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obras escolhidas obras escolhidas

Pedro Levi Bismarck 1. mento funcional fundamental, por outro lado, colocava
problemas de circulação e congestão que não se ajustavam
Nada foi tantas vezes decretado morto na história da ao tecido urbano das cidades europeias, formadas por uma
Geometria e Angústia
cidade como o arranha-céus, desde as primeiras constru- infinita acumulação de estratos históricos. De qualquer
ções em Chicago (nas últimas décadas do século XIX) até modo, o arranha-céus, ao romper com essa correlação his-
ao colapso das torres gémeas na sequência dos ataques tórica, transformava-se no sinal mais evidente do processo
do 11 de Setembro de 2001, a que o compositor alemão de dissolução da cidade burguesa e o espelho de uma me-
Karlheinz Stockhausen — num daqueles momentos de ilumi- trópole capitalista em crescimento acelerado: desumaniza-
nação pueril que jamais devem ser confessados — chamou da, irracional, reprodutora de capital e miséria, represen-
«a maior obra de arte de todos os tempos». Uma afirmação tada de forma paradigmática no filme Metropolis, de Fritz
cuja virtude está menos na sua crueldade do que na capa- Lang, em 1927.
cidade de identificar o arranha-céus enquanto unidade A questão de fundo que atravessava (e atravessa) este
fundamental daquilo que poderíamos chamar a «dialéctica debate é o conflito entre as necessidades de expansão de
do absurdo» (para usar o título de um artigo do historiador capital que a metrópole oferece (mas também necessita)
Manfredo Tafuri) que é a metrópole na era do capitalismo, e as exigências de organização de sistemas urbanos, cada
onde construção e destruição não são mais do que momen- vez mais complexos, que não podem bloquear o investi-
tos inseparáveis do ciclo infinito de produção, acumulação, mento (a produção de mais-valia), mas também não podem
espectáculo e crise. permitir a sua expansão ilimitada à custa da sua própria
Quem melhor representou esse affair permanente dissolução enquanto estrutura produtiva e funcional.
entre arranha-céus e metrópole foi Rem Koolhaas no seu Para os grandes defensores do planeamento a torre foi
Manifesto Retroactivo em defesa do «manhattanismo» e da sempre um obstáculo insuperável a uma organização ra-
«cultura da congestão». Na capa da primeira edição de cional da cidade, um elemento antieconómico, absurdo
Delirious New York (1978), um desenho de Madelon Vriesen- e arbitrário, expressão da utopia capitalista da autoplani-
dorp mostrava em flagrant delit dois arranha-céus, o Empire ficação e de um urbanismo de mão invisível dirigido unica-
State Building e o Chrysler Building, surpreendidos na cama mente pelas leis do mercado.
pelo Rockfeller Center. Observando a cena de frente, atra- O chamado «índex arranha-céus» que coloca, lado
vés de um grande janelão, como audiência desse espectá- a lado, o número de arranha-céus construídos e as crises
culo que é a metrópole, está, claro, a grande Manhattan. financeiras dos últimos cem anos não é mais do que a cons-
Se, por um lado, o arranha-céus é o objecto sublime tatação de uma relação efectiva: o Empire State Building
onde se condensam os valores do individualismo em- (1931) foi inaugurado em plena Grande Depressão, após
preendedor do sonho americano, por outro lado, ele não o crash da bolsa de Wall Street, em 1929; o World Trade
é mais do que a resolução arquitectónica de um proble- Center foi inaugurado no meio do choque petrolífero de
ma colocado pela organização capitalista da metrópole. 1973; a torre Burj Khalifa (2010), no Dubai, foi inaugura-
Neste sentido, o arranha-céus não é apenas expressão, da durante a última crise financeira global. Não se trata,
mas instrumento da economia: uma verdadeira machine simplesmente, de definir uma relação entre especulação
à capitaliser: uma máquina vertical de reprodução diabólica imobiliária e ciclos de negócio, mas do papel gerador das
de espaço e, obviamente, de capital. Parafraseando Guy bolhas imobiliárias nas crises financeiras: «As skyscrapers
Debord, poderíamos dizer que a metrópole é o capital em tal rise, markets fall», podia ler-se numa notícia da CNN.
grau de acumulação que se torna arranha-céus. A dialéctica do absurdo dos arranha-céus não é mais que
No entanto, se a tabula rasa das cidades americanas a dialéctica do absurdo do próprio capitalismo: a repro-
aceitava naturalmente a reprodutibilidade do arranha- dução contínua e cíclica dos movimentos de acumula-
-céus — já que este não é mais que a projecção vertical da ção e despossessão, ascensão e queda, ecstasy e crash.
grelha —, na Europa a inscrição da chamada «construção em Ou, como escrevia Federico García Lorca, no diário da sua
altura» constituía a chegada iminente de um futuro para viagem a Nova Iorque em 1929: «arquitectura extra-huma-
o qual a burguesia não estava preparada. Sintoma óbvio na e ritmo furioso. Geometria e angústia.»
A Torre de Picoas é o manifesto lançado, em 1887, por um grupo de artistas
projectada pelos e intelectuais (Maupassant, Gounod e Garnier) insurgindo- 2.
arquitectos Patrícia Barbas -se contra a «inútil e monstruosa» Torre Eiffel que ameaça-
e Diogo Seixas Lopes torna va «desonrar» a cidade de Paris. A Torre, como escrevia al- Talvez, assim, seja possível reconhecer como a «construção
inevitável que se retome gures Giorgio Agamben, visível de todo o lado, não só dava em altura» se transformou nas cidades europeias num ver-
uma insistente discussão um golpe de misericórdia ao carácter labiríntico da cidade, dadeiro problema arquitectónico onde, ao contrário das
sobre a história dos como fazia de Paris a mercadoria mais preciosa exibida na suas congéneres americanas, a torre assumiu uma condição
arranha-céus, a sua relação Exposição Universal de 1889. de ruptura e excepcionalidade relativamente à malha ur-
problemática com a cidade Uma querele que anunciava as polémicas que vão bana consolidada e condensou em si todo um conjunto de
e o que eles representam entreter o debate europeu a partir de 1920. Por um lado, questões funcionais, políticas, morais e estéticas. Lisboa
nas políticas urbanas. Fotografias por Nuno Cera a «construção em altura» apresentava-se como um ele- não é excepção e, talvez, por isso, é maior a lista das

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O compromisso dos vo do vidro espelhado parece ser o de suavizar a volumetria Do outro lado das políticas
arquitectos em reivindicar do edifício, camuflando-o, na verdade, ele não faz mais que urbanas de uma Lisboa
uma condição pública da expor a difícil relação entre torre e cidade. Mas o paradoxo alegremente cosmopolita
sua tarefa de participação do espelho é que ele reflecte a realidade apenas para não está a incapacidade das
na produção da cidade é, se revelar a si próprio, produzindo um efeito de impenetra- instituições públicas em
hoje, uma tarefa urgente. bilidade que não cessa de nos sugerir, tal como em Alice do gerir os efeitos da alteração
Mas essa exigência não Outro Lado do Espelho — o conto de Lewis Carroll —, que há funcional da cidade às mãos
poderá ser realizada sempre um outro lado, um mundo inexplorado de fantasia, da economia do turismo.
seguindo os pressupostos ao qual nunca nos é concedida a possibilidade de aceder.
que fabricaram a cidade Ora, se o vidro era, de facto, a grande utopia da arquitec-
europeia social-democrata tura moderna, no seu desejo de transparência e igualdade,
do pós-guerra. podemos dizer que o vidro espelhado, por sua vez, é a gran-
de utopia da corporate architecture: dissimular a sua presen-
ça, tornar impenetráveis os seus mecanismos, colocar-se
parecimento constituiu uma perda irreparável. A memória fora da esfera profana da cidade.
descritiva que acompanha o projecto é exemplar no modo A opção pelo espelho assume que a mediação entre
como define critérios de racionalidade capazes de legitimar torre e cidade, isto é, entre privado e público, só pode
uma proposta que responde às exigências comerciais do ser realizável através de um permanente jogo de espelhos
promotor, mas, simultaneamente, procura intervir de forma e que a ambição social-democrata, de racionalização das
estruturante no espaço urbano. A posição paradigmática forças do capital na construção do espaço de todos, acaba
assumida pelos arquitectos é de mediadores, reconhecen- irremediavelmente convertida num teatro de sombras,
do a «forte expressão pública» da torre e a tarefa urbana de de simulacros e simulações, onde os processos políticos
«reconquista do espaço público de Lisboa», qualificando-o e económicos que produzem a cidade se tornam impenetrá-
e redesenhando-o de forma a responder às transformações veis (por espelhamento ou por opacidade). Neste sentido,
funcionais de uma zona considerada como prime central poder-se-á dizer que a linguagem racionalista e rigorosa do
business district. «Torre» e «praça» são, por isso, dois ele- projecto cumpre a função ideológica de oferecer aos ciclos
mentos intrínsecos e complementares da proposta, reflec- económicos — marcados pelo movimento permanente entre
tindo-se mutuamente: a arquitectura e a cidade, o privado boom e crise — uma imagem de ordem, uma geometria, que
torres que ficaram por realizar do que as realmente cons- e o público. dissimula a irracionalidade e a angústia inerente à sua lógi-
truídas. Basta recordar as três torres de Álvaro Siza para Em pano de fundo, reconhece-se a ambição de um ca especulativa. Por outro lado, a simetria e a clareza poéti-
Alcântara (2003) ou o arranha-céus projectado por Norman programa social-democrata: a relação harmoniosa e inte- ca entre público e privado não se coaduna com a realidade
Foster para a Avenida 24 de Julho (2004). Sem esquecer grada entre intervenção empreendedora privada e políticas dos processos que circulam ambiguamente entre estas duas 3.
todo o registo polémico que envolveu a construção das públicas, capazes tanto em captar investimento como em esferas: o infinito entretecer legislativo dos regulamentos,
Amoreiras, em 1985. definir os mecanismos legais, urbanos e arquitectónicos o jargão técnico-místico dos «cálculos de edificabilidade», Em suma, o compromisso dos arquitectos em reivindicar
Um dos mais recentes objectos de controvérsia aptos a enquadrá-lo e a controlá-lo. Mas trata-se, igual- das «atribuições de crédito de construção», das permutas uma condição pública da sua tarefa de participação na
é a torre em Picoas (FPM41), projectada por Barbas mente, da afirmação do arquitecto como agente público e privatizações de terrenos, mas também, toda a mise en produção da cidade é, hoje, uma tarefa urgente. Mas essa
Lopes Arquitectos e que tem como promotor a Edifício produtor de cidade (e não como mero construtor privado), abyme de promotores, empresas, fundos imobiliários e exigência não poderá ser realizada seguindo os pressupos-
41 (antes denominada Torre da Cidade) e que pertence do promotor como agente social responsável e, por fim, sociedades de capital de risco, sediadas um pouco por todo tos que fabricaram a cidade europeia social-democrata do
ao fundo FLIT, Fundo Lazer Imobiliário e Turismo, geri- do poder público como entidade que actua em nome do o mundo e que tornam estes processos indiscerníveis, mes- pós-guerra. Desde logo, porque a crise financeira de 2008
do pela ECS, Sociedade de Capital de Risco. O edifício bem comum. O desígnio racionalista de organização dessas mo para o observador mais atento. significou a consolidação de um modelo económico e po-
de escritórios, com 17 andares e uma superfície total forças está bem patente no desenho rigoroso do edifício, lítico neoliberal que assenta no desmantelamento dessas
de cerca de 22.500 m2, ocupa um conjunto de quatro na sua composição interna e na relação com as linhas estru- condições: a privatização de serviços e instituições públi-
lotes no gaveto da Avenida Fontes Pereira de Melo com turantes da malha urbana. Mas esse desígnio insinua-se, cas, a perda de capacidade do Estado em mediar e regular
a Avenida 5 de Outubro e inclui uma intervenção urbana igualmente, na lógica construtiva marcada pela economia os fluxos cada vez mais globais de capital, sem esquecer
nas zonas adjacentes, assim como a criação de uma praça do desenho e pelo ritmo quase obsessivo da modulação da a precariedade social e laboral generalizada.
entre a Maternidade Alfredo da Costa e a Casa-Museu fachada, que, na sua nudez, parece querer expor o edifício Do outro lado das políticas urbanas de uma Lisboa
Dr. Anastácio Gonçalves. tal qual. No entanto, a afinidade miesiana sugerida não alegremente cosmopolita está a incapacidade das insti-
O projecto de arquitectura — vencedor de um concur- é senão aparente, já que os módulos da fachada não são tuições públicas em gerir os efeitos da alteração funcional
so de ideias lançado pelo promotor em colaboração com tanto a revelação da lógica construtiva do edifício, mas uma da cidade às mãos da economia do turismo e, sobretudo,
a Câmara Municipal de Lisboa — tem a virtude de reconhe- pele que oculta a sua estrutura. a incapacidade em conter processos de gentrificação
cer e dialogar criticamente com a complexidade inerente Ora, é precisamente na utilização dos módulos em e especulação imobiliária, onde a habitação se converteu —
a um programa deste tipo numa zona da cidade marcada vidro espelhado e alumínio bronze que o edifício revela seguindo toda a lógica neoliberal — em pouco mais que um
pela malha urbana regular das «Avenidas Novas». A isto a incapacidade de (re)conciliar as diferentes forças em activo financeiro, debaixo de uma gestão de espaço e vida
não será estranho o compromisso público e disciplinar dos acção. Todo o esforço racional do projecto é neutralizado urbana desigual e desqualificada politicamente, cada vez
fundadores deste atelier, Patrícia Barbas e, sobretudo, por um ambíguo jogo de efeitos entre opacidade total (do mais exposta à geometria e à angústia dessa infinita dialéc-
Diogo Seixas Lopes, autor, professor e curador, cujo desa- alumínio) e espelhamento absoluto (do vidro). Se o objecti- tica do absurdo que é, ainda hoje, a metrópole.

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