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cAPÍrur-o I

Serà ENrne EM CsNe


SÉcuros XII-XV

T* r" rffiproblema do Mal e se dispõe a re-


sociedade humana
solvê-lo. Adotando-se o ponto de vista filosófico, a questão pode ser formu-
lada em termos do conceito de natuteza humana, variando a resposta em fun-
ção do otimismo ou do pessimismo do pensador: o homem pode, então, ser
um lobo ou um cordeiro pera seu semelhante. O historiador, no entanto,
tende a afastar-se dessa via, porque seu método não está basicamente orien-
tado para uma apreciação moral desse tipo. A seu ver, urna civílízação não é
uma agregação de indivíduos, e sim um sistema de relações, desdobrando-se
em direção a um ou mais objetivos coletivos e dando-se os meios de atingi-
los enfrentando todos os perigos naturais ou humanos que surgem. As grandes
culturas, as mais brilhantes, as mais duradouras, produzem vigorosa e maciça-
mente um vínculo social. Em outros termos, elas tecem em torno de seus
membros redes relacionais de poderosos símbolos entrelaçados e práticas con-
cretas, que endurecem o cimento coletivo, unindo o indivíduo ao todo, do berço
ao úmulo.
Indício algum, por ínfimo que seja, se mostra portanto inútil para com-
preender como uma cìvìlização se mantém agregada, evolui e perdura. E nada
se revela mais contrário à reflexão histórica que analisar separadamente os di-
versos planos da existência humana. Quer se refira à arte, à literatura, aos
objetos da vida material, ou ao diabo, a noção de cultura se define como um
traço-de-união latente, que dá um sentido global ao universo ao qual se aplica.
Desenrolado em um sentido ou em outro, o mesmo fio de Ariadne conduz
ao centro mesmo desta civilização. Isolar a religião do domínio político ou a
Ser E

economia das representações mentais levaria a uma inaceitável mutilação do


sentido. Uma sociedade tem que ser apreciada como um todo, sem ocultar
suas fragilidades, sem deixar de explorar sua face sombria.
O diabo mos
logos e moralist
Satã surge com toda a força em um momento tardio da cultura ocidental.
não lhe dava esç
Elementos heterogêneos da imagem demoníaca existiam há muito, mas é so-
XII, ou do século XIII, que eles vêm a assumir um uma grande obs,
menre por volta do século
ras do Mal não
lugar decisivo nas representações e nas práticas, antes de desenvolver um imagi-
correspondentes
nário terrível e obsessivo no final da Idade Média. Longe de se limitarem aos
esses fenômenos estão diretamente ligados à
las iriam gradat
domínios teológico e religioso,
final da ldade Ìv
dolorosa, mas sólida, emergência de uma cultura comuÌn. As soluções instáveis,
ditórios, a image
em suspensão desde os tempos do império romano, precipitam-se nos labo-
tiam grande difi
ratórios de uma Europa em plena mutação, que forja, então, suas principais
características produzindo urna linguagem simbólica identitária, capaz de im-
do Antigo e do
sobre o tema. Q
por-se lentamente a um continente política e socialmente muito fragmentado,
A invenção do diabo e do in- opor-se aos dos
verdadeira torre de Babel lingüísrica e cultural.
Igreja tiveram qt
ferno com base em um modelo radicalmente original não é simplesmente um
nascidas de narra
fenômeno religioso de grande importância. Ela marca o nascimento de uma
com a do rebeld
r8 concepção unificadora, compartilhada pelo papado e pelos grandes reinos,
dragão todo-pod,
a mesmo quando estes podefes dão provas de uma forte concorrência entre si
tianismo neste d
visando, cada um, a monopolizar os benefícios em proveito próprio. O siste-
c portântes modelc
o ma de pensemento que elabora uma imegem triunfante de Satã assinala um
bate primordial
enorme impulso de vitalidade no Ocidente. O outono da Idade Média é, sob
r

fundamental. Est
este especto, a primavera da modernidade, pois são experimentadas concepções
.o
F
2 rebelde ao poder
I novas de lgreja e de Estado, das quais decorrem formas inéditas de controle
reinar pelo poder
social das populações. Os triunfos diabólicos, o sentido macabro, não devem
nomina São Paulc
ocultar aparição desordenada de um pfocesso que viria a promovef o Ocidente
a
do mais misterio,
na cena mundial. No fundo, o diabo emPurra a Europa para frente Porque
uma derrota e un
ele é a face oculta de uma dinâmica prodigiosa, que fundiria em um conjun-
luta, que só termi
to único os sonhos imperiais herdados da Roma antiga e o poderoso cristia-
manidade, em cor
nismo definido pelo Concíio de Latrão, ern I2Í5. O movimento vem do alto
serva que element
da sociedade, das elites religiosas e sociais, que tentem amaÍraÍ esses múlti-
mas de maneira o
plos fios em feixes. Não é de forma alguma o demônio quem conduz a dança,
são os homens, criadores de sua imagem, que inventam um Ocidente diferen-
te do passado, esboçando traços-de-união culturais que viriam a ser conside-
tt I
ravelmente reforçados nos séculos seguintes. Jacques Levron,
Vlleneuve, La Beautí

J
Sarà E o Mrro Do CoUBATE PRTUoRDTAL

O diabo mostrou-se discreto durante o primeiro milênio cristão. Têó-


logos e moralistas interessavam-se por ele, sem dúvida, mâs a arte quase
não the dava espaço,Il o que era um indício, entre outros, de ausência de
uma grande obsessão demoníaca no centro mesmo da sociedade. As figu-
ras do Mal não deixavam de existir, com características bastante diversas,
correspondentes eo politeísmo fundamental das populações. Inúmeras de-
las iriam gradativamente fundir-se no fluxo da grande demonologia do
final da Idade Média,rnatrzando com craços variados, e por vezes contra-
ditórios, a imagem d,e Lúcìfer, rei dos infernos. Os próprios teólogos sen-
tiam grande dificuldade em unificar o satanismo, divididos entre as lições
do Antigo e do Novo Têstamento, e as múltiplas ramificações orientais
sobre o tema. Quando da construção de um sistema teológico capaz de
opor-se aos dos pagãos, dos gnósticos e dos maniqueístas, os padres da
Igreja tiveram que dar um sentido coerente a diversas tradições diabólicas,
nascidas de narrativas diversas. Precisaram, assim, casar a história da serpente w
com a do rebelde, do tirano, do tentador, do sedutor concupiscente e do 19
dragão todo-poderoso. lJm autor declarou recentemente que a vitória do cris-
z
tianjsmo neste domínio consistiu em tomâr emprestado um dos mais im- (/
portantes modelos narrativos do Oriente Próximo: o mito cósmico do com-
bate primordial entre os deuses, que tem na condição humana seu desafio
z
fundamental. Esta versão pode, segundo ele, ser assim resumida: um diabo Ílì

rebelde ao poder de Jeová faz da terra uma extensão de seu império para nela ts


reinar pelo poder do pecado e da morte. "Deus deste mundo", como o de-
nomina São Paulo, ele é combatido pelo filho do Criador, o Cristo, por ocasião
do mais misterioso episódio da história cristã, a Crucificação, que combina
uma derrota e uma vitíia simultâneas. A função de Cristo no decurso dessa
luta, que só terminará no fim dos tempos, é ser o libertador potencial da hu-
manidade, em confronto com Satã, seu adversário por excelência. O autor ob-
serva que elementos dessa síntese mítica estão implícitos no NovoTestamento,
mas de maneira obscura e fragmentaria, o que durante muito tempo permitiu

tt b Diabb dans l'art, Paris, Picard, 1935, p. I4-I8. Ver


Jacques Levron, também Roland
Vlleneuve, Ia Beautí du Diabb, Paris, Pierre Bordas e fls, 1994, p. 17-22.
que os teólogos, ou mesmo os humanistas do século XVI, ignorassem ou mi-
O mesmo se dava c,
nimizassem o papel do diabo no sistema de pensamento cristão.r2
populares erarn, pon
Santo Agostinho transformou de maneira sutil esta visão do combate
tência, como o do b
cósmico, afirmando que Deus permitiu o Mal para dele extrair o Bem. Sob
to de reprovação sis
esta óptica, o pecado fazpane da estrutura do universo, uma estrutura benigna
quase não se vendo,
para quem tem a graça. O bispo de Hipona reinterpreta, assim, o mito cósmico eruditos e dos teólo5
da queda de Satã como um elemento da "conspiração divina", destinada a
1o XII, faz crer que a
levar à Redenção. Neste sistema, o diabo é um instrumento paÍe corrigir os
convicções supersric
desregramentos humanos. Em outros termos, o inimigo de Deus foi trans-
religião satânica, que
formado em meio de conversão.I'
pelos mais doutos r
A construção teológica da figura de Lúcifer definiu-se muito rapida- poderosa força dirin
mente, sem acerretar conseqüências sociais ou culturais de maior ampli-
sustedor que havia a
tude. A teoria agostiniana constituiu uma espécie de reserva de sentido para
os pensadores durante toda a Idade Média, modelando a elite cristã, mas
entrando em choque com crenças e práticas demasiado diferentes e com
poder suficiente pare etuer profundamente sobre toda a sociedade. De-
talhamentos e adaptações foram nela inseridos antes do século XIII, sem
$ modificar profundamente a questão. Como pepe, em fins do século VI,
zo Gregório, o Grande, havia tornado sua uma concepção hierárquica do reino
As idéias não flun
de Deus, dividido em nove ordens, nas quais os Serafins ocupavam o cimo.
z só adquirem realmen
: A noção propagou-se no Ocidente, com certos autores alegando que Lúcifer
ô destas últimas, adap
o
o
tinha sido o maior dos anjos e, por conseguinte, um Serafim.t'A demo- mais falso que consi
: nologia ainda não era mais que uma preocupação eminentemente douta, indelével na ererni,i:
.o
um tema de meditação pere monges e eremitas, um elemento de discussão Mal. Tal noção
7
esd
E doutrinal. O segundo Concílio de Nicéia, em787, aribuiu aos anjos e de- mente as do antigo C
mônios um corpo sutil, da natuÍeza do ar ou do fogo, mas o quarto Concílio
D deuses rivais. Encarn
de Latrão, em 1215, afirmou que os anjos, bons ou maus, eram criaturas milênio. Um olhar
puramente espirituais, sem a menor relação com a matéúa corporal.ttTais universalista veiculac
flutuações doutrinais iam de par com uma relativa indiferença parâ com imaginária damda tu
o problema demonológico fora dos seus estÍeitos círculos de interesse. de original no condn
a respeito do mundo

tt Neil Forsi.th, The Old Enem1, Satan and Esboçada em gÍ:Ìrl.


the Combat Ìv[1tb, Princeton, Princeton UB I987, p. 5-
7,439-440.
tensão progressira &
" lbid., p.438-440. mutação de grande e
'n Jeffrey Burton Russel, LuctJer The DniI in tlx Miàdb Ages, Ithaca-Londres, Cornell UP, I984.
ls
Jules Baissac, b Díabb. La personne du àiabb. It personnel du diablr, Paris, Maurice Dreyfous, s.d., tu
Robert-Léon\\ãgner i
p. II8.
Droz, 1939, sobrerud"r p
O mesmo se dava com o domínio da magia, ou até da feitíçaúa. As práticas
populares eram, porém, bastante coúecidas e denunciadas nos rituais de peni-
tência, como o do bispo Burchard de Worms. Elas não eraÍn, contudo, obje-
to de reprovação sistemática, nem mesmo de interesse permanente, o diabo
quase não se vendo a elas mesclado. O silêncio, ou a relativa indiferença dos
eruditos e dos teólogos a respeito das tradições mágicas populares, até o sécu-
lo XII, faz crer que a Igreja Católica não se sentia, em absoluto, agredida pelas
convicções supersticiosas do povo, e muito menos por ume eventual contra-
religião satânica, que seria denunciada com furor três séculos depois.I6 Evocado
pelos mais doutos do tempo como uma força obscura submetida à todo-
poderosa força divina, Satã tardava a encaÍnar-se completamente no papel as-
sustador que havia adquirido por direito desde a Bíblia.

BoNs ou Meus DIABoS


g
As idéias não flutuam de maneira desencarnada acima das sociedades. Elas 2I-
só adquirem realmente importância ao se unirem estreitamente a necessidades
z
destas ultimas, adaptando-se às mutações por que elas passam. Nada seria U
mais falso que considerar a imagem do diabo como que gravada de maneira
indelével na eternidade de uma natuteze humana dividida entre o Bem e o
F

Mal. Tal noção está, porém, incorporada a diversas civilizações, principal- 7


g.l

mente as do antigo Oriente Médio, sob a forma do combate primordial entre F

deuses rivais. Encarnou-se também na Europa exatarnente há menos de um


milênio. Um olhar distanciado pode evitar ser enganado pela definição
universalista veiculada por nossa cultura, pois trâta-se de uma construção
imaginária datada, fundamental, sem dúvida, para a compreensão do que há
de original no continente, mas relativa e estreitamente ligada ao juízo ocidental
a respeito do mundo visível e invisível.
Esboçada em grandes liúas, a história do diabo no Ocidente é a de uma ex-
tensão progressiva de seu impacto sobre a sociedade, acompanhada de uma
mutação de grande amplitude de suas supostas características. Os padres da

It
Robert-Léon Wagner, "Sorcier" et"Magicien", Contribution à I'histoire du vombukire de Ia magie,Paús,
Droz, T939, sobretudo p.37-62.
lgreja e teólogos o haviam definido de maneira bastante incelectual, como Embora não sej;
um príncipe, um arcanjo decaído, transformado em uma espécie de deus ìndizível, por mais (
voador nos ares em companhia de demônios disfarçados em anjos de Iuz não encontrarem ne
(Santo Efrérn, no século IV). Sua representação concreta não era vista fre- final da Idade Méc
qüentemente, o que explica sem dúvida Pof que a arte das catacumbas o diabo humano, del
ignorou completamente. Ele se insinuou, contudo, no seio da vida monásti- poderia ser enconrrj
ca da alta ldade Média, ganhando assim um vigor novo em um universo A insistência nos cr
que ditava a nofma religiosa e transmitia o essencial da cultura do tempo. emPontaeacorcru
Eterno tentador, empenhado em seduzir São Jerônimo no deserto, ele an- ainda no registro c
tecipava o sucesso de um grande tema pictotial dos séculos modernos sem, agitação do persoru
no entanto, aPresentaf já as espantosas caÍacteÍísticas que the seriam atribuí- realçar a superionda
das. Antes de a arte Íomana e as cidades adquirirem maior poder, Lú'cìfer Alguns toques suge
não tinha canais de transmissão para invadir toda a sociedade' A ciência do barba de bode, as c
demônio, a demonologia, era ainda uma especialidade teológica restrita. temnemcauda,nem
Esta abordagem douta tofnou-se, sem dúvida, mais obsedante por volta olhos anormalnenr
do ano Mil, com aidéìa de uma nova inyestida diabólica visando a derrotar propriamente sobre-
o exército do Bem assim que acabasse o milênio. Mas a imagem do diabo não um homem transrü
w era ainda suficientemente convincente e poderosa, a julgar pelas narrativas encarna o Mal no c
do monge Raoul Glaber, que afirma tê-lo encontrado três vezes eo longo de infernos sulfurosos-
a sua existência. Ele assim escreve sua Primeira experiência: Raoul Glaber sir
teológica e respeiro
Ã
a Na época em que eu vivia no mosreiro do beato rnfutìr Léger, denominado natural desenvolçiú
a

: champeaux, uma noite, antes do ofício de matinas, ergue-se diante de mim, ao milênio crisrão nãr
pé de meu leito, uma espécie de anão, de horrível asPecto' Era, pelo que pude múltiplas, que serão
.o

perceber, de estatura medíocre, com um Pescoço marcado de cicatrizes, uma fi-


2
E termo: elas não são:
sionomia emaciada, olhos muito negros, a fronte rugosa e crispada, as narinas tilhadas pelas elire
)
afiladas, a boca proeminenre, os lábios polpudos, o queixo fugidio e em Pontâ, divisória coloca-se
o corpo erero, uma barba de bode, as orelhas peludas e afiladas, os cabelos em religioso em latrm. 1

pé, dentes de cão, o crânio em pontâ, o peito estufado, âs costas corcundas, as estende por uma esci
nádegas fremenres, vesrimenras sórdidas, agitado pelo esíorço, todo o corpo in- entre e mensagem b
clinado para frente. Agarrou a extremidade da cama em que eu repousava, deu ao diferença nem semp:
leito sacudidelas terríveis, e enfim disse: "Você, você não vai ficar mais muito descrição do diabo t,
tempo neste lugar." E eu, assombrado, levanto-me em sobressalto e o vejo, tal mais próxima das pd
como acabo de descrevê-lo.tt Desta ele retem a I
realidade dos demôn
conduzi-lo ao Beul
17
Citado em Georges Duby, LAn Mil,Parrs,lulliard, 1967 ' p' I38' ambivalente: a do m,
Embora não seja sedutor, tal personagem tâmbém não inspira um terror
indizivel, por mais que o queiram cerros aurores, sem dúvida aborrecidos por
não encontrarem nele as características realmente apevorantes do demônio do
final da Idade Média. o narrador apresenta, na realidade, uma espécie de
diabo humano, deformado ou disforme, mau, agressivo, que certilnente
poderia ser encontrável na época (ou mesmo hoje, nas ruas de nossas cidades).
A insistência nos traços físicos, como o talhe diminuto, o queixo, o crânio
em ponte e a corcunda, exprime claramente uma idéia de anormalidade, mas
ainda no registro do humano, sem evocar diretamente o sobrenatural. A
agitação do personagem apenas o torna mais vivo e serve igualmente para
realçar a superioridade da vida monástica, baseada em um ideal de serenidade.
Alguns toques sugeíem a animalidade, de forma puremente metafórica: a
barba de bode, as orelhas peludas, os denres pontudos. Este demônio não
tem nem cauda, nem pés fendidos, e não se faz preceder de um odor pestilencial,
olhos anormalmente brilhantes (eles são apenas negros) ou aptidões
propriamente sobre-humanas. No fundo, não é mais que um mau diabinho,
um homem transviado, um reflexo negativo do bom monge da época. Ele
encarna o Mal no coração do homem, mais que um príncipe reinando em w
infernos sulfurosos. z)
Raoul Glaber situa-se no delicado ponto de junção entre a tradição
z
teológica a respeito do demônio e as representações concretas do sobre-
U
natural desenvolvidas pelas diferentes populações européias. Um primeiro :
milênio cristão não fora suficiente para erradicar crenças e práticas
F
múltiplas, que serão chamadas de "populares", no sentido mais amplo do z
E
termo: elas não são apanágio do povo, pois encontram-se muitas vezes par- F

tilhadas pelas elites dirigentes, inclusive por homens da lgreja. A linha


divisória coloca-se mais entre a ínfima minoria que sabe ler o escrito
religioso em latim, para meditar sobre ele, e o resto da sociedade, que se
estende por ume escala que vai da norma ordodoxa a práticas de sincretismo
entre a mensagem bíblica e as antigas tradições de origem pré-cristã. A
diferença nem sempÍe é muito nítida, como o demonstra exatamente essa
descrição do diabo feita por Raoul Glaber: o autor veicula uma concepção
mais próxima das práticas "folclóricas" de seu rempo que da teologia douta.
Desta ele retém a lição moral, bem como a ênfase na ubiqüidade e na
realidade dos demônios, com o objetivo de atenorizar o ouvinte, para assim
conduzi-lo ao Bem. Do húmus popular ele extrai uma noção mais
ambivalente: a do medo do sobrenatural e das potências superiores eo ser
Satã, Lúcifer, Â
humano, que tanto podern assombrar quanto assumir um aspecto ridículo
o diabo assumia"
e impotente. O anão horrível que ele evoca lhe dá algum medo, mas não
sobretudo na Erm
excessivo, e o estimula a corrigir-se de suas faltas. Mas certos traços seus
herdeiros de pequ
despertariam apenas desagrado ou menosprezo se ele se apresentasse à porta Bogey, Luscy Did
de um mosteiro, ern vez de vir acordar em sobressalto sua vítima - que Nick, RobinHoo<
nem por isso se torna menos capaz de descrevê-lo com uma precisão bas- Ruprecht, Federw
tante fria. alemão. O uso de
Neo é surpreendente descobrir descrições numerosas e muito variadas as denominações f,
do demônio na Europa até os séculos XII ou XIII. As culturas que dividem esses diabos próxir
entre si o continente possuem aìnda, na época, traços específicos muito inspirar. Para um c
vivos, que o cristianismo não conseguiria facilmente recobrir com um manto deuma infinidade
de uniformidade. Povos mediterrâneos, celtas, germânicos, eslavos e almas dos mortos.
escandinavos sofrem, em gÍaus variáveis, uma penetração das idéias cristãs, nido exatamente e
a que se seguem reformulações parciais de suas tradições anteriores, no dos vivos, ao pass(
novo horizonte que se impõe. Jeffrey Burton Russel afirma, com razão, que lJm poderoso veio
a noção propriamente cristã de diabo vê-se fortemente influenciada por toda a Idade Médi
elementos "fo1c1óricos", nascidos de práticas e de tradições tornadas in- trava-se freqüenten
conscientes, em contraste com uma religião popular cristã mais coerente, de pequenos dem,
z4 mais deliberada, mais consciente.ItA "folclorizaçáo" do demônio lhe atribui, paixões, frementes

a assim, por vezes, traços celtas, tomados de empréstimo a Cernunnos, deus te, joguetes dos hc
da fertilidade, da caça e do outro mundo. Embora não chegue a permitir disso. Enganado, v
o
a a sobrevivência, ao longo de séculos, de um verdadeiro culto secreto dedi- punham em cena: ,

ô
cado ao "deus chifrudo do Oeste", como pretendia Margaret Murray para poderoso conffa e

-o
explicar a caça às feiticeiras.'e A religião cristã podia, de fato, admitir européia, voltando
2
empréstimos, sob a pressão dos fiéis, mas ela seguramente não teria tolerado populares, eaténo.i
T
a existência de uma religião paralela. Os principais traços demoníacos acima pois Deus acaba p,
D
descritos não constituíam, em absoluto, um conjunto organizado. Disper- Antes do final
sos na superfïcie do continente, emergindo de universos diferentes e de unificador do cris
origem histórica e
épocas diversas, até o século XII eles permaneceram, contudo, integrados,
A explicação segur
sem grandes problemas, nos sistemas de crenças mais ou menos sincréti-
outfa coisa revela-
cos vividos localmente pelas populações, no âmbito de um cristianismo
de uma luta miler
pouco pÍopenso a expurgar as múltiplas "superstições" aninhadas sob sua
quais certos núcle
protetora túnica.
mence assimilados,
diferente, conserv:
do satanismo teol
tu
J. B. Russel, op. cit., p. 62-87. múltiplas culturas
re
M.Murtay, op. rit.
Satã, Lúcifer, Asmodeu, Belial ou Belzebu na Bíblia e na literatura apocalíptica,
o diabo assumia, assim, multiplos outros nomes, e às vezes até sobrenomes,
sobretudo na Europa. Muitos deles designavam demônios menores, não raro
herdeiros de pequenos deuses dos tempos do paganismo: Old Horny, Black
Bogey, Lusty Dick, Dickon, Dickens, Gentleman Jad<, the Good Fellow, Old
Nidç Robin Hood, Robin Goodfelow em inglês, Charlot, em francês, ou Knecht
Rupreút, Federwisch, Hinkebein, Heinekin, Rumpelstiltskin, Hámmerlin em
alemão. O uso de diminutivos (Charlot, ou as terminações alemãs em kin) ou
as denominações familiares ("Velho úifrudo", falando de Old Horny) tornavarn

esses diabos próximos dos humanos ,rcduzindo certamente o medo que poderiam
inspirar. Para um cristão comum desses séculos, o mundo invisível estava povoado
de uma infinidade de personagens - mais ou menos temíveis -, santos, demônios,
almas dos mortos. Seu respectivo lugar no universo não era, provavelmente, defi-
nido exatamente em relação ao Bem Mal, pois os santos podiam vingar-se
e ao
dos vivos, eo passo que os demônios erâm por vezes invocados parâ ajudáJos.
Um poderoso veio cultural, de familiaridade com o sobrenatural, atravessa assim
toda a Idade Média. O diabo dos teólogos, uma ficção sem maior graçe, encon-
trava-se freqüentemente encoberto por imagens bem mais concretas, mais locais,
de pequenos demônios quase semelhantes aos seres humanos. Habitados por
ç
paixões, frementes como o diabo de Raoul Gabler, eles eram assim, seguidilnen-
z5
te, joguetes dos homens. O Mahgno nem sempre tiúa a ultima palavra, longe z
disso. Enganado, vencido, objeto de zorrbarra, ele tranqüilizava os que assim o U

punham em cena: o tema do demônio dominado pelo homem ere rün antídoto
poderoso contra a angústia- Aliás, ele nunca desapareceu de todo da cultura F
z
européia, voltando com força depois da caça às feiticeiras, nos contos e lendas EI

populares, e aténoFaustodeGoeúe-mito antigo transposto de maneiragrandiosa, F

pois Deus acaba perdoando o sábio por ter cedido à tentação satânica-
Antes do final da Idade Média o diabo tem no nome a variedade. O fluxo
unificador do cristianismo incorpora múltiplos elementos estrangeiros, cuja
origem histórica e geogrâftca exata é, em geral, impossível de ser detectada.
A explicação segundo a qual o Maligno é capaz de transformar-se em qualquer
outra coisa revela-se um tanto insuficiente. Pode-se falar, mais corretamente,
de uma luta milenar do cristianismo contra as crenças e práticas pagãs, das
quais certos núcleos duros resistem a uma destruição total, mas são lenta-
mente assimilados, recobertos com um novo véu, reorientados para um contexto
diferente, conservando seu particular poder de evocação. A maré montante
do satanismo teológico faz naufragar, sem destruir totalmente, escolhos de
múltiplas culturas demoníacas.
O diabo assume, com isso, aparências inumeráveis. Tornado animal, ele pelugem de bo
hesita entre a tradição judaico-cristã e os deuses associados a formas vivas Freqüentement
dos pagãos. Embora a forte marca cristã exclua o cordeiro, ou mesmo o e não unicamer

boi e o asno, ele não consegue impor a opinião de Sao Pedro, segundo a estâ cor ou ter

qual Lúcifer é um leão rugidor. Em outro registro, a serpente do Gênesis deToledo, em,

confunde-se facilmente com o dragão do paganismo. O bode, uma das de asno, olhos

formas preferidas do diabo, deve talvez este privilégio a sua antiga associação palhando um o
e das crenças
com Pã e Thor. O cão constitui outra de suas aparências prediletas.'o Mas çx
a figuração do cão com pés semelhantes aos das estátuas dos túmulos, em que fosse uma
Verde dos celc
particular os femininos, sobretudo nos últimos séculos da Idade Média,
diabo em Artor
comprova a dificuldade de estabelecer princípios definitivos neste domínio,
descrições não
pois essas imagens expressam a fidelidade e a fé. É pr"ciro, de qualquer
de meados da I
modo, não dar crédito a ume interpretação fixista" das coisas, a Partir de
diabo caracteú
uns poucos exemplos ou de pressupostos culturais tardios. Macacos, gatos,
mais como escc
baleias, abelhas ou moscas não seriam animais demoníacos por excelência
À dif..er,ç" do,
desde a alta Idade Média? Poderíamos dizer quase o mesmo de todo o
avó de Satã, mu
conjunto do reino animal, com menções especiais ao mocho, ao porco, à
w salamandra, ao lobo ou à raposa. A prudência exigiria, neste domínio,
ou Lillith)
uma espécie de
descr

z6 estudos precisos, locais, sem preconceitos, para tentar captar as filiações e


tanto, ter uÍrÌâ
as ruptuÍas desde os temPos pré-cristãos. '
2 usado para um:
Outras caracteÍísticas do diabo, provenientes de heranças diversas, foram
à pois ela se revel
c levantadas pelos historiadores." Elas compõem ume imagem demasiado
c enganado,ludib
sintética para corresponder à realidade, mas permitem definir traços
z gavam tais rum<
-o
lembrados pelos acusados de feitiçaria do século XVI e XVII, quando se
I males conjugar-s
T viam obrigados a responder às precisas perguntas de seus iuízes. O demônio
bate em sua mu
era considerado capaz de se apresentar sob todas as formas humanas lendas que se b'
D
imagináveis, com preferência pelos estados eclesiásticos. Podia tamt:érn fazer
navarn os sete P
crer e seus interlocutores que ele era um anjo deluz. Assumindo a estatura de os quais ele ger
um gigante, falando através de um ídolo, soprando seu veneno em urna rujada em seguida setrs
de vento, ele nem sempÍe manifestava sua diferença, sua monstruosidade. Do Capaz de esr
deus Pã ele parece ter tirado traços iconográficos, tais como os cornos, a
tudo, determin:
em oposição à I
animais noturl
'o Barbara Allen Woods, The Dníl in Dog Form. A Partial Tlpe-Indtx oJ DniI I4enàt Berkeley,
University of California Press, I959.
z' Fixismo
- Doutrina dos adversários da evolução biológica, que julgam cada espécie fixa e
imutável (Linné, Cuvier). (N. daT.) 23
Patricia Meriralt
t'J. B. Russel, op. cit., p.68 e seg. ta sobretudo de ur
pelugem de bode que recobre seu corpo, o falo desmesurado e o grande naiz.t'
Freqüentemente negÍo, segundo um simbolismo habitual em inúmeras civilizações
enão unicamente entre os cfistãos, ele podia não raro ser vermelho, vestiÍ-se com
esta cor ou ter urna barba flamejante, que às vezes podia ser verde. O Concflio
deToledo, ern447, o descrevia como um ser grande e negro, com garfas, orelhas
de asno, olhos faiscantes e dentes langentes' dotado de um falo enorme e es-
palhando um odor de enxofte. E difirtldeslindar Partes resPectivas da teologia
as

e das crenças populares neste domínio. Quanto à cor verde do diabo, era provável

que fosse uma lembrança longínqua de deuses da fertilidade' como o Homem


Verde dos celtas e teutões. Verdelet ou Verdelot é sempre um dos nomes do
diabo em Artois no século X\4I.
E, no entanto, provável que as exPressões e as
descrições não se referissem mais a uma noção pagá clata e consciente a Parcir
de meados da Idade Média- E muito menos que a evocação de uma família do
diabo caracterizasse uma mitologia precisa, as noções em questão sobrevivendo
mais como escolhos do naufrágio do passado flutuando em 1ün oceano cristão.
À dif"t .tç" dos historiadores, as resremunhas do tempo deviam ignorar que a
avó de Satã, muito mais seguidamente citada que sua mãe (que se chamava Lillis'
ou Lillith) descendia de fato de uma lembrança da terrível deusa Cibele ou Holda, ç
uma espécie de imagem materna monstruosa e devoradora. O diabo podia, por-
z7
tarÌto, teÍ ulna esPosa, vezes desenhada segundo um croqui anteriormente
Pof
usado para uma deusa da fertilidade. Seu casamento era quase semPre infeliz, z
U
pois ela se revelava uma megere, na liúa direta da vigorosa madição do diabo
enganado, ludibriado e derrotado. Não há dúvida de que os homens que ProPâ-
gavam tais rumores neles encontravaÍn uma forma de consolo Para seus próprios F
z

adágio segundo o qual o trovão estronda quando o diabo


LLl
males conjugais. O
F
bate em sua mulher, conservado até nossos dias, é herdeiro desta dimensão, e há
lencla. que se baseiam igualmente no tema das sete filhas do diabo, que encar-
naviln os sete pecados capitais, ou de seus dois filhos, a Morte e o Pecado, com
os quais ele gerou os sete vícios por ocasião de relações incestuosas, enviando
em seguida seus sete netos ao mundo, PaÍa tentâr os humanos'
capaz de estar em toda perte ao mesmo tempo, o demônio preferia, con-
tudo, determinados locais e determinados momentos. A noite era seu reino,
em oposição à luz divina brilhando sobre a terra. Lugares desolados e frios,
animais noturnos estavam por isso mesmo diretamente ligados a ele.

23 parricia Merivale, pan and the Goat-God, Cambridge, Cambridge UP 1969 (mas a obra tra-
ta sobretudo de um período posterior).
i
I

Das quatro direções, o norte, domínio do frio e da obscuridade, era a sue pelo visto, não conta
preferida. Aliás, todas as civilizações temem os perigos associados ao lugar ampliada por uma p<
ermo, como os asteces do século XVI, para os quais é este o território de comportamentos sisf
seu deus da morte. Os autores cristãos acrescencam a isso uma explicação, um Mal centralizado
para eles lógica: as igrejas estão orientadas para leste, portanto, ao entrer sos sociais fragmenta,
nelas, tem-se o norte à esquerda; ora, este lado do corpo humano ou do imagens do demônior
universo criado por Deus foi dedicado ao diabo, sinistro no sentido mesmo filtros múltiplos à p'er
do termo latino que designa a esquerda. Empenhado em seduzir os vivos, noção distante que tn
particularmente as mulheres e os pecadores inveterados, o Maligno é também rência suficiente para
uma figuração de deuses dos mortos pagãos. Este traço é um dos mais era ainda a de um img
duradouros na cultura ocidental, até nossos dias, pelo menos sob a forma de I.III legiões de 6.6(
lendas e narrativas literárias, sem esquecer a carreta dos mortos ou o Ankou fanáticos2s segundo os
bretão. A " caçadaselvagem", também chamada de "mesnie Hellequin",2' atra- a uma época de fragu
vessa toda a Idade Média. Nascida de uma crença no vôo dos demônios condu- das numerosâs "supìr
zidos por seu chefe, acompanhados de cães diabólicos, ou mesmo de mulhe-
quecido tanto pela ner
:
res selvagens, ela conta que os mortos são desta maneira envolvidos em uma
to pela multiplicidad
iii
terrível tempestade em direção a uma última morada que nada tem de muito anos depois de Jesus t
r,i

lil
ç católica. Não se trate, certeÍnente, de simples sobrevivência das religiões ger- não devia basar pan
l,l
z8 mânicas, nem mesmo de lembrança consciente das cavalgadas das Walkirias,
que eles poderiam tom
il;
trj
a mensageiras de Wotan, conduzindo ao Walhalla as almas dos guerreiros fale- ordem, poder. Os mor
: cidos, e menos ainda de práticas xamânicas reais conservadas. Quando muito,
quase sempre distingu
lI o
o pode-se crer que tradições desenraizadas de seu solo de origem conservararn
a gantes ou os seres htm
uma força simbólica suficiente para continuar a emitir imagens fortes no uni-
i, mosúraÍ aos homens o
verso cristão, enriquecendo assim a figura demoníaca e desenvolvendo contra-
! tâvam se eles teriam tu
E dições neste sentido.
alemães, dos celtas e
Contrariamente ao que gostariam de fazer creÍ os teólogos da época, a
) pelos doutrinadores c
fronteira entre o Bem e o Mal não era nem nítida nem fixa. A maioria dos
olhos das populações,
europeus tinha, provavelmente, dificuldade em separar também com facilidade
sobre eles. Este povo n
o joio do trigo. O discurso demonológico epârentemente não gerava uma tornava familiar o ur
ansiedade social generahzada em toÍno do tema do diabo, mesmo com a
tesouros e metavarn o!
aproximação do ano Mil, salvo quando ele se encarnava em ameaças concretes
tes imprudentes. ou
vindas de heréticos ou de judeus. A angústia escatológica das elites cristãs,
I
!
dos nightmares inglese:
animais para fazê-los

2a
La Maisnie Helbquín (ou o cortejo de Hellequin): nome dado na Idade Média a um ruidoso ban-
do de espíritos malignos, cujo chefe era Hellequin, protótipo do Arlequim d a Commedia dell'Aru.
(N. daT.)
" O termo usado pelo a.a
sinônimo de seguidor cegz
pelo visto, não contamiriara em profundidade as populações, por não estar
ampliada por umâ poderosa cultura demonológi ca, capaz de fazer surgirem
comportamentos sistemáticos diante de uma ameaça unificada. A teoria de
um Mal centralizado não tinha canais de ftansmissão para contaminar univer-
sos sociais fragmentados, em uma Europa cheia de diversidades. As múltiplas
imagens do demônio então existentes no continente Íepresentavam igualmente
filtros múltiplos à penetÍação das reses teológicas. O Anticristo era mais uma
noção distante que um cúmplice ativo de Lucífer. Este não tinha, aliás, coe-
rência suficiente para desencadear pânicos generalizados. Sua ubiqüidade não
era ainda a de um imperador infernal conduzindo de maneira autoritária suas
I.III legiões de 6.666 demônios cada uma, ou seja, 7.405.926 seguidores
fanáticos2s segundo os cálculos do médico JeanWier no século X\{L Adaptado
a ume época de fragmentação política e de tolerância religiosa prâtica diante
das numerosas "superstições" herdadas do passado pagão, ele se via enfra-
quecido tanto pela necessidade de estar ao mesmo tempo em toda parte, quan-
to pela multiplicidade de suas aparências. Máximo de Tiro calculara, I80
anos depois de Jesus Cristo, que havia 30.000 demônios, o que provavelmente
não devia bastar para as suas tarefas, nem levava em contâ as inúmeras formas ç
que eles poderiam torÌur. Faltava, indubitavelmente, âo universo satânico coesão, z9
ordem, poder. Os monstros dele não fazian parte obrigatoriamente, pois eram
z
quase sempre distinguidos dos demônios, acreditando-se que os anões, os gi-
u
gantes ou os seres humanos com três olhos tiúam sido criados por Deus para
moscraÍ aos homens o que erâ a privação de um traço físico. E então se peÍgun-
F
tavam se eles teriam uma alma. Do mesmo modo, os espíritos da natureza dos z
LA

alemães, dos celtas e dos eslavos, considerados como demônios menores ts

pelos doutrinadores cristãos, mantiúam muitas vezes certa ambivalência aos


olhos das populações, apeseÍ do esforço crescenre de diabolização desenvolvido
sobre eles. Este povo miúdo de kobolds, trolls, elfos, gobelins e outros anões
tornâva familiar o universo sobrenatural. Alguns deles eram guardiães de
tesouros e matavam os ladrões, outros se divertiam em desviar da rota viajan-
tes imprudentes, ou então povoavâm os pesadelos dos dormeurs (os mares
dos nigbtmares ingleses), os elfos lançavam flechas sobre os homens ou os
animais para fazè-los adoecer.

" O termo usado pelo autor é. séifu, de Síide ou Zafi ibn Hàntha, escravo liberro de Maomé. É
sinônimo de seguidor cegamente devotado, sectário e fanático. (N. daT)
Mas era muitas vezes possível capturá-los, amedrontálos, ludibriá-los ou
até mimá-los, depois de tê-los tornado esperros espíritos familiares. O mesmo
acontecia com os diabos demasiadamente humanos tantas vezes descritos nos
contos e lendas.
lJma concep çã,obanalízada do universo sobrenatural sobrevivia com firmeza
em confronto com a ascensão de uma imagem aterrortzante de Lúcifer. Uma
série de crenças e de práticas visavam principalmente a sua desdramatização
ou, pelo menos, a afirmar a possibilidade de agir sobre os espíritos invisíveis
para evitar sua maldade ou mesmo para obter de sua parte uma ajuda preciosa
em diversos domínios. A história do diabo enganado tinha, no caso, extreor-
dinária importância. Derivada de narrativas sobre a tolice dos trolls ou dos
gigantes, e estendida ao conjunto do reino demoníaco, ela produzia um
sentimento comum de superioridade do homem sensato e corajoso sobre o
pretenso Maligno. Fabliaul" e ourros contos medievais com freqüência puse-
ram em cene pessoes comuns cepâzes de impor-se ao Príncipe das Ti.evas.
Afinal o próprio Deus não tinha dado ao homem uma possibilidade de vencer
as tentações satânicas? Os teólogos dizìarn que Lúcifer era muito poderoso,
6 mas também basicamente ìncapaz de compreender muita coisa, que corres-
)o pondia ao mesmo princípio fundamental de explicação. Longe de ser o dono
da festa, Satã via-se simultaneamente cerceado pela vontade divina e contestâ-
z
: do pela malícia humana. Quando ele conduzia a caçada selvagem, aconrecia-lhe
o
a
â
também cavalgar os animais ao contrário, signo eminente de cruel zorrrbarìa
aos olhos dos contemporâneos. Pois não era uma pútìca social de humilhação
;
.c
dos personagens de carâter ftaco fazê-los montar ao contrário em um asno,
v
T sobretudo os maridos corneados, que assim desfilavam, sob zombarias dos
espectadores, em punição a sua fraqueza dìante da esposa volúvel? O fato de
:l
os demônios e seus seguidores fanáticos terem sido imaginados com essa
mesmâ postura dava, então, a medida de um procedimento que os minimizava.
O traço manter-se-á posteriormente, em um contexto muito mais trágico,
por ocasião dos processos de feitiçaria: confessar ter cavalgado, caminhado
ou dançado ao contrário será considerado como uma prova de pertencer
ao universo maléfico.

26
Fabliaux - do francês arcaicoJableau. conros alegres da Idade Média, em versos e rom em
geral grosseiro. As vítimas prediletas de sua maldosa verve são o vilão, o marido enganado e

o padre. (N. daT)


Porém até o século XII o mundo era demasiado encantado para per-
mitir a Lucrfer ocupar todo o espaço do medo, do temor ou da angústia.
O pobre diabo tinha concorrentes demais para reinar absoluto, ainda
mais porque o teatro do século XII fazia dele uma imagem de paródia
ou francamente cômica, retomando o veio popular referente ao Mau
ludibriado. Uma tradição originária da literatura irlandesa, sobretudo da
Viagem de São Brendan, falava até de anjos neutros, que não ficavam nem
do lado de Deus nem no do demônio. Apesar das alegações dos teóricos,
e1e não chefiava o infinito povo dos pequenos seres, das fadas, nem tinha

controle real sobre os monstros. Neste universo extremamente populoso,


extremamente diversificado, a luta do Bem contra o Mal não dependia
apenas de duas entidades superiores em permanente conflito, e sim da
coragem cotidiana, da vontade reta e da astúcie dos seres humanos. Pelo
menos estes imaginavam que seus atos, suas escolhas, seus desejos tinham
um grande papel a desempenhar frente eos seres sobrenaturais, na maior
parte das vezes ambivalentes e conciliadores, mais que bons ou maus por
princípio. Os piores crimes não eram julgados pelo ordá1io?27 A inter-
venção divina podia, então, ser facilmente desviada pelas paixões dos
w
homens, poí seu talento em encontrar aliados invisíveis na imensa floresta )Í
de símbolos que acreditavam identificer em torno deles. O tempo de uma z

vigorosa ofensiva cristã destinada afazer ler o mundo em branco e pre- l)


:
to estava, no entanto, por vir. Jefftey Burton Russel explica a mudança
com a enérgica arrancada escolástica, produtora de uma diabologia mais ts
z

vigorosa.'u A figura do diabo adquiriu, de fato, importância crescenre a
F
partir do século XIII. Mas as idéias não têm maior força se não seguem q

a evolução das sociedades. Lúcifer cÍesce no momento mesmo em que a


Europa procura maior coerência religiosa e inventa novos sistemas
políticos, preludiando o movimento que vai projetâ-la para fora de si, na
conquista do mundo, no século XV

" Do latim medieval ordalium: prova judiciária destinada a justificar ou a confundir um âcu-
sado. O ordálio, ou julgamento de Deus, gozou de grande voga nos primeiros séculos da
Idade Média. Consistia em fazer o acusado passar por umâ pÍova de fogo ou de água, da
qual, se ele conseguisse sair salvo, poderia ser declarado inocente. (N. daT.)
'8 J. B. Russel, op. rit., p. I60-16I.
CeuseR Meoo: UMA OssessÃo DresoLIcA
EM FlNs DA Ineop MÉota

Prcduzir a imagem do Mal por meio do que se poderia úamar de imaginário


coletivo de uma sociedade é algo sempre estreitamente ligado aos valores mais
atuântes nestâ mesma sociedade. Assim, é necessário tentar puxar o fio da meada
peÍa atingir seu sentido. O Ocidente dos quatro ultimos séculos da Idade Média
é, antes de tudo, cristão, o que dá à religião lugar primordial na explicação. No
entanto, a esfera religiosa não está circunscrita a si mesma. Ela coincide com os
fenômenos políticos, sociais, intelectuais e culturais, confirmando-os. O aumento
de poder de Lúcifer não é conseqüência unicamente de mutações religiosas. Ele
tradrvum movimento de conjunto da civiltzação ocidental, uma germinação de
poderosos símbolos constitutivos de uma identidade coletiva nova - que não
deixa de trazer consigo contradições importantes. A Europa dota-se lentamente
de outros fatores de unificação, além do cristianismo propriamente dito, embo-
ra suportando poderosas tiranias locais, que a pulverizam em multiplas entidades
políticas e sociais concorrentes. O pólo unitário é muito menos visível que a

Jz tendência centrífuga, sobrerudo nos séculos XfV e X! geralmente considerados


o como períodos de crise ou mesmo como "o outono da Idade Média".
Encadeamentos sutis se articulam, porém, no âmago de uma sociedade conti-
o
a nental, que partilha de um número crescente de símbolos culturais comuns. A
a
difusão dessas tendências unificadoras ultrapassa, e paÍtir de então, os estreitos
.o
ts quadros da sociedade eclesiástica ou monásticapara enraizâÍ-se nas cidades (par-
T ticularmente naquelas em que estas são mais poderosas' como no norte da Itália),
contaminar as grandes monarquias, invadir a arte ea literatura-tata-se de modelos
D
novos de relações entre os homens, muitas vezes expressos na linguagem da re-
ligião e da cultura, mas firndamentalmente destinados à consolidação do cimento
social. A questão do poder constitui o fundo do problema, quer se defina em
termos da instituição eclesiástica, quer de ambições principescas. Esboçam-se
esforços para reunir as energias e sair, assim, de uma situação atornízada.,
instável, tomando como referenciais os prestigiosos modelos do império
romano ou de Carlos Magno. Deve-se datar deste longo período o início do
pÍocesso cìvíizat&ìo ocidental, brilhantemente analisado por Norbert Elias."

tn
N. Elias, Ia Civilkation des moeurt op. cít,
Pois estes séculos em contraste possuem uma coerência global a de preparar a
projeção do Ocidente para fora de si mesmo, das Cnrzadas à descoberta da
América. Obscurecidos pelas crises e rivalidades internas, os geÍmes de uma
maturação devem ser buscados na verdadeira invenção de um novo olhar so-
bre o mundo, sobre o corpo humano, sobre os meios de melhor trânçar os
fios das sociedades - coisas essas que se tornarão os pontos fortes de uma
civ ìlìzação ocidental conquistadora.
Longe de constituir um fato isolado, a mutação de uma imagem do diabo ins-
creve-se neste dinâmico campo de ação. Ela se torna o fermento da evolução,
pois faz parte de um sistema unificador de explicação da existência, que aproxi-
ma lentamente as paÍtes mais empreendedoras do Ocidente, opondo-se, cada
vez mais nitidamente, no decurso dos séculos, ao universo maciçamente encan-
tado e infinitamente pulverizado em que continuam a viver as populações
agrícolas e as massas urbanes.
A escultura romana dos séculos XI e XII encerna Satã sob diyersas for-
mas humanas e animais.s0 Ele deixa a absffação teológica para torner-se devo-
rador de homens, vassalo traidor ou a besta do Apocalypse de Saint-Sever. Nem
por isso deixa de ser um produto da imaginação dos monges, tal como em
Saulieu, onde sua estatura de humano alado com focinho pontudo como o ,)
de um tamanduá deriva diretamente de uma visão aparecida ao monge de
z
Cluny, tal como a relata Pedro, oVenerável. Quanto aos gigantes de cabeça O
pequena, com membros desmesuradamente longos, de Autun, eles nascem
de uma descrição feita por Guibert de Nogent. Zornbetefto, aterrorizante,
ts
o demônio romano causa medo às elites dafé e tenta impor sua presença z

obsedante aos cristãos simples, que o vêem tanto sobre um capitel quan-
't
to sob as aparências grotescas com que se apresenta nas tradições popu-
lares ou no teatro. A mensagem, com isso, mostre-se confusa, carregada
demais de alusões doutas para realmente fazet populações inteiras suarem
de angústia. Além disso, a arte gótica do século XIII não aceita colocar o
diabo em um lugar medíocre. Esmagado pelo Cristo em majestade nos
frontões das catedrais, relegado ao papel de servir apenas para va\oúzar
ainda mais a beatitude dos eleitos em marcha para o paraíso, ele se torna
quase humano, simplesmente um pouco enfeado, brincalhão ou zombador.

tuJ. Delumeau,
Lt Peur en Occident, op. rít., p. 233. Ver também H. Legros, "Le diable et l'enfer:
représentation dans la sculpture romane", em b Dìabb au Moyen Age (doctrine, problìmes moraux,
représentatíons), Senefiance n" 6, Université de Provence, I979, principalmente p. 320-32L
Pitoresco, próximo do gosto popular, que tende a caçoar dele, ele povoa lu-
gares diversos, imobiliza-se nas canaletas de escoamento das águas' impotente
sob o olhar de um Deus que o domina e the deixa pouco esPaço para agir.
o diabo é ainda buscado, ou melhor, os homens que o imaginam hesitam en-
tre a lição gÍotesca que agrada a muitos e uma definição mais assustadora
nascida de uma meditação teológica desenvolvida desde Gregório, o Gtande'
A acentuação de traços negativos e maléficos do demônio pode ser realmente
assinalada apa.tft do século XIV porque o fio da história assim contada não
se limita mais ao estreito mundo monástico, mas se entretece cada vez mais
profundamente na trama de universos laicos em que se coloca concfetamente
o proble-" do poder, da soberania, das formas de dependência. o discurso
sobre Satã muda de dimensão no momento mesmo em que se esboçam teo-
rias novas sobre a soberania política centrahzada, diante das quais o universo
das relações feudais e vassálicas cede lentamente. A contaminação entÍe
essas

duas esferas, aparentemente tão distintas, é evidente, principalmente nos paí-


ses mais empenhados em uma modernização das engrenegens monárquicas,
como a França e a Inglaterra, ou Para os que vêem desenvolver-se grandes
ç entidades urbanas, como e Itália. Em todos os casos a arte fofnece o tÍaço-
34 de-união necessário, definindo o poder dos que comandam as atividades e de-
a pois pondo em cena, encre outros temas, infernos e demônios de um gênero
sobre-humano até enrão bashnte raro ou mesmo desconhecido' De imedia-
Ã
a to, a questão da soberania sob a forma de uma rebelião que visa o acesso
-
â
da história
: ao poder absoluto - aparece no centro mesmo do episódio inaugural
.o
do mundo: contade por 63 miniaturas inglesas e francesas de fins da Idade
i:
T Média dedicadas a Satã, segundo a análise desenvolvida por Jérôme Baschet'3r

Os signos do poder de Lúcifer vêem-se a Partir daí acentuados' em seu talhe


3
superiof ao dos demais demônios, sua posição' sentado, excepcionalmente Por-
tador de uma cofoa, como em Á horasJelízes k duque de Berry,dos irmãos Limbourg,
em I4I3. A insistência quanto à elevada estatura de Satã é uma carâcterística
nova do século XIV Na \tílìa ela pode ser vista em Florença, em Pádua,
na Toscana, onde o demônio chega a ser mais imponente que o Cristo'"

,rJérôme Baschet, "satan ou la majesté maléfique dar. les miniatures de la fin do Moyen

Age," em Nathalie Nabert (otg.), b Mal et le Diabb. burs Jigures à ln J;n du Moyn Aye. Paàs,
Beauchesne, 1996, p. I87-210.
.r ks représentations de I'enJer en France et en halíe 6II-XVme
Jérôme Baschet, bs Justircs àe I'au-tbk.
slrilr), Rome, Escola Francesa de Roma, 1993, p' 219-220'
Ela segue paralela e uma monstruosidade cada vez mais assinalada e à aluci-
nante evocação de um inferno fervilhante, cujo centro ele ocupa, como um
rei em seu trono. Nas paredes do Campo Santo de Pisa, ou da ìgteja de São
Geminiano na Toscana (os afrescos são de auroria de Tâddeo di Bartolo, em
1396), sua gigantesca figura chifruda domina a dos demônios que se dedicam
a punir os pecadores e os minúsculos danados que ele aperta em suas mãos
antes de engoli-los com fúria." Em Florença, ou em Pádua, duas serpentes
saem de suas longas orelhas, e suas três goelas deyoram cada uma um danado:
Dante parece ter-se inspirado no mosaico de Florença pâra descrever um impe-
rador infernal com três faces devoradoras.Ventre bestial, o terrível diabo en-
gole e vomita incessantemente os pecadores, sobre os quais se lançam votaz-
mente os dragões ou as serpentes que lhe servem de assento e os inúmeros
seguidores diabólicos ocupados ern rnaftirizar sadicamenre corpos infini-
tamente maltratados.
O inferno e o diabo,
partir de então, nada têm de metafórico. A arte
a
produz um discurso bastante preciso. muito figurativo, sobre este reino de-
moníaco, colocando detalhadamente, a título de exemplo, a noção de pecado, g
a fim de melhor induzir o cristão à confissão: "Meter medo nele produz
um choque emotivo que leva a fazer agir e a fazer confessar." Em outros )5
termos, a encenação satânica e a pastoral que a ela se reporte desenvolvem z

aobediência religiosa, mas igualmente o reconhecimenro do poder da Igreja O


:
e do Estado, cimencando a ordem social com o recurso a ume moral ri-
gorosa.tn F
z
LIl
Embora seja quase impossível avaliar com precisão o impacto social do
discurso demonológico, paÍece certo que ele atinge círculos cadavezmaiores,
da corte real aos laicos ricos que descobrem o inferno em seus livros de horas,
sem esquecer dos inúmeros citadinos que freqüentam as igrejas assim orna-
mentadas, ou certos camponeses submetidos a uma pregação do mesmo tipo.
A lição comum que todos podem dai tírar não é unicamente religiosa, pois
as imagens mentais consagradas ao inferno
e ao diabo falam igualmenre coisas

sobre a lei, sobre o governo dos homens. A partir do século XIV a deta-
lhada evocação dos suplícios infernais dá o exemplo de uma justiça desejada

tt
J. Delumeau, I't Peur en Occídent, op. cit. p.234.
" J. Baschet, op. cit., p. 496-497 e 590-59I.
por Deus, implacável, sem apelo, em oposição a uma ptítica terÍestÍe multas
vezes inefrcaz. Ela, lenta e insidiosamente, habitua as populações a pensar que
a maÍca mesma da soberania reside no poc,{er da espada punitiva. Abre-se as-
sim, pouco a pouco, o caminho que leva a um Estado de justiça mais severo,
a um rei capaz de manejar um aÍsenal de suplícios adequados, em nome de
Deus. Antes de condensar-se no século XVI na forma da noção de lesa-
majestade, a idéia segundo a qual os castigos formam uma ca.leia progressiva,
que religa as ações humanas à vontade divina, começa â expÍ€ssâr'-se no es-
petáculo do castigo implacável Íesefvado aos pecadores. Aos que acrediCavam
poder usaf de subterfúgios com o diabo e, Portanto, com Deus, a nova ima-
geria infernal explica que eles não conseguirão escapar de sua softe. A emea-
ça se tofna mais dramática, obrigando fiéis culpabilizados
a tentar dela
eximir-se por meio da confissão, da devoção. A acentuação do medo do in-
ferno e do diabo tem, provavelmente, por resultado um aumento do poder
simbólico da Igreja sobre os cristãos mais atingidos Por estas mensagens.
individual
Jérôme Baschet evoca, com raz?to, urn mecanismo de inculpação
mais intenso, que não é exatamente um cristianismo do medo, mas um movi-
mento que impele o crente a superá-lo e a reassegurar-se seguindo, mais do que
)6
antes, as vias que lhe são traçadas. Arma para reâfirmar em profundidade a
a
sociedade cristã, a ameaça do inferno e do diabo aterrador serve como ins-
:
ô trumento de controle social e de vigilância das consciências, incitando à trans-
a
o formação das condutas individuais."
: Ampliando-se a perspectiva, podemos falar de um início de modernização
-o

dos comportamentos ocidentais. O mecanismo de inculpação individual,


F

I=
iniciado em certos estratos das sociedades européias Por meio da mo-
) dificação da imagem do diabo e do infeÍno, induz auma série de conseqüências.
Desenvolve a concepção monástica da morte e do corpo em setores laicos
cada vez mais amplos, em detrimento das acepções populares centradas em
uma "continuidade além da morte"36 e na percePção de um mundo sobfe-
natural sólido, denso, em que o Bem e o Mal não são, em princípio, perfei-
tamente distintos. O abalo deste universo encantado assinala a fetomadâ
da conquista cristã, mais que uma proliferação do diabólico. A afirmação da
autonomia do inferno pode ser compreendida como um imenso esforço

" lbíd., p.583, 586-587.



1üi1., p. 583.
no sentido de tornar mais visível a divindade cristã, sacudindo o amontoado
de "superstições" que com demasiada freqüência o recobria. Uma definição
mais precisa da morte e do outro mundo permitia, assim, melhor esclarecer
o que devia acontecer aqui embaixo, ou seja, as relações dos homens com os
poderes. Distanciando-se dos deuses em nome de um Deus único cristão,
instalando Satã em lugar eminente, porém subordinado à vontade divina, in-
sistindo na idéia de que os pecadores e os criminosos não conseguem escapar
de um merecido castigo, a Igteja contribuía para modelar as características
que definiriam a identidade de uma Europa dinâmica, empurrada adiante por
uma força coletiva ligada à inculpação individual. Pois, como afirma Jérôme
Baschet, o sentimento em questão produz uma alquimia religiosa, reorien-
tando dentro do campo religioso: "O sujeito tro-
as pulsões destrutivas para
ca seu perdão pelo enunciado de uma crença (a sua) e o reconhecimento de
um poder (o da Igreja e, em certa medida, do Estado, que aí insere a marca
de sua Lei)."tt Porém tal interpretação atribui, a nosso ver, excessivo espaço
Não seria, talvez, mais correto falar em nascimento de uma
à esfera religiosa.
cultura conquistadora que integra a culpa individual de origem moral e reli-
giosa, em um campo interpretativo global definido por um senso de superio-
ç
ridade e um desejo de expansão? A Europa inventa instrumentos para sua fu- )7
tura dominação do mundo, abandonando o peso do universo encantado e z
U
produzindo um modelo social fundamentalmente hierárquico, em torno de
um Deus ainda mais poderoso que o terrível Lúcifer. Um modelo capaz
de adaptar-se infinitamente a todas as esferas da atividade humana, pare apro- F
z
priar-se do poder da inculpação individual e dele fazer uma arma de desen-
ts
volvimento coletivo. q
O primeiro elo dessa cadeia está constituído pelo universo do poder laico.
Na França, a monarquia se dota de uma supersacralidade que se abebera em
fontes imperais romanas, baseada em uma noção de soberania única, indi-
visível, inalienável e imprescritível, como a que Bodin sisrematizará no sécu-
lo XVI. Não se tÍata mais, em absoluto, da simples superioridade de um in-
divíduo sobre um gÍupo, mas de um conceito novo, contribuindo, a pertiÍ de
I20O, para um progresso marcante do poderio real. Os súditos, evidente-
mente, não o subscrevem em massa, mesmo no final da Idade Média, e as

" Ibid., p. 59I.


contestações são múltiplas até Henrique IV Ainda mais porque essas idéias,
avivando a consciência política, "provocam nos espíritos tanto fascinação
quanto inquietude".tu Ora, esta evolução das idéias políticas, até aqui rraça-
da em grandes linhas, alinha-se paralelamente à da majestade satânica.
Contemporâneo algum pârece ter-se dado conta da correspondência entre
as duas esferas, tão diametralmente opostas por definição. No entanto, as

imagens diabólicas e as que serviam como ilustração da soberania real erâm


produzidas pelos mesmos artistas. Não é surpreendente constatar que eles
adornavam Satã com as merces emblemáticas do poder terrestre mais
importante a seus olhos, acrescentando-lhe um simbolismo negarivo, para
desvalorizar o poder do demônio, como era de espeÍar. A majestade do
senhor dos infernos afirma-se sobretudo no século XV Em 1456, a ho-
menagem de Téofilo ao diabo o apresenta sobre um trono colocado em
cima de um estrado, coroado, cetro nâ mão, principescamente vestido de
branco, cercado de conselheiros sentados e ricamente vestidos. As fi-
sionomias demoníacas dos últimos e as patas animalescas de Satã indicam,
porém, que as aparências são enganosas. Outras representações iconográficas
w atestam a soberania do Príncipe das Ti'evas, que aparece igualmente na cena
l8 teatral no Mistério da paixã0, de Arnoul Gréban, em 1450, o Reí Lúcferlança
: uma ordem geruI a todos os seus súditos, que prontamente lhe obedecem.
: Além da idéia clássica segundo a qual ele imita a Deus, ou os homens, essas
o
c
â imagens veiculam uma noção hierárquica do mundo infernal, calcada na

.o
da soberania real. O pensamento político da época relaciona, aliás, ex-
=

v plicitamente os dois reis, ao falar dos excessos ou das perversões do poder


T
e da questão do tiranicídio, tal como o registra Bartolo di Sassoferrato,
) na Itália, ou por ocasião do assassinato do duque de Orléans na França.
Satã todo-poderoso evoca, ao mesmo tempo, o avesso de uma soberania
bem equilibrada e a ameaça de uma conjuração maléfica a que somente um
poder reforçado pode contrapor-se.tt De qualquer forma, o diabo está inse-
rido no centro mesmo dos debates do tempo: ele se vê adornado com in-
sígnias de um poder soberano, ou a fim de criticar os progressos excessivos

"" Jacques Krynen, tEmpire du roi. ldees et cro)ances politiquu en France,.XIII-XVème siüb, Patìs,
Gallimard, I993, p. 407 e conclusão.
3e
]. Baschet, artigo citado, p. I98-2O2.
do mesmo, ou, ao contrario, de apelar pera seu reforço. Portador de uma ma-
jestade ffansviada, ele representa sempre uma ânsia de subversão, que se expres-
sa no registro do excesso de podea seja ele o seu ou o de um tirano execra-
do. Será que as fantasias de devoração que a partir de então a ele se colam
podem ser explicadas do mesmo modo, como transposição de um medo do
"canibalismo" político dos reis ou, na ltália, dos ambiciosos desejosos de abo-
canhar em proveito próprio o poder urbano? Lucifer torna-se um monstÍo
votaz, por volta de 1200, na França e na Inglatetta e, a partir da segunda
metade do século XIII, nos afrescos italianos. Descobrimo-lo dotado de duas
goelas glutonas, uma das quais se situa no baixo-ventre, ou mesmo de outras
bocas terríveis disseminadas sobre o resto do corpo. Oral e anal ao mesmo
tempo, ele engole e vomita incessantemente os danados.no Além da possível
alusão aos desmandos nos poderes políticos, o tema traz consigo uma con-
cepção animal do corpo satânico. A diferença de natureza em relação ao
homem comum, já sublinhada pelos atributos principescos, vê-se extraordi-
nariamente realçada por esses traços. Enquanto Raoul Glaber ou os escul-
tores góticos imaginavam o Maligno como um ser humano disforme, as pes-
soas da Idade Médiatatdra o empurrarn resolutamente para fora de sua es-
6
fera humana, em direção a um universo animal tornado mais inquietante a )9
partir do século XÌL z
O
:

ts
z
!.1

O MelrcNo E A Fane ts

No decurso do milênio medieval, a definição do diabo foi seguidamente


buscada, em diversos níveis das sociedades européias. O vigor das múltiplas
tradições populares impedia que se ignorassem as formas de origem pré-cristã,
contentando-se a Igreja em tentar aparar-lhes os excessos ou encaixá-las da
melhor maneira possível na lição que ela desejava dar às multidões. Na ou-
tra extremidade do campo do saber, teólogos, eremitas ou santos desenvol-
viam pontos de vista muito diferentes, centrados no conceito do Mal, que eles

*:' p. 5O9.
J. Baschet, op. cit.,
deviam pelo menos tornar visíveis e críveis para a grande maioria, levando
em conta, por vezes, formas populares atribuídas ao demônio. A crescente
complexidade das cidades, por efeito do progresso econômico, do desen-
volvimento das cidades, das crescentes ambições dos reis, dos imperadores
e dos papas, bem como a penetração em profundidade da cristianização no
decorrer dos séculos, modificaram lentamente o equilíbrio entre esses duas
esferas. Sem jamais conseguir destruir totalmente os núcleos mais sólidos
das crenças populares, a ofensiva erudita desenvolveu-se visando depurar a
vida e a fé dos cristãos comuns. O ideal de pweza monástica traçou cami-
nhos, cada vez mais firmemente, no campo das "superstições" populares,
mesmo que elas retornassem com força assim que se lhes apresentava opor-
tunidade. As verdadeiras novidades não se encontravam na simples vontade
de agir desta maneira, patente há séculos, mas no aparecimento de meios
de transmissão capazes de assimilar a mensagem e de difundi-la, por exem-
plo, em universos cuja importância era, pouco a pouco, crescente. Reis,
príncipes ou grãos-senhores, clérigos educados em escolas e universidades,
sábios e médicos, burgueses empreendedores das cidades, aÍtistas e artesãos
ç a quem uns e outros encomendavam obras para manifestar a fé ou em-
4o belezar a vida, formaram o alicerce heterogêneo de um "meio" aberto às
: icléias que jorravam dos lugares de erudição e de santidade para iluminar
:
o o mundo profano. Seria, sem dúvida, um tanto simplificador atribuir ape-
o nas à escolástica o benefício da evolução, sobretudo no que diz respeito à
ã
.o
definição do inferno e do diabo.ar No mínimo, isso seria minimizar urn
z abalo na própria corte dos clérigos, com o início de um grande movimen-
T
to de colonização do imaginário ocidental por parte dos pensadores, que
:
3 alicerçaria, com o passar dos séculos, a imporcância dos intelectuais na so-
ciedade. Pois os homens de poder puseram-se cadavez mais a consultar as
pessoes de saber, tanto em matéÍia de teoria política ou de doutrina religiosa
quanto no domínio mais complexo do sencido da vida, ou mesmo da crença
cotidiana, muitas vezes ainda contaminados pelo magismo universal reinante
nos grupos populares. Este contÍato implícito entre os doutos e os dominan-
tes induzia a um dinamismo mais agressivo gue a antiga concepçào de um
mundo maciçamente encantado, dentro do qual o ser vivo só podia evoluir

" E esta a opinião de J. B. Russel, op rir


com cautela. Ele injetava transcendência na ordem humana, ligando os po-
derosos, bem aconselhados pelos clérigos, aos desejos de glorificação de
uma Providência soberana. O sentido de missão divina dado à Cristandade,
das Cruzadas à Reconquista espanhola sobre os mouros, passando pela definição
de uma monarquia imperial francesa e outros poderes europeus, constituía
sua maÍca mais visível. Mas a transcendência não se limitava a essas expres-
sões; ela se estendia ao próprio homem, definido de maneira cada vez mais
sacralizada na cultura ocidental comum, e era difundida pelo latim dos cléri-
gos. A imagem remodelada do demônio constituía, igualmente, a antítese
daquele ser ideal, criado para seguir os caminhos de Deus. Pois o sujeito
devia ser o eco do príncipe, ele próprio calcado na perfeição divina, para
produzir a harmoniosa hierarquia dos seres necessária à regência do mun-
do visível e invisível. O reino de Satã era considerado o exato inverso deste
conjunto. Ainda não tinha tanta importância sua ligação com a cultura po-
pular, como seÍá o caso nos séculos XVI e XVII, quando a urgência passa a
ser menos reprimir condutas há muito toleradas do que inserir profunda-
mente a noção de supersacralidade do homem no universo dos dominantes
leigos e das cidades.
w
Esta idéia, forcemente abstrata, passou sobretudo pata a atte, a literatura ou 41
o teatro e concretizou-se através de seu inverso: a figura do demônio. O z
O
discurso sobre o diabo pôs-se afal.ar cadavez mais do corpo humano tal
como ele não deveria funcionar. No campo intelectual propriamente dito,
as rupturas se situam a paftir do século XII, quando as fronteiras entre F
z
t!
o homem e o animal começeÍam a confundir-se na cultura erudita. Até
ts
então os clérigos acreditavam que os demônios eram imateriais, embora não râ

pudessem realmente agir sobre os seres vivos, o que excluía, portanto, qualquer
relação sexual com os mesmos. Ora, o século XII registra mudanças decisivas
nestes pontos." Por ouúo lado, desenvolve-se a idéia segundo a qual os íncubos
e os súcubos podem realmente seduzir os vivos, apresentando-se, em geral, a
eles sob a forma de um belo jovem ou uma encantadora jovem. Tais relações
contra anatuÍeza encontram-se no mesmo momento definidas como bestiais
e estreitamente ligadas às heresias. Os historiadores da Igreja assinalam as

" Joyce E. Salisbury, The Beast within. Animak ín the Middlt Ages NovaYork-Londres, Routledge,
1994, sobretudo p, 9, 96-97. Ver também H. W Janson, Apes and Ape Lore in the Middb Agu
and the Renaissana, Londres, The Warburg Institute, 1952.
concordâncias com â ascensão do tema do purgatório, pois, se as almas podem
ser punidas, os demônios têm igualmente liberdade para agir sexualmente sobre
o corpo. Por outro lado, o mundo animal começava e tornâr-se muito mais in-
quietante do que na alta Idade Média. A fronteira nítida entre homens e animais
rompia-se a paÍtir do século XII. O imaginário erudito rejeitava cada vez mais
as relações sexuais entre as duas esferas.Tomás de Aquino (1225-1274) definia
a bestialidade como o pior dos pecados sexuais, porque ela não preservava es re-
feridas diferenças. A justiça da época estava, sem dúvida, muito mais preocupa-
da com a homossexualidade, mas a idéia ia ter livre curso. Considerada como urn
XIII, a besciali-
crime capital em um códice espanhol, a partiÍ do final do século
dade levou a muitas execuções em Maiorca no século XV ou foi declarada
passível de morte na Inglaterra, bem como na Suécia em 1534. A nova severi-
dade repressiva provém, segundo vários autores, da definição de uma transgressão,
considerada inadmissível, das fronteiras entre os gêneros hurriano e animal."
Tâmanha obsessão pode, à primeira vista, parecer tão banal quanto antiga.
Os textos antigos admitiam jâ urrra permeabilidade entre os dois universos,
como o demonstÍavam as MetamorJoses, de Ovídio, ou O asno de ouro, de Apuleio.
ç Existiam igualmente inúmeras crençes populares neste domínio. No entanto,
4z a linha doutrinal corrente na Igreja medieval afirmava que a metamorfose de
um ser humano em animal era uma ilusão. Defendida por Santo Agostinho,
:
: retomada por Santo Tomás de Aquino, admitida por Henri Boguet, caçador
o
c de feiticeiras do século XVI, esta teoria não desapareceu totalmente. Foi
^
: simplesmente recoberta por uma segunda opinião, de origem douta, que se
.o
espalhou na literatura, prolongando a explosão de sucesso que teria o livro de
z
T Ovídio entre os séculos XII e XIV A idéia era igualmente admitida por inú-
meros doutos interessados nas mutações da natureza, sem falar nos alquimistas
:
ã

que buscavam a pedra filosofal.n' Será que esta nove linha visava a fazer recuar
o magismo popular, insensível às teorias agostinianes que se situavam no mes-
mo terreno, mas relacionando o mistério em questão com e vontade divi-
na? De fato, ela {aziapate de um movimento de definição mais precisa e mais
concrete das ações de Lúcrfer neste mundo. Este veio demonológico, visí-
vel nas representações realistas dos infernos, produziu no século XV os
manuais de caça às feiticeiras de que falaremos no próximo capítulo. Ele só

" J. E. Salisbury, op. cit., p. 100.


'o lbid., p. I59 e seg.
pôde ter sobre as consciências um império tão importanre por drarnatrzar ao
máximo a figura do diabo. Demasiadamente submisso às vontades divinas,
ccmo na lição de Santo Agostinho, demasiadamente intemporal ou, âo con-
ffârio, demasiadamente humano, na visão de Raoul Glaber e nas esculturas
góticas, ele não poderia possuir ume carga emocional suficiente para desen-
cadear o enorme esforço de execração em relação a ele.
Depois de ter sido um homem deformado, Satã se apresenteva a partir de
então como uma potência inumana, um rei tirânico, mas também como um
ser inapreensível, capaz de encarnar-se em um envoltório animal ou híbrido,
apto a introduzir-se em todo e qualquer corpo vivo. Depois de ter-se trans-
formado em fera, será que não lhe era possível set capaz de invadir igualmente
o homem?
A imaginação medieval atribuía essencialÍnente ao animal as funções de
nutrição e de trabalho. Uma analise das repfesentações contidas em 6.000
manuscritos mostra que estas foram sempre as colocadas em primeiro lugar,
mas o tema enriqueceu-se posteriormente com uma metáfora que fazia os
animais agirem como seres humanos, para pôr em relevo o que há de melhor
e de pior na natLtreza humana. Do século XIII ao século XV as margens das ç
obras passaram a dar lugar crescente ao assunto, humanizando particular- 43
mente o macaco, o cão e a rapose, bem como um híbrido, o centauro, que
z
fica em segundo lugar naquela classificação; sem esquecer de mencionar o (,
homem selvagem, portador de caracteres duplos, classificado em quinto lugar.
Sapos e serpentes, evocadores da morte e do diabo, eram mais vezes repre-
F
z
sentados do que eles nas miniaturas, mas jamais figuravamnessas margens.as Estas r!
observações explicam o sucesso crescente dos livros de erudição, que enrique- F
,'
cem o bestiário tradicional e tratam de homens monstruosos e híbridos di-
versos, como, por exemplo, a obra Thomas de Cantimpré. Marco impor-
de
rante na estrada da demonologia, que se constituíria em sistema de caça às
feiticeiras, elafoìtraduzida para o alemão por Conrad de Megenberg, depois in-
seriu-se, no século XV em um movimento erudito do Reno, produtor de fi-
guras e monstros e do célebre Malleus MaleJicarum, preconizando o extermínio
das feiticeiras em I487.'u Albert Dürer desenhou genialmente estes seres
inquietantes, como antes dele, Martin Schongauer, falecido em I49Í,havìa

" lbíd., p. 98-99, IZ8-129.


- Jurgis Baltrusaitis, Ríreils et Prodigx. b gothiqueJanta*ique, Paris, A. Colin, 1960, p. 338-339.
gÍavado uma alucinante Tentatão de Santo Antôní0, em que uma verdadeira
mandorla" de seres ateffotizantes e heterogêneos, apresentando alguns vagos
traços humanos, compõe uma espécie de nimbo turbilhonante em torno do
personagem.n*
A origem dessas descrições visionárias eruditas, que invadem progressi-
vamente o universo mental das elites sociais, pode ser buscada nas profecias
apocalípticas de Joachim de Flore em fins do século XII. Difundidas por
toda a Europa pela imagística gótica anglo-normanda, depois revivificadas
pelas cenas infernais evocadas por Dante ou pintadas pelos maiores artistas ita-
lianos do século XIV elas foram maciçamente retomadas por criadores
muitas vezes menos célebres no século seguinte. O fenômeno acentua-se
fortemente por ocasião da chegada da imprensa e do desenvolvimento da gravu-
ra. As intensas ligações entre a ltâlia e o país de Flandres conduzem, além disso,
a temática em direção às margens do Reno, no coração mesmo do segundo
grande espaço urbano da Europa da época. Sobre um fundo de inquietude,
de heresias, de esforço de renovação religiosa, dos quais se aproveita o jovem
Erasmo junto aos Frères de laVe Commune, em Deventer, o medo do demônio
ç se intensifica, levado pelo agressivo realismo dos sermões e das descrições
44 artísticas. Nascido na metade do século, neste universo saturado de satanismo,
o Jérôme Bosch dele extrai as formas e símbolos de sua famosa pintura. Répteis,
insetos, animais noturnos, demônios híbridos, grylbln maléficos, Satã com
Ã
o
a
cabeça de cão e povoem porque fazern, e paftir de então, parte de temas mais
aflitivos para seus contemporâneos.
;
.o
Ninguém sabe exatamente o que sentiem os espectadores ou os ouvintes
!
T desse teatro demoníaco, tornado obsedante. Quando muito, pode-se pensar
: que a proliferação em questão implica um consumo crescente dos conceitos
D
e um conhecimento mais preciso dos modelos, principalmente nas camadas
superiores urbanas de Bois-le-Duc, que compunham a clientela de Bosch.
Nada permite captar exetamente o impacto dessas imagens mentais sobre as

a7
Do italiano manàorla- amêndoa. Signo de glória, em forma amendoada, na cabeça das ima-
gens de Cristo e da Vrgem, na Idade Médta. (N. daT.)
'8 Reproduzido em Enrico Castelli, lt Dímoniaque dans I'art. Sa sígn!t'ication philosophiqur, Paris, Vrin,
1959 e (com uma visão diversa) Gilbert Lascault, b Monstre dans I'art orcidental. Un problìme es-
thétique,Patìs, Klincksieck, I973, diante da página de título interna.
'n Crylb-Fìgttra monstruose, freqüente nas obras da Antiguidade e recomada na Idade Média,
constituída por umâ cabeça provida de membros, sem corpo. (N. daT.)
pessoas comuns. Seria, com certeza, falso imaginar urn terÍoÍ generalizado, pois
diabos ludibriados e grotescos continuavam sendo abundantes, tanto nos con-
tos quanto nas práticas. As representações de mistérios nos átrios das igrejas mis-
turavam o sagrado ea derrisão. As procissõespuúam em cena demônios
e as festas

grotescos ou imbecis, monstros bem pouco assustadores. Em 1508, um vene-


rável sacerdot",Éloy d'Ameryal, publicou em Paris um opúsculo intitulado O
Livro das diabrurw. Satã e Lúcifer aí estavam inseridos com urn objetivo didático e

claramente ortodoxo. Porém os caÍacteÍes demoníacos não eram descritos em


termos fantasticos, mostravarn-se, ao contrário, bem próximos dos homens, a
ponto de manifestar a njwìa e a grosseria, de brigar com fiiria e de passar por
todos os estados imagináveis, raiva, tristeza, alegrìa, fanfarronice, hostilidade, ter-
nura, confiança, desespero... O autot empresta um corpo a esses demônios, um
ameaçando o outro de cortar-lhe o fociúo, as orelhas ou os genitais, de queimar-
lhe as nádegas ou arrancar-lhe os olhos. Lucìfet se põe muitas vezes e "mijar em
seus calções" tomado de emoção. Os diabos se rnjuriam de uma maneira que
Rabelais apreciará alguns decênios mais tarde, drzendo entre si palavras doces
do tipo: "miúa doce imbecilzinha", "Meu lindiúo que mija-em-pé".Satãtraz,
é claro, um grande rabo, mas ele o atrapalha mnto que ele espeÍa enrolá-lo em ç
torno da cabeça por ocasião da festa dos infernos.to 45
É i-port*t e rcIatlìzar a ascensão do satanismo no final da Idade Média,
z
A obra de D'Amerval indica mais que uma persistência dos modelos anrigos, U
tanto na população analfabeta quanto no universo dos leitores urbanos aos :
quais se dirige prioritariamente. A sombra aterradora dos infernos estende-
ts
z
se sobre uma sociedade cujos numerosos representantes, por vezes até mes- ro

mo sacerdotes, como D'Amerval, mantêm um certo apego à familiaridade F

com um demônio ainda bastante próximo dos humanos. A imagem sobre-


humana de Satã é, antes de mais nada, uma propaganda produzida pelos
doutos e difundida pelos criadores, escritores, eclesiásticos em seus sermões
ou em seus contatos com os fiéis. A idéia que nos ocorre é de que o exagero
sistemático dos traços demoníacos revelou-se necessário para apagâr os ca-
racteres um tento inquietantes demais do diabo ludibriado, sentindo e sófren-
do como um ser humano, evocado ao mesmo tempo por pessoas do povo e

pelos letrados que se mantinham mais próximos dessa tradição. O problema

to
Robert Deschaux, "Le Livre de la deablerie d'Eloy d'Amerval", em b Diablr au Moyn Age,

op. rit., p. I83-193.


a ser resolvido por aqueles que queriam fazè-lo temido não era de que ele
pudesse ser encontrado, pois ele estava presente em toda parte em um uni-
verso saturado de forças invisíveis, embora o pâssante experimentasse real-
mente graves temores diante da idéia de vê-lo ctuzat seu caminho. Causar
medo, neste domínio, passava pela encenação de símbolos aterrorizantes
passíveis de crédito, multiplicados em lugares em que eles pudessem ser vis-
tos, lidos ou ouvidos. A cultura demonológica que esrava sendo construída
fundamentava, assim, sua argumentação em concepções imediata e fisicamente
compreensíveis pelos interessados. Por um lado, ela lembrava energicamente
o destino do criminoso punido por um príncipe cada vez mais soberano e
terrível, que sabia, contudo, ser também misericordioso pera com os pecadores
arrependidos: o inferno foi, por anrítese, uma visão absoluta do supremo poder
de punir, delegado por Deus. Por outro lado, ela prolongou esre realismo em
imagens, fazendo cada qual pensar que seu próprio corpo era o espaço privi-
legiado em que se confrontavam o Bem e o Mal.
O segundo eixo da evolução orientou-se no sentido da construção de uma
g nova cultura do corpo no Ocidente. Não do corpo santo, definido pelos teó-
logos, inacessível ao comum dos mortais, mas no das pessoas comuns, como
46 campo da luta primordial. Antes Satã se parecia muitas vezes com os homens.
Ele agora se tornava tão monstruoso, tão bestial, que o fato de imagináJo po-
:
: dendo deslizar para o interior de qualquer ser devia produzir um senrimenro
o
a de extrema angústia e levar a lutar para mantê-lo o mais longe possível de si.
Ê

: Os dois elementos constitutivos desse sentimento foram, em primeiro lugar,


.o
a ênfase dada à não-humanidade fundamental do demônio e, a seguir, a in-
v
E sistente sugestão de que ele podia invadir os corpos pecadores para transfor-
má-los à sua imagem. Esta segunda idéia só terá verdadeiramente lugar na
f
época da grande caça às bmxas, desenvolvendo, e este respeito, o tema do en-
voltório carnal totalmente diabolizado. Em fins da Idade Média, a idéia só
existe ainda de maneira vaga, chocando-se muitas vezes com a banalidade hu-
manizada do diabo, o que tornava menos digna de crédito a noção de posses-
são, por ele, do corpo de um indivíduo, a não ser em plano metaforico.
Este caminho foi aberto pela Fera. A opinião segundo a qual os híbridos
eram possíveis havia crescido em importância a pârtir do século XII. Uma
etapa suplementar foi yencida quando se impôs a crença na aparição dos
demônios sob forma animal ou mista. Estas metamorfoses foram sendo rela-
tadas de maneira crescente. O lobisomen adquiriu, assim, uma dimensão nova,
passando do predador devorador de homens a um ser extraordinariamenre
inteligente, ainda um lobo, mas possuído pelo demônio, como afrrmam os
autores do Malleus MaleJícarum. Joyce E. Salisbury acredita que a evolução do
olhar sobre os animais, no final da Idade Média, revelava ao ser humano um
medo da fera interior (The Beast within, segando o título de sua obra), capaz
de apagar suas qualidades de racionalidade e de espiritualidade para só deixar
subsistirem os âpetites bestiais de concupiscência, de fome e de raiva.tt Antigas
tradições pagãs a este respeito estevem, talvez, solidamente amarradas à nau
do cristianismo, que lutava contra elas interpretando este medo crescente da
fera interna em teÍmos unificadores, tendo como remédios a fé e a devoção.
Nem todo fiel podia ter a força de alma dos santos, sobretudo de Santo
Antônio. mas ele devia precaver-se contra a parte besrial que trazia em si.
Entre o sagrado e o diabólico, entre o santo e o demônio, o dever de cada um
era esmagar aquilo que o tornava mais próximo das feras. Estas podiam, sem
dúvida, comprovar a continuidade desejada por Deus entre os reinos humano e

animal, como na I4da de São Francisco, no século XIIL Mas este santo tratava du-
ramente sua própria parte animal, chamando a seu corpo de "Irmão Asno", tra-
balhando muito, comendo pouco e fustigando-se com freqüência. Ele definia,
assim, dois universos opostos e fazìa da humanidade o contrário mesmo da ani- w
malidade. Pois o espírito devia ser capaz de governar os apetites e as paixões.sz 47
Esta concepção, legada a nossa época, deve ser relacionada com o proces-
;
so civilizatório que Norbert Elias afirma ser característico do Ocidente. A U
eliminação de uma linha de demarcação nítida entre o homem e o animal,
por volta do século XII, levou a temer, ainda mais do que antes, a parte bes- F
z
tial do homem e, poÍ conseguinte. a tentaÍ controlá-la mais eficazmente. No E
fundo, o medo de si intensificou-se, provavelmente mais nas elites culturais F

e políticas que no seio das populações rurais. O modelo de santidade colo-


cou-se, de certo modo, ao alcance de um público maior, obviamente ainda
minoritário dentro da sociedade, dando a seus membros o sentimento de par-
ticiparem de uma obra divina glorificadora, reservada aos melhores fiéis. O
processo mental em questão baseia-se na ênfase dada ao sentimento de culpa,
sobretudo de quem não consegue abafu complemmente a animalidade que cada
um sabe ttazer erÍr si. O olho de Deus está dentro de seu corpo imperfeito e

sofredor. O demônio também aí se encontra à vontade, se não for expulso, se

" J. E. Salisbury, op. clt., p. I34-I35, I4I, 163


s'z
lbid., p.I78-I80.
não the forem cerradas as vias de entrada. Uma tal visão das coisas foi, para
muitos, o dinamismo mesmo do Ocidente, o motor de sua arrancada adiante. O
diabo deixava de ser um homem decaído na graça, ou pervertido, para torner-se
a fera rmunda escondida nas entrarfias do pecador e, ao mesmo tempo, o terrí-
vel soberano infernal reinando sobre um imenso exército de fanáticos segridores.
Faltava apenas relacionar estreitamente as duas noções, descobrindo a enlou-
quecedora germinação de uma seita de seres humanos desnaturados, que pra-
ticavam conscientemente a mais horrível bestialidade, ou seja, que se Íecusavam
a domar sua paÍte animal, para maior glória de um Príncipe dasTi'evas empeúa-
do em destruir a obra divina.

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