  Uzina  Estrelliana”  mostra  a 
grandiosa  usina  de  cana  de  açúcar  localizada  no  município  de  Gameleira,  próximo  a  Ribeirão, 
em  Pernambuco,  e  que  existe  ainda  hoje.  O  filme,  produzido  pela  desconhecida  Luz  Film, 
detalha  o  latifúndio  nordestino,  com   112   quilômetros  quadrados,  entroncamento  ferroviário 
próprio  e  produção  anual  de  cem  mil  toneladas  de  açúcar.  O  documentário  apresenta  a  vida  na 
fazenda:  a  família  na  varanda,  o  sacerdote  que  benze  as  máquinas  da  usina  no  primeiro  dia  da 
moagem  da  cana,   a  colônia  dos  operários,  a  capela,  o  comércio  local  e  a  barragem.  Trata­se  de 
um dos poucos registros visuais conhecidos de um real usineiro da República Velha. 
Embora  este  curta   metragem  tenha,  a  priori,  a  finalidade  institucional  de  promover  a 
industria  açucareira,  carrega  a  particularidade  de  dedicar  alguns  minutos  a  registrar  a familia do 
proprietário da usina, o coronel João Wanderley de Siqueira.  
Após  os  intertítulos  iniciais  que  apresentam  a produção, vemos uma panorâmica da usina 
em  que  é  possivel  notar  a  fumaça  saindo  de  uma  grande  chaminé.  Em  seguida,  é  exibido  um 
plano  geral  em  que  percebemos  homens  trabalhando  em  um  dos  prédios  da  propriedade  e, 
posteriormente,  temos  outra  panorâmica,  agora  registrando  a  residência  do  coronel.  Seguir 
mostra­se  um  intertítulo  que  anuncía:  “​
Entre  os  parentes  e  convidados  em  poses especiaes  para 
a  Lux­Film”​
.  Rapidamente  surgem  os  convidados  posando  para  a  camera,  encostados  no  beiral 
da varanda. O coronel João Wanderley de Siqueira, Dom Severino Vieira de Mello e dois amigos 


da  familia.  No  mesmo  plano,  as  crianças  brincam  atrás  dos  homens  e,  rapidamente,  o  filho  do 
coronel,  Antonio  Wanderley  de  Siqueira  aparece  segurando  um  de  seus  filhos  para  se  juntar  ao 
grupo de composto exclusivamente por homens que posam para a filmagem.  
Um  novo  intertítulo  explicam­nos  sobre  as  cerimônias  da  fazenda:  “​
No  dia  da 
“BOTADA”  que  é  sempre  festejado  tradicionalmente  com  várias  solemnidades,  e  benção  dos 
machinismos,  reunem­se  na  confortável  residencia  do  Cel.  João  Wanderley  de  Siqueira  os  seus 
parentes  e  amigos​
”.  O  grupo  de   homens  desce  pelas  escadas  da  residência,   liderado  por  um 
jovem  rapaz  trajado  formalmente.  A  seguir,  descem  a  esposa  do  Cel.  João  Wanderley  com  uma 
criança  no  colo  e  a  esposa  do  filho  do  coronel,  igualmente  segurando  um  bebê  e  acompanhada 
por uma criança do sexo feminino.  
Os  planos  a  seguir  são  de especial interesse para essa pesquisa porque dizem  muito sobre 
a  representação  familiar  que  se  pretendia  construir  com essa produção cinematográfica de cunho 
familiar/propagandista.  O  Coronel  João  Wanderley  posa,  como  se  fosse  para  uma  fotografia, 
com  um  de  seus  netos  no  colo  (Figura  1).  O  mesmo  limita­se  a  poucos  e  contídos  movimentos 
que  demonstram  afeto  com  a  criança  e,  rapidamente,  olha  de  forma  direta  para  a  filmadora. Em 
segundo  plano,  bastante  desfocada,  vimos  uma  mulher  ­  provavelmente  a  esposa  do  coronel  ­ 
que observa o gesto do homem com os braços cruzados.  
Nesse  momento, já é possivel notar que essa produção mostrar­nos uma estrutura familiar  
fortemente  centrada  na  figura  pai  e  que  procura  excluir  e/ou  subordinar ao núcleo familiar todas 
mulheres  pertencentes  à  familia.  Ainda é possivel afirmar que esta caracteristica pontuada sobre 
a  representação  da  mulher  neste  filme  ocorre  tanto  a nível de individuo  quanto a nível de função 
social. Mais exemplos que ilustram essa situação serão observados a diante. 
 

 
Figura 1 ­ O Coronel João Wanderley de Siqueira 


Em  seguida  ao  coronel,  as   visitas  são  anunciadas  na  tela:  “Cel.  João  Felippe  de  Souza 
Leão  e  sua  dilecta  sobrinha”  e  “Doutor.  Ismar  Gomes  de  Amorim  e  sua  filhinha”  (Figura  2  e 
Figura  3).  Novamente,  os  homens  da  família  surgem  carregando  “suas  crianças”.  Vale  destacar 
nesse  momento  que  todas  as  mulheres  que  são  registradas  nessa  a película, assim como todas as 
crianças do sexo feminino, não tem seus nomes revelados.  
 

 
Figura 2 ­ Informação anunciada no intertútulo: “Cel. João Felippe de Souza Leão e sua dilecta sobrinha”. 
Figura 3 ­ Informação anunciada no intertútulo: “Doutor. Ismar Gomes de Amorim e sua filhinha”. 
 
Sobre  a  contaminação  entre  o  cinema  e a fotografia no início do século XX, é importante 
observar  que,  nesse  contexto  de  produção,  a  todo  momento  as  pessoas  registradas  pela  camera 
estabelecem  com  a  mesma  uma  relação  muito  semelhante  a  que  se  tinha  com  o  dispositivo 
fotográfico. Os pesquisadores Lígia Diogo e  Álvaro Furloni (2009), no artigo ​
Cadê o passarinho? 
A  ameaça   de  extinção  da  pose  na  imagem  de  família”​
,  trilham um breve caminho entre as poses 
encenadas  pelo  homem  a  partir  do  momento  em  que  este  começa  a  ser  retratado  fielmente  pela  
fotografia  e  cinematografia.  Eles  dividem  os  tipos  de  poses  em  quatro  categorias.  Na  “pose 
estátua”,  o  personagem  se  mantém  fixo  (com  ou  sem  ajuda  de  acessórios),  aguardando  o 
momento  do  click  da  câmera.  Ele  se  encontra  sozinho  ou  acompanhado  de  outros  membros  da 
família  e  se  porta  em  poses  padronizadas,  previamente  pensadas,  distintas.  Os  modelos  estão 
sempre  sérios  e  não  demonstram  emoção  ou  sentimentos.  Aqui,  nossos  personagens  parecem  a 
todo  momento  ter  uma  preocupação  com  a  qualidade  do  registo  que  será  feito  dos  mesmos  e, 
assim, portam­se de maneira exemplar.  


De  acordo  com Mauad(2000,  p.  152), é importante ressaltar que, desde o final do século 
XIX,  a fotografia instantânea já é uma possibilidade. Ao longo dos primeiros anos do século XX, 
a  fotografia  democratiza­se,  devido ao barateamento e a compactação das máquinas fotográficas. 
Tal  desenvolvimento  tecnológico,  inscreve  a  dimensão  instantânea  no  ato   fotográfico, 
habilitando  o  registro  do  momento.  Nesta  mudança  na  pragmática  fotográfica,  a  emoção 
espontânea  passa  a  ser  valorizada  pela  idéia  do  flagrante.  A  pose,  apesar de toda a agilização da 
fotografia,  permanece  como  elemento  constitutivo  da  hierarquia  de  sentido  na  representação 
fotográfica.  Fotos  de  distinção,  preparadas  para  servirem  de   emblema  social,  só  poderiam  ser 
posadas. Nessa produção cinematográfica, a pose é utilizada tal como no dispositivo fotográfico. 
No  plano  seguir,  a  familia  e  os  amigos  próximos  posam  novamente  imóveis  para  a 
camera  (Figura  4).  O  intertítulo  anuncia:  “​
Grupo,  vendo­se  alem  do  Cel.  João  Wanderley  de 
Siqueira,  sua  Exma.  esposa,  Sr.  Antonio  Wanderley  de  Siqueira,  esposa   e  filhinhos,  Cel.  João 
Felippe  de  Sousa  Leão  e  Sr.  José  Dias​
”.  As  crianças  esboçam  alguns  movimentos,  como 
podemos  prever.  Entre  os   adultos,  somente  a  esposa  do  filho  do  coronel  me  mexe  a  fim   de 
orientar  suas crianças para uma melhor posição durante a gravação. O coronel permanece com os 
braços  sobre  os  ombros  de  sua  esposa,  gesto   repetido  por  seu  filho,  Sr.  Antonio  Wanderley  de 
Siqueira. É importante destacar que uma das cadeiras permanece desocupada. .  
 

 
Figura  4  ­  Informação  anunciada  no  intertítulo:  “Grupo,  vendo­se  alem  do  Cel.  João  Wanderley  de  Siqueira, sua 
Exma.  esposa,  Sr.  Antonio  Wanderley de  Siqueira,  esposa  e  filhinhos,  Cel.  João  Felippe  de  Sousa  Leão  e  Sr.  José 
Dias”. 
 


Observando  esse  fotograma  que  muito  se  assemelha  a  uma  fotografia  e  tendo  em vista o 
arranjos  estabelecidos  entre  as  pessoas  dessa  estrutura  familiar,  fica  evidente  que a única pessoa 
que  poderia  ocupar  aquele  lugar  vazio  seria  uma  mulher.  Em  todo  o  filme,  porém,  somente  são 
registradas  essas  duas   figuras  femininas  adultas.  Caso  houvesse  mais  alguma,  esta  certamente 
seria  colocada  na  cadeira  vazia,  em  uma  posicão  hierarquicamente  inferior  e  sendo   entendida 
como uma posse.   
A  seguir,  o  Sr.  Antonio  Wanderley   de  Siqueira,  filho  do  coronel,  pessoa  na  qual  está 
confiada  a  gerencia  da  usina  ­  informação  transmitida  pelo  intertítulo  ­  é  registrado  em  um 
momento  de  sua  vida  privada.  Curiosamente,  o  mesmo  é  filmado alimentando um de seus filhos 
com  uma  mamadeira  (Figura  5).  Durante  esse  gesto  afetivo,  a criança permanece de pé ao passo 
que  seu  pai  executa  essa  ação  sentado  e  sorrindo  para  a  camera.  Esta  ação  é  motivo  de 
estranhamento  tendo  em  vista  que  cuidar  dos  filhos  não  é  uma  função  social  de  um   homem  
pertencente a esse contexto histórico e social.  
Posteriormente,  nosso  coronel  reaparece  e  agora não a imagem, mas sim o texto quer nos 
indicar  que  o  mesmo  se  encontra  em  um  ação  de  intimidade  familar.  “João  e  Antonio,  netinhos 
queridos  nos  braços  de  seu   Vovô  Cel.  João Wanderley de Siqueira” (Figura 6). Destaca­se o uso 
do  diminutivo  “netinhos”,  do  adjetivo “queridos”  e substantivo  “vovô” na tentativa de ampliar a 
representação  da  relação  afetiva  entre  os  membros  da  família.  Relembra­se  que,  dessa   vez,  as 
crianças do sexo masculino tem seus nomes revelados. 
 

 
Figura  5  ­  Informação  anunciada  no intertítulo:  “Sr.  Antonio Wanderley  de  Siqueira,  filho do Cel. João Wanderley 
de Siqueira, a quem está confiada a gerencia da Uzina”. 

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Figura  6  ­  Informação  anunciada  no  intertítulo:  “João  e  Antonio,  netinhos  queridos  nos  braços  de  seu  Vovô  Cel. 
João Wanderley de Siqueira.” 
 
As  quatro  cenas  seguintes  não  registram  cenas  da  vida  familiar  do  Coronel,  mas  sim  
passagens  relacionadas  ao trabalho na usina.  Vemos: o coronel andando à cavalo e revistando os 
outros  animais  de  sua  posse;  dois  grupos  de  operários  capturados  em  plano  geral  e  em  poses 
diferentes  o  coronel  na  volta  do  campo  novamente  andando  a  cavalo  em  um  plano  geral  e, 
posteriormente,  em   um  plano   fixo,  posando  em  sua  montaria;  e,  finalmente,  um plano geral do 
comboio que atravessa as terras da fazenda.  
Com  o  fim  dessa  sequencia  temos  a  ultima  cena  da  vida  intima  da  familia  Siqueira: 
deitado  em  uma  rede,  o  coronel  brinca  com  o  seu  netinho  João  enquanto   uma  das  mulheres  da 
família  (não  identificada)  segura  a  criança  no  colo.  Essa   imagem  faz­nos  lembrar  da 
representação de uma autoridade sendo abanada e servida por seus empregados, alegoria bastante 
enraizada  no  imaginário  popular.  Tal  interação  entre  os  membros  da  familia  é,  no  mínino, 
curiosa,  visto  que percebe­se, claramente, que aquilo trata­se apenas de uma representação para a 
camera.  Sendo  assim,  ao  tentar  forjar  uma  intimidade  entre  as  gerações,  o  registro  acaba  por  se 
revelar  como  uma   nítida  encenação,  uma  farsa.  Ressalta­se,  entretanto,  que  a  preocupação  com 
as  representações  sociais  adequadas  são  mantidas.  O  papel  da  mulher  na  familia  permanece  o 
mesmo: figura subalterna e, para as gerações posteriores, desconhecida enquanto indivíduo. 
 

 
Figura  6  ­  Informação  anunciada  no intertítulo:  “Cel. João Wanderley  de Siqueira  em sua rede  brincando com o seu 
netinho João.” 

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Com  esta  passagem  é  finalizada  a  primeira  parte  do  filme.  Já  a  segunda  metade  da 
produção  não  possui  mais  cenas  relacionadas  à  vida  intima  da  familia  e  dedica­se 
exclusivamente   à  exibição  da  industria  de  açúcar  na  usina  Estrelliana  e,  sendo  assim,  não  será 
objeto de investigação dessa pesquisa. 
Cabe  ainda  ressaltar  que  essa  produção cinematografia não busca construir uma narrativa 
através  da  montagem.  Além  disso,  o  que  vemos  é  praticamente  uma  sequencia  de  planos  que 
poderiam  ser  fotografias,  visto   que  as  personagens  tem  pouca  ou  nenhuma  mobilidade  e  que  a 
camera  permanece  sempre  fixa  em  uma  composição  imagética  previamente  definida.  Apenas 
algumas  tomadas  deste   curta  metragem  parecem  interessadas  na  produção  de  ilusão  do 
movimento,  como  é  o  caso  das  sequencias  que  captam  o  coronel  andando  a  cavalo  na  volta  do 
campo  e  o  mesmo  no  pateo  de  sua  residência  revistando  os  animais.  Esse  filme  é,  portanto, 
como um album de fotografias familiares.  
 
 
Considerações finais 
 
Embora  tenha  sido  realizado  com  intuito  inicial  de  promover  a  industria  da 
cana­de­açucar,  o  filme  apresenta  cenas   da  vida  familiar  do  Coronel.  Tal  produção  foi  exibida 
em  algumas  sessões  públicas  no  período  de  sua  produção,  fato que coloca em questão os  limites 
do espaço privado e do espaço público.   
Desde  o  ínicio  do  século  XX,  a   imagem  adquiriu  grande  importância  no contexto social. 
Através  da  simplificação  da  técnica,  a  fotografia  tornou­se  uma  prática  comum  e  passou  a 
cumprir  funções  sociais  específicas,  como  celebrar  e  eternizar  determinados  acontecimentos  do 
relevo  social.  Como  vimos,  a  prática  do  filme  famíliar  é  carregada  com  o  mesmo  sentido.  O 
registro  de  família  que  citamos  ao  longo  deste  trabalho,  assim  como  as  algumas  obras 
remanecentes  desse  período,  constituem  um  conjunto  de  imagens  com  algumas  características 
comuns.  Para  esse  conjunto,  a  produção,  a  exibição  e  a  forma  de  arquivar  essas  imagens,  assim 
como  a  forma  de  as  pessoas  se  relacionarem com as imagens de si e de seus familiares, definiam 

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uma  prática  social  inserida  num  determinado  contexto  de  significância.  A  família  concentrava 
grande  importância  enquanto  instituição  e  representava  um  espaço  demarcado  e  separado  do 
espaço  público,  mas  que  deveria  garantir  a manutenção dos princípios sociais vigentes na época. 
O  pai  centralizava  todas  as  decisões  relacionadas  ao  núcleo  familiar  orientando,  inclusive,  a 
própria  representação  dos  gêneros  em  fotografias  e  filmes.  O  resultado  do  enfraquecimento  dos 
constrangimentos  institucionais  no  seio da família é  que novas produções intergeracionais não se 
coíbem de revelar aspectos da vida familiar que até então permaneciam escondidas. 
Em  suma,  o  filme  “A  industria  assucareira  atravez  da  Uzina  Estrelliana”  tem  o  intuito 
representar  a  potente  industria  assucareira  com  um  interesse  comercial  futuro,  porém,  como  o 
passar  dos  anos,  essas  imagens  perderam  espaço  para  as  cenas  familiares  que foram registradas. 
O  cinema  e  a  fotografia  são  herdeiros  de  linguagens  artisticas  ancestrais  e,  assim  como  seus 
predecessores,  também  receberam  orientações  (até  mesmo  institucionais)  para  que 
representassem  a  sociedade da forma “correta”, pois  já havia o entendimento que as obras seriam  
incluidas  na  produção  de   memória  do  perído  e  contexto  histórico  em  que  foram  realizadas. 
Todavia,  muitas  vezes  a  tentativa  de  se  forjar  uma  representação  ideal,  seja  da  família  ou  das 
instituições, acabava por revelar exatamente o oposto do que se pretendia. 
 
 
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