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fundamental. Est
este especto, a primavera da modernidade, pois são experimentadas concepções
.o
F
2 rebelde ao poder
I novas de lgreja e de Estado, das quais decorrem formas inéditas de controle
reinar pelo poder
social das populações. Os triunfos diabólicos, o sentido macabro, não devem
nomina São Paulc
ocultar aparição desordenada de um pfocesso que viria a promovef o Ocidente
a
do mais misterio,
na cena mundial. No fundo, o diabo emPurra a Europa para frente Porque
uma derrota e un
ele é a face oculta de uma dinâmica prodigiosa, que fundiria em um conjun-
luta, que só termi
to único os sonhos imperiais herdados da Roma antiga e o poderoso cristia-
manidade, em cor
nismo definido pelo Concíio de Latrão, ern I2Í5. O movimento vem do alto
serva que element
da sociedade, das elites religiosas e sociais, que tentem amaÍraÍ esses múlti-
mas de maneira o
plos fios em feixes. Não é de forma alguma o demônio quem conduz a dança,
são os homens, criadores de sua imagem, que inventam um Ocidente diferen-
te do passado, esboçando traços-de-união culturais que viriam a ser conside-
tt I
ravelmente reforçados nos séculos seguintes. Jacques Levron,
Vlleneuve, La Beautí
J
Sarà E o Mrro Do CoUBATE PRTUoRDTAL
rebelde ao poder de Jeová faz da terra uma extensão de seu império para nela ts
râ
reinar pelo poder do pecado e da morte. "Deus deste mundo", como o de-
nomina São Paulo, ele é combatido pelo filho do Criador, o Cristo, por ocasião
do mais misterioso episódio da história cristã, a Crucificação, que combina
uma derrota e uma vitíia simultâneas. A função de Cristo no decurso dessa
luta, que só terminará no fim dos tempos, é ser o libertador potencial da hu-
manidade, em confronto com Satã, seu adversário por excelência. O autor ob-
serva que elementos dessa síntese mítica estão implícitos no NovoTestamento,
mas de maneira obscura e fragmentaria, o que durante muito tempo permitiu
It
Robert-Léon Wagner, "Sorcier" et"Magicien", Contribution à I'histoire du vombukire de Ia magie,Paús,
Droz, T939, sobretudo p.37-62.
lgreja e teólogos o haviam definido de maneira bastante incelectual, como Embora não sej;
um príncipe, um arcanjo decaído, transformado em uma espécie de deus ìndizível, por mais (
voador nos ares em companhia de demônios disfarçados em anjos de Iuz não encontrarem ne
(Santo Efrérn, no século IV). Sua representação concreta não era vista fre- final da Idade Méc
qüentemente, o que explica sem dúvida Pof que a arte das catacumbas o diabo humano, del
ignorou completamente. Ele se insinuou, contudo, no seio da vida monásti- poderia ser enconrrj
ca da alta ldade Média, ganhando assim um vigor novo em um universo A insistência nos cr
que ditava a nofma religiosa e transmitia o essencial da cultura do tempo. emPontaeacorcru
Eterno tentador, empenhado em seduzir São Jerônimo no deserto, ele an- ainda no registro c
tecipava o sucesso de um grande tema pictotial dos séculos modernos sem, agitação do persoru
no entanto, aPresentaf já as espantosas caÍacteÍísticas que the seriam atribuí- realçar a superionda
das. Antes de a arte Íomana e as cidades adquirirem maior poder, Lú'cìfer Alguns toques suge
não tinha canais de transmissão para invadir toda a sociedade' A ciência do barba de bode, as c
demônio, a demonologia, era ainda uma especialidade teológica restrita. temnemcauda,nem
Esta abordagem douta tofnou-se, sem dúvida, mais obsedante por volta olhos anormalnenr
do ano Mil, com aidéìa de uma nova inyestida diabólica visando a derrotar propriamente sobre-
o exército do Bem assim que acabasse o milênio. Mas a imagem do diabo não um homem transrü
w era ainda suficientemente convincente e poderosa, a julgar pelas narrativas encarna o Mal no c
do monge Raoul Glaber, que afirma tê-lo encontrado três vezes eo longo de infernos sulfurosos-
a sua existência. Ele assim escreve sua Primeira experiência: Raoul Glaber sir
teológica e respeiro
Ã
a Na época em que eu vivia no mosreiro do beato rnfutìr Léger, denominado natural desenvolçiú
a
: champeaux, uma noite, antes do ofício de matinas, ergue-se diante de mim, ao milênio crisrão nãr
pé de meu leito, uma espécie de anão, de horrível asPecto' Era, pelo que pude múltiplas, que serão
.o
pé, dentes de cão, o crânio em pontâ, o peito estufado, âs costas corcundas, as estende por uma esci
nádegas fremenres, vesrimenras sórdidas, agitado pelo esíorço, todo o corpo in- entre e mensagem b
clinado para frente. Agarrou a extremidade da cama em que eu repousava, deu ao diferença nem semp:
leito sacudidelas terríveis, e enfim disse: "Você, você não vai ficar mais muito descrição do diabo t,
tempo neste lugar." E eu, assombrado, levanto-me em sobressalto e o vejo, tal mais próxima das pd
como acabo de descrevê-lo.tt Desta ele retem a I
realidade dos demôn
conduzi-lo ao Beul
17
Citado em Georges Duby, LAn Mil,Parrs,lulliard, 1967 ' p' I38' ambivalente: a do m,
Embora não seja sedutor, tal personagem tâmbém não inspira um terror
indizivel, por mais que o queiram cerros aurores, sem dúvida aborrecidos por
não encontrarem nele as características realmente apevorantes do demônio do
final da Idade Média. o narrador apresenta, na realidade, uma espécie de
diabo humano, deformado ou disforme, mau, agressivo, que certilnente
poderia ser encontrável na época (ou mesmo hoje, nas ruas de nossas cidades).
A insistência nos traços físicos, como o talhe diminuto, o queixo, o crânio
em ponte e a corcunda, exprime claramente uma idéia de anormalidade, mas
ainda no registro do humano, sem evocar diretamente o sobrenatural. A
agitação do personagem apenas o torna mais vivo e serve igualmente para
realçar a superioridade da vida monástica, baseada em um ideal de serenidade.
Alguns toques sugeíem a animalidade, de forma puremente metafórica: a
barba de bode, as orelhas peludas, os denres pontudos. Este demônio não
tem nem cauda, nem pés fendidos, e não se faz preceder de um odor pestilencial,
olhos anormalmente brilhantes (eles são apenas negros) ou aptidões
propriamente sobre-humanas. No fundo, não é mais que um mau diabinho,
um homem transviado, um reflexo negativo do bom monge da época. Ele
encarna o Mal no coração do homem, mais que um príncipe reinando em w
infernos sulfurosos. z)
Raoul Glaber situa-se no delicado ponto de junção entre a tradição
z
teológica a respeito do demônio e as representações concretas do sobre-
U
natural desenvolvidas pelas diferentes populações européias. Um primeiro :
milênio cristão não fora suficiente para erradicar crenças e práticas
F
múltiplas, que serão chamadas de "populares", no sentido mais amplo do z
E
termo: elas não são apanágio do povo, pois encontram-se muitas vezes par- F
a assim, por vezes, traços celtas, tomados de empréstimo a Cernunnos, deus te, joguetes dos hc
da fertilidade, da caça e do outro mundo. Embora não chegue a permitir disso. Enganado, v
o
a a sobrevivência, ao longo de séculos, de um verdadeiro culto secreto dedi- punham em cena: ,
ô
cado ao "deus chifrudo do Oeste", como pretendia Margaret Murray para poderoso conffa e
-o
explicar a caça às feiticeiras.'e A religião cristã podia, de fato, admitir européia, voltando
2
empréstimos, sob a pressão dos fiéis, mas ela seguramente não teria tolerado populares, eaténo.i
T
a existência de uma religião paralela. Os principais traços demoníacos acima pois Deus acaba p,
D
descritos não constituíam, em absoluto, um conjunto organizado. Disper- Antes do final
sos na superfïcie do continente, emergindo de universos diferentes e de unificador do cris
origem histórica e
épocas diversas, até o século XII eles permaneceram, contudo, integrados,
A explicação segur
sem grandes problemas, nos sistemas de crenças mais ou menos sincréti-
outfa coisa revela-
cos vividos localmente pelas populações, no âmbito de um cristianismo
de uma luta miler
pouco pÍopenso a expurgar as múltiplas "superstições" aninhadas sob sua
quais certos núcle
protetora túnica.
mence assimilados,
diferente, conserv:
do satanismo teol
tu
J. B. Russel, op. cit., p. 62-87. múltiplas culturas
re
M.Murtay, op. rit.
Satã, Lúcifer, Asmodeu, Belial ou Belzebu na Bíblia e na literatura apocalíptica,
o diabo assumia, assim, multiplos outros nomes, e às vezes até sobrenomes,
sobretudo na Europa. Muitos deles designavam demônios menores, não raro
herdeiros de pequenos deuses dos tempos do paganismo: Old Horny, Black
Bogey, Lusty Dick, Dickon, Dickens, Gentleman Jad<, the Good Fellow, Old
Nidç Robin Hood, Robin Goodfelow em inglês, Charlot, em francês, ou Knecht
Rupreút, Federwisch, Hinkebein, Heinekin, Rumpelstiltskin, Hámmerlin em
alemão. O uso de diminutivos (Charlot, ou as terminações alemãs em kin) ou
as denominações familiares ("Velho úifrudo", falando de Old Horny) tornavarn
esses diabos próximos dos humanos ,rcduzindo certamente o medo que poderiam
inspirar. Para um cristão comum desses séculos, o mundo invisível estava povoado
de uma infinidade de personagens - mais ou menos temíveis -, santos, demônios,
almas dos mortos. Seu respectivo lugar no universo não era, provavelmente, defi-
nido exatamente em relação ao Bem Mal, pois os santos podiam vingar-se
e ao
dos vivos, eo passo que os demônios erâm por vezes invocados parâ ajudáJos.
Um poderoso veio cultural, de familiaridade com o sobrenatural, atravessa assim
toda a Idade Média. O diabo dos teólogos, uma ficção sem maior graçe, encon-
trava-se freqüentemente encoberto por imagens bem mais concretas, mais locais,
de pequenos demônios quase semelhantes aos seres humanos. Habitados por
ç
paixões, frementes como o diabo de Raoul Gabler, eles eram assim, seguidilnen-
z5
te, joguetes dos homens. O Mahgno nem sempre tiúa a ultima palavra, longe z
disso. Enganado, vencido, objeto de zorrbarra, ele tranqüilizava os que assim o U
punham em cena: o tema do demônio dominado pelo homem ere rün antídoto
poderoso contra a angústia- Aliás, ele nunca desapareceu de todo da cultura F
z
européia, voltando com força depois da caça às feiticeiras, nos contos e lendas EI
pois Deus acaba perdoando o sábio por ter cedido à tentação satânica-
Antes do final da Idade Média o diabo tem no nome a variedade. O fluxo
unificador do cristianismo incorpora múltiplos elementos estrangeiros, cuja
origem histórica e geogrâftca exata é, em geral, impossível de ser detectada.
A explicação segundo a qual o Maligno é capaz de transformar-se em qualquer
outra coisa revela-se um tanto insuficiente. Pode-se falar, mais corretamente,
de uma luta milenar do cristianismo contra as crenças e práticas pagãs, das
quais certos núcleos duros resistem a uma destruição total, mas são lenta-
mente assimilados, recobertos com um novo véu, reorientados para um contexto
diferente, conservando seu particular poder de evocação. A maré montante
do satanismo teológico faz naufragar, sem destruir totalmente, escolhos de
múltiplas culturas demoníacas.
O diabo assume, com isso, aparências inumeráveis. Tornado animal, ele pelugem de bo
hesita entre a tradição judaico-cristã e os deuses associados a formas vivas Freqüentement
dos pagãos. Embora a forte marca cristã exclua o cordeiro, ou mesmo o e não unicamer
boi e o asno, ele não consegue impor a opinião de Sao Pedro, segundo a estâ cor ou ter
qual Lúcifer é um leão rugidor. Em outro registro, a serpente do Gênesis deToledo, em,
confunde-se facilmente com o dragão do paganismo. O bode, uma das de asno, olhos
formas preferidas do diabo, deve talvez este privilégio a sua antiga associação palhando um o
e das crenças
com Pã e Thor. O cão constitui outra de suas aparências prediletas.'o Mas çx
a figuração do cão com pés semelhantes aos das estátuas dos túmulos, em que fosse uma
Verde dos celc
particular os femininos, sobretudo nos últimos séculos da Idade Média,
diabo em Artor
comprova a dificuldade de estabelecer princípios definitivos neste domínio,
descrições não
pois essas imagens expressam a fidelidade e a fé. É pr"ciro, de qualquer
de meados da I
modo, não dar crédito a ume interpretação fixista" das coisas, a Partir de
diabo caracteú
uns poucos exemplos ou de pressupostos culturais tardios. Macacos, gatos,
mais como escc
baleias, abelhas ou moscas não seriam animais demoníacos por excelência
À dif..er,ç" do,
desde a alta Idade Média? Poderíamos dizer quase o mesmo de todo o
avó de Satã, mu
conjunto do reino animal, com menções especiais ao mocho, ao porco, à
w salamandra, ao lobo ou à raposa. A prudência exigiria, neste domínio,
ou Lillith)
uma espécie de
descr
e das crenças populares neste domínio. Quanto à cor verde do diabo, era provável
23 parricia Merivale, pan and the Goat-God, Cambridge, Cambridge UP 1969 (mas a obra tra-
ta sobretudo de um período posterior).
i
I
Das quatro direções, o norte, domínio do frio e da obscuridade, era a sue pelo visto, não conta
preferida. Aliás, todas as civilizações temem os perigos associados ao lugar ampliada por uma p<
ermo, como os asteces do século XVI, para os quais é este o território de comportamentos sisf
seu deus da morte. Os autores cristãos acrescencam a isso uma explicação, um Mal centralizado
para eles lógica: as igrejas estão orientadas para leste, portanto, ao entrer sos sociais fragmenta,
nelas, tem-se o norte à esquerda; ora, este lado do corpo humano ou do imagens do demônior
universo criado por Deus foi dedicado ao diabo, sinistro no sentido mesmo filtros múltiplos à p'er
do termo latino que designa a esquerda. Empenhado em seduzir os vivos, noção distante que tn
particularmente as mulheres e os pecadores inveterados, o Maligno é também rência suficiente para
uma figuração de deuses dos mortos pagãos. Este traço é um dos mais era ainda a de um img
duradouros na cultura ocidental, até nossos dias, pelo menos sob a forma de I.III legiões de 6.6(
lendas e narrativas literárias, sem esquecer a carreta dos mortos ou o Ankou fanáticos2s segundo os
bretão. A " caçadaselvagem", também chamada de "mesnie Hellequin",2' atra- a uma época de fragu
vessa toda a Idade Média. Nascida de uma crença no vôo dos demônios condu- das numerosâs "supìr
zidos por seu chefe, acompanhados de cães diabólicos, ou mesmo de mulhe-
quecido tanto pela ner
:
res selvagens, ela conta que os mortos são desta maneira envolvidos em uma
to pela multiplicidad
iii
terrível tempestade em direção a uma última morada que nada tem de muito anos depois de Jesus t
r,i
lil
ç católica. Não se trate, certeÍnente, de simples sobrevivência das religiões ger- não devia basar pan
l,l
z8 mânicas, nem mesmo de lembrança consciente das cavalgadas das Walkirias,
que eles poderiam tom
il;
trj
a mensageiras de Wotan, conduzindo ao Walhalla as almas dos guerreiros fale- ordem, poder. Os mor
: cidos, e menos ainda de práticas xamânicas reais conservadas. Quando muito,
quase sempre distingu
lI o
o pode-se crer que tradições desenraizadas de seu solo de origem conservararn
a gantes ou os seres htm
uma força simbólica suficiente para continuar a emitir imagens fortes no uni-
i, mosúraÍ aos homens o
verso cristão, enriquecendo assim a figura demoníaca e desenvolvendo contra-
! tâvam se eles teriam tu
E dições neste sentido.
alemães, dos celtas e
Contrariamente ao que gostariam de fazer creÍ os teólogos da época, a
) pelos doutrinadores c
fronteira entre o Bem e o Mal não era nem nítida nem fixa. A maioria dos
olhos das populações,
europeus tinha, provavelmente, dificuldade em separar também com facilidade
sobre eles. Este povo n
o joio do trigo. O discurso demonológico epârentemente não gerava uma tornava familiar o ur
ansiedade social generahzada em toÍno do tema do diabo, mesmo com a
tesouros e metavarn o!
aproximação do ano Mil, salvo quando ele se encarnava em ameaças concretes
tes imprudentes. ou
vindas de heréticos ou de judeus. A angústia escatológica das elites cristãs,
I
!
dos nightmares inglese:
animais para fazê-los
2a
La Maisnie Helbquín (ou o cortejo de Hellequin): nome dado na Idade Média a um ruidoso ban-
do de espíritos malignos, cujo chefe era Hellequin, protótipo do Arlequim d a Commedia dell'Aru.
(N. daT.)
" O termo usado pelo a.a
sinônimo de seguidor cegz
pelo visto, não contamiriara em profundidade as populações, por não estar
ampliada por umâ poderosa cultura demonológi ca, capaz de fazer surgirem
comportamentos sistemáticos diante de uma ameaça unificada. A teoria de
um Mal centralizado não tinha canais de ftansmissão para contaminar univer-
sos sociais fragmentados, em uma Europa cheia de diversidades. As múltiplas
imagens do demônio então existentes no continente Íepresentavam igualmente
filtros múltiplos à penetÍação das reses teológicas. O Anticristo era mais uma
noção distante que um cúmplice ativo de Lucífer. Este não tinha, aliás, coe-
rência suficiente para desencadear pânicos generalizados. Sua ubiqüidade não
era ainda a de um imperador infernal conduzindo de maneira autoritária suas
I.III legiões de 6.666 demônios cada uma, ou seja, 7.405.926 seguidores
fanáticos2s segundo os cálculos do médico JeanWier no século X\{L Adaptado
a ume época de fragmentação política e de tolerância religiosa prâtica diante
das numerosas "superstições" herdadas do passado pagão, ele se via enfra-
quecido tanto pela necessidade de estar ao mesmo tempo em toda parte, quan-
to pela multiplicidade de suas aparências. Máximo de Tiro calculara, I80
anos depois de Jesus Cristo, que havia 30.000 demônios, o que provavelmente
não devia bastar para as suas tarefas, nem levava em contâ as inúmeras formas ç
que eles poderiam torÌur. Faltava, indubitavelmente, âo universo satânico coesão, z9
ordem, poder. Os monstros dele não fazian parte obrigatoriamente, pois eram
z
quase sempre distinguidos dos demônios, acreditando-se que os anões, os gi-
u
gantes ou os seres humanos com três olhos tiúam sido criados por Deus para
moscraÍ aos homens o que erâ a privação de um traço físico. E então se peÍgun-
F
tavam se eles teriam uma alma. Do mesmo modo, os espíritos da natureza dos z
LA
" O termo usado pelo autor é. séifu, de Síide ou Zafi ibn Hàntha, escravo liberro de Maomé. É
sinônimo de seguidor cegamente devotado, sectário e fanático. (N. daT)
Mas era muitas vezes possível capturá-los, amedrontálos, ludibriá-los ou
até mimá-los, depois de tê-los tornado esperros espíritos familiares. O mesmo
acontecia com os diabos demasiadamente humanos tantas vezes descritos nos
contos e lendas.
lJma concep çã,obanalízada do universo sobrenatural sobrevivia com firmeza
em confronto com a ascensão de uma imagem aterrortzante de Lúcifer. Uma
série de crenças e de práticas visavam principalmente a sua desdramatização
ou, pelo menos, a afirmar a possibilidade de agir sobre os espíritos invisíveis
para evitar sua maldade ou mesmo para obter de sua parte uma ajuda preciosa
em diversos domínios. A história do diabo enganado tinha, no caso, extreor-
dinária importância. Derivada de narrativas sobre a tolice dos trolls ou dos
gigantes, e estendida ao conjunto do reino demoníaco, ela produzia um
sentimento comum de superioridade do homem sensato e corajoso sobre o
pretenso Maligno. Fabliaul" e ourros contos medievais com freqüência puse-
ram em cene pessoes comuns cepâzes de impor-se ao Príncipe das Ti.evas.
Afinal o próprio Deus não tinha dado ao homem uma possibilidade de vencer
as tentações satânicas? Os teólogos dizìarn que Lúcifer era muito poderoso,
6 mas também basicamente ìncapaz de compreender muita coisa, que corres-
)o pondia ao mesmo princípio fundamental de explicação. Longe de ser o dono
da festa, Satã via-se simultaneamente cerceado pela vontade divina e contestâ-
z
: do pela malícia humana. Quando ele conduzia a caçada selvagem, aconrecia-lhe
o
a
â
também cavalgar os animais ao contrário, signo eminente de cruel zorrrbarìa
aos olhos dos contemporâneos. Pois não era uma pútìca social de humilhação
;
.c
dos personagens de carâter ftaco fazê-los montar ao contrário em um asno,
v
T sobretudo os maridos corneados, que assim desfilavam, sob zombarias dos
espectadores, em punição a sua fraqueza dìante da esposa volúvel? O fato de
:l
os demônios e seus seguidores fanáticos terem sido imaginados com essa
mesmâ postura dava, então, a medida de um procedimento que os minimizava.
O traço manter-se-á posteriormente, em um contexto muito mais trágico,
por ocasião dos processos de feitiçaria: confessar ter cavalgado, caminhado
ou dançado ao contrário será considerado como uma prova de pertencer
ao universo maléfico.
26
Fabliaux - do francês arcaicoJableau. conros alegres da Idade Média, em versos e rom em
geral grosseiro. As vítimas prediletas de sua maldosa verve são o vilão, o marido enganado e
" Do latim medieval ordalium: prova judiciária destinada a justificar ou a confundir um âcu-
sado. O ordálio, ou julgamento de Deus, gozou de grande voga nos primeiros séculos da
Idade Média. Consistia em fazer o acusado passar por umâ pÍova de fogo ou de água, da
qual, se ele conseguisse sair salvo, poderia ser declarado inocente. (N. daT.)
'8 J. B. Russel, op. rit., p. I60-16I.
CeuseR Meoo: UMA OssessÃo DresoLIcA
EM FlNs DA Ineop MÉota
tn
N. Elias, Ia Civilkation des moeurt op. cít,
Pois estes séculos em contraste possuem uma coerência global a de preparar a
projeção do Ocidente para fora de si mesmo, das Cnrzadas à descoberta da
América. Obscurecidos pelas crises e rivalidades internas, os geÍmes de uma
maturação devem ser buscados na verdadeira invenção de um novo olhar so-
bre o mundo, sobre o corpo humano, sobre os meios de melhor trânçar os
fios das sociedades - coisas essas que se tornarão os pontos fortes de uma
civ ìlìzação ocidental conquistadora.
Longe de constituir um fato isolado, a mutação de uma imagem do diabo ins-
creve-se neste dinâmico campo de ação. Ela se torna o fermento da evolução,
pois faz parte de um sistema unificador de explicação da existência, que aproxi-
ma lentamente as paÍtes mais empreendedoras do Ocidente, opondo-se, cada
vez mais nitidamente, no decurso dos séculos, ao universo maciçamente encan-
tado e infinitamente pulverizado em que continuam a viver as populações
agrícolas e as massas urbanes.
A escultura romana dos séculos XI e XII encerna Satã sob diyersas for-
mas humanas e animais.s0 Ele deixa a absffação teológica para torner-se devo-
rador de homens, vassalo traidor ou a besta do Apocalypse de Saint-Sever. Nem
por isso deixa de ser um produto da imaginação dos monges, tal como em
Saulieu, onde sua estatura de humano alado com focinho pontudo como o ,)
de um tamanduá deriva diretamente de uma visão aparecida ao monge de
z
Cluny, tal como a relata Pedro, oVenerável. Quanto aos gigantes de cabeça O
pequena, com membros desmesuradamente longos, de Autun, eles nascem
de uma descrição feita por Guibert de Nogent. Zornbetefto, aterrorizante,
ts
o demônio romano causa medo às elites dafé e tenta impor sua presença z
qì
obsedante aos cristãos simples, que o vêem tanto sobre um capitel quan-
't
to sob as aparências grotescas com que se apresenta nas tradições popu-
lares ou no teatro. A mensagem, com isso, mostre-se confusa, carregada
demais de alusões doutas para realmente fazet populações inteiras suarem
de angústia. Além disso, a arte gótica do século XIII não aceita colocar o
diabo em um lugar medíocre. Esmagado pelo Cristo em majestade nos
frontões das catedrais, relegado ao papel de servir apenas para va\oúzar
ainda mais a beatitude dos eleitos em marcha para o paraíso, ele se torna
quase humano, simplesmente um pouco enfeado, brincalhão ou zombador.
tuJ. Delumeau,
Lt Peur en Occident, op. rít., p. 233. Ver também H. Legros, "Le diable et l'enfer:
représentation dans la sculpture romane", em b Dìabb au Moyen Age (doctrine, problìmes moraux,
représentatíons), Senefiance n" 6, Université de Provence, I979, principalmente p. 320-32L
Pitoresco, próximo do gosto popular, que tende a caçoar dele, ele povoa lu-
gares diversos, imobiliza-se nas canaletas de escoamento das águas' impotente
sob o olhar de um Deus que o domina e the deixa pouco esPaço para agir.
o diabo é ainda buscado, ou melhor, os homens que o imaginam hesitam en-
tre a lição gÍotesca que agrada a muitos e uma definição mais assustadora
nascida de uma meditação teológica desenvolvida desde Gregório, o Gtande'
A acentuação de traços negativos e maléficos do demônio pode ser realmente
assinalada apa.tft do século XIV porque o fio da história assim contada não
se limita mais ao estreito mundo monástico, mas se entretece cada vez mais
profundamente na trama de universos laicos em que se coloca concfetamente
o proble-" do poder, da soberania, das formas de dependência. o discurso
sobre Satã muda de dimensão no momento mesmo em que se esboçam teo-
rias novas sobre a soberania política centrahzada, diante das quais o universo
das relações feudais e vassálicas cede lentamente. A contaminação entÍe
essas
,rJérôme Baschet, "satan ou la majesté maléfique dar. les miniatures de la fin do Moyen
Age," em Nathalie Nabert (otg.), b Mal et le Diabb. burs Jigures à ln J;n du Moyn Aye. Paàs,
Beauchesne, 1996, p. I87-210.
.r ks représentations de I'enJer en France et en halíe 6II-XVme
Jérôme Baschet, bs Justircs àe I'au-tbk.
slrilr), Rome, Escola Francesa de Roma, 1993, p' 219-220'
Ela segue paralela e uma monstruosidade cada vez mais assinalada e à aluci-
nante evocação de um inferno fervilhante, cujo centro ele ocupa, como um
rei em seu trono. Nas paredes do Campo Santo de Pisa, ou da ìgteja de São
Geminiano na Toscana (os afrescos são de auroria de Tâddeo di Bartolo, em
1396), sua gigantesca figura chifruda domina a dos demônios que se dedicam
a punir os pecadores e os minúsculos danados que ele aperta em suas mãos
antes de engoli-los com fúria." Em Florença, ou em Pádua, duas serpentes
saem de suas longas orelhas, e suas três goelas deyoram cada uma um danado:
Dante parece ter-se inspirado no mosaico de Florença pâra descrever um impe-
rador infernal com três faces devoradoras.Ventre bestial, o terrível diabo en-
gole e vomita incessantemente os pecadores, sobre os quais se lançam votaz-
mente os dragões ou as serpentes que lhe servem de assento e os inúmeros
seguidores diabólicos ocupados ern rnaftirizar sadicamenre corpos infini-
tamente maltratados.
O inferno e o diabo,
partir de então, nada têm de metafórico. A arte
a
produz um discurso bastante preciso. muito figurativo, sobre este reino de-
moníaco, colocando detalhadamente, a título de exemplo, a noção de pecado, g
a fim de melhor induzir o cristão à confissão: "Meter medo nele produz
um choque emotivo que leva a fazer agir e a fazer confessar." Em outros )5
termos, a encenação satânica e a pastoral que a ela se reporte desenvolvem z
sobre a lei, sobre o governo dos homens. A partir do século XIV a deta-
lhada evocação dos suplícios infernais dá o exemplo de uma justiça desejada
tt
J. Delumeau, I't Peur en Occídent, op. cit. p.234.
" J. Baschet, op. cit., p. 496-497 e 590-59I.
por Deus, implacável, sem apelo, em oposição a uma ptítica terÍestÍe multas
vezes inefrcaz. Ela, lenta e insidiosamente, habitua as populações a pensar que
a maÍca mesma da soberania reside no poc,{er da espada punitiva. Abre-se as-
sim, pouco a pouco, o caminho que leva a um Estado de justiça mais severo,
a um rei capaz de manejar um aÍsenal de suplícios adequados, em nome de
Deus. Antes de condensar-se no século XVI na forma da noção de lesa-
majestade, a idéia segundo a qual os castigos formam uma ca.leia progressiva,
que religa as ações humanas à vontade divina, começa â expÍ€ssâr'-se no es-
petáculo do castigo implacável Íesefvado aos pecadores. Aos que acrediCavam
poder usaf de subterfúgios com o diabo e, Portanto, com Deus, a nova ima-
geria infernal explica que eles não conseguirão escapar de sua softe. A emea-
ça se tofna mais dramática, obrigando fiéis culpabilizados
a tentar dela
eximir-se por meio da confissão, da devoção. A acentuação do medo do in-
ferno e do diabo tem, provavelmente, por resultado um aumento do poder
simbólico da Igreja sobre os cristãos mais atingidos Por estas mensagens.
individual
Jérôme Baschet evoca, com raz?to, urn mecanismo de inculpação
mais intenso, que não é exatamente um cristianismo do medo, mas um movi-
mento que impele o crente a superá-lo e a reassegurar-se seguindo, mais do que
)6
antes, as vias que lhe são traçadas. Arma para reâfirmar em profundidade a
a
sociedade cristã, a ameaça do inferno e do diabo aterrador serve como ins-
:
ô trumento de controle social e de vigilância das consciências, incitando à trans-
a
o formação das condutas individuais."
: Ampliando-se a perspectiva, podemos falar de um início de modernização
-o
I=
iniciado em certos estratos das sociedades européias Por meio da mo-
) dificação da imagem do diabo e do infeÍno, induz auma série de conseqüências.
Desenvolve a concepção monástica da morte e do corpo em setores laicos
cada vez mais amplos, em detrimento das acepções populares centradas em
uma "continuidade além da morte"36 e na percePção de um mundo sobfe-
natural sólido, denso, em que o Bem e o Mal não são, em princípio, perfei-
tamente distintos. O abalo deste universo encantado assinala a fetomadâ
da conquista cristã, mais que uma proliferação do diabólico. A afirmação da
autonomia do inferno pode ser compreendida como um imenso esforço
.o
da soberania real. O pensamento político da época relaciona, aliás, ex-
=
"" Jacques Krynen, tEmpire du roi. ldees et cro)ances politiquu en France,.XIII-XVème siüb, Patìs,
Gallimard, I993, p. 407 e conclusão.
3e
]. Baschet, artigo citado, p. I98-2O2.
do mesmo, ou, ao contrario, de apelar pera seu reforço. Portador de uma ma-
jestade ffansviada, ele representa sempre uma ânsia de subversão, que se expres-
sa no registro do excesso de podea seja ele o seu ou o de um tirano execra-
do. Será que as fantasias de devoração que a partir de então a ele se colam
podem ser explicadas do mesmo modo, como transposição de um medo do
"canibalismo" político dos reis ou, na ltália, dos ambiciosos desejosos de abo-
canhar em proveito próprio o poder urbano? Lucifer torna-se um monstÍo
votaz, por volta de 1200, na França e na Inglatetta e, a partir da segunda
metade do século XIII, nos afrescos italianos. Descobrimo-lo dotado de duas
goelas glutonas, uma das quais se situa no baixo-ventre, ou mesmo de outras
bocas terríveis disseminadas sobre o resto do corpo. Oral e anal ao mesmo
tempo, ele engole e vomita incessantemente os danados.no Além da possível
alusão aos desmandos nos poderes políticos, o tema traz consigo uma con-
cepção animal do corpo satânico. A diferença de natureza em relação ao
homem comum, já sublinhada pelos atributos principescos, vê-se extraordi-
nariamente realçada por esses traços. Enquanto Raoul Glaber ou os escul-
tores góticos imaginavam o Maligno como um ser humano disforme, as pes-
soas da Idade Médiatatdra o empurrarn resolutamente para fora de sua es-
6
fera humana, em direção a um universo animal tornado mais inquietante a )9
partir do século XÌL z
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:
ts
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!.1
O MelrcNo E A Fane ts
*:' p. 5O9.
J. Baschet, op. cit.,
deviam pelo menos tornar visíveis e críveis para a grande maioria, levando
em conta, por vezes, formas populares atribuídas ao demônio. A crescente
complexidade das cidades, por efeito do progresso econômico, do desen-
volvimento das cidades, das crescentes ambições dos reis, dos imperadores
e dos papas, bem como a penetração em profundidade da cristianização no
decorrer dos séculos, modificaram lentamente o equilíbrio entre esses duas
esferas. Sem jamais conseguir destruir totalmente os núcleos mais sólidos
das crenças populares, a ofensiva erudita desenvolveu-se visando depurar a
vida e a fé dos cristãos comuns. O ideal de pweza monástica traçou cami-
nhos, cada vez mais firmemente, no campo das "superstições" populares,
mesmo que elas retornassem com força assim que se lhes apresentava opor-
tunidade. As verdadeiras novidades não se encontravam na simples vontade
de agir desta maneira, patente há séculos, mas no aparecimento de meios
de transmissão capazes de assimilar a mensagem e de difundi-la, por exem-
plo, em universos cuja importância era, pouco a pouco, crescente. Reis,
príncipes ou grãos-senhores, clérigos educados em escolas e universidades,
sábios e médicos, burgueses empreendedores das cidades, aÍtistas e artesãos
ç a quem uns e outros encomendavam obras para manifestar a fé ou em-
4o belezar a vida, formaram o alicerce heterogêneo de um "meio" aberto às
: icléias que jorravam dos lugares de erudição e de santidade para iluminar
:
o o mundo profano. Seria, sem dúvida, um tanto simplificador atribuir ape-
o nas à escolástica o benefício da evolução, sobretudo no que diz respeito à
ã
.o
definição do inferno e do diabo.ar No mínimo, isso seria minimizar urn
z abalo na própria corte dos clérigos, com o início de um grande movimen-
T
to de colonização do imaginário ocidental por parte dos pensadores, que
:
3 alicerçaria, com o passar dos séculos, a imporcância dos intelectuais na so-
ciedade. Pois os homens de poder puseram-se cadavez mais a consultar as
pessoes de saber, tanto em matéÍia de teoria política ou de doutrina religiosa
quanto no domínio mais complexo do sencido da vida, ou mesmo da crença
cotidiana, muitas vezes ainda contaminados pelo magismo universal reinante
nos grupos populares. Este contÍato implícito entre os doutos e os dominan-
tes induzia a um dinamismo mais agressivo gue a antiga concepçào de um
mundo maciçamente encantado, dentro do qual o ser vivo só podia evoluir
pudessem realmente agir sobre os seres vivos, o que excluía, portanto, qualquer
relação sexual com os mesmos. Ora, o século XII registra mudanças decisivas
nestes pontos." Por ouúo lado, desenvolve-se a idéia segundo a qual os íncubos
e os súcubos podem realmente seduzir os vivos, apresentando-se, em geral, a
eles sob a forma de um belo jovem ou uma encantadora jovem. Tais relações
contra anatuÍeza encontram-se no mesmo momento definidas como bestiais
e estreitamente ligadas às heresias. Os historiadores da Igreja assinalam as
" Joyce E. Salisbury, The Beast within. Animak ín the Middlt Ages NovaYork-Londres, Routledge,
1994, sobretudo p, 9, 96-97. Ver também H. W Janson, Apes and Ape Lore in the Middb Agu
and the Renaissana, Londres, The Warburg Institute, 1952.
concordâncias com â ascensão do tema do purgatório, pois, se as almas podem
ser punidas, os demônios têm igualmente liberdade para agir sexualmente sobre
o corpo. Por outro lado, o mundo animal começava e tornâr-se muito mais in-
quietante do que na alta Idade Média. A fronteira nítida entre homens e animais
rompia-se a paÍtir do século XII. O imaginário erudito rejeitava cada vez mais
as relações sexuais entre as duas esferas.Tomás de Aquino (1225-1274) definia
a bestialidade como o pior dos pecados sexuais, porque ela não preservava es re-
feridas diferenças. A justiça da época estava, sem dúvida, muito mais preocupa-
da com a homossexualidade, mas a idéia ia ter livre curso. Considerada como urn
XIII, a besciali-
crime capital em um códice espanhol, a partiÍ do final do século
dade levou a muitas execuções em Maiorca no século XV ou foi declarada
passível de morte na Inglaterra, bem como na Suécia em 1534. A nova severi-
dade repressiva provém, segundo vários autores, da definição de uma transgressão,
considerada inadmissível, das fronteiras entre os gêneros hurriano e animal."
Tâmanha obsessão pode, à primeira vista, parecer tão banal quanto antiga.
Os textos antigos admitiam jâ urrra permeabilidade entre os dois universos,
como o demonstÍavam as MetamorJoses, de Ovídio, ou O asno de ouro, de Apuleio.
ç Existiam igualmente inúmeras crençes populares neste domínio. No entanto,
4z a linha doutrinal corrente na Igreja medieval afirmava que a metamorfose de
um ser humano em animal era uma ilusão. Defendida por Santo Agostinho,
:
: retomada por Santo Tomás de Aquino, admitida por Henri Boguet, caçador
o
c de feiticeiras do século XVI, esta teoria não desapareceu totalmente. Foi
^
: simplesmente recoberta por uma segunda opinião, de origem douta, que se
.o
espalhou na literatura, prolongando a explosão de sucesso que teria o livro de
z
T Ovídio entre os séculos XII e XIV A idéia era igualmente admitida por inú-
meros doutos interessados nas mutações da natureza, sem falar nos alquimistas
:
ã
que buscavam a pedra filosofal.n' Será que esta nove linha visava a fazer recuar
o magismo popular, insensível às teorias agostinianes que se situavam no mes-
mo terreno, mas relacionando o mistério em questão com e vontade divi-
na? De fato, ela {aziapate de um movimento de definição mais precisa e mais
concrete das ações de Lúcrfer neste mundo. Este veio demonológico, visí-
vel nas representações realistas dos infernos, produziu no século XV os
manuais de caça às feiticeiras de que falaremos no próximo capítulo. Ele só
a7
Do italiano manàorla- amêndoa. Signo de glória, em forma amendoada, na cabeça das ima-
gens de Cristo e da Vrgem, na Idade Médta. (N. daT.)
'8 Reproduzido em Enrico Castelli, lt Dímoniaque dans I'art. Sa sígn!t'ication philosophiqur, Paris, Vrin,
1959 e (com uma visão diversa) Gilbert Lascault, b Monstre dans I'art orcidental. Un problìme es-
thétique,Patìs, Klincksieck, I973, diante da página de título interna.
'n Crylb-Fìgttra monstruose, freqüente nas obras da Antiguidade e recomada na Idade Média,
constituída por umâ cabeça provida de membros, sem corpo. (N. daT.)
pessoas comuns. Seria, com certeza, falso imaginar urn terÍoÍ generalizado, pois
diabos ludibriados e grotescos continuavam sendo abundantes, tanto nos con-
tos quanto nas práticas. As representações de mistérios nos átrios das igrejas mis-
turavam o sagrado ea derrisão. As procissõespuúam em cena demônios
e as festas
to
Robert Deschaux, "Le Livre de la deablerie d'Eloy d'Amerval", em b Diablr au Moyn Age,
animal, como na I4da de São Francisco, no século XIIL Mas este santo tratava du-
ramente sua própria parte animal, chamando a seu corpo de "Irmão Asno", tra-
balhando muito, comendo pouco e fustigando-se com freqüência. Ele definia,
assim, dois universos opostos e fazìa da humanidade o contrário mesmo da ani- w
malidade. Pois o espírito devia ser capaz de governar os apetites e as paixões.sz 47
Esta concepção, legada a nossa época, deve ser relacionada com o proces-
;
so civilizatório que Norbert Elias afirma ser característico do Ocidente. A U
eliminação de uma linha de demarcação nítida entre o homem e o animal,
por volta do século XII, levou a temer, ainda mais do que antes, a parte bes- F
z
tial do homem e, poÍ conseguinte. a tentaÍ controlá-la mais eficazmente. No E
fundo, o medo de si intensificou-se, provavelmente mais nas elites culturais F