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Paranoid Park um estudo de caso sobre o som no cinema contemporâneo
Mariana Costa
Resumo: Este artigo visa analisar a banda sonora do longa metragem Paranoid Park (2007), de
Gus Van Sant, e tem com o objetivo de explicar por que a mesma deve ser encarada como um
elemento fundamental desta construção filmica. Pretendese ressaltar a utilização de uma banda
sonora que rompe com as prerrogativas do cinema clássico como um mecanismo de concepção
de um cinema dito contemporâneo.
Palavras chave: Paranoid Park; Gus Van Sant: Banda Sonora; Som no cinema;
Introdução
De acordo com Carvalho(2007), o cinema nunca foi “nãosonoro”, o cinema foi mudo,
isto é, literalmente privado de palavra. Por isso, o cinema não se tornou sonoro e sim se tornou
falado. Desde os primeiros filmes sempre existiu a presença de intervenções sonoras, seja ao
vivo com o uso de acompanhamento musical realizado por um pianista, um improvisador ou por
uma pequena orquestra; ou na forma gravada, com a junção do fonógrafo com o cinematógrafo.
Assim, a estrutura e o sentido do filme, desde o advento do cinema “falado”, são construídos
através das duas bandas da película: a sonora e a visual. Na banda sonora podemos identificar os
seguintes elementos: música, efeito sonoro e voz. Em conjunto, eles intervêm simultaneamente
com a imagem e é essa simultaneidade que os integram à linguagem cinematográfica. Segundo
Carrasco (1993, p.112), além de funcionar como interferência do narrador para a composição e
caracterização do personagem, ou para informar sobre seu estado de espírito, e suas condições
emocionais, a música pode ser usada para expressar diferentes pontos de vista da personagem,
exercendo uma função que originalmente pertencia ao texto falado.
A linguagem sonora no cinema clássico, desde o modelo de Griffith, é baseada no
sincronismo da imagem e dos sons. Tal escolha consolidou para a dimensão sonora uma espécie
de discurso da neutralidade, uma maneira de colocar a trilha sonora como algo complementar na
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confecção do controle da narrativa e de sua recepção. Assim, o fenômeno sonoro no cinema
passou a ser predominantemente utilizado de forma a se tornar imperceptível ao espectador.
Todo o trabalho do cinema clássico e de seus subprodutos visou, portanto, oferecer aos
elementos sonoros correspondentes na imagem, garantindo uma combinação redundante e
simplista. Esta concepção sonora respeita a linearização da narrativa e de seu impacto dramático
para a obtenção dos efeitos realistas e da mobilização emocional do espectador. Além disso,
impôs o predomínio da voz sobre os outros elementos sonoros. Este cinema dominante,
rigidamente codificado, e sua retórica de base de “impressão de realidade” tanto do som quanto
da imagem é até hoje a mais bem aceita diretriz na produção dos meios audiovisuais. Dado que
a representação naturalista e mecânica de Hollywood consagrou um estilo repleto de sedutoras
convenções industriais que ainda são seguidas e reverenciadas de maneira pouco inventiva,
mesmo com o seu inegável refinamento tecnológico.
Se partirmos do princípio que a banda sonora faz parte dos recursos articulatórios
característicos à dramaturgia do cinema, ela deve, também no que diz respeito à sua totalidade,
ser articulada em função da unidade de ação. Ela deve possuir características que façam dela um
discurso unitário, e não apenas uma sucessão de passagens musicais sem nenhuma conexão. Ao
mesmo tempo, ela deve contribuir para o estabelecimento, desenvolvimento e conclusão dos
conflitos contidos nesse drama. No filme, enquanto unidade complexa, fechada em si mesma,
tudo o que se vê e se ouve deve estar articulado em função da lógica e da direcionalidade
dramático/narrativa. Assim, a trilha musical deve contribuir para a caracterização dessa unidade.
Vista como um todo, ela deve possuir coerência e inteligibilidade, tanto internas, quanto em sua
relação com o contexto dramático, pois caso contrário, corre o risco de se assemelhar a uma
“colcha de retalhos”, deixando de cumprir as funções para as quais está destinada e, inclusive,
prejudicando o próprio sentido de unidade do filme (Carrasco, 1993, p. 107).
Todavia, para fazer parte de um discurso unitário não significa necessariamente que a
banda sonora deve apenas ser ilustrativa e/ou subordinadas à imagens. Além disso, se os todos os
outros elementos que compõe um filme tentam tornar a produção menos transparentes, utilizando
o conceito de Ismair Xavier, deve também ser uma “responsabilidade” da banda sonora
trabalhar para manutenção dessa intenção. Muitas das experiências cinematográficas lembradas
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por suas qualidades e particulares sonoras são aquelas que justamente quebram com a estrutura
clássica e, de algum forma, colocam em destaque seus elementos sonoros. O presente trabalho
terá seu foco foco em uma dessas produções, o filme Paranoid Park (2007), de Gus Van Sant, e
tem como objetivo abordar o papel do som no longa metragem. Em um primeiro momento
iremos nos debrucar sobre o contexto geral do filme para, a posteriori, estudar diretamente as
questões relativas a banda sonora. Pretendese explicar como a especificidade da mesma foi
capaz de ajudar na construção da narrativa, constituindo assim um pilar fundamental do próprio
filme. Nesse sentido, alinhase ao pensamento de que em Paranoid Park a forma é indissossiável
da narrativa.
Neste trabalho, o conceito de contemporâneo sobre o qual iremos nos apoiar é aquele
desenvolvido por Giorgio Agamben, em O que é o contemporâneo?:
Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente
contemporaneo, aquele que não coicide perfeitamente com este, nem está
adequado às suas pretesões e é, portanto, nessse sentido inatual, mas
exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse
anacronismo, ele é capaz, mas do que os outros de perceber e apreender o
seu tempo. (Agamben, 2009, p. 58)
Contemporâneo não significa aqui, portanto, algo que pertence ao tempo em que
vivemos, mas sim que insere uma marca do tempo em que foi produzido e, simultaneamente, o
ultrapassa por possuir caracteristicas que promovem certa desconexão com o mesmo. Esse
conceito será debatido novamente no decorrer deste artigo.
Paranoid park e no som no cinema contemporâneo
Paranoid Park, baseado no romance homónimo de Blake Nelson, conta a história de um
skater de 16 anos, Alex, que acidentalmente mata um guarda de uma estação de comboio. A
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personagem escreve sobre o ocorrido numa carta dirigida à amiga Macy. Essa carta conduz a
narrativa, revelando aos poucos o que aconteceu na noite do crime.
O filme segue um modelo estrutural semelhante ao utilizado na “Trilogia da Morte”,
podendo, em certo sentido,, ser considerado como um capítulo complementar a este período.
Nessa trilogia, o realizador não se preocupa em castigar ou justificar as mortes ocorridas e o peso
moral da culpa e trauma é secundarizado. Além disso, a morte é um tema central. Em Paranoid
Park, por outro lado, a morte surge como pretexto para encontrar a própria consciência do
protagonista: o acontecimento dá a conhecer o íntimo da personagem, o trauma e as suas
inquietações1.
Gus Van Sant é um realizador cujo trabalho é marcado pela predominância do tema
Adolescência. Em Paranoid Park, a crise de valores que Alex vive tornase muito representativa
da realidade americana no seio da camada adolescente. Como escape à realidade problemática na
qual está mergulhado, Alex escreve uma carta à amiga Macy. A amizade, nesta situação
específica, o ajuda a lidar com o trauma, visto que escrever para contar o que aconteceu surge
como uma forma de redenção.
O desligamento da realidade por parte do adolescente Alex é evidente. A atenção parental
precária é um dos principais fatores que contribuem para que o personagem se embrulhe na sua
própria solidão, fechandose em si mesmo. As cartas jamais enviadas escreve surgem como uma
metáfora para este estado. Desta forma conhecemos o “dentro”, isto é, o íntimo de Alex, e
também temos perspectiva de “fora”, uma vez que estes relatos são como uma espécie de
inconsciente coletivo e existencialista, predominantemente adolescente. Importa notar que o tom
inconclusivo, fragmentado e cronologicamente confuso das cartas é coeso com os restantes
elementos fílmicos.
O realizador servese do som para criar uma cortina entre Alex e os outros, que dá corpo
a este espaço. Este estado deslocado e distante, para além de revelar um sério entorpecimento
social, reflete também a confusão mental do mesmo por consequência do crime que prevalece no
seu consciente.
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Alguns críticos do Cahiers du Cinéma referemse a uma "Tetralogia da Morte", incluindo, cronologicamente e
esteticamente, Paranoid Park, mas essa definição não é consensual (Bouquet et Lalanne, 2009, p. 9).
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As referências à guerra do Iraque são incursões da História que nos permitem inscrever o
filme em um tempo específico. À data da realização do filme (2007) decorria a Guerra do
Iraque, iniciada a 2003 e terminada em 2011. As transformações sociais da viragem do século
refletiramse também na camada jovem americana.
O retrato da adolescência americana, neste e em outros filmes de Gus Van Sant, é
recorrente. Neste período histórico, a adolescência americana é objeto de estudo por parte da
sociologia, que identifica uma maior fragmentação das famílias, a par da marginalidade, do
aumento da criminalidade e das relações psicossociais conturbadas entre os jovens. Explica
Megan Ratner:
For Alex, Paranoid Park is the dark side, the place where he can break out
of the staid, innocuous routines of home and school. The park is a cure for
his experiential deprivation. Along with this eagerness for perverse
novelty, Elephant, Last Days and Paranoid Park share the exile of the
housed but homeless.(...). In Paranoid Park, Alex spends time everywhere
but home. In each instance, Van Sant poses questions about the place of
home in America, the reality at a total remove from the snug promises on
television and in advertisements. For all of these young men, the only
comfort is being on the move, including, in many ways, leaving home
(Ratner, 2008).
O filme dá conta de um meio social marcado pela cultura periférica americana, muito
influenciada pela cultura de rua: hip hop, graffiti, breakdance e skateboarding. O skateboarding
surge, neste filme, como um desporto associado à vivência suburbana, marginal e disruptiva.
Já o que toca à planificação do filme, importa notar que o realizador opta pela integração
de “nãoatores” e pela utilização de espaços reais. O guião tem poucas linhas orientadoras, sendo
assim aberto aos inputs dos atores durante a rodagem.
Em Paranoid Park, a forma filmica é muito característica e não pode ser separada da
narrativa. O tempo cinematográfico nunca é o tempo real dos acontecimentos. Através das cartas,
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o espectador é levado em uma viagem onde o tempo é desconstruído como um puzzle e só à
posteriori poderá ser montado de maneira que faça algum sentido. A memória é apresentada de
uma forma descontínua, refletindo o seu carácter real o filme é construído à imagem do
funcionamento da memória, com falhas, elipses, repetições, sobreposições, derivas, confusões.
Através da narrativa descontínua, o realizador consegue revelar o espaço interior da personagem.
A montagem é, portanto, um instrumento fundamental na construção de uma temporalidade
absolutamente definidora da forma do filme.
Também é importante pontuar que a utilização recorrente do slowmotion confere ao filme
um ritmo lento e cadenciado, reflexo do estado de entorpecimento de Alex. O slowmotion
mantém suspensa a dúvida, ao mesmo tempo que ajuda a dar conta da psique, do corpo da
personagem e dos seus movimentos. Alex deambula pelos corredores da escola, uma sequência
de imagens que remete para o filme Elephant (2003). Além disso, a utilização de slowmotion
associada à música relembranos a lógica do videoclip, onde a música se torna um complemento
essencial para transmitir ideias. Entretanto, essa passagem não pretende associar os protagonistas
de ambos os filmes, tratase, em maior medida, de um um caso de autorreferêncialidade que Gus
Van Sant faz à própria obra. Alex não é um assassino de sangue frio como seu xará de elefante,
e, embora ele encubra a sua parte na morte, descartando suas roupas e sua skate, o filme
apresentao como solidário ao invés de insensível.
Paranoid Park contém uma série de passagens sem falas em que a música e até mesmo o
silêncio adquirem importância. É o que ocorre nas sequências recorrentes ao longo do filme: nas
tomadas de Alex sozinho; nas cenas dos skatistas caminhando pelo corredor da escola; na cena
do rompimento do protagonista com a namorada; na cena do banho e, notadamente, nas
sequências em que se valoriza a expressão do rosto humano.
A originalidade da trilha musical se deve ao uso de uma variada gama de composições
musicais que vão de punkrock às sinfonias de beethoven. Há, assim, um entendimento de que o
cinema é um lugar de encontro entre música erudita e música popular, entre música sagrada e
música profana. Para Martins(2010, p. 158), o mais importante é que essa permeabilidade entre
erudito e popular não apenas compõe a própria história da música, mas encontra nova impulsão
no cinema em que os compositores estão em busca de uma solução ideal.
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É necessário pontuar que o filme não possui um compositor responsável por uma trilha
original. Durante uma entrevista coletiva, Gus Van Sant explicou que no momento da
finalização, todos os envolvidos trocavam músicas e testavam diretamente no filme.
Inicialmente, os mesmos não acreditavam que isso poderia dar certo principalmente porque
pensavam que seria muito díficil obter os direitos sobre as músicas escolhidas, entretanto
perceberam que não seria tão complicado obter a música original e estavam certos que isso seria
a melhor opção2. Ao utilizar músicas que lhe preexistem, o filme contraria a ortodoxia
hollywoodiana, fundada no efeito de transparência, um dos princípios básicos do uso da música
na narrativa clássica amplamente discutido por Ismail Xavier na obra O discurso
cinematográfico: a opacidade e a transparência. Em busca da ampliação da opacidade, podese
até mesmo dizer que algumas músicas são empregadas em aparente inadequação com certas
imagens em Paranoid Park. Eis, por exemplo, o uso o hard rock I will revolt, do grupo The
revolts, em uma passagem em câmera lenta de Jared, ao desconfiar de Alex. De acordo com
Martins(2010, p. 159), em Paranoid Park a música contribui para a criação de um ritmo
flutuante, interior, melancólico e até mesmo descompassado.
A todo momento, a autorreferencialidade do cinema é observada no filme através de
citações a outras produções feitas pela música, como, por exemplo, à Julieta dos espíritos
(Federico Fellini, 1965) na cena de abertura. No caso das melodias de Nino Rota, os próprios
títulos de suas composições são em si elucidativos no que diz respeito à narrativa: La porticina
segreta – empregado no plano de abertura no qual se vê a grande ponte que conduz ao leste da
cidade de Portland – anuncia, por exemplo, a ideia de uma passagem importante, que terá lugar
no decorrer da intriga. Já no planoseqüência em que o protagonista caminha no shopping, após
buscar as notícias sobre a morte do segurança, ouvimos “O jardim do destino”(Il giardino delle
fate), sublinhando a condição de aprisionamento de Alex, perante a experiência inesperada, da
qual ele não poderá escapar e deixando clara a situação do vivido, da fatalidade, além do
sentimento de culpa do qual Alex se ressente.
É importante notar também que nesse filme a música serve para introduzir momentos de
lirismo. No cinema, podemos encontrar obras em que o dado lírico é usado para criar uma nova
2
Essa entrevista pode ser vista em:<http://www.revistacinetica.com.br/cannes07paranoidpark.htm>
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dimensão significativa e estabelecer um outro nível de relação entre o espectador e a obra. A
música, com seu potencial de interferência no filme, com seu modo subliminar de comunicação,
com a grande variedade de recursos expressivos e seu imenso apelo emocional, é um instrumento
extremamente eficiente na articulação lírica. Amarcord, citado diversas vezes através da música
em Paranoid Park, é m filme onde o dado lírico já está presente no nível do roteiro. Essa
produção é, de certo modo, uma autobiografia de seu diretor Federico Fellini e retrata a cidade de
Rimini na época do fascismo, onde Fellini passou sua infância.
A memória da infância é uma das maiores máximas do lirismo através da
história. Não há memória de infância que não seja um pouco distorcida,
sempre para mais bela e bucólica do que o fato real acontecido, e que não
toque diretamente os níveis mais elementares de nossa emoção pessoal, a
mesma emoção sobre a qual trabalha o modo lírico de expressão. O
universo dramáticolírico de Amarcord tem na música de Nino Rota, um
dos principais elementos de caracterização. A própria estrutura temática da
trilha musical desse filme já possui os elementos necessários à construção
desse universo. São temas musicais simples, alguns deles conhecidos, mas
extremamente expressivos e precisamente selecionados com vista a
produzir um forte impacto emocional no espectador (Carrasco, 1993,
p.124).
Quando Alex encontra sua namorada em Paranoid Park e ouvimos “L´arcobaleno per
Giulietta”, musica de Nino Rota feita especialmente para Amarcord. Ali fica evidente a criação
de um lirismo através da música.
Acrescentese a isso que Michel Chion, em seu livro “A Música no Cinema” (La
Musique au cinéma, 2007), aponta para algo inerente às composições de Nino Rota, essenciais
no filme de Gus Van Sant: a questão de uma indiferença geral. Chion comenta o filme 8½
(1963), de Federico Fellini: “Sempre da mesma forma, no filme, as músicas tocadas ou
escutadas no cenário continuam e terminam na indiferença geral, numa espécie de distração dos
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personagens em relação ao seu meio, estado que Fellini nos mostra como tal” (Chion, 2007, p.
328). O mesmo pode ser dito em relação à Alex em Paranoid Park.
Além disso, ao se apropriar de uma composição de um tempo passado, relembrandonos
a história do cinema em si, o filme reforça sua inserção em um cinema dito contemporâneo visto
que, assim, alimenta um jogo de aproximação e distanciamento com o próprio tempo.
Elucidanos Agamben:
A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio
tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais
precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de
uma dessociação e um anacronismo. Aquelas que concidem muito
plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem
perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não
conseguem vêla, não podem manter fixo o olhar sobre ela (Agamben,
2009, p. 58).
No livro O cinema mudo, Michel Marie aponta para uma tendência do cinema
contemporâneo que ao buscar se desviar dos diálogos acaba conferindo um papel de relevo aos
olhares, aos gestos, aos ruídos e, principalmente, à música. Marie afirma que é uma maneira de
neutralizar as barreiras linguísticas e de propor uma linguagem mais universal. Nesse sentido, o
cinema contemporâneo restitui uma tendência profunda do cinema mudo: o universalismo, um
modo de ir além das fronteiras linguísticas, um desejo já manifestado no cinema mudo dos anos
1920.
Do mesmo modo, o pesquisador brasileiro Denilson Lopes afirma que é interessante que
a banda sonora funcione como agente de “construção de subjetividades” na tela e que ela esteja
inserida em modos de representar o mundo pelo cinema que não respondam à lógica das
fronteiras nacionais; ou seja, que essa música seja uma ferramenta da construção de
“comunidades de sentimento” que da mesma forma extrapolem os limites da nação; que ela seja
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parte de uma estética que continue a diluir as fronteiras imaginárias entre arte erudita, popular e
massiva (Lopes, 2003).
Outra vertente musical presente no filme que estabelece um tipo de comtraposição com
as composições de Nino Rota é a Musique concrète. Tratase um tipo de música eletrônica
produzida a partir da junção de instrumentos musicais à fragmentos de sons naturais e
industriais. A mesma está integrada na paisagem sonora do filme assim como em Elephant, mas
o efeito geral é diferente. Em Paranoid Park, grande parte da música reflete comportamento
letárgico de Alex. A música tem uma qualidade de sonho e, em conjunto com a cinematografia e
aparência Gabe Nevins, acrescenta a percepção de Alex como inocente. Mesmo que a música
nos dê algum sentido sobre o estado mental de Alex, nem sempre nos ajuda a compreender o que
ele sente.
Quando vimos pela primeira vez Alex, ele está escrevendo as palavras "Paranoid Park"
em um papel. No fundo, podemos ouvir "Song One", de Ethan Rose, em junção outros sons
naturais.. Tommy, o tio de Alex, passa e vêlo nervoso. Tommy retorna para a cozinha onde
todos os sons que ele faz, incluindo a chocalhar de garrafas na geladeira, são irrealisticamente
aumentada, como se ao sinal fez Alex está no limite. Isso não é necessariamente o ponto de
audição de Alex, porém, como nós ainda desconhecemos por que ele pode estar apreensivo. A
música electroacústica fundida com os sons hiperreais da música é indicativo de algo pacífico,
mas os efeitos sonoros aumentados apontam para um desconforto e não está claro se qualquer
um desses sons representam os sentimentos de Alex.
Nesta mesma sequencia, a câmera salta para um shot de Alex caminhando pelas dunas e,
em seguida, corta para a primeira sequência de skate com "Song One" ainda em execução. Não
há um acompanhamento convencional de skate musik: tal como punk ou ska; ao contrário, há
"Song One". Essa música tem algo muito mais meditativo do que tipicamente agressivo; isto é
como Alex vê o parque: um lugar para escapar do mundo real, um lugar para relaxar e perderse
no meio da multidão.
Outro bom exemplo de uso de música concreta no filme é o emprego da música Walk
through resonant landscape nº 2, de Frances White, na cena em que Alex toma banho para se
livrar das manchas de sangue em seu corpo. A mesma expressa o que de terror, de pesadelo, de
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pesar e até mesmo de desespero resulta da experiência vivida, na conjugação de sons graves, que
se intensificam, em adicioção o barulho da água caindo e o som de pássaros cada vez mais altos.
Em Soundscapes: towards a sounded anthropology, os pesqusadores Samuels, Meintjies,
Ochoa e Porcello comentam o que lhes parece ser um esquecimento da própria voz como objeto
dos estudos de som na antropologia, em detrimento, por exemplo, da música produzida pelos
grupos sociais estudados. Pensamos que o mesmo ocorre no cinema, fato que constitui um
paradoxo se pensarmos na centralidade da voz para o cinema sonoro desde seus primórdios até o
cinema comercial contemporâneo. Um excesso de presença nas telas daria em uma ausência de
análise, o que poderia ser entendido como um grave acidente metodológico para os próprios
estudos de som no cinema.
Nesse sentido, buscando combater parcialmente essa falha, destacamos que há duas
ocorrências do som de um grito no filme e que as mesmas tem importancia fundamental na
narrativa. A primeira ocorrência é na aula de ciências de Alex, mas é quase inaudível. O mais
notável grito ocorre durante a entrevista entre Alex e o detetive. No entanto, quando finalmente o
acidente é mostrado não há nenhum grito, em vez disso é coberto com a 9ª sinfonia de
Beethoven. Para Jessica Shine, autora de Totality of experience: sound, music and mythology in
Gus Van Sant’s, o fato de que o grito não acompanha a morte na memória de Alex sugere que a
experiência do evento de Alex é diferente de sua memória dele. Assim, a questão mais
importante na relação ao grito é se é (ou não) imaginado ou real. Além disso, a 9ª Sinfonia é
empregada em um instante de violência, de clímax da narrativa fílmica, instaurando um diálogo
entre Paranoid Park e A Clockwork Orange. Obviamente, a referência ao filme de Kubrick,
cineasta predileto de Gus Van Sant, pode ser examinada já a partir do próprio nome do
protagonista Alex, nome este que não consta no romance de Nelson, mas é o mesmo do
protagonista de Laranja mecânica, para quem a 9ª Sinfonia é sua composição favorita.
“Paranoid Park is a spiritual film in that it investigates the conscience and moral fiber of
its main character.” (Lobrutto, 2010, p.115). Ao recorrer a nãoatores e utilizar as personagens
como modelos, Gus Van Sant eleva as personagens para além da sua individualidade, gesto que
deixa à superfície os sintomas geracionais. Para além disso, todo o filme é dominado por um
ambiente onírico, que o eleva para um plano transcendente: a música como via para a percepção
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do íntimo da personagem; a câmara lenta que eterniza os movimentos dos skaters; a carga
espiritual do skatepark que eleva os skaters ao estatuto de anjos; a relação com a morte é também
notada na atitude de Alex, no que toca à sua apatia e distanciamento em relação ao mundo. Há
um plano em que os skaters fazem acrobacias e todos se mantêm de pé excepto o último, que cai:
consideramos que este plano é uma myseenabyme do próprio filme. Corpos em suspensão,
deambulatórios e perdidos podem a qualquer momento desequilibrarse e cair, sendo o acidente
um acontecimento possível.
A propósito da contemporaneidade, Agamben também afirma:
Aqueles que procuraram pensar a contemporaneidade puderam fazêlo
apenas com a condição de cindila em mais tempos, de introduzir no
tempo uma essencial desomogeneidade; (...) e, no entanto, exatamente
através dessa censura, dessa interpolação do presente na homogeneidade
inerte do tempo linear, o contemporâneio coloca um ação uma relação
especial entre os tempos (Agamben, 2009, p. 71).
A forma descontínua e fragmentada da composição fílmica dá corpo à narrativa, que,
tomando a mesma linhagem, reconstrói a memória. Assistese assim, a uma perda de
coordenadas de tempo e espaço, sendo esta, uma forma inovadora de trabalhar a temporalidade.
É possivel afirmar que na metade do filme é desvendada a culpa de Alex; durante a entrevista
com os skaters, Alex levanta o braço, um gesto que revela a sua posição. Cronologicamente, esta
cena pode ser vista como cena final.
Podemos ainda pontuar que a iluminação é também um aspecto fundamental para a
narrativa do filme. Depois do acidente, por exemplo, há um plano de trovoada. Neste momento,
a iluminação tem um papel relevante na construção de sentido: aliada ao foquedesfoque, os
flash’s de luz e escuridão, a ansiedade e a instabilidade daquele momento vivido por Alex são
reveladas, assim como o próprio dispositivo filmico. Um exemplo que também deve ser citado
ocorre quando Alex sai da sala depois da entrevista com o polícial e vai olhando para trás. A
cada passo a personagem entra mais na escuridão da luz rebentada passase rapidamente para a
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penumbra, fato que igualmente evidencia a presentça do dispositivo cinematográfico. Ou seja, a
utilização das técnicas de iluminação de é feita de maneira a destacar essa manipulação em si.
Quando são feitas reduções de luz não naturais, o gesto que relembra Godard e a sua vontade de
tornar opaco o dispositivo, o espectador é relembrado de que está a ver cinema.
Considerações finais
Paranoid Park responde à pergunta: Como é que se filma a consciência? É um filme que
narra o encontro da construção da memória com a consciência. Neste filme, a forma e a narrativa
são indissociáveis. Tal modo de fazer cinema é uma das razões pelas quais Gus é considerado
pela crítica como um poeta, capaz de fazer expandir o olhar sobre a vulgaridade. Em alguns
momentos do filme, são identificáveis algumas incursões históricas. Esta necessidade de
inscrição da estória no seu presente, propicia um olhar crítico em relação ao seu próprio tempo.
A narrativa desafia também construções familiares do cinema clássico americano, mostrando, em
detrimento de uma família estruturada, um núcleo parental distante, ausente e fragmentado.
Neste sentido, Gus Van Sant abandona as concepções do melodrama, afastando o papel da
família como tema central. No plano do realismo cinematográfico, pode dizerse que os pedaços
de filme filmados em Super 8 denotam a incursão do realismo dentro da ficção. A simulação de
um vídeo amador de skaters parece ser filmado por um deles e denuncia também a presença do
realizador enquanto personagem integrante na estória.
As escolhas musicais e sons não só ajudam a contar a estória, como integram a própria
narrativa. Estes adquirem a função de caracterizar psicológica e emocionalmente o personagem.
Graças à música, é dado ao espectador o poder de transcender as imagens do filme, dotadas de
um belo potencial poético. Se, por um lado, a música vem englobar o percurso do protagonista
Alex, ilustrando o estado de espírito do antiherói tomado pelo sentimento de culpa; por outro, a
música reforça as audácias formais do filme, chamando a atenção para o próprio fazer fílmico.
Além disso, a trilha musical de Paranoid Park nos conduz ao passado do próprio cinema no
diálogo que estabelece seja com os dois filmes de Fellini seja com o filme de Kubrick, e isso sem
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esquecer as longas passagens sem falas remetendonos às virtudes do cinema da época dita
“muda”, uma tendência do cinema contemporâneo.
Ainda vale destacar que o uso de música concreta é de fundamental importancia para a
construção da forma que dá corpo à narrativa. Através dessa particularidade conseguimos ter
acesso ao interior da personagem principal para saber como são suas percepções sobre o mundo
e como as mesmas foram afetadas pelo trágico incidente.
A beleza de Paranoid Park se forma, portanto, da combinação de aspectos densos do
roteiro (e do texto original) com a maturidade e a criatividade de um cineasta que busca por
inovações filme após filme.
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