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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES
CURSO DE GRADUAÇÃO EM LICENCIATURA PLENA EM HISTÓRIA

JOÃO PAULO SANTOS DE LIMA

UNIÕES DIABÓLICAS: A BRUXARIA EUROPEIA E O EROTISMO PROFANO A


PARTIR DA DEMONOLOGIA (1530-1688)

FORTALEZA

2018
JOÃO PAULO SANTOS DE LIMA

UNIÕES DIABÓLICAS: A BRUXARIA EUROPEIA E O EROTISMO PROFANO A


PARTIR DA DEMONOLOGIA (1530-1688)

Monografia de Conclusão de Curso apresentada


ao Curso de Graduação em Licenciatura Plena
em História do Centro de Humanidades da
Universidade Estadual do Ceará, como
requisito parcial à obtenção do grau de
licenciado em História.
Orientador: Dr. Gleudson Passos Cardoso

FORTALEZA

2018
JOÃO PAULO SANTOS DE LIMA

UNIÕES DIABÓLICAS: A BRUXARIA EUROPEIA E O EROTISMO PROFANO A


PARTIR DA DEMONOLOGIA (1530-1688)

Monografia de Conclusão de Curso apresentada


ao Curso de Graduação em Licenciatura Plena
em História do Centro de Humanidades da
Universidade Estadual do Ceará, como
requisito parcial à obtenção do grau de
licenciado em História.

Aprovado em: ___/___/___

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________

Prof.º Dr. Gleudson Passos Cardoso (Orientador)

Universidade Estadual do Ceará – UECE

_____________________________________________________

Prof.º Dr. Samuel Carvalheira de Maupeou

Universidade Estadual do Ceará – UECE

____________________________________________________

Prof.º Luan Lucas Araújo Morais

Grupo de Pesquisa em Cultura Escrita e Oralidade na Antiguidade e no Medievo –


ARCHEA/UECE
Para Astrid.
AGRADECIMENTOS

Aos meus amigos de faculdade, aqui representados principalmente pelos meus amados
Clesivaldo Júnior, Vanderson Costa e Marcos Miro. Obrigado pelos anos de convivência e as
experiências únicas que poderemos contar à nossa descendência num futuro próximo.

Aos meus familiares próximos e verdadeiramente amigos, especialmente meus primos


Gutemberg e Ludemberg. Obrigado pelos momentos alegres de distração, que me fizeram
descansar a mente em determinados momentos de angústia.

Aos meus pais, João e Cecília. Meu eterno obrigado pelo apoio e investimento irrestrito à minha
educação e instrução. Obrigado por serem, desde sempre, o pilar que sustenta todas as minhas
faculdades mentais.

Ao meu avô Apolônio, meu saudoso obrigado por ser meu guardião de todos os momentos.

Às minhas avós, Benegilda e Maria, meus agradecimentos pelos conselhos que tanto ajudaram
na minha formação humana.

Aos meus colegas de trabalho, aqui representados por Edílson, Marcelo, Magno, Santos, Átila,
Denny e Raphael. Obrigado pelos anos de companheirismo que, não raro, perpassaram a esfera
do profissional e foram representação de um afeto familiar.

Aos meus amigos-irmãos, Alexandre Ernandes e Orlando Jr., que tanto contribuíram para o
meu engrandecimento pessoal, profissional e humano, e por serem os amigos de todas as horas.
Muito obrigado!

Aos meus parceiros de rua, Danty e Douglas, obrigado pelas horas de descontração que me
acalmaram os ânimos em dias nervosos.

Aos meus amigos de adolescência, Carlito e Alex, pelas lembranças de uma época onde
prevalecia o respeito e a camaradagem.

Aos meus colegas em temática de pesquisa, os grandes Lucas Fernandes e Tony Ramirez.
Obrigado pelas indicações de leituras e comentários pontuais que compuseram boa parte desta
monografia.
Ao meu colega de faculdade, Luan Lucas, um especial obrigado pelas horas dispensadas a mim
e minhas loucuras escritas. Meus eternos agradecimentos e votos de sucesso profissional e
acadêmico num futuro próximo. Estamos juntos!

Ao meu orientador, Prof. Dr. Gleudson Passos Cardoso, por me fornecer a sustentação
acadêmica que viabilizou esta pesquisa. Muito obrigado por acreditar neste projeto que bebe da
fonte medieval e almeja um maior espaço de representatividade historiográfica dentro da região
Nordeste.

Ao Prof. Dr. Samuel Carvalheira de Maupeou, por aceitar o convite para compor a banca desta
monografia. Muito obrigado.

À UECE, por ser minha segunda casa durante esses anos de produção acadêmica.

À minha querida Pandora, por estar comigo nas longas horas de produção historiográfica e por
sempre melhorar meus dias com seu comportamento alegre e companheiro.

Por fim, à minha amada Astrid, por ser a companheira de todas as horas. Muito obrigado por
acreditar no meu potencial acadêmico desde o início. Me faltam palavras para agradecer de
forma justa a ti. Saiba que você foi crucial em todos os estágios de produção dessa obra. Seria
dúbio afirmar que essa ideia teria se concretizado sem seu apoio incondicional. Amo-te!
“O que é isso que se levanta à minha frente?
Um vulto preto que aponta para mim
Viro rapidamente e começo a correr
Descobri que eu sou o escolhido. Oh, não!
Uma grande figura negra com olhos de fogo
Dizendo às pessoas seus desejos
Satã está sentado lá, ele está sorrindo
Observem aquelas chamas crescendo cada vez mais
Oh não, não, por favor, Deus, me ajude!
Esse é o fim, meu amigo?
Satã está vindo lá na curva
As pessoas correm, pois elas estão assustadas
Melhor elas irem embora e tomarem cuidado
Não, não, por favor, não!”
(Black Sabbath – Black Sabbath)
RESUMO

Esta pesquisa busca compreender como a demonologia, aqui representada pelas obras de
Nicolas Rémy, Francesco Guazzo e Ludovico Sinistrari, contribuiu, através de seu imaginário
intríseco, para a formação de um perfil social da bruxaria europeia, assim como analisar se as
representações do Diabo influenciaram a repressão sexual ao feminino a partir da metade do
século XVI até a segunda metade do século XVII. Discutiremos as fontes através do exame do
lugar social de quem as produziu, no caso os demonologistas, e buscaremos entender suas
motivações em produzir tais documentos, assim como explorar a forma que estes foram
produzidos. Buscaremos explicar como o universo da bruxaria se desenhou nos textos
demonológicos através do estereótipo da bruxa como herege, assim como examinar as
representações do Sabbat enquanto fatores de inversão social e averiguar as implicações do
pacto diabólico para o perfil da bruxaria. Analisaremos o paganismo greco-romano enquanto
fator influenciador das representações lascivas de Satã na Idade Moderna, assim como
exploraremos as circunstâncias das aparições demoníacas e concluiremos esta pesquisa
examinando as práticas e consequências do sexo profano, aqui entendido como ato sexual
imaginário com demônios.

Palavras-chave: Demonologia, bruxaria, imaginário, representação.


ABSTRACT

This research seeks to understand how demonology, represented here by the works of Nicolas
Rémy, Francesco Guazzo and Ludovico Sinistrari, contributed, through its intrinsic imaginary,
to the formation of a social profile of European witchcraft, as well as to analyze if the
representations of the Devil influenced the sexual repression of the feminine from the half of
the sixteenth century until the second half of the seventeenth century. We will discuss the
sources by examining the social place of those who produced them, in this case the
demonologists, and we will try to understand their motivations in producing such documents,
as well as to explore the way in which they were produced. We will try to explain how the
universe of witchcraft was drawn in the demonological texts through the stereotype of the witch
as a heretic, as well as to examine the representations of the Sabbat as factors of social inversion
and to ascertain the implications of the devilish pact for the profile of witchcraft. We will
analyze Greco-Roman paganism as an influential factor in the lewd representations of Satan in
the Modern Age, as well as explore the circumstances of demonic apparitions and conclude this
research by examining the practices and consequences of the unholy sex here understood as an
imaginary sexual act with demons.

Keywords: Demonology, witchcraft, imaginary, representation.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Imagem de Nicolas Rémy..................................................................................... 20

Figura 2 – Imagem de Ludovico Maria Sinistrari................................................................ 28

Figura 3 – O Sabbat das bruxas.............................................................................................. 43

Figura 4 – O voo noturno........................................................................................................ 47

Figura 5 – Unguentos mágicos............................................................................................... 48

Figura 6 – Apostasia da fé cristã............................................................................................ 53

Figura 7 – O osculum infame.................................................................................................. 54

Figura 8 – O batismo diabólico.............................................................................................. 59

Figura 9 – O confisco das vestes............................................................................................. 60

Figura 10 – Juramento no círculo.......................................................................................... 60

Figura 11 – Registros no livro negro...................................................................................... 61

Figura 12 – A promessa do infanticídio................................................................................. 61

Figura 13 – Stigmata diaboli, a marca do Diabo.................................................................... 62

Figura 14 – El Aquelarre........................................................................................................ 67

Figura 15 – Príapo................................................................................................................... 71

Figura 16 – O pesadelo, de Henry Fuseli............................................................................... 73

Figura 17 – Escultura de súcubo............................................................................................ 75

Figura 18 – O sexo oral profano............................................................................................. 82


SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 13
2. OS SUJEITOS DA REPRESSÃO E SUAS OBRAS: A LITERATURA
DEMONOLÓGICA ............................................................................................................... 17
2.1. NICHOLAS RÉMY E A “DEMONOLATRIA” (1595) ............................................. 19
2.2. FRANCESCO GUAZZO E O COMPENDIUM MALEFICARUM (1608)............... 23
2.3. SINISTRARI E A DEMONIALIDADE (16--)........................................................... 27
3. O PAPEL DA BRUXARIA: OS FAMILIARES DE SATÃ .......................................... 31
3.1. HEREGES DENUNCIADOS: O LUGAR SOCIAL DA BRUXARIA NOS
TEXTOS DEMONOLÓGICOS ............................................................................................... 32
3.2. A SOCIEDADE INVERTIDA: AS REPRESENTAÇÕES DOS SABBATS ............ 42
3.3. SUBMISSÃO E INTERESSE: O PACTO DIABÓLICO ......................................... 54
4. ECOS DO PAGANISMO: AS REPRESENTAÇÕES DOS DEMÔNIOS LASCIVOS
65
4.1. AS CRIATURAS DA LÚXURIA: UMA ORIGEM CLÁSSICA ............................ 66
4.2. ESPECTROS SEXUAIS: AS CIRCUNSTÂNCIAS DAS APARIÇÕES ................ 72
4.3. O PRAZER PROIBIDO: PRÁTICAS E CONSEQUÊNCIAS DO COITO
DIABÓLICO ............................................................................................................................ 80
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 86
LISTAGEM DE FONTES ..................................................................................................... 88
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 88
13

1. INTRODUÇÃO

Depois da metade do século XVI até a segunda metade do século XVII a Europa viveu
a fase de witchcraze. Traduzindo-se, uma “bruxomania”. Explicar o aparecimento drástico dos
casos de bruxaria não é tarefa fácil ou simplista. Brian Levack (1988), expoente historiador
nesse ramo de pesquisa, chamou de “conceito cumulativo de bruxaria” as causas que levaram
ao aparecimento desse fenômeno e a consequente caça às bruxas.

O imaginário forjado pelo medo do Diabo, os desastres naturais, as mortes suspeitas


de pessoas e animais, o medo da peste, as más colheitas, as más relações interpessoais nas
comunidades, o impacto da Reforma Protestante e uma vontade de moralização por parte da
Igreja Católica, fez todos estes aspectos se interligarem num esforço de culpabilização social,
onde apenas um réu foi condenado por estes crimes: o Diabo. Logo, esse imaginário nascido da
esfera caótica social pode ser compreendido como “[...] uma peça efetiva e eficaz do dispositivo
de controle da vida coletiva e, em especial, do exercício da autoridade e do poder. Ao mesmo
tempo, ele torna-se o lugar e o objeto dos conflitos sociais [...]” (BACZKO, 1985, p. 310).

Entretanto, tal imaginário social não permitiu que o Diabo se manifestasse sozinho.
Astuto e sempre querendo manter sua posição de enganador da humanidade, Satã teria utilizado
familiares, agentes, mais conhecidos por nós como bruxas. Estas foram suas amantes, bem
como perpetradoras de crimes, conjuradoras de tempestades, causadoras da discórdia entre
pessoas de uma mesma comunidade, dentre outras práticas que nas próximas linhas falaremos.

A esmagadora maioria de bruxas foi condenada à pena capital, principalmente na


Alemanha moderna. A Inglaterra se mostrou mais clemente, enquanto França e Itália
disputaram o topo do número de mortes por bruxaria com os germânicos.

No entanto, as confissões feitas nos interrogatórios à magistrados como o francês


Nicolas Remy e ajudantes de julgamentos como o italiano Francesco Guazzo não passaram
incólumes ao olhar da história. Os detalhes que as bruxas revelavam a seus algozes continham
ricas descrições de reuniões noturnas em lugares remotos, onde lá, depois de se transportarem
em vassouras ou montadas em criaturas, dançavam estranhamente, praticavam a gula comendo
e bebendo, praticavam atos sexuais entre si e tendo como mestre cerimonial, o próprio Diabo.
Tal festa profana recebeu o nome de Sabbat.

Contudo, o Sabbat foi apenas um dos detalhes explorados pelas habilidades


inquisidores dos magistrados. O pacto diabólico também teve total exploração por parte desses
14

teóricos que empreenderam esforços no sentido de criar uma “protociência” compiladora de


relatos sobre Satã. Estes resultados de experiências no trato com as bruxas formaram um corpo
documental, bem como um grupo de juristas e integrantes de ordens católicas como os
dominicanos, franciscanos e ambrosianos, determinados a propagar informações sobre o poder
do Diabo.

A imprensa, idealizada ainda no século XV por Gutenberg na Alemanha, funcionou


como catalisadora da divulgação de novos livros que alertavam sobre as temidas bruxas já
mencionadas pelo Malleus Maleficarum em 1484, escrito pelos também alemães Heinrich
Kramer e James Sprenger. Teve início, portanto, a demonologia. Entendida como o estudo do
Diabo através dos relatos de bruxas que com ele tinham comércio e de ideologias próprias dos
demonologistas que produziram esses documentos.

Isto posto, falaremos, então, como nos utilizaremos da documentação da demonologia


para discutir a temática e tentará esclarecer a problemática proposta nas próximas linhas.

As produções historiográficas voltadas para o estudo da Idade Moderna ainda


encontram resistência por setores tradicionalistas da academia. Seja pela suposta dificuldade
em delimitar a temática, seja pela preferência temporal em detrimento de eras mais recentes,
favoritas à maioria das pesquisas no meio acadêmico. Entretanto, essa foi a principal motivação
deste trabalho: inovar o fazer historiográfico.

Embasado na História Cultural, com recorte historiográfico centrado em uma História


do Imaginário, esta pesquisa tem sua relevância justificada pela distinção temática e pela
discussão proposta com as fontes escolhidas, uma vez que, normalmente, quando se pesquisa
bruxaria em História, os historiadores buscam processos inquisitoriais como fontes.

Nossa metodologia de pesquisa será baseada em uma análise descritiva/explicativa das


fontes que utilizaremos. A abordagem qualitativa que aqui faremos busca entender as diferentes
nuances socio-históricas que compunham as confissões de bruxas europeias interrogadas entre
os séculos XVI e XVII e, desta forma, compreender como a representação do Diabo, aqui
entendida como produto do imaginário conjunto de magistrados, denunciantes e acusadas,
incitou a punição do feminino.

O desejo pessoal em pesquisar sobre satanismo e bruxaria nasceu a partir da


experiência com seminários feitos ao longo da minha jornada enquanto aluno sobre as obras
História Noturna, de Carlo Ginzburg, e O Diabo e a Terra de Santa Cruz, de Laura de Mello e
15

Souza, assim como o interesse pelos conceitos de imaginário1 e representação2, ambos presentes
nesse trabalho. Em tempo, posso afirmar que minha participação no ARCHEA – Grupo de
Pesquisa em Cultura Escrita e Oralidade na Antiguidade e no Medievo, influenciou de forma
crucial a produção desta pesquisa que, embora não tendo temática especificamente medieval ou
antiga, caminha pari passu na superação dos obstáculos que este fazer historiográfico impõe.

Escolhemos utilizar os textos demonológicos como fonte histórica para o estudo dessa
temática por entender que este tipo de documento escrito é essencial ao estudo das
representações dos sujeitos históricos que aqui interrogamos, assim como acreditamos na ideia
de exploração de uma historiografia ainda tímida em termos de pesquisas sobre a demonologia.

A relevância das fontes utilizadas nessa pesquisa é legitimada pelo teor único dos
documentos. Os textos demonológicos aqui utilizados contêm uma escrita não-processual,
diferente dos processos inquisitoriais de bruxaria e feitiçaria normalmente utilizados por esse
ramo da historiografia. Entretanto, a escrita de Rémy, Guazzo e Sinistrari transparece um olhar
condenatório de práticas destoantes da moral cristã e, diferentemente de um processo escrito
em linguagem jurídica, nos fornece detalhes da mentalidade deles próprios, pois, não raro, eles
manifestam opiniões sobre as teorias que produziram. Portanto, partindo da premissa de que
“[...] o dispositivo imaginário assegura a um grupo social quer um esquema coletivo de
interpretação das experiências individuais, tão complexas quanto variadas, quer uma
codificação das expectativas e das esperanças [...]” (BACZKO, 1985, p. 311), buscaremos aqui
investigar como a vivência e os objetivos pessoais dos demonologistas influenciaram na sua
atuação social enquanto sujeitos da repressão.

O título dessa pesquisa foi baseado nas constantes relações que a documentação aqui
utilizada nos proporciona. As Uniões Diabólicas são aqui entendidas, metaforicamente, como
uma relação de desarmonia, típica característica do antagonista da cristandade, entre quem
produz a documentação, os demonologistas, e quem sofre as consequências dos tratados
demonológicos, as bruxas. A gama de detalhes das confissões e relatos presentes nas fontes nos
fornecerá a base para o entendimento da relação entre perseguidor e perseguido, assim como

1
Que será trabalhado nesta pesquisa como “[...] representação, evocação, simulação, sentido e significado, jogo
de espelhos onde o ‘verdadeiro’ e o aparente se mesclam, estranha composição onde o visível evoca qualquer coisa
de ausente e difícil de perceber [...]” (PESAVENTO, 1995, p. 24).
2
Que será trabalhado nesta pesquisa como o estudo de objeto histórico ausente que, através de sua permuta com
outra imagem ou significado, permite acessar uma memória alegórica (CHARTIER, 1990).
16

nos fará perceber quais detalhes, depois de serem submetidos ao olhar historiográfico, podem
ser relevantes à compreensão da temática.

Nossa problemática se baseia em compreender se o imaginário cristão que permeou


os textos demonológicos ajudou a moldar um perfil social da bruxaria europeia, além de
questionar se a representação do Diabo, por meio das confissões contidas nos tratados de
demonologia, contribuiu para uma repressão sexual do feminino.

A viabilidade desta pesquisa, portanto, se sustenta pelo embasamento teórico nos


conceitos de imaginário e representação, que serão utilizados para entender o teor ideológico
dos documentos produzidos pelos demonologistas e a densidade da crença nos relatos de
bruxas.

Isto posto, podemos dizer que o primeiro ponto a ser trabalhado no pós-introdução será
a apresentação e discussão das fontes desta pesquisa. Buscaremos compreender como três
tratados de demonologia se articulam entre si e nos fornecem informações relevantes ao
desenvolvimento do recorte temático, como: que interesses tiveram os demonologistas ao
produzir tais documentos? Que motivações os levaram a discorrer sobre o Diabo? Quais são as
aproximações e descontinuidades entre as teorias de Nicolas Rémy, Francesco Guazzo e
Ludovico Sinistrari? Desta forma, o capítulo intitulado OS SUJEITOS DA REPRESSÃO E
SUAS OBRAS: A LITERATURA DEMONOLÓGICA busca introduzir o leitor ao
imaginário que permeará as páginas desta pesquisa; assim como entender o lugar social de tais
sujeitos como elemento influenciador de suas ideologias escritas.

No segundo ponto desta pesquisa buscaremos compreender como a perseguição à


bruxaria, as representações do Sabbat das bruxas e o pacto diabólico se conectam nos textos
demonológicos, a fim de responder questões como: de que forma a demonologia auxiliou os
magistrados na caça às bruxas? De que maneira as representações do Sabá colaboram para
entendermos a influência do imaginário nas confissões das bruxas? Qual a relevância e
influência do pacto diabólico enquanto fator demonizador da bruxaria? Desse modo, o capítulo
de nome O PAPEL DA BRUXARIA: OS FAMILIARES DE SATÃ procura entender como
a demonologia contribuiu para a formação de um perfil social da bruxaria.

O terceiro e último ponto de discussão desta pesquisa discorrerá sobre as


representações do Diabo enquanto entidade sexual. Buscaremos assimilar como a origem
clássica das representações lúbricas, bem como as circunstâncias das aparições dos demônios,
juntamente das práticas e consequências do sexo profano se interligam e nos favorecem
17

responder as seguintes questões: como as representações de deuses e criaturas do paganismo


greco-romano colaboram para uma possível conotação moderna da figura sexual de Satã?
Buscamos também discutir se é possível que os encontros das bruxas com demônios evidenciam
a predileção satânica pela aparência masculina, o íncubo, e se isso se conecta com o fato de a
mulher ser mais susceptível às tentações diabólicas? Por fim, investigaremos se os relatos dos
encontros sexuais entre bruxas e demônios, denotam uma vontade de libertação do feminino.
Dessa forma, o capítulo ECOS DO PAGANISMO: AS REPRESENTAÇÕES DOS
DEMÔNIOS LASCIVOS analisará como o imaginário contido nos textos demonológicos
ajudou a reprimir sexualmente a figura da mulher nos séculos XVI e XVII.

2. OS SUJEITOS DA REPRESSÃO E SUAS OBRAS: A LITERATURA


DEMONOLÓGICA

Entre 1500 a 1650, a Europa acreditou piamente na bruxaria demoníaca e nos relatos
sobre o sabá. Alemanha, Itália, Inglaterra e Espanha foram terrenos férteis para a produção da
literatura repressiva. Entretanto, as perseguições e punições variaram de acordo com a região
dos casos de bruxaria e, não necessariamente, todas as bruxas foram executadas na fogueira ou
foram caçadas. Lugares da Europa meridional como Artois, Flandres, Hainaut, Cambrésis,
Brabant, Luxembourg, Lorraine, Alemanha renana, os Alpes, Burgogne e Franche-Comté; bem
como ao Sul, a exemplo de Guiana, Béarn, Labourd, País Basco, Piemonte e os vales alpinos
ao norte da Itália conheceram a agitação da caça às bruxas. Porém, em qualquer outra parte da
Europa, a fúria dos inquisidores foi esparsa (SALLMANN, 2002).

O sudoeste da Alemanha representou um caso rigoroso de caça às bruxas. Sallmann


nos diz que:

[...] entre 1560 e 1670 [...] mais de 3200 pessoas foram executadas. Na cidade de
Wiesenteig, 63 mulheres foram queimadas por bruxaria no ano de 1562, e no cantão
de Obermachtal, 43 mulheres e 11 homens foram executados nos anos 1586-1588, ou
seja, 7% da população (SALLMANN, 2002, p. 82).

Ao analisar estes casos de bruxaria pelo olhar inquisidor da historiografia, não


podemos descartar o fato de que os juízes, integrantes das classes mais abastadas e não
perseguidas, contribuíram crucialmente para o engrandecimento da caça às bruxas e,
concomitantemente, influenciaram a produção de manuais que orientavam a forma que as
perseguições, as capturas, o encarceramento, os julgamentos deveriam acontecer: aqui nascem
os tratados de demonologia que, muito mais discorriam sobre as bruxas e suas práticas
18

diabólicas, do que sobre Satã em si. Sallmann enquanto historiador ressalta bem o que
pretendemos aqui mostrar quando nos fala que:

Há frequentemente um abismo entre o discurso dos juízes, impregnados de


demonologia e tentando a todo custo impor sua maneira de ver àqueles submetidos à
sua jurisdição, e os depoimentos destes últimos. Os camponeses denunciavam tal ou
qual indivíduo por seus sortilégios, o prejuízo que causavam à comunidade ou a alguns
de seus membros. São os juízes que, depois, traduziriam esses elementos da
agressividade interpessoal na linguagem da bruxaria demoníaca, e a imporiam à força
ou pela persuasão às suas vítimas. A bruxaria demoníaca foi, portanto, uma criação
cultural das elites sociais e dos eruditos, eclesiásticos e leigos. Impôs-se lentamente
na mentalidade comum pelo intermédio das formas de comunicação habituais da
época: os sermões, as lendas, os contos... ou pelo espetáculo edificante e pedagógico
das execuções (SALLMANN, 2002, p. 82-83).

Entretanto, é necessário destacarmos aqui quem influenciou, primordialmente, o


pensamento repressivo destes juízes.

Tomás de Aquino (1227-1274), integrante da ordem dominicana da Igreja Católica,


foi quem lançou as bases da perseguição à bruxaria e influenciou as mentes por trás dos tratados
de demonologia que nestas linhas discutiremos. Estudioso diligente da teoria cristã e, por essa
razão, constantemente citado por Nider, Vineti, Sprenger e Kramer, o monge Tomás apresentou
cinco regras de reconhecimento das bruxas, sendo estas: a relação sexual com o Diabo; a
transvecção, mais conhecida no estudo da bruxaria como voo noturno; a metamorfose; a conjura
de tempestades e o pacto diabólico (ROBBINS, 1964).

A teoria tomista foi crucial para o aparecimento de várias obras demonologistas.


Autores e obras relevantes para o estudo do Diabo e das bruxas, uma vez que estas não agiam
sem o amparo diabólico, foram: Jean Wier, alemão, escreveu De praestigiis daemonum3; Jean
Bodin, francês, escreveu La démonomanie des sorciers4; Peter Binsfeld, alemão, escreveu o
Tratactus de confessionibus maleficorum et sagarum5; Henri Boguet, francês, escreveu o
Discours exécrable des sorciers6; Pierre de Lancre, francês, escreveu o Tableau de
l’inconstance des mauvais anges et démons7.

Contudo, nas próximas linhas faremos apenas breves menções aos documentos
supracitados, pois, o foco desta pesquisa é analisar as obras de Nicolas Rémy (francês),

3
Dos truques dos demônios, 1569.
4
A demonomania das bruxas, 1580.
5
Tratado sobre confissões de malfeitores e bruxas, 1589.
6
O discurso maldito das feiticeiras, 1591.
7
Descrição da inconstância dos anjos maus, 1612.
19

Francesco Maria Guazzo (italiano) e Ludovico Maria Sinistrari (italiano), outros


demonologistas do nosso recorte temporal.

Baseado nisso, começaremos este capítulo apresentando as fontes desta pesquisa: três
tratados de demonologia, dois escritos por juristas e um escrito por frade, todos fortemente
influenciados pela doutrina de Tomás de Aquino. A escolha por trabalhar com essas três fontes
se justifica pela conexão existente entre elas: primeiro, Rémy escreveu a obra mais influente e
completa do pensamento demonologista sobre a bruxaria, depois do Malleus Maleficarum;
segundo, Guazzo complementa e expande a teoria de Rémy; terceiro, Sinistrari é influenciado
pelos dois anteriores, mas prefere focar seu estudo numa esfera de demônios específicos que
são as entidades da luxúria.

Tais fontes nos servirão em momentos distintos desta breve discussão sobre a bruxaria,
por exemplo: Rémy nos ajuda a conjecturar sobre a função da bruxa do cotidiano moderno;
Guazzo nos mostra como se dá o sistema de privilégio e submissão que o pacto satânico
facilitava; Sinistrari nos ajuda a discorrer sobre a condição corpórea dos demônios e o
imaginário que permeava a relação dos humanos com as criaturas do mal. Destarte, sabendo
que os imaginários “[...] são construídos a partir da experiência dos agentes sociais, mas
também a partir dos seus desejos, aspirações e motivações (BACZKO, 1985, p. 311) [...]”
buscaremos aqui relacionar tais fontes com dois questionamentos: qual o lugar social dos
representantes dessa literatura demonológica? Que motivações tiveram esses pensadores para,
através da demonologia, engrandecer o campo da caça às bruxas na Europa Moderna?

2.1. NICHOLAS RÉMY E A “DEMONOLATRIA” (1595)


Lorena (França), fim do século XVI, 400.000 habitantes, sede de 3.000 julgamentos
de acusados de bruxaria, 90% de sentenças condenatórias. No tribunal, senta-se no lugar mais
imponente o arquiteto da perseguição: Nicolas Rémy. Implacável, o magistrado fez seu nome
ser temido na cidade francesa, através da imensa rede de acusações e denúncias que o
circundava naquele período. Sua biografia, no entanto, nos faz conjecturar sobre sua atuação
jurídica, bem como seu lugar social:

Rémy nasceu por volta de 1530 em Charmes, no distrito de Vosges, em Lorena. Ele
veio de uma família de advogados: seu pai, Gérard Rémy, foi o reitor de Charmes; e
seu tio, tenente-general de Vosges. Era natural que o jovem Rémy seguisse essa
tradição, então estudou Direito na Universidade de Toulouse, onde Jean Bodin
ensinava. A partir de 1563, Rémy trabalhou em Paris, deixando em 1570 para se tornar
o tenente-general de Vosges na aposentadoria de seu tio. Em 1575, ele foi feito, além
disso, Conselheiro Privado do Duque Carlos III da Lorena e, em 1584, Senhor de
Rosières-en-Blois e du Breuil. Em 1591 foi elevado a procurador-geral de Lorena, em
cuja posição ele foi capaz de influenciar e anular magistrados locais demasiado
20

tolerantes com as bruxas, mantendo seu ódio pelas bruxas até o fim. Ele morreu a
serviço do duque em abril de 1612. Rémy se casou com Anne Marchand e teve pelo
menos sete filhos. (ROBBINS, 1964, p. 407, tradução nossa) 8

FIGURA 1 – IMAGEM DE NICOLAS RÉMY

Fonte: <https://www.mtholyoke.edu/courses/rschwart/hist257/stephwhit/final/remy.html>.
Acesso em: 15 nov, 2018.
Rémy certamente foi influenciado pelo meio social em que cresceu. Não apenas sua
aspiração profissional, mas também o ódio que o magistrado perpetrou contra as bruxas em sua
localidade nada mais foi do que produto de uma vivência familiar onde o direito penal
impregnava as conversas diárias e a histórias de mulheres solteiras ou solitárias que agiam
estranhas aos olhares da cidade aguçaram a curiosidade do jovem jurista. Era tempo de unir a
predileção profissional ao combustível que movia o motor inquisidor dos comportamentos, ou
seja, Rémy não se consideraria um verdadeiro magistrado, se também não fosse um juiz de
bruxas. Em tempo, é relevante adicionar mais detalhes sobre sua vida pessoal e o fazemos
dizendo que:

Rémy era um estudioso cultivado, um elegante poeta latino, o dedicado historiador de


seu país. Quando ele morreu [...] tendo enviado (somos informados) entre duas e três
mil vítimas para a fogueira, ele foi universalmente respeitado. Sua dedicação de sua
Demonolatria ao cardeal Carlos de Lorraine mostrou uma solicitude pessoal: o cardeal

8
Remy was born about 1530 at Charmes in the Département des Vosges in Lorraine. He came from a family of
lawyers: his father, Gérard Remy, was Provost of Charmes; and his uncle, Lieutenant General of Vosges. It was
only natural that the young Remy follow this tradition, so he studied law at the University of Toulouse, where Jean
Bodin taught. From 1563 Remy worked in Paris, leaving in 1570 to become Lieutenant General of Vosges on the
retirement of his uncle. In 1575 he was made, in addition, Privy Councilor to Duke Charles III of Lorraine, and in
1584 Seigneur de Rosières-en-Blois et du Breuil. In 1591 he was elevated to Attorney General of Lorraine, in
which position he was able to influence and override local magistrates too lenient with witches, keeping up his
hatred of witches to the last. He died in the service of the Duke in April, 1612. Remy married Anne Marchand and
fathered at least seven children.
21

sofria de reumatismo, que ele atribuía às maquinações das bruxas (TREVOR-ROPER,


1967, p. 142, tradução nossa)9.

Podemos ser levados a pensar que os réus julgados por este juiz foram pessoas
suspeitas de idas e vindas noturnas ou habitantes de casas com estranhos barulhos, etc. Contudo,
a principal acusação que convertia os cidadãos de Lorena em bruxos e, consequentemente,
criminosos, era a denúncia da prática de maléfice, este podendo variar desde um simples
infortúnio, como uma doença branda, à outra pessoa, como também poderia ser representado
pela morte suspeita de animais de criação privada, ou seja, os julgamentos foram, não raro,
catalisados por desavenças pessoais. Rémy e seu assistente de júri Claude Bourgeois, no
entanto, mesmo não descartando a importância processual-criminal do malefício, buscavam
sempre na confissão dos réus de bruxaria indícios que levassem ao pacto diabólico, o que de
certa forma mudava o foco acusatório, pois, o réu poderia ser absolvido pelo dano comunitário,
ficando somente incriminado pelo consórcio com Satã (BRIGGS, 1984).

Rémy, portanto, decidiu catalogar suas experiências jurídicas em uma obra dedicada
ao culto da realização pessoal, na maioria de seu conteúdo. A Demonolatria, exemplar
prestigiado nos estudos demonológicos, foi idealizada para ser uma compilação sobre práticas
e circunstâncias condenáveis como: a união fria e infeliz de bruxas com o Diabo; a sujeira e
podridão do Diabo; a aparência demoníaca, dando estaque ao diabo-bode que falaremos nas
próximas linhas; os unguentos mágicos; o dinheiro falso do Diabo; o ato de deitar-se com o
Diabo; o voo noturno para o Sabbat e a predominância de mulheres nesta reunião; sobre os
assassinatos suspeitos, potencialmente facilitados pelo Diabo; sobre a ilusão que o Diabo
mantém sobre seus comandados, entre outros.

Entretanto, à medida que nos aprofundamos no estudo dessa fonte, percebemos que
ela parece ter caráter limitado em termos de propagação de uma vigilância social e constante
contra o Diabo e seus asseclas, algo que que normalmente é a tônica dos manuais de caça às
bruxas como o Malleus Maleficarum. A obra de Rémy por vezes parece meramente
informativa, visto que “[...] os leitores de Demonolatria eram brindados com discussões
detalhadas das atividades que supostamente tinham lugar no sabá: o beijo obsceno, o festim
com alimentos horrendos e carne humana e a dança com música ofensiva [...]” (LEVACK,
1988, p. 52). Sendo assim, complementamos, pois, que:

9
Rémy was a cultivated scholar, an elegant Latin poet, the devoted historian of his country. When he died […]
having sent (we are told) between two and three thousand victims to the stake, he was universally respected. His
dedication of his Daemonolatreia to Cardinal Charles of Lorraine showed touching personal solicitude: the cardinal
suffered from rheumatism, which he ascribed to the machinations of witches.
22

[...] o interesse de sua Demonolatria reside exclusivamente na discussão de detalhes


práticos. Sua visão é realmente mais característica da tradição popular do que da
erudita, como na passagem confusa na qual ele falha em resolver a questão de saber
se pode ser certo forçar uma bruxa a curar suas vítimas. O livro é direto e notavelmente
preciso ao descrever tentativas reais, apenas para cair em futilidade verbosa quando
se move para questões gerais. É, no entanto, notavelmente livre de qualquer medo
histérico ou paranoico de uma grandiosa conspiração internacional de bruxas
(BRIGGS, 1984, p. 339, tradução nossa)10.

Remy, inclusive, apenas narra e não condena, exclusivamente, a prática de cura feita
pelas bruxas, pois “[...] as bruxas fazem com que seu principal negócio seja solicitado a realizar
curas para que possam colher algum lucro, ou pelo menos gratidão; já que são em sua maioria
mendigos, que ganham seu sustento das esmolas que recebem [...]” (RÉMY, 1595, p. 339 apud.
BRIGGS, 1984).

Todavia, essa relação de bruxaria e condição social, no caso, miserável, não pode ser
tida como uma característica única da identificação e consequente julgamento das bruxas de
Lorena. Há de se mencionar também os suspeitos que “[...] eram de moralidade sexual
duvidosa; e pastores e mulheres das aldeias que estavam frequentemente envolvidos no
tratamento de doenças de animais e que se enquadravam na categoria de curandeiros mágicos,
muitas vezes processados como bruxos maléficos [...]” (BRIGGS, 1984, p. 343).

Rémy constantemente se utilizou dos dados colhidos por ele mesmo para fazer
propaganda própria de seus feitos jurídicos e assim causar temor nas bruxas que ainda estavam
escondidas do olhar inquisidor da comunidade.

As pretensões de Rémy como um perito foram enfatizadas logo na folha de rosto,


onde ele se gabou de ter condenado 900 bruxas em quinze anos [...] Rémy mencionou
por nome 128 bruxas condenadas, mas suas imagens e nomes não puderam ser
documentados, pois, os registros desses anos foram perdidos. (ROBBINS, 1964, p.
407, tradução nossa)11

O procurador orgulhoso de Lorena parecia empreender uma cruzada contra o mal


desencadeado pelo Diabo em solo francês. O perfil histórico-social que Rémy estava decidido
a imortalizar, nem de longe continha a faculdade de clemência. Por mais que a Demonolatria
mais pareça um documento em forma de boletim de dados agrupados por seções criminais, ele

10
[…] the interest of his Demonolatry lies exclusively in the discussion of practical details. His view is really more
characteristic of the popular than of the learned tradition, as in the confused passage in which he fails to resolve
the question wether it can be right to force a witch into healing her victims. The book is direct and notably accurate
when describing actual trials, only to lapse into verbose futility when it moves to general issues. It is, however,
remarkably free from any hysterical or paranoid fears of a grandiose international conspiracy of witches
11
Remy's claims as an expert were emphasized by the title page, wherein he boasted he had condemned 900
witches in fifteen years [...] Remy mentioned by name 128 condemned witches, but his figures and names cannot
be documented, for the records for these years have been lost.
23

deixa transparecer parte do psicológico de Rémy. Reforçamos essa afirmação com o que diz o
historiador britânico Trevor-Roper, quando também pesquisou esta fonte:

A única resposta para o aumento do crime é o aumento da punição: enquanto houver


bruxas, encantadores, feiticeiros no mundo, deve haver fogo! [...] Rémy achava que
não apenas os advogados, mas também a lei, eram muito brandos. Por lei, as crianças
que disseram ter assistido a sua mãe ao sabá foram meramente açoitadas em frente ao
fogo em que seus pais estavam queimando (1967, p. 141, tradução nossa) 12.

Destarte, encerramos nossa breve discussão sobre este primeiro demonologista e sua
obra, citando justamente uma parte de suas últimas frases, que nos auxiliam a entender suas
convicções pessoais para produzir um documento como a Demonolatria. Em tempo, Rémy diz:

De minha parte, que tem sido tão longa e continuamente exercida e confirmada no
exame das bruxas, não temerei proclamar livre e abertamente minha opinião sobre
elas, e fazer tudo o que estiver ao meu alcance para trazer à luz a verdadeira verdade:
que suas vidas são tão notoriamente sujas e poluídas por tantas blasfêmias, feitiçarias,
luxúrias prodigiosas e crimes flagrantes, que não hesito em dizer que são justamente
submetidas a toda tortura e mortas nas chamas; tanto que eles podem expiar seus
crimes com uma punição apropriada, e que seu próprio horror pode servir como um
exemplo e um aviso para os outros (RÉMY, 1930, p. 188, tradução nossa) 13.

2.2. FRANCESCO GUAZZO E O COMPENDIUM MALEFICARUM (1608)


Francesco Maria Guazzo foi um frade italiano que viveu entre os séculos XVI e XVII.
Membro da ordem católica ambrosiana, sua trajetória de vida ainda é objeto de estudo da
história e, por isso, temos pouco a falar deste demonologista. Todavia, o legado que deixou ao
escrever o Compendium Maleficarum, ou Compêndio das Bruxas, é extremamente relevante à
historiografia devido os novos parâmetros que adicionou à obra de Nicolas Rémy, a
Demonolatria.

Guazzo fez parte de um grupo de demonologistas que viveram uma nova fase da
credulidade, pois, durante boa parte da modernidade, a bruxaria esteve em dúvida social: as
pessoas passaram a desacreditar da influência de Satã nas suas vidas e, consequentemente,
ignoraram ou descartaram as bruxas da lista de ameaças à existência humana. Em tempo, é
relevante dizer que a obra de Guazzo que, assim como Rémy, viveu o cotidiano jurídico e foi
inspirado por esse âmbito, influenciou diretamente a nova onda de fanatismo religioso que teve

12
The only answer to increased crime is increased punishment: as long as there are witches, enchanters, sorcerers
in the world, there must be fire! […] Rémy thought that not only the lawyers but also the law was too mild. By
law, children who were said to have attended their mother to the sabbat were merely flogged in front of the fire in
which their parent was burning.
13
For my part, who have been so long and continuously exercised and confirmed in the examination of witches, I
shall not fear to proclaim freely and openly my opinion of them, and to do all in my power to bring the very truth
to light: namely, that their lives are so notoriously befouled and polluted by so many blasphemies, sorceries,
prodigious lusts and flagrant crimes, that I have no hesitation in saying that they are justly to be subjected to every
torture and put to death in the flames; both that they may expiate their crimes with a fitting punishment, and that
its very awfulness may serve as an example and a warning to others.
24

seu auge persecutório desde o final do século XVI até a segunda metade do século XVII. Em
adição à sua biografia, dizemos que:

Francesco Maria Guazzo, um frade do início do século XVII, juntou-se aos Irmãos de
Santo Ambrósio e Nemus e São Barnabé em Milão, numa época em que a superstição
supostamente cavalgava desenfreada. Como Lea 14 comenta, "a credulidade do período
era insaciável". O próprio Guazzo é um exemplo: ele repete com a maior seriedade a
lenda de que Lutero era filho de uma freira e do diabo [...] Guazzo era conhecido como
assessor em julgamentos por feitiçaria (embora raramente descrevesse suas
experiências), e em 1605, foi para Cleves para promover acusações contra um acusado
de enfeitiçar o calmo duque John William, há muito tempo ativo na perseguição de
bruxos suspeitos (ROBBINS, 1964, p. 236-237, tradução nossa)15.

Guazzo sem dúvidas foi menos propagandístico que Rémy, porém, não menos erudito.
Se considerarmos que “[...] o sujeito [...] em um movimento histórico, pode ter uma entidade
pessoal diversa, o que se deve apreender é onde surge a necessidade de atuar em uma
determinada conjuntura histórica [...]” (ARÓSTEGUI, 2006, p. 330), perceberemos, então, a
relevância das citações que o frade ambrosiano faz em sua obra: estas são o reflexo de um
sujeito ativo na produção e catalogação, não somente da própria experiência prática, mas de
conceitos diversos do pensamento cristão pós-medieval.

A Demonolatria de Rémy é presença constante neste exemplar, porém, o Compêndio


de Guazzo contém os conceitos do jurista francês, mas também são adicionados vários outros
autores que discorreram sobre a bruxaria e suas circunstâncias, bem como a própria teoria do
autor sobre a presença de Satã e sua influência negativa com a humanidade. Dito isso,
acrescentamos ainda que:

A pedido do bispo de Milão, Guazzo escreveu seu enciclopédico Compendium


Maleficarum para confundir e expor, classificar e ilustrar as práticas de feitiçaria [...]
para seu manual, Guazzo reproduziu demonólogos anteriores, especialmente Del Rio
e Rémy, citando em torno de 322 autoridades. O Compendium, por causa dessa carga
de valores, tornou-se uma das demonologias padrões do século XVII, e mais tarde foi
fortemente refletido por Sinistrari (ROBBINS, 1964, p. 237, tradução nossa)16.

14
Henry Charles Lea (1825-1909), historiador americano conhecido por escrever a volumosa obra Materials
towards a history of witchcraft (Materiais para uma história da bruxaria).
15
Francesco Maria Guazzo, an early seventeenth-century friar, joined the Brethren of St. Ambrose ad Nemus and
St. Barnabas in Milan at a time when superstition was allegedly riding rampant. As Lea coments, "the credulity of
the period was insatiable." Guazzo himself is an example: he repeats with the utmost seriousness the legend that
Luther was the offspring of a nun and the Devil […] Guazzo was well-known as an assessor in trials for witchcraft
(though he seldom describes his experiences), and in 1605 went to the Cleves to promote charges against one
accused of bewitching the Serene Duke John William, long active in persecuting suspected witches.
16
At the request of the Bishop of Milan, Guazzo wrote his encyclopedic Compendium Maleficarum to confute
and expose, classify and illustrate the practices of witchcraft [...] for his handbook, Guazzo borrowed from previous
demonologists, especially Del Rio and Remy, and quoted in all from 322 authorities. The Compendium by reason
of this load of stock scholarship, became one of the standard demonologies of the seventeenth-century, and was
later heavily drawn on by Sinistrari.
25

A obra de Guazzo é também pictórica. O que em si já é uma relevante diferença e


possível privilégio ao fazer historiográfico se compararmos com a Demonolatria de Rémy. O
Compendium contém numerosas imagens que reforçam os conceitos apresentados pelo autor,
dentre eles: o pacto das bruxas com o Diabo; a submissão à Satã; a humilhação sexual; o
banquete sabático; a apostasia da fé através do rito de pisar na cruz; a negação dos sacramentos
católicos, entre outros. Em tempo, contribui ainda para nosso estudo, o que diz o historiador
americano Brian P. Levack:

Na Itália, o guia sobre bruxaria mais completo, o Compendium Maleficarum, foi


escrito por um frade milanês, Francisco Maria Guazzo, em 1608. Guazzo baseou-se
fortemente nas obras de Kramer e Sprenger17, Remy e Del Rio18, assim como de
centenas de outras autoridades, mostrando que a obra dos demonologistas era, como
o conceito de bruxaria por eles em elaboração, também cumulativa. Guazzo incluiu
em seu livro uma série de ilustrações de bruxas concluindo pactos com o Diabo,
fornecendo assim a seu público importante suplemento visual às fantasias que
descrevia (1988, p. 53).

A obra de Guazzo nos proporciona também conjecturar sobre a condição da bruxaria


enquanto verdade sociocultural. Como falamos nas linhas anteriores, nosso recorte temporal
abrange justamente o auge de crença coletiva nas ações do Diabo. No entanto, a descrença que
se espalhou pela Europa antes do fim do século XVI fez as pessoas ficarem num limbo de
significados e sentimentos.

Não raro, os fiéis da Igreja católica ficaram divididos entre: acreditar piamente na força
satânica manifestada, por exemplo, pelas possessões, assassinatos misteriosos, redução
inexplicável da fauna, tempestades repentinas, entre outras características de bruxas agindo em
conluio com o Diabo, que o Malleus Maleficarum adicionou ao imaginário cristão já no século
XV; ou desacreditar totalmente das ações maléficas, depositando sua crença e esperança num
Deus medieval onipotente que, como consequência das preces, não deixaria mal algum
acontecer às cidades, ignorando os densos manuais que alertavam sobre o poder demoníaco.
Sabendo disso, acrescentamos ainda o comentário do historiador britânico Stuart Clark a
respeito do tema:

De fato, o que chama a atenção é quão poucos exemplos existem em cada extremidade
do espectro, variando da aceitação total de todas as alegações demoníacas - onde
encontramos apenas Bodin e talvez Rémy (em algumas passagens de sua
Demonolatria) - à total rejeição - onde encontramos apenas Reginald Scot e seus
seguidores ingleses. Isso deixa um vasto campo médio ocupado por centenas de textos
onde tentativas genuínas são feitas para discriminar entre o que é aceito e o que é
rejeitado, onde os autores estão familiarizados com várias posições céticas, e onde o
ceticismo, assim como a crença, são evidentes em seus próprios pontos de vista como

17
Inquisidor alemão e frade dominicano austríaco, respectivamente. Autores da obra Malleus Maleficarum, O
Martelo das Feiticeiras (1484).
18
Teólogo jesuíta nascido nos Países Baixos (1551-1608)
26

demonologistas. Repetidamente somos avisados de que o assunto é controverso e


obscuro e que, diante da questão da realidade da magia demoníaca, nenhum homem
racional insistiria que tudo era ilusório ou verdadeiro. Esta é a posição adotada por
[...] Francesco Maria Guazzo (1984, p. 358, tradução nossa) 19.

Interessante também notar que o autor do Compendium, talvez por ser um estudioso
de diferentes vertentes filosóficas, “[...] citou [...] Cesalpino20, Valesius21 e Fernel22 em apoio
à visão de que uma doença poderia ser natural e instigada pelo Diabo [...]” (CLARK, 1984, p.
363), ou seja, o religioso se aproximou da ciência ao considerar causas não sobrenaturais para
enfermidades desconhecidas à época, mas não abandonou por completo a crença no poder das
bruxas em materializar o mal.

As teorias do Compendium sofreram influência profunda do contexto sociopolítico que


a Europa viveu à época que foram escritas. Não é de todo errado dizer que os tratados de
demonologia só existiram porque havia um terreno fértil para a aceitação dessa materialização
do mal, ou seja, a fragilização do corpo social devido os conflitos regionais23; o aparecimento
de um credo cristão reformulado por Lutero (que era visto no imaginário demonológico como
fruto da relação entre uma freira e um demônio); o aparecimento de doenças que a limitada
medicina não conseguia curar, acompanhado do esgotamento das orações para o
reestabelecimento do enfermo, seguido pela demonização, enfim, do sujeito acometido.

Entretanto, a demonologia teve seu êxito, principalmente, através do pânico social: as


classes dominantes, que eram compostas também pelos demonologistas, influenciaram o
imaginário perseguidor dos subalternos, ou seja:

As pretensas manifestações do poder demoníaco nesses séculos foram muitas e


variadas. As numerosas calamidades da segunda metade do século XIV, sobretudo a
Peste Negra, podem ter estimulado os intelectuais a presumir maior intervenção dos
demônios no mundo, enquanto as profundas crises econômicas do começo do período
moderno, o trauma da Reforma e a frequência de guerras e pragas podem ter reforçado
a convicção de homens como Remy, Boguet, Carpzow e Guazzo de que o Diabo
estava bastante ativo [...] esses mesmos fatores geraram ansiedade nas comunidades

19
In fact, what is striking is how few examples there are at each end of the spectrum ranging from total acceptance
of all demonic claims - where we find only Bodin and perhaps Remy (in some passages from his Daemonolatreiae)
- to total rejection -where we find only Reginald Scot and his English followers. This leaves a vast middle ground
occupied by hundreds of texts where genuine attempts are made to discriminate between what is to be accepted
and what rejected, where authors are familiar with a number of sceptical positions, and where scepticism as well
as belief is evident in their own views as demonologists. Repeatedly we are warned that the subject is controversial
and obscure and that, faced with the question of the reality of demonic magic, no rational man would insist that it
was all illusory or all true. This is the position adopted by [...] Francesco Maria Guazzo.
20
Filósofo, médico, naturalista e botânico italiano (1519-1603)
21
Filólogo francês (1603-1676)
22
Médico francês (1497-1558)
23
Se entendermos que “[...] não existe relato histórico no qual não esteja explicitada a relação com um corpo social
[...]” (CERTEAU, 1982, p. 92), perceberemos, então, a riqueza historiográfica da obra de Guazzo, uma vez que
esta é não só uma compilação de dados, imagens e doutrinas, mas também representação do imaginário de uma
sociedade.
27

do período moderno inicial, encorajando os magistrados a processar as bruxas. Mas


se desejamos identificar um fator subjacente tanto à formulação como à transmissão
do conceito cumulativo de bruxaria, fator que tenha sustentado mais solidamente a
crença na intervenção do Diabo nos assuntos humanos, devemos dirigir nossa atenção
ao medo da rebelião, sedição e desordem que afligia os membros das classes
superiores durante esses anos. Não é por coincidência que as primeiras descrições do
sabá das bruxas foram escritas enquanto a Europa experimentava uma onda de
rebeliões sociais, na segunda metade do século XIV. Também não é por coincidência
que a crença culta na bruxaria organizada se espalhou pela Europa durante um período
de profunda instabilidade e de rebelião crônica. A era da grande caça às bruxas foi
também a era das grandes rebeliões populares da história ·da Europa, período esse que
vivenciou incontáveis jacqueries de camponeses, guerras civis religiosas e, por fim,
as primeiras revoluções nacionais do mundo moderno. Tais distúrbios aterrorizaram
os membros das classes dirigentes de toda a Europa, e esses temores se refletiram na
fantasia do sabá (LEVACK, 1988, p. 59-60, grifo nosso).

A crise social da Europa nos séculos XV e XIV contribuiu crucialmente para a


divulgação das ideias de Rémy e Guazzo. O medo foi a chave que desencadeou a grande
perseguição ao feminino dos séculos XVI e XVII, gestada ainda em 1484 por Kramer e
Sprenger. Sinistrari, como veremos em seguida, também se beneficiou do imaginário
consagrado pelo medo já estabelecido por seus precursores e sua classe social, mas se distanciou
destes dois primeiros demonologistas e focou numa esfera própria de estudo: a demonialidade.

2.3. SINISTRARI E A DEMONIALIDADE (16--)


Ludovico Maria Sinistrari foi um outro tipo de demonologista. A partir da leitura e
análise de sua obra, percebemos uma distinção clara na sua escrita em relação a Rémy e Guazzo.
Possivelmente devido sua vida monástica, bem como a ausência de experiência em tribunais ou
participações em exorcismos, o franciscano se afasta da narrativa punitiva de seus antecessores
e produz uma reflexão acerca de uma categoria de demônios, o que já é relevante diferencial da
maioria das obras demonologistas, pois estas focam nas agentes de Satã: as bruxas. Dito isso,
sobre sua trajetória socio-histórica podemos acrescentar que:

O último dos demonologistas na tradição inquisitorial de Rémy, Boguet e os outros,


Sinistrari era conhecido em sua época como um estudioso e um cavalheiro, um bom
linguista e um conversador urbano. Aos vinte e cinco anos, tornou-se frade
franciscano e, sucessivamente, professor de teologia na Universidade de Pavia,
consultor do Supremo Tribunal da Inquisição de Roma e vigário geral do arcebispo
de Avignon. Em 1688, ele compilou os estatutos da ordem franciscana. Sua obra
maior, De Delictis et Poenis (Sobre Crimes e Castigos), foi publicada em Veneza em
1700, mas foi parar no Index de livros proibidos até que foi corrigida postumamente
em 1753 (Roma). (ROBBINS, 1964, p. 470, tradução nossa)24

24
The last of the demonologists in the inquisitorial tradition of Remy, Boguet and the others, Sinistrari was known
in his own day as a scholar and a gentleman, a good linguist and an urbane conversationalist. At the age of twenty-
five, he became a Franciscan friar, and then, successcively, professor of theology at Pavia University, consultant
to the Supreme Tribunal of the Inquisition at Rome, and Vicar-General to the Archbishop of Avignon. In 1688 he
compiled the statutes of the Franciscan order. His greatest work, De Delictis et Poenis (On Crimes and
Punishments), was published at Venice in 1700, but it went on the Index of prohibited books until it was
posthumously corrected in 1753 (Rome).
28

FIGURA 2 – IMAGEM DE LUDOVICO MARIA SINISTRARI

Fonte: <https://it.paperblog.com/la-pirlonea-di-ludovico-maria-sinistrari-1359251/>. Acesso


em: 15 nov, 2018.
A obra de Sinistrari é voltada aos estudos dos demônios sexuais, os chamados íncubos
e súcubos. Nela, o franciscano discorre sobre a forma dessas entidades, bem como seus métodos
de agir e como tais criaturas são vistas pela cristandade. Robbins nos diz que:

O trabalho pelo qual Sinistrari é conhecido hoje, De Daemonialitate (Demonialidade),


uma expansão de uma seção em seu De Delictis, não estava disponível para seus
contemporâneos. O manuscrito foi descoberto apenas por volta de 1875 em uma
livraria de Londres, por um editor francês, Isidore Liseux, que pagou seis centavos
por ele (1964, p. 470-471, tradução nossa)25.

Tais representações diabólicas durante toda a Idade Média e início da Idade Moderna
tiveram uma conotação maldita, prova disso são as obras demonologistas já citadas. Entretanto,
Sinistrari defende em sua teoria uma significação diferente desses “monstros”: para ele, os
íncubos e súcubos são criaturas que “[...] semelhantes aos humanos, tendo emoções e sendo
capazes de redenção por Cristo [...] diferem porque podem se tornar invisíveis e podem
atravessar paredes. O intercurso com íncubos ou súcubos não é, portanto, poluição, sodomia ou

25
The work by which Sinistrari is known today, De Daemonialitate, an expansion of a section in his De Delictis,
was not available to his contemporaries. The manuscript was discovered only about 1875 in a London bookstore
by a French publisher, Isidore Liseux, who paid six pence for it.
29

bestialidade [...]” (ROBBINS, 1964, p. 470-471), ou seja, as bruxas que se relacionaram com
demônios eram acusadas em uma distinta prática criminal, o que Sinistrari chamou de
demonialidade.

Tais seres buscam contato sexual com a humanidade, principalmente com o feminino,
um dos focos desta pesquisa. Sabendo disso, incluímos aqui o que diz o historiador romeno
Ioan Couliano:

[...] acredita que o íncubo e a súcubo não são demônios, mas seres chamados follets
em francês, folletti em italiano e duendes em espanhol (em inglês, elfish spirits). Eles
não são espíritos hostis à religião cristã, mas sentem um grande prazer em violar a
castidade, contra castitatem. Sinistrari de Ameno tem uma teoria oposta à ideia da
transexualidade dos follets. Eles são capazes de ejacular o sêmen; afinal, são criaturas
humanas, dotadas de uma alma que pode ser salva ou condenada e um corpo tênue
com maior longevidade que a do homem. Eles podem aumentar ou encolher seus
corpos à vontade, movendo-se pelas fendas na matéria; eles formam sociedades
organizadas, com governos e cidades (COULIANO, 1987, p. 150, tradução nossa) 26.

Sinistrari foi o demonólogo que mais se dedicou à teoria dos demônios da luxúria.
Utilizando-se do arcabouço teórico apresentando por Rémy e Guazzo, o padre franciscano
italiano direcionou seus estudos ao escrutínio crítico das representações do Diabo, enquanto
íncubo e súcubo, que permearam o imaginário cristão no século XVII. Segundo Finné (1973,
p. 193):

[...] A mais completa e original teoria referente a íncubos e súcubos, foi apresentada
por Ludovico Sinistrari d’Ameno, em seu Demonialité. Para ele, os íncubos não são
nem anjos nem demônios. São até inferiores aos anjos decaídos. Trata-se de seres
perdidos, devido à sua sensualidade muito importuna. Embora não pertençam à
natureza divina, apresentam, contudo, um aspecto e uma essência mais sutis que a dos
homens [...].

Exemplo da distinção ideológica de Sinistrari para outros demonologistas é sua


aproximação à razão. Enquanto Rémy e Guazzo representaram um imaginário que acreditou
devotadamente no poder do Diabo, o franciscano italiano se afastou dessa corrente do
pensamento cristão, se apoiando na razão científica, mas sem negar a existência de Satã.

Logo, Sinistrari inaugurou uma nova geração de estudos demonológicos: uma


literatura que, antes influenciada pelo medo da elite europeia e produzida com o intuito de
controlar as classes subalternas por intermédio da Igreja, agora enfrentava o embaraço de ter

26
“[…] He believes that the incuba and succuba are not demons but beings called follets in French, folletti in
Italian, and duendes in Spanish (in English, elfish spirits). They are not spirits hostile to the Christian religion, but
they take a wild delight in violating chastity, contra castitatem. Sinistrati de Ameno has a theory opposite to the
idea of the transsexuality of follets. They are capable of ejaculating semen; after all, they are creatures, human in
appearance, endowed with a soul that can be saved or damned and a tenuous body with greater longevity than that
of man. They can enlarge or shrink their bodies at will, moving through chinks in matter; they form organized
societies, with governments and cities.
30

um “traidor” ideológico, patrocinado por essa mesma elite, que flertava com a medicina como
principal explicação das enfermidades e elemento refutador das capacidades demoníacas.
Exemplo disso é a discussão que ele propõe sobre a condição reprodutora dos íncubos. Vide:

Como a maioria dos demonologistas, no entanto, Guazzo acreditava que o diabo era
capaz de preservar o "espírito genital" do esperma removido de um homem e depois
manipulá-lo ou maculá-lo de acordo com seus propósitos malignos. Sinistrari, ao
contrário, apoiado pela medicina contemporânea, nega que as qualidades do esperma
masculino possam ser salvas se transportadas de um lugar para outro. Ele infere,
assim, que os íncubos devem ter algum tipo de fisicalidade (MAGGI, 2006, p.148,
tradução nossa)27.

No entanto, uma permanência ideológica que Sinistrari possui dos demonologistas


passados é a crença na mulher enquanto gênero mais susceptível às tentações diabólicas. Desde
1484 com o Malleus Maleficarum, a mulher foi “escrita” por Kramer e Sprenger como
representação da fragilidade às investidas e manipulações de Satã. Logo, Sinistrari se utiliza do
seu interesse pelo estudo da anatomia e discorre sobre umas das piores transgressões morais ao
olhar das inquisições e menção constante nos relatos do Sabbat: a sodomia. É nessa parte que
vemos a figura da mulher sendo equiparada temporariamente à condição masculina para
“justificar” o prazer sexual. Sobre isso, acrescentamos que:

Emprestando a medicina contemporânea, Sinistrari “provou” que a sodomia é um


pecado não limitado aos homens porque as mulheres possuem um órgão chamado
clitóris, que fica oculto no corpo, mas que pode se tornar visível e ser usado como um
membro masculino. Sinistrari deixa claro que esse órgão sai (revela sua presença
oculta) em mulheres que são intrinsecamente muito masculinas, isto é, mulheres que
compartilham o calor corporal dos homens (MAGGI, 2006, p. 154, tradução nossa) 28.

Em suma, o que buscamos neste primeiro capítulo foi apresentar as fontes que
nortearão as próximas linhas. Desde a Demonolatria de Rémy, que tem teor enciclopedista
sobre a bruxaria e seu modus operandi; passando pelo volumoso Compendium de Guazzo que,
imbuído da catalogação de Rémy, representou o aumento do corpo imaginário das práticas
bruxas ao apresentar os estágios do pacto diabólico; até a teoria sexual e social de Sinistrari
sobre os demônios íncubos e súcubos e suas relações com a humanidade, nosso intuito foi
preparar o leitor para os questionamentos que surgirão à medida que destrinchamos esses
documentos.

27
Like most demonologists, however, Guazzo believed that the devil was able to preserve the “genital spirit” of
the sperm removed from a man and then manipulate or taint it according to his evil purposes. Sinistrari, on the
contrary, supported by contemporary medicine, denies that the qualities of male sperm can be saved if transported
from one place to another. He thus infers that incubi must have some kind of physicality.
28
Borrowing from contemporary medicine, Sinistrari has “proved” that sodomy is a sin not limited to men because
women possess an organ called a clitoris that lies hidden in the body but that can become visible and be used as a
male member. Sinistrari makes clear that this organ comes out (reveals its hidden presence) in women who are
intrinsically very masculine, that is, women who share men’s high bodily heat.
31

Portanto, é relevante destacarmos que a literatura demonológica forneceu o suporte


ideológico, apoiado fortemente pela coleção pictográfica, para que a perseguição obstinada às
classes subalternas, bem como ao feminino tomassem corpo através da ideia de bruxaria na
Europa moderna. Como disse o historiador Jean Delumeau (2009, p. 355), “[...] essa obsessão
ganha duas formas essenciais: [...] um alucinante conjunto de imagens infernais e a ideia fixa
das incontáveis armadilhas e tentações que o grande sedutor não cessa de inventar para perder
os humanos [...]”.

O próximo capítulo discorrerá sobre a representação social da bruxaria, assim como o


imaginário que a relação magistrado-acusado suscitou. Veremos como o lugar social da
bruxaria, igualmente as representações sabáticas e o pacto diabólico se interligaram para formar
um perfil da bruxa europeia.

3. O PAPEL DA BRUXARIA: OS FAMILIARES DE SATÃ

Quando Guazzo (1988, p. 9) escreveu que “[...] o Diabo engana nossos sentidos de
muitas maneiras [...]”, norteou o trabalho que nessas linhas apresentaremos. A enganação que
o inimigo da cristandade impõe sobre seus comandados, bruxos e feiticeiros, é um artifício de
dominação. Este controle se mostrou parcialmente benéfico aos seguidores de Satã, mas por
outro lado culminou na perseguição e, não raro, na morte destes. As bruxas e feiticeiros, maior
parte dos sectários diabólicos, passaram de um aparecimento constante na oralidade através de
lendas e crenças da Europa medieval a um lugar de destaque na literatura repressiva
(SALLMANN, 2002). Mas que textos influenciaram essa mudança?

O estudo do Diabo em si começa também na Idade Média com o Malleus


Maleficarum29: a demonologia. Ora, tal estudo existe a partir do ponto que se discute sobre a
existência e modus operandi dos demônios, bem como sobre as relações que estas entidades
estabelecem com a humanidade, sendo ainda útil à diferenciação de um possuído a um inspirado
(BOUREAU, 2016). Porém, além do Malleus Maleficarum, outro escrito teve papel crucial na
difusão da bruxaria demoníaca, também pelo fato de ser precursor desse manual de

29
O Martelo das Feiticeiras, escrito em 1484, estudo que serviu como manual de caça às bruxas e crucial obra para
o estudo do feminino na Idade Média.
32

reconhecimento e punição: a bula Summis desiderantes affectibus30, promulgada pelo papa


Inocêncio VIII, em 1484.

Carecemos de dizer nestas primeiras linhas que “[...] a transformação gradual da


feitiçaria em bruxaria pode ser observada nas crenças populares tal como se expressaram em
algumas histórias dos séculos XII e XIII [...]” (RUSSELL, 2008, p. 70) e essa modificação
certamente causou uma junção de ritos e práticas, sendo, não raro, nos depararmos com relatos
de feiticeiros com práticas específicas de bruxas e vice-versa.

A necromancia, prática mágica de invocar mortos ou espíritos, teve papel crucial nessa
mudança. Sobre isso, adicionamos:

A conexão entre a magia e o pacto demoníaco tornou-se mais estreita nos séculos XII
e XIII, quando a tradução de muitos livros de magia islâmicos e gregos fez aumentar
dramaticamente a prática real dessa atividade, e quando autores eclesiásticos
tornaram-se mais determinados e explícitos na sua condenação. A magia que passou
a ser praticada naquele tempo envolvia a invocação e comando de demônios, sendo
frequentemente denominada de necromancia, termo que tecnicamente significa a
invocação dos espíritos dos mortos. Tal magia cerimonial ou ritualista era praticada
sobretudo nas cortes dos monarcas europeus, e mesmo na corte papal. Seus praticantes
podem ter parecido, para os magi da posterior Renascença, "necromantes ignorantes
“, porém não eram absolutamente iletrados, tendo de fato mais em comum com os
magos cultos da Antiguidade e Renascença do que com as bruxas que posteriormente
viriam a ser julgadas em grande número. Invocar demônios para adquirir
conhecimentos secretos ou proibidos pode não ter requerido instrução erudita
sofisticada, porém requeria mais perícia do que a mera prática de superstições
camponesas.” (LEVACK, 1988, p. 34)

Em tempo, é preciso que falemos de questionamentos que geralmente aparecem sobre


o Malleus Maleficarum e outros textos demonológicos e apontam para as seguintes questões:
por que a bruxaria é pior que a feitiçaria em termos criminais da Idade Moderna? Qual o perfil
social da bruxa? Qual a representação da bruxa que frequenta os sabbats? Qual a função do
pacto com o Diabo e como ele altera a conotação social da bruxaria?

3.1. HEREGES DENUNCIADOS: O LUGAR SOCIAL DA BRUXARIA NOS TEXTOS


DEMONOLÓGICOS

A Idade Média fermentou a gênese da feitiçaria de forma lenta, tendo essa heresia
apenas atingindo seu auge, em diversidade de práticas e repressão, na modernidade. O próprio

30
Documento que ampliou os poderes de Jacques Sprenger e Henry Institoris, autores do Martelo das Feiticeiras
e inquisidores que atuavam na Germânia superior, perseguindo hereges como os valdenses, não sem encontrar
resistência das autoridades locais. Quando a bruxaria aparece nas regiões de Mayence, Colônia, Trèves, Salsburgo
e Brême, vem carregada de denúncias de fornicação com demônios íncubos e súcubos, sortilégios, conjurações,
excessos mágicos que atrapalham colheitas e reprodução de animais. A bula serviu como facilitador e fator
constituinte da caça às bruxas (SALLMANN, 2002).
33

estereótipo feiticeiro é forjado pela instituição eclesial (BASCHET, 2006). Baschet nos fala
que:

[...] desde a época de Agostinho, os clérigos condenam as práticas destinadas a dirigir


as forças sobrenaturais com o intuito de provocar doença ou impotência, de atrair
tempestades que destruam as colheitas ou de prejudicar o gado. Ao longo de toda a
Idade Média, atos de magia, tais como sortilégios, encantamentos, amarrações ou
feitiços com imagens, são bem atestados, mas aqueles que os praticam nas zonas rurais
são tanto curandeiros e desfazedores de feitiços como feiticeiros ocupados em lançar
malefícios sobre suas vítimas (2006, p. 239).

Contudo, Keith Thomas (1991) não vê tanta relevância em distinguir bruxaria de


feitiçaria, o mesmo se limita a dizer que o feiticeiro utiliza objetos para auxiliá-lo em suas
práticas mágicas, enquanto o bruxo não.

Para Jeffrey B. Russell (2008), a feitiçaria consiste numa ação simples e física que
produza outra ação física. Por exemplo: atar um nó numa corda e colocá-la debaixo da cama de
quem é o alvo do feitiço, com o intuito de causar lhe impotência.

Segundo Carlos Roberto Figueiredo Nogueira (2004), a feitiçaria constitui uma prática
individual e urbana. Sendo esse caráter urbano forte influenciador do aparecimento de
problemas humanos como ódios e paixões. Logo, tais sentimentos precisam de um
intermediário no qual confiem suas esperanças e desejos. A ação do feiticeiro é requisitada
devido a mistura de desigualdades materiais e mentais que o meio urbano fomenta, gerando um
clima constante de tensão social.

Portanto, se tomarmos como base o que diz Laura de Mello e Souza (1993) a respeito
da condição da feitiçaria, podemos acrescentar à caracterização desta a necessidade constante
de resolver problemas concretos do cotidiano, bem como dizer que se aproximava muito da
religião vivida pela população de lugares vigiados pela fé católica: pois as práticas mágicas
assumiam com frequência a forma de orações que se dirigiam a Deus, Jesus, santos e à Virgem.

A feiticeira ataca de forma dupla a Igreja: feitiçaria é heresia e então é questão


indissociavelmente social e religiosa. Social pois, no caso estudado, nasce geralmente do seio
de uma classe subalterna, a escrava ou serva, e religiosa, pois é uma crença destoante da fé
cristã (BASCHET, 2006).

Fazendo o contraponto no que diz respeito à bruxaria e seu significado que


constantemente se confunde com a feitiçaria, começaremos apresentando o que diz o
antropólogo Evans-Pritchard (2005), quando defende que a bruxaria é uma ofensa imaginária,
tendo em vista que a bruxa não realiza rituais, tampouco produz poções e não pronuncia
34

encantamentos. Para esse autor, o ato de bruxaria é psíquico, uma vez que são os rituais mágicos
e o uso de drogas malignas que formam um conjunto de práticas correspondentes à feitiçaria.

Para Jeffrey B. Russell (2008), a bruxaria possui três tipos de bruxos ou praticantes de
bruxaria: o feiticeiro, que pratica a magia simples falada em linhas anteriores; o herege, o qual
foi perseguido durante o período de caça às bruxas e acreditava-se ser este praticante de
diabolismo; e o neopagão, este sendo o “bruxo” que segue uma religião moderna, mantendo
similaridades com a feitiçaria e o paganismo antigos.

Entretanto, antes dessa classificação de bruxos, Russell se posiciona a respeito de um


aspecto relevante da bruxaria: o pacto demoníaco:

A escolástica ressaltou a ideia de pacto. Também consolidou a noção do existir um


intercurso ritual entre as bruxas e Satã. A antiga ideia de orgia dizia que os adoradores
de Satã misturavam-se sexualmente entre si. Mas os escolásticos agregaram a essa
tradição a figura do íncubo, o espírito demoníaco que tem relações sexuais com
mulheres e lhes causam pesadelos, e estabeleceram assim a ideia de que no sabá as
bruxas se submetiam sexualmente ao seu mestre e senhor Satã. (RUSSELL, 2008, p.
73)

Se podemos emprestar o discurso em defesa dos estudos sobre bruxaria que Brian P.
Levack faz em sua obra A caça às bruxas na Europa Moderna, dizemos que o máximo que
podemos fazer, enquanto historiadores, é descrever o ambiente em que a acusação e
consequente captura do acusado acontece, pois os mesmos aconteciam em situações comuns
entre si (lugar); estabelecer as características sociais mais comuns dos indivíduos acusados
(sujeitos); e explorar possíveis motivos que deixavam estes indivíduos vulneráveis ao
reconhecimento e acusação (ações-práticas) (LEVACK, 1988).

Um exemplo típico dessa indefinição de perfil é um dos ícones da demonologia, assim


como Teófilo, conhecida como “bruxa de Berkeley”. Citado por Russell, William de
Malmesburry, historiador do século XII, conta que a dita “bruxa” era na verdade uma feiticeira
que praticava adivinhações, era glutona e frequentemente participava de orgias devido ainda
não ser idosa.

De certa feita, ouviu um som característico de mal presságio vindo de uma gralha de
criação, mais tarde iria se confirmar: seu filho teria morrido. Envolvida em tristeza, desapego e
proximidade do destino inexorável, teria revelado aos outros filhos que sua alma estava perdida
pois teria praticado artes diabólicas, o que é seguido de um clamor por ajuda com vistas a salvar
seu corpo, sendo que sua alma já estava penhorada ao Diabo. A mulher então suplica aos filhos
que procedam com o seguinte ritual quando ela morresse: pediu que costurassem seu cadáver
35

na pele de um porco capado e colocassem-no de costas num caixão de pedra; que fechassem o
caixão com chumbo e ferro e colocassem uma pedra envolvida por uma corrente de forma que
desse três voltas em torno do seixo. Por último, pediu que fossem cantados salmos e
celebrassem missas em sua memória durante 50 dias. Ritual este que se mostrou plenamente
em vão devido o poderio do Diabo: nos dois primeiros dias, Satã envia seus asseclas que
invadem a igreja onde celebravam os ritos em memória da mulher; no terceiro dia, um demônio
de maior porte, provavelmente Satã, chega no recinto com grande estardalhaço, grita o nome
da mulher ao passo que esta ressuscita e ele a arrasta para a montaria de um cavalo negro,
disparando a galope alheio aos gritos da feiticeira (RUSSELL, 2008).

No início do século X, a Igreja ainda relutava em assumir de fato a prática de feitiçaria.


Relegava esta à condição de ilusão provocada pelo Diabo, um delírio onírico. A postura
incipiente da cristandade foi ajudar o “atentado” para que abjurasse das crenças e práticas
demoníacas e não necessariamente eliminar os adoradores de Satã. Todavia, o período de
transição entre os séculos XII e XIII marca uma mudança de atitude da Igreja: ocorre a
demonização dos hereges e, mais tarde, a dos feiticeiros, por efeito das denúncias de que o
Diabo preside reuniões de feiticeiros e que estes o consideravam como verdadeiro Deus
(BASCHET, 2006).

É nesse contexto que surge o dispositivo repressivo: a Inquisição. Em 1258, Alexandre


IV confia aos inquisidores que fiscalizem os “sortilégios e adivinhações”. Tomás de Aquino
por sua vez lança a ideia do pacto voluntário com o Diabo, que depois será aplicada aos
feiticeiros. Na primeira metade do século XIV, a caça aos feiticeiros decorre como um
fenômeno de amplitude limitada, de forma que a repressão existiu em caráter ostensivo embora
não fosse excessivo. Depois de 1430, as perseguições aumentaram significativamente devido a
concepção da feitiçaria como seita que conspirava para destruir a humanidade ganhar força na
comunidade eclesial (BASCHET, 2006).

Em 1437, o primeiro tratado contra a feitiçaria é redigido: o Formicarius, de John


Nider31. Nesta obra, as ideias de infanticídio e canibalismo ritual foram publicadas, bem como
a predileção feminina às práticas diabólicas, diferenciando-se assim, em termos de literatura
repressora, do início das perseguições quando homens e mulheres tinham a máquina coercitiva
da Igreja no seu encalço. Logo após, o Malleus Maleficarum despontou como ícone literário

31
Dominicano e professor de teologia na Universidade de Vienna (1425) e sacerdote de Nuremberg (Alemanha)
e Basel (Suíça).
36

máximo da expressão da realidade feiticeira, reiterando e agravando sua condição de heresia: o


ser-feiticeiro ganha a condição de crime (BASCHET, 2006). Nas palavras de Baschet (2006, p.
242), vemos que “[...] a Idade Média deu corpo à obsessão das bruxas e a modernidade cumpriu
a sentença.”.

Portanto, depois dessas primeiras linhas, percebemos que a bruxaria constantemente é


ligada ao diabolismo, que é o consórcio com o Diabo, ao passo que a feitiçaria não. A bruxaria
pela sua configuração em si se torna pior que a feitiçaria pois não necessita de outro instrumento
que facilite seu modus operandi a não ser a força diabólica. As denúncias influenciadas pelo
imaginário moderno como orgias desenfreadas, canibalismo, banquetes exagerados,
infanticídio, mortes inexplicáveis e más colheitas transformaram a feiticeira pagã e medieval
na bruxa demoníaca da sociedade moderna.

Para falar de heresia e bruxaria se faz necessário que desloquemos nosso recorte
temporal, momentaneamente, ao século XII. Pierre Valdo, mercador de Lyon que pregava a
pobreza evangélica, foi declarado herege pelo papa. Foge, tendo os vales alpinos como seu local
de refúgio. De lá, os membros da seita, agora conhecidos como valdenses, se propagam pela
Europa mesmo depois de excomungados pelo Concílio de Verona em 118432. França, Itália,
Suíça, Áustria e Alemanha são os locais de difusão da nova crença. A datar de 1555, os
valdenses edificaram templos nos vales de Vaud, cantão suíço, e disseminaram ainda mais o
seu credo (SALLMANN, 2002).

Todavia, entre os séculos XVI e XVII esses hereges sofreram intensa perseguição e,
quando capturados, revelaram detalhes do seu culto durante os interrogatórios que continham a
prática de tortura como forma de obter confissões mais convincentes. É aí que os valdenses
confessam serem adoradores do Diabo e possuírem, inclusive, uma espécie de reunião-ritual, a
chamada vauderie, para a qual untavam seus corpos com um bálsamo especial e em seguida
partiam em direção à assembleia profana montados em varas (SALLMAN, 2002). O valdense,
até então somente herege, começa um processo de transformação de perfil e o sabá, famosa
reunião noturna das bruxas dos séculos XV ao XVII, estava engendrada pela Igreja moderna,
contudo, ainda com resquícios medievais.

A Igreja Católica do medievo apareceu como uma corporação autocrática, “[...] tinha
um corpo doutrinal definido e abrangente, uma hierarquia organizada, rituais estabelecidos e

32
Organizado pelo Papa Lúcio III e o Imperador Frederico II, o Concílio de Verona teve como missão combater
as heresias na Itália e perseguir grupos como os valdenses e os cátaros (GONZAGA, 1994).
37

uma visão clara de sua autoridade e responsabilidade.” (RICHARDS, 1993, p. 53). Dentro desse
contexto social dominado pela Igreja, a feitiçaria, a religião pagã e o folclore formaram o corpo
da bruxaria europeia, tendo a heresia como último componente para a instituição da caça às
bruxas no final da Idade Média (RUSSELL, 2008). A própria heresia em si só existe porque a
Igreja a definiu como tal e, se soubermos que etimologicamente tal palavra significa escolha, a
escolha feita pelos feiticeiros e bruxos divergiu da doutrina cristã que deveria ser seguida
(BASCHET, 2006), ou seja:

A falta de clareza na heresia é grande; no entanto, ela está no coração da construção


do Ocidente, porque permitiu o nascimento do procedimento inquisitorial,
definitivamente instituído pelo papa Gregório IX em 1231: a necessidade de extorquir
a qualquer preço uma confissão dava à verdade e, desse modo, ao erro, um novo valor
absoluto. Da Igreja, o procedimento deslocou-se para a realeza, e encontra-se na base
da exagerada reinvindicação de poder total própria ao Estado moderno. (ZERNER,
2017, p. 561)

Em tempo, podemos dizer que “[...] as cavalgadas noturnas, o pacto com o diabo, o
repúdio formal ao cristianismo; as reuniões secretas e noturnas; a profanação da eucaristia e do
crucifixo; a orgia; o infanticídio ritual e o canibalismo [...]” todos estes elementos foram
agregados à bruxaria através da heresia (RUSSELL, 2008, p. 62). Esta mesma heresia, enquanto
desvio de conduta, “[...] tinha que ser especificamente reconhecida como produto da falibilidade
da escolha humana e do desafio público à vontade de Deus [...]” (RICHARDS, 1993, p. 53) e
aparecia neste cenário como uma afronta à ordem divina estabelecida.

Logo, percebemos que a Igreja não concebia a heresia como uma lacuna na onipotência
de Deus, mas uma falha humana em seres com livre arbítrio. Esta mesma falha seria julgada
pelos fiscais de Deus: os magistrados, os vizinhos, os colegas de ofício, os familiares.

O herege, antes de ser pecador, existe numa sociedade cristã que força seus membros
a carregar um fardo ideológico. Ser cristianizado denota estar constantemente compelido às
regras cristãs, ser esquadrinhado pelos olhares inquisidores desta mesma sociedade e sofrer as
penalidades que torna este membro social, então, um herege. Sabendo disso, acrescentamos
que:

[...] o pacto foi a base de transformação do feiticeiro em herege. Se alguém rendeu


culto a Satã, segue-se que acreditava poder ser salvo por Satã da justiça de Deus, o
que é heresia; se renunciou a Cristo como seu Senhor e colocou o satanismo no seu
lugar, cometeu a mais desprezível e perigosa de todas as heresias. (RUSSELL, 2008,
p. 65)

A denominação herege, quando nos referimos à prática de bruxaria, quase sempre é


relacionada à mulher. Sallmann foi simples e claro quando disse que o bruxo é quase sempre
uma bruxa. Ora, além do sexo feminino ser o alvo favorito da literatura de repressão que
38

falaremos melhor no terceiro capítulo, as mulheres mais pobres e idosas eram quase sempre as
acusadas. A bruxa da aldeia geralmente era a mulher que possuía uma sabedoria curandeira
acumulada ao longo do tempo, que exercia um lugar social particular nas comunidades
camponesas, que frequentemente era viúva e isolada numa sociedade que tratava anciões, não
raro, como sujeitos descartáveis (SALLMANN, 2002).

Dessa forma, se considerarmos que “[...] a representação [...] não é ‘histórica’ senão
quando articulada com um lugar social da operação científica e quando institucional e
tecnicamente ligada a uma prática do desvio [...]” (CERTEAU, 1982, p. 92), percebemos que a
perseguição à bruxa da aldeia não se dava apenas pela justificativa das práticas de
curandeirismo, mas explicitava também um “desvio” que era a representação do desprezo pelos
idosos.

A formação desse estereótipo da bruxa velha não aconteceu sem uma prévia
manifestação coletiva de desprezo pelos idosos das comunidades, o que levou,
consequentemente, a uma exclusão social. Portanto, é válido notar que “[...] intervêm no
processo de formação do imaginário coletivo manifestações e interesses precisos [...] o
imaginário social é uma das forças reguladoras da vida coletiva, normatizando condutas e
pautando perfis adequados ao sistema [...]” (PESAVENTO, 1995, p. 23).

Todavia, ainda sobre as implicações do perfil da bruxa idosa, há de se fazer aqui uma
ressalva: o curandeirismo era tratado de forma diferente de acordo com o local e época: uns
foram taxados de bruxos, outros como médicos exóticos. Muitos curandeiros eram inclusive
chamados de “magos brancos” pelo fato de socorrerem pessoas enfermas nos vilarejos em que
viviam ou nas proximidades.

O detalhe curioso disso é que quando a pessoa acometida da doença investigada não
era curada pelas habilidades do curandeiro, o mesmo punha a culpa na bruxaria. Não raro eram
os casos em que o curandeiro, farto das tentativas infrutíferas de curar o doente, perguntava se
este possuía desafetos ou se suspeitava de alguém que poderia lhe ter enfeitiçado. A resposta
quase sempre era positiva (THOMAS, 1991).

Para o que não há remédio que cure, há quem se culpe por isso. Logo, o “mago branco”
tinha também a função “[...] de confirmar as suspeitas que a vítima já havia formado, criando
assim as circunstâncias necessárias para converter uma mera suspeita em uma acusação positiva
[...]” (THOMAS, 1991, p. 444).
39

Os estereótipos femininos decorrentes do misoginismo clerical que a Idade Média


produziu perduraram até o século XVII. O corpo feminino não era estudado como o masculino,
mas sim vigiado. A anatomia da mulher não importava, mas sim a sua conduta social. A lei
colocava a menina sob controle do pai, depois do cônjuge enquanto mulher, e, quando viúva,
possuía uma certa autonomia, mas a velhice trazia a fraqueza corporal dos anos perdidos
enquanto dominada. É aqui que a bruxaria exerce o papel de retaliação social (SALLMANN,
2002).

Tal ideia advém dos três aspectos básicos da posição social que a mulher deveria
assumir no medievo: virgem, esposa e viúva. No primeiro estágio, castidade absoluta como
forma de manutenção da pureza corporal. No segundo, dedicação à instituição matrimonial e
ao seu senhor (marido). O sexo não deveria ter como objetivo o prazer, muito menos prazer
feminino. Apenas o intuito de conceber uma hereditariedade. Ao terceiro e último, a viuvez,
cabe à mulher recuperar controle do seu corpo para transferi-lo a um outro senhorio. Sai de cena
a figura do marido e entra Cristo como o novo suserano. Logo, à viúva cabe a manutenção de
um status quo que a faz respeitável minimamente aos olhos da sociedade, caso a mulher escolha
permanecer viúva e entregar seu corpo única e exclusivamente à cristandade. Logo, podemos
observar isso a partir de uma ancestralidade e memória medieval acerca do “prestígio e
malignidade” da velhice:

[...] em uma época marcada pela ausência de arquivos ricos, a memória torna-se o
apanágio dos velhos. E, como os homens da Idade Média atribuem muita importância
à ancestralidade de um costume ou de uma tradição, a população consulta-os a respeito
de todos os assuntos [...]. O caso das mulheres velhas é diferente. Antes de se tornar
uma feiticeira em potencial, a velha tem, com efeito, má reputação. [...] a velhice é
um objeto de tensão – entre o prestígio da idade e da memória e a malignidade da
velhice, a feminina em particular (LE GOFF; TRUONG, 2006, p. 104).

O perfil da bruxa da aldeia possuía características que formavam quase sempre a


mesma representação: jovem, porém solteira; viúva, porém pobre; idosa, que poderia, pela
experiência dos anos vividos, ter um conhecimento curandeiro; uma mulher de meia idade que
geralmente não tinha contato com a vizinhança ou possuía desafetos na comunidade também
era suspeita.

A desconfiança dos vizinhos era como uma besta adormecida: ao mínimo sinal de
perigo, ela lançaria toda sua força contra a ameaça. O prenúncio de risco eram os
acontecimentos estranhos e inexplicáveis como uma colheita que parecia ser próspera, porém
se tornava ruim; um animal pertencente a um camponês morria de forma repentina ou até
mesmo o nascimento de um bicho deformado. Contudo, quando os acontecimentos eram
40

relacionados diretamente com as pessoas, como assassinatos, fraturas sofridas ou


desaparecimentos, a desconfiança passava de um estágio de alerta constante para a iminente
acusação de pessoas com o perfil que citamos acima. O historiador Keith Thomas (1991, p.
441) expressa bem o que queremos argumentar quando diz:

A primeira característica que surge em um exame das acusações de bruxaria é óbvia,


mas mesmo assim é importante. Trata-se do fato de que era extremamente raro que
alguém decidisse ter sido vítima de bruxaria sem ter em mente um sujeito específico.
Tendo chegado à conclusão de que a magia estava na raiz dos seus infortúnios, as
pessoas nunca demoravam muito em identificar a provável bruxa. Em geral, sabiam
na hora quem deveria ter sido. Às vezes, até tinham um suspeito antes que a bruxaria
fosse cometida.

Em tempo, ainda que marcada pelos exageros e pelo caráter mais literário que histórico
propriamente dito, algumas considerações do historiador francês Jules Michelet em sua obra A
feiticeira podem ser válidas para esta pesquisa. Se por um lado ele incorpora uma narrativa
semi-lendária em torno do surgimento da feitiçaria a partir de 1300 na Europa e sobre a figura
da bruxa em si, aqui buscamos legitimar e expor um discurso clerical e histórico construído na
modernidade, analisando o papel, o espaço e as ações desse agente. Nesse sentido, Michelet
(1992, p. 22) nos fala que:

[...] O único médico do povo, durante mil anos, foi a feiticeira. Imperadores, reis e
papas e os mais ricos barões tinham alguns médicos em Salerno, mouros e judeus,
mas a massa de qualquer estado, e pode-se dizer da maioria das pessoas, só consultava
a parteira ou saga. Se ela não curasse, injuriavam-na, chamavam-lhe bruxa. Em geral,
contudo, por respeito (a que se misturava receio), chamavam-lhe boa dama ou bela
dama (bela dona), o mesmo nome que davam as fadas. [...] Podem ser encontradas
nos lugares mais sinistros, isolados, de má fama, nos pardieiros, nos escombros.
Assemelham-se ainda com aquelas que a utilizava. Onde teria ela vivido a não ser nos
pântanos selvagens, essa infeliz tão perseguida, a maldita, a proscrita, a envenenadora
que curava e salvava? (1992, p. 22).

Exemplo do que falamos acima foi o caso de uma mulher chamada Epvrette Hoselotia,
acusada de bruxaria e interrogada em Toul (1587), no qual ela revelou ter utilizado ajuda
demoníaca contra um senhor de terras da região, pois esse havia acusado seu filho injustamente
de roubo: a mulher esperou um momento de descuido do fazendeiro quando este estava levando
os cavalos para fora do pasto e, junto com seu demônio familiar, forçou o pescoço do cavalo
em que Jean Halecourt estava montado para baixo, de maneira que o homem caiu e quebrou a
perna (RÉMY, 1930).

Percebemos então o que era comum nesses casos: “[...] a bruxa já tinha algum tipo de
relação com a vítima antes de, segundo se acreditava, começar a praticar seus malefícios [...]”
(THOMAS, 1991, p. 441) e “[...] estava se vingando de um dano preciso. Logo, [...] o
41

importante é que, paradoxalmente, era a bruxa que tendia a estar moralmente certa e a vítima,
errada [...]” (THOMAS, 1991, p. 446).

A negação de favores foi outro fator social importante na acusação da bruxa. Tanto
uma idosa pobre e pedinte como uma jovem inexperiente nos afazeres do lar que
constantemente requisitava ajuda eram potenciais alvos de denúncia. O relacionamento ruim
com os vizinhos preparava o terreno para o julgamento de olhares e pensamentos que
redundariam na delação em um momento oportuno. Keith Thomas (1991, p. 447) novamente
contribui com nosso pensamento ao dizer que:

De todas as situações, porém, a mais comum era aquela em que a vítima (ou, se fosse
uma criança, os pais da vítima) havia sido culpada de falta de caridade ou de boa
vizinhança, mandando embora uma velha que houvesse vindo bater à porta para
esmolar ou pedir emprestada comida ou bebida, ou algum utensílio doméstico [...] A
esmagadora maioria dos casos plenamente documentados encaixam-se nesse padrão
simples. A bruxa é mandada embora de mãos abanando, murmurando talvez uma
praga; no seu devido tempo, acontece alguma coisa de errado na casa e a bruxa é
imediatamente considerada responsável por isso.

A aparência física das mulheres era outro fator de suspeita para uma possível acusação
futura. Verrugas, rostos enrugados, coxeios, beiços peludos, dentes grandes, voz estridente, tais
características fomentaram alguns poucos casos de bruxaria. Para um historiador, estudioso que
trabalha com evidências ou fatos, a fisionomia da bruxa é o fator motivador que menos aparece
nas delações, se tomarmos como exemplo a Inglaterra nos séculos XVI e XVII. A maior parte
dos inquéritos revela que “[...] era a conduta e a situação social da suspeita, mais que sua
aparência física, que provocava sua queda [...] (THOMAS, 1991, p. 458), pois a caça às bruxas
foi [...] um fenômeno social, não físico [...], sendo que [...] as mulheres eram os membros mais
dependentes da comunidade e, assim, as mais vulneráveis à acusação [...]” (THOMAS, 1991,
p. 458).

A bruxa que Keith Thomas apresenta é construída socialmente. Nasce no seio da perda
do sentimento de ajuda mútua na Inglaterra dos séculos XVI e XVII, quando a propriedade
privada passar a ser tida como parte crucial das relações diárias. A bruxa era acusada (e criada)
pelos vizinhos que representavam a crise entre o individualismo e a boa vizinhança (THOMAS,
1991). Contudo, devemos adicionar outro componente à motivação da acusação: a classe
econômica que pertenciam as partes, bruxa e denunciante ou vítima. A bruxa:

[...] sempre tinha que estar em uma posição social ou econômica inferior à do
acusador. Só então era possível presumir que ela houvesse recorrido a métodos
mágicos de retaliação, pois, se a suspeita fosse a parte mais forte, teria métodos de
vingança mais diretos à sua disposição. É por isso que quase não há casos em que a
bruxa fosse socialmente mais elevada que a vítima; e é por isso que as bruxas tendiam
a ser pobres [...] o grosso das acusações de bruxaria, portanto, refletia um conflito mal
42

resolvido entre a conduta de boas relações entre vizinhos exigida pelo código ético da
velha comunidade aldeã, e as formas cada vez mais individualistas de comportamento
que acompanhavam as mudanças econômicas dos séculos XVI e XVII (THOMAS,
1991, p. 453).

É interessante destacar também que a bruxaria enquanto componente da sociedade


europeia de nosso recorte temporal era quase sempre uma disputa entre uma vítima ou grupo
de vítimas contra uma bruxa, ou seja, um conflito social em pequena escala. Dificilmente uma
bruxa era culpada por pestes, fome ou desastres naturais de larga escala. Ora, era possível que
uma mulher suspeita não tivesse boas relações com um vilarejo todo, mas raramente essa
mesma mulher fomentaria desconfiança numa grande cidade ou nação (THOMAS, 1991). Os
eventos em larga escala mudavam o foco da acusação e até influenciavam o conformismo
socioreligioso, pois “[...] tinham que considerar tais desastres em larga escala como atos de
Deus [...]” (THOMAS, 1991, p. 451).

Findando essas primeiras considerações, nestas linhas percebemos que a ligação do


estudo da bruxaria com o social é imprescindível, pois:

A história social deste crime, portanto, torna-se mais um estudo de desvios


comportamentais. Ao lidar com a bruxaria, o historiador tem de explicar não apenas
por que a bruxa agia de determinada maneira, mas também por que os vizinhos da
bruxa suspeitavam dela, acusando-a. A bruxa podia estar reagindo às pressões sociais
e econômicas quando amaldiçoava seus inimigos ou empregava a feitiçaria contra
eles, mas seus vizinhos, ao denunciarem a bruxa e testemunharem contra ela, reagiam
tanto quanto ela às condições sociais em que viviam (LEVACK, 1988, p. 120).

A bruxa foi o indivíduo que representou, em parte, as relações pessoais no campo e


nas pequenas vilas da Europa nos séculos XVI e XVII, se analisarmos a representação da ajuda
comunitária, bem como o interesse sobre as práticas diárias de um vizinho com menos contato
e as vendetas pessoais. Portanto, essas características não apareceram soltas nesse breve estudo
da bruxaria, pois elas contêm um corpo de significados reais mesmo sendo baseados em
motivos quiméricos, sendo que “[...] o imaginário social não se resume às ideias-imagens
utópicas, mas elas lhe dão um suporte poderoso, como forma específica de ordenação de sonhos
e desejos coletivos [...]” (PESAVENTO, 1995, p. 22).

O próximo tópico discorrerá sobre parte do comportamento dessa bruxa socialmente


construída que aqui falamos. Abordaremos a bruxaria dentro da esfera ritual própria desse
grupo: o sabbat.

3.2. A SOCIEDADE INVERTIDA: AS REPRESENTAÇÕES DOS SABBATS

Reunião e união. Duas palavras que possivelmente retratam melhor a ideia dos sabás
noturnos. O ato de reunir-se favorecia a união das bruxas com Satã e iniciava um rito de enlace
43

com vários estágios bem definidos. O historiador italiano Carlo Ginzburg (2012, p. 9) é quem
talvez possua maior autoridade para definir esse tipo de reunião, tendo escrito a mais completa
obra sobre o sabá das bruxas33, intitulada História Noturna, que aqui reproduzimos quando
dizemos que:

Bruxas e feiticeiros reuniam-se à noite, geralmente em lugares solitários, no campo


ou na montanha. Às vezes, chegavam voando, depois de ter untado o corpo com
unguentos, montando bastões ou cabos de vassoura; em outras ocasiões, apareciam
em garupas de animais ou então transformados eles próprios em bichos. Os que
vinham pela primeira vez deviam renunciar a fé cristã, profanar os sacramentos e
render homenagem ao Diabo, presente sob a forma humana ou (mais frequentemente)
como animal ou semianimal. Seguiam-se banquetes, danças, orgias sexuais. Antes de
voltar para casa, bruxas e feiticeiros recebiam unguentos maléficos, produzidos com
gordura de criança e outros ingredientes.

Sallmann (2002, p. 52-53) nos fornece ainda outra definição sobre esse conventículo
profano que:

[...] ocorria, geralmente, à noite, em um local retirado, em uma colina, em um bosque


ou em um cruzamento de estradas, ao redor de uma fogueira que iluminava a
cerimônia com a sua luza baça. Bruxos e bruxas eram convocados individualmente
pelo Diabo e aí chegavam, quase sempre, a pé. Às vezes, era o Diabo que os
transportava nas costas de um porco, de um asno, de um bode ou de um galo, ou
raptando-os num grande turbilhão.

FIGURA 3 – REPRESENTAÇÃO DO SABBAT DAS BRUXAS.

Fonte: <https://digital.library.cornell.edu/catalog/ss:11177451>. Acesso em: 15 nov, 2018.

33
A obra de Ginzburg retrata a complexa síntese do Sabá. O historiador italiano discorre sobre as possíveis origens,
personagens, causas e fins da festa bruxa. Esta pesquisa não tem como intuito seguir os passos de Ginzburg e
aprofundar a discussão sobre o Sabá, mas destacar seu conceito do Sabbat e entendê-lo enquanto representação da
mentalidade da Europa do final do século XVI até a segunda metade do século XVII, focando na construção do
perfil social da bruxaria, baseando-se nos textos demonológicos.
44

A imagem acima nos ajuda a explorar a diversidade de espaços, categorias e


representações que compõem o imaginário do Sabbat. Fornecemos, pois, a seguinte descrição:

Satanás pregando em forma de bode, sentado em uma cadeira de ouro. Um de seus


cinco chifres é aceso para acender todas as velas e fogos do sabá. A rainha do sabá,
coroada à sua direita; uma (rainha) menos favorecida à sua esquerda. Na frente do
trono, uma bruxa apresenta uma criança que ela sequestrou. Aqui estão os convidados
na festa do sabá, cada um com um demônio ao lado. A única carne é aquela de
cadáveres, homens enforcados, corações de crianças não batizadas e animais impuros
que nunca foram comidos pelos cristãos. Tudo é insípido e sem sal. Na extrema
direita, as bruxas pobres, que não ousam se aproximar das altas cerimônias, são
admitidas apenas como espectadores e empurradas para os cantos. Depois do banquete
segue a dança; estando fartos com a comida, seja ela insatisfatória ou ilusória, e a mais
perniciosa e abominável em qualquer caso, cada demônio lidera aquele que estava
sentado ao lado dele na mesa do banquete sob uma árvore amaldiçoada. Lá, o primeiro
demônio vira o rosto para os dançarinos, e o segundo olha para o outro lado, enquanto
o resto se alterna da mesma maneira. Então todos eles dançam, batendo os pés e
movendo-se com as mais indecentes obscenidades que podem imaginar. Os músicos
tocam seu concerto, para cuja música e canções as bruxas pulam e dançam. Abaixo
está uma tropa de mulheres e meninas que dançam em círculo, de costas um para o
outro (ROBBINS, 1964, p. 300 apud LANCRE, 1613, tradução nossa)34.

O Sabá, assim como o Diabo muitas vezes alcunhado de “macaco de Deus”, imitava o
principal rito católico: a missa. Todavia, era uma cerimônia ao avesso da cristã, pois substituía
características importantes como, por exemplo, a comunhão: a hóstia que no rito cristão é feita
de trigo, era substituído por uma rodela de nabo ou de madeira; e, ao passo que era muito
comum o ato de beijar a cruz pelos cristãos como forma de respeito e reverência, os bruxos
jocosamente beijavam o ânus do Diabo, estando este geralmente em forma de bode, como forma
de submissão a Satã (SALLMANN, 2002).

Portanto, o sabá representava a ideia de um sistema de perversão da ideologia cristã: à


medida que transformava um conjunto de ritos pré-estabelecidos, também criava um ritual
próprio. Nos parece, então, um processo de destruição de um imaginário existente e dominante,
e o nascimento de um imaginário emergente e específico. Logo, embora a festa profana não

34
No original: Satan preaching in the likeness of a goat, seated in a golden chair. One of his five horns is lighted
to kindle all the candles and fires of the sabbat. The Queen of the sabbat, crowned, at his right; one less favored at
his left. In front of the throne, a witch presents a child she has abducted. Here are the guests at the sabbat feast,
each having a demon next to her. The only meat is that of corpses, hanged men, hearts of unbaptized children, and
unclean animals never eaten by Christians. Everything is insipid and without salt. At the extreme right, poor
witches, who dare not to approach the high ceremonies, are admitted only as spectators and shoved away into
corners. After the feasting follows the dancing; for having been filled up with food, whether unsatisfying or
illusory, and most pernicious and abominable in any case, each devil leads the one who was seated next him at the
banquet table under a cursed tree. There, the first devil turns his face inward toward the dancers, and the second
faces outward, while the rest alternate in the same way. Then they all dance, stamping their feet, and moving with
the most salacious indecencies they can imagine. These are the musicians performing their concert, to whose music
and song the witches leap and dance. Below is a troop of women and girls who dance in a circle, back to back.
45

existisse na realidade, negar sua importância histórica seria um crime contra o fazer
historiográfico. Sobre esse raciocínio, acrescentamos que:

A ideia do imaginário como sistema remete à compreensão de que ele constitui um


conjunto dotado de relativa coerência e articulação. A referência de que se trata de um
sistema de representações coletivas tanto dá a ideia de que se trata da construção de
um mundo paralelo de sinais que se constrói sobre a realidade, como aponta para o
fato de que essa construção é social e histórica (PESAVENTO, 2003, p. 43).

O Sabá representava o culto a um mundo invertido. Danças com passos para trás,
mulheres agarrando-se às costas de homens, corpos para frente enquanto as cabeças viravam
para o lado oposto, pés para o ar, pessoas que andam como caranguejos (CLARK, 2006). O
balé diabólico causava muito mais fadiga que as danças comuns e provocava o vício nas bruxas.
Não se buscava entreter as partes, mas empreender uma festa frenética, desordenada e
mecânica. A dança diabólica era, então, imposta aos bruxos que compareciam aos sabbats.
Exemplo disso é o testemunho de Barbelina Rayel, interrogada em Blainville (1587), que
relatou o fato de nenhum bruxo ser dispensado do ritual dançante, mesmo que alegasse velhice
ou doença como fato incapacitante, sendo o participante espancado com socos e chutes
imediatamente após sua recusa (RÉMY, 1930).

O próprio ato de montar nas costas de alguém tem referências históricas nos festivais
de bobos realizados durante o século XVI onde a prática de cavalgar outra pessoa era uma
tentativa de ridicularizar o momento. Não nos surpreende, portanto, que a iconografia dos
chamados voos noturnos, possivelmente feita para escarnecer a imagem da bruxa, sempre
retratasse as bruxas montadas em varas ou animais. Portanto, somos levados a pensar que o
sabá e os festivais satíricos foram a representação da relação entre o festivo e o demoníaco, na
qual o primeiro foi condenado pela Igreja por sua conotação diabólica, enquanto o segundo teve
amplo apoio social.

As chamadas parodiae sacrae35, inclusive, aconteciam em frente às catedrais e seus


atores “[...] entoavam liturgias sem significado, cantavam em tons dissonantes, tangiam sinos
para simbolizar a loucura, zurravam e uivavam como jumentos, faziam gestos indecentes e
contorções [...]” (CLARK, 2006, p. 45). Contudo, há de se ter cautela ao afirmar a estreita
relação entre esses dois espaços, pois a evidência histórica é limitada: o que sabemos sobre as

35
As parodia sacrae foram partes de festivais satíricos realizados na Europa Moderna onde se parodiava os ritos
cristãos. Nesses momentos, os participantes “[...] gozavam o sermão com imitações insensatas, parodiavam a missa
solene com inversões de lugar, título, papel e hábitos, e negavam a santidade dos lugares sagrados jogando dados,
praticando correrias, festanças e mesmo a nudez [...]” (CLARK, 2006, p. 45).
46

bruxas festivas é produto de confissões constantemente forçadas e qualquer característica


integradora ou inovadora deve ser posta à dúvida (CLARK, 2006).

O voo noturno citado em linhas anteriores era o procedimento que antecedia o sabá.
Componente do conjunto de práticas da bruxaria, voar para as assembleias noturnas significava
transpor longas distâncias, impossíveis em sua rapidez sem a ajuda do Diabo, sem, contudo,
levantar suspeitas ou ter a ausência detectada. Mas seria esta prática exclusiva das bruxas
processadas nos séculos XVI e XVII?

Prática recorrente nos relatos de bruxas sobre o sabá, o voo noturno teve origens,
personagens e significados heterogêneos ao longo do tempo e não foi prática exclusiva do
imaginário da bruxaria. O rito de voar ao sabá representava não somente uma missão
ritualística, mas carregava o rico imaginário das metamorfoses animalescas presentes em várias
crenças desde a antiguidade. Baseado nisso, citamos que:

As sequazes de Diana, Perchta, Holda percorriam os céus na garupa de bestas que não
foram identificadas com precisão; os benandanti, durantes suas catalepsias, faziam
sair do corpo exânime o espírito, sob a forma de rato ou de borboleta; os táltos
assumiam as aparências de garanhões ou touros; os lobisomens, de lobos; bruxas e
feiticeiros dirigiam-se ao sabá trepados na garupa de bodes ou transformados em
gatos, lobos, lebres; os participantes dos ritos das calendas se mascaravam de cervos
ou bezerras; os xamãs vestiam-se de plumas a fim de preparar-se para suas viagens
extáticas; o herói das fábulas de magia dirigia-se, em cavalgaduras de todos os tipos,
rumo a reinos misteriosos e remotos – ou simplesmente, como em certo conto
siberiano, montava num tronco abatido e transformava-se em urso, entrando no
mundo dos mortos.” (GINZBURG, 2012, p. 287).

FIGURA 4 – O VOO NOTURNO, ARTE DE FRANCISCO GOYA (1799).

Fonte: <https://www.nettlesgarden.com/wp-content/uploads/2018/05/goya-sabbath-witches-broom-flying.jpg>.
Acesso em: 15 nov, 2018.
47

Levack (1988) nos fornece, duas informações que interessam sobre as origens desse
ato: primeiro, e remontando à era clássica, as entidades maléficas, metamórficas (pois podiam
se transformar em corujas) chamadas strigae já aterrorizavam as comunidades germânicas
quando voavam durante a noite para arrancar as crianças de suas camas e devorá-las; segundo,
se acreditava que “[...] mulheres saíam em incursões noturnas, às vezes chamadas de caçadas
selvagens, com Diana, deusa romana da fertilidade [...] e que muitas vezes era identificada
como Hécate, deusa dos infernos e da magia [...]” (LEVACK, 1988, p. 42).

A transformação no significado do voo das strigae e das caçadas de Diana vem logo
após o século XIV, quando a Igreja classifica os deuses pagãos como demônios e aumenta o
complexo de características necessárias à detecção da bruxaria e heresia. Desse modo, até
pessoas comuns que simplesmente acreditavam nos voos noturnos poderiam ser indiciados
como hereges, pois cometeriam o crime de acreditar em superstições pagãs (LEVACK, 1988).

A demonologia nos fornece, então, as características e os exemplos desse voo noturno


ao longo do século XVI: era comum nos relatos de bruxaria, por exemplo, mulheres
confessarem ter lançado um encanto em seus maridos para que estes caíssem em sono profundo,
bem como era possível também disporem um manequim ou objeto parecido com contornos
femininos ao lado de seus companheiros com o intuito de enganá-los caso acordassem.

Bertrand Barbier, por exemplo, admitiu ter feito esse ato várias vezes: primeiro,
besuntava os dedos com o mesmo unguento mágico que usava quando queria ser transportada
ao sabá, depois torcia a orelha do marido usando os dedos ensebados; outra mulher apenas
conhecida como Eller, esposa de um oficial da cidade de Ottingen, na Alemanha, confessou ter
utilizado um travesseiro de criança em seu lugar, depois de invocar o nome de seu demônio
familiar; uma mulher apenas chamada de Maria, esposa de Schneider de Metzerech, pôs um
feixe de palha envolto com sua gordura diabólica ao lado do marido; Catharina Ruffa confessou
ter seu demônio tomado seu lugar na cama enquanto ela estava no sabá (REMY, 1930).

FIGURA 5 – “AS BRUXAS” DE HANS BALDUNG.


48

Representação das bruxas preparando os unguentos mágicos, praticando o voo noturno montadas em
animais e expondo as comidas podres do sabá.
Fonte: <https://www.metmuseum.org/art/collection/search/336235>. Acesso em 15 nov, 2018

O voo em si não era prazeroso para as bruxas. A própria Catharina Ruffa citada no
parágrafo anterior relatou, em Villesur-Moselle (1587), que após essas viagens noturnas sempre
ficava exausta e precisava de três dias descansando, deitada, para que enfim pudesse ficar de
pé (RÉMY, 1930).

O voo também poderia ser uma demonstração de poder conjunto das bruxas e do
Diabo, uma vez que enquanto voavam poderiam infligir malefícios a pessoas ou edificações.
Exemplo disso é o caso de Sebastiana Picarda, ouvida em Gironcourt (1586), que confessou de
certa feita estar voando numa nuvem com o demônio com o intuito de destruir completamente
um castelo nos arredores, porém seus poderes não foram o suficiente para tanto, embora tenham
conseguido causar dano considerável ao prédio (RÉMY, 1930).

O outro lado desse transporte e consequente ausência noturna é a justificativa do


sonho. Rémy nos conta, por exemplo, sobre vários relatos coletados por Jean Bodin36, que
colocam a bruxa como simples produto de delírios oníricos. Essas mulheres estavam durante

36
Jurista francês (1530-1596) e escritor do clássico manual de demonologia intitulado De la démonomanie des
sorciers, citado no primeiro capítulo.
49

toda a noite na cama, mas no dia seguinte contaram detalhes sobre o sabbat: algumas eram
vigiadas pelos maridos e parentes enquanto dormiam e manifestavam extrema inquietação,
como se tivessem sentindo terríveis dores; outras incorporavam cavaleiros montando em
cadeiras ou outros objetos e prosseguiam o sonambulismo com movimentos que lembravam o
ato de cavalgar.

Depois de acordarem, as mulheres demonstravam sinais de fraqueza como se tivessem


andado ou corrido diversos quilômetros na noite anterior e ainda davam detalhes dos lugares
que tinham percorrido, ficando até irritadas com a incredulidade de quem elas contavam tais
histórias (RÉMY, 1930). Portanto, agora sabendo da forma dos devaneios femininos, nossa
curiosidade histórica nos leva a pensar no estágio subsequente ao voo: qual a conduta dessas
mulheres quando chegavam ao sabá? Como de fato a assembleia noturna acontecia? Quando
acontecia?

Quatro bruxas interrogadas em quatro lugares distintos e em quatro anos diferentes


relataram a mesma história. Colette Fischer, em Gerbéviller (1585), Margareta Warina, em
Roncy (1586), Nicole Ganette, em Masevaux (1587) e Claude Morèle, em Serre (1586),
contaram que os sabbats sempre aconteciam nas noites de quarta-feira e sábado (REMY, 1930).

Sobre à hora em que aconteciam os sabás, de acordo com Rémy (1930), não havia
evidência suficiente para responder à questão. Porém, em dois casos que o magistrado arguiu
os acusados de bruxaria, sendo eles Jean de Ville, em Luvigny, no ano 1590, e Agathe Taileur,
em Pittelange, no mesmo ano, ambos disseram que as duas horas que antecediam a meia noite
eram as mais “adequadas e oportunas” para as cerimônias acontecerem.

As mulheres que participavam das assembleias noturnas eram a maioria esmagadora.


Não é novo na historiografia saber que o sexo feminino desde o começo da grande caça às
bruxas da Idade Moderna foi o alvo preferido dos magistrados. A justificativa demonológica
para isso tem seu corpo bem delimitado por Kramer e Sprenger no chamado Malleus
Maleficarum: o feminino é mais susceptível que o masculino às artes diabólicas.

Em números, chegavam a não menos de 500 por reunião, se tomarmos como exemplo
a confissão de Catharina Ruffa, ouvida em Villesur-Moselle, em 1587; bem como de Barbeline
Rayel, outra acusada de bruxaria, interrogada em Blainville no mesmo ano. Ambas corroboram
com a tese demonológica e nos contam que o número de mulheres excedia em muito o de
homens, pois para o Diabo era mais fácil enganá-las (RÉMY, 1930). Em tempo, acrescente-se
a este imaginário um detalhe concreto: a manifestação coletiva antifeminino do final do século
50

XVI e início do século XVII, onde o discurso dos teólogos, bem como a ciência médica e a
autoridade dos juristas contribuíram para a formação de um estereótipo de culpa da mulher
(DELUMEAU, 2009).

A comida que era servida nos sabbats era sem gosto e vil. Não possuía a função de
satisfazer os que dela usufruíam, mas sim celebrar o inverso. A carne oferecida nas mesas era
humana, assim como poderia ser de animais mortos, possivelmente já em estado de
decomposição, o que, não raro, provocava náuseas em quem provasse. Dito isso, é curioso o
testemunho de Nicolas Morèle, ouvido em Serre (1587), quando o mesmo relata que o vinho
era servido em pequenos copos e mais parecia um coágulo de sangue negro, enquanto a comida
servida no sabá era tão ruim e amarga que uma vez ele teve de cuspir, fato que irritou um
demônio que acompanhava a festa profana (RÉMY, 1930).

O banquete do sabá era, em parte, a representação social do interior da bruxaria. Já o


Sabá em si teve a conotação própria do período em que apareceu. Os conflitos sociais eram
transpostos do cotidiano específico dos séculos XVI e XVII, pois “[...] na representação social,
assim com o na sua construção pelos historiadores, o tempo é fator de novidade, criador de
surpresas. Ele é dotado de movimento e tem um sentido.” (PROST, 2008, p. 105), ou seja, as
práticas sabáticas já existiam em outras culturas, como bem analisou Ginzburg em seu História
Noturna, no entanto, o Sabá, enquanto ritual complexo e compilador de múltiplas nuances e
espaços que interagiam entre si e aconteciam no mesmo momento, foi representação da Idade
Moderna em particular.

Queremos com isso dizer que mesmo em tal cerimônia que festejava um mundo
antagônico do real, a classe subalterna era tratada com diferença da elite em um momento
exclusivo da assembleia. As bruxas mais ricas sentavam em cima das mesas do banquete
possivelmente para mostrar que essa posição distinta as deixava mais próximas tanto da comida
quanto de Satã. Entretanto, em todas as outras partes da farra diabólica elas eram parceiras
iguais e participantes de todos os ritos secretos ao mundo exterior (REMY, 1930).

O intercurso ritual entre bruxas e Satã era o ápice do estreitamento das relações entre
ambos. A união através do coito selava definitivamente o pacto demoníaco. No entanto, as
bruxas não experimentavam prazer na relação sexual: era comum as queixas sobre a conduta
erótica e sobre a dor causada pela penetração. O ato em si era mecânico e funcionava como
requisito à iniciação demoníaca. Depois da agonia sexual, Satã então as recompensava com
51

moedas de ouro que logo depois se revelavam falsas ou se transformavam em lama e


excremento, fazendo jus à alcunha de “pai da mentira” (SALLMANN, 2002).

A questão da recompensa diabólica pós-relação é a representação do poder ludibriante


de Satã. Em nenhuma forma o “grande enganador” tornaria homem ou mulher ricos, pois ele
não tem este dom. O Diabo é capaz de criar uma ilusão de riqueza tão somente. Relato que
exemplifica nossa afirmação é o caso de uma mulher chamada Sennel de Armentières, datado
de 1586, em Dieuze, uma comuna do Nordeste francês, em que ela falou ter recebido um
presente em dinheiro do Diabo. Eufórica, correu para casa para contar o montante diabólico que
tinha recebido. Ao chegar lá, depois de sacudir sua bolsa de moedas, percebeu que lá estavam
apenas pedaços de tijolo de carvão (RÉMY, 1930).

A diversidade de recompensas falsas ainda são registradas em vários lugares durante


o século XVI: Catharine de Metingow, também proveniente de Dieuze (1586) encontrou
estrume de porco na bolsa; Claude Morèle, em Serre (1586), assim como Benôit Drigie em
Haraucourt (1585) e Dominique Pétrone em Pagny (1586) encontraram todas a mesma coisa:
folhas de árvores; Jeanne le Ban (1585), em Masevaux, por sua vez encontrou uma moeda de
ouro enrolada num papel assim como o Diabo teria previamente lhe dito, mas quando já em
casa ela mostrou a moeda para seu marido, o objeto era uma pedra de coloração enferrujada
que se transformou em pó no primeiro toque (RÉMY, 1930).

As orgias que aconteciam nos sabás nem de longe podem ser tratadas como meros
componentes de um imaginário profano. Se entendermos que “[...] o imaginário faz parte de
um campo de representação e, como expressão do pensamento, se manifesta por imagens e
discursos que pretendem dar uma definição da realidade [...]” (PESAVENTO, 1995, p. 15), é
relevante dizer que verídico ou não, o sexo ritual representava uma contestação à sociedade
moderna que não tinha se desprendido do controle comportamental que a medievalidade cristã
impôs.

Desse modo, podemos nos indagar: procuravam no sabá, então, as bruxas viúvas o
prazer que nunca tinham experimentado na vida de casadas? E as bruxas jovens, buscavam
estas nos sabás a libertação de um gozo reprimido desde a descoberta do corpo? Talvez nunca
saibamos estas respostas. Todavia, sabemos que a orgia sabática enfrentou a oposição da Igreja
principalmente porque “[...] se fundava num caráter profano do Mal, que era a atividade sexual
fora do casamento [...]” (BATAILLE, 1987, p. 117). Sobre a objeção social que o sabá
representava, Georges Bataille (1987, p. 118-119) nos aponta que:
52

Imaginários ou não, os sabás respondem, aliás, a uma forma que se impôs de alguma
maneira à imaginação cristã. [...] O interdito, no mundo cristão, foi absoluto. A
transgressão teria revelado o que o cristianismo encobriu: que o sagrado e o interdito
se misturavam, que o acesso ao sagrado se faz através da violência de uma infração.
[...], mas o fato de estar no Mal e de ser livre, de estar livremente no Mal (uma vez
que o mundo profano foge às restrições do sagrado), não foi somente a condenação,
mas a recompensa do culpado. O gozo excessivo do licencioso responde ao horror do
fiel. Para o fiel, a licenciosidade condenava o licencioso, demonstrava a sua corrupção
[...] o Mal e Satã foram para o pecador objetos de adoração [...] A volúpia penetrou
no Mal. Ela era, em essência, transgressão, superação do horror, e quanto maior o
horror, maior era a alegria. Imaginárias ou não, as récitas do Sabá têm um sentido: é
o sonho de uma alegria monstruosa (1987, p. 118-119).

Os demônios “[...] participavam dessas folias eróticas como parceiros femininos


(súcubos) ou parceiros masculinos (íncubos) [...]” (SALLMANN, 2002, p. 54).

O imaginário tinha total influência na narrativa dos casos de proximidade sexual com
o Diabo. As feiticeiras pareciam ser meros fantoches, enquanto ficavam à mercê do poder
diabólico, pois “[...] sob o império de uma ilusão produzida pelo Demônio, imaginam assistir
aos jogos, danças, festins e sabats noturnos, e ter com o Demônio um comércio carnal, sem
estar na realidade presentes ou agitando os corpos [...]” (SINISTRARI, 1969, p. 34).

Dessa forma, os juízes que presidiam os interrogatórios das acusadas de bruxaria


tinham como norte do processo inquisitorial uma única confissão: o coito, a chamada a orgia
sabática, pois não existe bruxaria demoníaca sem participação no sabá (SALLMANN, 2002).

Tais confissões não podem ser taxadas de totalmente falsas ou inventadas. Levando
em consideração que “[...] o imaginário, enquanto sistema de idéias-imagens de representações
coletivas, é o “outro lado” do real [...]” (PESAVENTO, 1995, p. 19), o coito poderia ser visto
pela bruxa como vontade intrínseca e escondida nela própria, ou seja, não poderia este ser um
sentimento real que se escondia atrás de uma sexualidade reprimida?

O conjunto de práticas da bruxaria, e não só uma característica isolada, favoreceu sua


classificação como sacrilégio supremo. Quanto a isso, no fim do século XVII, defendia
Sinistrari (1969, p. 97) que:

[...] a relação entre feiticeiras e demônios, pelas circunstâncias que as acompanham:


apostasia da fé, culto ao Diabo e tantas outras impiedades [...] é o maior de todos os
pecados que tenha sido dado ao homem cometer; e se considera a enormidade deste
atentado contra a Religião, que pressupõe o coito com o Diabo, seguramente a
demonialidade é o maior de todos os crimes da carne [...].

FIGURA 6 – BRUXOS RENEGANDO SUA ANTIGA FÉ (APOSTASIA)


53

Imagem presente no Compendium Malleficarum.


Fonte: <http://gregladen.com/blog/2017/10/08/how-many-people-were-killed-as-witches-in-europe-from-1200-
to-the-present/athe-devil-and-witches-trampling-a-cross-from-compendium-maleficarum-
1608_greg_laden_blog/>. Acesso em: 15 nov, 2018.

De todos os atos do sabá, talvez um se destaque devido seu significado de extrema


submissão: o osculum infame. Nomeado pela demonologia como beijo de homenagem, essa
prática dos bruxos consistia em: primeiro, ajoelhar e abraçar na altura da cintura o demônio que
exercia a função de chefe da cerimônia; segundo, estando o demônio não satisfeito com o
abraço, as bruxas eram forçadas a beijar o ânus do Diabo que agora estava transformado em
bode e emitindo extremo mal cheiro. Jeanne Gransaint, ouvida em Condé-sur-Meuse (1582),
descreveu o aspecto do Diabo como sendo uma criatura enorme expirando fogo e fumaça com
o intuito de amedrontar seus comandados (RÉMY, 1930).

FIGURA 7 – BRUXAS REALIZANDO A PRÁTICA DO OSCULUM INFAME, O


BEIJO ANAL.

Imagem presente no Compendium Malleficarum.


Fonte:<https://aminoapps.com/c/thewitchescircle/page/blog/malleus-maleficarum-hammer-of-
witches/kYaj_zRfGugjBbVlWKxG6NbBNBRGgWYDaG>. Acesso em: 15 nov, 2018.
54

O sabá, mais do que um culto com características condenáveis à moral cristã da época,
foi a significação de tensões sociais gestadas há dois séculos do recorte temporal desta pesquisa.
A aversão das elites europeias aos “indesejáveis” da sociedade influenciou a construção do
imaginário sabático e consequente criação de uma nova classe de perseguidos: as bruxas. Estas
são os novos leprosos e novos judeus. Reformuladas, renomeadas, reimaginadas e pioradas.
Dito isso, complementamos dizendo que:

A emergência do sabá pressupõe a crise da sociedade europeia no


século XIV e as carestias, a peste, a segregação ou expulsão dos grupos
marginais que a acompanharam [...] a área em que se verificaram os
primeiros processos centrados no sabá coincide com aquela em que
foram construídas as provas do suposto complô judaico de 1348, por
sua vez modelado na presumível conspiração engendrada por leprosos
e judeus em 1321. (GINZBURG, 2012, p. 103).
Em síntese, o sabá foi a manifestação/representação do espaço festivo da bruxaria.
Representação principalmente de uma libertinagem não gozada no âmbito cotidiano, a
imaginação do sabbat foi representação de uma vontade escondida ou ausente e que, através
das confissões, se externou (CHARTIER, 1990).

Um ritual que mesclava a ilusão diabólica, através da mesa farta com alimentos
pútridos e os cálices de sangue escuro, com a histeria que tomava conta das bruxas e subvertia
sua condição real nas comunidades, enquanto mulheres que dificilmente gozavam de
entretenimento social. Nas próximas linhas analisaremos como o pacto, não raro parte do sabá,
porém também feito fora dessa esfera, ajudou no aumento do espectro criminal da bruxaria
entre os séculos XVI e XVII.

3.3. SUBMISSÃO E INTERESSE: O PACTO DIABÓLICO


O pacto surge como fator de demonização da feitiçaria, tornando-a em bruxaria
diabólica. Vendo pelo outro lado do prisma de análise, Russell nos fala que o trato diabólico
ajudou a diferenciar a bruxaria da possessão, pois “[...] o Diabo pode possuir uma pessoa contra
a vontade dela, mas o pacto, pelo contrário, é sempre voluntário [...]”. Feiticeiro ou bruxo,
ambos servem a Satã por livre e espontânea iniciativa (RUSSELL, 2008, p. 62).

O pacto diabólico pode ser entendido como uma substituição de poder. Um artifício,
um atalho para se conseguir algo de forma sobrenatural. Logo, não podemos esquecer também
do significado dessa substituição de poder: se cristão for, temos Deus, enquanto providente dos
desejos humanos, sendo substituído pelo Diabo que é neste momento o benfeitor dos anseios
das pessoas. Mesmo como temporário, se soubermos que vários pactuantes se arrependeram e
55

voltaram para Deus (ver a lenda de Teófilo nas próximas linhas deste tópico), o Diabo passa a
ser um intermediário da ligação entre o requerente do pacto e o produto do desejo.

Paul Carus nos conta a história de Teófilo, clérigo que viveu em Adana, antiga cidade
da Cilícia, que é tida por vários autores como o mais antigo relato sobre pacto diabólico. A
primeira versão foi contada por Eutychianus de Adana, clérigo que viveu durante o século VI,
que declarou ter visto a trama se desenrolar a frente de seus olhos. A lenda diz o seguinte:
depois de o bispo local falecer, Teófilo foi eleito de forma unânime pelos clérigos e leigos da
comunidade. Mas Teófilo, numa atitude modesta, recusa o posto. Logo após a recusa, o bispo
que sucede o clérigo morto priva Teófilo do acesso à administração da paróquia. Entristecido,
Teófilo sucumbe à sedução diabólica, num primeiro momento buscando a ajuda mística de um
feiticeiro que logo o leva ao segundo estágio profano: o pacto diabólico, em que Teófilo
renuncia a Deus e a Virgem Maria.

Logo sua posição na administração da paróquia é restabelecida. O Diabo cumpre a


promessa e demonstra assim seu poder até dentro da Igreja. Todavia, Teófilo fica pesaroso com
a decisão de se aliar ao inimigo da cristandade e se arrepende do pacto. Reza à Virgem Maria
por perdão da sua falta. Depois de setenta dias de jejum e oração, adquire assim sua absolvição
por intermédio da Virgem Sagrada, esta ainda castiga Satã e faz com ele revogue o “documento”
que atestava o pacto. Teófilo, depois de relatar seu testemunho perante a paróquia, doa todos
os seus bens entre os pobres de sua comunidade e morre pacificamente, salvo enfim (CARUS,
1900, p. 416-417).

Já Julio Caro Baroja, através de uma análise da obra poética de Gonzalo de Berceo 37,
analisa de outra forma o exemplo de Teófilo, com maior riqueza de detalhes, e mostrando um
homem preocupado com sua posição e reputação fazendo um pacto de encruzilhada com o
Diabo por intermédio de um feiticeiro. Teófilo, quando no entroncamento, avista um grupo
carregando velas e liderados por uma figura central. Após ter garantida sua aproximação com
o regente do grupo, Teófilo assina finalmente o pacto e, “antes do galo cantar, está de volta à
sua residência, sem ninguém dar por sua falta. O consequente arrependimento nós já sabemos,
porém nos falta analisar as circunstâncias do trato descrito por Carus e Baroja.

Baroja, influenciado pela poesia de Berceo, e fazendo uma análise do cenário do pacto
de Teófilo, nos diz que:

37
Poeta que viveu entre os séculos XII e XIII na Espanha e escreveu a obra Milagros de Nuestra Señora, na qual
cita a história do clérigo Teófilo
56

[...] a corte do regente é a uest antigua (o antigo anfitrião), que hospeda as almas
malditas. Até certo ponto, o grupo é semelhante ao tribunal de um rei terreno, e o
Diabo oferece aos seus seguidores exatamente o que os reis oferecem aos seus
vassalos: ajuda e proteção em troca da submissão completa. Além disso, o pacto com
o Diabo é muito semelhante aos tratados que determinam a relação entre governantes
e sujeitos na vida civil. É particularmente semelhante ao pacto feito por um vassalo
quando se "desnaturaliza", isto é, quando se considera fora da soberania de seu
legítimo governante, como acontecia com frequência na Idade Média, quando pactos
de fraternidade eram também juramentados entre guerreiros e outras alianças
comparáveis foram feitas (2001, p. 74, tradução nossa) 38.

Já quando Nicholas Rémy, magistrado francês e reconhecido caçador de bruxas,


escreveu em 1597 sua mais famosa obra chamada Demonolatria, lançou as bases para uma
sistematização especial do pacto diabólico, que depois será ampliada por Guazzo no século
XVII, ao defender que para os demônios um pacto simples não é suficiente: mas estes precisam
marcar o corpo de seus serviçais com suas garras, pois assim seriam testemunhas duradouras
da servidão que os maléficos lhes impunham, bem como em qual parte essa marca é feita, e
sobre como esse sinal é totalmente insensível e indolor. Entretanto, a marca do Diabo ou
stigmata diaboli era a nova representação de uma perseguição social há muito instituída,
especificamente no século XIV, influenciada pela formação de um estereótipo hostil. Sobre
isso, Carlo Ginzburg nos diz que:

De maneira análoga aos leprosos e judeus, os bruxos e as feiticeiras situam-se nas


margens da comunidade; sua conspiração é, uma vez mais, inspirada num inimigo
externo – o inimigo por excelência, o Diabo. Enfim, os inquisidores e os juízes laicos
procuraram nos corpos dos feiticeiros e das bruxas a prova física do pacto estipulado
com o Diabo: o estigma que leprosos e judeus levavam costurado nas roupas.” (2012,
p. 91)

Para Remy, os seguidores do Diabo são escravos. São marcados como cativos de um
senhor para que, em caso de fuga, fossem rapidamente identificados (1930, p. 9). Contudo,
embora suspeitemos que seja tarefa difícil fugir de Satã, o fato da marca diabólica surge mais
como um fator de submissão, de posse, de proteção, que de perseguição em si. Sobre essa
cicatriz, o historiador francês Jean-Michel Sallmann (2002, p. 65) nos fala que:

A marca do Diabo podia estar impressa em qualquer parte do corpo. Depois de fixada,
permanecia insensível e não sangrava. Para facilitar a busca, todos os pêlos dos
acusados eram previamente raspados. Essa operação era destinada principalmente a
fazer desaparecer os amuletos protetores que os bruxos talvez usassem, dissimulados
nos pêlos. Depois disso, eram picados com agulhas e lancetas até se descobrir um
local em que o paciente não reagisse mais. Aí estaria a marca.

38
No original: [...] the ruler’s court is the uest antigua (the old host), that is the host of damned souls. Up to a point
the group is similar to the court of an earthly king, and the Devil offers his followers precisely what kings offer
their vassals: help and protection in return for complete submission. Furthermore, the pact with the Devil is very
similar to the treaties which determine the relationship between rulers and subjects in civil life. It is particularly
similar to the pact made by a vassal when he ‘denaturalises’ himself, that is to say when he considers himself
outside the sovereignty of his rightful ruler, as frequently happened in the Middle Ages, when pacts of brotherhood
were also sworn between warriors, and other comparable alliances were made.
57

Como exemplo dessa busca pela marca diabólica podemos citar o famoso caso da
possessão das freiras de Loudun, em 1634, onde Urbain Grandier, sacerdote católico francês,
acusado de feitiçaria e queimado vivo como punição por esse crime, foi examinado com o
intuito de reconhecer em seu corpo a dita marca do Diabo. Duas cicatrizes foram encontradas:
uma próxima à coxa, a outra próxima do ombro, as quais foram perfuradas com um alfinete de
prata com a intenção de atestar o elo diabólico. As duas foram constatadas pelos peritos da
Igreja como insensíveis e indolores, evidenciando a culpa de Grandier (RÉMY, 1930).

Porém, antes de Loudun, em 1591, a comunidade de Essey presenciou um fato de


estranha similaridade: uma mulher chamada Mugette, acusada de bruxaria, foi trazida para
interrogatório e foi identificada nela uma marca parecida com uma verruga na sua coxa
esquerda. O sargento que acompanhava a sessão espetou com força a “ferida” da bruxa, porém
esta não sentiu dor, não sangrou, muito menos esboçou qualquer sensibilidade ao contato com
o aço. Todavia, quando o sargento cravou a lâmina na pele de Mugette, numa região próxima à
marca, o sangue jorrou e a acusada gritou de dor (RÉMY, 1930).

O pacto diabólico é protegido contra rupturas. A partir do momento que a bruxa jura
fidelidade ao Diabo, a mesma assume a obrigação de proteger a integridade da aliança e até
mesmo disfarça-la. Dessa forma, a bruxa já está sob forte ameaça de sofrimento eterno caso o
pacto sofra o escrutínio dos tribunais civis. Podemos, inclusive, citar o exemplo de Margelotte
de Brinden, que foi interrogada na cidade francesa Epinal em 1588, e confessou detalhes da
relação que mantinha com o Senhor das Trevas, não sem manifestar grande angústia após o
inquérito, pois agora acreditava que sofreria punição tendo seu corpo queimado eternamente
(RÉMY, 1930).

O período pós-interrogatório também nos interessa: o Diabo segue as bruxas até o


cárcere. Essa ação nos sugere uma conduta assistencialista por parte de Satã, já que a prisão
provoca nas bruxas grande temor, principalmente nos momentos de tortura e medo da iminente
sentença de morte.

Exemplo disso encontramos no caso de Quirina Xallaea, mulher presa por bruxaria
num vilarejo francês da Normandia chamado Blainville, no ano 1587, e que relatou ter o
demônio lhe visitado e avisado sobre as torturas que a aguardavam, muito embora lhe
tranquilizasse ao dizer que sempre estaria com ela se a bruxa aguentasse os tormentos em
silêncio, silêncio aqui entendido como discrição e ocultação dos detalhes do pacto satânico. E
58

é ainda curioso notar a forma que o Diabo se apresenta nesse caso: escondido no cabelo de
Quirina, o que denota proximidade e controle intenso sobre a bruxa (RÉMY, 1930).

A proteção do pacto inclui, em alguns casos, o ato de mascarar-se. As bruxas


protegiam assim sua identidade e, consequentemente, seu vínculo satânico. Contudo, há de se
fazer uma ressalva: geralmente as bruxas mascaradas eram ricas ou ocupavam lugares sociais
que mantinham assíduo contato com outras pessoas, tendo no seu status social um determinante
para essa artimanha. Um exemplo dessa prática foi confessado por Nicole Morèle, no vilarejo
italiano Serre, no ano 1587, quando a acusada de bruxaria detalhou ter a máscara desde tenra
idade, tendo sido presente de sua madrasta que adaptou o acessório para que nela assentasse e
pudessem assim frequentar as assembleias demoníacas (RÉMY, 1930).

Em tempo, é preciso que sustentemos o pacto diabólico mais como uma superestrutura
ritualística do que um simples acordo de fidelidade e ajuda mútua. Primeiro, o pacto acontece
por etapas de aproximação das partes, feiticeiro e demônio. Posteriormente, ocorre a
consumação dessa aliança, geralmente por abjuração da fé e sujeição sexual.

Francesco Maria Guazzo, demonólogo italiano que viveu no século XVII, é quem nos
apresenta uma das mais completas definições do pacto, enumerando onze estágios desse
conchavo que se inicia com:

Primeiro, eles negam a fé cristã e retiram a fidelidade de Deus. Eles repudiam a


proteção da Santíssima Virgem Maria, lançando os mais vis insultos sobre ela e
chamando-a de prostituta, etc. [...] São Hipólito, o Mártir, escreve que o Diabo os
obriga a dizer: "Eu nego o Criador do Céu e terra. Eu nego meu Batismo. Eu nego o
culto que anteriormente paguei a Deus. Eu me prendo a ti, e em ti eu acredito. " O
diabo então coloca a garra sobre suas testas, como um sinal de anulação da Santa
Crisma e destrói a marca de seus batismos (1988, p. 13, tradução nossa) 39.

Depois da apostasia da fé, o Diabo imita o rito do batismo cristão: derrama água sobre
a testa dos feiticeiros, agindo de forma zombadora com o sacramento da Igreja (GUAZZO,
1988).

FIGURA 8 – O BATISMO DIABÓLICO.

39
No original: [...] First they deny the Christian faith and withdraw their allegiance from God. They repudiate the
protection of the Blessed Virgin Mary, heaping the vilest insults upon her and calling her Harlot, etc. [...] St.
Hippolytus, the Martyr, writes that the Devil compels them to say: “I deny the Creator of Heaven and Earth. I deny
my Baptism. I deny the worship I formerly paid to God. I cleave to thee, and in thee I believe.” The devil then
places his claw upon their brow, as a sign that he rubs off the Holy Chrism and destroys the mark of their Baptism.
59

Imagem presente no Compendium Maleficarum.


Fonte: <https://renaissancewitches.weebly.com/sources.html>. Acesso em: 15 de nov, 2018.

No terceiro estágio, num esforço para renegar a vida pregressa de seus devotos, o
Diabo complementa o batismo dos feiticeiros: lhes é dado um novo nome, pois nenhum
resquício que represente o acordo anterior feito com a Igreja deve permanecer (GUAZZO,
1988).

No quarto estágio, o Diabo torna o pacto mais detalhado no que toca à negação dos
sacramentos: obriga seus adeptos a negarem seus padrinhos e madrinhas, tanto de batismo como
de confirmação, e ele próprio designa novos padrinhos para os feiticeiros (GUAZZO, 1988).

No quinto estágio, o Diabo demanda que seus sequazes providenciem um pedaço de


suas roupas. Particular e intrigante, o inimigo da cristandade anseia, metaforicamente, tornar os
feiticeiros parte de si: de seus bens espirituais ele toma a fé e o batismo; de seus bens corporais
ele exige o sangue; de seus bens naturais (familiares) ele se apodera dos filhos; de seus bens
materiais ele confisca as vestes (GUAZZO, 1988).
60

FIGURA 9 – O CONFISCO DAS VESTES DAS BRUXAS.

Imagem presente no Compendium Maleficarum.


Fonte:<https://www.alamy.com/witchcraft-activities-from-the-1608-eition-of-guazzos-compendium-
maleficarum-witches-offering-their-clothes-to-devil-witches-poisoning-sleeping-woman-witches-in-magic-
circle-witches-turned-into-various-animals-image179623155.html>. Acesso em: 15 nov, 2018.

No sexto estágio, os feiticeiros juram fidelidade ao diabo dentro de um círculo


desenhado no chão. Guazzo acredita que o ritual se dê desta forma pois o círculo é um símbolo
de divindade e a terra é o assento de Deus (GUAZZO, 1988).

FIGURA 10 – O JURAMENTO DO CÍRCULO NO CHÃO.

Imagem presente no compendium maleficarum.


Fonte: <https://bibliophilie.blogspot.com/2007/08/un-livre-lhonneur-le-compendium.html>. Acesso em: 15 nov,
2018.
61

No sétimo estágio, os feiticeiros rezam para que o Diabo os exclua do livro da vida e
os registre no livro da morte, pois assim eles querem ser lembrados: com seus nomes escritos
num livro negro igualmente às bruxas de Avignon (GUAZZO, 1988)

FIGURA 11 – OS NOVOS REGISTROS DOS NOMES DAS BRUXAS.

Imagem presente no compendium maleficarum.


Fonte: <https://renaissancewitches.weebly.com/sources.html>. Acesso em 15 de novembro, 20:30.

No oitavo estágio, e aqui percebemos uma reviravolta violenta no pacto demoníaco,


os feiticeiros prometem fazer sacrifícios em nome do Diabo, estrangulando ou sufocando uma
criança por mês ou a cada duas semanas (GUAZZO, 1988)

FIGURA 12 – BRUXOS CUMPRINDO A PROMESSA DO INFANTICÍDIO.

Imagem presente no Compendium Maleficarum.


Fonte: <https://bibliophilie.blogspot.com/2007/08/un-livre-lhonneur-le-compendium.html>. Acesso em: 15 nov,
2018.
62

No nono estágio, os feiticeiros são ameaçados pelo Diabo: ele ordena que seus
seguidores presenteiem os demônios que são seus mestres, para que assim evitem ser comidos
por eles ou para isentar os feiticeiros de desavenças com seus fiscais diabólicos (GUAZZO,
1988)

No décimo estágio, o Diabo marca seus feiticeiros como se assim fossem seus
escravos. Guazzo nos conta que:

[...] ele coloca sua marca em alguma parte ou outra de seus corpos, como escravos
fugitivos são marcados; e essa marca às vezes é indolor e às vezes dolorosa. [...] ele
não marca, no entanto, todos eles, mas apenas aqueles que ele acha que serão
inconstantes. E a marca nem sempre é da mesma forma; pois às vezes é como a pegada
de uma lebre, às vezes como a de um sapo, uma aranha, um cachorro ou um arganaz.
Ele também não os marca sempre no mesmo lugar: pois nos homens geralmente a
marca é encontrada nas pálpebras, na axila ou nos lábios ou nos ombros; [...] enquanto
em mulheres encontra-se nos seios ou partes privadas. […] E assim como Deus no
Antigo Testamento marcou os seus com o sinal da circuncisão, e no Novo Testamento
com o sinal da Santa Cruz [...] o diabo, que ama imitar a Deus, desde o começo da
Igreja marcou aqueles hereges que estavam envolvidos na feitiçaria com um certo
sinal (1988, p. 15, tradução nossa) 40.

FIGURA 13 – A STIGMATA DIABOLI, A MARCA DO DIABO.

Imagem presente no Compendium Maleficarum.


Fonte: <https://renaissancewitches.weebly.com/sources.html>. Acesso em: 15 nov, 2018.

40
No original: [...] he places his mark upon some part or other of their bodies, as fugitive slaves are branded; and
this branding is sometimes painless and sometimes painful. […] he does not, however, mark them all, but only
those whom he thinks will prove inconstant. And the mark is not always of the same description; for at times it is
like the footprint of a hare, sometimes like that of a toad or a spider or a dog or a dormouse. Neither does he always
mark them upon the same place: for on men it is generally found on the eye-lids, or the arm-pit or lips or shoulder;
[…] whereas on women it is found on the breasts or private parts. […] and just as God in the Old Testament
marked His own with the sign of the circumcision, and in the New Testament with the sign of Holy Cross […] the
devil, who loves to imitate God, has from the very infancy of the Church marked those heretics who were
implicated in witchcraft with a certain sign.
63

No décimo primeiro estágio, o Diabo complementa o ritual do pacto fazendo com que
os feiticeiros professem novos votos, como:

[...] que eles nunca adorarão a Eucaristia; que eles vão afrontar tanto em palavras e
profundos insultos a Santíssima Virgem Maria e os outros Santos; que eles pisotearão,
contaminarão e quebrarão todas as relíquias e imagens dos santos; que eles se absterão
de usar o sinal da Cruz, a Água Benta, o sal e pão abençoados e outras coisas
consagradas pela Igreja; que eles nunca confessarão completamente seus pecados a
um sacerdote; que eles manterão um obstinado silêncio a respeito de sua barganha
com o diabo, e que em certos dias demarcados eles irão, se puderem, voar para o Sabá
das bruxas e zelosamente tomar parte em suas atividades; e finalmente eles vão
recrutar todas as pessoas que puderem para o serviço do diabo. E o diabo, por sua vez,
promete que sempre estará ao lado deles, que atenderá suas preces neste mundo e os
trará à felicidade após a morte (GUAZZO 1988, p. 16, tradução nossa) 41.

O pacto denota servidão, reverência e submissão como vimos nas linhas até aqui.
Porém, o acordo diabólico poderia também viabilizar vinganças pessoais ou malvadezas
aleatórias contra pessoas que desagradassem as bruxas. Entrava em cena o Diabo que age em
favor da bruxa, contrariando a errônea ideia de unilateralidade da aliança. Como exemplo,
podemos falar de Colette Fischer, acusada de bruxaria e interrogada na comuna francesa de
Gerbéviller em 1585, que confessou ter, com a ajuda do Diabo, arrancado o olho de um morador
local sem sequer levantar a mão (RÉMY, 1930).

Os casos de ajuda diabólica envolvendo as bruxas são múltiplos. As confissões nos


permitem explorar o imaginário abundante que preenche essa relação e nos revelam a total
dependência da bruxa em seu modus operandi, pois esta dificilmente praticava atos maléficos
sem assistência satânica, seja por falta de poder, seja por falta de coragem. Caso que ilustra
nossa afirmação é o de Martha Margelatia, registrado em Epinal, na França, no ano 1588, onde
a acusada de bruxaria afirma ter lançado uma nuvem de poeira fatal sobre um carpinteiro da
região, pois este a teria importunado quando amontoou uma pilha de pedaços de madeira
próxima dos seus campos. Ressalte-se aqui a presteza com que o Diabo agiu logo que foi
invocado por Martha (RÉMY, 1930).

A vingança pessoal possibilitada pelo pacto diabólico era recorrente. As bruxas não
somente utilizavam o poder que lhes era emprestado para proteção pessoal, mas para infligir
males a quem as aborrecesse mesmo que ato causador do desagrado tivesse sido impensado ou

41
No original: [...] never to adore the Eucharist; that they will both in word and deep heap continual insults and
revilings upon the Blessed Virgin Mary and the other Saints; that they will trample upon and defile and break all
the Relics and images of the Saints; that they will abstain from using the sign of the Cross, Holy Water, blessed
salt and bread and other things consecrated by the Church; that they will never make full confession of their sins
to a priest; that they will maintain an obstinate silence concerning their bargain with the devil, and that on certain
stated days they will, if they can, fly to the witches’ Sabbat and zealously take part in its activities; and finally that
they will recruit all they can into the service of the devil. And the devil in his turn promises that he will always
stand by them, that he will fulfil their prayers in this world and bring them to happiness after death.
64

banal. Caso que confirma nossa afirmação é o de Jana Armacourt, interrogada em Lauch, no
ano 1588, pois a acusada de bruxaria confessou ter roubado três feixes de milho e escondeu
estes num terreno vizinho, mas enquanto praticava seu delito foi avistada por uma mulher
chamada Alexée Cabuse que a delatou aos vizinhos.

Jana então se enche de medo, pois a pena para ladrões de colheitas em Lorena, cidade
que possivelmente exercia jurisdição sobre Lauch, era o açoite. Contudo, enquanto se
lamentava sobre o feito, seu demônio familiar se aproximou e a acalmou dizendo que nada
devia temer pois ela sempre tinha sido solícita ao Diabo, tendo provado muitas vezes seu valor
e fidelidade, e então este ajudaria Jana a conquistar sua desforra contra a denunciante. Fato
concretizado: o demônio observou Alexée enquanto tentava afugentar um animal que teria
entrado no campo de seu vizinho, voou em direção a ela provocando um forte redemoinho, ao
que a delatora foi lançada no ar e depois caiu com tamanha força que quebrou uma perna. Conta
ainda Jana que Alexée teve que ser carregada até sua casa e estava “quase morta” (REMY,
1930).

É tentador acreditar que poder seria a palavra que poderíamos usar para classificar o
principal motivo sedutor que levavam as bruxas a aceitar o vínculo satânico. As cúmplices de
Satã agora:

[...] sabiam provocar chuvas torrenciais que submergiam as culturas, o raio que
derrubava as casas e árvores, a chuva de granizo que destruía o trigo ainda verde e os
pomares [...] tornavam os animais infecundos, os homens impotentes, as mulheres
estéreis. Provocavam acidentes inexplicáveis. Com um pó feito de ossos humanos,
envenenavam os poços ou disseminavam a peste por meio de uma gordura com que
untavam as paredes e as maçanetas das portas [...] (SALLMANN, 2002, p. 54).

Todavia, se voltarmos às linhas anteriores, veremos que aqui possivelmente existiria


uma brecha na discrição que a bruxa tanto objetivava: se uma pessoa morre subitamente ou é
acometida de enfermidade inexplicável, a sociedade moderna busca explicações e, de acordo
com o caso, culpados. O medo42 do desconhecido faz aumentar a desconfiança nos vilarejos, o
que leva a uma vigília constante ou pelo menos aumentada da vida de outrem e impulsiona as
delações. Tais denúncias são motivadas pelas desavenças comunitárias e suspeitas que levam à
construção de um imaginário social que “[...] também é reestruturante em relação à sociedade
que o produz [...]” (BARROS, 2004, p. 91), isto é, o imaginário produzido pela desconfiança

42
Dentro dessa linha de raciocínio, acrescentamos que as bruxas eram “[...] antes de mais nada, consolatrices
afflictorum, vendedoras de sonhos e de ilusões de potência, de triunfo, de vitória, de vingança. E são bodes
expiatórios dos maus pensamentos de uma sociedade cheia de desejos e de medo, de vícios e de impotência. A
bruxaria triunfa quando não há esperança de outra redenção, nem social nem cultural [...]” (CARDINI, 1996, p.
15).
65

das bruxas em potencial muda os círculos de convivência, criando um ambiente hostil e


imprevisível das relações pessoais.

A mutualidade do pacto diabólico que falamos nas linhas anteriores é apresentada


também quando o Diabo decide por usar as bruxas como agentes realizadoras dos seus desejos.
Seja para matar subitamente, envenenar, enganar, Satã poderia delegar funções ao invés de ele
mesmo fazer a ação. É o que vemos nos casos de Fuxen Eugel, interrogada na comuna francesa
Bulligny, e Catharina Haffner, interrogada no vilarejo francês Vergaville, ambos os casos
datados de 1586, onde as bruxas revelaram ter invadido casas de alvos marcados pelo Diabo
com a missão de envenena-los ou asfixia-los, empurrando pedaços de carne morta, geralmente
de origem animal, na boca dos marcados, matando-os quase instantaneamente (REMY, 1930).

Em suma, o pacto diabólico legitimou a relação entre as bruxas e o Diabo. Funcionou


como um certificado de diabolismo que, frequentemente, condenava as mulheres através da
literatura demonológica, começando com o célebre Malleus Maleficarum, tendo sua expansão
com a Demonolatria, de Nicolas Rémy, e sendo sistematizado pelo Compendium de Guazzo.

No próximo capítulo tentaremos responder as questões que possivelmente tenham


surgido nestas linhas iniciais, tais como: quem eram os demônios que aliciavam as bruxas? Em
que circunstâncias tais entidades apareciam? Seriam estes exclusivos produtos do imaginário
moderno? Teriam estes demônios raízes na antiguidade?

4. ECOS DO PAGANISMO: AS REPRESENTAÇÕES DOS DEMÔNIOS LASCIVOS

A Idade Moderna trouxe consigo a crença massiva na atuação de Satã e seus demônios.
A Europa foi o cenário predileto para as tentações desse grupo que, além de desviar a conduta
social dos humanos, foi responsável pela repressão dos costumes divergentes da moral cristã.
Georges Minois, historiador francês, sobre a presença demoníaca, ressalta que:

Em muitos aspectos, do século XIV ao século XVI, a Terra não tem muito a invejar
para o inferno, o que parece ter aberto aqui uma filial. Esta se estende por toda a
Europa, onde Satanás se encontra em casa. Ele é encontrado em todos os lugares,
desde o canto mais humilde de qualquer vilarejo até a cela de Lutero. [...] A corte de
demônios íncubos e súcubos se confunde em meio aos cristãos. Em 1568, Juan Wier 43
enumera a existência de 7.405.926 demônios comuns, divididos em 111 legiões de

43
Médico, ocultista e demonólogo holandês (1515-1588).
66

6.666 demônios cada, liderados por 72 príncipes das trevas. (MINOIS, 2005, p. 257,
tradução nossa)44 .

Entre estas práticas contrárias ao cristianismo, a bruxaria teve ampla representação. O


imaginário social que fomentou a caça às bruxas na Europa era vasto em suspeitas: plantações
que não davam boas colheitas, pessoas que desapareciam misteriosamente, enfermidades que
afligiam os moradores das comunidades, animais mortos com possíveis sinais de sacrifício,
mulheres que se comportavam diferente das donas-de-casa comuns e viviam reclusas, etc.

Esta última suspeita, diferentemente dos indícios naturais, era uma cisma
comportamental e, não raro, redundava na acusação formal aos órgãos de repressão. A mulher
isolada da comunidade agora era submetida ao escrutínio das autoridades e durante seu
interrogatório ela fornecia os detalhes do modus operandi bruxo, que incluía os malefícios que
ela supostamente teria lançado à aldeia, bem como relatava com riqueza de detalhes o seu trato
com o único mentor de suas ações: Satã.

Dentre as características do pacto demoníaco que a bruxa narrava, que em si já eram


um atestado de submissão e, consequentemente, punível pela Igreja, a mulher descrevia como
era o comércio sexual que mantinha com o Diabo, sendo justamente esse o ponto de discussão
do próximo capítulo.

4.1. AS CRIATURAS DA LÚXURIA: UMA ORIGEM CLÁSSICA


Os escolásticos consolidaram a prática de sexo ritual de feiticeiros e bruxos com o
Diabo. Defendiam, inclusive, que os adoradores do diabo se misturavam entre si em delírios
orgíacos. Embora o ato profano fosse geralmente atribuído aos assaltos dos demônios chamados
de incubus “[...] espíritos demoníacos que têm relações sexuais com mulheres e lhes causam
pesadelos [...] (RUSSELL, 2008, p. 73)”, foi na construção histórica dos sabás que a prática
sexual diabólica ganhou força, a partir da submissão feminina à figura central do Diabo.

44
En no pocos aspectos, desde el siglo XIV al XVI, la Tierra no tiene mucho que envidiar al infierno, que parece
haber abierto en ella una sucursal. Este se desborda sobre Europa, donde Satanás se encuentra como en su casa.
Se halla en todas as partes, desde el más humilde rincón de cualquier aldea hasta la celda de Lutero. [...] La cohorte
de demonios íncubos y súcubos acude en tropel hacia la cristiandad. En 1568, Juan Wier enumera la existencia de
7.405.926 diablos ordinarios, repartidos en 111 legiones de 6.666 demonios cada una, dirigidas por 72 príncipes
de las tinieblas.
67

FIGURA 14 – EL AQUELARRE, O SABÁ DAS BRUXAS, DE FRANCISCO GOYA


(1798)

Pintura representando a submissão das bruxas ao diabo bode e cumprindo o rito do sacrifício de crianças.
Fonte:<https://en.wikipedia.org/wiki/Witches%27_Sabbath_(Goya,_1798)#/media/File:GOYA_-
_El_aquelarre_(Museo_L%C3%A1zaro_Galdiano,_Madrid,_1797-98).jpg>. Acesso em: 15 nov, 2018.

O Malleus Maleficarum, tratado sobre a bruxaria moderna já mencionado nestas


linhas, embora não seja fonte direta deste trabalho devido seu recorte temporal, foi crucial para
a identificação destes demônios lúbricos, pois os autores afirmam que “[...] se deve acreditar na
ação das “maléficas” e na sua colaboração com o Demo, o único a poder realizar malefícios
[...]” (SOUZA, 1987, p. 28), bem como o tratado ainda “[...] sustenta que existem demônios
íncubos e súcubos hierarquizados, possíveis genitores de indivíduos bruxos [...]” (SOUZA,
1987, p. 28). Portanto, não raro a união entre humanos e esses demônios da luxúria era associada
ao nascimento de bruxas que viriam a tornar-se futuros asseclas.

Animais. Foi dessa forma que o padre Sinistrari D’Ameno se referiu aos demônios
sexuais quando escreveu uma das obras primas da demonologia: De Daemonialitate et Incubis
68

et Succubis45. Sendo até pertinente notar como o clérigo classifica a aproximação dos humanos
(embora à esta altura saibamos que a mentalidade cristã reputava ao feminino o elo central dessa
ligação sacrílega) com tais criaturas: crime era o termo utilizado.

Entretanto, há de fazermos aqui uma diferenciação necessária no que toca à essa


afinidade humana com a lascívia diabólica: bestialidade e demonialidade são os termos
apresentados por Sinistrari como formas de relacionamento dos humanos com os demônios. Ele
defende que demonialidade seja o comércio com os demônios, sejam íncubos ou súcubos. Já a
bestialidade seria a união com um animal dotado de movimentos e sentimentos. A
demonialidade, entendida como cópula com um cadáver animado pela força do Diabo, difere
da bestialidade em espécie (SINISTRARI, 1969). Portanto, os bruxos, ao confessarem ter
mantido relações sexuais com ambos os demônios lascivos, íncubos e súcubos, incorreram no
crime de demonialidade. Sobre esse poder sexual diabólico, Guazzo nos diz:
[...] demônios podem assumir os corpos dos mortos, ou fazer para si mesmos fora do
ar um corpo palpável como o da carne, e para estes eles podem transmitir movimento
e calor à sua vontade. Eles podem, portanto, criar a aparência do sexo que não está
naturalmente presente e mostrar-se aos homens em uma forma feminina, e às mulheres
em uma forma masculina, e mentir com cada um em conformidade: e eles também
podem produzir sêmen que eles trouxeram de outros lugares, e imitar a ejaculação
natural do mesmo. (1988, p. 30, tradução nossa) 46

Há, portanto, quem possa se perguntar nesse momento: qual desses crimes era
considerado pior na mentalidade cristã? Sinistrari crava que a demonialidade, a chamada copula
cum Daemone, mesmo só diferindo em natureza da bestialidade, não está num mais alto patamar
de agravo (1969, p. 32). Daí o mais leigo leitor poderia neste momento se perguntar de formar
estupefata: como o coito com animal é tal qual o coito com o Diabo na mentalidade da Igreja?
É justamente aqui que a postura, por vezes cética, do padre Sinistrari D’Ameno começa a se
desenhar.
Com efeito, Sinistrari diverge de Guazzo e de Kramer, e relega o crime das bruxas ao
status quimérico. O coito, terrível profanação do corpo, “[...] não tem fundamento senão na
imaginação humana, turbada por artifício do Demônio [...]” (1969, p. 34). Esta mesma ilusão
diabólica aparece nos relatos dos sabats noturnos que permeiam as páginas da obra História
Noturna, onde Ginzburg também discorre sobre a união carnal com o Diabo.

45
A Demonialidade ou íncubos e súcubos.
46
No original: “[...] demons can assume the bodies of dead men or make for themselves out of air a palpable body
like that of flesh, and to these they can impart motion and heat at their will. They can therefore create the
appearance of sex which is not naturally present, and show themselves to men in a feminine form, and to women
in a masculine form, and lie with each accordingly: and they can also produce semen which they have brought
from elsewhere and imitate the natural ejaculation of it.”
69

Isto posto, podemos agora apresentar definições dos demônios masculinos e


femininos.
Ora, um íncubo é, antes de tudo, um anjo caído que pecou justamente pela luxúria por
mulheres e assim adquiriu uma condição física animalesca. Certamente para diferenciá-lo dos
outros anjos, vide o próprio castigo de Lúcifer ao se rebelar contra Deus. Torna-se agora algo
mundano, assustador e assediador incontrolável do feminino. Uma entidade maléfica e
superpoderosa da lascívia (ROBBINS, 1964).
O súcubo, do latim medieval succubus, é um demônio em forma feminina, embora
preservando sua identidade masculina. A fisionomia de mulher exerce tão somente a função de
seduzir os homens. É curioso saber que a forma masculina possui bem mais relatos de aparições
e relações pessoais, pois na mentalidade cristã fortemente influenciada pelo Malleus
Maleficarum, a mulher era mais licenciosa que o homem, mais subserviente às artes diabólicas,
mais complacente à submissão sexual com Satã. A cada nove relatos de experiências com
íncubos, temos apenas uma de súcubo (ROBBINS, 1964). Em suma, podemos dizer que:

Segundo a maioria dos padres da Igreja, os íncubos eram anjos decaídos devido à sua
paixão pelas mulheres. Segundo outros, nasceram do enlace entre Adão e Lilith. Ainda
para outros, foram concebidos por esta última, que, encarnação das imaginações
sexuais, excitava o pensamento dos homens e lhes arrancava a substância obtida, por
onanismo ou polução noturna. O Renascimento não se prendeu a considerações
teológicas: contentou-se em definir os íncubos, quase sempre como demônios vindo
tentar as mulheres sob os traços de um belo jovem ou os homens sob o aspecto de uma
criatura de sonhos (súcubo). Parecia que as autoridades não se abstinham de
exteriorizar seu cinismo misógino, uma vez que afirmavam que para um único súcubo,
nove íncubos poluíam a humanidade. Modo de dizer que as mulheres são mais lúbricas
do que os homens. Tal diferença atinge uma observação muitas vezes repetida: a
bruxaria é um fenômeno essencialmente feminino. (FINNÉ, 1973, p. 191)

Entretanto, os demônios luxuriosos da Idade Moderna que acima apresentamos são


entidades rebatizadas. Os íncubos e súcubos são criaturas, possivelmente, derivadas das crenças
greco-romanas. Ora, o paganismo grego, por exemplo, nos forneceu o deus Pan, divindade
originária da Arcádia, possuidor de uma fisionomia híbrida de caprino (pernas e chifres) e
humano, que era associada não só às atividades pastoris, mas também aos frequentes ataques
ao feminino. Assediador inveterado, Pan é conhecido por seu amor não correspondido pela
ninfa Syrinx, a qual conseguiu capturar para satisfazer seus instintos sexuais, mas teve seu
intento frustrado por Zeus que a transformou em juncos, deixando o deus-bode furioso.
Contudo, a aparência e o modus operandi de Pan não são as únicas similaridades ao Diabo he-
goat dessas linhas: os lugares de adoração ao deus eram, não raro, cavernas, o que nos leva a
deduzir o seu caráter secundário e recôndito, em relação às divindades maiores que possuíam
templos suntuosos. Dessa forma, a similaridade com os locais afastados dos centros urbanos
70

onde eram realizados os sabbats, também momento de adoração ao Diabo, nos intriga. Em
adição, Pan era relacionado também ao infanticídio enquanto sacrifício, prática ritual também
recorrente no Sabá47.

Os sátiros também têm sua cota de influência para a composição desse recorte
temático. Segundo o historiador Jean Pierre Vernant, estes são criaturas “[...] metade homens,
metade animais: o tronco de um homem, o resto de um cavalo ou de um bode. Itifálicos 48.
Fazem parte do séquito de Dioniso [...]” (2000, p. 207). Logo, as características físicas dos
sátiros se assemelham bastante ao he-goat dos relatos do sabá: figura caprina, possuidora de
um grande falo, associado ao Deus do vinho e do êxtase. Portanto, a demonologia se encarregou
de colecionar tais atributos que estavam soltos no imaginário social e os adaptou na formação
de uma figura amedrontadora.

Os centauros também podem contribuir para este raciocínio se considerarmos que “[...]
têm um estatuto ambivalente, uma posição ambígua: possuem cabeça de homem, um peito que
já lembra o do cavalo, e um corpo de cavalo. São seres selvagens, subumanos – capazes de se
embriagar e raptores de mulheres [...]” (VERNANT, 2000, p. 82-83), ou seja, tais criaturas
possuem a mesma característica animalesca e a mesma postura em relação ao trato com o
feminino que o Diabo demonstra na literatura demonológica.

Os romanos também possuíam sua cota de divindades pastoris que alguns


demonólogos, na modernidade, os associaram com os íncubos. Silvanos e faunos, por exemplo,
eram divindades menores em relação ao alto panteão romano, e seus cultos se davam através
de festejos privados, sem grande número de adeptos, ou se traduziam apenas em preces
silenciosas feitas por viajantes ou pastores, próximas a arvoredos e locais campestres.49 Sobre
isso a demonologia nos diz que:

É opinião muito difundida e confirmada pelos testemunhos diretos ou indiretos de


pessoas absolutamente dignas de fé, que os silvanos e faunos, vulgarmente chamados
íncubos, várias vezes atormentaram as mulheres solicitando-lhes e obtendo delas o
coito. Há mesmo demônios chamados deuses pelos gauleses (ou lutins) que se
dedicam regularmente a essas práticas impuras. Isso é comprovado por autoridades
tão numerosas e graves, que seria imprudência querer negá-lo (FINNÉ, 1973, p. 186
apud. SINISTRARI, 1956)

47
CARTWRIGHT, Mark. Pan, definition, 2013. Disponível em https://www.ancient.eu/Pan/ . Acesso em: 22 out.
2018.
48
Seres que possuem um falo medindo um metro.
49
The Editors of Encyclopaedia Britannica. Silvanus, roman god. Disponível em
https://www.britannica.com/topic/Silvanus-Roman-god . Acesso em: 22 out. 2018.
71

Ainda sobre a antiguidade e a influência das religiões pagãs, faz-se necessário que
citemos também o exemplo do deus Príapo50. Divindade que, na passagem da idade antiga para
o medievo ganhou representações dentro da própria igreja católica através de estátuas que
destacavam o falo avantajado e ornamentavam catedrais (em Toulouse e Bordeaux, por
exemplo) as quais elas supostamente deveriam proteger: eram os chamados “santos príapos”
(FINNÉ, 1973). Entretanto, é preciso ainda integrar a este rol de características das estátuas, o
seu teor de adoração por parte do feminino: muitas mulheres viam as imagens fálicas como
propulsores de dádivas, entre elas, e principalmente, a fertilidade corporal. Quanto a isso,
podemos ainda dizer que estes:

“[...] vestígios de veneração acham-se por toda a Idade Média. No caso destes santos
príapos já referidos, as mulheres procuravam curar sua esterilidade beijando a ponta
do falo. Às vezes colocavam a parte desnuda de seu corpo, encostada à imagem do
santo, ou iam até sentar-se no seu membro. Este último hábito, era um costume
declaradamente tomado aos costumes pagãos e que perdurou abertamente muito
tempo. (FINNÉ, 1973, p. 226 apud. WRIGHT, 1865)

FIGURA 15 – PRÍAPO, DEUS GREGO DA LUXÚRIA E FERTILIDADE.

Fonte: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/9f/Pompeya_er%C3%B3tica6.jpg>. Acesso em 15


de novembro, 21:10.

50
São claras as similaridades do diabo moderno com o deus Príapo, filho de Dionísio, da religião grega da
antiguidade. Assim como o deus grego, o Diabo da imagética moderna era representado com um enorme falo,
embora não fosse representação da fertilidade, mas sim de obscenidade, monstruosidade e aberração de caráter.
The Editors of Encyclopaedia Britannica. Priapus. Disponível em < https://www.britannica.com/topic/Priapus>.
Acesso em: 22 out. 2018
72

Ainda sobre essa adoração fálica por parte do feminino e sua consequente relação dos
intentos de fertilidade da antiguidade às orgias sabáticas da Idade Moderna, adicionamos que:

Sem dúvida existiram essas orgias, mas só tomaram uma dimensão digna de nota
depois da epidemia de bruxaria. Efetivamente, pareceria que os amores sabáticos
fossem o eco da velha tradição pagã, consistindo em fazer o amor com a divindade.
Nos tempos remotos, tanto na Grécia como em Roma, as recém-casadas ofereciam
sua virgindade ao deus da fertilidade, representado por um sacerdote em serviço. Os
pedidos chegavam a esgotar o ardor do oficiante, que acabava por adotar certos meios
artificiais, seja um falo metálico, no caso de oficiar ele próprio, seja em outros casos,
uma estátua do deus, munida de um membro ereto sobre o qual vinham colocar-se as
jovens nubentes. As múltiplas estátuas hiperfálicas, pinturas obscenas, baixos-relevos
eróticos, achados nos sítios arqueológicos romanos, gregos, egípcios e mesmo
medievais, lembram o culto dedicado aos órgãos de reprodução, não como elementos
picantes ou sensuais, mas como elementos vitais de toda uma civilização. (1973, p.
224)

Em suma, os encontros sexuais entre íncubos e mulheres, que poderiam acontecer tanto
na residência da “vítima” como em locais afastados dos centros urbanos e foram relatados aos
demonólogos que aqui citamos, são derivados das práticas orgíacas do paganismo antigo.
Contudo, é preciso ressaltar que a modernidade estabeleceu um marco: a partir da influência
católica na vida das comunidades europeias e consequente regulação de costumes do povo, a
caça às bruxas surge como um ampliador dos relatos de encontros sexuais. A bruxa capturada
é submetida ao escrutínio das autoridades, é torturada, revela o que fez e o que não fez e, através
do seu discurso, não sem a influência direta das perguntas parciais dos magistrados, relata o
conjunto de práticas sexuais do Sabá, porém sem saber que repetia quase que mecanicamente
ressignificações do paganismo greco-romano. Por fim, complementando a linha de raciocínio
desse tópico, acrescentamos que:

Margaret Murray defende a hipótese segundo a qual as cerimônias sabáticas seriam


efetivamente um renascimento completo dos antigos ritos de fertilidade e que a
copulação com o Diabo seria um retorno aos usos do mundo antigo. A consequência
dessa hipótese seria explicar perfeitamente o caráter de frieza implicado aos abraços
satânicos. O Diabo do Sabbat seria, pois, um feiticeiro mais importante do que os
outros, que a grandes golpes de um falso falo, ofereceria às bruxas a união sagrada
com a divindade. Também não é impossível, sobretudo quando nas confissões faz-se
alusão a um membro gelado, que o demônio não fosse senão uma estátua fortemente
virilizada, como o são as representações de santos feitas pelo modelo priápico da
antiguidade. (FINNÉ, 1973, p. 228-229 apud. MURRAY, 1921)

O próximo tópico discorrerá sobre como a conjuntura histórica das aparições


diabólicas fomentou a construção representativa da figura dos demônios e seu impacto na
repressão feminina.

4.2. ESPECTROS SEXUAIS: AS CIRCUNSTÂNCIAS DAS APARIÇÕES

Devido sua conotação maléfica, o Diabo quase sempre foi relacionado à imagens ou
representações animalescas, bestiais, contrárias à imagética angelical que ele dantes pertencera.
73

Há uma predileção quantitativa pela forma caprina, que falaremos nas próximas linhas, esta
sendo sua forma oficial de se mostrar a seus súditos. No entanto, o Diabo, inúmeras vezes
alcunhado de “macaco de Deus”, faz jus ao seu título quando transforma seu aspecto, de acordo
com a situação de suas vítimas ou possíveis amantes, em várias formas de criaturas, intuito este
de zombar da criação no Gênesis. Dessa forma, apensamos ainda que:

Quando não tomava forma humana [...] escolhia uma aparência animal, sem mostrar
repugnância particular por uma ou outra forma, porém demonstrando sua preferência
por certos invólucros, como sejam os de cachorro, de gato e de bem entendido, de
bode. Mais raros parecem os de carneiro, cobra ou pássaros diversos, indo do corvo
ao pintassilgo, passando pelo cuco. (FINNÉ, 1973, p. 198)

O Diabo era seletivo e dicotômico. Além de preferir aparecer em sua forma masculina,
o íncubo, “[...] é sabido que Satã prefere as mulheres casadas às virgens. A escolha é explicável,
se soubermos que na Idade Média, o adultério era considerado uma falta bem mais grave do
que a simples fornicação [...]” (FINNÉ, 1973, p. 182). Ora, se a razão de existir do íncubo é a
perversão sexual, existiria melhor maneira de atacar o matrimônio, sacramento abençoado por
Deus, se não desonrando as mulheres? Desta forma, além de cumprir seu papel de inimigo da
cristandade dentro da sua esfera característica de atuação, o íncubo também fomentava o
constrangimento social do feminino.

FIGURA 16 – O PESADELO, DE HENRY FUSELI, VERSÃO DE 1791.

Retrata o demônio íncubo em sua forma animalesca, escarnecendo de uma mulher que representa o
feminino vulnerável.
Fonte:<https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/8d/Johann_Heinrich_F%C3%BCssli_053.jpg>.
Acesso em: 15 nov, 2018.
74

O Diabo não se contentava, entretanto, em perverter o casamento e humilhar a mulher


perante à sociedade. Se acreditava ainda que a entidade maléfica buscava rebaixar a figura
masculina, impondo-se como o amante viril e preferido das esposas. Sobre isso, nos diz Finné,
não sem a influência do Malleus Maleficarum, que “[...] o Diabo obrigava, às vezes, um marido
assistir suas proezas em companhia de sua senhora. Aqueles que tentavam protestar, viam-se
petrificados na hora [...]” (1973, p. 183).

Por outro lado, a dicotomia da preferência sexual do Diabo é expressa pela idade das
vítimas. Por mais que garotas muito jovens tivessem baixa probabilidade de casarem e dessa
forma serem humilhadas aos olhos do marido e da comunidade, o Diabo não se dava por
vencido e esperava tais moças atingirem idade biologicamente propícia à reprodução, uma vez
que este “[...] não quer saber de mocinhas impúberes, abstendo-se pois de qualquer relação com
as senhoritas de menos de doze anos, idade com a qual, na Idade Média e Renascimento, já
eram consideradas férteis [...]” (FINNÉ, 1973, p. 189).

Guazzo nos fornece um curto, porém curioso relato, originário da Alemanha moderna,
sobre a relação de súcubos com humanos quando diz que:
[...] Quinze anos atrás, em Bamberg, um certo Peter Stumpf foi condenado à morte
por ter pecado com um demônio súcubo por mais de vinte e oito anos. Este demônio
havia lhe dado um cinto que ele só tinha que colocar e aparecia tanto para si mesmo
quanto para os outros transformado em lobo. Ele tentou devorar duas de suas noras.
[...]”51 (1988, p.32, tradução nossa).
Outro exemplo, agora vindo da Escócia:
No distrito de Gareotha, numa aldeia a menos de 24 quilômetros de Aberdeen, um
jovem de grande beleza queixou-se abertamente diante do bispo de Aberdeen que por
muitos meses ele havia sido atormentado por um demônio súcubo, como dizem, mais
bonita que qualquer mulher que ele já tinha visto. Ele disse que ela veio até ele à noite,
trancou as portas, persuadiu-o e forçou-o a abraça-la, e foi embora quando a aurora
começou a se romper, quase sem qualquer som; e que ele não podia de modo algum,
embora tivesse tentado muito, ser libertado de uma loucura tão grande e imunda. O
excelente Bispo imediatamente ordenou ao jovem que se retirasse para outro lugar e
dedicasse sua mente mais do que o usual à religião cristã, com jejum e oração mais
devotos; e assim, seguindo o conselho do venerável Bispo, o jovem foi depois de
alguns dias libertado do demônio súcubo52 (GUAZZO, 1988, p. 33, tradução nossa).

51
No original: “[…] Fifteen years ago, at Bamberg, a certain Peter Stumpf was sentenced to death because he had
sinned with a succubus devil for more than twenty-eight years. This devil had given him a girdle which he had
only to put on, and it appeared both to himself and others that he was changed into a wolf. He tried to devour two
of his daughters-in-law.
52
No original: “[...] In the district of Gareotha in a village not fourteen miles from Aberdeen, a young man of great
beauty openly complained before the bishop of Aberdeen that for many months he had been tormented by a
Succubus devil, as they say, more beautiful than any woman that he had ever seen. He said that she came to him
by nightthrough locked doors, coaxed and forced him into her embraces, and went away as the dawn began to
break, with scarcely any sound; and that he could by no means, though he had tried many, be delivered from so
great and foul a madness. The excellent Bishop at once ordered the young man to remove himself to another place,
and to apply his mind more than usual to the Christian religion, with more devout fasting and prayer; and so,
75

FIGURA 17 – ESCULTURA RETRATANDO UM DEMÔNIO SÚCUBO.

Fonte: <https://en.wikipedia.org/wiki/Succubus#/media/File:Succubus_bracket_02.jpg>. Acesso em: 15 nov,


2018.

Veremos nas linhas seguintes que a fisionomia diabólica muda com uma constância
relevante ao nosso estudo, pois cada forma de aparição tem suas raízes em textos
demonológicos medievais e modernos, nos levando de volta à uma miríade de significados que
até então estavam dormentes. Contudo, mesmo o diabo assumindo formas diversas, até estas
são reguladas, não à vontade diabólica, pois

[...] Deus Todo-Poderoso não permitirá que ele apareça em outras formas, como
pombas, cordeiros ou ovelhas; pois o verdadeiro Cordeiro é Cristo, o Bom Pastor, e o
Espírito Santo é adquirido para fazer a sua aparência na forma de uma pomba:
também, porque estes animais não têm malícia e não fazem mal, Deus não permite
que ele apareça na forma deles [...] (GUAZZO, 1988, p. 74, tradução nossa) 53.

Com efeito, a aparência diabólica tinha forte significado e nem de longe era meramente
aleatória. No mesmo texto de Guazzo, encontramos relatos de aparições em forma de gato,
homem e mulher estas compondo a lista de “trajes” permitidos por Deus ao Diabo. Sendo
curioso ressaltar a preocupação do clérigo em justificar o uso do talhe humano pelo Diabo como
sendo [...] a mais perfeita e maravilhosa, portanto ele geralmente aparece nessa forma para nós
[...]. Ora, sabemos que a mentalidade cristã prega que o homem foi feito à imagem e semelhança
de Deus. Logo, teria Guazzo insinuado que o Diabo estaria a zombar da onipotência divina ao

following the advice of the venerable Bishop, the young man was after a few days delivered from the Succubus
devil.
53
No original: “[...] Almighty God will not allow him to appear in certain other forms, such as doves, lambs, or
sheep; for the true Lamb is Christ, the Good Shepperd, and the Holy Spirit is won to make His appearance in the
form of a dove: also, because these animals are without guile and do no harm, God does not permit him to appear
in their form.
76

tentar corromper a humanidade, expondo-as ao ridículo de adorar, pactuar, entregar-se


sexualmente à uma ilusão fisionômica antagônica ao imaginário cristão?

As aparições sofriam, entretanto, juízos sobre sua veracidade. O gênero do indivíduo


que tinha tais encontros era crucial para análise de caso. Mais uma vez Guazzo, em 1608, numa
clara confirmação do que já dizia o Malleus Maleficarum em 1486, nos diz que maior fé deverá
ser posta nas revelações dos homens, pois as mulheres são:

“[...] mais tolas e mais propensas a confundir sugestões naturais ou demoníacas com
as de origem divina. As mulheres também são de natureza mais húmida e viscosa,
mais facilmente influenciadas para perceber vários fantasmas, e mais lentas e mais
resistentes a resistir a tais impulsos. Portanto, as mulheres são mais rápidas de
imaginar, mas os homens são menos obstinados em segurar a sua imaginação; e uma
vez que as mulheres têm menos poder de raciocínio e menos sabedoria, é mais fácil
para o diabo para iludi-las com aparições falsas e enganosas [...]” (1988, p. 137,
tradução nossa)54.

Baroja (2001) nos conta que, em 1232, bem antes do nosso recorte temporal, o papa
Gregório IX ordenou aos bispos de Lübeck, Minden e Ratzeburg, que empreendessem uma
“cruzada” contra os habitantes de Stedingerland, povoado da região de Oldenburg, na
Alemanha, pois estes estavam “desprezando os sacramentos, perseguindo os fiéis, fazendo
consórcio com o Diabo, construindo imagens de cera e consultando bruxas”. Chamaríamos
estes de simples hereges, não fosse a descrição detalhada de atos que lhes dão uma certa
sofisticação, rendendo-lhes a alcunha de “sociedade secreta”.

A Alemanha foi o lugar onde mais se viu a presença de Satã. Frankfurt e Nuremberg,
por exemplo, foram locais de ampla difusão da literatura demonológica e lugar de destaque na
geografia da bruxaria. Cem mil bruxas, no mínimo, mortas pelo Estado, enquanto não mais que
mil bruxas foram mortas na Inglaterra (ROBBINS, 1964). O desenvolvimento da imprensa no
século XV influenciou a divulgação do medo traduzido na demonologia. As obras eram “[...]
divulgadas por mascates, mágicos e exorcistas ambulantes, explicavam os sonhos, relatavam
crimes e narrativas atrozes, ensinando a conhecer o futuro e a precaver-se das armadilhas
diabólicas. Estavam repletas de histórias de possessão, de lobisomens e de aparições de Satã
[...]” (DELUMEAU, 2009, p. 366).

54
No original: [...] more foolish, and more apt to mistake natural or demoniacal suggestions for ones of divine
origin. Women, too, are of a more humid and viscous nature, more easily influenced to perceive various phantoms,
and slower and more loath to resist such impulses. Therefore, women are quicker to imagine, but men are less
obstinate in holding to their imaginings; and since women have less power of reasoning and less wisdom, it is
easier for the devil to delude them with false and deceptive apparitions.”
77

Destarte, após a ordem papal citada acima, uma bula subsequente foi enviada às
regiões de Paderborn, Hildesheim, Verden, Munster e Osnabruck apresentando o ritual dos
hereges de Stedingerland, no qual um fragmento em particular nos interessa:

Então todos sentam-se a um banquete e quando se levantam depois que está


terminado, um gato preto emerge de uma espécie de estátua que está normalmente no
lugar onde estas reuniões acontecem. É tão grande quanto um cão de tamanho comum
e entra de costas com sua cauda ereta. Primeiro o noviço beija suas partes traseiras,
então o Mestre de Cerimônias procede a fazer o mesmo e finalmente todos os outros
por sua vez; ou melhor, todos aqueles que merecem a honra. O resto, que são aqueles
que não são considerados dignos deste favor, beijam o Mestre de Cerimônias. Quando
eles voltam para seus lugares ficam em silêncio por alguns minutos com a cabeça
voltada para o gato. Então o Mestre diz: "Perdoa-nos. "A pessoa que está atrás dele
repete isso e um terceiro acrescenta:" Senhor, nós sabemos ". Uma quarta pessoa
termina a fórmula dizendo: "Nós obedeceremos.” (BAROJA, 2001, p. 75, tradução
nossa)55

Desta forma, sobre a representação felina do Diabo, nos é significante dizer que
durante a Idade Média os gatos foram constantemente associados às bruxas e, não raro,
acreditava-se que o próprio Diabo tomava a forma de gato preto. Ora, é sabido que a função
predadora dos gatos foi de importância relevante durante o medievo, especialmente na Baixa
Idade Média com o advento da peste negra, pois estes apanhavam os ratos. Mas embora
detentores desse mister predador, os gatos, por vezes tidos como representações metamórficas
do Diabo, eram acusados de despertar comportamentos lascivos nos adoradores de Satã: o beijo
dado logo abaixo da cauda do animal é a principal forma de confirmação do pacto satânico,
bem como caracterizar a submissão humana ao profano animalesco.

Se tomarmos o que defende a historiadora Irina Metzler (2009), a própria natureza


independente dos gatos causou inquietação nos humanos. Então pensemos: se o homem
medieval acreditava que os animais são criaturas criadas por Deus e regidas pelos humanos, tal
pressuposto não se aplicou aos gatos, pois, mesmo domesticados não se tornaram obedientes e
leais, se compararmos com seus “concorrentes” diretos, os cachorros. Vide:

As pessoas medievais podem ter querido restringir os gatos à função de ratoeiras


animadas, pela mesma razão que o gato está no limiar entre o familiar e o selvagem.
Os gatos eram intrusos na sociedade humana. Eles não podiam ser detidos. Entravam
na casa furtivamente, como camundongos, e sofreram porque mantiveram os ratinhos
insuportáveis sob controle. Isso causa um tipo de tensão conceitual. Enquanto o gato
possui as características de um bom caçador é útil, mas enquanto o faz, ele permanece

55
No original: “Then all sit down to a banquet and when they rise after it is finished, a black cat emerges from a
kind of statue which normally stands in the place where these meetings are held. It is as large as a fair-sized dog,
and enters backwards with its tail erect. First the novice kisses its hind parts, then the Master of Ceremonies
proceeds to do the same and finally all the others in turn; or rather all those who deserve the honour. The rest, that
is those who are not thought worthy of this favour, kiss the Master of Ceremonies. When they have returned to
their places they stand in silence for a few minutes with heads turned towards the cat. Then the Master says:
“Forgive us. ” The person standing behind him repeats this and a third adds, “Lord, we know it.” A fourth person
ends the formula by saying, “We shall obey.”
78

incompletamente domesticado. Os hereges, também, em um sentido transferido, não


são completamente domesticados, pois desafiando o pensamento ortodoxo e vagando
livremente aqui e ali em sua interpretação de crenças religiosas eles se assemelham à
definição de bestiário de selvageria. Como animais simbólicos, os gatos podem ser o
animal herético por excelência (METZLER, p.12, 2009, tradução nossa).56

Por outro lado, o chamado he-goat é apresentado pelo demonólogo Nicolas Remy
como a forma preferida do Diabo para suas aparições. Mas preferida nesse sentido não quer
dizer corriqueira: aparecer em silhueta de bode denotava majestade, imposição de desejos
satânicos, adoração por parte de quem tinha o privilégio de ver Satã assim. Não era a roupa
comum do Diabo. O bode em vários textos demonológicos aparece como figura de ataque,
agressivo e perigoso ao ponto de “sua saliva ser venenosa para as frutas, e sua mordida causar
uma praga instantânea sob as colheitas”. A própria queda de Satã do paraíso divino é
determinante do aspecto caprino: o olhar truculento, os chifres que apontam pouco acima das
sobrancelhas, a pele desgrenhada, as pernas curtas são partes de uma construção da imagem
obscena e deformada que lhe é dada por Deus após a queda. Logo, nos fala Remy, o Diabo he-
goat aparece às pessoas numa situação distinta onde este especialmente recebe honras de seus
asseclas (RÉMY, 1930). A figura caprina além de ter um aspecto tétrico que, se mostrada num
primeiro momento de comunicação com as bruxas poderia causar pânico ou até a perda de um
seguidor em virtude do medo, a partir do pensamento de Remy, podemos deduzir que seria algo
indigno de um iniciante nas artes diabólicas ter seu primeiro contato com o Diabo em sua forma
suntuosa. Portanto, essa fisionomia é mais recorrente no contato com feiticeiras ou bruxas mais
experientes no trato diabólico. Ainda sobre o bode diabo, acrescentamos que:

A aparência de bode volta mais do que as outras. Sem dúvida devido ao caráter lúbrico
do bicho [...] o bode era o animal consagrado a Príapo, o antigo deus que os medievais
viam como uma figura obscena. Não há nenhuma razão, pois, de admirar-se que o
Diabo escolhesse uma forma animal extraída de um culto que retornava sob forma
ligeiramente diferente [...] o Diabo sob forma de um bode, membro erguido, tinha
relações com as mulheres sacudindo e golpeando esse objeto de encontro a seus
ventres. (FINNÉ, 1973, p. 199 apud LANCRE, 1612)

As transformações demoníacas eram constantes e nos levam a entender o poder


metamorfo que se acreditava o Diabo possuir. Por exemplo:

Maria d’Aspilcouette contou [...] que o Diabo geralmente aparecia com aspecto de
bode, mas quando queria homenageá-la escolhia traços humanos. Outros

56
Medieval people may have wanted to restrict cats to the function of animated mousetraps, for the very reason
that the cat stands at the threshold between the familiar and the wild. Cats were intruders into human society. They
could not be owned. They entered the house by stealth, like mice, and were suffered because they kept the
insufferable mice in check. This causes a kind of conceptual tension. While the cat possesses the characteristics of
a good hunter it is useful, but as long as it does it remains incompletely domesticated. Heretics, too, in a transferred
sense, are not completely domesticated, since by challenging orthodox thought and roaming freely hither and
thither in their interpretation of religious beliefs they resemble the bestiary definition of wildness. As symbolic
animals them, cats may be the heretical animal par excellence.”
79

(demonólogos) falam num diabo que entrando no quarto sob forma de gato, mudou-
se em um homem vestido de vermelho. [...] Uma das bruxas da Escócia, Margaret
Hamilton, contou que o Diabo tinha tido relações com ela sob forma de um homem,
mas que havia se retirado como um cachorro preto. (FINNÉ, 1973, p. 200 apud
LANCRE, 1612)

Henry Boguet, jurista francês que viveu na passagem do século XVI para XVII, em sua
obra intitulada Discours exécrable des Sorciers, contribui para este enfoque nas representações
animalescas do Diabo, quando cita o caso de um demônio em forma de cachorro promíscuo que
ele mesmo, supostamente, presenciou a ação. Aqui citamos pois:

“[...] em um convento da diocese de Colônia, um cachorro tomado imediatamente pelo


Diabo, divertia-se em levantar, com seu focinho úmido, as saias das freiras, na
intenção de abusar delas. [...] certa vez, (Boguet) foi a um convento da montanha de
Hesse na Alemanha, onde se supunha que as freiras estavam possessas pelo demônio.
Como demônio, descobriu certo número de cães, deitados das camas das freiras,
esperando fielmente aquelas, suspeitas de ter cometido o “pecado mudo”, isto é, a
sodomia, palavra horrível demais para ser pronunciada por um jurisconsulto [...]”
(FINNÉ, 1973, p. 200-201 apud. BOGUET, 1619)

A figura feminina, a chamada súcubo, era vista como a forma mais voluptuosa do
Diabo. Essa fisionomia demoníaca não é vastamente encontrada nos textos demonológicos se
compararmos com sua forma masculina. Suas aparições foram esparsas, mas não menos
simbólicas ou pobres de representação dentro do imaginário cristão. Em tempo, é preciso dizer
ainda que a mulher diabo nos transparece um Diabo sedutor, sem perder sua frieza genital,
porém, menos másculo e imponente como a figura do diabo bode, por exemplo. Nesse aspecto
fisionômico, Satã permite certa liberdade a quem usufrui da cópula, nos levando a questionar
se apenas não visava, assim, uma diversidade de afronta ao corpo criado por Deus.
Complementando esse pensamento, podemos acrescentar que:

A forma do Diabo deu igualmente belos desvios de imaginação. Geralmente, como o


afirmam Santo Agostinho e Santo Tomás, o Diabo assumia a forma que lhe agradasse.
Podia tomar os traços de uma mulher amada ou até de uma mulher ideal, de uma
perfeição sensual impossível de atingir em princípio. (FINNÉ, 1973, p. 190)

Em suma, podemos dizer que a representação da predileção de Satã pela aparência


masculina residiu no fato de a mulher ser seu consorte direto no imaginário sexual proposto
pela demonologia. O número de relatos envolvendo demônios masculinos foi sempre muito
superior aos súcubos e não é característica única do nosso recorte temporal, uma vez que desde
o século XV já se discutia as relações sexuais com o Diabo, prática introduzida no imaginário
cristão pelo Martelo da Feiticeiras. Isto posto, concluiremos esse tópico fazendo a seguinte
análise: se considerarmos que “[...] a representação é instrumento de um conhecimento mediato
que faz ver um objeto ausente através da sua substituição por uma imagem capaz de o
reconstituir em memória e de o figurar tal como ele é [...]” (CHARTIER, 1990, p. 20), a forma
80

masculina do Diabo foi, então, imagem escolhida intencionalmente pelos demonologistas que,
imbuídos da herança misógina da Idade Média, viam a crença num gênero mais susceptível ao
profano como facilitador de sua dominação social e familiar, ou seja, o Diabo foi representação
de um imaginário que nem de longe foi irreal ou irrelevante em termos historiográficos, dado
que pela força e realidade dele múltiplas mulheres foram perseguidas, julgadas e mortas; daí a
necessidade de entendermos que “[...] o imaginário mostra-se [...] uma dimensão tão
significativa das sociedades humanas como aquilo que é [...] encarado como realidade efetiva
[...]” (BARROS, 2004, p. 23-24).

No último tópico, exploraremos o imaginário das confissões das bruxas no tocante ao


ato sexual imaginário com a figura diabólica, bem como suas implicações para a problemática
desta pesquisa.

4.3. O PRAZER PROIBIDO: PRÁTICAS E CONSEQUÊNCIAS DO COITO


DIABÓLICO

A cópula com Satã, na conjuntura ritualística de bruxos e feiticeiros era o equivalente


ao primeiro sacramento do cristianismo (RICHARDS, 1993). Este cenário profano sexual
poderia ser disposto como:

[...] bruxas deitadas por terra, ventre para cima, movendo o corpo com
a mesma agitação que aquelas que estão fazendo esse ato sujo, tendo o
seu prazer com esses espíritos e demônios íncubos, que lhes são visíveis
porém invisíveis a todos os demais, exceto que depois desse abominável
acasalamento veem um vapor malcheiroso e sujo, elevar-se do corpo da
bruxa, do tamanho aproximado de um homem. (FINNÉ, 1973, p. 188
apud LANCRE, 1612)
Ora, neste excerto constatamos uma real negação do poder de Deus sobre a mente e
corpo da bruxa. Contudo, o sexo diabólico é tópico bastante controverso nos annales da
demonologia se considerarmos o seguinte fator: o prazer. Desse modo, somos levados ao
questionamento: teriam as bruxas satisfação sexual com o Diabo? E por que isso é relevante em
termos historiográficos?

Nas linhas anteriores falamos brevemente sobre a conjuntura do sabá e seus


componentes, um destes sendo, inclusive, a reversão de valores da sociedade: danças inversas,
banquetes putrefatos e a liberdade feminina. A cópula satânica, por mais que inserida no âmbito
imaginário da história, e aqui visto de forma isolada do sabá pois poderia acontecer também
fora dessa esfera ritual, representa também uma inversão social. Ora, não poderíamos pensar
que tal prática simbolizou a libertação de uma sexualidade feminina reprimida e herdeira do
81

misoginismo medieval? Se pensarmos que “[...] o imaginário é, em si, elemento de


transformação do real e de atribuição de sentido ao mundo [...]” (PESAVENTO, 1995, p. 18),
fica clara a intenção das bruxas em descrever o sexo profano: o que não existia no real, pois a
misoginia impedia a esmagadora maioria das mulheres de se emanciparem sexualmente,
aparecia no discurso feito aos magistrados inquisidores como Nicholas Remy. Mas até que
ponto essa emancipação sexual ocorre sem que esse imaginário seja atrelado à própria
dominação masculina, substituindo-se, apenas, a figura do homem misógino por um demônio?

Sobre essa possível troca de papéis entre demônio e homem na relação sexual, o que
diferenciava apenas o agente, mantendo-se o comportamento impositivo, encontramos diversos
exemplos na Demonolatrie de Remy e referentes ao século XVI. Vide:

“[...] Claude Fellet (em Mazières, 2 de novembro de 1584) disse que muitas vezes se
sentira como um carretel inchado por um tamanho imenso, de modo que não podia
ser contido nem mesmo pela mulher mais espaçosa sem grande dor. Isso concorda
com a queixa de Nicole Morèle (em Serre, 19 de janeiro de 1587) que, depois de tão
miserável cópula, ela sempre tinha que ir direto para a cama como se estivesse cansada
por alguma agitação longa e violenta. Didatia de Miremont (em Preny, 31 de julho de
1588) também disse que, embora ela tivesse muitos anos de experiência com homens,
ela ficava sempre muito esticada pelo membro enorme e inchado de seu Demônio que
os lençóis ficavam encharcados de sangue. E quase todas as bruxas protestam que é
totalmente contra sua vontade que elas sejam abraçadas por demônios, mas que é inútil
resistir a eles (1930, p. 14, tradução nossa). 57

Entretanto, sobre o coito diabólico enquanto libertação sexual e até mesmo fonte de
prazer se olharmos para alguns relatos de bruxas na Inglaterra, ao longo do século XVII, e que
foram divididos pela historiadora australiana Charlotte-Rose Millar (2005) em: primeiro, sexo
oral consentido ao demônio em forma animal; segundo, o sexo com penetração e consentido ao
demônio em forma humana. As duas categorias variaram em forma, mas são iguais no que se
refere ao prazer. Entretanto, ao viés historiográfico interessa mais saber que essa divisão nos
expõe uma ruptura no processo sexual: o Diabo, figura que, de acordo com a maioria dos relatos
de bruxas que alegaram essa prática durante os séculos XV e XVI, exercia sua vontade lasciva
de forma desagradável, agora provocava o deleite sexual para com suas dominadas.

O sexo oral demoníaco, praticado geralmente por entidades transformadas em gatos


cachorros e criaturas deformadas, foi relatado pela bruxa Margaret Flower, em 1619, quando

57
No original: “[…] Claude Fellet (at Mazières, 2nd of Nov., 1584) said that she had often felt it like a spindle
swollen to a immense size so that it could not be contained by even the most capacious woman without great pain.
This agrees with the complaint of Nicole Morèle (at Serre, 19 th Jan., 1587) that, after such miserable copulation,
she always had to go straight to bed as if she had been tired out by some long and violent agitation. Didatia of
Miremont (at Preny, 31st July, 1588) also said that, although she had many years’ experience of men, she was
always so stretched by the huge, swollen member of her Demon that the sheets were drenched with blood. And
nearly all witches protest that it is wholly against their will that they are embraced by Demons, but that it is useless
for them to resist […]”.
82

esta admitiu que um demônio em forma animalesca teria chupado “a parte interior dos seus
segredos”, confissão muito comum à época nos processos de bruxaria (MILLAR, 2015). No
entanto, trabalhando com o imaginário historiográfico e sabendo que enquanto “[...]
representação do real, o imaginário é sempre referência a um “outro” ausente [...] e que ele [...]
enuncia, se reporta e evoca outra coisa não explícita e não presente (PESAVENTO, 1995, p.
15), não poderíamos nos perguntar a que similaridade esse imaginário se conecta com a
sociedade inglesa deste período? Ora, o sexo oral era bastante comum entre os casais antes do
casamento. Tinha a função de escape dos desejos sexuais e, pelo fato de não gerar concepção,
surgiu como uma forma segura e discreta de burlar as regras sociais pré-maritais na Inglaterra
moderna (MILLAR, 2015). Desse modo, as bruxas reproduziam o discurso que era a
representação de uma prática rebelde, embora reservada, de reação social. Logo, o sexo oral
com o Diabo apareceu como fator de proximidade dos demônios com a bruxas e integrante da
diversidade promíscua destas aos olhares da sociedade.

FIGURA 18 - O SEXO ORAL PROFANO.

Pintura de Hans Baldung representando componente das práticas sexuais decorrentes da proximidade das
bruxas com o diabo.
Fonte: <https://adski-kafeteri.livejournal.com/2594917.html>. Acesso em: 15 nov, 2018.
83

Dessa forma, o sexo oral retratado pela bruxa no parágrafo anterior é passível de
discussão se considerarmos o que defendeu Sinistrari a respeito do sexo profano: se a
bestialidade, enquanto crime, é o sexo com animais, e a demonialidade é o sexo com demônios,
que transgressão cometeu Margaret Flower? Ora, penso que o conceito de demonialidade não
é quebrado, pois, a representação do Diabo existe independentemente da forma em que aparece
aos humanos, no caso, à bruxa inglesa. Um demônio não deixa de ser um demônio por estar em
forma humana ou animalesca, a entidade tem sua essência preservada e esta é a parte relevante
para sua classificação.

A bruxa que mantinha relações sexuais com o Diabo era uma representação da
alteridade feminina na Inglaterra moderna; sendo o conceito de alteridade aqui entendida como
reclusão social, solidão, e distância familiar. Assim, a bruxa era, potencialmente, a mulher
solteira que praticava sexo fora do casamento, prática condenável pela sociedade conservadora
da época e criticada pela imprensa e autoridades inglesas. Desse modo, sabemos que “[...] o
status de solteira de muitas bruxas inglesas apenas aumentava o medo da atividade sexual ilícita,
e esses medos foram desenvolvidos por muitos panfletários em suas representações de mulheres
bruxas como mulheres pecaminosas que iniciaram relações sexuais com demônios [...]”
(MILLAR, 2015, p. 215).

O sexo profano, entendido aqui também como parte de um imaginário que escondia
vontades intrínsecas, porém proibidas ou malvistas pela sociedade moderna, também poderia
ser uma forma de blindagem ou resguardo do adultério. Nesse caso, o Diabo entrava em cena
como fator crucial na continuidade de um matrimônio manchado pela traição, principalmente
quando quem fazia a ação era a mulher, gênero já mencionado aqui como “favorito” da
literatura demonológica, devido sua suposta fragilidade às investidas satânicas. Dito isso,
adicionamos ainda que:

Certos indivíduos sem escrúpulos ou espertos demais, aproveitaram-se do temor dos


demônios para conseguirem favores que, sem esse pânico, nunca teriam alcançado.
Da mesma forma, quando a opinião pública ficou conhecendo detalhes íntimos sobre
os súcubos e íncubos, através de seus confessores ou das decisões legais, é de crer-se
que muitos abusos devem ter acontecido. Qualquer mulher surpreendida em adultério,
decerto jurava ter sido violada por um íncubo. A mesma observação pode ser feita
para as freiras e os eclesiásticos, felizes de achar tão apropriada desculpa para explicar
uma posição sexualmente delicada. (FINNÉ, 1973, p. 197)

A performance diabólica poderia também ser entendida como representação do


imaginário sexual feminino, uma vez que “[...] a capacidade sexual do Diabo foi diversamente
apreciada. Viu-se nele um sátiro, atingido de priapismo incurável, um amante sempre pronto a
amar quem o quisesse, um sonho de senhoritas demasiadamente excitadas [...]” (FINNÉ, 1973,
84

p. 221). Os detalhes que permeavam os relatos das mulheres acusadas de coito diabólico nos
atestam a figura de Satã enquanto amante perfeito, incansável, insaciável, algo inimaginável ou
pouco provável às condições biológicas masculinas comuns, pois “[...] Masters cita alguns
casos de acusadas que confessaram que o Demônio, após o gozo, voltava a ter o pênis de
consistência normal, mas que era capaz de ter sem parar, uma ereção após a outra [...]” (FINNÉ,
1973, p. 221 apud. MASTERS, 1962)

Há ainda que mencionarmos aqui a sodomia, termo frequentemente associado às


práticas homossexuais e ao coito anal, enquanto ato dos demônios luxuriosos. Tal atividade era
especialmente condenada pela Igreja e exercia a função de agravo criminal nos julgamentos de
réus acusados de bruxaria. O sexo anal apareceu como ato de diversidade e divertimento para
Satã, pois este empreendia uma cruzada contra as práticas comuns que formavam a sexualidade
vigiada e permitida pela Igreja. Dito isso, podemos ainda adicionar que:

A leitura dos textos demonológicos nos mostra que Satã prefere as manifestações de
sexualidade extraordinárias, aos atos carnais “clássicos e habituais”, segundo a
expressão de De Lancre. A sodomia, pecado execrado pela Igreja, é atribuído a todas
as seitas esotéricas, torna-se naturalmente a atividade favorita do Demônio. De Lancre
afirma que “o diabo prefere a sodomia pois só procura ofender a Deus e perder e
desonrar o gênero humano. (FINNÉ, 1973, p. 183 apud LANCRE, 1612)

As bruxas interrogadas pelos magistrados da Europa nos séculos XV e XVI geralmente


relatavam o coito diabólico como algo penoso, gélido, sem gozo. Remy colabora com essa
afirmação quando diz que “[...] se o demônio emite sêmen, este é tão gelado que elas (as bruxas)
recuam com horror ao o receberem [...]” (1930, p. 12-13). Ademais, o próprio esperma era fruto
de mais uma enganação ou esperteza do “pai da mentira”, pois este, enquanto súcubo praticava
o ato sexual com homens que, ao ejacularem, depositavam o material viscoso que seria
preservado e reutilizado no gozo quando o demônio se transformasse novamente em íncubo
(REMY, 1930).

O produto deste enlace profano entre as bruxas e o Diabo também foi objeto de estudo
da demonologia. Os propulsores deste imaginário não pouparam críticas à prática e deram aos
filhos dessa união a condição de “aberrações de caráter”. Logo, personagens históricos como
Lutero, reformador e inimigo da Igreja na Idade Moderna; César e Alexandre Magno,
conquistadores responsáveis pela morte de milhares, também tidos como exemplo de
depravação sexual por parte da cristandade; bem como os Hunos, povo sinônimo de terror para
os europeus à época da ruína do Império Romano do Ocidente, foram os tipos escolhidos pelos
demonólogos como filhos de íncubos, pois as súcubos não poderiam procriar. Em adição, Finné
discute:
85

Como conceber que o Diabo pudesse procriar outra coisa senão monstros? [...]
Monstros morais em primeiro lugar. Há toda uma tradição explicando por
subterfúgios de nascimentos diabólicos, certas aparições um tanto incômodas no
âmbito da cristandade. Do amor das mulheres com os demônios, nascem às vezes
homens pouco recomendáveis, falando do ponto de vista católico (1973, p. 208).

Houveram ainda, enquanto produtos da união de mulheres e íncubos, os chamados


monstros fisiológicos, ou seja, crianças que diferiam bastante de um ser humano saudável e de
constituição perfeita. Sobre isso, Jacques Finné, influenciado pelo demonólogo holandês
Johann Weyer, diz:

“[...] nos acasalamentos do Sabbat, nascem crianças magras e menores que as outras.
Secam o leite a três amas sem engordar nem um pouco, berram como se as estivessem
matando quando são carregadas e riem às gargalhadas quando acontece alguma
desgraça na casa. Ele ainda determina que não vivem mais de 7 anos (1973, p. 210)

Os nascimentos de bebês deformados permearam as páginas dos tratados de


demonologia. Ora, não se esperava que a Igreja, entidade que majoritariamente produzia esses
manuais, concebesse um nascimento perfeito de uma união que ela própria condenava.
Contudo, tais gestações não sobreviviam a um exame mais crítico e apurado que o qual a
crendice popular das comunidades europeias do século XVI fomentava, excluindo-se ainda o
fator tempo, pois a fraude, não raro, era descoberta nos meses seguintes à gravidez. Relato disso
foi um caso que aconteceu na Alemanha, nos arredores de Stuttgart, onde tomamos nota que:

[...] em 1545, em Esslingen, uma jovem chamada Margaret, teve uma gravidez notável
e desoladora a seguir às suas relações com seu amante diabólico. Seu ventre tornou-
se tão enorme, que era difícil para as visitas que vinham à sua cabeceira, achar seu
rosto e seus pés. Ouvia-se no seu estômago, uma verdadeira cacofonia, um coro de
bichos – galos e galinhas cacarejando – gatos miando, cães latindo, cavalos
relinchando, etc. Segundo alguns depoimentos, tudo não era senão fraude. Supõe-se,
posteriormente, ter sido descoberto que ela usava uma pele estendida sobre um aro e
dessa forma havia enganado uma multidão de eminentes doutores e eruditos
eclesiásticos que vinham visitá-la de toda parte. Dentro dessa gravidez fraudulenta,
achava-se o corpo de uma mulher jovem, admiravelmente bem formada. (FINNÉ,
1973, p. 210-211 apud MASTERS, 1962)

Outro ponto que podemos citar no tocante ao aspecto e a fisionomia desses ditos
monstros produtos do ato sexual profano é o gigantismo. Sobre isso, adicionamos que:

Sinistrari escreve que “a mulher fica diretamente impregnada pelo esperma do íncubo,
o qual sendo animal é capaz de reproduzir-se, dispõe de um esperma que lhe pertence.
Assim acha-se perfeitamente explicada a geração dos gigantes, resultado da
convivência dos filhos de Deus com as filhas dos homens; pois embora semelhantes
ao homem, esses gigantes eram de estatura bem mais alta e embora gerados por
demônios, que lhes comunicaram sua força, não os igualavam, no entanto, nem em
vigor nem em poder (FINNÉ, 1973, p. 203 apud SINISTRARI, 1956).

Em suma, o conjunto de características que moldaram o sexo profano dos séculos XVI
e XVII foram ressignificações do mundo greco-romano. Destarte, se considerarmos que “[...] a
representação faz ver uma ausência, o que supõe uma distinção clara entre o que representa e o
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que é representado [...]” (CHARTIER, 1991, p. 184) torna-se válido pensar que as bruxas
enquanto mulheres se utilizaram do imaginário sexual que as representações dos demônios
masculinos fomentavam para, a partir da vontade sexual feminina em participar de reuniões
lúbricas que possivelmente aliviavam o fardo do cotidiano pós-medieval/misógino, até o desejo
de fecundidade pessoal e o fetiche pela anatomia fálica, legitimar uma compilação de
sentimentos comunitários do feminino, assim como também representar o reaparecimento de
práticas sexuais gestadas na antiguidade, que foram cerceadas pela moral cristã do medievo,
mas que vieram à tona com a caça das bruxas da modernidade.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde o final do século XVI até a segunda metade do século XVII a Europa estava
inquieta socialmente. A lembrança vívida das insurreições populares se alastrou como a peste
dos séculos passados, provocando uma doença mental nas elites: o medo. Medo do fim do
mundo, medo da perda de posses, medo do desconhecido, medo do Diabo. No entanto, o Diabo
não buscou cumprir sua missão maléfica de antagonista sozinho. Seus agentes, ou melhor
dizendo, suas agentes, as bruxas, se tornaram as responsáveis pelas más colheitas; pelos maus
presságios; pelas mortes suspeitas de humanos e animais; pelas chuvas torrenciais que
provocavam desastres e destruíam plantações; ou seja, eram as responsáveis pelo caos natural
e social.

Foi nesse contexto que a demonologia, conhecimento que tem como marco inicial o
Martelo das Feiticeiras ainda no século XV, encontrou terreno fértil para crescer e se estabelecer
como estudo das práticas da bruxaria, muito mais que do Diabo em si. Antes nos vilarejos,
através dos julgamentos de bruxas onde a condenação era quase certa e a população ansiava
pela justiça do carrasco para expurgar o mal personificado da comunidade. Depois com o
advento da imprensa, quando os escritos puderam ser divulgados em larga escala. Logo, a
perseguição se deu por via dupla: com o apoio dos Estados europeus e embasadas numa
literatura produzida por particulares. Autores como Jean Bodin, Martin Del Rio, Henri Boguet,
Pierre de Lancre, Peter Binsfeld, Nicolas Remy, Francesco Guazzo e Ludovico Sinistrari
compilaram suas ideias em um único ponto de convergência: como o Diabo, enquanto inimigo
de Deus, utilizou as bruxas para perverter a humanidade.

Nesse contexto, a literatura demonológica cumpriu sua função de, composto de um


imaginário rico de representações maléficas e, consequentemente, punitivas, criar uma
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sociedade vigilante às práticas de pessoas estranhas às comunidades: as que tinham poucos


amigos, que moravam sozinhas, que possuíam algum conhecimento curandeiro ou que o
cônjuge tivesse falecido. No entanto, dentro desse estereótipo social, a literatura de repressão
também escolheu um gênero favorito como alvo: a mulher.

Tida como um elo com o profano desde a primeira publicação do Malleus


Maleficarum em 1484, a mulher da idade moderna teve seu perfil social moldado, controlado e
julgado pelos pais, depois pelo marido, pela comunidade e pelo Estado. Dessa forma, as
mulheres acusadas de bruxaria foram justamente aquelas que pervertiam o sistema social
através da excentricidade de seus costumes. Delatadas pelos vizinhos, as bruxas eram acusadas
de terem pacto com o Diabo e seus demônios, o que levou os magistrados a explorarem esse
imaginário sexual profano através dos interrogatórios, tendo em consideração que estes não
foram desprovidos de tortura e intimidação.

Os resultados desta pesquisa nos ajudaram a perceber justamente o que falamos no


parágrafo anterior: como o feminino era representado nos escritos demonológicos, fosse pelo
imaginário produzido pelos demonologistas, fosse pela representação do Diabo enquanto figura
masculina, central e dominante das ações do Sabá. Dessa forma, os conceitos de Remy sobre a
influência no cotidiano e controle do Diabo sobre a mulher, bem como as consequências do
pacto diabólico e um suposto privilégio ao feminino sugerido por Guazzo, assim como a
representação das relações sexuais com os demônios íncubos apresentada por Sinistrari, nos
levam a crer numa doutrina de culpabilização da mulher pelos infortúnios, crises, infortúnios,
doenças e assassinatos das sociedades da Idade Moderna.

Os limites dessa pesquisa foram intencionais e se traduzem justamente pela opção de


trabalhar com apenas três demonologistas. O latim e o francês, linguagens que não domino,
dificultariam um estudo mais profundo dos outros pensadores do tema. Entretanto, vejo isso
como fator positivo para a posteridade, uma vez que não pretendo parar o estudo da temática
nesta pesquisa e buscarei preencher essa lacuna nos trabalhos de mestrado e doutoramento.

Por fim, buscamos nesta pesquisa contribuir para o crescimento do estudo da


demonologia no meio historiográfico, visto que tal enfoque ainda é tímido dentro da academia.
Seja pela dificuldade de trabalhar com o conceito ainda jovem do imaginário, seja pelo
desconhecimento da temática. Esperamos que este trabalho abra espaço para, no futuro, termos
um time maior de historiadores debruçados sobre o estudo do Diabo e da bruxaria, como já
temos Laura de Mello e Souza e Carlos Roberto Figueiredo Nogueira, ambos no Sudeste
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brasileiro. Fica o desejo de que possamos também no Nordeste, através do incentivo irrestrito
às pesquisas da temática escolhida, favorecer o desenvolvimento de futuros expoentes da
historiografia brasileira.

LISTAGEM DE FONTES
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