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A evangelização dos índios e a transição religiosa entre os povos originários

José Eustáquio Diniz Alves


Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População,
Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas - ENCE/IBGE;
Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br

O dia 19 de abril é conhecido como o “Dia do Índio”. Mas os indígenas, que chegaram às
Américas há cerca de 13 mil anos e se espalharam no continente nos milênios seguintes, não
tem nada a comemorar. O mundo indígena entrou em colapso após a chegada dos europeus,
com Cristóvão Colombo, em 1492, e de Pedro Álvares Cabral, em 1500. Os sobreviventes vivem
em situação de miséria, discriminação e abandono.

Como mostrou Jared Diamond, no livro “Armas, germes e aço: os destinos das sociedades
humanas”, os colonizadores espanhóis e portugueses saquearam as civilizações antigas das
Américas - contando com a participação decisiva da hierarquia católica - e provocaram um
genocídio dos povos que, vindo da Ásia, habitavam o continente durante milênios.

Como mostrou Celso Furtado na primeira frase do livro Formação Econômica do Brasil: “A
ocupação econômica das terras americanas constitui um episódio da expansão comercial da
Europa” (Furtado, 2005, p. 10).

Na mentalidade colonizadora, contra os índios hostis, foi aplicada a ideia das “guerras justas”.
Para tanto se recorreu ao imaginário de práticas indígenas bárbaras, tais como o canibalismo, a
poligamia, etc. A difusão da cruz e da mensagem bíblica entre as populações indígenas era uma
necessidade essencial na legitimação da conquista do selvagem vivendo em uma sociedade dita
“sem fé, sem lei e sem rei”.

De acordo com Oliveira e Freire (2006), tal estereótipo – que lembrava práticas demoníacas
existentes nos tempos medievais da luta cristã contra feiticeiros e bruxas - era sempre acionado
em defesa dos interesses econômicos dos colonizadores. Segundo os autores: “O projeto
colonial português envolveu uma política indigenista que fragmentava a população autóctone
em dois grupos polarizados, os aliados e os inimigos, para os quais eram dirigidas ações e
representações contrastantes (...) Os povos e as famílias indígenas que se tornavam aliados dos
portugueses necessitavam ser convertidos à fé cristã, enquanto os ‘índios bravos’ (como eram
chamados nos documentos da época) deviam ser subjugados militar e politicamente de forma
a garantir o seu processo de catequização. Este tinha por objetivo justificar o projeto colonial
como uma iniciativa de natureza ético-religiosa preparando a população autóctone para servir
como mão-de-obra nos empreendimentos coloniais” (p. 35).

Como mostrou Vainfas (1995), as populações indígenas foram progressivamente sugadas pelo
sistema colonial nascente e “se tornaram, no vocabulário da época, ‘negros da terra’, termo
usado para diferenciar os índios dos ‘negros da Guiné’, uns e outros escravos”.

Todavia, depois de 500 anos do holocausto das populações ameríndias, o mapa religioso das
populações indígenas começa a mudar, em função do avanço evangélico, que de certa forma,
significa um novo genocídio populacional e cultural.

O filme “Ex-Pagé – uma história de etnocídio” conta a história da tribo Pater Saruí, que vive em
uma reserva indígena da Amazônia, mostrando como as tradições e crenças originais da tribo se
perderam ao longo dos anos, quando em contato com as populações não indígenas e, em
especial, com os missionários evangélicos.

O Instituto Socioambiental (ISA) considera que, em pleno 2019, os direitos dos indígenas estão
ameaçados e um novo colapso das populações nativas está em curso: “A reestruturação dos
órgãos relacionados aos direitos indígenas pode ser considerada a mais profunda em quase 30
anos. Subordinada ao Ministério da Justiça (MJ) desde 1991, a Fundação Nacional do Índio
(Funai) está agora abrigada na pasta da Família, Mulher e Direitos Humanos, comandada pela
polêmica Damares Alves. As atribuições de demarcar as Terras Indígenas (TIs) e opinar sobre o
licenciamento ambiental de projetos com impactos sobre essas áreas foram transferidas do
órgão indigenista para a Secretaria de Assuntos Fundiários (Seaf) do superministério da
Agricultura (Mapa), comandado pelos ruralistas, adversários históricos das demarcações e
principal base de apoio de Bolsonaro”.

O fato é que há uma perda de direitos e uma transição religiosa entre as populações nativas. O
artigo “Cambios en el perfil religioso de la población indígena del Brasil entre 1991 y 2010” (Alves
et. al. 2017), publicado na revista Notas de Población, da Cepal (n. 104, jan-jun 2017) analisa as
mudanças religiosas que ocorrem entre os indígenas no Brasil, entre 1991 e 2010, de forma
contextualizada, com base nos microdados dos Censos Demográficos.

Segundo os dados censitários, os católicos que apesar de serem o grupo majoritário e menos
heterogêneo, apresentam tendências declinantes, enquanto, os evangélicos que possuem
grande heterogeneidade, apresentam crescimento contínuo. Também houve aumento das
outras denominações e daquelas pessoas que se declaram sem religião. Evidentemente, esta
transição religiosa tem ritmo e motivações diferenciadas nos diversos segmentos populacionais.

A análise detalhada dos dados das duas últimas décadas certamente contribui na compreensão
da dinâmica religiosa e nas alterações quantitativas entre o percentual de católicos e evangélicos
– os dois maiores grupos religiosos – no contexto da pluralidade e da diversidade cultural dos
povos nativos do Brasil. Embora estes números mostrem alguma semelhança com a distribuição
verificada na população não indígena, nota-se uma maior pluralidade religiosa entre os povos
indígenas. Também a razão de evangélicos sobre católicos (REC) é maior entre os indígenas do
que entre a população não-indígena nacional.

O contraste mais acentuado ocorre nas áreas rurais (onde moram a maior parte da população
indígena e a menor parte da população não-indígena). Na região Norte, que tem o maior número
de indígenas, a REC passou de 20% para 60%, isto quer dizer que havia 20 índios evangélicos
para cada 100 índios católicos em 1991, passando para 60 índios evangélicos para cada 100
católicos em 2010.

Mas a transformação mais marcante ocorreu na região Centro-Oeste, que tem a segunda maior
população indígena e onde a REC passou de cerca de 45% em 1991 para cerca de 90% em 2010.
No estado do Mato Grosso do Sul, os evangélicos já ultrapassaram os católicos entre os
indígenas, pois a REC passou de 68% em 1991 para 146% em 2010. Não por coincidência, em
1912, foi no atual Mato Grosso do Sul que ocorreu a evangelização dos índios Terenas,
considerada a primeira conversão evangélica do Brasil. E foi também entre os Terenas que foi
construída a primeira igreja evangélica.

A pluralidade religiosa também foi maior entre a população indígena jovem como revelou a
análise dos dados da estrutura etária. Assim, a dinâmica geracional indica que as filiações
católicas devem continuar caindo. Destaca-se ainda que a soma das religiões cristãs (católicos e
evangélicos) tinha um peso relativamente menor entre a população indígena do que na
população total do Brasil.

O artigo “Cambios en el perfil religioso de la población indígena del Brasil entre 1991 y 2010”
traz uma análise histórica sobre a transição religiosa entre a população indígena no Brasil e
apresenta uma ampla bibliografia e um quadro estatístico das mudanças ocorridas entre 1991 e
2010 nas regiões e municípios brasileiros. O artigo pode ser acessado livremente no link abaixo.

Referência:
ALVES, JED et. al. Cambios en el perfil religioso de la población indígena del Brasil entre 1991 y
2010, CEPAL, CELADE, Notas de Población n° 104, enero-junio de 2017, pp: 237-261
http://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/41954/1/S1700164_es.pdf

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