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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES
DEPARTAMENTO DE MÚSICA

ZILMAR RODRIGUES DE SOUZA

“EU DESPEDI O MEU PATRÃO”:


um estudo sobre o trabalho e a formação profissional no campo da Música

“I FIRED MY MÁSTER”:
a study on the work and the professional formation in the field of music.

CAMPINAS / SP
2008
ZILMAR RODRIGUES DE SOUZA

“EU DESPEDI O MEU PATRÃO”:


um estudo sobre o trabalho e a formação profissional no campo da Música

“I FIRED MY MÁSTER”:
a study on the work and the professional formation in the field of music.

Tese apresentada ao Instituto de Artes da


Universidade Estadual de Campinas como
parte dos requisitos exigidos para a obtenção
do título de Doutor em Música, na Área de
Educação Musical.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Goldemberg.

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À


VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA
PELO ALUNO ZILMAR RODRIGUES DE
SOUZA E ORIENTADA PELO PROF. DR.
RICARDO GOLDEMBERG.

CAMPINAS / SP
2008
ZILMAR RODRIGUES DE SOUZA

“EU DESPEDI O MEU PATRÃO”:


um estudo sobre o trabalho e a formação profissional no campo da Música

Tese apresentada ao Instituto de Artes da


Universidade Estadual de Campinas como
parte dos requisitos exigidos para a obtenção
do título de Doutor em Música, na Área de
Educação Musical.

COMISSÃO EXAMINADORA1:

___________________________________________________________
PROFº. DR. RICARDO GOLDEMBERG
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS (UNICAMP)
(ORIENTADOR)

__________________________________________________________
PROFº. DR. JOSÉ ROBERTO ZAN
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS (UNICAMP)
(MEMBRO TITULAR INTERNO)

__________________________________________________________
PROFº. DR. ANTONIO RAFAEL CARVALHO DOS SANTOS
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS (UNICAMP)
(MEMBRO TITULAR EXTERNO)

__________________________________________________________
PROFª. DRA. LILIANA ROLFSEN PETRILLI SEGNINI
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS (UNICAMP)
(MEMBRO TITULAR EXTERNO)

__________________________________________________________
PROFª. DRA. APARECIDA NERI DE SOUZA
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS (UNICAMP)
(MEMBRO TITULAR EXTERNO)

1
A Ata da Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de
vida acadêmica do aluno.
Para Maiza, Sarah Esli e Rainer Vítor.
AGRADECIMENTOS

Foram muitas as pessoas e instituições que de algum modo contribuíram para a


realização desta pesquisa, por isso quero aqui manifestar minha gratidão à colaboração, direta
ou indireta de todas essas pessoas. É preciso, entretanto, nomeá-las:
Agradeço ao meu estimado orientador, Prof. Dr. Ricardo Goldemberg, pela
consideração, apoio e compreensão que teve para comigo; foi um privilégio compartilhar ao
seu lado essa jornada acadêmica;
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela
concessão de bolsa no período de setembro de 2004 a maio de 2008;
À Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) pelo empenho via Pró-
Reitoria de Pós-Graduação, por interceder junto à CAPES na adoção de uma política para
concessão e distribuição de bolsas aos docentes da UFRN;
À Escola de Música da UFRN (EMUFRN), lugar privilegiado da produção do
conhecimento e da música, onde há dez anos venho exercendo a docência, por permitir meu
afastamento da instituição para qualificação;
Ao prezado Prof. Dr. José Roberto Zan, meu orientador no Programa de Estágio
Docente (PED) na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), no semestre 2004.2, que
enriqueceu este trabalho com suas valiosas sugestões e contribuiu com sua sabedoria, de
maneira extremamente relevante, para essa etapa da minha formação;
Ao Professor e amigo André Luiz de Oliveira Muniz, companheiro de trilha
acadêmica, a pessoa que me incentivou a prestar a seleção para ingresso no Programa de
Doutorado em Música da UNICAMP;
A Marcos Aurélio, Brígida, Luíza e (a presença espiritual e saudosa de) Vitor,
meus sinceros agradecimentos, apreço e admiração a essa família, pelo apoio, generosidade e
manifestação de carinho a mim dispensados em Campinas, SP2;
Aos Professores Dra. Liliana R. Petrilli Segnini, Dr. João Francisco Duarte Júnior,
Dra. Heloísa Helena Pimenta Rocha e Dr. Zacarias Pereira Borges, por contribuir para que eu
trilhasse novos caminhos do conhecimento, dedico-lhes minha sincera admiração;
Aos funcionários do Instituto de Artes da UNICAMP, pela desvelada atenção,
especialmente Evelyn Gracie, Maria Aparecida Pedron, Joice Jane e Vivien Helena;

2
São Paulo (SP).
Aos professores e amigos Ronaldo Ferreira de Lima e João Barreto, minha
gratidão pelo incomensurável apoio;
Aos novos amigos que conheci em Campinas: Williams, Tina e Ana, Cândido,
Álvaro, Mônica, Abinoam Júnior, Léo e Paulão, pela amizade e por me permitirem partilhar
de suas agradáveis companhias;
Aos amigos Álvaro e Danilo, por me tirar, várias vezes, dos momentos de
reclusão para junto com eles compartilhar outros momentos também agradáveis, apreciando
sempre um bom vinho e degustando uma boa comida;
À Professora Dra. Dalcy Ribeiro da Cruz, pela carinhosa atenção, incentivo e
sugestões;
Devo um agradecimento especial aos alunos e professores da EMUFRN que mui
gentilmente aceitaram me conceder entrevistas e responder aos questionários, enriquecendo
esta pesquisa com seus valiosos depoimentos. Professores: Raquel Carmona, Ronaldo Lima,
Estevam, Rucker, Danilo, Fidja Siqueira, Mário Primata, Guilherme Rodrigues, Luíza Maria,
Cláudio Galvão (UFRN / História), Maria Clara, Cláudia, João Barreto, Maria Helena, e
Marcus André. Aos alunos Fernando Fernandes, Javandilma, Jaildo, Ana, Edmilson, Luiz,
Kelly e a todos que responderam aos questionários;
Ao amigo e Professor Alexandre Viana, pela amizade e pela incansável disposição
em me ajudar, fornecendo-me dados sobre o Curso Técnico;
Agradeço a Elizabeth Sachi Kanzaki Ribeiro, Bibliotecária responsável pela
Biblioteca Setorial Especializada Pe. Jaime Diniz, da EMUFRN, pela atenção e orientação
quanto às normas técnicas e o atendimento dispensado por sua equipe no que concerne
empréstimos de livros;
Ao Professor Dr. José Willington Germano, à Lisbeth Lima de Oliveira e ao
amigo Manoel Moura por suas significativas contribuições;
Ao amigo e produtor cultural Josenilton Tavares, pela entrevista concedida, apoio
e pelas referências cinematográficas;
Por fim, agradeço aos meus amados filhos Sarah Esli e Rainer Vitor, pela
paciência e carinho que tiveram comigo nas extensas horas em que passei no computador
trabalhando na tese, muitas vezes sacrificando nosso momento de lazer; e a Maiza, esposa
querida, presença constante e amorosa nessa etapa da minha vida, pessoa sem a qual
dificilmente teria realizado esta pesquisa.
RESUMO

O trabalho tem como objetivo buscar compreender as relações estabelecidas entre


profissional da música ao longo do tempo e o mundo do trabalho, principalmente no que diz
respeito à sua formação e atuação profissional. Para oferecer uma melhor compreensão desse
quadro analítico, localiza o exercício da profissão musical no âmbito das mudanças ocorridas
no seio do mundo artístico, em parte decorrentes de novas formas de produção e elaboração
artístico-musical. A pesquisa adota como referencial para análise contextual textos de diversas
áreas do conhecimento, como música, educação, filosofia e sociologia. Conclui-se que o
trabalho do músico possui singularidades nem sempre notadas noutras áreas profissionais,
como talento, criatividade, inspiração e originalidade, mas que, no entanto, hoje, o exercício
da profissão musical está sujeito às normas e regras delineadas pelo mercado. Nesse sentido,
evidenciam-se aspectos conceituais relacionadas às políticas educacionais implementadas a
partir da Lei 9.394 / 96 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que servem
de pano de fundo para se pensar a relação trabalho-educação-música.

Palavras-chave: Música. Trabalho. Educação. Profissão.


ABSTRACT

The objective of this work was to search to understand the relations established
between professional of music throughout the time and the world of the work, mainly in what
it says respect its formation and professional performance. Intencionando to offer one better
understanding of this analytical picture, I point out study on the exercise of the musical
profession in the scope of the occured changes in the seio of the artistic world, in part
decurrent of new forms of production and elaboration artistic-musical comedy. The research
adopts as referencial for contextual analysis texts of diverse areas of the knowledge, as music,
education, philosophy and sociology. I conclude that the work of the musician always
possesss noticed singularidades nor in other professional areas, as talent, creativity,
inspiration and originalidade, but that, however, today, the exercise of the musical profession
is subject to the norms and rules delineated for the market. In this direction, I evidence related
conceptual aspects to the implemented educational politics from Law 9.394 / 96 - Law of
Guidelines and Bases of National Education (LDB), that they serve of deep cloth of thinking
the relation work-education-music.

Keywords: Music. Work. Education. Profession.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Musicien aux talents multiples.................................................................... 135


Figura 2 - Homem Banda (1)....................................................................................... 136
Figura 3 - Homem Banda (2)....................................................................................... 137
LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Regras para admissão em orquestras brasileiras......................................... 125


Quadro 2 - Referenciais Curriculares da Educação Profissional de Nível Técnico
(Exemplo)........................................................................................... 159
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABEM – Associação Brasileira de Educação Musical


ABET – Associação Brasileira de Etnomusicologia
ANPPOM – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música
BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento
CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CCQ – Círculos de Controle de Qualidade
CD – Compact Disc
CEB – Câmara de Educação Básica
CNCT – Cadastro Nacional de Cursos Técnicos
CNE – Conselho Nacional de Educação
DF – Distrito Federal
DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda
DJ – Disc Jockey
DVD – Digital Video Disc
Ed. D – Education Degree
EMUFRN – Escola de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador
GASG – Grupo de Assistente de Serviços Gerais
GED – Gratificação de Estímulo à Docência
GT – Grupo de Trabalho
IAPC – Instituto de Apoio a Pessoas Carentes e Portadores de Câncer
IFES – Instituições Federais de Ensino Superior
INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
Intelsat – Sistema Internacional de Satélites
LDB –- Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
LP – Long Play
MEC – Ministério da Educação
MP3 –- MPEG Layer 3
OIT – Organização Internacional do Trabalho
OMB – Ordem dos Músicos do Brasil
ONG’s – Organizações Não Governamentais
PA – Pará
PED – Programa de Estágio Docente
Ph,D – Philosophiæ Doctor
PROEP–- Programa de Expansão da Educação Profissional
PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira
SEMTEC – Secretaria de Educação Média e Tecnológica
SENAC – Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial
SESI – Serviço Social da Indústria
SETEC – Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica
SIEP – Sistema de Informação da Educação Profissional
SP – São Paulo
TV – Televisão
UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte
UMB – União dos Músicos do Brasil
UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO............................................................................................. 16
2 O TRABALHO E O EXERCÍCIO DO MÉTIER ARTÍSTICO:
ELEMENTOS PARA SE PENSAR A MÚSICA COMO PROFISSÃO......... 21
2.1 Apontamentos sobre as noções de trabalho na cultura ocidental...................... 21
2.1.1 UMA BREVE INCURSÃO TEÓRICA SOBRE O SENTIDO PRIMEVO
DO TRABALHO NA TRADIÇÃO JUDAICO-CRISTÃ E NA
ANTIGUIDADE CLÁSSICA..................................................................... 21
2.2 O TRABALHO COMO VOCAÇÃO: O CUMPRIMENTO DA VONTADE
DIVINA NO MUNDO PELA PROFISSÃO................................................. 35
2.3 MAGOS, SACERDOTES E PROFETAS: SOBRE A ORIGEM
(RELIGIOSA) DAS PROFISSÕES.............................................................. 38
2.4 A HOMINIZAÇÃO PELO TRABALHO..................................................... 42
3 O TRABALHADOR DA MÚSICA: APORTES TEÓRICOS
INERENTES AO EXERCÍCIO DA PROFISSÃO MUSICAL................. 48
3.1 DEMIURGOS DO OITAVO DIA: O TRABALHO ARTÍSTICO COMO
REALIZAÇÃO CONTEMPLATIVA........................................................... 48
3.2 DA NATUREZA SINGULAR DO TRABALHO MUSICAL NA
SOCIEDADE CAPITALISTA........................................................................ 52
3.3 ASPECTOS CONCEITUAIS DA PRODUÇÃO E DIVISÃO DO
TRABALHO MUSICAL................................................................................. 58
3.4 O MÚSICO E O TRABALHO ASSALARIADO......................................... 69
3.5 RETRATOS DO TRABALHO E EXERCÍCIO DA PROFISSÃO
MUSICAL NO BRASIL............................................................................ 76
3.5.1 A boemia não dá camisa a ninguém: o músico evidenciando a questão do
trabalho.................................................................................................... 76
3.5.2 O sucesso do trabalhador da música............................................................ 91
3.6 O TRABALHADOR DA MÚSICA NAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO:
CORPORAÇÕES, CONSERVATÓRIOS E UNIVERSIDADES................... 97
3.6.1 O músico-professor na universidade: o emprego perfeito?.............................. 105
4 O TRABALHO E O EXERCÍCIO DO MÉTIER ARTÍSTICO:
REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO E PROFISSIONALIZAÇÃO
NO CAMPO DA MÚSICA....................................................................... 110
4.1 MÚSICA DE TRABALHO: CINCO CRÔNICAS COMENTADAS SOBRE
O TRABALHADOR-MÚSICO................................................................... 110
4.1.1 Preâmbulo................................................................................................. 110
4.1.1.1 I Ensaios................................................................................................... 111
4.1.1.1.1 Crônica I – Comentários............................................................................. 113
4.1.1.2 II Na lanchonete....................................................................................... 120
4.1.1.2.1 Crônica II – Comentários................................................................................ 122
4.1.1.3 III Como num jogo de xadrez: o músico como gestor da
incerteza................................................................................................... 128
4.1.1.3.1 Crônica III – Comentários.......................................................................... 131
4.1.1.4 IV Tá ligado?........................................................................................... 137
4.1.1.5 V No ônibus.................................................................................................. 139
4.1.1.5.1 Crônicas IV e V – Comentários.................................................................. 141
5 O MÚSICO COMPETENTE: A FORMAÇÃO PARA O MUNDO DO
TRABALHO............................................................................................ 145
5.1 NOTAS SOBRE A REFORMA DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL NO
BRASIL APÓS A LEI 9.394 / 96 (LDB)..................................................... 145
5.2 EDUCAÇÃO PROFISSIONAL: A FORMAÇÃO PARA A SOCIEDADE
(CIDADÃO EMANCIPADO) VERSUS A FORMAÇÃO PARA O
MERCADO (CIDADÃO PRODUTIVO).................................................... 151
5.3 AS NOVAS ORIENTAÇÕES CURRICULARES PARA OS CURSOS
TÉCNICOS DE MÚSICA NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS
VOLTADAS À EDUCAÇÃO PROFISSIONAL........................................... 156
5.4 COMPETÊNCIAS, ESTÉTICA DA SENSIBILIDADE E
NAVEGABILIDADE: NOVOS ELEMENTOS CURRICULARES PARA
A FORMAÇÃO DO MÚSICO........................................................................ 161
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................... 185
6.1 A FORMIGA SÓ TRABALHA PORQUE NÃO SABE CANTAR:
RETOMANDO A QUESTÃO DO TRABALHO, DA EDUCAÇÃO E DA
MÚSICA.................................................................................................. 185
REFERÊNCIAS....................................................................................... 191
16

1 INTRODUÇÃO

Ao assumir a coordenação do Curso Técnico da Escola de Música da


Universidade Federal do Rio Grande do Norte (EMUFRN), no ano de 1999, deparei-me com
um grande desafio: coordenar o processo de atualização do então projeto do curso em
atendimento aos novos conceitos basilares referentes à Educação Profissional. A reforma
chamava atenção para uma atualização, sobretudo do desenho curricular e era uma exigência
para se continuar oferecendo o curso, pois a Portaria 646 / 97 Art. 4 §1º comunicava que o
ingresso de novos alunos a partir do ano letivo de 1998 dar-se-ia de acordo com o disposto no
Decreto 2.208 / 97 e na já referida Portaria (BRASIL, 1997a, 1997b).
A partir daí, houve esforços para uma maior mobilização de toda a comunidade
acadêmica nesse processo, incluindo a realização do 1º Fórum de Discussão Sobre a Reforma
da Educação Profissional na Área de Música em âmbito nacional, no ano de 2000. Foi nesse
cenário que teve início a reforma curricular do Curso Técnico de Música da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Minha experiência no que diz respeito à reforma do
Curso na instituição, fruto desse processo, foi apenas um documento sem maiores
repercussões na vida acadêmica da entidade, em que tudo se moveu de modo a atender uma
demanda do Ministério da Educação (MEC), porém, sem atentar para mudanças substanciais
no cotidiano escolar e principalmente na sala de aula. A reforma curricular proposta, com seus
conceitos e seu numeroso repertório de neologismos, propunha mudar as várias modalidades
de ensino. Mas o que se via era outra realidade: professores confusos tentando incorporar
conceitos totalmente alheios à sua prática. Foi motivado pela experiência que passara, durante
o período em que me encontrava na coordenação do Curso Técnico de Música da UFRN, que
pleiteei ingressar no programa de doutorado em música do Instituto de Artes da Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP), objetivando obter uma compreensão crítica do processo
de implementação do Curso na instituição. Porém, ao iniciar o programa de doutorado, e
começar a pensar sobre pontos relacionados à formação do músico no contexto das novas
orientações curriculares para a Educação Profissional, algumas questões vieram à superfície e
foram nucleares para o desenvolvimento desta pesquisa: a) como era entendida, na legislação
existente referente à Educação Profissional, a noção de trabalho artístico, b) como essa
legislação identificava o trabalhador da música – se apenas o situava como produtor de
mercadorias, cuja finalidade da atividade dilui-se na alienação do trabalho; e c) e qual a
concepção de formação profissional relacionada às políticas públicas (mais precisamente da
Educação Profissional) voltadas para a formação do músico. Diante dessas questões, cheguei
17

então a um ponto fundamental e transverso nesta pesquisa: pensar o músico como trabalhador.
Para isso, empreendi esforços no sentido de expor aportes teóricos que pudessem levar o leitor
a compreender como se formou a ideia de músico profissional e como ela se modifica ao
longo do tempo.
Partindo da assertiva de que o trabalho representa tanto nas esferas mítico-
imaginárias, quanto no âmbito de esferas do conhecimento que almejam por registrar aspectos
múltiplos da existência com o rigor científico, examinarei o tema do trabalho no contexto da
abordagem da literatura judaico-cristã, para em seguida me ater a múltiplas leituras
sociológicas. Acredito que esses dessemelhantes registros e experiências de saberes
(conhecimento científico-filosófico, mitos, representações religiosas) contribuirão para se
entender a relação do homem com o trabalho na cultura ocidental, eixo temático e
transversalizador deste estudo. Pontuamos aqui que o trabalho (como atividade essencial à
subsistência) possui um papel fundamental no processo de hominização.
A ideia de hominização, posta nesta pesquisa, se refere ao processo cuja ênfase
reside em acentuar os atributos constituintes e distintivos da espécie humana em relação aos
seus ancestrais. Trata-se de “múltiplas relações mútuas, interações, interferências entre os
fatores genéticos, ecológicos, práxicos (a caça), cerebrais, sociais e depois culturais”
(MORIN, 1979, p. 55), vivenciadas pelo homem no decorrer de um extenso período
cronológico. Como esclarece o pensador francês Edgar Morin, o proto-humano (i.e., o homem
primitivo) só se torna em sua plenitude humana, quando o conceito de homem passa a
comportar “uma dupla entrada: uma entrada biofísica e uma entrada psico-sócio-cultural, uma
remetendo à outra” (MORIN, 2002, p. 34). Em linhas gerais, está-se aqui falando de um
processo de desenvolvimento humano cuja complexificação é multidimensional e se apóia em
um princípio auto-organizador (MORIN, 1979). Nesse contexto, a inteligência, a linguagem,
o fabrico e o manuseio de instrumentos pelo homem, bem como a instituição de uma vida
social, são características desse processo que se chama hominização na qual o trabalho tem
papel central.
A discussão sobre o trabalho terá como objetivo direcionar a percepção sobre
alguns aspectos conceituais que servem de pano de fundo para se pensar o exercício
profissional da música no âmbito das relações produtivas. No que concerne à relação
trabalho-educação-música, a pesquisa toma como referencial analítico as políticas
educacionais implementadas a partir da Lei 9.394 / 96 – Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB), que orientaram e definiram os programas dos cursos da área
18

musical, especificamente aqueles que se propuseram a formar para o mundo do trabalho


(BRASIL, 1996).
A questão central do estudo foi então investigar e compreender como se dão as
relações estabelecidas pelo profissional da música ao longo do tempo com o mundo do
trabalho e a formação profissional – sobretudo em decorrência do processo de mundialização
da cultura, em cujo quadro se configuram novos cenários artístico-musicais e novas
organizações do processo produtivo. Para melhor se compreender esse quadro analítico, é
fundamental situar a prática musical no contexto das mudanças ocorridas no âmbito do mundo
artístico, principalmente as que ocorreram no decorrer do último século, em parte pelo uso de
novas tecnologias, novos materiais, assim como pelo surgimento de novas técnicas de
elaboração musical.
O eixo teórico da pesquisa foi substanciado pelas ideias de pensadores como Marx
(1983, 1985, 2004), Marx e Engels ([198-?], 1986a, 1986b), Weber (1991, 1995, 1996, 2001,
2004), Adorno (1970, 1985, 1986), Bourdieu (1974, 1996), Elias (1995), Arendt (2001), Atlan
(2000), Mészáros (2005), Hegel (1995), Antunes (2003a, 2003b), Morin (1979, 2000, 2002),
bem como autores que escreveram sobre o trabalho ou sociologia das profissões, entre eles
Sennet (2001, 2003, 2004, 2006), Gorz (2003), Friedmann e Naville (1973), Freidson (1998),
Battaglia (1958), Negri e Hardt (2004), Kowarick (1994), Chalhoub (2001), Dubar (1998,
2005), Dubar e Tripier (1998) e Segnini (2004). Ainda de suma importância para este estudo
foram os textos de Menger (2005) sobre o trabalho artístico e autores que subsidiaram as
discussões referentes à música, como Andrade (1991), Duprat (1997, [200-?]), Tinhorão
(1991, 1998), Harnoncourt (1988) e Castro (1988). De fundamental importância foi a
presença de textos de autores que escreveram sobre temas relacionados ao neoliberalismo e
educação, entre eles Frigotto (1986, 2003), Kuenzer (1999) e autores que contribuíram na
discussão sobre a noção de competências, entre eles Perrenoud ([19--?], 1999a, 1999b,
2000a, 2000b), Zarifian (2001), Markert (2004) e Ramos (2002).
Considerei importante o uso de artigos, jornais e revistas tratando da temática,
especificamente, no que concerne ao exercício da profissão musical e ao mundo artístico. Já a
análise documental foi considerada de fundamental importância. Utilizei como fonte de
análise documentos do tipo oficial (Leis, Decretos, Pareceres, Diretrizes Curriculares,
Referenciais Curriculares e Portarias, dados de sites governamentais), programas de cursos e
propostas curriculares na modalidade da educação profissional para a área da música.
As informações para esta pesquisa foram complementadas com entrevistas, com a
aplicação de questionários e ainda com a organização de um Grupo Focal (discussão em
19

grupo conduzida por um moderador). As entrevistas tiveram roteiros semi-estruturados e


foram realizadas com professores e alunos do Curso Técnico de Música da UFRN.
A tese será desenvolvida em seis capítulos. No segundo, Apontamentos sobre as
noções de trabalho na cultura ocidental discuto e evidencio elementos que considero de
grande importância, situados no contexto da abordagem da sociologia e da literatura judaico-
cristã, para se compreender o tema central deste estudo. Encontramos nessa reflexão o
enfoque sobre o sentido primevo do trabalho, em seu modo de apresentação puramente
instintivo, relacionado à subsistência e à fabricação de coisas úteis ao mundo de uso e como
desvelador de outra etapa da humanidade.
Em seguida, no terceiro capítulo, O trabalhador da música: aportes teóricos
inerentes ao exercício da profissão musical, proponho-me a fazer uma reflexão acerca do
trabalho artístico-musical, especificamente de questões que identificam o profissional da arte
como trabalhador, conduzindo para uma reflexão sobre os muitos aspectos relacionados à
natureza do trabalho artístico e aspectos inerentes ao processo de institucionalização musical.
No quarto capítulo, escrevi cinco crônicas sobre o trabalhador-músico,
respaldadas nas informações colhidas nas entrevistas, nos questionários e as registradas em
vídeo no Grupo Focal, objetivando evidenciar e discutir várias questões referentes ao
exercício da profissão musical na atualidade, entre elas: as múltiplas atividades que o músico
é forçado a desempenhar para ganhar a vida, a questão do gênero, o músico sindicalizado, a
contestação do saber formal e a conseqüente valorização do autodidatismo pelo aprendizado
em situações concretas de trabalho, dificuldades inerentes à oportunidade de trabalho, o
músico como gestor de sua própria carreira e conflitos relacionados à escolha profissional.
No quinto capítulo, O músico competente: a formação para o mundo do
trabalho proponho-me a relacionar música-trabalho-educação, objetivando enfatizar os
principais eixos estruturadores presentes nos currículos de música, mais precisamente na
modalidade da Educação Profissional. Pretendo evidenciar aspectos estruturais da
implementação das políticas para educação profissional técnica de nível médio a partir dos
anos 1990, na conjuntura do campo musical. Enfatizo conceitos presentes no âmbito do
contexto legal, referidos como princípios orientadores para essa modalidade de ensino, a
partir da Lei Federal 9.394 / 96 (LDB) (BRASIL, 1996) e das Diretrizes Curriculares para
essa modalidade de ensino. Faço referência especificamente aos conceitos de competências,
modularização, navegabilidade, estética da sensibilidade, mundo do trabalho e flexibilidade.
Entende-se que esse conjunto lexical articula-se como discurso ideológico, fazendo-se
presente no projeto político-educacional brasileiro entre os anos 1994-2002, impondo novas
20

orientações curriculares aos sistemas de ensino. A questão central do texto é colocar como a
área artístico-musical se insere nesse contexto. Reflito ainda sobre o ideal de formação
expresso nos documentos governamentais para a formação do profissional da música e sobre
os referenciais de ensino, utilizados na construção de programas curriculares para educação
profissional na área da música.
21

2 O TRABALHO E O EXERCÍCIO DO MÉTIER ARTÍSTICO: ELEMENTOS PARA


SE PENSAR A MÚSICA COMO PROFISSÃO

2.1 APONTAMENTOS SOBRE AS NOÇÕES DE TRABALHO NA CULTURA


OCIDENTAL

2.1.1 Uma breve incursão teórica sobre o sentido primevo do trabalho na tradição judaico-
cristã e na antiguidade clássica

O trabalho é identificado na literatura judaico-cristã, especificamente no livro de


Gênesis, como fardo, pena; sentido decisivo na concepção que o termo terá na cultura
ocidental (PEIXOTO, [19--?a]). No mito da criação, ele está associado à sentença imposta por
Deus ao homem, em conseqüência do seu ato pecaminoso. De certo modo, a desobediência de
Adão foi essencial para que fosse desvelada sua condição humana, de homem, embora
destituído e privado do paraíso. O labor proporciona ao homem essa mudança. A experiência
vital da dor, ocasionada pelo esforço no provimento de suas necessidades materiais, dá ao
homem uma nova percepção de si. Ao comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e
do mal, proibido por Yahvéh3, Adão, alma vivente, toma consciência de sua condição
humana, a partir do momento em que lhe é revelada a verdade: sua própria condição de
homem no mundo e mortal. Sai, assim, o homem de seu estado natural, sendo agora um ser
consciente de si e de um mundo exterior.
Considerando o universo simbólico contido no mito da criação, especificamente
na narrativa que descreve a desobediência do homem ao seu criador, deve-se ressaltar que a
essência do ato pecaminoso não reside apenas na descoberta da sexualidade operada em Adão
3
O nome de Deus é considerado sagrado pelos judeus (ver o terceiro mandamento: Não tomarás o nome de
YHVH, teu Deus, em vão”) (PEIXOTO, [19--?g], cap. 20, vers. 7, p. 62). É formado por um tetragrama
consoantal, YHVH, transliteração das seguintes letras hebraicas ‫( י‬yod) ‫( ה‬heh) ‫( ו‬vav) ‫( ה‬heh) – observando-se
que na língua hebraica, como nos demais alfabetos semitas, a escrita e a leitura ocorrem da direita para
esquerda, ou seja, ‫( ה‬heh) ‫( ו‬vav) ‫( ה‬heh) ‫( י‬yod). Das muitas transliterações para o signo sonoro (YaHVeH,
YeHoVaH, respectivamente em português, Javé e Jeová), alguns estudiosos preferem a forma Yahvéh. Na
verdade, os judeus consideram a existência de mais de setenta nomes que podem ser atribuídos a Deus, sendo
YHVH, impronunciável, posto que é sagrado. O pensador, médico e rabino Maimônides (1135-1204) sugere
utilizar particularmente o nome “Adonai como substituto [do tetagrama], por este ser o mais especial dos nomes
conhecidos de Deus; seus demais nomes como Daián (Juiz), Tsadik (Justo), Chanun (Misericordioso), Rachum
(Clemente) e Elohim (Deus) – são todos nomes genéricos e derivados” (MAIMÔNIDES, 2004, p. 240). De
acordo com estudiosos, o livro Exodo, cap. 14, vers. 19-21, estão expressos de modo simbólico, nas frases e
letras que compôem esse texto, 72 nomes sagrados com os quais YHVH se revela aos homens (BERG, 2005) .
A pronúncia a YHVH possui natureza mística e hermética e sua “etmologia é desconhecida e não se aplica a
nada além Dele” (MAIMÔNIDES, 2004, p. 240). No âmbito do judaísmo, só o sumo sarcedote poderia
pronunciá-lo, ainda assim, uma vez por ano no templo de Jerusalém, no “lugar Santo dos Santos”, tendo essa
prática terminado com a destruição do templo, no ano 70 da E. C. (BORGER, 1999, p. 225).
22

e Eva, em decorrência de terem comido do fruto da árvore do conhecimento do bem e do


mal, proibido por Yahvéh, conforme aponta e interpreta literalmente o senso comum. Antes
de tudo, trata-se, num sentido mais amplo, de um novo olhar, de uma nova tomada de
consciência que Adão e Eva tiveram sobre si. A árvore do conhecimento do bem e do mal
simboliza de fato a libido, mas deixe-se ressaltado, toda a libido. Significa o

despertar dos sentidos e da consciência para o conhecimento do sexo pelo


sexo, perda de inocência relativamente à realidade das pulsões e das suas
paradas, à força do desejo e à felicidade e infelicidade ao bem e ao mal, que
acompanham as suas satisfações; perda da inocência animal de quem
nãoconhecia, conhecimento bom e mau, fonte de fruição, de prazer, de
felicidade e mesmo de ‘beatitude’, mas também fonte de infelicidade, de
sofrimento e de morte (ATLAN, 2000, p. 21).

A primeira reação de Adão e Eva, após terem comido do fruto proibido, foi
enxergar que estavam nus, surgindo daí um sentimento de vergonha; de pudor4. É o pudor que
sugere, antes de tudo, a cisão do homem do seu ser natural. A necessidade do vestuário advém
desse sentimento de pudor e também do despertar de uma (nova) consciência. O sentimento
humano do pejo demarca um momento que sucede a inocência do primeiro casal. No que o
texto bíblico sugere, o homem não devia conhecer, mas manter-se num estado de inocência.
Portanto, o ato de desobediência do homem e de sua companheira corrobora para o
desvelamento de sua condição humana. Porém, após a infração cometida, o impronunciável
sentencia: “[...] maldita é a terra por tua causa; em fadiga comerás dela todos os dias da tua
vida [...] Do suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, porque dela foste
tomado; porquanto és pó, e ao pó tornarás” (PEIXOTO, [19--?c], cap. 3, vers. 17-19, p. 7).
Yahvéh já havia dito a Adão para não comer da “árvore do conhecimento do bem e do mal”,

4
A desobediência do homem o condenou a ser livre. A faculdade de pensar e a necessidade de se revoltar
(liberdade) combinadas na história irão materializar tudo o que constitui a humanidade (e a animalidade) dos
homens (BAKUNIN, 2000). Assim, pode-se afirmar que foi a necessidade material, pela dor no trabalho, que
revelou o ser humano em sua essência. É Lúcifer, na forma de serpente, o anjo de luz revoltado, que faz Adão
desobedecer ao Eterno, abrindo-lhe os olhos, fazendo-o envergonhar-se de si. Ele, Lúcifer, o emancipa,
imprimindo no corpo do homem a marca do livre arbítrio. O escritor Milan Kundera (1929) coloca no livro A
insustentável leveza do ser que “não existe nada mais miserável do que um corpo nu sentado sobre a
embocadura aberta de um cano de esgoto”. Penso que essa afirmação deva-se ao fato de que ao se lidar com as
necessidades materiais (fisiológicas) do corpo, o homem lembra sua condição humana (e animal) de alma
vivente destituída do paraíso, de simples mortal. Nesse sentido, a arquitetura e o espaço destinados à construção
de recintos no âmbito residencial, com vaso sanitário ou escavação no solo para dejeções, demonstram a
maneira como em cada época se lida com a vergonha pela excretione. É, pois, nesse sentido que o arquiteto
sempre fez o possível para que o corpo esquecesse sua miséria e para que o homem ignorasse o que acontece
“com os dejetos de suas entranhas quando a água da caixa os leva gorgolejando cano abaixo” (KUNDERA,
1983, p. 159). Pode-se destacar que as privadas foram primeiramente construídas isoladas dos outros espaços
residenciais, inicialmente pela noção de higienização dos espaços e do ar, mas, também, pela ambivalência
cristã da noção de limpo/sujo, pecado/purificação do corpo e da alma.
23

porque no dia em que comesse, certamente morreria (PEIXOTO, [19--?b], cap. 2, vers. 17, p.
6). Na interpretação literal que muitos religiosos fazem desse texto, todos os homens e
mulheres tornam-se herdeiros, em decorrência da desobediência de Adão, do pecado e da
morte (para o cristão, em duplo sentido; morte material e espiritual). Contudo, primeiro
Yahvéh confisca a estadia eterna do homem no Éden, em seguida, devolve-lhe uma vida, mas
uma vida no trabalho, envolta por uma morte diferida, ou seja, constantemente adiada. Está aí,
na narrativa bíblica, o sentido primevo, em seu modo mais genérico e abstrato, das atividades
laborais do homem. O Antigo Testamento nos fornece ricas narrativas e reflexões acerca da
visão do trabalho na antiguidade bíblica. Salomão, rei de Israel que sucedeu Davi,
considerava o trabalho como uma atividade fatigante, cujos frutos eram passageiros e
efêmeros, pois reconhecia que ao morrer o homem nada levaria desse mundo, logo, tudo
parecia sem sentido e inútil. As realizações e riquezas, resultados do trabalho humano,
mostravam-se insignificantes, diante da efemeridade e transitoriedade da vida, tudo não
passava de névoa-nada – expressão utilizada na tradução direta do hebraico que o poeta
paulista Haroldo de Campos (1929-2003) fez do livro Eclesiastes para o termo vaidade
(CAMPOS, 2004) Daí a angústia de Qohélet (O-que-Sabe)5 ao indagar em tom pessimista:
“pois, que alcança o homem com todo o seu trabalho e com a fadiga em que ele anda
trabalhando debaixo do sol?” (PEIXOTO, [19--?l], cap. 2, vers. 22, p. 494), muito embora
reconheça, também, que não há como o homem fugir do fardo divino. Diz ele:

Tenho visto o trabalho penoso que Deus deu aos filhos dos homens para nele
se exercitar. Tudo fez formoso em seu tempo; também pôs na mente do
homem a ideia da eternidade, se bem que este não possa descobrir a obra que
Deus fez desde o princípio até o fim. Sei que não há coisa melhor para eles
do que se regozijarem e fazerem o bem enquanto viverem (PEIXOTO, [19--
?o], cap. 3, vers. 10-12, p. 495).

Desse modo, é preferível, então, o homem contentar-se e encarar o labor com


alegria, pois, conforme considera Qohélet, o Rei filho de Davi, em “todo trabalho há
proveito” (PEIXOTO, [19--?k], cap. 14, vers. 23, p. 482), mesmo sendo névoa-nada.
Conhecida é, na mitologia grega, precisamente na Ilíada, de Homero, a história de
Sísifo, filho do rei Éolo e Enarete. Esse personagem, Sísifo, também ficou conhecido como o
eterno proletário dos deuses. Sísifo era considerado o mais astuto de todos os mortais e se
utilizou várias vezes de estratagemas para enganar deuses como Zeus, Tânatos, deus da morte,

5
Tradução que o poeta Haroldo de Campos dá à palavra Pregador, ou Colecionador de
provérbios, em referência ao Rei, e primeiro filósofo Judeu, Salomão.
24

Hades, deus dos mortos e Ares, deus da guerra. Ao morrer, Sísifo foi sentenciado por Zeus a
rolar um rochedo com suas mãos até a cista de uma montanha. Ocorre que sempre que atingia
a extremidade, para o seu desapontamento e desespero, a pedra sempre descia montanha
abaixo até o sopé da montanha. Talvez, a condenação mais cruel imposta a Sísifo consistisse
na sensação (eterna) de algo que nunca era (nem seria) concretizado. Sísifo também foi
denominado como sendo o trabalhador inútil dos infernos. Daí ser atribuído a toda e
qualquer atividade rotineira e cansativa, que empreenda esforços ditos inúteis, como sendo o
trabalho de Sísifo. As rotineiras atividades do trabalho doméstico, necessárias à nossa
subsistência, se encaixam perfeitamente nessa ideia. São atividades que nunca cessam, como
por exemplo limpeza do ambiente, cuidados familiares com filhos, o preparo de alimentos,
lavagem da louça e outras coisas necessárias para manter as pessoas e o ambiente em que
vivem. De certo modo, ocupamo-nos em nada completar, como Sísifo. Ao dar conta dos
afazeres domésticos do dia que passou, ao colocar tudo em ordem, por algum instante temos
uma fugaz sensação de tarefa concluída. Se esse mito possui uma tragicidade, é porque o
protagonista em algum momento torna-se consciente de sua condição, pondera Camus (2004).
Após a frustração de atingir o cume da montanha e se ver esvaziado da esperança que tinha
por concretizar finalmente seu trabalho, é no retorno ao início do sopé da montanha que a
pena de Sísifo adquire maior pesar: na consciência sobre sua condição miserável e impotente
perante o destino a ele imputado. A punição imposta por Zeus permite pensarmos que por
mais que haja semelhança entre homens e deuses, os primeiros não possuem a liberdade dos
últimos. Os deuses não precisam trabalhar; os homens precisam. Por isso o trabalho na
antiguidade clássica é desprezado. O homem livre (do trabalho) eleva-se à condição dos
deuses, como ser contemplativo. Zeus confisca o direito ao descanso eterno (morte) de Sísifo,
condenando-o ao trabalho. Num certo sentido metafórico, “quem trabalha, continua sendo
aquele que não foi condenado à morte, aquele a quem se recusou essa honra”
(BAUDRILLARD, 1996, p. 56). Zeus explora Sísifo até a morte? Não. O castigo maior reside
na recusa à morte. Sísifo é condenado (paradoxalmente) à vida no trabalho. Nesse sentido, a
liberdade dos mortais se encerra num caminho já traçado, finito, restando, pois, aos homens,
concentrar-se nas ocupações do dia-a-dia, considerando cada momento como sendo precioso e
o único possível de ser experimentado, usando de criatividade para atenuar a monotonia da
travessia (existencial)6. Talvez assim pensasse o Rei Salomão ao afirmar no livro do

6
Não há como deixar de mencionar a célebre frase do escritor Guimarães Rosa: “o real não está na saída nem na
chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (ROSA, 1994, p. 85).
25

Eclesiastes7: “eis aqui o que eu vi uma boa e bela coisa: alguém comer e beber, e gozar cada
um do bem de todo o seu trabalho, com que se afadigam debaixo do sol, todos os dias da vida
que Deus lhe deu; pois esse é o seu quinhão” (PEIXOTO, [19--?q], cap. 5, vers. 18, p. 497).
Basta ao homem, então, contentar-se e aproveitar como puder seu destino. Se Salomão, em
seu poema-sapiencial hebraico, expressa um regozijo, este não é pelo trabalho em si, mas
pelo que advém do próprio esforço humano. O trabalho é penoso, isso não é negado, porém
“não há nada melhor para o homem do que comer e beber, e fazer com que sua alma goze do
bem do seu trabalho [...]” (PEIXOTO, [19--?m], cap. 2, vers. 24, p. 495). Confirmando de
modo imperativo suas ideias, indaga o Rei aos homens: “pois quem pode comer, ou quem
pode gozar melhor do que eu?” (PEIXOTO, [19--?n], cap. 2, vers. 25, p. 495). De fato,
Salomão segundo a bíblia era detentor de tudo aquilo que os homens mais perseguem em
vida: uma riqueza descomunal, poder, uma sabedoria incomum e muitas mulheres
(“setecentas mulheres, princesas, e trezentas concubinas”) (PEIXOTO, [19--?x], cap. 11, vers.
3, p. 278). Maior do que a dor pela labuta é, em Qohélet, a consciência da efemeridade de sua
vida, que embora repleta de conquistas e feitos, passará um dia, e com ela todo seu vão
trabalho. O que sente na verdade é angústia; aflição intensa por reconhecer que um dia não
mais existirá. Sofre pela incerteza do além-túmulo, pela não existência. Todavia, esse
sentimento é algo passageiro em Salomão, e notadamente pouco comum em seus
contemporâneos, pois, como bem lembrou Arendt (2001), na perspectiva histórico-temporal
do Antigo Testamento, o homem tinha a vida como sagrada, uma dádiva; ele sentia-se feliz e
satisfeito por estar vivo. O anelo por um novo paraíso, anseio ao reino dos céus, livres da pena
do trabalho é uma ideia concreta, da vida em um plano mundano materializado, trata-se, pois,
de um reino terreno e não espiritual. Ao contrário do que se nota na era apostólica do Novo
Testamento, o indivíduo idealizava suas conquistas no plano mundano, na projeção e percurso
de uma vida farta em anos8.
A alegria de Qohélet pelo trabalho ressalte-se mais uma vez, advém da estreita
relação sentida entre o esforço (trabalho realizado) e a recompensa. Ou seja, ele exulta não o
trabalho em si, mas o que ele é capaz de proporcionar. Sensação similar à que irá ter o
trabalhador moderno no âmbito da cultura capitalista ocidental, quando o valor monetário
(mas só mediante altos salários) suplanta a fatigante atividade laboral, o que nos leva a
destacar conceitualmente a diferença entre as noções de fruto e recompensa. O fruto do
7
A autoria desse livro, escrito cerca de 971 a 931 a.C, é atribuída a Salomão, muito embora
não se possa afirmar ao certo.
8
Segundo a Bíblia, Matusalém, filho de Enoque, viveu 969 anos (PEIXOTO, [19--?f], cap. 5, vers. 27, p. 8). De
um modo geral, essa idéia de morte com “farturas de dias”, é colocada com freqüência no Antigo Testamento.
26

trabalho a que Salomão se refere é a alegria da materialização do esforço na obra realizada.


Aqui ele enxerga todo seu empenho posto na concretização de seu projeto. Ele vê no trabalho
um meio para um determinado fim, objetivando naturalmente com seu esforço a realização de
uma obra; certamente uma estreita relação entre o trabalho e os frutos desse trabalho.
Recompensa tem a ver com salário, resultado de um esforço empreendido em benefício de
outrem, uma vez que “o trabalhador não produz para si próprio, ele produz para um poder
independente. O sucesso dessa produção, a sua abundância, regressa ao produtor, com
abundância da despossessão [sic]” (DEBORD, c2003, p. 26). O salário ou recompensa é a
paga pelo esforço empreendido e não pelo fruto negociado. Quando o fruto de seu esforço não
está ao alcance do trabalhador, o trabalho lhe parece penoso. A recompensa é o pagamento
por uma renúncia. Renúncia que o homem faz de si, emprestando sua força de trabalho para
outrem9. A obra é um valor que se materializou mediante o esforço do trabalho. Não se trata
de mais-valia. O salário é a conversão do esforço despendido em moeda corrente (LIMA,
1956).
Após profundas reflexões, O-que-Sabe vive um sentimento de valorização
acentuada pela vida, advinda da consciência da (sua própria) morte10. Qohélet coloca “como
pano de fundo de que a vida deve ser pensada a partir e através da morte, assim como o gozo
dos bens da vida deve ter presente sempre esse limite” (LOHFINK, 1980 apud CAMPOS,
2004, p. 155).
A aceitação de sua não existência lhe mostrará a o aspecto único e singular da
vida, de todo o trabalho que se faz debaixo do sol. Assim sendo, resta ao homem habitar e
usufruir a finitude da vida sem encerrar-se na angústia, admoesta Salomão: “Exalto, pois, a
alegria, porquanto o homem nenhuma coisa melhor tem debaixo do sol do que comer, beber e
alegrar-se; porque isso o acompanhará no seu trabalho nos dias da sua vida que Deus lhe dá
debaixo do sol” (PEIXOTO, [19--?u], cap. 9, vers. 15, p. 498).
Completa ainda Qohélet, anunciando aos homens:

9
Tal qual a renúncia exigida pelo cristianismo ao homem dos prazeres terrenos. Conhecida é passagem do Novo
testamento em que o apóstolo Pedro, questiona a Jesus: “[...] Eis que nós deixamos tudo, e te seguimos; que
recompensa, pois, teremos nós? Ao que lhe disse Jesus: Em verdade vos digo a vós que me seguistes, que na
regeneração, quando o Filho do homem se assentar no trono da sua glória, sentar-vos-eis também vós sobre
doze tronos, para julgar as doze tribos de Israel” (PEIXOTO, [19--?bb], cap. 19, vers. 27-28, p. 708). A
renúncia, a existência terrena e ao gozo de suas benesses, dá uma recompensa ao cristão: a vida eterna ao lado
do próprio Jesus.
10
A respeito dessa inferência Morin (2002, p. 290) coloca que “o ser humano comporta, ao
mesmo tempo, a consciência e a inconsciência de sua finitude; sente-se invadido pela
experiência religiosa, poética e erótica do êxtase”.
27

Vai, pois, come com alegria o teu pão e bebe o teu vinho com coração
contente [...] Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias da tua vida
vã; porque este é o teu quinhão nesta vida, e do teu trabalho, que tu fazes
debaixo do sol [...] Tudo quando viera mão para fazer, faze-o conforme tuas
forças; porque no Seol, para onde tu vais, não há obra nem projeto, nem
conhecimento nem sabedoria alguma (PEIXOTO, [19--?t], cap. 9, vers. 7-10,
p. 498-499).

A máxima parece ser: comer, beber e gozar a vida com a mulher amada (carpe
diem), nessa vida vã (nessa vida-névoa-nada), mas sem esquecer, no entanto, que Yahvéh trará
juízo a tudo quanto o homem realizar embaixo do sol, durante sua fugaz existência
(PEIXOTO, [19--?p], cap. 3, vers. 11-12, p. 495), (PEIXOTO, [19--?r], cap. 5, vers. 18-20, p.
497), (PEIXOTO, [19--?s], cap. 8, vers. 7-10, p. 498-499), (PEIXOTO, [19--?v], cap. 11,
vers. 7-10, p. 499-500).
O reino de Yahvéh, na concepção judaica, possui uma concretude que se
materializa no gozo das benesses da vida, no plano terreno. Já na configuração ideológica
presente no Novo Testamento, o homem almeja em deixar esta vida para usufruto de outra ao
lado de Deus. De tal modo, o reino dos céus se localiza numa dimensão espiritual, distanciada
do mundo, no regozijo e usufruto de bens espirituais ao lado da santa trindade (pai, filho e
espírito santo). O trabalho ganha nesse contexto a conotação de subsistência, de faina
mundana. Nos tempos apostólico e neo-testamentário, os cristãos guardavam um significativo
grau de indiferença às atividades laborais mundanas, seguramente porque a partir de então o
plano mundano se apresenta insignificante, secundário, face às promessas da segunda vinda
de Cristo e da promessa de deleite eterno na morada celestial junto ao Salvador. No mito
mosaico da queda do homem, está resguardada a base da doutrina (da fé) cristã, ou seja, o ato
pecaminoso (pecado capital) e a necessidade de uma ação remediadora, e Jesus Cristo (para o
cristão) é o responsável por restaurar a condição decaída do homem.
Numa crítica à visão de mundo construída pelo cristianismo, quanto à sua
renuncia à vida terrena, mundana, o compositor Wagner (1997, p. 49, grifos do autor)
observa: “do homem apenas se espera fé, isto é, que se reconheça miserável e que renuncie a
toda a actividade pessoal cujo objetivo seja o de escapar a essa miséria da qual só há de ser
libertado pela imerecida graça divina [sic]”. Está aí, caracterizada pelo músico alemão, toda a
essência doutrinária do cristianismo: a renúncia da vida (laboral) em decorrência ao anseio
pelos céus. Diríamos que o trabalho na esfera da religiosidade cristã é uma “necessidade
infeliz”, cuja fatalidade deveria “ser reparada, ao mesmo tempo que o próprio pecado, de
geração em geração” (ATLAN, 2000, p. 19).
28

No Novo Testamento o trabalho aparece associado ao trabalho para Deus,


amparado pela ideia de fuga do mundo, de renúncia aos projetos terrenos em decorrência da
conversão do cristão. A negação do trabalho aparece como determinante. A busca pelo reino
dos céus está em primeiro plano, conforme anuncia o Messias no livro de Mateus:

Por isso vos digo: Não estejais ansiosos quanto à vossa vida, pelo que haveis
de comer, ou pelo que haveis de beber; nem, quanto ao vosso corpo, pelo
que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do
que o vestuário? Olhai para as aves do céu, que não semeiam, nem ceifam,
nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não valeis vós
muito mais do que elas? Ora, qual de vós, por mais ansioso que esteja, pode
acrescentar um côvado à sua estatura? E pelo que haveis de vestir, por que
andais ansiosos? Olhai para os lírios do campo, como crescem; não
trabalham nem fiam; contudo vos digo que nem mesmo Salomão em toda a
sua glória se vestiu como um deles. Pois, se Deus assim veste a erva do
campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós,
homens de pouca fé? Portanto, não vos inquieteis, dizendo: Que havemos de
comer? ou: Que havemos de beber? ou: Com que nos havemos de vestir?
(Pois a todas estas coisas os gentios procuram.) Porque vosso Pai celestial
sabe que precisais de tudo isso. Mas buscai primeiro o seu reino e a sua
justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas. Não vos inquieteis, pois,
pelo dia de amanhã; porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a
cada dia o seu mal (PEIXOTO, [19--?z], cap. 6, vers. 25-34, p. 695).

A mensagem de Cristo é incisiva; o acesso ao reino dos céus requer uma renúncia
terrena, de tudo que se relaciona ao mundano, sobretudo o trabalho 11. Ora, sabe-se que dos
doze discípulos de Cristo, Pedro, André, Tiago e João eram pescadores, e foram convidados a
renunciar aos seus afazeres para seguir Jesus. Disse certa vez o nazareno aos primeiros:
“vinde após mim, e eu vos farei pescadores de homens” (PEIXOTO, [19--?y], cap. 4, vers. 19,

11
Conhecida é a passagem bíblica do encontro de Cristo com um jovem rico:

E eis que se aproximou dele um jovem, e lhe disse: Mestre, que bem farei para
conseguir a vida eterna? Respondeu-lhe ele: Por que me perguntas sobre o que é
bom? Um só é bom; mas se é que queres entrar na vida, guarda os mandamentos.
Perguntou-lhe ele: Quais? Respondeu Jesus: Não matarás; não adulterarás; não
furtarás; não dirás falso testemunho; honra a teu pai e a tua mãe; e amarás o teu
próximo como a ti mesmo. Disse-lhe o jovem: Tudo isso tenho guardado; que me
falta ainda? Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o
aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, segue-me. Mas o jovem, ouvindo essa
palavra, retirou-se triste; porque possuía muitos bens. Disse então Jesus aos seus
discípulos: Em verdade vos digo que um rico dificilmente entrará no reino dos céus.
E outra vez vos digo que é mais fácil um camelo passar pelo fundo duma agulha, do
que entrar um rico no reino de Deus (PEIXOTO, [19--?cc], cap. 19, vers. 16-25, p.
708).

Na verdade o que se condena não são os bens materiais, mas o apego a eles, pois tanto o trabalho quanto seus
frutos são indiferentes para quem acredita estar numa breve passagem no plano terreno e predestinados ao
paraíso celeste.
29

p. 693). Pode-se citar ainda o caso de Mateus, um dos apóstolos, publicano, que trabalhava
numa coletoria como cobrador de rendimentos públicos, ele também foi convidado a
renunciar à faina mundana (PEIXOTO, [19--?aa], cap. 10, vers. 3, p. 698). O próprio Saulo de
Tarso (Paulo), aquele que deu voz doutrinária ao Cristo no ocidente, torna-se indiferente às
coisas mundanas logo após sua conversão. Cidadão romano (ao que tudo indica nos textos
bíblicos pessoa de grande influência política), fazedor de tendas, renunciou a tudo para tornar-
se um apóstolo seguidor do Cristo, embora tenha continuado a fazer tendas para cobrir aos
custos de sua obrigação missionária e cristã (PEIXOTO, [19--?kk], cap. 23, p. 815-816),
(PEIXOTO, [19--?ll], cap. 26, vers. 10, p. 817), (PEIXOTO, [19--?oo], cap. 3, vers. 4-7, p.
864-865). Nesse sentido, defende o trabalho, mas, principalmente aquele cujos resultados
objetivem o sustento do discípulo missionário de Cristo. Está aqui um exemplo do trabalho
não condenado e apreciado pelos cristãos primitivos: aquele que é servil aos objetivos dos
ideais cristãos. Ainda na primeira epístola aos Tessalonicenses, Paulo tendo conhecimento
que seus irmãos estavam desperdiçando tempo, exorta-os para que procedessem como ele,
trabalhando12 para o próprio sustento:

Porque vós mesmos sabeis como deveis imitar-nos, pois que não nos portamos
desordenadamente entre vós, nem comemos de graça o pão de ninguém, antes com
labor e fadiga trabalhávamos noite e dia para não sermos pesados a nenhum de vós.
Não porque não tivéssemos direito, mas para vos dar nós mesmos exemplo, para nos
imitardes. Porque, quando ainda estávamos convosco, isto vos mandamos: se
alguém não quer trabalhar, também não coma. Porquanto ouvimos que alguns entre
vós andam desordenadamente, não trabalhando, antes intrometendo-se na vida
alheia [...] (PEIXOTO, [19--?ss], cap. 3, vers. 7-11, p. 873).

É importante sublinhar o fato de que o trabalho ganha associação no Novo


Testamento, muitas vezes, a uma recompensa, a um salário. Só o salário pode compensar as
agruras da labuta. O próprio mestre nazareno, no evangelho de São Lucas coloca: “pois digno
é o trabalhador do seu salário” (PEIXOTO, [19--?gg], cap. 10, vers. 7, p. 752). Muito embora
o escritor e socialista francês Paul Lafargue (1842-1911) no seu Elogio do ócio, tenha
afirmado que Cristo, em suas pregações, no sermão na montanha, difundiu a preguiça. O

12
A conhecida frase do apóstolo Paulo “isto vos mandamos: se alguém não quer trabalhar, também não coma”
(PEIXOTO, [19--?rr], cap. 3, vers. 10, p. 873) é interpretada por Batagglia (1958, p. 71) como “quem não tem
riquezas pessoais deve trabalhar para não ser pesado a ninguém. É a independência o que está no coração de
São Paulo, não a relação direta entre trabalho e subsistência. Seu problema é realmente moral, não político e
econômico”. A questão é ética, mas também de caridade, como recurso providencial, de auxílio ao próximo:
Diz Paulo na epístola aos efésios: “Aquele que furtava, não furte mais; antes trabalhe, fazendo com as mãos o
que é bom, para que tenha o que repartir com o que tem necessidade” (PEIXOTO, [19--?nn], cap. 4, vers. 28,
p. 860).
30

genro de Marx13 fez uma inferência um tanto apressada, pois Jesus afirma categoricamente:
“meu pai trabalha até agora, e eu trabalho também” (PEIXOTO, [19--?ii], cap. 5, vers. 17, p.
775). Para ilustrar essa disposição ao trabalho (para Deus) pode-se ainda citar o fato de que
Jesus contravém aos mandamentos judaicos, infringindo o dia de descanso religioso dos
judeus, dia em que não é lícito trabalhar, em referência ao sétimo dia em que Deus descansou
após criar o mundo. No shabbath, ele é pego trabalhando, ou seja, pregando sua doutrina e
realizando milagres, conforme se encontra registrado no texto de São Lucas:

Então o chefe da sinagoga, indignado porque Jesus curara no sábado,


tomando a palavra disse à multidão: Seis dias há em que se deve trabalhar;
vinde, pois, neles para serdes curados, e não no dia de sábado. Respondeu-
lhe, porém, o Senhor: Hipócritas, no sábado não desprende da manjedoura
cada um de vós o seu boi, ou jumento, para o levar a beber? (PEIXOTO,
[19--?hh], cap. 13, vers. 14-15, p. 756).

É certo que o trabalho está relacionado aqui com a missão proselitista messiânica
de Jesus, de esforço empreendido na pregação do seu evangelho para o mundo, em prol de
converter pessoas dispostas a pleitear o reino dos céus. Outro exemplo de trabalho encontrado
no Novo Testamento está na Parábola dos dez talentos, na qual Jesus narra a história de um
servo que é dispensado do emprego por não ter conseguido fazer com que determinada
quantia em dinheiro rendesse. Diz o mestre nazareno em alegoria:

Porque [o reino dos céus] é assim como um homem que, ausentando-se do


país, chamou os seus servos e lhes entregou os seus bens: a um deu cinco
talentos, a outros dois, e a outro um, a cada um segundo a sua capacidade; e
seguiu viagem. [...] Ora, depois de muito tempo veio o senhor daqueles
servos, e fez contas com eles. Então chegando o que recebera cinco talentos,
apresentaram-lhe outros cinco talentos, dizendo: Senhor, entregaste-me
cinco talentos; eis aqui outros cinco que ganhei. Disse-lhe o seu senhor:
Muito bem, servo bom e fiel; sobre o pouco foste fiel, sobre muito te
colocarei; entra no gozo do teu senhor. [...] Chegando por fim o que recebera
um talento, disse: Senhor, eu te conhecia, que és um homem duro, que ceifas
onde não semeaste, e recolhes onde não joeiraste; e, atemorizado, fui
esconder na terra o teu talento; eis aqui tens o que é teu. Ao que lhe
respondeu o seu senhor: Servo mau e preguiçoso, sabias que ceifo onde não
semeei, e recolho onde não joeirei? Devias então entregar o meu dinheiro
aos banqueiros e, vindo eu, tê-lo-ia recebido com juros (PEIXOTO, [19--
?ee], cap. 25, vers. 14-27, p. 714).

13
Paul Lafargue casou-se em 1868, com a filha mais nova de Marx.
31

Há aí, na Parábola dos dez talentos14 a exposição dos elementos fudantes das
relações econômicas no âmbito da sociedade moderna ocidental: proprietário, trabalhador
(servo), moeda e lucro 15. Muito embora a sentença moral posta nessa narração alegórica seja a
de que; algum dia, todos terão de prestar contas dos talentos dados por Yahvéh. Portanto, o
trabalho é utilizado aqui de forma simbólica para indicar que o compromisso que se tem com
Deus é similar ao que tem o servo com o patrão.
Retornando ao trabalho no contexto do mito da criação é preciso que se esclareça
uma coisa: na verdade o castigo imposto a Adão não foi exatamente o labor, como também a
sanção aplicada a Eva não foi o parto. A esta Yahvéh além de impor-lhe eterna submissão ao
homem – instituição do modelo patriarcal – dar-lhe também como punição a dor no parto. A
sanção aplicada ao primeiro homem, também não reside na atividade laboral, pois o Absoluto
já havia dito a eles para cuidarem do jardim do Éden e prolificar. A esse respeito coloca o
filósofo John Locke (1632-1704):
Quando deu o mundo em comum para toda a humanidade, Deus ordenou também
que o homem trabalhasse, e a penúria de sua condição assim o exigia. Deus e sua razão
ordenaram-lhe que dominasse a Terra, isto é, que a melhorasse para benefício da vida, e que,
dessa forma, depusesse sobre ela algo que lhe pertencesse, o seu trabalho (LOCKE, 1998).
No pensamento de Locke (1998) o trabalho expressa a contribuição humana na
confecção de utilidades ao próprio mundo do homem. Numa menção bíblica, o trabalho é
inerente ao homem, em estado perfeito. Mas o cansaço decorrente das atividades laborais é do
homem em estado decaído (LIMA, 1956). A rigor dos textos bíblicos, Yahvéh apenas tornou
doloroso o labor e o nascimento, como bem lembrou Arendt (2001, p. 119), ou seja, o
“Impronunciável” perpetuou a ideia de trabalho no sofrimento e procriação na dor. Cabe citar,
ainda nesse contexto da construção simbólica do trabalho, o mito grego que narra a história de
Prometeu e Pandora, narrado pelo filósofo grego Hesíodo. Prometeu filho de Jápeto, um dos
doze titãs que enfrentaram Zeus e os deuses no Olimpo, na busca de ascensão ao poder, em
sua ousadia rouba o fogo (divino) de Zeus para dar aos homens. Ora, com o fogo o homem
poderia se diferenciar dos outros animais. Mediante essa descoberta, poderiam agora cozinhar
os próprios alimentos, se beneficiar pela luminosidade à noite, se aquecerem no frio, bem
como confeccionar instrumentos úteis para o trabalho e a guerra. O homem teve assim, acesso
a um conhecimento que apenas os deuses dispunham. Enfurecido Zeus não toma o fogo de

14
Moeda da Antiguidade grego-romana (tálanton).
15
A intenção aqui é, longe de identificar alguma espécie de espírito pré-capitalista, salientar que o impulso
humano por ganhar dinheiro e gerar lucro deu-se em várias épocas, sem distinção de classes e culturas (WEBER,
2004).
32

volta, mas penaliza Prometeu amarrando-o em um rochedo, onde por toda a eternidade as
aves de rapina punham-se a devorar seu fígado. Porém, aos homens para imputar-lhes o
castigo, utiliza-se de um sutil estratagema. Presenteia Epimeteu (irmão de Prometeu) com
Pandora, mulher criada por Zeus e dotada de atributos encantadores por outros deuses do
Olimpo. Hefestos, deus coxo, dar-lhe forma semelhante às deusas imortais, Atena dá-lhe
habilidades em trabalhos manuais, Afrodite colabora oferecendo-lhe beleza. Epimeteu deixa-
se seduzir pela beleza e o encanto de Pandora, e a toma por esposa. Ocorre que, juntamente
com a beleza e os dons, Zeus deu a Pandora um jarro, a caixa de Pandora, repleta de males.
Movida pela curiosidade Pandora abre o jarro, cujos males são dispersos perante os homens e
os filhos dos homens, concretizando assim a vingança de Zeus. Do jarro surgiram todas as
desgraças, moléstias, pestes, guerras e, sobretudo, a morte. Tem-se assim, a origem de todos
os males no mundo. Antes disso, os homens viviam sobre a terra “a recato dos males, dos
difíceis trabalhos, das terríveis doenças” (HESÍODO, 1991, p.29). Com esse presente
ambíguo, dado por Zeus, surge a necessidade do trabalho, em conseqüência do pecado de
Prometeu. Tal qual ocorre com o homem no mito de Pandora, Adão vivia confortavelmente
nas terras do jardim do Éden, o que não significa que não iria trabalhar. Há aqui uma distinção
entre trabalho (érgon) e trabalho árduo (ponos), notados também no “Mito de Prometeu e
Pandora” (LAFER, 1991, p. 63). Sobre esse aspecto duplo da noção de trabalho, nos
deteremos mais adiante. Tanto no Mito de Prometeu e Pandora, quanto na tradição judaico-
cristã, o ato de infração perante os deuses, descrito em metáfora, proporciona outra condição
de vida aos homens, cujo ponto de confluência entre esses mitos reside no fato declarado de
legar ao trabalho a ideia de pena. O ato de inobediência do homem condenou-o ao árduo
labor. Nesse sentido, pode-se afirmar que foi o (árduo) labor, mediante a dor da labuta, que
revelou o ser instintivo, desvelando num só ato a humanidade do homem. O mito da queda de
Adão aponta para uma cisão. O homem abandona seu estado de ser-da-natureza e transforma-
se num ser espiritual16. A natureza é para ele agora o ponto inicial de sua existência; deve
transformá-la, satisfazendo suas necessidades mediante o fabrico de objetos.

16
Espírito (finito) aqui entendido como alma ou intelecto, conceito estrito, de emprego
filosófico utilizado por Descarte e Hegel; “a substância na qual reside o pensamento”
(ABBAGNANO, 1999, p. 354). O homem possui uma existência exteriorizada; é um ser
animal pertencente a natureza, subordinado a dominação de suas leis. Todavia, ele também é
um ser espiritual. Mesmo sendo apenas corpo é preciso lembrar que perpassa na existência
desse corpo sentimentos como amor, amizade, paixão, desejo, tristeza, etc, são, sim, relações
físicas que não justificam, no intuito de compreensão dos fenômenos a ambivalência
corpo/alma, tal qual sempre colocou o platonismo e o cristianismo. Conceber-se homem, na
dimensão por ora abordada é procurar em si, não noutro lugar as razões do sentido de sua
33

O estado de inocência em que vivia o homem (ser-da-natureza, ser-em-si)


denotava um estado em que ele, o homem, se integra a natureza não se diferenciado dela (ser
para si). É só com o despertar da consciência, sabendo sobre o bem e o mal, que Adão rompe
com a unidade do seu ser imediato. Lembremos o trecho bíblico em que Deus fala ao
homem:

Então disse o SENHOR Deus: Eis que o homem é como um de nós, sabendo
o bem e o mal; ora, para que não estenda a sua mão, e tome também da
árvore da vida, e coma e viva eternamente, o SENHOR Deus, pois, o lançou
fora do jardim do Éden, para lavrar a terra de que fora tomado (PEIXOTO,
[19--?d], cap. 3, vers. 22, p. 7).

A infração do homem eleva-o a uma nova perspectiva existencial, ganhando mais


um atributo que só ele, Deus (e seus anjos) possuíam: o conhecimento. Portanto, aqui o
conhecimento é tido como divino, e foi só mediante o conhecer que o homem concretizou sua
vocação original como ser feito a imagem de Deus (HEGEL, 1995). Yahvéh expulsa o homem
do paraíso, e põe anjos querubins guardando o caminho de acesso a árvore da vida
(PEIXOTO, [19--?e], cap. 3, vers. 23, p. 7). O homem, agora decaído, seguramente é mortal,
finito; mas no conhecer é infinito (HEGEL, 1995).
Ao receber de Yahvéh o benefício da vida fora do jardim do Éden é dado também
ao homem a obrigação de prover e suprir suas necessidades materiais, até que ele, Yahvéh,
tenha entendido ter chegado a hora de alforriá-lo do fardo de sua lida. Nesse sentido, é que,
para o cristão, só mediante o tão ansiado retorno a Deus, seja em decorrência da morte, seja
por meio da segunda vinda do filho de Deus, é que se fará cessar todo sofrimento terreno,

existência no mundo. O que não implica considerar a ausência de espiritualidade na existência


humana, pela suposta vacância do sagrado. Nosso corpo bem como toda a sensibilidade que
ele carrega, consiste, na “fonte primeira das significações que vamos emprestando ao mundo
ao longo da nossa vida” (DUARTE JÚNIOR, 2003, p. 130). É nessa perspectiva que para
Morin corpo e espírito constituem um indivíduo dotado da qualidade de sujeito. É o que
denomina de unidade múltipla, uno múltiplo. O homem é ao mesmo tempo racional (homo)
sapiens e demens (louco) e também mágico, erótico, vingativo e não existe no contexto
existencial humano nítida fronteira entre a razão e a dês-razão, entre corpo e espírito. O
espírito, não significa algo separado do corpo, divino, mas uma esfera pensante que produz
uma esfera espiritual objetiva, que tem por atividades superiores a inteligência, o pensamento
e a consciência. O homem forma, pois, uma unidade com a vida e tudo que ela trás;
sofrimento, alegria, desespero, desilusões e esperança. Nesse sentido conhecer-se a si mesmo
significa conhecer-se a si mesmo enquanto homem. Ao colocar que “ninguém pode ser mais
que um homem” (GROETHUYSEN, 1953, p. 236) imprime uma dimensão psico-sócio-
cultural ao conceito de homem (como Edgar Morin ao colocar a hominização). O humano não
vai mais longe que sua condição de homem, permanece sempre na esfera vital.
34

isto é, todo o trabalho. Tem-se aqui, com o advento da outra vida, o início de uma espécie de
aposentadoria compulsória e eterna, mas que enfim proporcionada pela merecida graça divina,
desejada, alcançada e usufruída ao lado do eterno. Note-se que para o trabalhador envolto na
mais-valia absoluta – aquele tipo de trabalho fastidioso e fabril, cujo produto é apropriado
pelo empresário, exceto o insuficiente salário pago pelas horas despendidas – a auto-
realização se dá fora da vida laboral. O sentido da vida se situa à margem do trabalho, no
pouco tempo que lhe resta, nos momentos de lazer e entretenimento, num momento não-
produtivo. O tempo de lazer serve principalmente como fuga do trabalho, alívio e
revigoramento de suas forças. Todavia, paradoxalmente ao se aposentar o indivíduo vê sua
vida esvaziar-se de sentido, precisamente por enxerga-se como pessoa improdutiva, inútil aos
interesses do mundo produtivo capitalista. É claro que a própria de ideia de precarização do
trabalho (trabalho atípico, terceirização, contratos temporários, forma de prestação de serviços
diferente do modelo convencional), na impossibilidade do acesso ao trabalho para sustento de
suas necessidades, o indivíduo, mais precisamente a classe-que-vive-do-trabalho, como
denominou Antunes (2005), passa a enxergar a exploração capitalista um flagelo menor que o
desemprego. O proletário, como o cristão, perde sua vida para ganhá-la (GUSDORF, 1981).
Ressaltando-se que a visão cristã aponta um alento para o sofrido homem-cristão- trabalhador.
Embora, metaforicamente falando, o cristão perca sua vida (ao renunciar os projetos terrenos),
terá lugar garantido no reino dos céus, conforme esperançosamente aponta os apóstolos Paulo,
Marcos e João: “[...] sim, na verdade, tenho também como perda todas as coisas pela
excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; pelo qual sofri a perda de todas
estas coisas, e as considero como refugo, para que possa ganhar a Cristo” (PEIXOTO, [19--
?pp], cap. 3, vers. 8, p. 865); “Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a
sua vida? ” (PEIXOTO, [19--?pp], cap. 8, vers. 36 p. 865); “[...] quem ama a sua vida, perdê-
la-á; e quem neste mundo odeia a sua vida, guardá-la-á para a vida eterna ” (PEIXOTO, [19--
?jj], cap. 12, vers. 25, p. 784).
A felicidade do cristão não reside no trabalho e sim no descanso (eterno). A
própria existência é tida como uma mera e efêmera passagem do mundo miserável, para o
eterno lar celestial. Nessa expectativa (da fé cristã), reside a beatitude, ou seja, a bem-
aventurança do cristão. Já na Grécia antiga, de um modo geral, o trabalho é apresentado como
penoso. Mas é necessário, além de proporcionar resultados. As glórias sempre são
acompanhadas pelo suor e a fadiga. Os gregos viam nos feitos heróicos uma maneira
individual de se eternizar na lembrança dos homens. A vida, semelhantemente à visão
hebraica do trabalho, mesmo na labuta, era preterida. Num último exemplo, veja-se o caso de
35

Odisseu, narrando o momento em que desce ao Hades, mundo subterrâneo dos mortos, o
correspondente ao inferno na concepção cristã. Homero descreve o momento em que Odisseu
louva Aquiles por seus feitos em vida, ao que o herói responde: “Não tente consolar-me a
respeito da morte nobre Odisseu. Preferia estar sobre a terra e servir na casa de um homem
pobre, de poucos recursos, que ser o soberano de todos os cadáveres, de todos os mortos”
(HOMERO, c2009, p. 257-258, tradução nossa)17. Aquiles considerava que seria melhor
servir (mesmo na tortura) em vida, do que ser senhor num outro mundo, além deste.

2.2 O TRABALHO COMO VOCAÇÃO: O CUMPRIMENTO DA VONTADE DIVINA NO


MUNDO PELA PROFISSÃO

Já foi assinalado em linhas precedentes que o homem situado temporalmente no


Novo Testamento vivia sob a promessa do retorno de Cristo, portanto, não há projetos para o
plano terreno. Ele tinha plena convicção de que as promessas escatológicas feitas por Jesus
em vida e supostamente no momento de sua ascensão aos céus, seriam concretizadas com
brevidade. A doutrina cristã baseada no anseio pelo reino dos céus traz para os crentes o
desejo de evasão deste mundo. Nessas ideias reside a essência do cristianismo e estão
expressas e disseminadas nas suas mais diversas vertentes. O protestantismo 18 luterano não
nega essa premissa cristã fugidia ao mundo, mas acentua que o cristão deve agradar a Deus
cumprindo seus deveres mundanos aqui, no mundo19, como os fez Jesus até completar seus
trinta e três anos, diferentemente do que ocorre na prática do monge, que se distanciando da
vida mundana, isola-se nos mosteiros. Como observa Weber (2004, p. 73):

17
“No intente consolarme de la muerte noble Odiseo. Prefiriría estra sobre la tierra y servir em casa de um
hombre pobre, aunque no tuviera gran hacienda, que ser el soberano de todos los cadáveres, de todos los
muertos” (HOMERO, c2009, p. 257-258).
18
São ideias postas por Weber na A ética protestante e o espírito do capitalismo. O texto antes de tudo, refere-
se a um estudo sociológico sobre o início da cultura capitalista na modernidade. O ponto de partida do texto de
Weber é um fenômeno de grande repercussão, evidenciado na imprensa católica da época. Trata-se do caráter
predominantemente protestante dos proprietários do capital e empresários. Ele afirma que os protestantes não
só era maioria, como eram também os mais qualificados entre os empregados católicos que ocupavam postos
de trabalho que exigiam melhor qualificação técnica. Os protestantes mostravam-se muito mais ávidos aos
negócios que os católicos. Para o autor a ética e as idéias protestantes (puritanas) exerceram influência no
desenvolvimento do capitalismo.
19
Famosa é a passagem bíblica onde Jesus assume seu compromisso, também, de cidadão
desse mundo, ao responder aos fariseus que lhe indagavam a cerca do tributo: “Daí, pois, a
César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (PEIXOTO, [19--?dd], cap. 22, vers. 21, p.
711). Vê-se aqui, aqui a delimitação clara de duas esferas de poder. Aqui, nessa passagem
bíblica, no entender de Teixeira (1969, p. 127), Jesus “lançou as bases de uma dualidade de
forças de organização, Deus e César, em que se pode lobrigar um princípio de liberdade,
implícito na limitação inevitável do poder de César”.
36

a conduta da vida monástica é encarada não só como evidentemente sem


valor para justificação perante Deus, mas também como produto de uma
egoística falta de amor que se esquiva aos deveres do mundo. Em contraste
com isso, o trabalho profissional mundano aparece como expressão exterior
do amor ao próximo, o que de resto vem fundamentado de maneira
extremamente ingênua e em oposição quase grotesca às conhecidas teses de
Adam Smith, em particular quando aponta que a divisão do trabalho coage
cada indivíduo a trabalhar para outros.

Essa, na concepção do protestantismo, é a vocação20 profissional do homem: uma


missão dispensada por Deus, um novo (e único) viés de salvação, um meio de o crente
legitimar, ainda no mundo, seu chamamento cristão. É o que Lutero defende.
A concepção luterana de vocação profissional, aqui posta, está ainda sobre a égide
do tradicionalismo econômico, uma ideia que parte da crença inconteste de que o crente
deveria aceitar sua condição econômica e social, seja ela qual fosse, pois assim fora permitida
por Deus. Considerava-se que enquanto o Senhor não viesse buscar os salvos escolhidos, que
se aguardassem cada qual na sua posição social terrena, contentando-se com o seu ganha-pão,
pois tal condição fora permitida pela vontade divina. A vocação em Lutero é, portanto,
“aquilo que o ser humano tem de aceitar como desígnio divino, ao qual tem de se ‘dobrar’”
(WEBER, 2004, p. 77) e o trabalho é um instrumento de resgate.
De um modo geral, no protestantismo ascético 21, especificamente no puritanismo
inglês originado do calvinismo, o trabalho diário e metódico é tido não só como para
cumprimento da vontade divina, mas existe, sobretudo, para exaltar a glória de Deus. Nessa
concepção o trabalho exigido por Deus é o trabalho profissional, pois “a ênfase da ideia
puritana de profissão recai sempre nesse caráter metódico da ascese vocacional, e não, como
em Lutero na resignação à sorte que Deus nos deu de uma vez por todas” (WEBER, 2004, p.
147). E por que apenas o trabalho profissional recebe a anuência de Deus? Porque segundo as
várias correntes do protestantismo ascético a profissão enquanto atividade racionalizada,
20
Uma das técnicas usadas para assegurar maior produção, pelo empreendedor moderno, era o
pagamento de salário por tarefa. Com o intuito de beneficiar sua produção e fazer com que o
trabalhador produzisse mais, o empresário proporcionava um aumento de remuneração do
trabalhador, que nesse caso, optava por trabalhar menos, uma vez que ganharia o mesmo
salário, independentemente da produção. O apelo pela oferta de um maior salário, nesse caso,
fracassou, tenta-se então a redução de salários com o objetivo de fazer o trabalhador produzir
mais. Mas a diminuição do salário também não estimula a produção. Qual a solução para esse
impasse? O trabalho como dever. A ideia de vocação numa profissão (WEBER, 2004).
21
A ascese é o controle austero e evitação metódica à todos os prazeres efêmeros do mundo. Weber (2004)
distingue dois tipos de ascese. A ascese extramundana, do monge, com sua prática fora do mundo, e a ascese
intramundana, do protestante puritano, que permite ao fiel cumprir no meio do mundo a vontade de Deus em
evitação metódica de todos os prazeres mundanos.
37

disciplina a conduta cotidiana do crente, evitando sua dispersão para às coisas do mundo,
eludindo que se gaste mais tempo vadiando que trabalhando. O homem tem de preencher o
tempo que lhe foi dado com o trabalho profissional, até mesmo os que já são possuidores de
riquezas, devem trabalhar para cumprir sua via-crúcis terrena. Perder tempo é considerado um
pecado. Para os puritanos, são sempre os ociosos em sua profissão que não acham tempo para
Deus. O trabalho apresenta-se como preventivo às tentações e no cultivo de uma vida regrada,
metódica e santificada. A ascese protestante intramundana confere ao trabalho um modo de
racionalização, imprimindo-lhe um caráter sistemático e metódico (WEBER, 2004). Nesse
sentido, dado seu caráter de controle severo, inibe o gozo das posses, ao mesmo tempo em
que quebra as correntes que limitavam a ambição ao lucro, legalizando-o mediante a vontade
divina. Combate-se por um lado o consumo do luxo, por outro, como forma compensativa,
libera-se o enriquecimento, embora em caráter acumulativo e sem usufruto das benesses
materiais, diferentemente do que irá ocorrer na contemporaneidade com os protestantes neo-
pentecostais, onde se adota o usufruto imediato das posses. Para os calvinistas não era pecado
ser rico, pecado seria usar a riqueza para satisfazer os prazeres e desejos mundanos e a
concupiscência da carne, contrariando aos preceitos divinos. A riqueza, além de moralmente
lícita, é considerada um mandamento. Querer ser pobre é que seria condenável. Nessa direção,
uma profissão é útil aos olhos de Deus quando se orienta pela capacidade que tem de dar
lucro. Ressalte-se, que o trabalho é, nesse sentido, um sinal que reforça a condição de
escolhido, de salvo, de eleito de Deus. O crente, de certo modo, deveria usar a sua vocação
profissional para conseguir o lucro. Daí a valorização religiosa do trabalho profissional, sem
descanso, ininterrupto e metódico.
A ascese protestante constrói seu caminho a partir da fuga do mundo pecaminoso
em direção ao trabalho. A ascese intramundana orienta o puritano a servir ao Senhor pelo
trabalho,eis porém algo ainda mais importante: a valorização religiosa do trabalho
profissional mundano, sem descanso, continuado, sistemático, como meio ascético
simplesmente supremo e a um só tempo comprovação o mais segura e visível da regeneração
de um ser humano e da autenticidade de sua fé, tinha que ser, no fim das contas, a alavanca
mais poderosa que se pode imaginar da expansão dessa concepção de vida que aqui temos
chamado de espírito do capitalismo. E confrontando agora aquele estrangulamento do
consumo com essa desobstrução da ambição de lucro, o resultado externo é evidente:
acumulação de capital mediante coerção ascética à poupança (WEBER, 2004).
Foi então, com as visões religiosas influenciadas pelas formas puritanas do
protestantismo, que se deu o surgimento da racionalização econômica do trabalho, de um
38

modo de trabalhar (e viver) racional, influenciado pelo controle austero aos prazeres
mundanos. A ideia geral é: “obrar no mundo para produzir, mas com pleno desapêgo ao
produto, sòmente para a glória de Deus; uma ascética atividade febril; um trabalho dirigido
aos bens econômicos, às riquezas, com o espírito voltado para o eterno [sic]” (BATTAGLIA,
1958, p. 132).
A explicação religiosa da vocação foi de extrema importância para justificar as
divisões do trabalho no capitalismo, pois estas divisões não poderiam parecer injustas, visto
que cada indivíduo desempenhava a função que Deus havia lhe destinado. O trabalho
vocacional era um instrumento de ascese e, ao mesmo tempo, um meio seguro de preservar a
fé. A perspectiva da abordagem cristã sobre o trabalho se apresenta como essencial para se
pensar este na cultura moderna e ocidental. Acima de tudo porque nesse contexto, para o
cristão, a vida só ganhará sentido fora do trabalho, no ócio (ou no descanso eterno), pois o
labor castiga o homem, sempre lembrando sua condição de destituído do paraíso. A análise
weberiana mostra-se de extrema relevância por desvendar a mudança, num determinado modo
de vida, posta pelo protestantismo, que fez do trabalho profissional (um Beruf), um ofício,
uma vocação, desempenhada aqui, no mundo.

2.3 MAGOS, SACERDOTES E PROFETAS: SOBRE A ORIGEM (RELIGIOSA) DAS


PROFISSÕES

Para Weber ([19--?] apud DUBAR; TRIPIER, 1998) a ideia de profissão


relaciona-se de modo estreito com a prática religiosa dos magos, sacerdotes e profetas. Para
esse sociólogo alemão o domínio da atividade religiosa é o seio da existência comunitária,
cuja principal função é regular as relações existentes entre os homens e as divindades,
mediadas por um corpo de especialistas encarregados da gestão dos bens de salvação. É na
religião de Yahvéh que Weber mais enfaticamente observa o essa evolução ético-racional. A
religião, nesse contexto, se encerra num processo de racionalização, com normas, sendo
constituída por pessoas (sacerdotes) especialmente preparadas para o exercício de funções
específicas. A igreja, enquanto empresa de bens de salvação, é considerada como espaço onde
é assegurada a produção, a reprodução e conservação bem como a difusão desses bens
simbólicos. E não é só, a igreja
apresenta inúmeras características de uma burocracia (delimitação explícita
das áreas de competência e hierarquização regulamentada das funções, com
a racionalização correlata das remunerações, das ‘nomeações’, das
‘promoções’ e das ‘carreiras’, codificação das regras que regem a atividade
39

profissional e a vida extraprofissional, racionalização dos instrumentos de


trabalho, como o dogma e liturgia, e da formação profissional, etc.) e opõe-
se objetivamente à seita assim como organização ordinária (banal e
banalizante) opõe-se à ação extraordinária de contestação da ordem ordinária
(BOURDIEU, 1974, p. 60).

No âmbito dessa discussão, mais precisamente no que concerne na racionalização


das práticas e crenças religiosas, destacam-se três tipos sociais; o mago, o profeta e o
sacerdote, em certo sentido, detentores do monopólio da gestão do sagrado. A importância do
mago, nesse contexto, mostra-se fundamental, pois ele é possuidor de carisma, dom
extraordinário, que o capacita a incorporar outras potestades, autoridade que o profano não
possui. Nos termos colocados por Weber (1994, p. 280):

Não parece demonstrável que determinadas condições econômicas gerais


sejam o pressuposto do desenvolvimento da crença nos espíritos. O que mais
a fomenta, bem como toda abstração nesta área, é o fato de que os carismas
‘mágicos’ inerentes a s seres humanos limitam-se a pessoas especialmente
qualificadas, construindo assim a base da mais antiga de todas as
‘profissões’ – a do mago profissional. O mago é uma pessoa
carismaticamente qualificada de modo permanente, em oposição a pessoa
comum, o ‘leigo’, no sentido mágico do conceito.

Weber (1994, p. 158, 159) entende por carisma:

uma qualidade pessoal considerada extracotidiana (na origem, magicamente


condicionada, no caso tanto dos profetas quanto dos sábios curandeiros ou
jurídicos, chefes de caçadores e heróis de guerra) e em virtude da qual se a
atribuem a uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanos
ou, pelo menos, extracotidianos específicos ou então se a toma como enviada
por Deus, como exemplar e, portanto, como ‘líder’ [sic].

O carisma é uma espécie de dom, que só é passível de ser despertado e


experimentado e nunca aprendido.
O mago deve possuir confirmação carismática, para obter o reconhecimento dos
leigos. O mago é uma figura respeitada na comunidade por encarnar diversas formas a ser
cultuada, cada uma, de acordo com a sua esfera de influência na vida. Essas potências passam
a ser veneradas por grupos domésticos distintos, o que se traduz em crenças e práticas
religiosas diversas, logo em tensões hegemônicas, uma vez que passam a representar grupos
comunitários diversos. Nesse sentido, a sujeição de grupos políticos a um deus local ganha a
dimensão universal. Foi assim com Yahvéh o deus único, o deus dos escolhidos. Guerrear
contra um grupo nesses termos significaria guerrear contra outro deus. Nessa guerra entre
40

grupos, logo entre deuses, define-se a ideia de bem e mal (deuses e demônios) onde, os
deuses, causa de culto e sacrifícios, inclinam-se a superar os demônios, encantados pela
magia, dos magos. O mago, espécie de micro-empresário independente que atua em tempo
parcial, é um prestador de serviços, solicitado por particulares em troca de uma remuneração,
“sem que para isso tenha sido especialmente preparado, além de não contar com qualquer
calção institucional (e operando quase sempre de maneira clandestina)” (BOURDIEU, 1974,
p. 68-69). O mago, como coloca Weber (1994, p. 303) “é freqüentemente pregador de
divinização; às vezes somente isto”. O mago atua amparado por seu carisma (dom) pessoal,
tal qual o profeta, só que este atua em favor dos deuses (não dos demônios) anunciando uma
doutrina religiosa ou preceitos divinos. O profeta, ao contrário do mago, presta seus serviços
gratuitamente, não lhe é permitido fazer de sua missão um ofício. O profeta é o portador da
(única) voz divina. O Senhor Yahvéh é quem anuncia (e sentencia) que “o profeta que tiver a
presunção de falar alguma palavra em seu nome, que este não lhe tenha mandado falar, ou o
que falar em nome de outros deuses, esse profeta morrerá” (PEIXOTO, [19--?i], cap. 18, vers.
20, p. 159). Yahvéh como deus único, descrendencia não só outros deuses, como também,
encantadores, feiticeiros e adivianhadores, tipos sociais situados a margem da empresa de
salvação:

Quando entrares na terra que o SENHOR teu Deus te der, não aprenderás a fazer
conforme as abominações daquelas nações / Entre ti não se achará quem faça passar pelo
fogo a seu filho ou a sua filha, nem adivinhador, nem prognosticador, nem agoureiro,
nem feiticeiro; / Nem encantador, nem quem consulte a um espírito adivinhador, nem
mágico, nem quem consulte os mortos; / Pois todo aquele que faz tal coisa é abominação
ao SENHOR; e por estas abominações o SENHOR teu Deus os lança fora de diante de ti /
Perfeito serás, como o SENHOR teu Deus / Porque estas nações, que hás de possuir,
ouvem os prognosticadores e os adivinhadores; porém a ti o SENHOR teu Deus não
permitiu tal coisa / O SENHOR teu Deus te levantará um profeta do meio de ti, de teus
irmãos, como eu; a ele ouvireis [...] (PEIXOTO, [19--?h], cap. 18, vers. 9-15, p. 159).

Desde os tempos do Antigo Testamento e mesmo nos tempos apostólicos do


cristianismo, era exigido ao profeta que exibisse prova da posse dos seus dons. O profeta é um
emissário de Deus, logo, é responsável por externar a satisfação ou insatisfação divina para
com os homens. Foi assim com o profeta Natã, porta voz de Deus, usado para dar consciência
moral ao Rei Davi da injustiça que havia cometido no seu reino. Davi havia deitado com uma
mulher casada e enviado seu marido pra guerra, colocando-o na linha de frente da batalha,
para que logo fosse ferido e morresse, e assim aconteceu. O profeta repreende Davi, e em
nome de Deus, imputa-lhe uma pena (PEIXOTO, [19--?j], cap. 11, vers. 12, p. 251).
41

Já outro tipo social citado por Weber, o sacerdote, atua em virtude da legitimação
do seu cargo. A natureza de sua missão funda-se numa doutrina ou mandamento, não na
magia. Trata-se de um funcionário membro de um empreendimento de bens religiosos Por
que funcionário? Por que

O termo ‘funcionário’ significa, para Weber, que a característica essencial de


um clérigo é a ‘especialização de uma empresa cultural regularmente
exercida por um círculo de pessoas em relação com determinados grupos
sociais’. Esta definição não diferencia somente o sacerdote do mágico. Para
melhor compreender toda a inclinação, faz-se necessário intervir uma
terceira figura essencial: o profeta, ‘portador de revelações metafísicas ou
ético-religiosas’, figura contestatória da ordem clerical. Sem esquecer
aqueles que participam dos cultos sem serem sacerdote e que os profetas
procuram influenciar só no plano ético, os leigos (WEBER, 1971 apud
DUBAR, 1998, p. 431)

A legitimação da prática do mago ou feiticeiro dava-se pelo carisma, já a do


sacerdote ganha uma sistematização. Na intenção de extinguir a influência dos mágicos, o
sacerdote deve atender às expectativas dos leigos, para isso deve ser além de pregador,
profeta, um diretor de consciências exercendo uma educação carismática de maneira a
revelar a mensagem religiosa mediante princípios éticos e culturais, mantendo o monopólio
sobre os acessos legitimados à salvação.
O sacerdote para suplantar os mágicos, precisa atender as necessidades concretas
de sua comunidade, de suas ovelhas, e orientar seus passos, diante das necessidades práticas
de suas vidas. Mas é a vocação pessoal que diferencia o profeta do sacerdote. Como já
colocado, o profeta tem sua autoridade respaldada no carisma, já a autoridade do sacerdote se
legitima perante os fiéis, em virtude dele, o sacerdote, estar a serviço de uma sagrada tradição.
Weber considera, no entanto, que se apresentam dificuldades no âmbito do saber
sociológico, tal qual ocorre com outros fenômenos, ao se tentar estabelecer limites conceituais
entre os termos; mago e sacerdote. Os sacerdotes são funcionários, detentores de um saber
específico, possuem uma doutrina já estabelecida, bem como uma “qualificação profissional”.
Os magos possuem carisma, dons que se converterão em prodígios, ou no caso do profeta,
revelações. Mas o sacerdote nem sempre pode ser definido por ser detentor de um alto grau de
saber, uma vez que, até mesmo em grande parte das religiões, entre elas o cristianismo,
mostram-se presente em seus cultos, aspectos carismáticos. Weber mesmo coloca que o padre
“era um mago que operava o milagre da transubstanciação e em cujas mãos estava depositado
o poder das chaves” (WEBER, 2004, p. 106) e a quem se recorria para expiação dos pecados.
42

A diferença, entretanto, deve ser buscada a partir de seus respectivos campo de saberes; o
empirismo-técnico do mago versus a disciplina racional do sacerdote (WEBER, 1996).
O mago e o profeta são portadores de um saber prático, embora sistemático,
empírico. O sacerdote pertence a uma instituição (igreja), reprodutora de bens simbólicos,
mediante o que Bourdieu chama de “uma ação pedagógica expressa” (BOURDIEU, 1974, p.
40).
O sacerdote domina um conjunto de normas e conhecimentos organizados e
sistematizados por especialistas pertencentes ao corpo institucional. Em última palavra, é
assim, que Weber define o que se pode chamar de primeiras estruturas profissionais, pautadas
primeiramente na legitimidade carismática e na racionalização das crenças e das práticas
religiosas.

2.4 A HOMINIZAÇÃO PELO TRABALHO

Situando o trabalho fora da perspectiva mítico-religiosa, Engels (1985) declara


com firmeza que se trata de uma prática que desempenha na história um importante papel no
processo de hominização, na transformação do macaco em homem. Para consumir, o homem
primeiro transforma a natureza, a matéria prima, diferentemente dos outros animais. Ao
caminhar ereto, nossos antepassados passam a dispor das mãos e as especializa construindo
ferramentas que permitam sua sobrevivência no âmbito do concorrido habitat. Os outros
animais eram capazes, mediante a força das garras e o uso da mandíbula, de imobilizar suas
prezas. O homem precisará de ferramentas para compensar a ausência desses atributos físicos,
fundamentais no mundo pré-histórico à sobrevivência. Não éramos, nesse ambiente primitivo,
nem os mais fortes nem os mais ágeis, portanto, a sobrevivência da espécie humana
dependerá de outros fatores; do uso de ferramentas que potencializará a força do homem. De
outro modo, poderíamos ser extintos. Assim,

somente pelo trabalho, por sua adaptação a manipulações sempre novas, pela
herança do aperfeiçoamento especial assim adquiridos dos músculos e
tendões (e, em intervalos mais longos, dos ossos; e, pela aplicação sempre
renovada, desse refinamento herdado, a novas e cada vez mais complicadas
manipulações), a mão humana alcançou esse alto grau de perfeição por meio
do qual lhe foi possível realizar a magia dos quadros de Rafael, das estátuas
de Thorwaldsen, da música de Paganini (ENGELS, 1985, p. 217).

O uso das mãos na produção de meios para sua própria subsistência marca o
princípio de dominação da natureza pelo homem. A princípio pela confecção manual de
43

ferramentas rudimentares para sobrevivência, como armas para caça e pesca, utensílios e
vestuário, para em seguida e no decorrer dos tempos, ser utilizada no desempenho de
atividades cada vez mais complexas.
Por isso Engels (1985) afirma: “a mão não é apenas o órgão do trabalho: é
também produto deste”. Marx e Engels (1986a, p. 27) reforçam a ideia assinalando que “o
primeiro ato histórico destes indivíduos, pelo qual se distinguem dos animais, não é o fato de
pensar, mas de o de produzir seus meios de vida” e, ainda, sublinhando em tom de insulto ao
sagrado, diz; foi o trabalho (e não Yahvéh) que criou o homem (ARENDT, 2001). Ou seja, o
trabalho (em sentido lato) na perspectiva marxiana, desvelou a humanidade do homem,
propiciando-lhe a consciência de si, do outro e do seu mundo. O trabalho é tido como
categoria fundante da sociedade na teoria marxiana, isso porque Marx o considera como
primeiro ato histórico, pois se leva em conta que o homem, antes de qualquer coisa, tem que
“comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisa mais”, ou seja, o homem
primeiramente terá de suprir suas necessidades materiais básicas (MARX; ENGELS, 1986a,
p. 39). O trabalho se apresenta como gerador de um valor vital, e, não apenas mercantil e
monetário como demarca o capitalismo.
Mas essa etapa fundamental ao processo de hominização veio acompanhada da
aquisição de outros atributos distintivos da espécie humana em relação aos nossos ancestrais
simiescos. A partir do uso das mãos, na confecção de ferramentas e utensílios, a cada nova
invenção, aumenta-se o campo perceptivo do homem. Mediante os conhecimentos exigidos
pelo trabalho o homem se educa a cada novo projeto empreendido. Nesse processo de
hominização, a caça desempenha um importante papel. Para Morin (1979, p. 68) trata-se de
um elemento chave no terreno das transformações antropológicas, pois, “a caça intensifica e
complexifica a dialética pé-mão-cérebro-instrumento, a qual, em compensação, intensifica e
complexifica a caça”. A caça faz com que o homem, enquanto animal presa, futuro animal
predador, faça uso da inteligência para criar táticas para sua sobrevivência. Lutar pela
sobrevivência num habitat tão complexo e diverso estimula no homem suas “aptidões
estratégicas: a atenção, a tenacidade, a combatividade, a audácia, o ardil, o engodo, a
armadilha, a espreita” (MORIN, 1979, p. 67). A caça é, portanto, um fenômeno humano
total. Ela atualiza novas habilidades, ao mesmo tempo em que acentuam outras pouco
utilizadas, assim como possibilita o surgimento de outras, pois, é no âmbito do ecossistema,
co-produtor e co-organizador dessa atividade de subsistência, que o homem irá desenvolver
seus atributos físico-biológico-sócio-culturais. São transformações que tiveram impacto no
desenvolvimento do indivíduo na sociedade e na espécie humana de um modo geral. A caça,
44

como atividade fundamental à sobrevivência humana, nesse sentido, colabora na ampliação


do uso dos atributos físico-biológico-sócio-culturais, bem como contribui para que se utilize a
inteligência no fabrico de instrumentos cada vez mais revolucionários. Como instrumento
imprescindível a sobrevivência do homem além da utilização no provimento do alimento, o
arco e a flecha constituem na história uma invenção bélica revolucionária. Até então, armas
como o machado ou a lança, eram quase que descartáveis. Na perseguição aos animais, ao
arremessar o machado ou a lança, o objeto facilmente se perdia por entre a densa floresta. No
caso da flecha, o arco, parte principal dessa arma portátil, fica sempre com o usuário, para
imediatamente de novo ser utilizada por outra flecha.
O trabalho contribui para aglutinar os homens, que, para preservarem-se vivos, se
vêem necessitados da ajuda mútua. Procriando o homem passa a criar outros homens. Surge
daí uma estreita relação social entre eles que no decorrer dos tempos irá possibilitar o
surgimento de organizações sociais como a família. O aumento populacional gera novas
necessidades que por sua vez requisitam maior cooperação entre os homens. Da relação com o
outro é originado a linguagem; surge na descoberta de que “os homens em formação
atingiram um ponto em que tinha alguma coisa a dizer aos outros” (ENGELS, 1985, p. 218).
A linguagem nasce da “carência da necessidade de intercâmbio entre outros homens”, coloca
Marx e Engels (1986a, p. 43).
O processo de humanização é fortemente marcado pelo trabalho (em ação mútua
com a natureza) e pela linguagem (na comunicação do homem com seus semelhantes), como
já foi dito. Fazendo uso das mãos, em total convergência com o uso intensivo do cérebro e o
desenvolvimento e refinamento dos órgãos dos sentidos, o homem passa a valer-se de
ferramentas, instrumentos que proporcionam a multiplicação, e em certa medida a
substituição da força humana. “Mas todas essas mudanças são de natureza quantitativa, ao
passo que a própria qualidade das coisas fabricadas, desde o mais simples objeto de uso até a
obra-prima de arte, depende intimamente da existência de instrumentos adequados”
(ARENDT, 2001, p. 135). As ferramentas foram criadas para proporcionar alívio ao homem
nas atividades laborais, são produtos do trabalho e integram um mundo de uso, mas são
frutos, sobretudo, da astúcia, da perícia, da concepção engenhosa do homo-faber, homem
construtor de artefatos.
Definindo o trabalho em geral, numa passagem clássica da literatura sociológica e,
diferenciando o trabalho humano das ações instintivas dos outros animais, Marx (1983, v. 1,
p. 149-150) coloca que:
45

Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera


mais de um arquiteto ao construir sua colméia. Mas o que distingue o pior
arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de
transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um
resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador.

Mesmo nesse modo instintivo de trabalho a (consciência da) concepção, portanto,


faz a diferença. O homem transforma a natureza imprimindo-lhe o projeto que tem em mente.
Em suma, é mediante a ação mútua da mão, da linguagem e do cérebro, que no decorrer do
tempo o homem vai se especializando em desenvolver atividades cada vez mais complexas,
sempre superando suas metas. Daí o fato de Engels reafirmar a relação complexa entre a ação
das mãos e desenvolvimento dos órgãos dos sentidos.
Tivemos que direcionar sistematicamente, na medida em que se fez necessário,
um olhar mais atento para algumas questões relacionadas a algumas noções de trabalho
construídas na cultura ocidental e em diferentes campos do conhecimento. Uma das vertentes
do conhecimento utilizadas para se compreender a categoria histórica trabalho foi a religiosa,
especificamente a tradição judaico-cristã no ocidente subsidiada por uma concepção greco-
romana. Ao pecar o homem o fica condenado por Yahvéh, aquele cujo nome não se podia
pronunciar, e ter que ganhar o sustento de suas necessidades materiais com o suor de seu
rosto, metáfora usada ao trabalho para legar a ideia de árduo labor, labuta, pena. O
pensamento cristão encara o trabalho como pena para o ato pecaminoso cometido pelo
primeiro casal. O trabalho é uma via de expiação do pecado original, meio para se obter
mesmo que num plano natural, o que de Deus se havia perdido; a felicidade eterna. Na
esteira dessa concepção, na idade média, nos mosteiros, o trabalho desempenhado tinha por
objetivo apenas suprir as necessidades básicas de subsistência da reclusa comunidade
religiosa22. Os frades podiam se exercitar com serviços desempenhados no plantio e cultivo de
horta e nas oficinas. A oração, a meditação tinha prioridade até mesmo em relação ao trabalho
intelectual (ler e escrever). Entretanto, com o protestantismo o trabalho é tido como
disciplinador, sendo útil para o bem estar do fiel, da saúde do corpo e do espírito, tendo por
fim afastar a preguiça e ociosidade, grandes responsáveis, na visão cristã, pelos pensamentos
pecaminosos. Com Lutero (1483-1546) o trabalho passa a ser considerado um modo de servir

22
O trabalho, tido como sinônimo de fadiga física e moral, para os monges, possuía valor penitencial, mesmo em
se tratando de scribere (copiar) os manuscritos. Curiosamente até o século X, o ato de cultivar a terra era tido
como uma atividade laboral menos humilhante que a ação de copiar. A palavra, propriedade divina, deveria ser
utilizada para difundir a verdade (e a verdade cristã) nunca para a obtenção do lucro ou riquezas, ou qualquer
tipo de especulação mental ou material. Mas no que diz respeito a terra, doação divina, o monge considerava
que ao trabalhar com a ela, mantinha-se contanto Deus criador na lembrança de que o criador requeria que
ajudássemos a evidenciar sua fertilidade.
46

a Deus, a porta religiosa para a salvação da alma, sendo a profissão, uma vocação. Calvino
(1509-1564) entedia que o trabalho era uma virtude na qual por vontade divina o crente a ele
estava predestinado, uma vez que já tinha definida sua posição social no mundo, cabendo a
ele, Deus, decidir sobre o êxito ou a miséria do crente. O crente teria então que se contentar
com os desígnios de Deus, sem investir no vão esforço de mudar a própria sorte23. A vontade
divina é então, a resposta para a ideia da divisão do trabalho e a especialização da ocupação
do homem nas diversas profissões. Enquanto a doutrina católica condenava o lucro, a ambição
e a usura a doutrina protestante calvinista permitia o acúmulo de riquezas, pois a ideia de
prosperidade estava associada ao prêmio por uma vida santa, abençoada por Deus. Esta visão
de mundo proporcionou um novo status aos primeiros empresários, transformando-os em
referência no âmbito da sociedade.
Até aqui o conceito de trabalho foi tratado de uma maneira genérica, em seu
sentido primevo, como categoria antropológica e não no sentido abstrato contemporâneo do
termo; nas formas que assume sob as condições capitalistsa de produção, surgido na Europa a
partir do capitalismo manufatureiro. Na Bíblia observa-se um sentido contraditório ao termo,
às vezes como expressão concreta de vida, compreendido como necessidade, desígnio divino,
destino humano. Noutros momentos (Novo Testamento) como prática mundana efêmera,
apenas circunscrita à subsistência do homem produzida mediante seu próprio suor.
A concepção de trabalho como desvelamento da natureza humana, com efeito,
fica implícita na concepção ideológica e mítica judaico-cristã. Mas é preciso considerar
também que o cristianismo opera em sentido inverso, opera em prol de uma des-
humanização do homem. E mesmo considerando correntes filosóficas que defendem um
humanismo cristão, ainda assim, a centralidade da auto-realização do homem tem por
fundamento a base dos preceitos cristãos, de renúncia ao mundano. O simbólico caminho
percorrido pelos cristãos até o calvário (via crucis), até Cristo, demarca um percurso que
orienta o homem para sua não humanidade, para sua des-humanização. A própria
humanidade do Cristo encerra-se nos tormentos sofridos na cruz, quando ele pronuncia “Eli,
Eli, lamá sabactâni; isto é, Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (PEIXOTO,

23
Como coloca o próprio Paulo, na I Epístola aos Coríntios:

Cada um fique no estado em que foi chamado. Foste chamado sendo escravo? não te
dê cuidado; mas se ainda podes tornar-te livre, aproveita a oportunidade. Pois aquele
que foi chamado no Senhor, mesmo sendo escravo, é um liberto do Senhor; e assim
também o que foi chamado sendo livre, escravo é de Cristo. Por preço fostes
comprados; mas vos façais escravos de homens. Irmãos, cada um fique diante de
Deus no estado em que foi chamado (PEIXOTO, [19--?mm], cap. 7, vers. 20-24, p.
837).
47

[19--?ff], cap. 27, vers. 46, p. 718, grifo nosso), encerra-se com sua não-existência, sendo ele
figura paradigmal para os homens, o Cristo, o último Adão, personagem arquétipo da
natureza humana, homem primordial, símbolo máximo da evolução e superação das fraquezas
da natureza humana do primeiro homem Adão, meta a ser atingida por todo cristão. Em certo
sentido, quanto mais o homem se volta para Deus, tanto menos ele retém de si (MARX,
2004), de sua humanidade.
Reservado seus limites etimológicos, tanto na tradição judaico-cristã, quanto na
tradição sociológica (e antropológica), o trabalho representa uma ruptura. Ruptura
manifestada pela tomada de consciência da condição humana conferida ao homem pelo
trabalho na sua forma instintiva em decorrência de sua expulsão do jardim do Éden. Numa
das possíveis interpretações dessa narrativa mítica, é possível inferir que a saída (ou expulsão)
do Éden demarca para o homem o início de uma existência concreta, no mundo, tal qual a
criança ao sair do ventre materno. Reside, nesse contexto, a noção de trabalho em seu sentido
original, como produtor de valores de uso no âmbito da esfera da necessidade e de seu
provimento imediato. Seja como for, em ambas as concepções, estamos falando de uma etapa
importante no processo de humanização.
48

3 O TRABALHADOR DA MÚSICA: APORTES TEÓRICOS INERENTES AO


EXERCÍCIO DA PROFISSÃO MUSICAL

3.1 DEMIURGOS DO OITAVO DIA: O TRABALHO ARTÍSTICO COMO REALIZAÇÃO


CONTEMPLATIVA

Arendt (2001) propõe uma distinção para os termos labor e trabalho, ambos
utilizados já amplamente como sinônimos. Arendt (2001) ressalta que na cultura européia são
utilizadas duas palavras etimologicamente diferentes para designar o que comumente
apresenta o mesmo sentido. Só as palavras semanticamente relacionadas ao labor fazem
conotação direta à ideia de dor. Essa distinção também é ignorada na Antiguidade,
ocasionada, sobretudo, pelo desdém que homem grego atribuía ao labor. No entanto, o
desprezo pelo trabalho ou labor que tinha o homem grego, adverte a autora, não era pelo fato
dessas atividades serem destinadas aos escravos, como geralmente se coloca. Aliás, como ela
mesma pontua; a escravidão, na polis grega, não possui o mesmo sentido adquirido nos
tempos modernos: da exploração humana com fins lucrativos e obtenção de mão-de-obra
fácil, mas demonstra, acima de tudo, o empenho da exclusão do “labor das condições da vida
humana” (ARENDT, 2001, p. 95). A vocação do homem livre era dedicar-se a política e as
armas. Enquanto que para os homens não-livres lhes era confiado a produção das coisas
materiais necessárias a vida.
O labor se relaciona com a dor e a fadiga do corpo pelo esforço da providência às
necessidades materiais, assegurando aos homens, a sobrevivência, tem a ver com o labor do
nosso corpo. Já o trabalho se define como o trabalho de nossas mãos, surge com o
aparecimento do homo faber, inventor de ferramentas e utensílios, que faz e trabalha sobre
objetos, subjugando a si a natureza na busca de matéria prima. O processo de trabalho finda
quando o objeto está pronto, enquanto o labor “move-se sempre no mesmo circulo prescrito
pelo processo biológico do organismo vivo, e o fim das ‘fadigas e penas’ só advém com a
morte desse organismo” (ARENDT, 2001, p. 109). Nesses termos, o trabalho (labor) como
subsistência, provedor das necessidades do cotidiano, necessário à reprodução e manutenção
da vida, distingue-se do conceito contemporâneo do termo (trabalho) e,

só surge, efetivamente, com o capitalismo manufatureiro. Até então,


isto é, até o século XVIII, o termo ‘trabalho’ (labour, arbeit, lavoro)
designava a labuta dos servos e dos trabalhadores por jornada,
produtores dos bens de consumo ou dos serviços necessários à
49

sobrevivência que, dia após dia, exigem ser renovados (GORZ, 2003, p.
24)

Menger (2005, p. 11), também assinala a distinção para a categoria trabalho em


dois sentidos, um para designar a utilização da energia consumida na produção de objetos de
valor-de-uso ou em atividades funcionais cotidianas, e outro para assinalar o “investimento
pessoal numa criação durável candidata à admiração”. Não cabe neste trabalho aprofundar
essa questão. Por agora é suficiente anotar a existência desse duplo sentido legado ao
trabalho. Muito embora, não se tenha conhecimento no seio da civilização grega de nenhuma
palavra equivalente à ideia de trabalho, tal qual o termo hoje é concebido, havia sim, como já
colocado, palavras atribuídas ao penoso esforço humano na realização de uma atividade.
Nesse sentido, dois tipos sociais se destacam na sociedade grega quando lidamos com esse
termo: o lavrador e o artesão.
A atividade do artesão relacionava-se a um pensamento instrumental e técnico, a
um ofício, a um saber especializado (techné), cuja atividade era realizada na comodidade da
sombra, sentado, no conforto da oficina. Já os afazeres do lavrador, estavam delineados por
uma relação de representação mítico-religiosa. O agricultor ao enfrentar as reações adversas
da natureza (sol, chuva, tempestades, etc.), no seu entender, dependia diretamente das
potencialidades divinas, “o trabalho significa mais um intercambio pessoal com a natureza e
com deuses do que um comércio entre os homens” (VERNANT, 1989, p. 18). Além do que
“em antítese com o trabalho do artesão, a agricultura vem agora associar-se à atividade
guerreira para definir o campo de ocupações viris” (VERNANT, 1989, p. 15) sem temor ao
esforço físico.
Nada disso se encontra no trabalho agrícola: os únicos conhecimentos que exige
são aqueles que todos podem adquirir por conta própria, refletindo e observando. Não requer
qualquer aprendizado especial. Enquanto “cada um dos que praticam as outras artes escondem
mais ou menos os segredos essenciais de sua arte” (VERNANT, 1989, p. 16).
Assim, a presença dos deuses fazia-se notar tanto na agricultura quanto na guerra.
Na mesma medida que dependia das forças da natureza para êxito no plantio, o homem grego
dependia, em larga medida, das bênçãos dos deuses para guerrear. Diferentemente, o artesão
não se valia do acaso para o êxito profissional, mas da sua techné. Ainda que, para o
pensamento político racional da época, a agricultura estava situada no mesmo ramo das
ocupações servis, logo, igual ao ofício dos artesãos, classe que se opunha aos guerreiros e
50

magistrados. Ao comentar a respeito dos homens de ofícios na Grécia (na época clássica)
Vernant (1989, p. 59-60), coloca:

O artesão não possui a inteligência de seu método, não compreende o que


faz. Contenta-se em aplicar servilmente as receitas que lhes foram ensinadas
no decorrer de sua aprendizagem. Sua techné baseia-se na fidelidade a uma
tradição que não é de ordem científica, mas fora da qual qualquer inovação o
deixaria entregue ao acaso.

O artesão não tem a intenção de causar deslumbramento mediante a fabricação de


suas obras. Nesse contexto as técnicas resumem-se ao exercício da habilidade especializada,
que não se presta a uma reflexão crítica. É preciso, pois, ir adiante à definição da tecnhé, ou
seja, do conhecimento especializado, mencionando ainda outro conceito; a poiesis, o sentido
da ação. A techné situa seu objeto na dimensão da utilidade. Tem-se aqui então o agir (poiein)
e o sentido do agir, ou seja, a poiesis. Sobre esses conceitos observa Castro (2004, p. 55,
grifos do autor):

Na tradução para o latim, o poiein foi entendido de duas maneiras: a) como


agere / agir, como ideia de causa, ou seja, como poder agente de uma
transformação, ligado ao on-sujeito. Fala-se, então, freqüentemente em
criação; b) como ‘agir da techné’. Daí que na tradução de techné para o latim
usaram a palavra ars, artis, ou seja, arte (ligado a artista e artesão). É como
tal o ‘operar’, de onde se formou a palavra obra (de opus, operis). E como tal
a essência do trabalho. Mas o trabalho que realiza o homem em sua essência,
de tal maneira que o trabalho no sentido de poiein, essência do agir, não é o
que o homem realiza, mas o que constitui e realiza o homem.

A poiesis não é mero conhecimento; aqui predomina a essência do agir, que


ultrapassa a dimensão do conhecimento positivo e especializado presentes na techné. Muito
embora não exista poiesis sem techné (CASTRO, 2004).
Ao situar o objeto fora da dimensão de seu valor-de-uso, coloca-se a poiesis numa
dimensão inútil. É fundamental notar que o conceito de trabalho traz a discussão outros
conceitos a ele relacionados, como valor, mercadoria, utilidade. Se o conceito de trabalho faz
referência a questão do valor, tal colocação lembra um dos aforismos citados pelo escritor e
poeta Oscar Wilde (1854-1900), no prefácio do seu Retrato de Dorian Gray, quando diz:
“podemos perdoar a um homem por haver feito uma coisa útil, contanto que não a admire. A
única desculpa de haver feito uma coisa inútil é admirá-la intensamente” (WILDE, 1980, p. 8)
e completa ainda de modo imperativo: “Toda arte é completamente inútil” (WILDE, 1980, p.
8). Outra coisa é importante assinalar nessa discussão; o momento (ainda na pré-história), em
51

que o homem além de empregar seu esforço e tempo para esculpir um instrumento de caça,
um objeto de utilidade, despende igualmente sua energia e tempo na decoração de um objeto
(DE MASI, 2000), uma atitude que ultrapassa o fim utilitário do objeto, ao tempo em que põe
um sentido estético-contemplativo nos artefatos. É claro que numa abordagem mais apurada
do uso da arte na sociedade ocidental, observaremos os muitos papéis funcionais legados a
arte no decorrer dos tempos. No caso especificamente da música ela possui um valor
utilitário, seja em rituais religiosos e populares, seja como entretenimento, seja ainda aplicado
em conjunto com outras áreas do conhecimento (musicoterapia, educação). Mas esse valor
utilitário a que nos referimos de antemão não é utilitário na conotação mercantil do termo.
Sobre a ideia de “música como mercadoria” nos determos mais adiante.
Yahwéh, o ser onipotente, onisciente e onipresente da religião judaico-cristã, o
artífice supremo, cria o mundo do nada, sem fadiga, não há presente na narrativa da criação a
ideia de trabalho, pelo menos no sentido em que se dá a atividade humana. Yahwéh contenta-
se com o que cria, ele exprime, segundo descrito no livro bíblico, sua satisfação logo após a
realização das obras, contenta-se com o percurso da realização. Mas então por que ele
descansa no sétimo dia após de criado o céu e a terra e tudo nela habita? O Absoluto descansa
no sétimo dia, não para revitalização do esforço desempenhado, mas como uma pausa
contemplativa; de deleite perante a criação.
Semelhante a Yahwéh o artista jubila-se com o processo de sua concepção. A
alegria usufruída é motivada pela obra e pelo ato da realização, como coloca Barenboim; Said
(2002, p. 51), músico israelense, ao descrever a amplitude de sua realização pessoal enquanto
profissional da música:

[...] não é só a empolgação de se apresentar em público, não é a empolgação


do aplauso antes e depois; e por certo não é a empolgação de se vestir de um
jeito especial para entrar no palco. É, sim, a empolgação de conseguir
realmente viver uma determinada peça do começo ao fim sem interrupção,
sem sair dela24

24
Fazendo alusão a performance musical como metáfora à fugacidade da vida, pode-se dizer que a sensação
produzida ao se vivenciar o ato da performance é uma sensação de contentamento, similar a alegria que se tem
pela vida, mesmo sabendo que ela findará, uma alegria por vivenciar com intensidade cada momento. O erro
no palco também é vivenciado por alguns com grande intensidade, chega a ser um momento de grande
frustração, tal como as frustrações das adversidades da vida, ao passo que para outros, é mais uma
oportunidade de celebrar a vida, “a própria prática da música é uma maneira de celebrar o nada possuirmos”
(CAGE, 1995).
52

Pode-se afirmar que no trabalho artístico o ato da realização é em sua essência,


contemplativo. Como já se colocou anteriormente, os deuses não trabalham, mas os homens
precisam dedicar-se a lida. Os homens anseiam por elevar-se a condição dos deuses. Nesse
sentido, o músico pode ser considerado como um demiurgo do oitavo dia, uma referência à
epígrafe citada pelo astrofísico Reeves (2002), de autoria da escritora canadense-francesa
Maillet (2002 apud REEVES, 2002, p. 43) que diz:

Escrevo porque tenho a impressão ou o sentimento de que o mundo é


inacabado, como se Deus, que criou o mundo em seis dias e que descansou
no sétimo, não tivesse tido tempo de fazer tudo. Acho o mundo pequeno
demais, a vida demasiado curta, a felicidade insuficiente. Escrevo para
acabar o mundo, para acrescentar à criação o oitavo dia.

Tal qual o demiurgo o artista opera sobre a matéria e forma um mundo, mas
nesse caso um mundo simbólico. O artista se apresenta como senhor do seu tempo (de
trabalho e ócio), criando coisas que transcendem o valor-de-uso. Considera o trabalho não
uma pena, algo fatigante, mas antes se realiza na satisfação do ato criativo, um contentamento
expresso não só por contemplar o produto do seu esforço, mas uma satisfação que acompanha
todo o processo do seu trabalho.

3.2 DA NATUREZA SINGULAR DO TRABALHO MUSICAL NA SOCIEDADE


CAPITALISTA

O termo genialidade é com freqüência associado ao exercício do trabalho


artístico. A atividade artística dispõe de um caráter singular e inventivo. O profissional da
arte, como pensa o senso comum, se evidencia dos demais por ser dotado dessa qualidade
idiossincrática. Ainda que a palavra também possa ser usada para definir qualquer profissional
que se destaca dentre as diversas áreas de conhecimentos. É corriqueiro ouvir termos como
gênio da física, gênio da química, dentre outros. Mas, ao aduzir raciocínios que constituem
uma argumentação em torno da ideia de genialidade no processo de criação artística, outros
conceitos como talento, inspiração, dom, originalidade vem à superfície e conseqüentemente
terão de ser abordados, ou pelo menos mencionados. A genialidade é apontada como o
principal ingrediente que faz com que em um dado período histórico alguns músicos se
destaquem (mediante a criação ou realização de algo novo) de outros, ganhem notoriedade e
sobreviva à posteridade mediante o seletivo olhar de quem conta e escreve a história. Todavia,
consideramos que qualquer argüição sobre esse tema é algo bastante delicado de se abordar e
53

aqui nos mantemos cautelosos por colocar um assunto por demais complexo, uma vez que, a
pretensão de mensurar o grau de genialidade impresso numa composição musical, poderá
revestir-se de critérios totalmente abstratos e relativos. Porém, não se pode negar que no
âmbito do exercício da profissão musical conceitos como genialidade e inspiração, se
contrapõem a natureza das atividades repetitivas e rotineiras do trabalho (em seu sentido
moderno – fordista / taylorista). Nessa visão fordista do trabalho, o operário é expropriado do
seu trabalho, já o músico se enxerga detentor de sua ouvre (obra) e até compartilha com a
platéia sua realização. Contudo, enquanto alguns autores reservam à criação artística uma
dimensão quase sobrenatural (denominada por muitos de inspiração), outros a vêem fora
dessa visão romantizada e mística, assessorada (mas não dependente) pelo uso das
ferramentas técnicas25. Para Stravinsky (1996, p. 53) a inspiração “não é de forma alguma
condição prévia do ato criativo”. Embora não negue sua importância. Toda criação artística,
defende o compositor russo, tem na sua origem uma espécie de antevisão. Mas o
antecipadamente imaginado só toma forma “pela ação de uma técnica constantemente
vigilante” (STRAVINSKY, 1996, p. 54). Stravinsky (1996) ainda esclarece que prefere ser
chamado de inventor, ao invés de compositor. A ideia de invenção pressupõe uma
descoberta subsidiada pela técnica. Igualmente para o filósofo alemão Theodor W. Adorno
(1903-1969), no processo de concepção musical, o trabalho e a fantasia devem estar
intimamente ligados. Adorno (1970) define métier não como um conjunto de procedimentos
técnicos, mas como conjunto das faculdades que o artista se vale para conceber sua obra, o
que engloba os procedimentos técnicos por ele mobilizados. Diante da concepção na qual o
processo criativo é tido como fruto exclusivo da inspiração, o métier, a racionalização do
processo de produção artística, apresenta-se como destruidor da aura (aspecto único) da obra
de arte, uma vez que os procedimentos técnicos são agora reconhecidos, passíveis de serem
aprendidos, num sentido amplo; desmistificados. Essa racionalização da produção artística, na
concepção e no uso das técnicas, oferece outra visão sobre a obra de arte enquanto fruto do
sopro inspirador da criação genial. Nesse contexto é importante destacar que o texto do
crítico literário e ensaísta alemão, Benjamin (1975), a obra de arte na época da
reprodutibilidade técnica, já apontara que as modificações ocorridas nas condições de
produção da arte eliminaram em grande medida e conseqüentemente alguns conceitos

25
Até mesmo Mozart, talvez o ícone artístico máximo da atividade artística nata, pensava como estes: “Erram as
pessoas que pensam que minha arte me vem com facilidade. Eu lhe garanto, querido amigo, que ninguém
devotou tanto tempo e pensamento à composição quanto eu. Não há um único mestre famoso cuja música eu
não tenha estudado, diligentemente, muitas vezes” (MOZART, [17--] apud SOLMAN, 1991, p. 25).
54

clássicos, entre eles as noções de mistério e de valor singular e perene dos produtos26. Para
Benjamin (1975) as novas condições de produção possibilitam a reprodutibilidade do objeto
artístico, porém, mesmo deixando intacto seu conteúdo, mas desvalorizam seu hit et nunc, sua
originalidade. Benjamin (1975, p. 14) é enfático quando diz que “na época das técnicas de
reprodução, o que é atingido na obra de arte é sua aura”. Ora, com a multiplicação de cópias,
o evento, que é produzido apenas uma vez, torna-se um fenômeno de massa, possuindo agora
permanente atualidade. Nesse contexto industrial de produção, são conferidas à arte funções
inteiramente novas, uma vez que ela é agora emancipada de seu papel ritualístico, ao tempo
em que se vê modificado a atitude da massa com relação à arte, precisamente o modo de
perceber e senti-la. O antigo modo de perceber a arte exigia concentração, porém a massa
procura agora diversão. Para Adorno (1985, p. 128) tal ideia faz sentido, nesse moderno
contexto de produção, pois para ele a “diversão é o prolongamento do trabalho sobre o
capitalismo tardio. Ela é procurada por quem quer escapar do processo de trabalho
mecanizado, para se pôr de novo em condições de enfrentá-lo”. Diversão implica em esquecer
a labuta. O novo consumidor da arte, cuja atitude é desatenciosa e desinteressada, é
essencialmente um consumidor que se distrai. O culto a arte move-se para o segundo plano,
enquanto que, nesse sistema de produção capitalista, é ressaltado o culto ao astro.
No que diz respeito à genialidade, faz-se referência aqui a dois autores: Karl Marx
e Friedrich Engels. Eles não estão interessados em aprofundar e questionar a origem do
talento artístico nas pessoas, mas enfaticamente, na crítica de que o indivíduo ao se denominar
artista delimita seu campo de atuação na vida, encerrando no rótulo ocupacional artista seu
vir-a-ser:

A concentração exclusiva do talento artístico em algumas individualidades, e


correlativamente a sua asfixia na grande massa de pessoas, é uma
conseqüência da divisão de trabalho. Supondo mesmo que em certas
condições sociais cada indivíduo seja um excelente pintor, isto não excluiria
de modo algum que cada um fosse um pintor original, de tal modo que,
também nesse caso, a distinção entre trabalho ‘humano’ e trabalho ‘único’

26
De forma metafórica, o conceito de aura relacionado à arte, faz referência a uma suposta
aureola luminosa (de atribuição sobrenatural) sobre o objeto artístico conferindo-lhe um
aspecto único e possuidor de vibrações singulares, constituindo assim a própria essência da
arte, cuja experiência transcende a técnica. O que Benjamin (1975) põe em discussão é o fato
de que em decorrência da reprodução dos objetos artísticos (multiplicação e massificação),
especificamente, a partir da invenção da fotografia a arte perde sua aura. O que Aumont
(1995) coloca, comentando esse texto de Benjamin é que a natureza da aura é
simbolicamente mutável para os homens de diferentes tempos que lhe atribui de algum modo
um sentido.
55

desse lugar a um puro contra-senso. Numa organização comunista da


sociedade, o que será suprimido de qualquer modo são as barreiras locais e
nacionais, produtos da divisão do trabalho, em que o artista está encerrado,
enquanto o indivíduo deixará de estar fechado nos limites de uma arte
determinada, limites esses que fazem com que existam pintores, escultores,
etc., que são apenas isso, e o nome por si basta para exprimir
suficientemente a limitação das possibilidades deste indivíduo e a sua
dependência relativamente à divisão do trabalho (MARX; ENGELS, [198-
?], p. 235).

Numa sociedade comunista, argumenta Marx, não existiriam músicos, pintores,


atores, etc., mas pessoas que, entre outras coisas, se dedicariam às artes. O trabalho é, para
cada um, “o meio de desenvolver a totalidade das suas capacidades: falar de atividade criativa
torna-se então um pleonasmo [...]” (MENGER, 2005, p. 49). Mas e o caráter único da obra de
arte, fruto da singular inventividade artística, onde se situa? Todos se dedicariam à arte e
seriam, mesmo assim, além de excelentes artistas, seriam também “originais”? Marx não diz
exatamente isso, mas, responde firmemente a essas questões numa abordagem crítica à
divisão do trabalho dizendo que “a concentração exclusiva do talento artístico em algumas
individualidades, e correlativamente a sua asfixia da grande massa, é uma conseqüência da
divisão de trabalho” (MARX; ENGELS, [198-?], p. 234). Para Marx o caráter original
expresso em cada obra artística, não seria apenas privilégio de alguns, mas todos poderiam vir
a ser, de igual modo, originais. Se isso seria possível, dificilmente o saberemos, pois se trata
de uma hipótese formulada na perspectiva de outro modelo de organização social, um
exemplo de funcionamento social imaginado por Marx. Se há alguma espécie de
“individualismo” em Marx, ele é indiferente a necessidade de comparação entre as pessoas e
objetos, o que salientaria evidentemente as diferenças (MENGER, 2005, p. 52).
Nessa concepção de sociedade, cujos partícipes são oniscientes e polivalentes,
crítica clara a alienação do trabalho no mundo capitalista, reside um ponto que pode ser
apontado como paradoxal. Ao fazer do trabalho expressivo a base da realização individual,
Marx é induzido a ignorar um dos elementos constitutivos e essenciais das atividades
artístico-criativas: a diferença essencial entre os indivíduos e os produtos do seu trabalho,
ainda; “a identificação do indivíduo com a sua obra e a identificação pelo outro das
singularidades daquilo que se oferece ao seu deleite” (MARX; ENGELS, [198-?], p. 51).
Considerar, pois, a inventividade criativa um item comum numa sociedade supostamente
igualitária, onde não haja divisão e especialização do trabalho, pode significar desconsiderar a
própria diversidade de escolhas do indivíduo na construção do próprio devir. Sobre a noção de
singularidade do trabalho artístico é fundamental também perceber o individualismo artístico
56

como o “produto do movimento histórico de diferenciação progressiva da esfera das


actividades artísticas, e como motor da concorrência entre os artistas [sic]” (MENGER, 2005,
p. 24-25).
Essa discussão é estendida a outro filósofo contemporâneo de Marx, com quem
travará um acentuado debate. Trata-se de Max Stirner (Johann Caspar Schmidt –1806/1856)
filósofo alemão, autor de O único e sua propriedade. Stirner começa por defender dois tipos
de trabalho: a ideia de trabalho humano e trabalho único. Diz Stirner (1988, p. 308, tradução
nossa):

A organização do trabalho só diz respeito aos trabalhos que os outros podem


fazer para nós, por exemplo, o abate de animais, a lavoura, etc. Os outros
trabalhos conservam um caráter egoísta, dado, por exemplo, que ninguém
pode, em teu lugar, escrever as tuas composições musicais, executar as
pinturas que tu imaginastes, etc. Nenhuma pessoa pode substituir as obras de
Rafael. Estes últimos são os trabalhos de um indivíduo único, trabalhos que
só este ser único pode realizar, enquanto os primeiros merecem o
qualificativo de ‘humano’ [...]27.

Para Stirner há um caráter único em cada indivíduo que possibilita, em igual


extensão, que o mesmo tenha uma atuação única. A ocupação de determinados postos de
trabalho exige mais que uma formação geral para que todos possam vir a ter acesso, exigem-
se virtudes singulares presentes de forma diferenciada em cada indivíduo. Não se trata apenas
de ser único numa atividade, mas em reconhecer como singular cada maneira particular de
existência. Nesse sentido, o trabalho artístico é de natureza única.
Díaz (2002, p. 74-78) salienta como característica do indivíduo uma maneira
pessoal e singular de ser único. Para ele “cada um é pra si mesmo o próximo”. Ninguém pode
ser meu semelhante, diz o filósofo, “a não ser que, identicamente a todos os demais seres, eu o
considere minha propriedade”. Completa ainda: “tenho-me por único! Tenho, sim, alguma
analogia com os demais, mas isso não tem importância mais que para a comparação e a
reflexão; de fato, sou incomparável, Único”. A concepção de ser único em Stirner é uma
filosofia egoísta extrema, ausente de quaisquer ideias altruístas. Um modo de assinalar que no
seio da sociedade capitalista a única causa válida é a do indivíduo. Essa ideia de vida se pauta
na ausência de um hedonismo comunitário que exclui a solidariedade e cooperação e amor ao

27
“L’ organization du travail ne concerne que les travaux que d’ Autres peuvent faire pour Nous, par exemple
abattre les animaux, cultiver les champs, etc. Lês autres restent des travaux égoïstes, parce que personne, par
exemple, ne peut écrire tes compositions musicales, dessiner tes esquisses, etc...Persone ne peut remplacer lês
oeuvres de Raphaël. Ce sont celles d’un être Unique, et Seul celui-ci peut lês exécuter, tandis que l’on pourrait à
juste titre qualifier les autres d’ ‘humaines’ [...]” (STIRNER, 1988, p. 308).
57

próximo, a não ser que este o beneficie. O fato é que para Stirner a base do desenvolvimento
criador é de natureza individualista. Contudo, essas diferenças únicas e individuais
proclamadas por ele sugerem uma des-socialização do artista na visão de Marx28, que
concebe o trabalho artístico como um modelo do “trabalho não alienado, através do qual o
sujeito se realiza na plenitude de sua liberdade exprimindo as forças que fazem a essência de
sua humanidade” (MENGER, 2005, p. 49). O indivíduo não é, nesse sentido, um demiurgo à
margem (nem acima) da sociedade, ele dela faz parte. Marx, ao confrontar Stirner, se
empenha em mostrar que a originalidade e a criatividade não seriam características “únicas”
de alguns trabalhadores especializados na arte, mas supostamente poderiam vir a serem
atributos do indivíduo numa sociedade pós-capitalista, considerando que nela seria cultivado a
polivalência e a onissapiência. Embora, como já reportado antes, nessa antropologia
filosófica marxiana – tentativa de contorno das distorções da divisão e exploração do trabalho
no modelo de produção capitalista – alguns autores, como já sublinhado anteriormente,
identifiquem uma fragilidade: “a negação da necessidade de identificação de si próprio e de
negação ao outro, condição de possibilidade da organização de uma sociedade” (COHEN,
2000 apud MENGER, 2005, p. 53). A expressividade e a criatividade são características
encontradas no exercício da profissão musical. No entanto, cabe destacar que são cada vez
mais freqüentes a busca por um perfil de trabalhador criativo, flexível, com iniciativa, capaz
de resolver problemas e mobilizar saberes no mundo do trabalho. Ou seja, o que era dantes
em muitos aspectos, apontada como exclusividade do métier artístico, são características,
hoje, requisitadas no mundo do trabalho em outras áreas profissionais. O sociólogo alemão
Weber (2001) ressalta essa característica, ao tempo em que também infere que a orientação
imaginativa do artista, quanto ao seu sentido e resultado, é distinta do modo como se dá com
profissionais de outras áreas. Diz Weber (2001, p. 27):

A imaginação matemática de um Weierstrass é, quanto a seu sentido e


resultado, orientada de uma maneira inteiramente diversa da maneira como
se orienta a imaginação de um artista, da qual se distingue também, e
radicalmente, do ponto de vista da qualidade; mas o processo psicológico é
idêntico em ambos os casos. Ambos equivalem a embriaguez (‘mania’, no
sentido de Platão) e ‘inspiração’.

Esclarecedora é ainda sua postura ao colocar que:

28
Marx faz críticas severas ao livro O Único e sua propriedade de Max Stirner. Na Ideologia Alemã das 530
páginas do texto, mais da metade foram dedicadas a rebater, ponto por ponto, as colocações de Stirner. Na
Ideologia Alemã, Stirner recebe satiricamente o apelido de São Max, ou Sancho, referência irônica ao
personagem Sancho Pança, em Dom Quixote.
58

Um comerciante ou um grande industrial que não tenham ‘imaginação


comercial’, isto é, que não tenham inspiração, que não tenham intuições
geniais, não passarão nunca de homens que teriam feito melhor se
houvessem permanecido na condição de funcionários ou técnicos: jamais
criarão formas novas de organização (WEBER, 2001, p. 26).

Dentro dessa visão weberiana sobre a orientação imaginativa no exercício das


profissões, pode se afirmar que o matemático, por exemplo, tem a preocupação de
desenvolver uma lógica e apresentá-la e fazê-la compreensível e possivelmente até replicável
a todos que se interessarem pelo seu conceito, pela sua técnica. Essa jamais é a preocupação
do artista. É nesse sentido, que se pode falar de um momento em que o brilho aurático da
obra muitas vezes ultrapassa a previsibilidade do métier. Se assim não fosse todos que
igualmente se apossam das ferramentas composicionais produziriam verdadeiras obras
primas, mas não é o que ocorre. Nem sempre é possível explicar os meios pelos quais a
inventividade criativa se manifesta e dá origem a engenhosas expressões artísticas.

3.3 ASPECTOS CONCEITUAIS DA PRODUÇÃO E DIVISÃO DO TRABALHO


MUSICAL

Uma incursão sobre o trabalho artístico-musical, ainda que panorâmica, pressupõe


que seja indagado inicialmente como a arte tem sido produzida, utilizada e intercambiada na
sociedade no decorrer dos tempos. Não se pode deixar de levar em conta de visualizar as
transformações ocorridas com o processo de produção musical, que tem ocasionado novas
demandas profissionais e expressiva reestruturação contínua dessa área. É preciso ter claro
que a performance musical já é o desfecho 29, sendo fundamental se ater ao processo de
trabalho, seja da interpretação ou da criação artística que englobam vários aspectos de ordem
estruturais e que propiciam a materialização da música (realização do espetáculo, registro
musical, evento em geral). É preciso ultrapassar o juízo de que a música é produzida sem
qualquer tipo de esforço, sem a rotina de treinos e ensaios.

29
Sobre os aspectos que antecedem a performance musical propriamente dita (exercícios técnicos, suportes
teóricos, referentes aos aspectos da concepção musical, que antecede a performance propriamente dita) cabe
colocar que tais elementos é tido muitas vezes por estudantes de música, como algo penoso, embora
necessário, tendo por único fim a performance musical. Eis uma característica que lembra de modo estreito, o
sentido de trabalho posto pelo cristianismo, que pede para seus adeptos suportar as aflições do mundo, em
favor de recompensações futuras. A própria idéia corrente de que a prática leva à perfeição parece lembrar a
todo instante que o esforço empreendido no estudo (repetitivo, rotineiro e penoso) irá proporcionar no futuro,
no palco, a compensação almejada, a plena satisfação, o êxito e no mundo do trabalho contemporâneo: o
sucesso.
59

As mudanças ocorridas nos modos de produção no escopo do espaço artístico são


em parte, decorrentes do uso de novas tecnologias, que proporcionaram novas técnicas de
elaboração musical. Surge, daí, novas relações de produção musical, originando assim novas
configurações da música na sociedade, novos espaços de atuação profissional, bem como
novos conceitos estilístico-musicais e novas possibilidades de consumos. No caso da música,
algumas especialidades instrumentais tais como a do músico guitarrista (guitarra elétrica) ou
do músico tecladista (teclado sintetizador) e mais recentemente o Disc Jockey (DJ), só foram
possíveis graças às inovações tecnológicas. Seja como for, é preciso considerar que o
desenvolvimento das técnicas de trabalho artístico, assim como a manipulação de novas
ferramentas de elaboração musical (instrumentos materiais e ideais), possui uma
correspondência direta com a evolução tecnológica, que orienta as condições de produção e
define novas especialidades profissionais. As criações artísticas, fruto da engenhosidade
inventiva de cada artista, são igualmente tributárias desses condicionantes sociais e
tecnológicos. Fazendo eco com este modo de pensar, encontramos Marx e Engels ([198-?], p.
233-234):

Sancho [Stirner] julga que Rafael pintou os seus quadros independentemente


da divisão de trabalho que existia em Roma do seu tempo. Se ele comparar
Rafael a Leonardo da Vinci ou Ticiano constatará quanto às obras do
primeiro foram condicionadas pelo esplendor de Roma nessa época,
esplendor ao qual se elevara sob a influência florentina; as do segundo pela
situação particular de Florença, as do terceiro, mais tarde, pelo diferente
desenvolvimento de Veneza. Rafael, tanto como qualquer outro artista, foi
condicionado pelos progressos técnicos que a arte tinha realizado antes
deles, pela organização da sociedade e a divisão de trabalho que existiam
onde habitava, e pela divisão de trabalho em todos os países com os quais a
cidade onde habitavam tinha relações.

Fundamentado em Marx, Castro (1988) coloca de igual modo a importância de


situar a música num contexto mais amplo. Castro (1988, p. 24) afirma que os agentes das
transformações verificadas ao longo do decurso histórico-musical “não podem ser procuradas
somente na cabeça dos homens (músicos ou não), senão no modo como a música, através dos
tempos, vem sendo produzida, utilizada e intercambiada”. O surgimento (e a conseqüente
convenção) da escrita musical, por exemplo, desempenham uma mudança crucial nos modos
de se produzir música. Surge com essa inovação tecnológica a perspectiva da divisão de
trabalho. Antes disso, o músico criava suas composições e ele mesmo as executava, findando-
se ali o processo de trabalho. A partir do registro convencionado da escrita musical, no
ocidente, torna-se possível a divisão de trabalho entre intérprete e compositor. Aqui cabem
60

algumas definições a cerca do que se entende por processo de produção, termo clássico do
pensamento marxiano.
Inicialmente é preciso reafirmar dentro do que expomos até gora que, como
admitido na teoria marxiana, o trabalho é condição primordial à existência humana. O
trabalho humano é o fundamento da vida social, pois o homem que vive e trabalha o faz num
contexto social, estabelecendo relações de produção com outros homens. Entretanto, o
trabalho que produz mercadorias (valor-de-troca) é um modo específico de trabalho social. A
mercadoria se traduz em objetos de satisfação às necessidades humanas, independentemente
de “que essas necessidades tenham a sua origem no estômago ou na fantasia, a sua natureza
em nada altera a questão” (MARX, 1983, v. 1, p. 2). E mesmo que a performance do músico
em eventos diversos (prestações de serviços), não se traduzam literalmente em mercadorias –
pois o serviço prestado por um músico proporciona uma satisfação estética, o que se frui, é
momentâneo, tão logo cesse o trabalho do músico, finda a fruição proporcionada pela música,
ainda assim essa fruição sentida pelo expectador face ao espetáculo foi proporcionada por
uma relação de troca comercial.
A mercadoria se apresenta sob um duplo aspecto: valor-de-uso e valor-de-troca.
Para Marx os valores-de-uso são modos de subsistência resultantes da vida social, da força
humana efetivada, trata-se de trabalho objetivado, são combinações da matéria e do trabalho
humano. Cada mercadoria é portadora de características diversas, sendo útil (valor-de-uso) em
seus diferentes aspectos relacionados às necessidades humanas. Mas o valor conferido a
mercadoria não é algo intrínseco a ela, é convencionado pela própria sociedade, sob um duplo
ponto de vista; o da qualidade e (valor-de-uso) o da quantidade (valor-de-troca). É essa
característica utilitária que transforma a mercadoria num valor-de-uso, mas este só possui
valor na medida em que nele está materializado o trabalho humano.
Todavia, nem todo valor-de-uso é uma mercadoria. Uma coisa pode ter utilidade,
ser fruto do trabalho humano, sem ser mercadoria. Determinados produtos originados dos
afazeres domésticos proporcionam a satisfação apenas das necessidades individuais, logo
criam um valor-de-uso pessoal e por isso não podem ser considerados uma mercadoria. A
produção de mercadorias se caracteriza mediante a produção de valores-de-uso para os outros,
encerrado em trabalho social. Mas não é suficiente produzir para os outros. Exemplificando,
Marx coloca que nem o tributo e nem o dizimo pago em cereais pelo camponês medieval,
respectivamente ao senhor feudal e a igreja, podem ser considerado mercadoria, mesmo sendo
produzido para outrem. Para ser mercadoria, diz Marx (1983, v, 1, p. 6, grifos do autor), “é
necessário que o produto seja transferido para outrem, que o utilize como valor-de-uso, por
61

meio de troca”. Para ser um valor (de troca), o objeto tem de ser uma coisa útil. E o que
determina o valor de uma mercadoria? Para Marx é o tempo de trabalho gasto para a
fabricação de determinado (hora, dia). Mas esse tempo não é relativo a cada trabalhador. A
força de trabalho individual empregada na confecção de um produto é regulada pelo tempo de
trabalho socialmente necessário à produção das mercadorias, ou seja; o “tempo exigido pelo
trabalho executado com um grau médio de habilidade e de intensidade e em condições
normais, relativamente ao meio social dado” (MARX, 1983, v. 1, p. 6). A quantidade de
trabalho incorporado em um objeto determina, pois, o seu valor 30, e, esse mesmo princípio
rege o intercambio de mercadorias no mercado. No trabalho que é mensurado desse modo 31,
ou seja, pelo tempo, os indivíduos trabalhadores figuram simplesmente como órgãos do
trabalho e não como diferentes sujeitos que estão desempenhando um trabalho.
Se abstrairmos da mercadoria seu valor-de-uso restará apenas uma qualidade; o
fato de estar nela incorporado trabalho humano e abstrato, ou seja, o dispêndio de força
humana. Na sociedade capitalista a força de trabalho, a energia humana utilizada numa
determinada atividade, se converte em mercadoria. São necessárias duas condições básicas
para que a força de trabalho seja considerada uma mercadoria. Primeiro, considerar a
existência de um trabalhador que em sendo livre possa dispor de sua força de trabalho para
oferecê-la no mercado para quem bem entender em troca de um salário. Segundo, a existência
de um trabalhador que não disponha dos meios de produção e que em decorrência disso torna-
se impedido de trabalhar por conta própria e conseqüentemente é forçado a vender sua força
de trabalho32. O que o trabalhador produz além do valor de sua força de trabalho denomina-
se mais-valia.
As mercadorias são portadoras de uma forma-valor particular distinta de suas
múltiplas formas natural. As dificuldades inerentes á atribuição de conversão de valor na
permuta das mercadorias fez surgir um terceiro elemento equivalente; o dinheiro. Antes disso,
só era possível a troca em situações onde a mercadorias fossem diferentes e que seus
portadores a tivessem em sobra. Ainda para o intercambio ocorrer era necessário que ambos
demonstrassem ter interesse nessa permuta, ambos deveriam sentir necessidade de adquiri-las.

30
Na verdade o valor é a quantidade de trabalho socialmente necessário incorporado numa
mercadoria. O tempo de trabalho socialmente necessário leva em conta as condições sociais
de produção e a necessidade do produto manifesta pela sociedade (HARNECKER, 1983, p.
29).
31
Marx chama de trabalho simples, no qual qualquer indivíduo pode ser treinado para realizá-
lo.
32
Cf. HARNECKER, Marta. Os conceitos elementares do materialismo histórico. São Paulo: Global, 1983.
62

Se um indivíduo é detentor do que alguém precisa, mas não precisa do que o outro dispõe
certamente a troca não lhe interessará. Ainda é preciso que sejam definidos nessa relação de
intercambio entre mercadorias, parâmetros de equivalência (valor) para que a troca seja
efetivada. A solução para esse impasse relacionado ao valor das mercadorias foi o dinheiro. É
mediante o dinheiro que duas mercadorias podem expressar equivalência. A troca entre
mercadorias deixa de ser imediata, passando-se agora a se trocar o dinheiro por uma
determinada quantidade de mercadoria. O dinheiro dá maior fluidez e generaliza a troca. O
dinheiro divide o processo de intercâmbio das mercadorias em dois momentos; venda e
compra. Alguém que compra se coloca como necessitado da mercadoria almejada, seu fim é
um valor-de-uso adquirido pelo dinheiro (valor-de-troca). Já para alguém que vende
determinada mercadoria, esta nada mais é do que um meio de convertê-la em dinheiro,
emancipando-a do seu valor-de-uso.
No que diz respeito à conversão da música em mercadoria o disco assume um
papel crucial. A partir do advento da indústria fonográfica, a música se converte num produto
de características industrial, numa mercadoria, pronta para ser comercializada. Nesse sentido,
o valor da música também passa a ser determinado pelo tempo de trabalho socialmente
necessário. Uma vez registradas no disco uma música não valerá mais que outra. Quem
determina agora o valor é o disco, o produto, com todo o trabalho a ele incorporado, e não a
música. A música é a matéria prima utilizada para a elaboração do disco, o produto final, a
mercadoria a ser comercializada. Como também, nesse contexto, o que o músico vende não é
o seu trabalho, mas, sua força de trabalho. Os empresários se apropriam do produto do
trabalhador-músico que por não dispor dos meios de produção vende sua força de trabalho.
O que obriga o músico a ceder às condições imposta pelo sistema capitalista, são os mesmos
motivos expostos por qualquer trabalhador, são certamente a intenção de suprir suas
necessidades de subsistência. Então, um músico pode ser prontamente substituído por outro
numa gravação de um disco ou num espetáculo? Nem sempre. O trabalho do músico, bem
como as relações que estabelece com o objeto e os instrumentos do seu trabalho, é em parte
similar aos que o trabalhador, de um modo geral, opera no âmbito da divisão técnica do
trabalho especializado. Porém, o músico imprime muitas vezes um modo de tocar que o torna
singular, mas não substituível no âmbito do processo produção. O talento e as competências
técnico-profissionais são algumas das qualidades individuais que tornam o músico requisitado
em detrimento de outro colega de profissão.
Nessa trajetória conceitual, chega-se então a ideia de processo de produção.
Denomina-se processo de produção, todo procedimento que por meio da ação humana e
63

mediante o uso de instrumentos especializados, transforma um determinado objeto em


produto final de valor-de-uso. É relevante atentar para a distinção entre processo de trabalho e
processo de produção. Este último tem início já a partir da concepção musical (execução da
composição ou arranjo – processos de trabalho) encerrando-se na veiculação da música.
Portanto, o processo de produção congrega vários processos de trabalho. Na gravação de um
Compact Disc (CD), onde se tem a participação de uma orquestra, por exemplo, o trabalho de
um violinista (processo de trabalho) é encerrado muito antes de se ter finalizado o processo de
produção como um todo. O processo de trabalho é composto por três elementos: 1) o objeto
de trabalho; 2) os meios de trabalho, isto é, os instrumentos e 3) a atividade empreendida, ou
seja, o próprio trabalho. O objeto do trabalho pode ser de dois tipos: a matéria-prima ou
matéria bruta. Considera-se matéria-prima todo elemento modificado pelo trabalho. A matéria
bruta tem a ver com o estado natural em que se encontram os objetos, como por exemplo,
árvores e os recursos minerais. No contexto da música, ela mesma é o produto do trabalho e o
fenômeno sonoro é a matéria prima, sobre qual opera a ação do músico em épocas distintas. O
meio de trabalho ou os instrumentos de trabalho, “é uma coisa ou um complexo de coisas, que
o trabalhador insere entre si mesmo e o objeto de trabalho e lhe serve para dirigir sua
atividade sobre esse objeto” (MARX, livro 7 do capital. MARXISTS INTERNET
ARCHIVES). Os meios de trabalho dizem respeito, de modo amplo, a todos e quaisquer
suportes necessários ao processo de trabalho. Os instrumentos podem ser considerados de
dois tipos: instrumentos de trabalho materiais e instrumentos de trabalhos ideais. Ao se
utilizar de instrumentos musicais, assim como todo suporte tecnológico necessário para
elaboração musical, o trabalhador da música se utiliza de instrumentos materiais. Quando se
faz uso de conhecimentos e técnicas especificas como harmonia, contraponto, escalas, utiliza-
se de instrumentos ideais. Portanto, o produto musical (disco, espetáculo, registro em Digital
Video Disc (DVD), performance) é o resultado de uma conjugação de esforços envolvendo o
trabalho sobre o fenômeno sonoro (matéria prima), os meios e instrumentos de trabalhos
utilizados (instrumentos, suportes tecnológicos e conhecimentos) e o próprio trabalho
empregado pelo músico.
O processo de produção musical se estabelece na contemporaneidade numa ação
coletiva realizada por várias pessoas (agentes), que desempenham “ações coordenadas de
diversos produtos parciais dos processos de trabalho em um produto final. Um processo de
produção é composto, portanto, pelo conjunto dos processos de trabalho e por relações de
produção determinadas” (CASTRO, 1988, p. 20). Castro (1988) define os agentes de
produção musical como todos os indivíduos que, de uma maneira ou de outra, participam do
64

processo de produção musical. Por exemplo, além dos músicos propriamente ditos
(profissionais que concebem e executam, i.e., compositores, arranjadores e instrumentistas),
os técnicos de som, os iluminadores, também pode se incluir os fornecedores de materiais e
equipamentos responsáveis a produção musical – é o que se denomina hoje por cadeia
produtiva, ou seja, todas as conexões referentes a produção, distribuição, comercialização e
consumo da música. Os agentes de produção estão divididos em duas categorias. Os
trabalhadores diretos, que possuem estrita relação com a matéria básica da produção musical,
e os trabalhadores indiretos: “aqueles que têm função de organização e controle de níveis
diversos do processo, bem como aqueles que perifericamente participam do processo de
produção musical” (CASTRO, 1988, p. 21).
Nesse contexto do processo de produção da música, é preciso que nos detenhamos
um pouco mais em alguns aspectos conceituais relacionados à divisão do trabalho musical. O
trabalho em que o músico compõe e executa sua própria música e fica encerrado o processo
de produção é uma atividade artesanal. Trata-se de um tipo de trabalho individual e manual,
ainda encontrado nos ritos e festas populares ainda não estilizados. Seu valor de uso restringe-
se a dimensão litúrgica. No atual cenário contemporâneo, um músico pianista que compõe e
executa suas próprias músicas não se encaixa nessa definição uma vez que a música que faz é
um produto comercializável, e, em alguns casos participam vários agentes profissionais.
A divisão do trabalho musical, nos moldes estruturais das feições fabril, se define
de um modo geral, a partir da prática do ofício conjunto, nas várias formas musicais, bem
como da consciência da função individual que cada músico passa a ter no desempenho de suas
atividades. Esse processo se inicia com a divisão do trabalho entre compositor e intérprete. É
também no âmbito do espaço orquestral, ao lado de outros músicos, que o trabalhador da
música passa a dar conta apenas de sua parte complementar. À luz da teoria marxiana esse
tipo de produção chama-se manufatureira, pois consiste na especialização de uma atividade
a ser somada a um todo. De acordo com Castro (1988, p. 23-24):

Os elementos mais simples da manufatura são o trabalhador parcial e o seu


instrumento. Estes elementos são combinados em um mecanismo específico
que se chama trabalhador coletivo, formado por um conjunto de
trabalhadores parciais. Em decorrência do trabalho coletivo, e do nível de
especialização, é necessário o aparecimento de uma direção que ordene as
diversas atividades individuais. Esta função de controle, vigilância e direção
é uma função do capital, e nasce como uma tarefa entre outras do
trabalhador coletivo, porém, se separa dele e se converte em uma função que
o submete, o domina. O trabalhador coletivo não tem, portanto, o domínio
sobre o produto, nem sobre o seu processo de trabalho.
65

A manufatura é o modo em que a produção capitalista se apresenta em seu início.


A orquestra se adéqua a esse exemplo porque é tributária de uma relação estabelecida entre a
música e o mercado, que muda a partir de então a estrutura da produção artístico-musical.
Uma dessas transformações reside na relocação da música dos salões (música de câmara) para
grandes salas e auditórios. As formas sinfônicas, portadoras de grande massa sonora, são, em
grande medida, uma solução para se ter um público cada vez maior nas salas de concertos,
uma democratização do acesso à música (antes aristocratizada), mas também um recurso para
se obter maior bilheteria, maior lucro. A partir da produção industrial da música, com o
advento e consolidação da indústria fonográfica, se “instaura uma tão crescente quanto
interminável divisão do trabalho, ao mesmo tempo em que se dá a perda definitiva, por parte
do músico, do controle, não só daquilo que produz, bem como dos meios de produção
musical” (CASTRO, 1988, p. 25). É fundamental colocar, como já sublinhado antes, que no
campo da música o advento da indústria fonográfica se situa como um marco que consagra a
etapa industrial. No percurso histórico da mercantilização da música, esse momento sagra a
divisão do trabalho nessa área ao passo em que se tem a perda total, por parte do músico, do
controle do que se produz e dos meios de produção musical. É com o advento, então da
indústria fonográfica que:

o processo de produção musical dominante passa a estar inteiramente


comprometido com o modo de produção capitalista. A partir de então, a
música, do mesmo modo que qualquer outro produto industrial, se converte
em uma mercadoria de características industriais. Todas as relações de
produção musicais ficam transformadas. O valor de uma obra musical passa
a ser determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário, tempo este
que com a industrialização do processo de produção musical, passa a poder
ser calculado e acaba por se converter no fator predominante de atribuição
de valor musical. Uma música não vale mais que outra quando ambas estão
gravadas em um disco. O valor é do disco e não da música. A música se
transforma assim em matéria prima para a elaboração do disco, este sim, o
produto final (CASTRO, 1988, p. 30).

Ao ser colocado que a música passa a se inserir num processo de industrialização


de produção, se quer com isto dizer que houve uma revolução tanto no modo de produção
quanto no modo de distribuição. Só a produção em larga escala pôde dar conta de alimentar
exclusivamente a indústria do entretenimento. É a música pop (forma canção), gênero
musical que acompanha o cotidiano, da vida urbana dos indivíduos, a partir da segunda
metade do século XX (HOBSBAWM, 1995), que nutre o consumo massificado.
66

De um modo geral, o processo de industrialização da música se pauta em dois


aspectos. Primeiro a música (canção pop) é retrabalhada para a produção em grande escala e
em seguida é transformada na linha de montagem. Na síntese desses dois momentos da
produção musical industrial, o formato da canção passa por adequações que possam
possibilitar o maior índice de vendagem possível. No processo de produção a canção passa
para o arranjador, que define como irá soar, em seguida, com os músicos, supervisores de
gravação e os engenheiros de som que finalmente materializam a música, a mercadoria a ser
comercializada. Mas ainda resta um degrau até se chegar ao público consumidor. O uso de
mecanismos publicitários para se alcançar um maior índice de vendas. Na indústria da música
êxito é sucesso traduzido em vendagens. Nesse contexto, a figura do produtor musical (aquele
que dirigirá todo o processo de produção sugerindo o repertório, sonoridade, visual do
intérprete, considerando o público, gênero, esfera social a ser atingida).
Importante notar ainda, no contexto de produção da música industrializada, a
importância do surgimento de aparatos tecnológicos utilizados no processo de produção
musical como os gravadores multicanais. Até então o processo de gravação musical se dava
num só momento. Com os gravadores multipistas, torna-se possível o acesso a trechos
musicais isolados de um canal qualquer. Isso permite que cada músico inclua sua parte
isoladamente, muitas vezes sem a necessária presença dos outros músicos nesse momento.
São realizados nesse processo, vários trabalhos parciais que somado aos outros,
proporcionarão um produto final. Assim como o automóvel é o resultado conjugado de vários
trabalhadores a execução de uma obra musical é o fruto do esforço conjunto de muitos
trabalhadores da música. A estrutura orquestral reflete determinados aspectos da fábrica,
como por exemplo, a divisão por departamentos (naipes de instrumentos), cada um com uma
função especializada, sob a coordenação de um gerente (regente). Entretanto, é necessário
cautela ao se comparar dois ambientes profissionais, que possuem pontos comuns na sua
estrutura, mas divergem em sua essência. A estrutura orquestral, de fato, ilustra de forma
conspícua essa concepção de divisão e especialização do trabalho no âmbito musical. Mas é
importante que se faça uma primeira diferenciação entre o artista e o operário. No caso da
divisão de trabalho musical do mundo capitalista só é possível uma aproximação em termos
comparativos com a organização do processo de trabalho industrial (fordista/taylorista;
parcelar, mecânico e repetitivo), apenas na sua concepção mais estrutural, na ideia de
parcelamento de tarefas (no caso da divisão orquestral, na divisão de naipes): na consciência
que cada músico tem por estar desempenhando um trabalho individual (Muito embora seja
importante considerar que é o trabalho assalariado o principal elemento que determina a
67

condição de proletário ao indivíduo, ou seja, os profissionais que adquirem vínculo


empregatício são proletários). O músico, de modo algum, opera realizando o mesmo trabalho
o tempo todo. Não se pode dizer que quem ocupa o cargo de instrumentista numa determinada
orquestra realize um trabalho repetitivo, pois se trata de uma atividade dinâmica. E mesmo o
trabalho sendo parcelar, há a ideia de se estar realizando uma interpretação conjunta e,
portanto coletiva. Muito, embora na atividade musical também estejam presentes
determinados aspectos que expressam a rotina. O treinamento técnico-musical para o músico
instrumentista é galgado na repetição obstinada de movimentos, as técnicas de ensaios exigem
a repetição de partes da música tocada, e até o ritual que antecede o ensaio, como chegar
pontualmente no horário, afinar o instrumento, exercitar-se tecnicamente (aquecer)
evidenciam uma rotina. Tem-se, portanto aqui, elementos relacionados às condições materiais
do trabalho, como visto em outras atividades profissionais: jornada de trabalho regular e
relações de conflito entre os músicos e as instancias administrativas. Na fala que o cineasta
italiano Federico Fellini (1920-1993) empresta a um dos músicos na película Ensaio de
Orquestra (Prova d'orchestra), produção cinematográfica realizada no ano de 1979, essa
relação com a rotina traz aspectos similares de relacionamento pessoal entre os trabalhadores,
tais quais os notados na fábrica. Explica o músico da Orquestra que a amizade é diferente.
Eles só se veem na orquestra. De manhã, ele vai ao ensaio, bate o ponto. Na saída, bate outra
vez. Compara que é como trabalhar na Fiat. Mas qual a diferença da atividade musical do
trabalho também conjunto realizado na fábrica? Está em se reconhecer que o músico, mesmo
no conjunto é reconhecido por sua individualidade; há um reconhecimento de mérito
individual (diferente da ideia de o funcionário do mês), enquanto na fábrica o patrão se
interessa especificamente pela força do trabalho. O modo de produção industrial (e fabril, por
exemplo), na concepção estrita ao contexto abordado, não permite que sejam dados créditos
para cada trabalhador, em função da atividade desempenhada. O operário é alienado do
produto do seu próprio esforço, não se reconhece nele, ou seja, o produto do seu trabalho lhe
parece estranho – no sentido marxiano. O trabalhador encerra sua vida num determinado
objeto que não lhe pertence. Como desenvolveu Marx, o trabalhador, se torna servo do objeto,
pois somente como trabalhador ele se sustenta como sujeito físico. Mas não se trata apenas do
estranhamento entre o trabalhador e o produto do seu trabalho. Trata-se ainda de um
estranhamento de si mesmo, do produto do seu trabalho e de sua humanidade, pois não há
auto-realização do indivíduo. O trabalhador nega-se a si mesmo no trabalho, nem este lhe
pertence, muito menos seu produto, pois este é propriedade do empresário, não do
trabalhador, o produtor imediato. De certo modo, o indivíduo se mortifica no trabalho, sente-
68

se fora de si, só se encontrando fora do trabalho. O trabalho é para o operário um meio de


satisfazer as necessidades situadas fora dele. Já no trabalho artístico, cada músico tem sua
notoriedade reconhecida, até mesmo no material impresso de uma programação musical, onde
consta nomeado todo o elenco responsável pelo espetáculo. Se como diz Marx o gosto do pão
não revela quem plantou o trigo (embora o gosto desse pão possa indicar mediante a marca
a empresa que produziu) a qualidade da música produzida pode sim revelar o trabalhador da
música.
Por fim, é preciso comentar dois termos fundamentais a discussão do trabalho
musical: as noções de trabalho produtivo e improdutivo. Na literatura referente à sociologia
da profissão, vê-se o conceito de trabalho desdobrando-se noutros sentidos tais como, trabalho
produtivo e improdutivo (MARXISTS..., [20--?]), trabalho qualificado e não qualificado; e
por último, a distinção entre trabalho manual e intelectual. Nos Manuscritos econômico-
filosóficos de Marx de 1861-1863, parte 3, no item sobre Produtividade do Capital,
Trabalho Produtivo e Improdutivo, Marx (1987, v. 2) define e exemplifica essas duas
formas de trabalho. Assim, define trabalho produtivo aquele tipo de trabalho

socialmente definido, trabalho que envolve relação bem determinada entre o


comprador e o vendedor do trabalho [...] Trabalho produtivo, portanto é o
que - no sistema de produção capitalista - produz mais-valia para o
empregador ou que transforma as condições materiais de trabalho em capital
e o dono delas em capitalista, por conseguinte trabalho que produz o próprio
produto como capital (MARX, 1987, v. 2, p. 391).

Essa característica do trabalho produtivo, que a distingue do trabalho improdutivo,


não diz respeito a um tipo de conteúdo, pois Marx adverte que um mesmo tipo de trabalho
tanto pode ser produtivo quanto improdutivo. Uma cantora, diz Marx (1980, v. 1, p. 396),
“que vende seu canto por conta própria é um trabalhador improdutivo. Mas, a mesma cantora,
se um empresário a contrata para ganhar dinheiro com seu canto, é um trabalho produtivo,
pois produz capital”. Noutro exemplo, coloca que professores, na ótica do empresariado,
podem assumir a qualidade de meros trabalhadores assalariados, ou seja, de trabalhadores
produtivos, muito embora perante os alunos sejam trabalhadores improdutivos. O mesmo se
aplica às empresas de teatro, estabelecimentos de diversão etc. O ator se relaciona com o
público na qualidade de artista, mas perante o empresário é trabalhador produtivo. Ou
seja, um mesmo tipo de trabalho se revela ora como produtivo, ora como improdutivo.
Anterior ao estabelecimento do capitalismo, na Europa, a condição do músico como serviçal
da corte ou igreja, recebendo um pagamento para desenvolver tal função, se caracteriza como
69

trabalho improdutivo. É o pagamento na forma de salário, ao músico prestador de serviços da


corte, que define esse tipo de trabalho como improdutivo. A natureza produtiva do trabalho
artístico só se manifesta a partir do momento em que a música se converte em mercadoria, no
âmbito das relações capitalistas de produção, transformados agora, em valor de troca. Quando
um músico oferece seus serviços, sem mediação, a um consumidor, recebendo para isso
pagamento em dinheiro, não convertido em capital (pois pretende apenas assegurar as
necessidades de subsistência) fica configurado aqui a natureza improdutiva do seu trabalho,
especificamente por se tratar de prestação de serviços diretamente a um consumidor. O
trabalho do músico não assalariado e prestador de serviços é não-produtivo por se situar fora
da margem de produção e por não se configurar como venda da força de trabalho, mas do
próprio trabalho. Todavia, as relações de prestações de serviços estabelecidas entre músicos e
consumidores, contam quase sempre com a mediação do agenciador, que compra a força de
trabalho, vende a um consumidor e retira dessa relação lucro, ou seja, na verdade não se trata
de puras relações de serviços autônomos. As complexas teias de relações produtivas a que
hoje estão submetidas o mundo artístico impossibilitam muitas vezes um contato com o
consumidor direto, dado as mediações dos agentes e produtores. Dito de outro modo, mesmo
sendo contratado para tocar um evento qualquer, onde lhe é pago com renda do capital,
mesmo assim o trabalho do músico é improdutivo, “porque o que ele ganha não é o excedente
do capital, mas uma renda que advém desse excedente do capital” (COLLI, 2006, p. 311-312).
O músico dispõe da técnica e dos conhecimentos necessários a realização do seu trabalho,
mas não dispõe dos meios de produção, além do objeto sobre o qual trabalha isso o torna
dependente e servil dos modos de exploração do trabalho capitalista. É só pensarmos que
subtraindo os custos com a produção, o lucro do empresário e as cargas tributárias, o que lhe
resta é um pequeno percentual de renda.

3.4 O MÚSICO E O TRABALHO ASSALARIADO

As alterações manifestadas na sociedade nas áreas econômica, social e


tecnológica, sempre incidiram em novas formas de produção. O espaço reservado ao métier
artístico não ficou imune a essas influências, uma vez que a relação do trabalhador da música
com o mundo do trabalho é em grande medida, semelhante a dos trabalhadores pertencentes a
outras esferas de produção; ambos precisam vender sua força de trabalho para sobreviver. Da
relação entre o dinheiro (remuneração do serviço prestado) e o trabalho do músico, resultam
algumas questões conflitantes para o trabalhador da música. Menger (2005, p. 9) coloca que
70

“no século XIX, o trabalho e a actividade profissional do artista opuseram-se as profissões


sobre as quais a economia de mercado construiu o seu desenvolvimento [sic]”, como o
empresariado geral e os profissionais do comércio. De igual modo, para o compositor Richard
Wagner, o dinheiro influenciava a atividade criativa. A ousadia e a rebeldia criativa, notadas
no exercício do métier artístico, não comungavam com os ideais de lucro certo exigido e
almejado pela lógica capitalista do mercado.
Durante os séculos XVII e XVIII registram significativas mudanças na esfera do
desenvolvimento do exercício da profissão musical. Entre elas observa-se uma maior
liberdade de expressão para o músico, o crescimento de um público consumidor, o estímulo a
edição de partituras, e ainda; o músico deixa de ser visto cada vez menos como artesão e mais
como artista, o que incide diretamente numa mudança e ascensão de sua condição social. Na
Europa do século XVII, as opções de trabalho para o músico se limitavam as cortes, as igrejas
e as atividades relativas às municipalidades (entretenimentos diversos, como por exemplo, os
fogos de artifícios). Além desses vínculos empregatícios eclesiásticos e civis (igrejas, cortes,
principados) paulatinamente surgem outros espaços de atuação, como as casas de teatro de
óperas e as residências abastadas. É nesse novo ambiente burguês, onde o músico passa a ser
convidado para tocar e/ou dar aulas. São espaços que além de enfatizar novas possibilidades
de trabalho para o músico, significam também que agora eles poderiam declinar de assumir
postos nas igrejas e cortes. Nesse sentido a profissão musical se torna liberal. Mas, antes
disso, a maioria dos compositores atuava como servidores da corte ou nas igrejas. Dedicavam
em grande medida a produção musical ao patrono ou a um mecenas, de quem se esperava
algum favor ou apoio econômico. Ainda nessa época o músico da corte muitas vezes para ser
admitido teria de ser versátil na sua profissão; deveria ser compositor, diretor de música,
professor, instrumentista, cantor e ser portador de um domínio cultural de modo a atender as
exigências do posto pleiteado. Embora em muitos casos os músicos contratados pela corte ou
igreja fossem orientados a desempenhar funções específicas, como é o caso do compositor de
ópera. Os que eram contratados pelos municípios deveriam ser portadores de habilidades
variadas; era comum acumular a função de copista, intérprete, arranjador, entre outras. Com o
advento da música instrumental e o desenvolvimento da ópera vem também a necessidade de
se contratar músicos virtuoses, instrumentistas e cantores, que se lançam em busca de uma
carreira artística particular. Não se pode dizer de modo enfático que se trata de uma total
especialização nas profissões musicais, mas já uma tendência a especialização. Externo aos
empregos civis e eclesiásticos (a corte, a igreja e a municipalidade), os músicos podiam atuar
profissionalmente como itinerantes ou ambulantes, que embora livres, além de enfrentarem
71

forte concorrência, os músicos sem a proteção do mecenato eram mal afamados pela opinião
pública, relegados a condição mais baixa de animadores de ocasião. Estar a serviço da corte
ou das cidades tinha suas vantagens como também seus inconvenientes. Os músicos que
estavam a serviço das cidades poderiam obter a rescisão contratual de modo mais fácil.
Enquanto que o músico da corte estavam submetidos a conjuntura da vida política local, e isso
implica em dizer que qualquer crise econômica sofrida pela corte, poderia interferir
diretamente na atividade musical por ele desempenhada (diminuição de salários e
orçamentos).

Os músicos eram em sua maioria empregados oriundos das classes médias


baixas e serviçais, prejudicados por um sistema ineficiente sobre o qual não
tinham controle. Careciam também de segurança [...]; para um príncipe,
como para a burguesia de um governo moderno, dispensar um músico era
uma simples medida de economia (RUSHTON, 1991, p. 10).

Havia então uma insegurança no exercício da profissão, decorrente de baixos


numerários bem como da suspensão da remuneração sem qualquer aviso prévio ou futura
compensação. Nessa perspectiva o músico profissional passa a evitar o vinculo empregatício
com cortes e igrejas, dado, aos constantes humilhações e constrangimentos sofridos. Se por
um lado os empregos referentes municipalidades, cortes e igreja não ofereciam muitas vezes
atrativos na remuneração, por outro, ainda eram os mais estáveis e o músico ainda exercia
algum tipo de controle sobre seu trabalho. Em certo sentido, os músicos da corte sentiam se
dependentes dos favores dos patronos. Veja-se a esse respeito o que diz o compositor
alemão Johann Sebastian Bach (1685-1750) solicitando ser dispensado dos seus serviços:

[...] Em conseqüência desse privilégio, por este meio, com obediência e


respeito, solicito aos meus Graciosíssimos Patronos e, ao mesmo tempo lhes
rogo que levem meus pequenos serviços a igreja até este momento em
favorável consideração, que me concedam o benefício de uma indulgente
exoneração. Se posso, de qualquer modo, contribuir para o serviço de vossa
igreja no futuro, provarei ser melhor em atos do que me palavras, enquanto a
vida m’ o permitir (GEIRINGER, 1985, p. 44).

Noutro caso, Bach ao pedir dispensa oficial de suas funções ao duque Wilhelm
Ernest, mesmo já indicando alguém qualificado para o cargo, tem sua petição indeferida.
Forçando sua solicitação é preso por obstinadamente requerer sua demissão. Para se evitar
algum desentendimento político entre as duas cortes envolvidas Bach é finalmente liberado
com notificação de sua indecorosa exoneração. O pai de Mozart, o compositor Johann
72

Georg Leopold Mozart (1719-1787), passara por humilhações semelhantes, numa época em
que o músico, no âmbito de uma sociedade dominada por aristocratas de corte, era apenas
um serviçal, cujo comportamento deveria ser coerente com sua condição inferior. Leopold
Mozart muitas vezes teve seus proventos não só atrasados, como também retidos (ELIAS,
1995).
O gradual desenvolvimento de um mercado musical fez com que os músicos além
de compositores e intérpretes, se tornassem também empresários. Exercer a atividade musical
de modo independente era um risco, até mesmo para talentosos músicos como Mozart. Além
do fato de que o artista independente tinha que complementar seus rendimentos dando aulas
particulares. O compositor de óperas podia ganhar dinheiro também com a montagem do
espetáculo em cidades circunvizinhas, porém o tempo despendido com as viagens trazia
prejuízos, uma vez que se ausentando de sua cidade deixava de receber por suas aulas
particulares. Nesse contexto, a venda de partituras, ou cópias autorizadas torna-se uma
importante fonte de renda para o artista, mesmo considerando que só a garantia das
vendagens, justificava em muitos casos o investimento na música impressa. Os compositores
na maioria das vezes levavam em conta as demandas apontadas por seus editores, estes em
certos casos chegavam a cometer abusos contra o compositor, publicando sem autorização
suas músicas, eximindo-se assim de pagar qualquer tipo de remuneração ao compositor.
Ainda relacionado a produção editorial de partituras, faz-se necessário lembrar que a
pirataria já se fazia presente nesse setor. Muitas vezes os editores atribuíam a autoria de
algumas obras musicais a nomes de compositores famosos, objetivando vender mais. Mesmo
o controle da execução de sua obra fugia ao controle do compositor. Era difícil, dado a
disseminação do registro impresso da obra, saber onde estava sendo executando a obra e
quem a executava.
Esse duplo papel exercido pelo músico compositor, especificamente o de virtuose
e o de professor, torna-se muito comum nesse processo de expansão da comercialização da
música entre os séculos XVIII e XIX. Por volta de 1830, ocorre uma mudança no modo de
recepção da música. Muda-se a relação entre o artista e o público, este não mais enxergado
como benfeitor, e aquele com maior liberdade comunicativa de sua arte com o público. O
músico virtuose estava dissociado de sua condição de criado, podendo agora lucrar com seus
serviços. O músico ganha dinheiro como criador de óperas e como compositor de música
instrumental. De qualquer modo tinha que agradar ao público, aspecto, é verdade, que não
favorecia a experimentação artística. Obviamente que o surgimento de uma classe social
situada acima do nível de subsistência contribuiu significativamente para o crescimento e
73

consumo de bens simbólicos na área musical, considere-se ainda que o piano torna-se um bem
ostentado pelas camadas abastadas, e, à esse novo público consumidor que o músico destina
peças curtas com melodia e acompanhamento simples para esse instrumento (estudos, pop-
pourri), compostas exclusivamente para diletantes, tratava-se de peças que sobretudo
recordavam as melodias ouvidas nos espetáculos musicais (óperas e concertos). Esse novo
cenário, mais precisamente composto de diletantes e músicos amadores (aqueles que não se
dedicavam em tempo integral ao exercício da profissão musical), tem um lugar de destaque na
expansão de um mercado para a música na Europa de meados do século XVIII. Há, nesse
contexto, o surgimento de um público destinado prioritariamente a ter com a música uma
relação de entretenimento (música de mesa), detentora do poder de “aliviar o peso dos
esforços e do cansaço de um dia dedicado (pelo burguês) a tratar de negócios, a ocupar-se
com números e contas” (SUPICIC, 1997, p. 412). Noutra via há a formação de um público
que busca além do “deleite”, “uma experiência musical enaltecedora” (RUSHTON, 1991, p.
73). Ocorre aqui uma mudança importante na história da música européia; a separação entre
gêneros ligeiros e sérios. Sem o apoio dos mecenas, já desde o final do século XVII, os
compositores dependem menos de patrões e mais de um público consumidor “no interior de
uma vida musical sempre mais comercializada e organizada para um publico novo de classe
média, na qual, entretanto o publico aristocrático ainda ocupam lugar de destaque” (SUPICIC,
1997, p. 418).
O sociólogo alemão Elias (1995, p. 135) aponta para um fato importante nesse
quadro de análise do exercício do trabalho artístico, ao distinguir historicamente o que chama
de “transição de arte de artesão para arte de artista”. O artista-artesão produzia uma arte
oficial, da corte, submissa ao gosto do patrono, pois era encomendada por este e tinha por
intuito agradar ao mesmo. A inventividade criativa do artesão-artista estava condicionada por
lementos que eram socialmente determinados. Enquanto a arte de artista” coloca em
evidência um novo modo de relacionamento entre o artista e sua obra, trata-se de uma

arte criada para um mercado de compradores anônimos, mediados por


agências tais como negociadores de arte, editores de música, empresários
etc. Mudança na relação de poder em favor dos produtores de arte,
significando que eles podem induzir o consenso público quanto a seu talento
(ELIAS, 1995, p. 135).

Dito de outro modo, essa nova situação social proporciona uma maior liberdade
inventiva, muito embora essa ousadia artística tenha que se confrontar com novos elementos
condicionantes que irão interferir no êxito profissional perseguido por cada artista, entre eles
74

o gosto do público, ou seja, a opinião pública e o surgimento de uma crítica especializada,


acontecimento que ganha fundamental relevância na história da música desde o seu
surgimento, no século XVIII. É desse século que surgem julgamentos mais precisos em forma
de crítica sobre uma determinada obra ou os compositores. Surgem revistas, periódicos e
publicações direcionadas a crítica e a teoria da arte. São elementos legitimadores no âmbito da
mercantilização da música do trabalho do artista.
Muito embora, ainda, na época de Wagner, ele esteja denunciando não mais a
astração da criatividade, ou a sujeição criativa à encomenda do patronato, mas a submissão
da inventividade criativa do artista ao novo quadro social desenhado pelo capitalismo. Diz
ele:

Qual o motivo da revolta de um arquiteto a esbanjar a sua criatividade com


encomendas de casernas ou de prédios de arrendamento? Qual a causa da
ofensa sentida pelo pintor que tem de retratar a carantonha repugnante de um
milionário, sentida pelo compositor que tem de escrever as obras de
circunstância, pelo escritor que se vê na obrigação de inventar romances de
aluguel? Onde radica o sofrimento dos artistas? Na necessidade de dissipar a
criatividade em benefício do ganho e de fazer da actividade artística uma
forma de salariato [sic] (WAGNER, 1997, p. 102-103).

Nesse contexto, para o outrora colega do filósofo Friedrich Nietzsche, o músico


ao vender sua força de trabalho para sobreviver, inseria-se em condições similares à dos
outros trabalhadores assalariados. Ou seja, o trabalho do assalariado já não era seu, pois
pertencia a outro. Comenta Wagner (1997, p. 35):

Se, ainda há pouco, um artista apreciado estava habituado a receber das


classes desconfortavelmente despreocupadas da nossa próspera sociedade
um salário de ouro e podia aspirar a uma vida igualmente despreocupada e
confortável em troca de seus produtos de agrado público, há-de ser-lhe
difícil ver-se hoje em dia repelido por mãos fechadas e receosas e ficar
dependente das obrigações de um salário. Partilha assim por inteiro do
destino do trabalhador manual que noutro tempo podia ocupar a habilidade
das mãos na criação de mil e uma comodidades para o agrado dos ricos e que
hoje, ocioso, tem que as apertar contra o estômago vazio [sic].

Wagner considerava que a atividade artística não era trabalho (no sentido
alienante do termo marxiano), pois o artista trabalhador não estranhava o produto do seu
esforço, nem mesmo o considerava esforço, sobretudo porque “experimentava prazer na
manipulação dos materiais e na respectiva modelação; uma tal actividade produtiva é em si
mesma e por si mesma compensatória e plena de satisfação [sic]” (WAGNER, 1997, p. 72). A
75

relação do trabalhador com o produto de seu trabalho dar-se de modo estranho, logo, também
um na expressão marxiana estranhamento-de-si. O trabalhador se desgasta trabalhando para
criar um mundo objetivo, rico na diversidade dos objetos, mas para isso se aniquila no
produto do seu trabalho, este é para o homem uma via de acesso ao dinheiro (valor abstrato)
tendo em vista a aquisição do produto alheio.
O trabalhador assalariado, cujo produto do trabalho é alienado, tem por objetivo o
valor abstrato do dinheiro. Nesse sentido, ele, o trabalhador,

interessa-se apenas pelo objetivo dos seus esforços, pela utilidade que possa
colher do seu trabalho; a actividade que pratica não lhe traz satisfação,
constitui tão somente um fardo, uma necessidade incontornável, que de bom
grado empregaria uma máquina. O trabalho só o prende por obrigação e é
por isso que o assalariado tem o espírito ausente daquilo que faz e passa o
tempo a pensar noutros objetivos que pretende atingir tão depressa quanto
possível (WAGNER, 1997, p. 35).

Wagner no texto A arte e a revolução coloca a submissão dos artistas aos


caprichos do capitalismo. Por isso se refere aos artistas de sua época como “escravos a quem
hoje banqueiros e proprietários de fábricas ensinam que o objetivo da existência é ganhar o
pão de cada dia pelo trabalho assalariado” (WAGNER, 1997, p. 78). E diz ainda: “se o artista
grego era compensado antes de mais pelo seu próprio prazer na obra de arte e depois pelo
sucesso e pela aprovação pública, o artista moderno está marrado a um contrato e um salário”
(WAGNER, 1997, p. 71). Nessa perspectiva, a arte moderna é o que o compositor alemão
denomina de salariato artístico. Mas o que especificamente Wagner desejava era que o
homem tivesse uma vida digna, onde não fosse levado a investir toda sua energia no árduo
ganho para suas necessidades materiais, e; pudesse sentir a alegria na sua existência.
Ao longo dos tempos têm surgido algumas tensões existentes no âmbito do
exercício da profissão musical entre os profissionais da música e o mundo do trabalho. A
aproximação conceitual do músico à qualidade de operário da música força a se pensar que o
que ele vende na verdade é sua força de trabalho e não seu trabalho, como ficou exposto
anteriormente. Todavia, o músico luta pelo reconhecimento de seu trabalho objetivado na sua
obra; o que não implica na redução desses argumentos a uma noção romantizada da imagem
do músico, cuja prática encontra-se totalmente ausente de argumentos monetários e mercantis.
Mas é preciso que se notem outros aspectos trazidos à superfície com advento do
Romantismo no século XIX; especificamente uma concepção de atuação que se pauta por
expressar as idiossincrasias de cada artista:
76

A obra musical produzida pelo Romantismo contribuiu esta função,


facultando a afirmação de outra, individualista, e antes de ordem psicológica
e estética. A música tencionava ser expressiva, exprimir o sentimento
pessoal do músico e estabelecer um novo contato com a platéia, que não
mais delegava ao músico a tarefa de expressar seus sentimentos coletivos:
reunia-se para ouvir a música proposta. E o músico – este o seu novo papel –
há de impor ao público sua maneira pessoal de sentir (MASSIN; MASSIN,
1997, p. 665).

Mas aos artistas, ao contrário [dos artesãos e posteriormente na sociedade


industrial, dos trabalhadores assalariados, que valiam enquanto ‘massa’], e
justamente, por que trabalhavam separados uns dos outros, só valiam
enquanto indivíduos. Nestas origens difíceis, é que reside a refractariedade
dos artistas em se organizarem para a defesa de seus direitos. E isto ainda
prossegue existindo, apesar de que o produto do trabalho artístico assume,
sempre e cada vez mais, características de mercadoria (SODRÉ, [19--?])33.

Ou seja, é dessa concepção romântico-individualista do trabalho artístico, que


deriva as concepções estético-estilísticas, – conteúdo emocional e reações subjetivas. Porém,
é partir desse reconhecimento à livre expressão, que haverá por parte dos artistas, resistências
ao modo mercantil que organiza e monopoliza o mercado das artes. O músico, antes
exclusivamente preso ao fornecimento de música funcional, didática ou para entretenimento,
“torna-se um artista com mensagem” (RUSHTON, 1991, p. 71). Geralmente se aponta que
foi a partir de Beethoven que o músico obtém a independência pela comercialização de sua
própria produção, exercendo livremente seu espírito criativo. Rushton (1991) lembra que,
sem amenizar a importância de Beethoven nesse processo (contínuo) de emancipação, ele
apenas viveu num determinado contexto sócio-econômico-social que possibilitou visualizar
esse estado emancipatório, considerando ainda que foram raros os momentos em que lhe
faltaram proteção. Essa emancipação do músico, não está desvinculada do fato de que “a
música passa de ornamento secundário na vida da elite social e de instrumento de culto
religiosos, da festa e do cerimonial, ao estatuto de importe item da vida cultural” (RUSHTON,
1991, p. 415).

3.5 RETRATOS DO TRABALHO E EXERCÍCIO DA PROFISSÃO MUSICAL NO


BRASIL

3.5.1 A boemia não dá camisa a ninguém: o músico evidenciando a questão do trabalho

33
Documento online não paginado.
77

O fim do regime escravocrata no Brasil e o crescimento demográfico da cidade do


Rio de Janeiro ao longo do século XIX revelam-se como elementos importantes para a
reflexão a respeito das transformações que modificaram o perfil dessa cidade.
A Lei Áurea foi percebida por alguns como uma ameaça a ordem pública,
sobretudo, pelo menos no que tange ao direito do cidadão, mais exatamente por nivelar todas
as classes repentinamente, o que se pressupunha conseqüências inesperadas no que diz
respeito aos novos hábitos sociais e mudanças significativas nas relações de produção.
No que diz respeito às mudanças decorrentes do crescimento demográfico, é
preciso destacar que entre os anos de 1870 e 1890, o crescimento populacional dessa cidade
aumenta respectivamente de 250 para 500 mil habitantes. O Rio de Janeiro era nesse
momento, a cidade de maior população do Brasil. Um dos problemas emergidos, em
decorrência desse crescimento populacional, foram os graves problemas sanitários que se
alastravam pela cidade. No Rio de Janeiro oitocentista, eram frequentes os casos de epidemias
que se difundiam pelo espaço urbano, tais como a febre amarela e a cólera34. As
proliferações do mofo e de insetos também causavam grandes danos à saúde pública. Esses
problemas, em grande medida eram causados pelos hábitos e posturas assumidos pelos setores
mais populares, ao lado de outros como a falta de água potável e a ausência de redes de
esgotos.
Diante disso, as autoridades adotam então, um projeto de ordenação social, no
intuito de ordenar o conturbado espaço urbano, baseado, sobretudo na medicina social. Por
sua vez, a medicina (higienista)35, incorpora também um discurso de ênfase moral e educativa,
de ordem e progresso. Nesse sentido, os tratados de higiene da época, a exemplo dos
manuais de boas maneiras europeus, possuíam proeminência catequizante e evidenciavam um
conjunto de valores e códigos sociais que passaram a orientar o indivíduo em direção a um
cotidiano higienizado e assim, no entender das classes dominantes, civilizado36. A perspectiva

34
O jornal Correio da Manhã, de 14 de novembro de 1904, assim como outros jornais da
época, registra a indignação do povo em relação à instituição da lei que instituía a vacina
obrigatória. Diz o jornal: “Foi extrema a indignação que o projeto do regulamento da vacina
obrigatória excitou no ânimo de todos os habitantes de Rio de Janeiro, cuja sensibilidade
ainda não embotou interesses dependentes do governo e da administração sanitária”
(VACCINAÇÃO..., 1904, p. 1).
35
Michel Foucault falando sobre o nascimento da medicina social distingue três etapas sobre o
seu processo de formação. A medicina de Estado, medicina urbana e a medicina da força de
trabalho (FOUCAULT, 1986).
36
A partir da descoberta do médico inglês William Harvey (1578-1657), sobre a circulação do sangue ainda em
1628, muda-se paulatinamente a compreensão sobre o corpo. A saúde passa a ser vista como responsabilidade
78

de ordenar a desordem urbana, viabilizando as mudanças que anunciavam a construção de


uma nova ordem (burguesa) na sociedade brasileira, fez-se presente de um modo
particularmente marcante nas reformas administrativas implementadas pelo engenheiro e
então prefeito Pereira Passos, entre os anos de 1902 e 1906. A desordem orgânica da nova
cena urbana teve como protagonista o mundo da desordem, ele aparece como responsável
pela desordem não só física, mas também pela desordem moral e social da cidade.
Intimamente ligado ao “mundo da desordem” está o “mundo do trabalho”, composto de
segmentos sociais menos favorecidos. As pessoas que viviam à margem do mercado de
trabalho, desclassificados, eram imediatamente associadas, no entender das classes
dominantes da época, com o mundo da desordem (ENGEL, 1989, p. 23). A ideia de mundo
do trabalho era diferente ao sentido à que hoje empregamos. Aqueles que buscavam
determinar a ordem imperial passaram a distinguir três mundos: o mundo do governo
(proprietários que constituíam o conjunto de cidadãos), o mundo do trabalho (escravos – não
cidadãos) e o mundo da desordem (vadios, alcoólatras, mendigos e prostitutas). O termo
vadio faz referencia a ideia de não trabalho e demarca o universo de atividades que se
situam fora da margem da estrutura de produção (ENGEL, 1989). Cabe salientar que a partir
da abolição da escravatura, tem-se o entendimento de que o escravo liberto (tido como ocioso)
deveria ser transformado em trabalhador, num cidadão honesto e produtivo interessado no
bem comum e respeitoso da propriedade privada. Essa transformação (do trabalhador escravo
para o trabalhador livre) já não deveria ser pela violência (à isso já bastava o período da
escravidão), mas pela inculculcação de que ele, o indivíduo ex-escravo, deveria se tornar um
cidadão útil, amando acima de tudo, o trabalho. O Trabalho, como defendido na época, era o
valor supremo da vida, o elemento que caracteriza a vida civilizada. Todavia, como incutir

individual em vez de dádiva de Deus, a começar pela limpeza da pele, alterando desse modo, hábitos de vestir
e de asseio pessoal (SENNET, 2003). A Pele, sendo um órgão respiratório de significativa importância, deveria
ser mantida em bom estado de limpeza. A salubridade é base material hábil em garantir a saúde dos indivíduos.
É nessa perspectiva que a prática do banho é difundida. O banho começa a aparecer na literatura, nos romances
e memórias. Tomar banho e limpar as fezes do corpo tornou-se uma prática particularmente urbana e de classe
média. A partir de meados do século XVII, o banho é praticado nos países quentes, embora mais comum para
mulheres aos poucos fica reservado à limpeza das partes intimas. É considerado ainda nessa época como
prática de luxo pelo custo despendido. Nesse sentido, o banho marca as distinções sociais, como delimitação
do espaço burguês, impondo, pela sua hierarquização social, um código de distinção. Nesse contexto, a
insalubridade denota ignorância e atraso e o progresso da sociedade só poderá vir através de uma visão,
normatizadora do caos social. Impera a idéia de homem saudável, não doente, homem modelo (e modelado). A
idéia de corpo limpo saudável sugeria também que o próprio desenho urbano da cidade deveria possuir as
mesmas características de higiene por analogia ao corpo. Nasce aqui o conceito de medicina urbana e
higienista. Gondra (2004) ressalta que o modelo de formação dos indivíduos ao longo do século XIX, no
Brasil, pauta-se antes de tudo num projeto higienizador e moral que inclui questões relativas à salubridade da
localização e arquitetura escolar, vestimenta e cuidados pessoais, nutrição exercícios físicos, eliminação dos
resíduos no corpo e modelação dos sentidos, vinculadas aos sentidos da visão, do tato, do olfato e do paladar,
educação moral e religiosa.
79

essa ideia de trabalho no homem que adveio recentemente da escravidão? Construindo na


mentalidade dos indivíduos uma ideologia do trabalho. Noutras palavras,

[...] o conceito de trabalho precisava se despir de seu caráter aviltante e


degradador característico de uma sociedade escravagista, assumindo uma
roupagem nova que lhe desse um valor positivo, tornando-se então o
elemento fundamental para a implantação de uma ordem burguesa no Brasil
(CHALHOUB, 2001, p. 65).

A construção do conceito do trabalho irá se sustentar em vários pressupostos,


entre eles está a ideia do trabalho como elemento ordenador da sociedade, a relação entre
trabalho e moralidade (surgimento da elaboração do conceito de vadiagem) e a inculcação do
respeito religioso a propriedade privada. Era preciso, sobretudo, educar o ex-escravo para
vontade de possuir algo, de forma honrada (com trabalho e suor). Trata-se também de um
estímulo para que o trabalhador se disponha agora, uma vez liberto, a vender sua força de
trabalho. Mas isso não deve ser entendido que agora era dada a oportunidade ao liberto de
possuir propriedades e ser próspero; essa ideia visa tão somente incutir no cidadão que se ele
for econômico, viverá mais confortavelmente (CHALHOUB, 2001). Para se implementar esse
projeto de salvação pública para império do Brasil, “era preciso incutir no cidadão o
hábito do trabalho, pois essa era a única forma de regenerar a sociedade, protegendo-a dos
efeitos nocivos trazidos por centenas de milhares de libertos” (CHALHOUB, 2001, p. 71). A
partir daí, adota-se um projeto de catequização ideológica na edificação do ideário de homem
novo, civilizado, muito embora nem sempre disposto a incorporar essa nova ordem (como no
caso da revolta das vacinas37). O discurso higienista não se restringe a difundir conselhos de
ordem sanitária, mas também de vida equilibrada, almeja reger as relações físicas mentais do
indivíduo e da sociedade em que se vive. Nesses termos, o homem saudável, não doente é o
homem modelo de uma sociedade que adota o ideário do lema ordem e progresso para o seu
desenvolvimento. Assim, ganha importância, nesse contexto, o indivíduo trabalhador, que não

37
Os cantadores de modinhas, entoadas em rimas, aproveitaram-se de temas polêmicos para tratá-los de modo
extrovertido, registraram através da música, além de outros temas, a “volubilidade, a despreocupação, a ironia
complacente do malandro nacional exteriorizadas nas canções resultantes de grandes agitações como as
causadas pela lei do selo, a reforma da higiene, a vacina obrigatória” (RIO, [1951?]). Nas palavras de João do
Rio “o selo só fez compreender ao malandro que os fornecedores podiam ser multados” [...]: “Sapateiro já não
pode / Bater sola sossegado / Se não selar as botinas / Catrapuz! está multado” (RIO, [1951?]). Do mesmo
modo em relação a lei da vacina. “Uma das canções mais populares sobre a peste bubônica tem este estribilho:
Os ratos fazem qui, qui, qui / Qui, qui, qui, qui, qui / As pulgas pulam daqui / Pra ali, dali praqui, daqui prali /
Os gatos fazem miau / Miau, miau, miau / Quem inventou a peste bubônica / Merece muito pau” (RIO,
[1951?]).
80

é dado à vadiagem e contribui para os objetivos do estado. Com o músico trabalhador, tema
central desse capítulo, tais preceitos não estão noutra via.
Até a primeira metade do século XX o discurso sobre o trabalho aparece como
central, junto à ideia de progresso da nação. Conforme escreve Martins Castelo, cronista de
rádio, em 1942, se reportando a década passada.

Os nossos autores têm-se entregue, na verdade, com excesso, ao elogio da


vadiagem, à exaltação do vagabundo de camisa listrada. Quem não se
recorda daquela crítica de Sinhô ao honesto Claudionor, que para sustentar a
família, foi fazer força na estiva, carregando fardos de sessenta quilos? E há
muitos outros exemplos, principalmente entre as músicas carnavalescas,
sempre tão cheias de malícia. Merece até ser registrada, como uma boa
blegue, a desculpa daquele sujeito que dizia que o seu pai trabalhara tanto
que ele já nascera cansado. A figura do ‘seu Oscar’ só apareceu mais tarde,
com as leis que reconheceram e amparam os direitos do operariado, bem
como a derrubada das favelas (CASTELO, 1942, p. 174-175).

“Oh! Seu Oscar”38 (BATISTA; ALVES, [1940])39 é um samba de Wilson Batista e


Ataufo Alves, composto em 1940, cuja letra fala do malandro regenerado, agora trabalhador,
que logo após ser abandonado pela mulher, desiludido, resolve voltar pra orgia. Como nota
Zan (2004a), o samba não chega a fazer apologia ao trabalho·. “Ao contrário embora sendo
trabalhador, o personagem continua associar trabalho a sofrimento”. (ZAN, 2004a, p. 6).
Para Castelo (1942), o comportamento do malandro tem sua origem em raízes
históricas sociais. Acrescenta ele: “o capadocio, o capoeira e o malandro, três gerações de
desajustados, são o esquisitamento urbano do êxodo das senzalas no período imediatamente
posterior à emancipação dos escravos [sic]” (CASTELO, 1942, p. 175). Daí se explica,
segundo ele, também a origem do repúdio ao trabalho notado no âmbito dessas coletividades.
A imagem pública do músico, nesse momento, está associada à malandragem, aos bambas,
ao samba negro-proletário, a orgia, ao botequim, ao ócio, ao cabaré, à boemia, e à prostituição
(ZAN, 2004b). O malandro sambista faz parte de um segmento social, cuja fama possui
natureza pejorativa, e é construída no domínio dos subúrbios, botequins, em espaços sociais
de má fama.

38
“Cheguei cansado do trabalho / Logo a vizinha me falou / Ó seu Oscar / Tá fazendo meia
hora / Que sua mulher foi embora / E um bilhete deixou / O bilhete assim dizia / Não posso
mais / Eu quero é viver na orgia / Fiz tudo para ver seu bem-estar / Até no cais do porto eu fui
parar / Martirizando o meu corpo noite e dia / Mas tudo em vão, ela é, é da orgia / É... parei!”
(BATISTA; ALVES, [1940]).
39
Documento online não paginado.
81

É conveniente notar que os integrantes do Bando dos Tangarás, optaram de


início, pelo amadorismo. Decidiram não receber dinheiro pelas apresentações em casas de
família, clubes e shows. No máximo estavam dispostos a aceitar parcelas de lucros que as
gravadoras obtivessem com a venda dos seus discos. Havia de certo modo um
descompromisso em relação ao mercado. Almirante, um dos componentes desse conjunto
musical dá-nos um importante depoimento a esse respeito:

Comecei a compor e cantar em 1928, formando um conjunto, só de brancos.


Usei pseudônimo porque tinha vergonha de ver meu nome identificado ao
samba e à música popular. Nosso conjunto ajudou na aceitação da nova
música, porque nós não tocávamos por dinheiro. Participávamos de festas
familiares e dos primeiros salões que iam aparecendo no Rio, porém sempre
como diletantes (ALMIRANTE, 1963 apud PEREIRA, 1967, p. 228).

Para a classe média daquela época, viver de música ainda era considerado uma
prática que não gozava de boa reputação (ZAN, 2004a) (Só a partir do surgimento da Bossa
Nova é que é que se tem a superação do amadorismo musical no sentido artístico do tema. É
acima de tudo, um sinal de distinção entre música popular de qualidade e música comercial).
Aos poucos o samba e a música popular começam a ganhar prestígio, principalmente com o
surgimento de cantores e instrumentistas brancos “alguns até de boa família, como o Mário
Reis” (PEREIRA, 1967, p. 228).
Entretanto, durante a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, o Departamento
de Imprensa e Propaganda (DIP) convence aos sambistas compositores a utilizar como tema
em suas músicas o trabalho, em oposição, principalmente, a outros que fizessem alusão à
orgia e malandragem. Os sambas e marchinhas da década de 1940 faziam com freqüência
menção aos temas relacionados à despreocupação com a vida cotidiana.
Ainda no ano de 1938, o samba Tenha Pena de Mim40 (SOUZA; BABAÚ, [19--
?])41 ("Trabalho e não tenho nada, não saio do miserê”) (SOUZA; BABAÚ, [19--?]) provocou
discussões a respeito da letra entre o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e os
compositores. Em conseqüência dessas discussões viu-se a partir de então várias canções que

40
“Ai.. ai.. meu Deus! Tenha pena de mim / Todos vivem muito bem só eu que vivo assim / Trabalho e não tenho
nada, não saio do "miserê" / Ai.. ai.. meu Deus! Isso é pra lá de sofrer / Sem nunca ter, nem conhecer felicidade
/Sem um afeto, um carinho ou amizade / Eu vivo tão tristonho fingindo-me contente / Tenho feito força pra
viver honestamente / O dia inteiro eu trabalho com afinco / E à noite volto pro meu barracão de zinco / E pra
matar o tempo e não falar sozinho / Amarro essa tristeza com as cordas do meu pinho” (SOUZA; BABAÚ [19-
-?]).
41
Documento online não paginado.
82

glorificavam o esforço pessoal do indivíduo. Ou seja, com a intervenção do DIP o cenário


musical muda. Nas palavras de Castelo (1942, p. 175):

O samba desceu as ladeiras do morro para o asfalta das avenidas. E a certeza


de que o trabalho representa a primeira condição humana chegou também ao
reduto dos compositores. Os personagens do nosso cancioneiro empregam,
hoje, a sua atividade nas fábricas e nos estabelecimentos comerciais.
Sómente à noite, de regresso ao lar, pegam o violão, reúnem a turma no
terraço e principiam a batucada. Nos sábados, de palheta e terno branco
muito bem engomado, vão até a sociedade recreativa mais próxima, onde se
exercitam no convívio social [sic.].
Castelo (1942) retrata a figura do sambista malandro, agora proletário, dedicado
ao trabalho que participa da batucada apenas ao final do dia, após o labor, ou em dias de
folga. É nesse contexto que os compositores Wilson Batista e Ataulfo Alves, no ano de 1941,
compõem “O bonde de São Januário”42 (BATISTA; ALVES, [1941])43. A partir daí, torna-se
freqüente a apologia ideológica ao trabalho. Outro exemplo é a letra da música “Eu trabalhei”
de Roberto Roberti e Jorge Faraj (ROBERTI; FARAJ, [19--?])44. Alguém lembrou que “Jorge
Faraj morreu no Rio, em 1963, num hospital de [Instituto de Apoio a Pessoas Carentes e
Portadores de Câncer] (IAPC). Sem dinheiro, sem automóvel e sem mulher” (ÊLES..., 1968,
p. 65).
O samba na versão malandra apresenta-se como contra-discurso frente à ideologia
do trabalhismo disseminada pelo Estado Novo. O que não implica em se considerar que o
malandro tenha se alinhado por completo a ideologia da ordem pré-estabelecida do Estado,
não obstante suas convicções estivessem abaladas. Na própria canção de Wilson Batista, há
versões de que a palavra “otário” teria sido substituída por “operário” (ZAN, 2004a, p. 6). Um
modo de preservar a liberdade de expressão e atender simultaneamente os interesses
ideológicos estadonovista. Essas questões são importantes para se pensar a questão da
profissionalização do músico num país onde a tradição da malandragem foi tão forte, e,
refletirmos até que ponto isso não reforça a informalidade que sempre predominou no mundo
artístico.

42
“Quem trabalha é quem tem razão / Eu digo e não tenho medo de errar / O bonde de São
Januário / Leva mais um operário / Sou eu é que vou trabalhar / Antigamente eu não tinha
juízo / Mas resolvi garantir meu futuro / Sou feliz, vivo muito bem / A boemia não dá camisa
a ninguém” (BATISTA; ALVES, [1941]).
43
Documento online não paginado.
44
“Eu hoje tento tudo, tudo que um homem quer/ Tenho dinheiro, automóvel e uma mulher/
Mas para chegar ao ponto em que cheguei/ Eu trabalhei, trabalhei, trabalhei/ Eu hoje sou feliz/
E posso aconselhar/ Quem faz o que eu já fiz/ Só pode melhorar/ E quem diz que o trabalho/
Não dá camisa a ninguém/ Não tem razão. Não tem, não tem” (ROBERTI; FARAJ, [19--?]).
83

Ao situar o trabalho num contexto específico da atividade artístico-musical (o do


músico sambista-malandro) não se ignora, de modo algum, outros contextos. Com isso, num
primeiro momento, se pretende apenas enfatizar a marginalização a que esteve exposta o
exercício da profissão musical no Brasil. Além do que é preciso destacar que a origem do
ofício musical, especificamente o de músico instrumentista, no Brasil esteve ligado às classes
menos favorecidas.
Sob esse ponto de vista, cabe salientar que, no período colonial o emprego do
negro-escravo, treinado para o exercício musical, era bastante comum. Excetuando-se os
músicos mestres, os demais eram negro-escravos-músicos integrantes de bandas, orquestras e
coros dos senhores de engenho.

Os choromeleiros aparecem abundantemente nas procissões e actos públicos


em geral de Villa Rica e Mariana e destes choromeleiros veio, sem dúvida, a
tradição das serenatas ao ar livre, percorrendo as ruas ou actuando na Casa
Grande das fazendas, porque a palavra choro ou seresta (seresteiro), que se
prolongou nos conjuntos de profissionais e de amadores até entrado este
século, tem a mesma origem [sic] (KIEFER, 1982, p. 35).

Para os donos de Casa Grande, possuir negros músicos, choromelleyros,


demonstrava sinal de distinção. Todavia, não menos importante foi a participação do mulato
livre no desenvolvimento da música brasileira. Já em meados do século XVIII, Tinhorão
(1998) registra na sua História Social da Música Popular Brasileira a presença dos barbeiros,
profissionais liberais, denominados de barbeiros cirurgiões, classe de profissionais que se
dedicavam nas horas em que não estavam exercendo o ofício, à atividade musical.
A ocupação de barbeiros cirurgiões, provavelmente foi um dos poucos ofícios
urbanos a deixar tempo livre, para, por exemplo, o aprendizado musical. O ofício de barbeiros
era um dos muitos que os senhores de menores posses faziam os escravos negros aprenderem,
no intuito de ganharem seu sustento e ainda contribuir com a dispendiosa manutenção da
mão-de-obra escrava. Tinhorão enfatiza que “nos anúncios de vendas de negros, jamais um
senhor esquecia de citar um predicado musical do seu escravo [sic.]” (TINHORÃO, 1997, p.
129).
A música de barbeiros atendia a necessidade de divertimento nas novas camadas
sociais urbanas, nos dois principais centros urbanos do vice-reinado no Brasil (Rio de Janeiro
e salvador) a partir de meados do século XVIII45.

45
A música de barbeiros contém a essência evolutiva e constitutiva da formação da classe de profissionais da
música no Brasil: “tudo através de uma curiosa evolução que, partindo de pobres negros barbeiros, de pé no
84

Falando sobre a importância do mulato baiano e pernambucano no


desenvolvimento da música mineira, o professor e compositor Bruno Kiefer, amparado nos
estudos do musicólogo Francisco Curt Langer, descreve que os mulatos, músicos livres,
procuraram ascensão social através dos ofícios, entre estes, destaca-se o da música. Para se ter
uma ideia dessa expressiva participação, pode-se colocar o fato de que, em decorrência da
demanda pelo ofício musical, ocorreu a paulatina substituição, a partir da segunda metade do
século XVIII, do músico-padre pelo músico-leigo.
O exercício público da música possuía, na maioria das vezes, vínculos à função
religiosa, desempenhado no âmbito de eventos populares (casamentos, enterros, saraus), cuja
produção musical estava sujeita a um contrato. Outro ponto importante a se destacar é o fato
de que se dedicavam também ao ensino da música.
Outros aspectos do exercício público da profissão musical são registrados pelo
cronista, teatrólogo e contista carioca João do Rio (1881-1921) no livro A alma encantadora
das ruas (1908). Escrevendo em crônicas o autor descreve aspectos relacionados à
urbanização da cidade do Rio de Janeiro, no final do século XIX e início do XX,
transformando o aspecto da cidade e acrescentando novos personagens à nova cena urbana.
Fala sobre as típicas e pequenas profissões ainda encontradas numa cidade em vias de
urbanização, entre elas, a de músicos ambulantes, exercidas muito freqüentemente por
pessoas inutilizadas para o trabalho convencional, que viam no ofício musical uma forma de
ganhar o sustento.

Novamente à beira das calçadas a Valsa dos Sinos e O Guarani se


desarticulam em velhos pianos; novamente sujeitos, que parecem cegos,
rodam a manivela dos realejos, estendendo a mão súplice, numa ânsia de
miséria; novamente, depois de alguns trechos da sonante Boêmia, um pire-
sinho de metal se vos oferecerá desejoso de níqueis. E todos vós, que sois
bons, e todos vós, que gostais de música, haveis de deplorar os coitados que
alegram os outros para viver na miséria, com a alma varada de dor, e todos
vós sofrereis a crise de harmonia. Oh! A música! (RIO, 1987, p. 45).

João do Rio conta que os músicos ambulantes criavam suas estratégias para poder
sobreviver da música e que, embora não tivessem boa aparência, não eram mortos de fome.

chão, passaria sucessivamente aos mestiços da baixa classe média do fim do século XIX, conhecidos por
chorões, e aos músicos profissionais do rádio das três primeiras décadas do pressente século, para chegar aos
rapazes de bem da década de 60, cultivadores da chamada bossa nova” (TINHORÃO, 1997, p. 133).
85

Não pensemos, porém, romanticamente, que todos os músicos morrem de


fome ao cair das ilusões. Antes pelo contrário. A biografia de cada um serve
de assunto a todo o boêmio desejoso de ser feliz. Quem conhece o Saldanha,
um velho português baixo, gordo e cego, que viola há mais de vinte anos
com um negro também cego da ilha da Madeira, flautista emérito? Esses
dois cegos eram acompanhados por um guitarrista escovado, que tocava,
fazia a cobrança e ainda por cima era poeta, compunha as cançonetas (RIO,
1987, p. 46-47).

Acrescenta ainda,

E não se trata de um caso esporádico. O resultado é geral. O José, italiano


capenga, que chegou ao Rio em 1875, alugou, para não trabalhar, um piano
de manivela. Em seguida, o seu espírito inventivo foi até comprar um realejo
com bonecos mecânicos, entre os quais havia um de mão estendida, que
engolia as moedas e punha fora outra qualquer coisa. Esse boneco, a valsa
dos Sinos de Corneville, o Caballero de Gracia e o Bendengó deram-lhe uma
fortuna (RIO, 1987, p. 46).

Viver de música não significava exatamente estar sob o mundo da orgia. João do
Rio cita o caso de Vicente, um músico italiano que se fazia passar por cego e com seu ofício
sustentava a família. Mas havia também os portadores de realejos escravizadores, músicos
malandros que viviam de modo epicurístico dedicados às mulheres, ao jogo e vinho.
De certo modo, o músico ambulante ganhava o necessário para permitir-lhe o
sustento básico. Ainda que João do Rio afirme que esses músicos ambulantes, em muitos
casos, ganhavam rios de dinheiro.

Quase todos esses músicos ambulantes e aventureiros ganham rios de


dinheiro, vivendo uma vida quase lamentável. No forro dos casacos velhos
há maços de notas, nos cinturões sebentos, vales ao portador. O público para,
olha aquela tristeza, imagina no automatismo dos gestos, na face que pede,
no sorriso postiço, a fome dos artistas, a miséria dos deserdados da sorte, e
sonha as agonias, como nas óperas, em que os tenores morrem ao sol, sob
um céu lindo, cantando. [...] Por trás dessa fachada há tanto interesse como
no negociante mais avaro e tanta vaidade como num artista lírico mais
vaidoso — porque esses músicos ambulantes, humanos como todos nós,
nascidos neste mesmo século de vaidade, regulam os seus ideais entre a
pretensão, o alto juízo do próprio valor e o número de moedas da coleta. Oh!
a música, as árias perdidas no ruído das ruas...Alguém já assegurou que a
alma do homem conhece sua natureza pelo canto. Cheguemos à suave
conclusão de que conhece a natureza e o resto. De que serviria um realejo
senão assegurasse ao seu possuidor, além do conhecimento da própria alma,
a satisfação do estômago? Há talvez em outras terras, mais gastas e mais
frias, a miséria dos músicos ambulantes, sem fogo, sem pão, caindo sob a
neve, depois de uma dolorosa vida. Aqui não; os músicos prosperam, o
realejo é uma instituição, e do alto azul, a harmonia bondosa da natureza,
musa da vida e da alegria, derrama o consolo incomparável do calor e da luz
86

(RIO, 1987, p. 48).

Aliado ao fato de que no contexto citado por João do Rio o músico consegue
ganhar dinheiro exercendo sua atividade, é fundamental destacar dois tipos diferentes de
profissionais da música: o artista lírico e o músico ambulante. Aqui a exposição da imagem
do músico ambulante é construída como uma pessoa pouco asseada e que apesar de ganhar
rios de dinheiro, é pedinte, que vive uma vida quase lamentável. Mesmo na condição de
deserdado da sorte, o músico ambulante se mostra tão vaidoso como um artista lírico. Num
ponto ele se iguala a qualquer outro comerciante; na ânsia de ganhar dinheiro. Mas como
argumentado por João do Rio, “de que serviria um realejo senão assegurasse ao seu possuidor,
além do conhecimento da própria alma, a satisfação do estômago?” (RIO, [1951?])46.
A literatura clássica brasileira nos fornece exemplos curiosos a respeito da
imagem pública do músico em finais do século XIX e início do século XX. Considerado
mestre do violão e da modinha Cassi Jones de Azevedo, personagem do romance Clara dos
Anjos, é tido como sujeito mal afamado. Sua má fama se dava por já acumular em seu
currículo cerca de dez defloramentos e a sedução de muito maior número de senhoras
casadas. Tudo isso era associado ao modo como cantava e tocava seu violão, este,
considerado uma espécie de elixir do amor. Cassi não fazia acepção de pessoas. Para tirar a
honra das moças não escolhia classe social nem cor. Apesar de não possuir nem as melenas
comuns aos virtuoses do violão, nem traços do capadócio. Apresentava, no entanto, uma
única pelintragem que se adequava ao seu mister: o fato de “trazer o cabelo ensopado de óleo
e repartido no alto da cabeça, dividido muito exatamente ao meio - a famosa
‘pastinha’”(BARRETO, 2003, p. 25). Sujeito que Joaquim dos Anjos, pai de Clara, põe
profundas restrições a possibilidade de que ele venha a freqüentar sua casa. Era bem verdade
que Joaquim dos Anjos, gostava de música, mas considerava o violão, um instrumento
desmoralizador, além de ter Cassi como um quase analfabeto. A descrição de Barreto
(2003, p. 102), é esclarecedora quanto a postura do personagem em relação a música:

Conquanto razoavelmente empregado [Joaquim dos Anjos], nunca deixara a


música. Não tocava em bandas nem em orquestras; mas tirava partes,
instrumentava, compunha de quando em quando, ganhando algum dinheiro
com isso. Todas as tardes, após o serviço, reunia-se com outros músicos
militantes, bebericavam, conversavam, falavam sobre a ‘Arte’, as orquestras
de cinemas, a música de tal peça ou daquela outra, relembravam colegas
mortos; e, às seis horas, por aí assim, encaminhava-se para a casa, sempre
com um rolo de papel de música. Trabalhava nas encomendas, após o jantar.

46
Documento online não paginado.
87

Punha-se de calças e camisa de meia, nos dias quentes, ou com um paletó


velho, nos frios, e enfronhava-se nos compassos, nos sustenidos, nos
acordes, até alta noite. Tinha ensinado à filha os rudimentos da arte musical
e a caligrafia respectiva. Não lhe ensinara um instrumento, porque só queria
piano. Flauta não era próprio, para uma moça; violino era agourento, e o
violão era desmoralizado e desmoralizava. Os outros que o tocassem, sem
música ou com ela; sua filha, não. Só piano, mas não tinha posses para
comprar um. Podia alugar, mas tinha que pagar professora para a filha. Eram
duas despesas com que não poderia arcar. O rendimento da música não era
coisa certa; e os seus vencimentos tinham emprego obrigado no vestuário
seu, da mulher e da filha, no armazém, etc., etc.

Algumas pessoas eram da opinião que como músico Cassi não valia nada, não
aceitavam sequer que um sujeito considerado semianalfabeto, gozasse da fama de artista. Mas
o fato é que Cassi tinha fama, e sua fama era atribuída ao modo “dengoso, do meloso que ele
punha no cantar, chegando a ser até uma indecência. Ele cantava que parecia estar num café-
concerto, no meio de mulheres de vida airada [...]” (BARRETO, 2003, p. 105).
O escritor Lima Barreto, noutro romance descreve o alvoroço causado na
comunidade em motivado pela iniciativa do Major Policarpo Quaresma - personagem do
romance Triste fim de Policarpo Quaresma – em dedicar-se ao estudo do violão:

Sentado no sofá, tendo ao lado o tal sujeito, empunhando o ‘pinho’ na


posição de tocar, o major, atentamente, ouvia: ‘Olhe, major, assim’. E as
cordas vibravam vagarosamente a nota ferida; em seguida, o mestre aduzia:
‘É 'ré', aprendeu?’ Mas não foi preciso pôr na carta; a vizinhança concluiu
logo que o major aprendia a tocar violão. Mas que coisa? Um homem tão
sério metido nessas malandragens! Uma tarde de sol — sol de março, forte e
implacável — aí pelas cercanias das quatro horas, as janelas de uma erma
rua de São Januário povoaram-se rápida e repentinamente, de um e de outro
lado. Até da casa do general vieram moças à janela! Que era? Um batalhão?
Um incêndio? Nada disto: o Major Quaresma, de cabeça baixa, com
pequenos passos de boi de carro, subia a rua, tendo debaixo do braço um
violão impudico. É verdade que a guitarra vinha decentemente embrulhada
em papel, mas o vestuário não lhe escondia inteiramente as formas. À vista
de tão escandaloso fato, a consideração e o respeito que o Major Policarpo
Quaresma merecia nos arredores de sua casa, diminuíram um pouco. Estava
perdido, maluco, diziam. Ele, porém, continuou serenamente nos seus
estudos, mesmo porque não percebeu essa diminuição (BARRETO, 2005, p.
14-15).

O Major Quaresma não vê no estudo do violão uma atividade depreciativa. Até


chega a contradizer sua irmã dizendo: “Mas você está muito enganada, mana. É preconceito
supor-se que todo homem que toca violão é um desclassificado” (BARRETO, [20--?], p. 11).
Porém, a paulatina aceitação de artistas negros nos novos e importantes setores
ocupacionais emergentes, como as empresas fonográficas e o rádio, possibilitam novas
88

maneiras de se produzir e comercializar a música, e, conseqüentemente, novos espaços de


atuação profissional. Com isso, aos poucos a música popular vai ganhando prestígio nas
diversas camadas sociais. Juntamente com esse prestígio a que ascendia a música popular
(atrelada a um complexo cultural) ocorre a valorização do músico negro, até então
discriminado como cantor, instrumentista ou compositor. Apresenta-se então, para o músico,
novas oportunidades de trabalho entre elas, dar aulas de violão, instrumento antes mal
afamado:

Antes o violão era mal visto. Depois o violão começou a ganhar aceitação
nas camadas mais ricas da população. As moças de boa família começaram a
aprender violão. O Patrício Teixeira foi uma violonista prêto que encontrou
um nôvo meio de ganhar dinheiro ensinando violão para moças da sociedade
[sic.] (ALMIRANTE, 1963, p. 229).

É importante acrescentar que se trata não só da aceitação e incorporação de


artistas negros nesses novos papéis profissionais, mas da inclusão de instrumentos que até
então não possuíam uso no rádio e em orquestras:

Eu era músico desde 1919, mas quase não tinha trabalho. Um dia, em 1925,
um compadre meu que também era músico, veio a minha casa avisar que
uma orquestra famosa da cidade, que só tocava em danças, estava precisando
de músico. Fui procurar o maestro. Êle me perguntou o que eu sabia tocar:
violão, bandolim, pandeiro e tamborim, respondi. Então êle me perguntou: o
que eu é que eu vou fazer com você? Minha orquestra não tem repertório
que exija o uso dêsses instrumentos. Preciso é de um pianista e de um
violinista, e dos bons. Quando ia saindo, êle me chamou e disse: dê uma
demonstração do que você sabe fazer. Dei. Êle gostou mais repetiu as
mesmas palavras. Três anos depois fui procurado por êsse mesmo maestro
que foi logo perguntando: Você ainda quer trabalhar comigo? Eu disse:
quero. [...] Depois disso, toquei em orquestra de rádio; fiquei conhecido e
cheguei a tocar durante muitos anos no Cassino da Urca [sic.] (PEREIRA,
1967, p. 230-231)47.

Sou maestro desde 1919 e participei de todos os empreendimentos musicais


de São Paulo, por isso posso lhe garantir que o aproveitamento como músico
em nossas orquestras é coisa muito recente. Depois que o samba veio do Rio
foi que êle (o negro) surgiu na cena musical, principalmente aproveitado
como instrumentista de percussão. Honestamente antes de 1940 mais ou
menos, não me lembro de ser procurado por negros para compor a minha
orquestra. Depois havia muitas dificuldades: muitos lugares não aceitavam
orquestras com componentes negros. Isto não constava do contrato, mas era
combinado com antecedência. Eu não podia perder polpudos contratos só
para dar serviço para êste ou aquêle músico, por melhor que êle fôsse. Hoje é

47
Depoimento fornecido por um músico não identificado constante na obra de Pereira (1967,
p. 230-231).
89

bem raro o local que não aceite negro, cantor ou músico. Hoje êles estão na
moda. Mas naquele tempo [sic] (PEREIRA, 1967, p. 234)48.

As duas citações acima, apesar de longas, são de suma importância por recuperar
falas de músicos que vivenciaram o início da construção de todo um complexo cultural ligado
à música industrializada. Nessas narrativas destaca-se o fato de que até 1919 as oportunidades
de trabalhos para o músico eram escassas. Instrumentos como violão e bandolim, só tiveram
aceitação (pelo menos em São Paulo) algum tempo depois. E por último, a clara
discriminação sofrida pelo músico negro nesse contexto incipiente da música popular
industrializada.
A evidente marginalização do exercício da profissão musical no Brasil ainda hoje
pode ser constatada. No ano de 2002, como ministrante da disciplina Metodologia da
Pesquisa em Música, do curso de Bacharelado em Música da UFRN, realizamos uma
atividade como parte das tarefas curriculares da disciplina. Munidos de um arcabouço teórico,
organizamos um roteiro que incluía alguns questionamentos relacionados à iniciação musical
dos jovens da cidade de Acari, no Rio Grande do Norte. A atividade constava de coletas de
dados mediante a realização de entrevistas direcionadas aos músicos da banda daquela cidade.
Um dos entrevistados ao ser indagado a respeito da discriminação do ofício disse:
“Justamente, fui discriminado: ah, quem toca em banda é o cara que bebe: é o que fuma, o que
não presta, o desmantelado. E o pior é que eu era tudo isso [risos]” (informação verbal) 49.
Pode-se questionar no que diz respeito ao tema da marginalização da profissão do músico, que
tais fatos são notados apenas no âmbito da música popular. De fato, ela se fez mais presente
nessa esfera artística, numa época em que as noções de popular e erudito, no interior do
exercício da profissão musical, eram bem mais acentuadas que hoje. Não desconsideramos o
fato de que a aristocracia da época do Segundo Reinado Imperial, no Brasil, dava expressivo
apoio às artes. Mas o artista, de um modo geral, fosse ele músico, escultor ou pintor, caso
desejasse uma melhor formação tinha que ir estudar na Europa. Para concretizar tal projeto, o
músico que não dispunha de recursos financeiros, dispunha de poucas alternativas de apoio.
Uma delas era o prêmio viagem, dado pelo Conservatório de Música, vinculado a então
Academia de Belas-Artes, ou ainda, o poderia ser beneficiado pelo imperial bolsinho, uma
espécie de auxílio concedido aos artistas talentosos por Sua Majestade Imperial, ou
simplesmente aos que tinham a sorte de cair na sua graça. A versatilidade do músico no

48
Depoimento fornecido por um músico não identificado constante na obra de Pereira (1967,
p. 234).
49
Informação fornecida durante entrevista realizada junto a Banda Filarmônica de Acari Felinto Lúcio, na cidade
de Acari, Rio Grande do Norte em 2002.
90

Império ainda já era considerada uma estratégia de sobrevivência. Veja-se o caso de Vítor
Augusto Nepomuceno, pai de Alberto Nepomuceno. Ele acumulava as funções de violinista,
regente, professor, compositor e organista da catedral de Fortaleza. No que concerne a
atuação desses compositores da chamada música erudita já se demarcava um território.
Alguns críticos da época, entre eles, Oscar Guanabarino, defendiam existir duas extirpes de
compositores. Um, dedicado a música artística, autor de obras sérias e outro, fabricante de
música de danças, cuja produção era destinada ao mercado, sendo tocadas nos teatros e
editadas para consumo do público urbano 50. Geralmente esses artistas recebiam pela execução
da obra (espetáculo, encenação) e pela publicação da música impressa. É preciso lembrar que
até a transformação da música num produto industrializado, especificamente (para demarcar
temporalmente), com o surgimento da Casa Edson,

[...] as únicas possibilidades de ganhar algum dinheiro com música, no


Brasil, eram a edição de composições em partes para piano, o emprego em
casas de música, o trabalho eventual em orquestras estrangeiras de teatro de
passagem pelo Brasil, a conquista de um lugar nas orquestras do próprio
teatro musicado brasileiro, o fornecimento de música para dançar (grupos de
choro, ou apenas um piano) e, finalmente, o engajamento, como
instrumentista, nas bandas militares (TINHORÃO, 1981, p. 23).

Tinhorão (1981) esqueceu de citar que o magistério sempre foi um importante


campo de trabalho para o músico. O músico-professor, quase sempre alternou sua atividade
performática com o magistério. E encontra muitas vezes no ensino sua principal fonte de
renda. O magistério se apresenta como a possibilidade de ter um ganho garantido. Era
comum até a década de 1970, o músico atuar em várias instituições, uma alternativa de
ampliar seus ganhos. Como exemplo, podemos citar que o quadro docente da Escola de
Música da UFRN, nos anos de 1960 e 1970, era, em parte, composto de professores que
atuavam em até três Estados (Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte) deslocando-se
semanalmente para exercer suas atividades. Reconhecemos, também, que incluímos aqui na
categoria de profissional, músicos que, concomitante ao processo de urbanização do país,
dedicam-se a freqüentar cafés e bares, circos, gafieiras, enfim, espaços públicos onde tocavam
e cantavam muitas vezes em troca de uma gratificação:

50
A aceitação da música popular nas escolas e conservatórios só se dará bem mais adiante e paulatinamente.
Lembre-se que a criação do primeiro curso de nível superior em música popular no Brasil deu-se no ano de
1989, na UNICAMP. Anterior a essa data há casos registrados de alunos que foram proibidos de tocar música
popular no Conservatório ou Escola de Música.
91

As bodegas, como os botequins do tom, toleram de vez em quando os


músicos, com a condição de não lhes pagar nada. Em geral são sempre três
— os tercetos célebres. Há na Rua do Senhor dos Passos o do Amadeu com
as duas irmãs, que, por sinal, já fugiram; na Avenida Passos chefiado pelo
Barradas, cego — terceto famoso, por ter percorrido todas as cidades de
Espanha, de Portugal, do Chile, do Uruguai, da Argentina e do Brasil; o da
fábrica de cerveja Oriente, o da cervejaria Minerva, cujo chefe, o Antônio
rabequista, gosta de ser acompanhado de canto. A cervejaria enche-se de
trabalhadores atraídos pela alegria dos sons (RIO, 1987, p. 47).

Provavelmente se tomamos um determinado contexto histórico-temporal como


referencial (a década de 1940, por exemplo) o exercício da profissão musical, iremos
constatar que dos diversos espaços de atuação profissional destinados à música (rádios, cafés,
bares, orquestras, eventos em geral), poucos de fato, ofereciam condições de assalariamento,
fato ocorrente ainda hoje. Mas é inegável, como já colocado, que a partir do processo de
consolidação do mercado fonográfico no Brasil, criam-se novos espaços de atuação
profissional, resultando num novo mercado de prestação de serviços artístico-musicais.

3.5.2 O sucesso do trabalhador da música

A partir da década de 1960, tem-se em vias, a constituição e concretização de um


mercado de bens culturais no Brasil. Esse período é marcado por uma expressiva expansão na
distribuição e consumo de bens culturais no âmbito, desencadeada, mais precisamente, por
uma reestruturação política e econômica originado do projeto de modernização conservador
da sociedade brasileira após o golpe militar de 1964. Trata-se de um momento reestruturante
em que a economia brasileira se insere cada vez mais na internacionalização do capital.
Paralelo ao crescimento do mercado de bens materiais dá-se de modo enfático o
fortalecimento da produção de cultura e o mercado de bens culturais (ORTIZ, 1988). Entre as
causas disso, situa-se a criação da Embratel, no ano de 1965 e a conexão do Brasil ao Sistema
Internacional de Satélites (Intelsat). Desenvolvem-se, em grande medida, os setores editoriais,
publicitários, televisivos e fonográficos. Tal cenário pode ser mais bem visualizado, quando
levamos em conta alguns fatos, como o significativo aumento da produção literária, o
aumento e diversificação do setor de publicações de revistas, o crescimento do número de
salas de cinemas, como também o crescimento das vendas de televisores. Basta apontar que
no ano de 1970, 56% das residências brasileiras possuíam televisores, já na década seguinte,
em 1982, essa cifra aumenta para 73%, tornando a televisão um produto de consumo popular,
ao lado de aparelhos de reprodução sonora e outros eletrodomésticos (ORTIZ, 1988). Com a
92

venda crescente de aparelhos de toca-discos, decorrente também das facilidades que o


comércio proporcionava para sua aquisição, aumenta-se em maior proporção a vendagem de
discos. A pesquisadora Márcia Tosta Dias identifica quatro fatores como responsáveis pela
consolidação da indústria produtora de discos no Brasil nas décadas de 1970 e 1980: a) O
desenvolvimento de uma mentalidade empresarial; b) a consolidação do formato do Long
Play (LP); c) Significativa fatia do mercado ocupado com gravações de música estrangeira; e
d) a comercialização da música no âmbito da indústria cultural. O desenvolvimento de uma
mentalidade empresarial no setor implica a consolidação de um mercado de bens simbólicos,
marcado pela racionalidade capitalista. As empresas passam a ser geridas por profissionais
mais especializados em cada etapa do processo de produção. As décadas de 1940 e 1950, no
âmbito da indústria cultural, foram marcadas por um perfil de empresariado industrial que
atuava de maneira empírica. Podemos apontar esse momento como a consolidação das
condições básicas da produção. Já a década de 1970 foi marcada, na indústria do disco,
entre outros fatores, pelo uso de estratégias que definiriam as partes do mercado a serem
atingidas (ORTIZ, 1988). Reflexo disso é o fortalecimento e exploração da imagem do artista,
ou seja, a transformação de alguns artistas em celebridades da música, decorrente do
investimento das gravadoras na formação em um cast estável com objetivo de transformá-los
em artistas conhecidos na mídia. O crescente investimento, nos anos 70, na produção de LPs,
permitiu uma otimização dos custos de produção e isso possibilitou uma reestruturação
econômica e estratégica para o mercado. A produção de compactos, que anterior à década de
1970, superava significativamente o número de LPs, perde paulatinamente espaço para este
formato. O compacto irá funcionar como uma espécie de termômetro na verificação do
comportamento do consumidor frente ao produto. Finalmente, a interação da música popular
nos media, com a televisão exercendo um papel “preponderante na consolidação da indústria
cultural no Brasil” (ORTIZ, 1988, p. 128), faz com que tanto a divulgação de produtos
fonográficos em comerciais quanto a promoção de artistas nas trilhas das novelas e comerciais
televisivos impulsionem a vendas de discos. Desse modo, a consolidação de um mercado de
bens simbólicos, industrialmente convertidos em mercadorias será acompanhada, cada vez
mais, pela crescente racionalidade técnica inerente às instituições de caráter empresarial /
capitalista (ZAN, 2001).
O surgimento e a consolidação da indústria fonográfica foi um marco para a
história da música com um todo. O surgimento do disco é sem sombra de dúvidas uma
revolução: democratiza o acesso a música, rompe com fronteiras geográficas, permitindo
maior aproximação da música ao ouvinte (cujo acesso à música era exclusivamente
93

presencial, nas salas de concerto ou ao ar livre), traz novas oportunidades de emprego para o
músico (ampliando o até então restrito mercado), possibilita o surgimento de um mundo de
celebridades, dentre outras importantes mudanças ocorridas. Como coloca Tinhorão (1981, p.
23):

A gravação de músicas para venda em discos permitiu a profissionalização


de numerosos músicos de choro, até então dedicados a seus instrumentos
pelo prazer de tocar, ou, quando muito, recompensados magramente ao
tocarem em bailes ou festinhas de aniversários em casas de família.

Porém há que salientar das importantes mudanças ocorridas no âmbito da


indústria fonográfica, que mudaram o perfil desse setor nas últimas décadas, tais como: a
terceirização do processo de produção, surgimento do CD, barateamento dos custos de
produção (tendo como decorrência o surgimento dos estúdios caseiros), o advento das novas
tecnologias digitais de produção (criação, registro e duplicação da música gravada) e a
internet. É sabido que o CD é uma mídia tende ao desuso. No ano de 2007, nos Estados
Unidos, a venda de discos caiu 9,5% em relação a 2006, enquanto a venda de músicas avulsas
pela internet cresceu 45%. Traduzindo, trata-se de 844,2 milhões de faixas vendidas pela rede
mundial de computadores. Índices que estão em retração de vendas desde o ano de 1999,
segundo dados da ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PRODUTORES DE DISCOS (2007).
As gravadoras estão se transformando passo a passo em companhias digitais. De acordo com
a ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PRODUTORES DE DISCOS (2007), o lucro com
música digital no Brasil (Internet e Telefonia Móvel), apresentou no ano de 2007 um aumento
de 185% em relação ao ano anterior. As estatísticas apresentadas pela ASSOCIAÇÃO
BRASILEIRA DE PRODUTORES DE DISCOS (2007) enfatizam ainda que as vendas
através de telefonia celular aumentaram 157% em 2007. A grande questão hoje colocada para
os empresários das companhias fonográficas operantes de todo o mundo e artistas é a
dificuldade de se encontrar mecanismos que façam o consumidor pagar por essas músicas,
uma vez que facilmente se consegue gratuitamente, por meio do compartilhamento de
arquivos pela internet. Se a indústria fonográfica pode ser considerada um marco referencial
para o modo de se produzir, comercializar e consumir a música, hoje, os eficazes e complexos
meios de gravação, reprodução e divulgação da música, indica tratar-se de mais uma
revolução na área, que demandará estudos aprofundados.
94

Em decorrência da diversificação e ampliação do modo de produção e dos canais


de comercialização da música: TV 51 a cabo, rádios, TV aberta, espaço virtual, e os eventos em
geral (especificamente os festivais de música, a relação do músico com a música, antes
materializada no disco, seja LP ou CD, sofreu algumas transformações. Para ilustrar essa
afirmação, talvez pudéssemos situar a trajetória da dupla sertaneja Zezé Di Camargo e
Luciano como um dos últimos exemplos de sucesso artístico alcançado mediante a
intervenção da indústria fonográfica e seu complexo parque cultural. O filme 2 filhos de
Francisco, conta a trajetória de uma das duplas sertanejas que mais venderam discos no
Brasil na década de 1990. Trata-se da história dos cantores Zezé Di Camargo e Luciano. A
biografia tem como fio condutor o sonho do pai da dupla, Francisco Camargo, trabalhador da
roça, cujo desejo era que os filhos fizessem sucesso como dupla caipira, tais quais aquelas,
que tanto escutava no rádio. “Filho meu tem que ser alguém nessa vida” (informação
verbal) 52. Pensando no futuro do primogênito, Mirosmar (Zezé Di Camargo), confidencia a
esposa: “e se o menino não tiver mesmo jeito para música? Faço o que com ele? Vai passar a
vida arando terra como os outros?” (informação verbal) 53. Com um acordeão e um violão
presenteados pelo pai, ainda na década de 1970, aos onze anos, Mirosmar e seu irmão Emival
se apresentam em festas pelas redondezas do interior de Goiás. Tempos depois a família
Camargo, em decorrência da perda da propriedade, decide deixar a roça e se mudar para
Goiânia. Na cidade, Mirosmar e Emival resolvem tocar no terminal rodoviário para ajudar nas
despesas domésticas, até que se apresenta ao pai dos garotos Miranda, que se denominava
empresário de duplas caipiras, prometendo fazer dos meninos uma dupla de sucesso.
Miranda leva a dupla para tocar no interior do Brasil. Porém, fica por mais de três meses sem
dar nenhuma satisfação aos pais de Mirosmar e Emival. Com o retorno da dupla e descontente
com a irreponsabilidade de Miranda, os pais dos meninos resolvem não mais liberá-los para
os shows. Sem oportunidades nas rádios, diante do grande número de pessoas que também
procuravam uma oportunidade de mostrar o talento dos filhos, os pais dos meninos resolvem
contatar Miranda novamente, que dessa vez assegura enviar notícias semanalmente. Francisco
convence sua esposa Helena com seus antigos argumentos: “[se você não quiser liberar eles

51
Televisão (TV).
52
Informação verbal transmitida pelo personagem Francisco (pai de Zezé Di Camargo e
Luciano) exibida no filme: 2 FILHOS de Francisco: a história de Zezé Di Camargo &
Luciano. Direção: Breno Silveira. [Estados Unidos]: Sony Pictures, c2005. 1 DVD (129 min.)
53
Informação verbal transmitida por Mirosmar (Zezé Di Camargo) exibida no filme: 2
FILHOS de Francisco: a história de Zezé Di Camargo & Luciano. Direção: Breno Silveira.
[Estados Unidos]: Sony Pictures, c2005. 1 DVD (129 min.)
95

para irem com o Miranda] então diga para o seu filho que ele vai fazer faxina!” (informação
verbal) 54. Finalmente na estrada, a dupla tem boa recepção e chega a cantar para quantidades
expressivas de pessoas. Porém, num acidente automobilístico morre Emival, e, vê-se assim
interrompida de modo dramático o sonho da família Camargo. “Prestes a quase desistir de
cantar, Mirosmar retoma a carreira, anos mais tarde e agora como Zezé Di Camargo”. Em São
Paulo compõe para duplas sertanejas com projeção mídia e grava um disco solo, cuja
repercussão foi insignificante. Casado e com duas filhas, Zezé não consegue sustentar sua
família vivendo de música. Pensa mais uma vez em desistir. Nesse momento encontra em seu
irmão Welson (Luciano), onze anos mais novo, a parceria para o próximo disco. “Está quase
pronto, seu Adiel. Daqui a pouco estamos nas lojas, não estamos?” (informação verbal) 55.
“É..., não é bem assim... uma coisa é gravar, outra coisa é lançar o disco” (informação
verbal) 56. “Mas o senhor disse...” (informação verbal) 57. “Eu disse que ia gravar e estou
gravando..., e já é muito” (informação verbal) 58. No ano de 1990, Zezé Di Camargo e Luciano
gravam e lançam um disco com a música É o Amor, composta por Zezé. Com a ajuda do pai,
os 2 filhos de Francisco conquistam as rádios e vendem um milhão de discos.
No que interessa a nossa análise, intenciona-se destacar alguns aspectos referentes
à produção da música industrializada visualizados nesse filme. A primeira coisa a ser
destacada é a ideia do sucesso, reconhecimento e meta do trabalhador da música, via
indústria fonográfica. O músico cantor é visto como aquele que tem talento inato, cujo
reconhecimento e legitimação são mediados pela gravadora e expresso nos altos índices de
vendagens. Quando se vende grandes quantidades de disco, quando a música do artista é
tocada nas rádios e quando a imagem do artista é veiculada constantemente nos principais

54
Informação verbal transmitida pelo personagem Francisco (pai de Zezé Di Camargo e
Luciano) exibida no filme: 2 FILHOS de Francisco: a história de Zezé Di Camargo &
Luciano. Direção: Breno Silveira. [Estados Unidos]: Sony Pictures, c2005. 1 DVD (129 min.)
55
Pergunta proferida por Zezé Di Camargo ao produtor do disco (no estúdio) já prestes a
finalizar a gravação, exibida no filme: 2 FILHOS de Francisco: a história de Zezé Di
Camargo & Luciano. Direção: Breno Silveira. [Estados Unidos]: Sony Pictures, c2005. 1
DVD (129 min.)
56
Resposta proferida pelo produtor do disco a Zezé Di Camargo exibida no filme: 2 FILHOS
de Francisco: a história de Zezé Di Camargo & Luciano. Direção: Breno Silveira. [Estados
Unidos]: Sony Pictures, c2005. 1 DVD (129 min.)
57
Palavras proferidas por Zezé Di Camargo ao produtor do disco exibida no filme: 2 FILHOS
de Francisco: a história de Zezé Di Camargo & Luciano. Direção: Breno Silveira. [Estados
Unidos]: Sony Pictures, c2005. 1 DVD (129 min.)
58
Palavras proferidas pelo produtor do disco a Zezé Di Camargo exibida no filme: 2 FILHOS
de Francisco: a história de Zezé Di Camargo & Luciano. Direção: Breno Silveira. [Estados
Unidos]: Sony Pictures, c2005. 1 DVD (129 min.)
96

meios de comunicação, o artista é visto pelo senso comum como sendo alguém que
conseguiu vencer na vida. Outro aspecto merece destaque. O produtor musical de Zezé Di
Camargo e Luciano tinha razão: gravar um disco até a década de 1980, ainda exigia um
investimento com altos custos. Claro que paulatinamente, ocorre um barateamento nos custos
de produção, em parte pelo o surgimento de gravadores multicanais semiprofissionais,
tornando o estúdio mais acessível. Porém lançar um disco sempre foi sinônimo de grandes
investimentos. Sobre esse aspecto a Revista Veja, no ano de 1997, publicava uma matéria
intitulada Talento para fazer milhões onde tratava do rigoroso controle em todas as etapas
de fabricação do disco, para o fabrico do sucesso. O artigo coloca que “para subir ao topo das
paradas, faturar milhões e se tornar motivo de amor e paixão da platéia, talento é condição
necessária para vencer, mas está longe de ser suficiente ou mesmo determinante”.
(PIMENTA; SANCHES, 1997, p. 128).
Para se colocar um artista em alta no ápice do sucesso artístico é preciso um
investimento significativo (marketing e dinheiro). As gravadoras chegavam a ter custos mais
elevados com o processo de divulgação e distribuição do que mesmo com produção do
trabalho. Mas, não basta somente investimento financeiro, todo processo é subsidiado por um
detalhado planejamento e realização de pesquisa de mercado (PIMENTA; SANCHES, 1997).
A inserção do artista no mercado é apoiada pela divulgação do trabalho em horários nobres
nos diversos veículos de comunicação, distribuição grátis de discos, produção de videoclipe e
para garantir o estouro no rádio, recorre-se ao procedimento conhecido como new-jabá, ou
seja, uma espécie de acordo promocional conjunto entre várias emissoras de rádio. A
gravadora fornece às rádios brindes promocionais para que sejam sorteados entre os ouvintes.
Ao referir-se à diversificação dos investimentos e à segmentação do mercado fonográfico na
década de 1970, Dias (2000, p. 79) enfatiza a tendência das empresas de discos em se
concentrar na promoção do que se denominava “artista de marketing”, aquele artista que
possuía uma atuação delineada a partir de projetos específicos elaborados por produtores e
empresários. Era em artistas com esse perfil que se dava o maior investimento da empresa no
que diz respeito ao aspecto promocional. Já para o artista de catálogo, artistas com carreiras
já consolidadas, a maior parte do investimento era destinada à produção musical.
Hoje, mesmo em processo de extinção, o CD já não é mais um fim, e, sim um
meio do artista tentar conquistar uma fatia do mercado. As empresas fonográficas, já há
algum tempo com as várias etapas da produção terceirizadas, cuidam prioritariamente da
distribuição do produto, em ampliar a quantidade de produtos já existentes. A gravadora
97

apenas se apropria do produto já idealizado e materializado pelo artista e mediante os recursos


do marketing, tentam dá visibilidade ao produto no mercado.

3.6 O TRABALHADOR DA MÚSICA NAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO:


CORPORAÇÕES, CONSERVATÓRIOS E UNIVERSIDADES

Na música, o exercício do trabalho artístico, entendido muitas vezes na história


como atividade solitária e individual, será antes contextualizado na prática coletiva. As
escolas composicionais, antes de se tornar um rótulo, uma maneira, ou um estilo, de uma
inventividade particular, foi um magistério ideal em que os compositores eram iniciados no
estilo do mestre; uma comunhão de arte e vida que ligou entre si artistas com diferentes
vínculos abertamente declarados em suas obras. Harnoncourt (1993, p. 42) apresenta uma
interessante contribuição a essa afirmação:

Este é um fenômeno comum a todas as artes: outrora até os grandes pintores


omitiam freqüentemente a assinatura em seus quadros, pois normalmente
realizavam o esboço, deixando o acabamento a cargo dos seus discípulos.
Situação análoga é encontrada na música. Talvez devêssemos conceber o
trabalho de um compositor como Monteverdi (que tinha às vezes inúmeros
discípulos) da seguinte maneira: ele se ocupava, juntamente com o libretista,
da concepção global da obra e só escrevia pessoalmente os temas que lhes
pareciam mais importantes, contentando-se em esboçar o restante, que logo
era confiado a um dos seus melhores discípulos, como por exemplo,
Francesco Cavalli.

Aqui se faz necessário destacar a importância das corporações de ofícios 59. Eram
compostas por artesãos associados; mestres, proprietários das oficinas, os companheiros,
trabalhadores experientes no ofício que recebiam salário do mestre e os aprendizes,
geralmente adolescentes, que recebiam do mestre o ensino orientado para o exercício da
profissão. Cabe salientar que até o século XVIII, só as pessoas que trabalhavam por jornada,

59
Anterior as corporações de ofício, registra-se na Itália, durante a alta idade média as Scholae (associações de
ofício) constituída de pescadores e açougueiros. Há razões, segundo alguns autores, para se inferir que
provavelmente a utilização do termo Scholae pode indicar a preocupação não só com a formação, mas pode
que exibiam conhecimentos de natureza cultural e pedagógica, providos de singulares técnicas de transmissão.
O uso do termo ‘corporações’ somente passou a ser difundido na Itália a partir da segunda metade do século
XIX galgado num projeto fascista de neo-corporativização em prol do progresso econômico. O uso do termo
corporation, tanto para o inglês quanto para o francês, possui sentido comercial e industrial e assim também é
entendido no contexto americano. Muito embora no latin arcaico, corporatus significasse ‘membro de um
corpo moral’, onde o corpus poderia ser referir a uma associação ou uma comunidade - universitas (RUGIU,
1998, p. 24-25).
98

bem como os demais trabalhadores manuais eram remunerados pelo seu trabalho, só os
artesãos recebiam por sua obra. As corporações possuíam clara estrutura hierárquica,
regulavam a atividade produtiva bem como o acesso as técnicas de produção. Os estudos dos
aprendizes eram custeados pelos pais. O acesso a condição de mestre dava-se mediante a
elaboração de uma obra prima ou de outro modo, quem se casasse com a filha do mestre (ou
viúva), já sendo companheiro, era promovido à condição de mestre. Mas a rígida estrutura
hierárquica das corporações dificultava sobremaneira as promoções, o que acabou por revoltar
aprendizes e companheiros, que nutriam poucas esperanças quanto a possibilidade de
ascensão a melhores condições de trabalho, levando conseqüentemente ao desgastes dessas
entidades. Foram suprimidas com a Revolução francesa em 1789, pois foram consideradas
conflitantes com o ideal de liberdade do homem. As corporações de ofício se apresentam no
decorrer da história das profissões como entidades portadoras de um rigor organizacional
(mister) e dotada de um modo de fazer secreto (mistério), características de uma formação
profissional artesã. A tradição formativa artesanal até o século XIX considerava que

Ensinar, então, era principalmente dosar atentamente aquilo que se podia ou


não mostrar aos futuros concorrentes da arte, assim como aprender era a
atitude de intuir também além dos dados visíveis indicados pelo mestre,
depois de assimilar certas ‘maneiras’ de projetar e de realizar, suscetíveis de
imitação e, se possível de superação (RUGIU, 1998, p. 135).

Com essas características as Corporações delimitavam com rigidez o acesso de


novos aprendizes ao seu espaço. Elas dispunham de monopólio para o exercício da atividade,
bem como o próprio ensino, abrangendo um determinado território; do “poder discricionário
para certas condições convencionadas de gerir a instrução geral, a socialização e também a
qualificação e a inserção profissional dos aprendizes, uma vez vindo a ser ‘matriculados’ e
depois mestres naquela corporação” (RUGIU, 1998, p. 24).
Alguns traços constitucionais das Corporações podem ser nitidamente resultantes,
segundo Rugiu (1998), de elementos de ordem estrutural encontrados no âmbito dos
mosteiros, nos séculos VI-XI. Estes têm sua importância além da transmissão dos clássicos
conhecimentos e da preservação patrimonial da arte e livros. Destaque-se que é nesse espaço
religioso onde se desenvolve um modo de vida em que as atividades cotidianas davam-se de
maneira organizada e racionalizada.

No interior dos mosteiros, de fato, vigorava uma divisão técnica e social do


trabalho, segundo um rigor antes desconhecido, e que por si só constituía um
indubitável modelo formativo, de êxito certo, com estrutura e funções em
99

certos aspectos, não diferentes daquelas da sucessiva organização das


Corporações. A própria convivência de dois níveis paralelos, aquele do
Trívio-Quadrívio para sacerdotes e clérigos e aquele adestrador prático para
os artesãos, antecipa a futura bifurcação entre formação nas Artes liberais ou
nas Artes ‘mecânicas’ (RUGIU, 1998, p. 27).

Destaca-se no texto de Rugiu (1998), a convivência com dois tipos de


conhecimentos, um orientado a atender o mercado de trabalho intelectual (Artes liberais), e,
noutra via, paralela, outro (Artes mecânicas) destinado a qualificar a mão de obra técnico-
profissional e conseqüentemente dois tipos de profissionais, um “prático” e outro “teórico”,
categorias que irão se perpetuar antagonicamente ao longo da história.
As corporações de ofício no período em que paulatinamente marca sua extinção
(século XV ao XVII), passa por modificações significativas. Algumas oficinas vão se
diferenciando pelo grau de complexidade exigido às atividades desempenhadas. Atividades
como a pintura de um quadro exigem habilidade técnica, mas também se trabalha com outros
recursos (como por exemplo, a contextualização do tema, sensibilidade criativa, etc.) que para
o fabrico de uma mesa são desnecessários. Aqui se diferenciam os itinerários formativos do
artesão e artista artesão. O papel dos artistas na sociedade se ascende, muito embora ainda
tenham maior reconhecimento social os teólogos, médicos e juristas. Esse novo artista deveria
ostentar um refinamento cultural e profissional desenvolvendo habilidades de relações
públicas para melhor ouvir seus clientes. Entretanto, eram esses os perfis dos artistas “que
tiravam proveito, em primeira instância, da interessada atenção protetora do poder
econômico-político” (RUGIU, 1998, p. 95). Ofertar um repertório cultural, mesmo para
aqueles que queriam se adequar as novas exigências, ainda parecia ser algo extremamente
difícil para as tradicionais corporações. Mais tarde terão como concorrentes de formação as
academias, espaço reservado a cultura em geral e a formação profissional.
A separação entre a formação artesanal e a formação acadêmica já havia ocorrido
antes com pintores escultores, entretanto,

não afetava ainda os músicos da geração de J. S. Bach. De resto se se pensa


na grande transformação que sofreram os instrumentos musicais no século
XVII e nas invenções que permitiram deles obter novos instrumentos (basta
pensar no piano) e contemporaneamente na evolução notável das formas
musicais é necessário admitir que todas estas novidades deveriam
obrigatoriamente provir também de um conhecimento artesanal comum dos
próprios músicos, executores, compositores ou construtores (RUGIU, 1998,
p. 134).
100

Esse processo de des-artesanalização só se fará notar com a geração posterior a


Johann Sebastian Bach. Uma geração que passa a usufruir dos conservatórios, antigos abrigos
para órfãos, transformados em escolas de música com atributo de academia. Nos
conservatórios a ideia de segredos de ofício é sobrepujada pela inspiração, pautada no
aparato técnico-expressivo presente no currículo escolar dos conservatórios.
Juntamente com desenvolvimento da arte trovadoresca, aparece, no século XIII, o
que se denominou de Confrarias poéticas ou Academias. Na França, essas confrarias eram
chamadas de Puy, na Alemanha, se intitulava de Corporações de Ofícios, e na Península
Ibéria Confrarias. Essas corporações atuavam como uma espécie de escolas de música, de
caráter corporativo. Nelas eram ensinadas a arte musical e literária e os músicos submetiam-se
a vários níveis de aprimoramento; de aluno a poeta, e a mestre. Funcionavam com
regulamento e estatutos. No âmbito dessas corporações eram promovidos torneios poético-
musicais. No decorrer dos séculos XVI e XVII, na Itália, registram-se as primeiras
informações, sobre a existência de colégios de órfãos – escolas, onde se ensinava música a
jovens abandonados que estavam à margem social. Essas escolas posteriormente passaram a
ser chamadas de Conservatórios de Música. Foi Napoleão Bonaparte, na França, quem
implantou essas organizações musicais. Criadas inicialmente como Confrarias e em seguida
atuando como Conservatórios, as escolas de música, passam a deter um controle e influência
artístico-cultural sobre a atividade musical da sociedade. O ensino individualizado e
corporativo da música praticado na Europa se modifica.
A escola como instituição renomada de ensino suplanta aos poucos a figura do
mestre. Entretanto, não se pode afirmar que essa concentração da formação centrada na
instituição, ao invés da tradicional figura do mestre, tenha sido, a partir de então, algo
definitivo. Mesmo hoje a reputação ostentada de músico de excelência por profissionais da
música ainda é um forte atrativo para que estudantes optem em vir estudar com esses músicos
independentemente da instituição a que eles pertencem. Ou seja, a referência para o estudante
continua sendo, em grande medida, o mestre, e não a instituição. De qualquer modo a
instituição oficializa e legitima o saber perante a sociedade, mediante a expedição de
certificados e diplomas.
No Brasil o ensino da música, até meados do século XIX era realizado, em grande
parte, por meio de aulas particulares, sob a orientação de um mestre de música. Outra
importante via (além das bandas militares, comuns nos vários estados brasileiros) para o
ensino da música foi a igreja. Durante o período colonial brasileiro os espaços de acesso ao
aprendizado musical se davam através das Casas da Companhia de Jesus no Brasil, das
101

Escolas de Ler e Escrever, onde também os jesuítas ensinavam a cantar e tanger; nos
seminários, com um mestre de solfa; e, nas matrizes e catedrais com um mestre de capela60.
Durante o período imperial tem início no Brasil o ensino institucionalizado de música, a partir
da criação da Sociedade de Beneficência Musical, em 1833, transformado pelo Governo no
Conservatório de Música do Rio de Janeiro, no ano de 1841. O Conservatório, no entanto, só
teve efetivamente iniciado suas atividades a partir de 1848. No ano de 1855, o Conservatório
foi vinculado à Academia de Belas Artes. Anos mais tarde, em 1889, com o advento da
Proclamação da República, por meio do Decreto nº. 143, de janeiro de 1890 (BRASIL, 1890),
o Conservatório é extinto e cria-se o Instituto Nacional de Música. Posteriormente, em 1937,
o Instituto Nacional de Música passa a se chamar Escola Nacional de Música, e, já na segunda
metade do século XX, em 1965, em decorrência do Decreto nº. 4.759 (BRASIL, 2003),
promulgado durante a ditadura militar, passa a se chamar Escola de Música da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
Durante a administração do pianista e compositor Luciano Gallet (1930-1931), o
Instituto Nacional de Música foi incorporado à Universidade do Rio de Janeiro,
transformando-se no primeiro estabelecimento superior de ensino da área musical61. O novo
currículo teve a contribuição de Mário de Andrade e Antônio de Sá Pereira. Para Mário de
Andrade, era fundamental que os conservatórios fossem imersos no contexto do ensino
universitário. Ele veio externar claramente isso anos mais tarde. No ano de 1935, num
discurso de colação de grau, como paraninfo, coloca:

Mas se a teoria me leva a esta convicção, por outro lado estou


convencidíssimo, já agora, que para o nosso país, a função dos
conservatórios nas universidades, principalmente se tivermos as cidades
universitárias, será praticamente utilíssima. O nosso músico precisa da
existência universitária, precisa do contacto diuturno, da amizade e do
exemplo dos outros estudantes, o nosso músico precisa imediatamente
contagiar-se do espírito universitário, porque a inobservância do nosso
músico quanto a cultura geral, é simplesmente inenarrável. Nenhum não
sabe nada, nenhum se preocupa de nada, os interesses completamente
fechados, duma estreiteza inconcebível, só e exclusivamente entre abertos

60
Eurico Nogueira França coloca no livro A música no Brasil que se tinha notícia de que no
século XVII havia uma escola para desenvolver as habilidades musicais dos negros. Depois
da expulsão dos jesuítas do Brasil seus discípulos passaram a atuar ministrando aulas de canto
e instrumento e até de composição na Real Fazenda de Santa Cruz, criada por D. João VI. Os
músicos oriundos dessa escola atuavam nas capelas reais (FRANÇA, 1952). Cernicchiaro
(1925) deixa registrado que se tratava do Conservatório dos Negros.
61
Esse itinerário percorrido pela Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), rumo à
oficialização de seus cursos foi percorrido também por outras instituições de ensino musical do país que foram
incorporadas às instituições federais de ensino superior, entre elas a EMUFRN.
102

para as coisas da música. Nem isso sequer! Cada qual traz a sua preocupação
voltada apenas para a parte da música em que se especializou. Quem que
tenha convivido com nossos músicos, ou apenas seguido o ramerrão dos
concertos, sabe disso tanto como eu. Os violinistas vão aos recitais de sues
próprios alunos ou, dos violinistas célebres, os pianistas, só se interessam
por teclados. Essa a regra comum, quase uma lei cultural entre nós. Uma
curteza de espírito assombrosa; um afastamento desleal das outras artes, das
ciências, da vida econômica e política do país e do mundo; uma
incapacidade lastimável para aceitar a existência, compreendê-la, agarrá-la;
uma rivalidade vulgaríssima; uma vaidade de zepelin sozinho no ar. Cada
qual se julga dono da música e recordista em especialidade (ANDRADE,
1991, p. 188).

Um ponto merece destaque na fala de Mário de Andrade; o de que o músico


precisa de uma formação ampla, geral, em detrimento do conhecimento especializado. Mário,
numa fala anterior, na mesma ocasião, diz aos diplomandos:

Talvez estejais ainda lembrados da armadilha com que quase todos os anos
inicio os meus cursos de História da Música... À pergunta que faço sobre o
que os meus alunos vieram estudar no Conservatório, todos respondem, um
que veio estudar piano, outro canto, outro violino. Há catorze anos faço tal
pergunta. Não tive até hoje um só aluno que me respondesse ter vindo
estudar música [sic] (ANDRADE, 1991, p. 187).

Nas palavras de Mário de Andrade reside um dos principais argumentos para que
se tivessem os conservatórios no Brasil sob égide da universidade 62: um conhecimento
musical que possibilitasse uma formação humanista, mais ampla.
Falando sobre a música no espaço universitário, Vieira (2004, p. 145) coloca:

Nos contextos universitários expostos a essa vanguarda, esses músicos


sentiam-se partilhando a oportunidade de experimentar outras formas,
estruturas, materiais e grafias. Para uma maioria dos professores
entrevistados, o curso superior universitário era percebido como uma chance
de vislumbrar lógicas diferentes das admitidas até então e visto como um
espaço favorável para superação dos padrões musicais convencionais, na
medida em que oferecia oportunidade de acesso a uma variedade de opções
de experiências musicais.

62
O processo itinerante que demarca o percurso dos Conservatórios até a transformação em
Escola de Música, entendendo esta como instituição universitária, aponta para um conjunto de
mudanças significativas na área musical, originários do próprio sistema acadêmico
universitário. As escolas de música no Brasil, enquanto instituições especializadas de ensino
se adequaram, no decorrer do tempo, a uma estrutura organizacional possuidora de grande
rigor burocrático se empenhando agora por também abranger atividades de pesquisa e
abandonando seu caráter eminentemente conservatorial europeu.
103

Na universidade, a música ganha dimensão experimental, em cujo laboratório o


artista reinventa novos meios de expressão que satisfaz apenas ao fechado nicho social
acadêmico e dispõe de pouco alcance no âmbito da sociedade. Ao invés de uma formação
ampla para o ensino universitário em música, como almejava Mário de Andrade, passa-se a
ter hoje um aprofundamento da atividade especializada. Como bem descreve o musicólogo
Duprat (1997, p. 7):

Impactado pelo mercado de trabalho, o músico universitário nas diversas


modalidades, ou seja, precocemente especializado (nenhuma Faculdade de
Medicina aceita no primeiro ano um aluno de cirurgia cardíaca) já demonstra
um perfil de interesses que exclui as preocupações universitárias, universais.
Em certo sentido são os próprios mestres os grandes responsáveis por essa
situação. Diria, até, a própria Universidade Brasileira, que ao estabelecer os
critérios de avaliação de desempenho dos seus mestres demonstra patente e
total inconsciência desses mecanismos.

É importante salientar a discussão no âmbito do campo musical entre teoria e


prática (músico prático e músico teórico)63. Como também enfatizar a presença dos
conservatórios e universidades na formação (e qualificação) profissional do músico. Em
países Europeus como a Inglaterra, a pesquisa e educação musical dividem-se entre
conservatórios e universidades. Nesse mesmo país os conservatórios acrescentam aos seus
programas componentes curriculares relacionados à teoria musical. Por outro lado “os
programas de graduação das universidades (muitos dos quais se originaram da grande
expansão educacional da década de 1960) incorporam grande quantidade de prática musical”
(O QUE..., 1999)64.
Na América do Norte a maioria da educação para a performance é localizada nas
universidades mas, paradoxalmente, freqüentemente parece haver muros mais altos entre
seus próprios departamentos práticos e acadêmicos do que entre conservatórios e
universidades inglesas. Em relação aos estudos de pós-graduação na área musical, é
importante destacar que nos EUA, os estudos em nível de doutorado para instrumentistas,
cantores e maestros foram primeiramente acolhidos nos chamados programas guarda-chuva,
que conferiam o Education Degree (Ed.D), equivalente ao Philosophiæ Doctor (Ph.D). A

63
Boethius (c. 480, c. 524) expressivo teórico da Baixa Idade-Média, autor de Os Fundamentos da música (De
Institutione musica), foi o responsável pela difusão do conhecimento musical grego para a cultura ocidental.
Ele classificava os músicos em três categorias: 1) Teóricos: classe superior dotada de inteligência; 2)
Compositores: classe média com algum discernimento e inteligência; e 3) Instrumentistas e cantores: classe
inferior, ignorante.
64
Documento não paginado.
104

criação de um título exclusivo para a área se dá a partir do ano de 1959, com a criação do grau
de Doctor of Musical Arts.
No Brasil ocorre uma maior distância entre a natureza dos conservatórios e as
universidades, com estas dando menor ênfase à performance, o que evidencia a antiga
discussão entre prática e teoria. Muito embora este cenário esteja se modificando a partir do
surgimento dos cursos de graduação em música (inclusive música popular) nas universidades,
onde são oferecidas várias habilitações nessa área.
A pesquisa e a reflexão, como se sabe, são intrínsecas a Universidade 65, mas
parece que isso não é claramente compreendido na área musical. Tecendo reflexões sobre o
fazer e refletir em música, Duprat (1997, p. 3) afirma:
Melhor seria, então, que tais atividades fossem agregadas a um nível técnico
sofisticado, do que fazer passar por universitárias atividades que não o são.
Esta é uma opção que a Universidade, nas suas autênticas funções de
Universidade, acabará tendo de fazer. Porque é á Universidade que cabe
precipuamente a tarefa de refletir, especular sobre as suas diversas atividades
e sobre as atividades da sociedade, sobre o fazer e o agir. Porque sem
reflexão não há prática, não há ação, não há produção.

O texto de Duprat (1997) nos traz alguns aspectos interessantes. Como muitas
vezes o currículo universitário não propicia mecanismos apara inserção do egresso no mundo
do trabalho, a carreira acadêmica acaba sendo uma via empregatícia, embora restrita, para
muitos profissionais que não encontram outros espaços para atuar. É coerente pensar, por
exemplo, que conteúdo musical formativo um currículo para pianistas clássicos apresenta para
possibilitar a inserção desse profissional no mundo do trabalho. Quando sugere um nível
técnico sofisticado como alternativa profissionalizante, Duprat de modo algum está excluindo
a reflexão da formação técnico-profissional, mas apenas salientando que as atividades de

65
Sobre a pesquisa no âmbito universitário é importante que se teça algumas considerações. Influenciado pelas
ideias da corrente neo-humanista defendida por W. Von Humboldt, Fichte e Schleirmacher. A partir de meados
do século XIX, o ensino universitário alemão se caracteriza pela liberdade de ensino; pela liberdade do
pesquisador e do estudante (liberdade de aprender, liberdade de ensinar, recolhimento e liberdade do
pesquisador e do estudante, enciclopedismo). Ocorre nesse período o crescimento de seminários e o
surgimento de novas disciplinas como a Filologia, Matemática e a Física. Os grandes cursos nos quais se
estudam os importantes sistemas filosóficos cedem paulatinamente seu lugar à especialização. Tendo como
suporte laboratórios e clínicas, essa visão do ensino tem como objetivo a formação de professores e
especialistas. Posteriormente a França segue o modelo alemão e desenvolver também a pesquisa. O modelo
universitário germânico também influenciou as universidades americanas. Com o intuito de formar elites para
o novo contexto urbano-industrial, a emergência do sistema universitário americano baseia-se no utilitarismo e
crença no progresso econômico, flexibilidade e combinação de disciplinas, aliando formação técnica
profissional à geral ou científica. As disciplinas são organizadas por departamentos e não por cadeiras. Um fato
significativo, é que a partir do início do século XX, passa-se a dar mais importância à pesquisa, amparado
pelos laboratórios e institutos agora ligados às universidades e subsidiado por ótimas condições estruturais
(equipamentos, bibliotecas, acomodações profissionais, etc.) patrocinados pelo mecenato e doações
(CHARLE; VERGER, 1995, p.71-95).
105

pesquisa e carreira acadêmica atendem a um tipo específico de demanda, contribuindo de


modo dinâmico para geração e disseminação do conhecimento. É possível incorporar o caráter
politécnico do saber, aquele que se propõe a oferecer instrumentos cognitivos, para se pensar
o saber de modo unitário possibilitando meios para se compreender e interpretar a
diversidade.

3.6.1 O músico-professor na universidade: o emprego perfeito?

Mas a música no âmbito acadêmico universitário traz a superfície outros aspectos


que merecem atenção. Cabe, nesse contexto, um breve comentário a cerca de algumas
questões relacionadas atuação do músico-professor (ou professor-músico?) na universidade.
As escolas de música no Brasil, enquanto instituições especializadas de ensino se adequaram,
no decorrer do tempo, a uma estrutura organizacional possuidora de grande rigor burocrático.
No âmbito da universidade, os conservatórios e escolas de música, ao optar por reconhecer
seus cursos, moldam-se a uma estrutura acadêmica, se empenhando agora por abranger
atividades de ensino, pesquisa e extensão, abandonam seu caráter eminentemente
conservatorial europeu. Primeiramente, toda legislação universitária desconheceu por muito
tempo e ignorou por completo as singularidades da área musical. Viram-se documentos que
tinham por objeto mensurar a produção docente (como a Gratificação de Estímulo à Docência
(GED), na esfera federal de ensino), que de início sequer reconheciam a produção artístico-
musical. Algumas universidades, como é o caso da UNICAMP criaram para o profissional da
música uma carreira diferenciada (magistério artístico), uma vez que foi comum o ingresso
desses profissionais nas universidades sem serem portadores de diplomas de curso de
graduação. A universidade, com sua burocrática estrutura (pró-reitorias, centros,
departamentos, conselhos, colegiados, coordenações de cursos), acaba por influenciar a
Escola de Música. No seio acadêmico universitário o músico-professor se dedica às diversas
atividades tais como lecionar, fazer pesquisa, administrar orçamentos, gerenciar pessoal e
patrimônio, participar da seleção de novos professores, ainda, tem que submeter artigos para
publicação e tocar. Na universidade o ambiente acadêmico é compreendido como um espaço
onde as decisões administrativas são construídas pela coletividade. O que daí decorre é que
ela, a universidade, é administrada pelo próprio docente, que gerencia cursos, departamentos,
centros, além de participar das atribuições decorrentes dessa estrutura organizacional
(reuniões, comissões, bancas examinadoras, etc.):
106

Isso por um lado é bom porque o professor tem em suas mãos o destino da
instituição. No entanto, por outro lado, é também conflitante para o músico.
Porque o professor de música, de instrumento, além de dar aulas, é também
artista, recitalista, atividade que demanda muito tempo e prática constante.
Até porque ele é o primeiro referencial para seu aluno, que está sempre na
expectativa de ver seu professor tocar e tocar bem. O músico na universidade
tende a gastar mais tempo com as rotinas burocráticas do que com sua
prática musical e isso tende a levá-lo a um desânimo (informação verbal)66.

O filme Mr. Holland, Adorável Professor, retrata claramente a relação de um


músico, que antes atuava como compositor e pianista, e passa a se inserir num contexto de
atividade docente no qual lhe exigido atribuições que ultrapassam a sal de aula. No geral, o
filme conta a história de Mr. Holland e sua relação com seus alunos e sua família,
contextualizando as três décadas em que ele passa lecionando. O filme começa no ano de
1964, quando um músico compositor, interpretado pelo ator Richard Dreyfuss, decide
lecionar, com o intuito de melhorar o orçamento doméstico. Na verdade Mr. Holland vai
lecionar por força das circunstâncias. Ele não se sente bem em sala de aula, sua realização
pessoal e profissional almejada reside no ato de compor. A rotina acadêmica (reuniões,
correção de provas, atividades extraclasse) é vista como usurpadora do tempo em que poderia
estar dedicando à música. Nesse sentido, seu projeto de vida é construir uma poupança que
dê suporte posterior, aos momentos em que estiver compondo. Porém, ao lhe ser revelado
que sua esposa está grávida, Mr. Holland se acha forçado a alterar seus planos, tendo que
trabalhar mais do que o tempo esperado, para poder sustentar sua família. Eis aqui uma
situação que se assemelha com a maioria dos casos em que o músico, para suprir suas
necessidades, além de tocar, tem também que dar aulas. Mr. Holland de início tem muitas
dificuldades em fazer com que seus alunos. Mas, vai, aos poucos mudando sua prática
pedagógica em prol de proporcionar o aprendizado musical aos alunos.
Ainda corroborando com situações similares à descrita no exemplo do filme Mr.
Holland é mencionado um depoimento colhido da lista pública de discussão da EMUFRN,
por meio do correio eletrônico, reforça essas questões. Trata-se de um e-mail direcionado por
um professor, ao qual denominaria de Professor Hedges do quadro efetivo a coluna usuários
(alunos, professores e funcionários em geral). O e-mail se intitulava cargos e encargos, e
apesar de extenso iremos reproduzi-lo quase em sua íntegra por considerar que dará um
significativo contributo as nossas discussões:

66
Informação fornecida pelo professor RFL, durante entrevista, na EMUFRN.
107

Caros amigos professores,


Quero aqui externar algumas ideias que me vêm ocorrendo nos últimos
tempos em relação ao trabalho de professor em nossa escola. Aproveito o
espaço desta lista de discussões pra compartilhá-las com vocês e gostaria
muito que pudéssemos trocar opiniões e aprofundar o debate sobre os pontos
que irei colocar. Peço de antemão que me desculpem o tom de desabafo, mas
é justamente através do relato de experiências e observações pessoais que
poderei ilustrá-los.
Quando falo em trabalho, refiro-me não somente às atividades cotidianas que
desempenhamos, mas também àquela parcela significativa da vida de todo
ser humano: a carreira profissional. Temos o “emprego” perfeito. Acredito
firmemente nisto. Somos pagos pra fazer aquilo que mais gostamos, tocar,
ensinar, ouvir e pensar a música. Sei que não recebemos nem perto do que
deveríamos, porém, a não ser que algo extraordinário interfira, temos a
opção de passar o resto da vida neste emprego perfeito. Com nossos próprios
esforços e a ajuda dos colegas, temos todas as condições de construir nossas
carreiras na direção que quisermos. Podemos criar e desenvolver projetos os
mais variados, viajar e fazer cursos, conquistar títulos, formar grupos,
estudar e continuar crescendo enquanto assim o desejarmos! Como se isto
não fosse o bastante, temos nas mãos a chance (e o desafio motivador) de
transmitir o que mais sabemos às próximas gerações. Dar em troca nossa
necessária contribuição para perpetuar os ideais que mais valorizamos. Será
que é ilusão minha acreditar que temos o emprego perfeito? Estarei eu
sonhando? Bem, sei que estou exatamente onde quero estar. [...].
Acontece que nos últimos tempos temos testemunhado vários sinais de que
algo não vai nada bem ao nosso emprego perfeito. Quem não lembra [...],
ainda diretor, contando os dias que faltavam para a tão sonhada reconquista
de sua paz de espírito? E de [...] tendo que se afastar da escola por uns
tempos pra respirar? Fulano chegou às lágrimas numa reunião há poucos
dias e quase nenhum professor está conseguindo permanecer em um cargo
até o final do mandato. Cicrano e Beltrano já anunciaram que deixarão os
seus ao final deste semestre. Eu também já tentei. Em 1998, com pouco mais
de um ano de contratado fui coordenador do curso Básico e, na metade do
mandato, fui parar no pronto-socorro com arritmia cardíaca, algo que nunca
havia tido na vida.
Amigos, esta é uma questão que merece toda nossa atenção, pois está
minando nossa paz, nossa saúde, nossa motivação para trabalhar e (julgando
que o trabalho representa uma parcela importante da existência) me atreveria
a dizer, nossa felicidade.
Este semestre tive problemas de saúde que me afetaram bastante, bem como
as minhas atividades como professoras. Perdi 5 quilos. Descobri em diversos
médicos que a causa era a mesma: stress. Stress! Ouvimos tanto essa palavra
que nem lhe damos mais importância. É o preço que invariavelmente temos
que pagar por nossa vida pós-moderna, diriam alguns. É duro reconhecer que
se anseia pelo fim-de-semana quando se está no emprego perfeito. Afinal,
não somos burocratas atolados em escritórios, nem profissionais em funções
de alto risco. Ou será que somos?![sic].
Quem será o próximo goleiro? Sabem aquele joguinho combinado naquele
campinho legal? Estamos todos lá esperando pra jogar. Ninguém quer ser o
goleiro, mas alguém tem que ir pra baixo das traves senão o jogo não
acontece. O que se faz geralmente é revezar. Cada um fica 15 minutos no
gol. O problema é que se o goleiro for ruim o jogo perde metade da graça...
[...]
Se sabemos e queremos jogar com os pés, por que temos que ser goleiros?
Tá cheio de goleiro profissional por aí... Somos músicos, professores e
108

pesquisadores. Desculpem a analogia simplória. Sei que os cargos são


importantes e necessários e que ocupá-los faz parte das regras do jogo. Mas
o que está dando errado? Serão as regras, será o jogo?
Não podemos pensar em resolver o nosso problema causando problemas
para quem está livre deles. Tentemos sim fazer com que possamos
igualmente nos sentir bem. Nossa estrutura ímpar nos impõe cargos demais e
somos poucos a ocupá-los. [...]
Mas o fato de ocupar cargos por si só não é o problema. O que faz com que
percamos a paz de espírito (e muitas vezes a saúde) são as atribuições
impostas pelos cargos. São as rotinas acadêmicas e burocráticas, são as
decisões que influem sobre a vida de professores, alunos e funcionários. Que
bom seria se pudéssemos apenas lecionar, tocar e estudar! [...] por problemas
de saúde ou por outras atribuições de trabalho, é que me dou conta de que
meu emprego perfeito não é tão perfeito assim (HEDGES, 2005).

A ideia de trabalho colocada como atividade necessária a subsistência e a carreira


profissional, representa, sobretudo, uma parcela importante da existência, como coloca
Hedges (2005), relacionada aos ideais de felicidade. O músico acredita ter o emprego perfeito,
principalmente por ser remunerado para realizar aquilo que mais gosta: tocar, ensinar, ouvir
e pensar a música. Ocorre que a sensação de se ter o emprego perfeito às vezes é minada
pelas tensões que a rotina acadêmica apresenta, bem como pelas diversas atribuições e cargos
impostos ao músico-professor. Nessas circunstâncias o profissional da música vê ameaçada
sua paz, a saúde e a motivação para trabalhar. A fala de Hedges (2005) ilustra muito bem
essas situações: é o diretor da instituição que não vê a hora de deixar o cargo, professores sob
stress em reuniões e outros não conseguindo concluir o mandato dos seus cargos. É o músico
sob stress, enxergando que seu emprego não é tão perfeito assim e, que ele está sujeito as
mesmas situações de tensão ocorridas em outras áreas profissionais. É o músico se
reconhecendo trabalhador. Porém, e, sobretudo, é o músico insistindo em se diferenciar de
burocratas atolados em escritórios. E Hedges (2005) questiona: “Se sabemos e queremos
jogar com os pés, por que temos que ser goleiros? Tá cheio de goleiro profissional por aí...
Somos músicos, professores e pesquisadores”. Ou seja, o questionamento do músico pela
obrigatoriedade de assumir atividades administrativas. Ainda que o meio, no qual está
inserido guarde significativas semelhanças com o modo de operacionalização burocratizado
(cargos, carreiras, reconhecimento de diplomas, normas para ascensão funcional, modo de
recrutamento por concurso – mediante provas e titulação).
Ainda na carta escrita por Hedges (2005) (num trecho não incluso na citação) está
incluída a irônica informação que o número de cargos na instituição é maior do que o corpo
docente. O conteúdo da carta é rico em detalhes que podem dialogar com várias questões que
expomos até agora sobre o exercício da profissão musical. Contudo é fundamental salientar
109

um aspecto, o de que o músico, cuja atividade é possuidora de uma natureza


proeminentemente livre, tem dificuldades de se inserir em contextos profissionais onde a
rotina se dá de modo burocratizada (organização formal, com normas rígidas normas), que
lhe desvie direta ou indiretamente de suas atividades artísticas.
110

4 O TRABALHO E O EXERCÍCIO DO MÉTIER ARTÍSTICO: REFLEXÕES SOBRE


A FORMAÇÃO E PROFISSIONALIZAÇÃO NO CAMPO DA MÚSICA

4.1 MÚSICA DE TRABALHO: CINCO CRÔNICAS COMENTADAS SOBRE O


TRABALHADOR-MÚSICO

4.1.1 Preâmbulo

Parte desse capítulo foi escrito intencionalmente em forma de crônica, em


pequenos contos. Busquei mediante as cinco crônicas que se seguem levantar questões
inerentes ao trabalho e a formação do músico na atualidade. Tenho clareza de que tal
procedimento metodológico pode não ser o mais indicado no âmbito de uma abordagem de
investigação de caráter qualitativo. No entanto, não se trata exatamente de contos de ficção. A
intenção foi de tentar proporcionar mais leveza ao texto acadêmico, sem perder o caráter
investigativo. Nesse sentido, para dá voz aos personagens dos contos utilizei as informações
coletadas nas diferentes técnicas por mim empregadas como: as entrevistas, a aplicação de
questionário e ainda a técnica de Grupo Focal como estratégia metodológica qualitativa. As
entrevistas tiveram roteiros semi-estruturados, considerando que definir questões rígidas e
fechadas paras tais situações, ter-se-ia o risco de perder ricas ocasiões de interlocução e
descobertas. As entrevistas foram realizadas com professores e alunos do Curso Técnico de
Música da UFRN entre os anos de 2006 e 2007. Foram ainda distribuídos quarenta
questionários aos alunos do Curso Técnico de Música, retornando para transcrição e análise,
desse montante, vinte e oito. Já o Grupo Focal, técnica de coleta de dados obtidos mediante a
discussão em grupo, focada num tema específico, conduzida por um moderador, congregou
nove alunos do Curso Técnico. Nessa espécie de entrevista coletiva os estudantes emitiram
opinião sobre o tema proposto e interagiram uns com os outros. Foi então, fundamentado nas
informações literais obtidas nesses diversos caminhos metodológicos de coleta de dados, que
os personagens ganharam fala. Tive a liberdade para simular as situações e seqüencias das
falas, no entanto, preservando a literalidade das falas. Após cada crônica, proponho-me nesse
capítulo a comentá-las, trazendo a superfície questões que consideramos importantes para o
estudo sobre o trabalho e o exercício da profissão musical. Chamo a atenção para o fato de
que na crônica IV, que se intitula Tá ligado?, mantive a linguagem coloquial e o uso de
gírias, muito comum no código lingüístico utilizado no âmbito do espaço profissional
reservado principalmente aos músicos que tocam em bandas (bandas-bailes, bandas de rock,
111

bandas de forró, bandas pop). A intenção foi manter a fidelidade das expressões muitas vezes
registradas na informalidade dos depoimentos a mim concedidos. Foi uma maneira de
registrar o linguajar usado no dia-a-dia desses músicos sem perder o conteúdo sublinhado
pelas falas.

4.1.1.1 I Ensaios

Maria Euterpe da Silva chegava sempre às 18h30min para o ensaio da Banda


Sinfônica Municipal. Às vezes, em decorrência de outras atividades profissionais, chegava em
cima da hora. Mas, nunca atrasara. Hoje veio um pouco mais cedo. Sentou-se, abriu o estojo
do seu sax-alto, montou o instrumento e começou a aquecer, como se diz no linguajar dos
músicos. Poucos componentes da banda haviam chegado, pois ainda não era sequer 18h. Ao
tocar seu instrumento pensou sobre o quão estava cansada. Há muito tempo que não destinava
tempo para suas leituras, para o seu lazer. O fato de lecionar, tocar na Banda Sinfônica e ainda
tocar em eventos diversos com um quarteto de saxofones, a deixava sem tempo para si, mas
precisava fazê-lo, porque era seu ganha-pão. Tinha que ensaiar três vezes por semana, além
das apresentações. Reunia-se com o quarteto esporadicamente, na maioria das vezes quando
o grupo conseguia um evento para tocar, o que ocorria de duas a três vezes por mês. Na escola
pública, onde lecionava no ensino médio, tinha uma carga horária de vinte e quatro horas
semanais, com turmas que variavam entre trinta e cinco a quarenta e dois alunos. Lembrou
que neste final de semana iria corrigir os trabalhos dos alunos, inserir as notas no diário de
classe e ainda planejar as atividades do último bimestre. Sentia-se muito cansada, exaurida,
sem forças. Hoje pela manhã olhou-se no espelho e viu o cansaço expresso no seu rosto
descorado. Não sabia exatamente por que, mas, lembrara da mãe. Parecia ouvi-la ao seu lado
dizendo, quando ainda pensava em ingressar profissionalmente na música: minha filha, dizia
ela em tom terno, “isso não é profissão... não vai dar dinheiro... e ainda por cima, mulher
tocando saxofone...?”. Porém, nunca proibira Euterpe de optar profissionalmente pela música,
tratava-se apenas de cuidados de mãe. Sobre a questão de o saxofone ser inadequado para
mulheres, já desde sua adolescência, Euterpe tinha a opinião que a única coisa que realmente
podia ser considerada coisa de mulher era a maternidade, o resto era cultural.
Enquanto tocava Euterpe lembrava ainda sobre o descontentamento geral que
pairava sobre a Banda. Em grande medida por questões salariais. Completara cinco anos em
que não recebiam aumento. Pensava em formar uma comissão para reivindicar melhorias de
condições salariais e de trabalho. Contudo, sabia que mobilizar seus colegas era uma tarefa
112

um tanto difícil, pois ao terminar o ensaio, todos muito apressadamente se ausentavam, uma
vez que não sentiam prazer em estar ali. O ensaio da Banda ocorria inicialmente num galpão
da prefeitura, antes usado como oficina de carros. Agora dispunham de uma sala exclusiva,
mas ainda necessitava de melhorias; de um isolamento e tratamento acústico e de um
equipamento de ar condicionado. Além da questão salarial e das melhorias das condições de
trabalho, incomodava a Euterpe ainda o fato de que a instância administrativa para qual havia
prestado concurso, não tinha ainda um plano de cargos e salários para o profissional da
música. Buscando informações sobre sua condição de funcionária pública municipal,
descobriu que o músico profissional estava inserido num subgrupo denominado Grupo de
Assistente de Serviços Gerais (GASG), divididos entre aqueles profissionais cujo
desempenho da função não era exigida escolarização (copeiro, coveiro) e outro que se exigia
minimamente o ensino fundamental (guarda municipal, músico, fotógrafo). Pensara então em
mobilizar seus colegas em prol de reivindicações que proporcionasse melhorias para o grupo e
em recorrer a Ordem dos Músicos do Brasil (OMB) no intuito de que ela pudesse mediar as
reivindicações da Banda, mas a OMB era uma instituição desacreditada pela maioria dos seus
colegas. Na verdade Euterpe percebia haver um descrédito da própria ingerência da Banda;
seus componentes não entendiam, por exemplo, por que se registrava a falta de alguns
músicos e para outros se fazia vista grossa. Acreditava-se que havia certo favorecimento em
torno de alguns privilegiados, eram os mafiosos, como se dizia na Banda. Os componentes
iam chegando, e à medida que o grupo ia se completando a zoada era ensurdecedora. Todos
aqueciam ao mesmo tempo. Um dos seus colegas de naipe acabara de chegar.
– Oi Euterpe..., cansada?
– Muito...
– Vamos nos reunir após o ensaio para tratar de nossas reivindicações? Perguntou
Euterpe.
– Não sei... Estou um pouco sem estímulo..., o pessoal é muito acomodado. Não
entendo como não se incomodam com esse cheiro forte de mofo. Lembra do nosso último
ensaio? Falei que o cheiro tava insuportável, e, que nessas condições, era impossível
ensaiar..., e aí o que foi que fizeram? Inicialmente concordaram e disseram: “realmente, não
dá pra ensaiar”. Mas aí o maestro disse: “ok pessoal, mas, então vamos passar só uma
música”. Só que já tínhamos definido: “Não dá pra ensaiar”. Aí, saiu eu, você e outra pessoa
da Banda, em ato de protesto, todos os demais músicos ficaram, eles reclamaram,
reclamaram, mas ficaram lá..., ou seja, dentro de um grupo, onde estamos trabalhando juntos,
113

não era pra todo mundo ter se unido em prol dessa causa e não ter ensaiado? Ter batido o pé e
não ter ensaiado?
– Sim..., você tem razão – disse Euterpe.
– Mas aí quando você vai perguntar e questionar as pessoas sobre o motivo pelo
qual não se retiraram do recinto, elas respondem: “a gente tem que tomar cuidado aqui,
porque senão a gente perde o nosso emprego, sobretudo os que estão na banda e na orquestra;
os que têm acúmulo de cargos”. Essas pessoas se esquecem que esse cheiro forte de mofo está
prejudicando a todos. Tanto nós quanto eles podemos adquirir algum tipo de problema
respiratório em decorrência disso..., é estranho até; estamos juntos musicalmente, ao tempo
em que estamos sozinhos na luta por condições dignas de trabalho, entendeu? Não se pensa na
coletividade, é cada um por si e Deus por Todos!
– É..., acho que temos que primeiro sensibilizar as pessoas aqui para lutar em prol
delas mesmas... – exclama Euterpe.
– Mas enfim, podemos tentar. Diz o colega de profissão.
O grupo se completa. Os músicos afinam seus instrumentos junto ao spalla e o
maestro pede silêncio.

4.1.1.1.1 Crônica I - Comentários

Dentre as várias questões entrelaçadas na crônica Ensaios, entre elas, as múltiplas


atividades que músico é forçado a desempenhar para ganhar a vida, a luta por melhores
condições de trabalho, uma especificamente é mais presente; a inserção da mulher no
exercício da profissão. O estudo sobre a profissão do músico no Brasil envolve tópicos
relacionados à discriminação racial, a formação de um complexo cultural ligado a música,
mas também repercute na questão do gênero. Claro que esse tema não é restritivo a área
artística, pois ao longo dos tempos a mulher se insere cada vez mais em contextos sociais
mais amplos, tanto na vida intelectual como no que tange as profissões e conseqüentemente a
espaços profissionais antes restritos ao sexo masculino. O que talvez seja específico da esfera
profissional artística é a discussão moral sobre a presença da mulher nos diversos espaços de
atuação profissional, aos espaços do entretenimento da vida noturna, onde a música se faz
presente, considerados inapropriados para uma mulher de bem. Cabe registrar que há
114

algumas décadas no Brasil as atrizes que quisessem atuar recebiam a mesma carteira
fornecida pela então Delegacia de Costumes às prostitutas. Na Europa, durante um longo
período, a mulher se via muitas vezes impossibilitada de exercer a música publicamente, uma
vez que a etiqueta não permitia sequer que ela tivesse seu nome impresso na partitura. Ainda
assim, era requisitada como cantora, muito embora ainda no século XIX ainda se fizesse uso
dos castrati, cantores castrados antes da adolescência de modo a preservarem o registro agudo
da voz, nas companhias de óperas. De um modo geral, seja como compositora, ou solista a
mulher não tinha espaço garantido nesse incipiente mercado da música.
No que concerne a um contexto específico sobre esse tema, Lima (2006) falando
sobre a paulatina inserção da mulher nas bandas norte-rio-grandenses descreve a impressão,
ainda na década de 1990, atribuída ao ofício musical na comunidade seridoense do Rio
Grande do Norte.

Assim, a atividade musical é enxergada, muitas vezes, de modo temeroso


por grande parte dos pais, uma vez que a música não oferece, no entender
deles, uma perspectiva de um futuro melhor. Para os pais, o jovem tem que
se envolver profissionalmente com algo que lhe proporcione sustento. A
música, em alguns casos, é vista como coisa para desocupado (LIMA, 2006,
p. 84).

Conforme apresentou Lima (2006) se em certos casos para muitos pais, a


ocupação da música pelos filhos é enxergada como coisa de desocupado, no caso da jovem
menina a situação significa ainda, para os pais, que ela está deixando de cumprir com suas
obrigações domésticas; de um modo geral de cuidar da casa ou ainda dos irmãos menores.
Mas tudo é movido pelo desejo dos pais de prover um futuro melhor para os filhos. Diz
ainda Lima (2006, p. 86):

O ingresso das mulheres na música muda essa orientação social permitindo o


respeito e a admiração mútua entre homens e mulheres. A mulher é admirada
e considerada pelo homem por ser boa musicista e vice-versa. Numa
orquestra, homens e mulheres são remunerados igualmente, dependendo da
função exercida por cada um. A música, para as meninas musicistas de
Cruzeta, não só possibilitou a oportunidade de sustento, próprio e de seus
familiares, como lhes deu perspectivas outras na vida. Corroborando esses
dados está ainda o fato de que tem sido significativo o número de mulheres,
musicistas integrantes das bandas, que saíram da região do Seridó para
estudar na EMUFRN .

A questão da inserção da mulher na profissão musical demanda um estudo a parte.


Entretanto, cito como exemplo da forte descriminação enfrentada pelas mulheres na tentativa
115

de ingressar no exercício da profissão musical, um fato ocorrido com o escritor Lima Barreto,
ao escrever para o A Lanterna, em 25 de janeiro de 1918 (BARRETO, 1918). Ele comenta
da reivindicação que as meninas (estudantes musicistas) do Instituto de Música fizeram aos
jornais da época, cobrando que se tivesse por ocasião da colação de grau do curso de música,
um anel de formatura, a exemplo de outras profissões. O autor responde as musicistas assim
(Chamando-as também ironicamente por sacerdotisas de Euterpe – deusa da música e da
poesia lírica):

É muito justo, pois se o destino da mulher é o casamento, tudo o que possa


concorrer para que elas o cumpram, deve merecer o nosso apoio entusiástico.
Quando uma moça, doutora do Instituto, for de anel no dedo pelos bondes a
fora, ao fim da viagem não esperará muito que um namoro se transforme em
noivado [...] Ela garantirá a ‘zona’ e o marido futuro ficará sossegado quanto
às despesas da casa (BARRETO, 1918)67.

Lima Barreto, em tom debochado, situa o estudo musical das mulheres estudantes
do Instituto de Música do Rio de janeiro, atribuindo ao curso concluído apenas a agregação de
valor para se conseguir um bom casamento. O anel, a ser exposto, mostraria publicamente o
seu valor, mas, enquanto sinônimo de um dote, pois para Barreto (1918)68: “[...] de todas as
profissões femininas, a que tem maiores possibilidades entre nós é a de professora de
música”. A desqualificação de Lima Barreto a solicitação das estudantes de música ainda vai
além, ele questiona a capacidade musical das formandas (não fica claro no texto se; por serem
mulheres, ou serem alunas do referido instituto):

A música, entre nós, é a única arte em que raramente aparece uma tentativa
de criação. Entregue, como está, a moças, melhor, a mulheres, que em geral
nunca em arte foram criadoras - estudam unicamente para o professorado - a
arte musical, na nossa cidade, não dá nenhuma demonstração superior da
nossa emoção, dos anseios e sonhos peculiares a nós. Limita-se a repetir,
trilhando os caminhos batidos. Não há invento nem novidade (BARRETO,
1918)69.

Escrevendo sobre um país hipotético no livro Os Bruzundangas, o escritor


reforça sua opinião sobre as mulheres musicistas: “a música na Bruzundanga, é, em geral, a
arte das mulheres. É raro aparecer no país uma obra musical” (BARRETO, 1956, p. 75).

67
Documento online não paginado.
68
Documento online não paginado.
69
Documento online não paginado.
116

Como desenvolveu Lima (2006), essa concepção ainda discriminadora em relação


ao exercício da profissão musical, pelo menos no que tange a esse contexto específico, aos
poucos vai se modificando com a inserção social da jovem musicista no mercado do trabalho,
colaborando agora com o sustento das suas famílias. Mesmo assim, esses pais diferenciam em
importância diferentes espaços de atuação profissional. O fato de suas filhas tocarem numa
banda de forró, por exemplo, é visto de maneira a associar esse espaço de exercício
profissional com um ambiente pouco familiar, ao passo que atuar numa banda sinfônica é
conquistar certo status:

Minha irmã [...] já tocou numa banda de forró [...] A preocupação de minha
mãe era muito maior quando ela saía para tocar do que quando eu venho
para Natal estudar. Acho que é devido ao ambiente. E no ambiente de uma
banda sinfônica você está lidando com pessoas mais [...] Acho que era a
preocupação dela [minha irmã] se envolver com coisas que não prestam na
noite [como] prostituição, bebidas, que no ‘ambiente sinfônico’ você não vê
(MAIARA, [200-] apud LIMA, 2006, p. 84).

Maria Euterpe da Silva, nome fictício dado a uma personagem construída com
base nos vários depoimentos por mim colhidos, situa a mulher musicista num contexto atual.
Euterpe não ganha menos que seu colega de naipe, ganha o mesmo salário e está tentando
lutar por melhorias de trabalho para o grupo. Quando se trata de se ir à busca de
oportunidades de trabalhos, os conflitos e as tensões manifestas no mundo artístico são as
mesmas para homens e mulheres, embora o tratamento dado a estas ainda seja diferenciado,
como ocorre em outras esferas profissionais. Se a mulher musicista, ao se inserir no mundo
artístico, vê-se impelida a romper com vários obstáculos específicos ao gênero, essas
dificuldades aumentam entre as que têm filhos, dado ao papel ainda legado a elas como
cuidadora e mantenedora do lar. Euterpe desconstrói até certo ponto essa imagem.
Outro tema deixado nas entre linhas por Euterpe é o papel da OMB no âmbito das
reivindicações dos interesses coletivos dessa classe profissional. De um modo geral, o músico
não reconhece a OMB como sua representante. Muitos são da opinião de que a instituição não
funciona, além de possuir uma legislação totalmente desatualizada e em descompasso com o
atual mercado de trabalho. No entanto, me ocuparei de situar melhor esse tema objetivando
contextualizar os supostos conflitos ocorridos ao longo dos anos entre os músicos e esse
órgão.
A OMB instituída a partir da União dos Músicos do Brasil (UMB) tem como
idealizador o maestro e advogado paraibano José de Lima Siqueira, no ano de 1957, em pleno
117

início do movimento bossanovista. No ano seguinte, José Siqueira redigiu um anteprojeto de


lei para a criação da OMB, encaminhando-o ao então presidente da republica Juscelino
Kubistchek. Destaca-se entre os seus fundadores os músicos Radamés Gnatalli, Hermeto
Pascoal, Francisco Mignone, Heitor Villa Lobos, dentre outros expoentes.
Nessa direção é fundamental colocar a importância da legitimação da atividade
profissional do músico mediante a criação da Lei n. 3.857 de 22 de dezembro de 1960, que
cria a Ordem dos Músicos e regulamenta e reconhece o exercício legal da profissão (BRASIL,
1960). Criada no Governo de Juscelino Kubitschek. Com o intuito de regulamentar a
profissão de músico no país, essa lei “condicionava o trabalho musical ao registro dos
trabalhadores na nova entidade e sujeitava os não inscritos às penalidade aplicáveis ao
exercício ilegal da profissão” (MORELLI, 2000, p. 94). O art. 28 dessa Lei, específica normas
para o livre o exercício da profissão de músico, em todo território nacional, permitindo a livre
atuação,

a) aos diplomados pela Escola Nacional de Música da Universidade do


Brasil ou por estabelecimentos equiparados ou reconhecidos;
b) aos diplomados pelo Conservatório Nacional de Canto Orfeônico;
c) aos diplomados por conservatórios, escolas ou institutos estrangeiros de
ensino superior de música, legalmente reconhecidos, desde que tenham
revalidados os seus diplomas no país na forma da lei;
d) aos professores catedráticos e aos maestros de renome internacional que
dirijam ou tenham dirigido orquestras ou coros oficiais;
e) aos alunos dos dois últimos anos dos cursos de composição, regência ou
de qualquer instrumento da Escola Nacional de Música ou estabelecimentos
equiparados ou reconhecidos;
f) aos músicos do qualquer gênero ou especialidade que estejam em
atividade profissional devidamente comprovada, na data da publicação da
presente lei;
g) aos músicos que foram aprovados em exame prestado perante Banca
Examinadora, constituída de três especialistas, no mínimo, indicados pela
Ordem e pelos sindicatos de músicos do local e nomeados pela autoridade
competente do Ministério do Trabalho e Previdência Social (BRASIL,
1960)70.

Conforme o escrito no art. 28 da Lei n. 3.857 (BRASIL, 1960), tem-se o livre o


exercício da profissão para os diplomados, professores catedráticos, maestros de renome,
aluno em processo de conclusão de curso, legitimando assim o fazer profissional. Restando ao
músico prático, prestar o exame de qualificação profissional. Nesse sentido, tais fatos são
indicadores do reconhecimento da formação do saber formal, evidenciando que caso o músico
não seja diplomado, necessita do aval desse órgão normatizador para poder exercer sua

70
Documento online não paginado.
118

profissão. Eram considerados músicos trabalhadores aqueles que mantinham “relação


empregatícia com fábricas de gravação de discos, emissoras ou empresas congêneres”
exploradoras de qualquer gênero de entretenimento, de iniciativa pública ou privada
(SOCIEDADE BRASILEIRA DE AUTORES COMPOSITORESE ESCRITORES DE
MÚSICA, 1962 apud MORELLI, 2000, p. 195)71. Não se deve esquecer-se de mencionar as
relações históricas conflitantes entre músicos e o órgão normativo, alguns requerendo sua
extinção, outros sua reformulação. Ainda em inícios dos anos 60 José de Lima Siqueira, num
ato de intervenção federal, foi deposto da direção da OMB, acusado de pertencer ao partido
comunista, sendo indicado para seu lugar Wilson Sandolli. O novo presidente da OMB, em
carta difundida aos jornais, indica de modo enfático sua principal missão: "vigiar e punir os
inimigos da Segurança Nacional" (SANDOLLI, 1964 apud CUPERTINO, 2009)72. A partir de
então, a OMB instituída para fortalecer e regulamentar essa categoria profissional desvia-se
de sua função, passando também, como outras instituições ligadas ao regime militar, a exercer
poder de polícia. Mesmo com o paulatino estabelecimento da democracia ocorrido nas
décadas de 1970 a 1980 a OMB, ainda assim, manteve sua estrutura, seu modo de atuação
numa perspectiva cultural do regime autoritário.
Para exercer sua atividade profissionalmente o músico precisa do aval da OMB,
que concede o benefício em duas categorias, para o músico prático, aquele que tem avaliado
suas habilidades no instrumento e para o músico profissional, que deverá demonstrar
conhecimentos também de teoria e solfejo. A pretensão inicial da OMB foi a de submeter
autores e compositores às normas de disciplinamento do trabalho musical, mas com o tempo o
clima de policiamento exercido gerou muita insatisfação por parte dos músicos. Fato curioso
ocorreu com o compositor Ary Barroso no ano de 1962. O compositor de Aquarela do Brasil
filia-se a OMB, mas deixa de pagar a anuidade. Diante da inadimplência a OMB declara
como única alternativa aplicar a penalidade prevista segundo o disposto na Lei n. 3.857
(BRASIL, 1960), proibindo a execução de suas músicas (MORELLI, 2000).
Recentemente, já no ano de 2002, um juiz emite um mandado de segurança
permitindo que um grupo musical tocasse sem registro ou carteira. Na sentença o juiz
argumenta que “uma entidade fiscalizadora é desnecessária porque o músico não causa dano à
sociedade, mesmo que seja completamente incompetente” (PHILIPPSEN, [200-?] apud
FINOTTI, 2002, p. E3). Completa ele: “ora o músico, o máximo que faz é desafinar e não

71
Ver também o Art. 59 da Lei nº 3.857 - de 22 de dezembro de 1960 que trata dos tipos de empresas
empregadores (BRASIL, 1960).
72
Documento online não paginado.
119

consta que a má performance musical tenha causado prejuízo a alguém” (PHILIPPSEN, [200-
?] apud FINOTTI, 2002, p. E3). Na cidade de Campinas, Estado de São Paulo, uma liminar
concedida pela justiça garantiu para cinco músicos respaldo legal para se apresentar, sem ter
que se filiar a Ordem dos Músicos e conseqüentemente pagarem anuidade. O juiz ao emitir a
liminar faz referência a Constituição Federal Brasileira que garante a liberdade de expressão,
incluindo a artística e o livre exercício da profissão (A ORDEM..., 2004). Curiosamente,
reportando-se até o ano de 1962, o então senador Saulo Ramos, contrário a decisão de
submeter compositores e cantores à uma banca examinadora para avaliação profissional
argumenta: “a pior banca examinadora que um artista pode enfrentar é o público”
(MORELLI, 2000, p. 195-196).
Recentemente a discussão sobre a OMB teve um desfecho de grande repercussão
no Estado de São Paulo. Trata-se da aprovação da Lei nº 12.547, de 31 de janeiro de 2007
(SÃO PAULO, 2007), que dispõe sobre a dispensa de apresentação da Carteira da OMB, na
participação de músicos em shows e espetáculos afins que se realizem no Estado de São
Paulo73. A lei se justifica na ideia de “proporcionar aos músicos a possibilidade de exercerem
seu mister, sem nenhum tipo de constrangimento” (SÃO PAULO, 2003)74.
No que diz respeito ao entendimento jurídico sobre esse assunto, a questão é
bastante polêmica. Muitos músicos enxergam na OMB um órgão regulamentador com
possibilidades de garantir a manutenção dos direitos dessa classe. Consideram que a
vinculação a OMB, principalmente para o músico free-lance, para efeitos legais, é de extrema
importância. Para alguns a regulamentação é inconstitucional, pois fere o disposto nos incisos
IX e XIII, do artigo 5º, da atual Constituição Brasileira, que diz: “IX - é livre a expressão da
atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou
licença [...]. XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as
qualificações profissionais que a lei estabelecer” (BRASIL, 1988)75. Para outros, essa
interpretação é equivocada, uma vez que se trata de uma atividade econômico-produtiva, que
em decorrência dessa natureza precisa de regulamentação. Desse modo, é entendido que, não

73
Eis a redação da lei: “Faço saber que a Assembléia Legislativa decreta e eu promulgo a seguinte lei: Artigo 1º -
Ficam os músicos, no Estado de São Paulo, dispensados da apresentação da Carteira da Ordem dos Músicos do
Brasil na participação de shows e afins. Artigo 2º - Esta lei será regulamentada no prazo de 60 (sessenta) dias,
a contar de sua publicação, estabelecendo-se os critérios e as penalidades a serem impostas aos infratores.
Artigo 3º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. Palácio dos Bandeirantes, aos 31 de janeiro de
2007. José Serra - João Sayad (Secretário da Cultura)- Aloysio Nunes Ferreira Filho (Secretário-Chefe da Casa
Civil). Publicada na Assessoria Técnico - Legislativa, aos 31 de janeiro de 2007” (SÃO PAULO, 2007, p. 1,
grifo nosso)
74
Baseado no Projeto de lei nº 1.302/2003 (SÃO PAULO, 2003), do Deputado Alberto "Turco Loco" Hiar do
Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).
75
Documento online não paginado.
120

se deve confundir liberdade de expressão com a fiscalização sobre o exercício profissional (A


ORDEM..., 2004).
Os limites desses termos, especificamente liberdade de expressão e exercício da
profissão, mesmo no âmbito da sociologia do trabalho são bastante complexos de se abordar.
Alguns autores como Eliot Freidson não considera as artes (visuais) uma profissão. Um
estudo analítico sobre essa área demanda rever conceitos utilizados na sociologia do trabalho
e seu uso no campo artístico. Uma profissão, para Freidson, requer uma demarcação de um
métier pautado nos saberes e competências, que identificam esse profissional ao tempo em
que inviabiliza o acesso dos não habilitados (monopólio do conhecimento); de quem não
dispõe de uma formação especializada legitimadora do exercício da profissão. Quando o
profissional tem acesso ao conhecimento especializado, lhe é concedido jurisdição para opinar
no que lhe cabe. Os profissionais controlam seu próprio trabalho. Organizados em associações
determinam os requisitos e regras para a prática da atividade, bem como os critérios éticos
para a conduta do profissional. São, portanto, autoridades legitimadas pela sociedade
(FREIDSON, 1998). A questão é que no campo das artes as fronteiras que demarcam o que é
ou não arte, e, conseqüentemente, quem é ou não artista, são complexas e relativas (SANTOS,
2005 apud MENGER, 2005).

4.1.1.2 II Na lanchonete

Chico encaminhou-se para o balcão da lanchonete da Escola de Música e pediu


um suco de laranja e uma torrada. Eram quase oito horas da manhã. Sentou-se, colocou os
livros que trazia na cadeira ao lado e apoiou os cotovelos sobre a mesa. Ainda sonolento, tirou
os óculos escuros, que escondia as manchas azuladas ao redor dos olhos e se pôs a massagear
o rosto com ambas as mãos. Seu semblante expressava sinais de quem havia passado a noite
em claro. Tocara até as três da manhã. Chegara em sua casa por volta das quatro e antes de
deitar cronometrou o alarme do celular para soar às sete. Tinha que estar as oito na Escola de
Música para fazer uma avaliação de Harmonia. Há três anos fazia um esforço hercúleo para
dar conta das atividades do Curso Técnico. Era difícil conciliar trabalho e estudo,
principalmente porque tocava sempre á noite. Chico era percussionista e muitos colegas de
profissão não entendiam a valia dos seus estudos na noite, porque a “academia não ensina as
manhas”, diziam. Observava com atenção alguns bateristas afirmar: “Eu não vou estudar
harmonia, porque eu não preciso..., vou usar isso aonde?”. Ao que colocava: “mas, pôxa,
enquanto músico você precisa, né? O perfil do músico deve ser esse mesmo; tem que ser o de
121

uma pessoa versátil, sem limitações..., uma espécie de ‘músico Bombril’, o que possui ‘mil e
uma utilidades’, porque o mercado não tá fácil”. O modo como Chico conduzira sua formação
condizia com as convicções por ele assumidas e defendidas. Tinha ingressado no Curso
Técnico como baterista, querendo aprender a tocar de modo “mais consciente”, ter
experiência com instrumentos de percussão e levar pra bateria o que havia aprendido, mas aí
visualizara outra coisa: “Eita..., mas pra eu ganhar dinheiro como é que vai ser?” Pensou em
como diversificar seu campo de atuação. Começou por investir na música erudita, pois
objetivara tocar numa orquestra. Concomitantemente, passou a tocar bateria numa banda
especializada em música latina e a fazer participações em shows avulsos, na maioria das vezes
indicado por colegas. Sempre que precisavam dos seus serviços, era acionado: “chama Chico
Batéra”. E por fim, com o conhecimento que havia adquirido no Curso Técnico, ainda
ganhava uns trocados editando partituras no computador. Sempre que era indagado sobre sua
versatilidade, respondia na ponta da língua: “antes de qualquer coisa nós somos músicos,
né?... e enquanto músico você não precisa se limitar a tocar um instrumento..., é claro que a
gente precisa escolher um para se aprofundar, mas é extremamente necessário que o músico
seja versátil. Se não for assim, fica a margem do mercado, sempre reclamando, que não tem
oportunidade”. Há poucos dias um colega saxofonista, que também compartilhava de suas
ideias, comentou numa dessas ocasiões também na lanchonete:
– Rapaz, no mercado de hoje, totalmente restrito e competitivo, o músico tem de
aderir a tocar outros tipos de instrumentos..., porque é a tendência do mercado, né? Acho que
daqui pra frente vai ser comum a gente ouvir de proprietários de banda ou estúdios: “rapaz
você toca saxofone?”, aí você responde que sim, “Mas, toca flauta?”, “não toca?”, “então,
beleza, vou chamar outro saxofonista”. Porque ele quer exclusivamente um saxofonista que
também toque flauta, pois o custo é menor. Foi o que de fato aconteceu com os músicos, num
concurso que houve recentemente aqui na Escola: o edital especificava uma única vaga para
quem tocasse saxofone e clarinete.
Enquanto fazia o desjejum pensava nos seus projetos futuros. Nesse semestre
ainda concluiria o Curso Técnico.
Um colega violonista senta ao seu lado e indaga:
– Pronto para a prova?
– Mais ou menos..., não tive tempo de estudar.
– É..., eu também..., às vezes acho tudo isso uma perda de tempo...
– E aí..., vamos tentar o vestibular para o bacharelado em música? Dia vinte,
encerram-se as inscrições – diz Chico.
122

– Não sei cara..., vi a matriz curricular..., achei o curso muito teórico..., gostaria
de fazer um curso que formasse a pessoa pra realidade, pra vida..., porque às vezes se exige
conhecimentos que só irão ser válidos aqui, dentro desse mundo acadêmico, entendeu? Na
vida, “no vamo vê”’, quando você precisa trabalhar..., é outra história.
– Concordo em parte com você...
– Por quê?
– Acho que, segundo o que colegas me contam, o problema do Curso é se prender
demais a grade curricular entendeu? Por exemplo: duas vezes um colega meu foi reprovado,
por falta, numa disciplina que chamam de “Prática de Conjunto...”. Imagine que ele não via
sentido em freqüentar as aulas. Ele já trabalhava profissionalmente com a Orquestra
Sinfônica, além de tocar já há cinco anos num conceituado grupo de jazz.
– Não entendi.
– Veja bem, ele já havia adquirido experiência de “Prática de Conjunto” e as
atividades propostas para a disciplina não iriam acrescentar nada a sua formação. Vê que
sacanagem... , com toda essa experiência, ele ainda teria que cursar essa disciplina, entendeu
agora? Fora isso, acho que o curso propicia ao músico a oportunidade de ampliar
possibilidades de atuação no mercado.
– É pode ser... , mesmo assim não me sinto atraído por fazer um curso desses.
Esse diploma, a meu ver, só terá valia para quem pretende ingressar como professor
universitário..., meu negócio é tocar, é palco, entendeu?
– Acho que você devia pensar melhor cara... . Mas vamos lá..., vamos para nossa
prova – falou Chico se encaminhando para os degraus que davam acesso a sala de aula.

4.1.1.2.1 Crônica II - Comentários

A conversa entre os dois personagens do Conto Na lanchonete evidencia pelo


menos três questões a ser abordadas e desenvolvidas nesse tópico: 1) a contestação do saber
formal (e a conseqüente valorização do autodidatismo pelo aprendizado em situações
concretas de trabalho); 2) a ideia de flexibilidade curricular; e 3) a possibilidade da escola
aproveitar os conhecimentos já adquiridos pelo estudante.
123

Nesse esforço por situar a atividade musical na esfera conceitual do trabalho,


passaremos a abordar aspectos relacionados a formação do trabalhador da música.
Considerando a diversidade de gêneros do campo musical (erudito/popular), apontam-se, pelo
menos, duas vias de legitimação da profissão musical; os conservatórios e escolas de música e
a OMB. Durante muito tempo os conservatórios dedicam-se a formação clássica tradicional.
O conservatório apresenta-se como legitimador do exercício legal da profissão. Anterior, e,
ainda convivendo com o saber formal, encontra-se outra via de acesso ao conhecimento
musical; o autodidatismo, cujo modo de aprender possui estreitas relações com a tradição oral,
oriunda, dentre outros contextos no Brasil, das bandas de música, tendo como protagonista
desse processo, a figura do mestre. No sentido legal do termo, o exercício da profissão do
músico autodidata, é regulamentado pela OMB.
Ao iniciar essa discussão, uma questão se evidencia: o que é ser músico
profissional hoje nesse contexto da desregulamentação (ou desconstrução) das relações de
trabalho, em que uma quantidade enorme de brasileiros ganha a vida fazendo música sem ter
freqüentado uma escola de música, muitas vezes sequer sabem ler partitura. São músicos que
desenvolveram suas habilidades artísticas e musicais intuitivamente. Até pouco tempo a
formação do músico dito popular era pautada em grande medida no autodidatismo. Essa
inferência pode se justificar pela falta de tradição dos conservatórios brasileiros e escolas de
música em oferecer cursos nessa área. É preciso fazer referência mais uma vez aos barbeiros
cirurgiões, classe de profissionais portadores de habilidades variadas. No tempo livre eles se
dedicavam à atividade musical, tocando em festas diversas, religiosas e profanas, na cidade,
de orelha, ou no uso atual do termo, de ouvido. As palavras do pintor francês Jean Baptiste
Debret (1768-1848), expressam a versatilidade desses profissionais, incluindo nesse
importante registro histórico da formação da cena urbana brasileira, a descrição de um tipo
social possuidor de mil talentos, entre eles, a habilidades de tocar instrumentos musicais
arranjando a música do seu jeito:

No Rio de Janeiro como em Lisboa as lojas de barbeiros, copiadas das


espanholas, apresentam naturalmente o mesmo arranjo interior e o mesmo
aspecto exterior com a única diferença de que o oficial de barbeiro no Brasil
é quase sempre negro ou pelo menos mulato. Êsse contraste chocante para o
europeu não impede ao habitante do Rio de entrar com confiança numa
dessas lojas certo de até encontrar numa mesma pessoa um barbeiro hábil,
um cabeleireiro exímio, um cirurgião familiarizado com o bisturi e um
destro aplicador de sanguessugas. Dono de mil talentos êle tanto é capaz de
consertar a malha escapada de uma meia sêda, como de executar, no violão
ou na clarineta, valsas e contradanças francesas, em verdade arranjadas a seu
jeito [sic.] (DEBRET, 1965, p. 1515).
124

Músicos de expressão internacional, como o sanfoneiro Luiz Gonzaga,


aprenderam a tocar observando outros músicos, pela intuição, de orelhada (ÂNGELO,
1990). Ainda hoje é bastante comum ver atuando profissionais da música, cuja formação foi
pautada na experiência empírica, observando outros músicos. São músicos preparados para
um determinado contexto. Tomo aqui como respaldo o depoimento de Mário Cavalcanti,
professor de contrabaixo elétrico da EMUFRN. Diz ele:

O aprendizado que parece ser mais justo com o músico popular, o músico
que trabalha na noite, que acaba trabalhando [também] em estúdios, é um
[tipo] de aprendizado que é obtido no traquejo com a música; no tocar na
noite, no ensaio. É uma coisa muito intuitiva, muito da percepção. Na noite
se encontra poucos músicos com uma formação pautada nos rudimentos
teórico-musicais, mas são grandes profissionais, otimizados para
desempenharem uma atividade específica. O aprendizado se dá por meio do
traquejo no contato com outros músicos (informação verbal) 76

O Dicionário Silveira Bueno define a palavra “traquejo” como “prática,


experiência, perícia” (TRAQUEJO, 1996, p. 651). Curioso notar que outro dicionário de
língua portuguesa, define o termo como “muita prática ou experiência em qualquer atividade”
(TRAQUEJO, [20--])77. Ao pedir que definisse o termo, Mário Cavalcanti coloca:

Traquejo é o lidar com a música. Existem músicos que possuem um talento à


flor da pele e que não precisam do papel para exercer a profissão. São
músicos de ouvido, aprenderam tudo em contato com outros músicos,
tocando. O aprendizado que se tem na noite é diferente do proporcionado
pela escola (informação verbal)78.

De acordo com esse depoimento, tem-se em boa medida, o grau de


representatividade do saber informal, conquistado fora das instituições escolares. Ao tempo
em que se coloca a escola e seus conteúdos escolares em descompasso com o que exigido ao
músico no mundo do trabalho. Se por um lado o músico que teve sua formação galgada no
autodidatismo, em espaços e situações de trabalho, muitas vezes não dispondo de algum tipo
de embasamento teórico (formal e acadêmico), por outro, a aquisição de algumas habilidades
musicais são exclusivas desses modos informais de situações de aprendizagem. As inusitadas

76
Informação fornecida por Mário Cavalcanti (professor de contrabaixo elétrico da
EMUFRN), na EMUFRN em 2006.
77
Documento online não paginado.
78
Informação fornecida por Mário Cavalcanti (professor de contrabaixo elétrico da
EMUFRN), na EMUFRN em 2006.
125

situações que se apresentam para quem toca na noite (solicitação de músicas pelo público
não inclusas no repertório, transposição de tonalidade, improvisação, etc.), possibilitam ao
músico esse traquejo. A classificação brasileira de ocupações define a base da formação do
músico intérprete como heterogêneo, reconhecendo que poderá

ocorrer em conservatórios musicais, junto a professores especialistas ou em


cursos de nível superior em música, de forma isolada ou cumulativamente.
Mas reconhece, também, profissionais autodidatas, alguns dos quais se
especializam no exercício das suas atividades, no mercado de trabalho
(INSTRUMENTISTA..., [20--?]).

O autodidatismo não é uma prática exclusiva de músicos que atuam na música


popular. Aliás, essa demarcação de atuação profissional está cada vez mais tênue. Até por
uma questão de maiores possibilidades de trabalho, o músico adquiriu ao longo do tempo uma
maior versatilidade na atuação da atividade profissional. Cabe salientar que as regras para
admissão de músicos em orquestras brasileiras admitem tanto o músico diplomado quanto o
autodidata (Quadro 1), muito embora se saiba que muitas dessas instituições já possuem um
plano de cargos e salários com ascensão funcional horizontal (por naipe) e vertical (titulação)
e que a ascensão tanto se dá mediante concurso interno quanto por titulação.

Quadro 1 - Regras para admissão em orquestras brasileiras


Sinfônica do Sinfônica de Sinfônica Sinfônica do Experimental
Teatro Nacional Santa Catarina Brasileira Estado de de Repertório
ORQUESTRA
Cláudio Santoro (Florianópolis) Jovem (Rio São Paulo (São Paulo)
(Brasília) de Janeiro) (São Paulo)
Ser brasileiro nato Tocar uma peça Ter 25 anos, Ter diploma Ter no
ou naturalizado e de livre escolha e bom ou ser aluno mínimo 14
ter diploma de ler uma partitura currículo, de professor anos e estar
curso superior tocar obra de renomado em estágio
REQUISITOS
livre escolha avançado de
e trecho formação no
previsto no instrumento
edital.
Fonte: TOQUE… (2003).

Com o passar dos tempos nota-se, seja no campo erudito ou até mesmo no popular
a opção pelo conhecimento acadêmico formalizador do saber-fazer profissional em
detrimento do autodidatismo. Não que tal prática venha a desaparecer completamente, mas o
126

próprio nível requerido para atuação exige uma formação cada vez mais técnica e
especializada, mas também, versátil e ampla.
Se no campo da música o autodidatismo ainda é valorizado, os cursos acadêmicos
nessa ainda são vistos com certas reservas pelos músicos. Nesse sentido, uma das personagens
do Conto II, questiona a valia dos conhecimentos apreendidos na escola para o exercício de
sua profissão.
Os currículos dos institutos79, conservatórios e escolas de música, durante algum
tempo, apresentaram significativa falta de sintonia com o mundo do trabalho, por expressar,
na opinião de muitos músicos, um conteúdo de pouca utilidade, ou quase nenhuma, no
exercício profissional do músico instrumentista. Tal concepção foi fruto de um ideal de
formação institucional, cuja concepção de ensino objetivava formar o músico “performático”
por excelência, o virtuose, empreendimento este que alcançou pouco sucesso, dado os poucos
atrativos monetários que a profissão oferecia e o fato de que nem todas as pessoas que
estudavam música queriam necessariamente seguir uma carreira profissional.
Uma das reclamações dos músicos em relação aos currículos escolares, sempre foi
a falta de sintonia dos conteúdos disciplinares com os necessários para se atuar no mercado de
trabalho, ou seja, de se ter que assimilar conteúdos pouco utilizados no exercício profissional
do instrumentista; em situações concretas. Os cursos livres de música, modalidade de curso
não regulamentada pelos sistemas oficiais de educação (o correspondente aos cursos de
extensão nas universidades), apresentavam como componentes curriculares a teoria musical e
o estudo do instrumento. O primeiro, tido muitas vezes como sinônimo de alfabetização
musical, foi sempre acusado de conter conteúdos pouco requisitados na performance do
futuro instrumentista. Mas a crítica a essa teoria musical, além de conteudística é também
metodológica; por não proporcionar ao aluno recursos cognitivos para mobilizar e transpor
tais saberes para situações concretas.
A tensão estabelecida entre o currículo e o mercado, dar-se pelo fato, pelo menos
na área musical, de a escola não atender plenamente nenhuma coisa nem outra. É importante
destacar que Castro (1988) aponta como um dos problemas relativos ao ensino da música nas
instituições musicais especializadas o processo de construção do saber. Para ele “a escola de
música concebe a questão do saber-música de uma forma estática, imóvel, e funda o seu

79
A Exigência de um currículo, que pudesse nortear as atividades de ensino da escola, parece
ser uma exigência implícita na reforma educacional proposta pela Lei 9.394 (BRASIL,
1997b). Pelo menos na área musical a escola se valia apenas do regimento e dos planos de
cursos, contendo os programas disciplinares e repertório a ser estudado. Portanto, a exigência
de um Projeto Político Pedagógico é recente.
127

mecanismo de ensino e aprendizagem sobre esta concepção” (CASTRO, 1988, p. 137). A


música não é tratada como saber, mas como meio de inculcação desse saber. A forma de saber
musical nas escolas dar-se de modo estático, rígido, já circunscrito. A música é concebida
como acabada. Isso porque o objeto a ser trabalhado, compreendido, estudado, transformado
nas escolas de música, não era considerado a música, mas sim os alunos (suas concepções,
valores, ideias). Nesse sentido os alunos “são convertidos em objetos e sofrem um processo –
que, diga-se de passagem, nada tem de educacional – de inculcação de valores, e a música
nada mais é do que um meio de inculcação desses valores” (CASTRO, 1988, p. 137). Sendo
os alunos, objetos da escola de música, conseqüentemente seu produto serão eles. A produção
musical torna-se um produto ideológico que a partir da construção dos valores musicais,
estabelece também valores morais, estéticos e políticos pré-determinados pela instituição. Daí
porque sempre foi tão difícil romper com as amarras de padrões musicais já legitimados pelo
ensino conservatorial europeu aqui no Brasil. Sob a proteção de altos muros, as escolas de
música se fecham em torno de si, ignorando seu entorno. Nesses termos é equivocado situar a
teoria como um modo de acesso ao conhecimento inútil.
As atividades relacionadas à performance e interpretação musical exigem um
exercício reflexivo, além de uma base histórico-cultural e artística. Há algum tempo o aluno
de música limitava-se a reproduzir o que lhe era repassado. A teoria musical, tida como
sinônimo ao adestramento à escrita musical estava menos comprometida com a produção
do saber e mais com a reprodução deste. Tal procedimento didático-pedagógico situava-se na
contramão da incorporação natural da linguagem na infância. A criança, obviamente, primeiro
se apropria da linguagem falada, para em seguida registrar graficamente o som – tal qual
entende alguns dos métodos ativos, entre eles o Suzuki. Ao ingressar na escola para estudar
música, a criança era iniciada, primeiramente, na escrita musical. A escola, no contexto da
formação técnico-instrumental, não oferecia nenhum mecanismo para que o saber viesse
acompanhado de uma reflexão, nem meios para que o estudante da música pudesse transpor
os conteúdos para situações concretas. Digo oferecia, porque, mesmo a passos lentos isso vem
se modificando. Um dos aspectos positivos da inserção das instituições escolares no seio
universitário foi o engajamento em atividades de pesquisa. O surgimento de publicações e
fóruns de pesquisa na área musical, também tem contribuído pela mudança dessa mentalidade
estática na área musical – podemos citar a Associação Brasileira de Educação Musical
(ABEM), Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM), e
Associação Brasileira de Etnomusicologia (ABET).
128

Talvez o que os currículos escolares não tenham levado em conta, independente


da esfera administrativa pertencente (público ou privada), sejam os aspectos formativos
relacionados à sobrevivência do músico por meio do exercício profissional no mundo do
trabalho. Aqui ocorrem dois extremos: as instituições privadas se voltam para atender as
demandas mercadológicas e as públicas se fecham em torno de seu espaço. A produção
realizada por estas não ultrapassa seus limites institucionais e internos. A prova disso é que
em meio a crescente proliferação de universidades e faculdades privadas no Brasil nos últimos
anos, registra-se um número irrisório de cursos de música oferecidos por essas instituições.
Chico Batéra, o protagonista do Conto II, defende a ideia de músico Bombril,
profissional versátil, e, que a escola pode contribuir com esse perfil de formação, mesmo
considerando que o curso precisa ser flexível e aproveitar os conhecimentos já adquiridos
pelos estudantes. Sobre estas questões falarei mais adiante.

4.1.1.3 III Como num jogo de xadrez: o músico como gestor da incerteza

Ficaram apenas cinco alunos após a aula de História da Música. Eram


respectivamente estudantes de guitarra, percussão, saxofone, piano e violino. O professor se
despediu de todos e saiu lembrando a data e horário do seminário a ser apresentado. Aliás, era
exatamente esse o motivo pelo qual estavam ali. Contudo, a conversa toma outro rumo
quando o aluno percussionista coloca:
– Vê só pessoal; às vezes me perguntam se dá futuro, viver de música aqui em
Natal. Muitos acham que não. Aí eu respondo: “Sim, eu vivo de música nessa cidade”.
Agora, demorou muito até chegar onde estou hoje, já fiz muita coisa, entendeu? Já toquei em
banda de forró, e outros trampos mais, e nem tudo que visualizei deu certo. Cê toca num
lugar, toca noutro... Acho principalmente que todo mundo tem que entrar em contato com a
música popular porque ela dá mais oportunidades. O que vocês acham?
– É o que eu digo; pra você conseguir entrar numa orquestra tem que primeiro
passar num concurso, e outra coisa; quando é que vai se abrir vagas? Aqui só tem uma
orquestra, né? Ponderou o violinista, gesticulando com as mãos. – A gente tem que tá
preparado para o que der e vier.
– Eu tô falando nessa área popular, porque penso que tinha que ter um curso na
nossa área com uma abrangência maior. Cursos do tipo curso técnico de violão erudito,
chega a soar até meio esquisito; o cara conclui um curso desses e vai trabalhar aonde? Vai ter
que ser muito esperto pra poder arranjar um emprego, não é não? Retoma o raciocínio o
129

percussionista, e depois de um breve silêncio conclui: – O que eu procuro fazer é ampliar


meus conhecimentos. Fazendo isso, acho que as oportunidades de trabalho serão mais
freqüentes, certo? Como músico, procuro atuar em projetos diversificados – diz o
percussionista.
– Só que vai depender também do que você visualiza. Vai caber também a cada
músico perceber se é possível desenvolver seu projeto aqui, ressalta o violinista.
– Isso mesmo, de repente aqui não é o seu lugar. É uma questão de tentar se
encontrar em termos de mercado entendeu? Conheci um cara que sobrevive produzindo
canções infantis lá no ABC Paulista, fazendo essa onda aí de teatro com música infantil,
levando seu projeto às prefeituras, creches municipais, e sobrevive assim – Diz o guitarrista.
Dirigindo-se a janela a pianista argumenta: – Pessoal, no meu modo de ver, ao
invés de pensar que as oportunidades de trabalho para o músico estão ficando cada vez mais
escassas, ao contrário da opinião de muitos, acho que tá se abrindo mesmo. Eu concordo com
o que foi falado aqui. A saída é procurar novas alternativas. Se pensarmos bem, hoje a gente
tem muito mais oportunidades de trabalhar com música do que há tempos atrás. Temos,
sobretudo, a internet como ferramenta de divulgação.
– Bem lembrado! Temos o acesso virtual, grandes sites, portais que são
alimentados diariamente com vários produtos, todos os dias várias canções são armazenadas
nesses sites, divulgadas e vendidas para o mundo inteiro, e muita gente faz isso já
intencionando mostrar seu trabalho em festivais alternativos de música – diz o guitarrista.
– Gente, um dado importante sobre esses festivais alternativos de música é que
eles viraram vitrine de consumo, deixaram de ser alternativo, em sua essência não são mais
underground, pois a cena underground é hoje a cena independente. Antigamente o que estava
à margem da grande mídia era chamado de underground, era aquela produção na qual as
pessoas queriam fazer música independentemente de modismo, misturando experimentando
sem ter compromisso com o mercado... – esclarece o percussionista.
Exatamente – interrompe o guitarrista – Muitas vezes o cenário underground
estava associado à falta de qualidade, só que hoje essa ideia se modificou. A cena
underground virou a cena independente, tribal, determinando agora a referência do que é de
qualidade ou não.
– Acho também que muitas vezes é o músico que se fecha, fica obstinado por
ingressar numa orquestra sinfônica, por exemplo, pois ali terá um salário fixo e aí não abre
mais a cabeça pra nada, só pensa nisso. Sabemos que é muito difícil aparecer concurso nessa
área – diz o violinista reforçando o que falara anteriormente.
130

O saxofonista que ainda não havia externado sua opinião diz de modo incisivo:
– Mas o que fecha muito o mercado, no que diz respeito às oportunidades de
trabalho para os metais, principalmente em gravações, é o fato de apenas um naipe ser
chamado pra gravar. Trata-se da famosa e conhecida panelinha. Na verdade ou entra por
meio da panelinha ou por política. Precisamos romper com esse mau hábito, que privilegia
apenas uns poucos.
– Mas existe a questão do mérito, da competência, né? O cara lá tem um estúdio e
diz: “só gravo com saxofonista ‘tal’ porque o ‘bicho’ não me dá problema”, ou seja, não deixa
de ser uma “panelinha”, mas o cara entrou nessa panelinha por competência – argumenta o
guitarrista.
– É..., por mérito – diz a pianista.
– Mas concordo que existem os dois, realmente – completa o saxofonista.
– Só que quando você é beneficiado por influência política, pode ser colocado pra
fora a qualquer momento... – acrescenta o percussionista.
– É..., já por competência ninguém tira – concordou o violinista.
– Exato, é o diferencial, né? É o que cada um tem que ter; o seu diferencial.
Mesmo que dois músicos desempenhem a mesma função, cada um tem que ter o seu
diferencial– diz o guitarrista.
– É isso aí pessoal, tirando as “panelinhas”, tirando tudo; se o músico for
obstinado pela ideia de fazer bem o seu trabalho, estudando, tendo uma identidade própria,
acho que ele irá se dá bem. Dificuldades todas as profissões apresentam, umas mais outras
menos – fala o saxofonista.
– Tudo isso é como jogar xadrez, né? As jogadas estão todas ali. Você pode vê-las
ou não. Muitas vezes a solução é uma coisa que a gente nem pensou ainda, porque a gente tá
muito focado no problema, né? Coloca empolgado o percussionista – O meu irmão costumava
dizer que; “não existe sorte, existe uma pessoa preparada quando se apresenta uma
oportunidade”.
– Exato, devemos estar preparados para quando as oportunidades surgirem,
principalmente no meu caso, que sou pianista, às vezes só a docência salva – diz a pianista...
– Mas para isso, preparando-se. Interrompe o violista – Concordo que tem a
questão do mercado, das oportunidades, mas creio que o esforço também conta. Meu
professor é hoje um dos instrumentistas mais conceituados do país, mas conseguiu esse status
graças a muito estudo. Ele me disse que quando era adolescente ao invés de ficar a toa como
fica a galera hoje, tava era malhando no instrumento.
131

– Porque não é só aguardar o emprego, não, podemos, até certo, ponto influenciar
o mercado – diz o guitarrista.
– Tive uma experiência que até hoje guardo como exemplo. Participei de um
encontro de percussão, onde quem ministrou o curso foi um percussionista de renome
internacional, que é também compositor. Aí, ele fez vários arranjos, várias composições,
editou os livros, gravou os CDs, tudinho dele e bancando tudo. Aí, quando ele vai pra um
lugar, ele vende os CDs, os arranjos, os livros e ainda recebe cachê por tocar... É assim que
sobrevive – coloca o percussionista.
– É..., um cara muito esperto – fala o saxofonista.
– Também acho – concorda o violinista.
– Muito organizado também... – diz a pianista.
– São muitas alternativas, né? Não é só uma, se não der certo, tentam-se outras.
Mas uma saída vai existir – enfatiza o percussionista.
– Ok pessoal, a conversa tá muito boa, mas acho que devemos retomar a discussão
sobre o nosso seminário – diz a pianista.
– Tudo bem, mas antes vamos fazer uma breve pausa para um lanche? Pergunta o
violinista.
Todos concordam e se encaminham para a lanchonete da Escola.

4.1.1.3.1 Crônica III - Comentários

No Conto III as personagens comentam sobre as dificuldades encontradas pelos


músicos no que diz respeito a oportunidades de trabalho na atualidade. Há um consenso do
grupo que para se inserir nesse contexto de atuação profissional o músico, além de
competente, tem também de ser versátil, utilizando táticas diversas para sobreviver da
música. Tornou-se clichê na década de 1990 se referir ao mercado de trabalho como de
natureza incerta, competitiva e em constante mutações. Nada de novo, considerando que a
ideia de mudança, tanto está presente na natureza como no universo das relações sociais, da
ação humana. Para uma das personagens desse conto, a relação do artista com mercado é
similar aos desafios apresentados num jogo de xadrez, onde para se ganhar faz-se uso de
132

estratégias e táticas diversas, subsidiadas por habilidades tais como: raciocínio lógico-
dedutivo, capacidade de resolver problemas, imaginação e criatividade, dentre outras
qualidades. O tabuleiro do jogo de xadrez (campo de batalha) se apresenta como um espaço
reservado ao exercício do inusitado, porque são também inusitadas as ações do oponente.
O trabalho artístico possui uma aura de incerteza, no que diz respeito ao processo
criativo. A atividade criativa é “a própria essência da produção livre é a desmultiplicação da
idiossincrasia individual, e o trabalho criador do artista é a sua incarnação mais elevada e pura
[sic]” (GENTILI, 1994, p. 25). A inventividade criativa é uma atitude de riscos, sem
prenúncio, sem protótipos, estabelecidos e antemão. Ao improvisar numa performance
musical o artista se utiliza de artifícios técnicos e clichês, ao tempo em que abandona tais
recursos e entra no vazio da incerteza, aceitando os riscos (NACHMANOVITCH, 1993).
Reeves (2002), fazendo uma analogia entre o comportamento da natureza e sua
estreita relação com a arte, destaca como ponto comum a ideia de acaso. Os fenômenos da
natureza são organizados por leis que os regem, mas, no entanto, não indicam com precisão o
fluxo dos acontecimentos. Por isso que não há monotonia nos eventos naturais, pois,

quem nunca se surpreendeu com a riquezas das espécies e a variedade das


formas que nos apresenta uma exposição de borboletas ou de conchas
marinhas? Na terra, a vida se espalha ‘por todos os azimutes’. Instala-se em
todos os locais possíveis, em todas as condições imagináveis. O ambiente, a
superfície do planeta, apresenta uma larga variedade de situações físicas:
tropicais, glaciais, desérticas, úmidas ou aquosas. E muda ao longo das
idades [...] A natureza não inventa uma, mas cem maneiras de resolver o seu
problema (REEVES, 1986, p. 136-137).

O acaso, o caminho do inusitado, é então a via pela qual a inventividade e a


criatividade da natureza podem manifestar-se. Essa propriedade é manifesta no trabalho
artístico, já foi dito, especificamente no modo singular como os artistas manipulam os
materiais e as técnicas; que fornecem todo suporte técnico e material para produção artística,
mas não determina sua forma última. É desse modo, galgado na ideia de acaso, no evento
inusitado, que se pode afirmar que a pulsão criadora do artista é similar a imprevisibilidade do
comportamento criador da natureza. Uma música qualquer pode responder “às regras estritas,
mas estas regras não são suficientes. Elas são as condições para o evento inesperado, para a
produção daquilo que as supera” (PRIGOGINE, 2001, p. 61). Aí reside a singularidade do ato
criativo: na transgressão, no inusitado, na liberdade dos atos que atropela as normas até então
pré-estabelecidas e infringíveis. O artista torna-se único quando na busca de uma
individualidade estético-estilística, valendo-se sua engenhosidade e seu poder de invenção
133

tem a ousadia de extrapolar as regras. Mesmo no âmbito mercadológico atual a singularidade


da criação é levada em conta. Para alguns segmentos musicais, principalmente os localizados
na cena independente, o músico tem que dizer de maneira diferente, se ela disser de maneira
convencional, será logo posto a margem, daí a importância desse mundo artístico de ter uma
indenidade própria. Por isso que a indústria da musica faz vai criando categorias, segmentos,
com objetivo de atingir consumidores que se identifiquem com esse ou aquele segmento.
Podemos afirmar então que é através da obra de arte que se revela toda
originalidade pessoal e imaterial do artista, denunciada, não primeiramente pelo assunto ou
tema, mas antes e, sobretudo, pelo próprio modo não repetido e singular que ele teve ao
formar, ou no nosso caso, compor a obra musical. Nesse modo de formar é que reside toda a
imaterialidade do artista no sentido de que esta, uma vez que se colocou como signo da
formatividade, exige o seu modo próprio de formar, i.e., se faz, ela mesma. É, portanto nesse
sentido, que podemos afirmar que até um contraponto, que não exprime por si só nenhum
sentimento, irá conter traços da individualidade do autor; a revelação de um mundo meta-
sensível; o modo formar que não pode ser senão seu é a sua própria abstração do real feita,
toda ela, modo de formar, ou aquilo que chamamos de estilo (PAREYSON, 1993). Mas é
importante destacar aspectos outros, inusitados que extrapolam o processo de criação artística
e deságuam no exercício da profissão; particularmente nos riscos assumidos pelo músico na
busca pelo êxito profissional.
Falando agora de um ponto de vista menos especulativo e mais empírico, ao se
lançar no exercício da profissão, o músico lida com outro tipo de incerteza; ele se põe
enfrentar os riscos do flexível mercado de trabalho contemporâneo que pode consagrá-lo ao
êxito profissional ou a uma atuação discreta.

As tomadas de risco associadas, à imprevisibilidade do sucesso, projecto


após projecto, e as fortes pressões concorrenciais criadas e exploradas pelo
sistema de emprego, traçam um retrato singular do artista como profissional
qualificado e audacioso, livre e individualista simultaneamente
desinteressado e indiferente às ‘necessidades materiais’ de uma escolha
aleatória, pelo menos no início do seu compromisso, visto que o sucesso é
intrinsecamente incerto, aqui mais do que noutros casos [sic] (MENGER,
2005, p. 21).

No entanto, a ideia do risco, do êxito incerto, fora da dimensão da performance,


não se apresenta como inibidor das convicções assumidas em profissões que são ao mesmo
tempo atraentes e incertas, como acentua Menger (2005), nem como entrave à inventividade
criativa; antes mostra-se como um mecanismo de seleção de ingresso ao êxito, numa esfera
134

profissional competitiva, cujos ingredientes para o sucesso, além do árduo trabalho, são ainda
o talento e a sorte. A lógica parece cruel, mas, quanto maior o somatório de profissionais a
assumirem o risco, maior as chances de se ter profissionais menos preparado, em
contrapartida maior o impacto na área para quem se destaca. Nessa direção o risco torna-se,
de certo modo um elemento regulador da concorrência interindividual do mercado artístico.
Diferentemente do que ocorre em carreiras previsíveis nas organizações
empresariais, no campo artístico é essencial, para o funcionamento dos mercados das
celebridades, “que o sucesso permaneça incerto, para estimular a inovação, conservar a
dimensão criativa do trabalho e não desanimar concorrentes e novos candidatos” (MENGER,
2005, p. 90). O êxito de sucesso ou o reconhecimento de talentos são legitimáveis ora pelo
consumo de massa, ora pela ideia de qualidade e originalidade, postas como prova
comparativa dos talentos. O surgimento do teclado sintetizador na área musical desempenha
um importante papel, não só no que diz respeito as novas concepções estéticas, mas
modificou completamente o modo de produção da música industrializada. O teclado
(sintetizador) no final da década de 1980 foi um dos grandes responsáveis pelo barateamento
dos custos da produção de um disco. Mas assume parte dessa façanha por descartar as funções
desempenhadas antes por outros músicos. Com o teclado-sintetizador, considerado suas
atualizações-tecnológicas, torna-se possível gravar as partes atribuídas a outros instrumentos
como bateria, contrabaixo, violino, entre outros. Se Por um lado o teclado proporcionou o
desemprego de muitos músicos, por outro, fez surgir um novo profissional da música: O
músico-compositor-aranjador de estúdio. Aquele profissional plural que além de produzir o
disco, tocar arranjar ainda faz o serviço do técnico de mixagem e ainda tem que gerenciar sua
própria carreira. Ao músico profissional autônomo, free-lancer, lhe é também exigido que
seja empreendedor. Os Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Profissional de
Nível Técnico reconhece a necessidade de se incluir essa competência profissional no
currículo:

As empresas e o público procuram cada vez mais artistas completos,


formados para criar, produzir, gerir suas carreiras. Em suma, o que se
procura é o artista culto, curioso e empreendedor, aquele que influencia o
conteúdo e a forma dos espetáculos e dos produtos. Ou seja, aquele que
rompe com o isolamento e encontra novas formas de aproximação com seu
público (BRASIL, 2000, p. 21).

Ou seja, de acordo com a citação acima o músico deveria ser orientado para gerir
sua própria carreira. Falar que o músico tem de encontrar novas formas de aproximação
135

com público é sugerir que o músico deverá se apropriar das diferentes ferramentas, canais de
comunicação e táticas diversas para disponibilizar sua música. A respeito da importância de
ferramentas como a rede mundial de computadores nesse contexto do trabalho musical, basta
colocar, que, hoje um estudante de música, sendo ainda amador, poderá disponibilizar via
internet sua música para todo o mundo (e até ficar famoso), isso é de certo modo burlar um
pouco o clássico caminho para o sucesso consagrado pelo mercado da música. Uma das
diferenças do musico de hoje para o de décadas atrás é que antes ele entregava sua carreira
para ser gerenciada por outras pessoas (gravadora, agente, produtor musical), hoje se exige
que ele seja o próprio gestor do processo, ou seja; ele tem que saber gerir para se promover e
fazer com que o produto que ele cria a musica chegue a alguém. Parte da ideia agora, que no
mundo produtivo o profissional tem de ter capacidade para se adaptar a novas situações que a
atividade profissional lhe impõe; ser possuidor, também, de uma capacidade gerencial e
estratégias de marketing.

Figura 1 - Musicien aux talents multiplex

Fonte: Larmessin ([17--]).

O que se coloca geralmente para o musico é a ideia de que, quem pode


proporcionar o sucesso, legitimar sua arte ainda é as grandes gravadoras. Mas o que se tem
visto é o músico valendo-se de múltiplas táticas – e não estratégia, no sentido em que Michel
de Certeau (CERTEAU, 1996, p. 100); como ação passada "dentro do campo de visão do
136

inimigo" – para sobreviver procurando espaços para que possa se promover: tocando em
bares, pequenos eventos, geralmente ele deixa um portfólio, release e um CD demonstrativo.
Falando sobre o artista no contexto das profissões Menger (2005, p. 26) ressalta que “o artista
é ao mesmo tempo trabalhador, e mestre da desmultiplicação de si, saltimbanco e homem de
métier, impaciente face a todo limite e igualmente hábil a inventar soluções inéditas para gerir
os riscos aos quais se expõe”. O prefixo des, deixa claro que o termo desmultiplicação, não
deve ser usado como sinônimo de multiplicação. O termo desmultiplicar tem a ver com
desaceleração, mas um modo diferente de desacelerar. Quando dirigimos um automóvel e
mudarmos da terceira para segunda marcha, estamos diminuindo (desmultiplicando) a
velocidade do carro ao tempo que este ganha força. Nessa redução da engrenagem o veículo
perdeu velocidade, mas adquire maior potência, detalhe fundamental, se quisermos conduzir o
automóvel por um aclive. No contexto da atividade artística desmultiplicar, significa o ato de
dividir o trabalho em várias tarefas, com vistas a aumentar as chances para se chegar ao
objetivo principal.

Figura 2 – Homem Banda (1)

Fonte: Pixar Films (2005a).

Uma das maneiras que o músico encontra de gerenciar a incerteza é multiplicar e


diversificar as atividades que desempenha, para tal, nessa concepção, o músico tem de ser
flexível perante o mundo do trabalho. Plural em suas atividades face às demandas
mercadológicas, o músico nesse sentido é um indivíduo quase firma, que se assemelha a
137

figura do empresário tal qual o personagem conhecido como o homem banda80” (Figuras 1, 2
e 3), indivíduo que dado aos seus apetrechos demonstra uma versatilidade caricatural ao lidar
com tantos instrumentos. Recentemente o estúdio cinematográfico Pixar produziu um curta
metragem, que também reproduz essa capacidade profissional múltipla, necessária ao músico
para sobrevivência. No caso de A banda de um homem só da Pixar, trata-se de dois músicos
multi-instrumentistas, que enfrentam num árduo embate musical para ganhar a atenção e uma
moeda de um único expectador, no caso uma criança. Ganha aquele que, com todos seus
recursos, conseguir impressionar a garotinha. Na verdade, é pouco comum no mundo artístico
as situações de trabalho que possibilitam o músico a prestar serviços de caráter não eventual a
outrem sob a dependência de um salário. Trata-sede um cenário composto por profissionais
autônomos, freelancings e que se relacionam com diversas formas atípicas de trabalho
(intermitência, tempo parcial, multi-assalariado) e quem tem na versatilidade profissional
o principal mecanismo de sobrevivência. Na verdade, termos como músico plural, são
sinônimos de outro conceito que faz presente no léxico referente as orientações curriculares
para a Educação Profissional, trata-se da palavra flexibilidade. Uma educação flexível tem
precisamente seu foco no trabalho e dês-especialização.

Figura 3 – Homem Banda (2)

Fonte: Pixar Films (2005b).

4.1.1.4 IV Tá ligado?

80
Habit de Musicien. Nicholas de Larmessin (Paris, 1684 - 1753). There follows a selection of images from a
series entitled Les Costumes Grotesques: Habits des métiers et professions […]. Disponível em: <
http://www.spamula.net/blog/archives/000168.html >. Acesso em: 12 jan. 2008.
138

João do Trumpete, como era popularmente conhecido em Pau dos Ferros, cidade
interiorana do Rio Grande do Norte, estava no aeroporto Deputado Luís Eduardo Magalhães,
na cidade de Salvador, Bahia, esperando o horário de embarque para São Paulo. Iria para um
estúdio, participar da gravação de um disco e de lá sairia para uma tournée na Europa. Pôs
para tocar seu aparelho de MPEG Layer 3 (MP3) ouvindo as músicas do álbum Kind of Blue,
de Miles Davis. Ao som de So What tomava um café expresso e desligava-se do seu entorno,
sob o improviso do sax tenor de John Coltrane. De modo inusitado, um dos seus colegas de
banda, senta-se ao seu lado e pede um expresso. Ambos estavam tocando numa banda de
forró, mais uma daquelas cujo nome possui um sentido ambíguo, do tipo: Ferro na Boneca,
Bicho de Pé, Collo de Menina, Calango Aceso, e tantas outras.
– “E ai véi como e que vão as coisas?” Indaga seu colega músico.
– Cara..., tá rolando o maior bode... Acho que vou tocar na banda só até conseguir comprar
um bom instrumento e um carango..., tá cansativo demais..., tocar em banda sempre foi um
bom negócio pros donos..., pra gente nunca deu pôrra nenhuma, tá ligado?
– É, saquei..., mas não sei bem ainda o que dizer sobre isso...
– Cara, sabia que ganho o mesmo cachê de quando entrei na banda há tempos
atrás? ..., e olha que na época a banda nem era conhecida no Brasil... Hoje os proprietários, o
marido e esposa, possuem uma cobertura” nas principais cidades do país, são conhecidos na
TV, e nós? Continuamos na mesma merda..., ganhando a mesma mixaria. Acho bobeira ficar
ainda na banda.
– Mas por que a galera não se junta e pede aumento?
– Cara, nós até batemos um lero com a dona..., mas aí ela falou que estávamos
chorando de bucho cheio, que ganhávamos mais que um médico..., e que se não
quiséssemos mais tocar, era só falar que tinha uma lista de espera enorme de músicos
aguardando para tocar na banda...
– É..., entendo. Mas, entrei na banda agora..., me acho até cagado; estava sem
ganhar um tostão..., fodido, sem trampo nenhum..., por enquanto, não tenho nada do que
reclamar.
– Falo por mim. Cada um sabe onde o sapato aperta..., só sei que não tenho tempo
pra mim, nem pra minha família, viajo muito..., nem pra tocar o que gosto tenho tempo..., pra
estudar meu instrumento..., fico nesse troço sem futuro, chega uma hora que cansa, né?
– Pôrra cara..., mas, fazer o quê? Na nossa área é caixão mesmo, a gente termina
tocando coisas que não gosta. Quantas vezes a gente não escuta um ou outro músico dizendo:
139

ah, véi, eu não gosto desse estilo aí, mas eu vou tocar..., vou ganhar essa grana, porque tô
precisando, senão, não iria, cada um se vira como pode.
– Vê então, que fulerage, a gente ter que lidar com essa situação sinistra; a gente
faz o que gosta, porque a música é pura vibração, energia, mas aí vem a necessidade de
ganhar dinheiro nos forçando a pegar qualquer trampo, tá ligado?
– Mermão, é o seguinte, no momento não vejo saída para esse troço não..., mas,
digo a tu, que se um dia puder me dar o luxo de não tocar por grana, seria muito massa. Eu
desejaria isso pra gente. Porque aí eu iria tocar, quando realmente tivesse afim; com e para as
pessoas que eu quiser, saca? Mas isso é viagem. Por enquanto não posso rejeitar nenhuma
chance para ganhar dinheiro na música..., vivo disso..., dou uma força pra meus pais e cinco
irmãos. Acho que para a maioria dos músicos é uma questão de sobrevivência mesmo.
– É isso aí..., mas estou na batalha, estou botando fé que irei melhorar minha
situação financeira, ser um músico de moral, justamente pra um dia tocar a música que eu
quero, e tocar com prazer, tá ligado?
Nesse momento ambos se encaminham para sala de embarque 81.

4.1.1.5 V No ônibus

Tomou o ônibus subindo os degraus com dificuldade para acomodar seu


contrabaixo acústico protegido pelo estojo. Entrou pela porta traseira e dirigiu-se ao cobrador
para pagar a passagem. Sempre praticava na Escola de Música, lá deixando seu instrumento,
evitando assim, o transtorno de andar com ele no ônibus, muitas vezes lotado. Morava

81
Glossário de gírias usadas na crônica: 1) Bater um lero: Ter uma conversa séria; 2) Bobeira: vacilo, erro; 3)
Boiar: Não entender, estar por fora do assunto; 4) Botar fé: acreditar; 5) Bucho: Barriga, estômago, ventre; 6)
Cagado: Sortudo; 7) Cara: Denominação para pessoa de maneira informal; (sinônimos meu, mano, brother);
8) Carango: Automóvel; 9) Dá uma força: Ajudar; 10) E aí: Saudação (o correspondente a oi, como vai,
tudo bem?); 11) É caixão!: O mesmo que difícil, complicado; 12) Esquema: Referente a uma ação tática,
como ir, fazer, trocar, comprar etc.; 13) Fodido: Estar em situação má ou desesperadora; estar sem saída
(sinônimos; frito, ferrado, lascado); 14) Fulerage: (Fuleiragem): algo que não preste; 15) Galera: Grupo,
conjunto de pessoas (amigos, torcedores, plateia); 16) Grana: Dinheiro; 17) Legal: Algo bom, divertido; 18)
Maior Bode: Desânimo, tristeza; 19) Massa: (ver. Legal); 20) Mermão: Junção de meu irmão (ver. Cara);
21) Mixaria: Coisa sem valor; insignificância, bagatela; 22) Pôrra: Expressão que denota enfado,
impaciência, desagrado; 23) Sacô?: O mesmo que entendeu?; 24) Sinistro: De difícil explicação (sinônimo;
tenebroso); 25) Tá ligado: O mesmo que entendeu?; 26) Ter moral: Pessoa que é respeitada em algum
lugar; 27) Trampo: Trabalho, oportunidade de emprego; 28) Troço: Negócio, coisa indefinida; 29) Véi: (ver.
Cara); 30) Viagem (I): Estar no mundo da lua, não estar presente mentalmente; 31) Viagem (II): Devaneio,
situação utópica, situação fora da realidade.
140

distante da cidade, na periferia. Ao todo, o percurso durava cerca de uma hora. Tivera que
tocar muito para adquirir seu instrumento, até um empréstimo fizera para completar o valor.
Já havia feito amizade com vários motoristas e cobradores da linha. Durante o percurso da
viagem era comum observar olhares surpresos indagando sobre que tipo de coisa seria aquilo.
O formato do estojo dava uma dica: era uma espécie de violão grande. Mas, poucas eram às
vezes em que a curiosidade desses eventuais passageiros era satisfeita. Só quando
perguntavam: “eita..., o que é isso homi, é um caixão, é?”. Num desses dias, o ônibus estava
quase vazio e o cobrador resolveu puxar conversa:
– Rapaz, sempre vejo você com esse negócio aí..., pelo menos isso dá algum
dinheiro?
– Mais ou menos.
– Então porque você não arranja um emprego? Pra ganhar a vida, a gente tem que
dar duro.
– Pô cara, você acha que tocar a noite toda não é trabalho?
– Acho que isso é diversão.
– A música me traz muita satisfação..., é o que sinto..., independente se vou
ganhar bem ou não. Tenho um amigo que cursou até o terceiro ano de medicina, mas sempre
gostou de música..., e aí abandonou a medicina para se dedicar só a música, hoje é um
profissional desta área. A gente tem que fazer o que gosta, né? De que adiantaria desempenhar
a medicina de modo medíocre, só pensando na grana? E é o que mais acontece por aí...
– Mas, ganhar dinheiro não conta? Pergunta o cobrador.
– Sem dúvida, conta, mas o sentimento, a satisfação de tocar e o prazer de fazer
música, isso não tem preço.
Observando o diálogo entre os dois, um rapaz que se encontrava sentado diz:
– Pessoal, permitam-me participar da conversa. Eu também sou músico, toco
piano, e, convenhamos, é difícil fazer música sem pensar no aspecto financeiro. Chega um
momento em que a gente cai na real. Optei por ingressar na área artística, encantado com a
música (não que a gente perca esse encanto), mas, com o passar do tempo a gente vê que
precisa comprar bons instrumentos, livros, partituras, fazer cursos fora para se aperfeiçoar, e,
acima de tudo, sobreviver, para isso precisamos de grana.
– A questão é que não me imagino exercendo outra atividade. Escolhi a música
como profissão e apesar de não ter o retorno financeiro que gostaria, sou feliz com o que faço.
Vê bem gente; ser um profissional da música me satisfaz porque estou lidando com uma coisa
que é dinâmica. Algo que está sempre se recriando, onde cada momento é único. Olha que
141

bacana! Exercer uma profissão onde é possível a gente se renovar a cada instante, entendem?
Explica o contrabaixista.
– Entendi..., é bom pensar que nossa profissão se enquadra nesse tipo de
comparação. É legal perceber que aquilo que se faz não se reduz a rotina – coloca o pianista.
– Claro..., tudo isso é lindo isso, mas eu imagino que o músico, como qualquer
pessoa, espera ter um retorno financeiro naquilo que faz, afinal, como todo mundo, ele precisa
pagar as contas de água e luz no final do mês, enfim, sustentar a família... – argumenta o
cobrador.
– É..., não é uma profissão fácil. Ás vezes cansa ter de batalhar tanto pra ganhar
uma mixaria, pra poder fazer valer a nossa arte, entendeu? Por isso estou cursando Direito...,
é o meu plano B, caso não dê certo a música. Fala o pianista.
– Muito bem pessoal, valeu aí, desço na próxima parada, a gente se vê – diz o
contrabaixista se despedindo.

4.1.1.5.1 Crônicas IV e V - Comentários

De acordo com as informações colhidas nos questionários por mim aplicados aos
os alunos do Curso Técnico da Escola de Música da UFRN, a maioria dos entrevistados acha
o mercado da música difícil, competitivo e com pouca oportunidade de trabalho. Outra
parcela afirma que há uma relativa dificuldade de alguns instrumentos (como violão, piano)
em inserir-se no mercado de trabalho. Para estes profissionais só a docência salva. A esse
respeito destaco alguns extratos de depoimentos: “Acho que não tem muitas opções e nem
oportunidades, o que deixa vários músicos desempregados e outros vão tocar nessas bandas
de forró totalmente banais, mas uma boa oportunidade dada pelo governo é de mestres de
banda” (informação verbal)82. “[O mercado de trabalho para o música é] difícil, pois muitos não
capacitados acabam por amizade tomando o lugar de bons músicos capacitados, não há uma unidade
entre os músicos, enfim [...] muita coisa” (informação verbal)83. “Infelizmente é pouco o mercado de

82
Informação fornecida por um aluno de clarinete na EMUFRN em 2006.
83
Informação fornecida por um aluno de canto na EMUFRN em 2006.
142

trabalho para a área na qual me dedico - música erudita. No entanto, a música popular tem um amplo
espaço para novos representantes” (informação verbal)84.
Como na primeira citação acima, e de igual modo na fala de João do Trumpete,
personagem do Conto IV, parte dos músicos ou vê-se explorado pelas bandas (bandas-bailes,
bandas de forró) ou ainda não possuem nenhuma identificação com o repertório a que é
submetido a tocar. O magistério artístico aparece como uma importante alternativa de
trabalho, principalmente para instrumentos que possuem pouca (ou restrita) inserção no
mercado da música. Nesse sentido os instrumentos de orquestra trazem uma perspectiva de
inserção mais favorável. Mas os estudantes ainda relacionam o acesso a oportunidade de
trabalho a competência profissional.
De um modo geral, os estudantes reconhecem que se trata de uma área
profissional difícil, mas que estão dispostos a enfrentar os desafios, sobretudo por estarem
exercendo a atividade profissional numa área, que proporciona alegria e prazer e segundo a
visão deles, proporciona suas realizações pessoais, pois, além de ser uma profissão, a
música é uma atividade prazerosa. Noutras palavras, além de ser o exercício da profissão uma
atividade provedora do sustento material, ainda assim é acompanhada de satisfação. Para a
maioria dos estudantes entrevistados a música lhes traz realização (ou satisfação) pessoal,
apesar de admitir que estejam tendo pouco retorno financeiro. Porém, quando colhemos deles
a opinião de seus familiares sobre a opção profissional por eles escolhidas, vêem-se
argumentos que na maioria das vezes vão de encontro ao que pensam. Em alguns casos os
pais rejeitam inicialmente a ideia de o filho optar pelo trabalho artístico, mas com decorrer do
tempo, e à medida que o estudante mostra empenho, ingressa em cursos, passam a viver da
música, paulatinamente obtém a aceitação da familiar. Segundo o depoimento de alguns
entrevistados, seus pais sequer aceitam a ideia da música ser uma profissão, e mesmo
admitindo ser é considerada desqualificada em relação às outras profissões. Os pais são
incisivos a respeito da rejeição pela opção profissional de seus filhos pela música, motivados,
sobretudo, pelo argumento de que a música não trará a estabilidade financeira aos seus filhos.
Tanto no depoimento dos entrevistados quanto no Conto IV fica enfatizado as
gratificações psicológicas em detrimento da monetária, sobretudo pela ideia de que o trabalho
que o músico desempenha é livre, não rotineiro.

84
Informação fornecida por um aluno de piano na EMUFRN em 2006.
143

As actividades artísticas, e em primeiro lugar as mais nobres, parecem situar-


se no cimo da escala das profissões no que respeita a quase cada um dos
indicadores tomados em conta pelos estudos psicossociológicos: natureza e
variedade das tarefas; valorização de todas as competências individuais,
sentimento de responsabilidade, consideração, reconhecimento do mérito
individual, condições de trabalho, papel da competência técnica na definição
e no modo de exercício da atividade hierárquica, grau de autonomia na
planificação de tarefas, estrutura das relações profissionais com os
superiores, colegas e subordinados, prestígio social da profissão e estatuto
atribuído àqueles que têm sucesso. A liberdade de organizar o seu trabalho
não será, ao fim e ao cabo, a condição por excelência da realização artística
autêntica? [sic.] (MENGER, 2005, p. 92).
O contentamento de exercer a profissão musical possibilita a compensação por
ganhos que muitas vezes são insuficientes até para subsistência do artista. O músico se
sacrifica por sua arte, mas nela encontra satisfação. Esse encantamento (ideológico) pelo
exercício do trabalho artístico se sobrepõe as vantagens monetárias. Para ilustrar essa
inferência podemos citar como exemplo o The Great Waltz (1938), que pode ser definido
como uma biografia romanceada do compositor vienense Johann Strauss (1825-1899). O
filme inicia mostrando Strauss como funcionário de um banco. Ao invés de desempenhar suas
funções, passa o tempo que deveria ser destinado aos afazeres burocráticos do banco,
escrevendo suas músicas. O empregador ao notar o que estava se passando demite-o do cargo.
Strauss sai do banco assoviando, feliz, xingando aos colegas e pichando a rua com claves de
sol. Vê-se claramente o esforço cênico e caricato que o filme faz para transmitir a paixão de
Strauss pela música. Ao chegar a sua casa anuncia: “eu estou livre”, “livre para fazer o que
sempre quis”, “livre para escrever músicas”. Para ele (ou seja, segundo a visão do roteirista)
os grandes mestres não necessariamente ganharam dinheiro, mas compuseram grandes obras.
O próprio processo de criação é romanceado. Strauss, ouvindo o canto dos pássaros, ao
passear numa charrete, chega-lhe ideias, como num passe de mágica, para a composição da
sua mais célebre valsa. A história tal qual é apresentada é fruto de uma visão que louva o
prazer do músico pela arte, independente dos benefícios monetários a que o músico possa vir
a conseguir com as atividades desenvolvidas. É um olhar, sobretudo, que imprime uma ótica
romantizada do trabalho artístico. Dessa perspectiva, podem ser citadas outras tantas
biografias ilustres produzidas para o cinema que descrevem o músico como portador de uma
aura sobrenatural criativa alheio a questões monetárias, e ainda; geralmente portadores de um
talento que não foi reconhecido em vida.
Também, é preciso salientar o conflito histórico vivido pelo músico ocidental em
exercer sua profissão, sua liberdade de expressão artística, nos domínios do mundo capitalista.
144

A tensão reside no ajuste entre as gratificações psicológicas (realização pessoal), ou seja, nas
gratificações não monetárias e o ganho obtido mediante seu trabalho.
Falando especificamente sobre o retorno proporcionado pela música com alunos
do Curso Técnico de Música da UFRN, a maioria das colocações aponta diretamente para o
fato de que a atividade musical trás para eles realização (ou satisfação) pessoal, apesar de
admitir que estejam tendo pouco retorno financeiro:

Um retorno maravilhoso, de emoção, prazer, eu não considero a música uma


coisa tão artificial, de só pegar um instrumento para tocar e ganhar dinheiro.
Nos cinco anos em que vivo com a música, me aconteceram coisas que nem
todo dinheiro do mundo pode comprar (informação verbal)85

“É uma profissão que tem dado um bom retorno, tanto financeiramente, quanto
reconhecimento e sem falar que é prazeroso” (informação verbal) 86
“Até agora só o prazer de está fazendo e estudando o que gosto. Mas passando
para o lado profissional nenhum, pois os cachês que nós músicos fazemos não são
satisfatórios” (informação verbal)87.
Diante das oportunidades trabalho, de acordo com os estudantes, os instrumentos
de orquestra trazem uma perspectiva de inserção mais ampla e favorável. Mesmo assim, uma
fala aponta a necessidade de se criar mais orquestras como meio de gerar mais oportunidades
de trabalho. É importante colocar o entendimento de alguns alunos em relacionar a
oportunidade de trabalho à competência profissional. Mas poucos relacionaram o ingresso no
mercado a aquisição de uma certificação. É preciso salientar que ideia de artista
contemplativo, criador de coisas belas, desinteressado, vai se modificando ao longo do tempo
a partir do momento em que músico adquire a postura de assumir uma relação também
capitalista com a música.

85
Informação fornecida por um aluno de clarinete na EMUFRN em 2006.
86
Informação fornecida por um aluno de contrabaixo elétrico na EMUFRN em 2006.
87
Informação fornecida por um aluno de clarinete na EMUFRN em 2006.
145

5 O MÚSICO COMPETENTE: A FORMAÇÃO PARA O MUNDO DO TRABALHO

5.1 NOTAS SOBRE A REFORMA DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL NO BRASIL APÓS


A LEI Nº 9.394 / 96 (LDB)

Trabalho e Educação são temas por demais recorrentes no escopo teórico da


sociologia e educação. De algum modo tivemos a intenção de não ser redundantes tendo em
vista a ampla literatura disponível sobre esses assuntos. Nossa análise se restringirá a
formação para o mundo do trabalho na perspectiva das orientações curriculares voltadas aos
Cursos Técnicos de Música, precisamente por tratar-se de uma modalidade de ensino onde em
cujos documentos regulamentadores legais, demonstram uma clara intenção de pretender
formar para o trabalho. Evidencio nesse capítulo aspectos estruturais referentes à
implementação das políticas para educação profissional técnica de nível médio a partir da
segunda metade da década de 1990 na conjuntura do campo musical.
Antes de se propor que alguns resgates históricos sobre a Educação Profissional
no Brasil serão fundamentais, para a abordagem no âmbito musical, duas asserções,
verificadas no escopo da bibliografia que trata dessa temática, cuja importância dispensa, no
momento, uma historiografia desse assunto. Além do mais esse é um tema de larga
recorrência na literatura educacional e intencionamos não ser redundantes, posto que já muitas
análises foram feitas. A primeira asserção é a de que o surgimento e o desenvolvimento da
Educação Profissional no Brasil estiveram, em determinados contexto históricos, sob a égide
dos enfoques assistencialista e economicista, provenientes de seu próprio passado relacionado
ao ensino de “habilidades manuais” e destinado aos menos afortunados, como suporte de
acesso à melhor condição de vida. A segunda é de que ao longo das várias reformas
educacionais um ponto tem sobressaído. Trata-se do debate em torno da questão dicotômica
entre a teoria e a prática bem, como a dualidade entre a formação propedêutica (geral) e
formação profissional; entre o trabalho manual e intelectual. A Lei nº 5.692 / 71 (BRASIL,
1971), para o então ensino de 1º e 2º graus, que estabeleceu a equiparação entre os cursos
secundários e técnicos, transforma o modelo humanístico / científico num
científico/tecnológico (MANFREDI, 2002). Alguns autores sustentam que a
profissionalização compulsória significou o desmantelamento do ensino técnico e do ensino
médio, dado a “inviabilidade de se implantar um sistema de ensino que buscava unir trabalho
manual e trabalho intelectual numa sociedade capitalista, que tem como uma de suas
principais características a separação entre concepção e execução” (WERLANG, 1999, p. 11).
146

Além do que essa reforma educacional se encontrava num momento em que o Brasil almejava
participar da economia internacional. Nesse sentido, as políticas educacionais, concentram-se
em formar recursos humanos, ou seja, força de trabalho para o mercado. Só no ano de 1982
com a promulgação da Lei de n. 7.044 (BRASIL, 1982), torna-se facultativa a
profissionalização no ensino de segundo grau, restringindo a formação profissional a
instituições especializadas como o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC),
Serviço Social da Indústria (SESI), Escolas Técnicas Federais, entre outras (MANFREDI,
2002).
A Educação Profissional, de acordo com o disposto no artigo 39 da Lei n. 9.394,
de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996), que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional está integrada às “diferentes formas de educação, ao trabalho, à ciência e à
tecnologia” e deve conduzir o estudante ao constante desenvolvimento de aptidões para a vida
produtiva. Para implementação das políticas no âmbito institucional, essa modalidade de
ensino ganhou significativa atenção e recursos financeiros88. Em decorrência da reforma,
foram propostas ao projeto político-educacional brasileiro, entre os anos de 1994-2002, novas
orientações curriculares aos sistemas de ensino, entre eles o musical.
A operacionalização das rotinas acadêmicas que a implantação da educação
profissional impôs à viabilização de ofertas, de habilitações técnicas na área musical, às
instituições especializadas, causou alguns transtornos à área, no que diz respeito a esses novos
paradigmas. A tentativa de adequação a esse modelo se deu mais pela exigência de
ajustamento ao modelo pedagógico sugerido pelo MEC do que pela opção consciente a essa
nova configuração curricular. A não assimilação do vasto repertório lexical, que acompanhou
a reforma (competências, habilidades, bases tecnológicas, módulos, flexibilidade,
navegabilidade) pode ser apontada como um importante elemento no processo de análise da
implantação do ensino profissional de nível médio no Brasil.

88
Veja-se a esse respeito às verbas destinadas ao Programa de Expansão da Educação Profissional (PROEP) na
composição da contrapartida da operação de Crédito Externo com o Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID). A Escola de Música de Brasília foi o primeiro Centro de Educação Profissional a
funcionar no País, de acordo com o disposto na Lei 9394 / 96 (BRASIL, 1996) e o Decreto 2.208 / 97
(BRASIL, 1997b) que regulamentou a Educação Profissional. Após haver sido indicada ao PROEP /
Secretaria de Educação Média e Tecnológica (SEMTEC) / MEC firmou convênio de investimentos com
financiamento do BID / MEC / Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Segundo o Jornal a Folha de São
Paulo de 18 de dezembro de 1998, até então o programa de expansão do ensino técnico, financiado pelo MEC
e Ministério do Trabalho, com o apoio do BID, já havia destinados $ 500 milhões para reequipar escolas
técnicas públicas.
147

Desde a sua implementação, o Decreto de n. 2.208 / 97 (BRASIL, 1997b)89,


trouxe a superfície um conjunto de problemas, provocados, dentre outros, pelos impactos
causados pela desvinculação entre o ensino médio e o ensino profissional e, no que tange ao
aspecto estritamente curricular, a imposição da formação curricular por competências. Alguns
autores sustentam que diante desse novo quadro a Educação Profissional tornava a fazer da
habilidade técnica, uma atividade descontextualizada, dando enfoque a uma perspectiva
tecnicista de formação, uma vez que, novamente, desvinculava-se a formação profissional
específica de uma formação mais ampla e, portanto propedêutica, politécnica. Segundo
Frigotto; Ciavatta; Ramos (2005) se a primeira versão do projeto da Lei de Diretrizes e
Bases90 situava a formação profissional como integrante à formação geral, por sua vez o
Decreto n. 2.208 / 97 (BRASIL, 1997b), e, de igual modo outros documentos legais, como a
Portaria de n. 646/97, (BRASIL, 1997a) além de inibir tal perspectiva formativa,
regulamentaram “formas fragmentadas e aligeiras de educação profissional em função das
alegadas necessidades do mercado. O que ocorreu também por iniciativa do Ministério do
Trabalho e Emprego, através de sua política de formação profissional” (FRIGOTTO,
CIAVATTA; RAMOS, 2005, p. 3).
O Decreto Lei de n. 2.208 / 97 (BRASIL, 1997b) separa o ensino médio do
profissional. Há ai, segundo Martins (2000), brechas para o exercício de um modelo
educacional voltado exclusivamente para a prática profissional, em conformidade com os
modelos de produção fordista/taylorista, limitados à mão-de-obra fabril, separada do produto
final. Isso de certo modo é anacrônico ao mundo produtivo na atualidade onde se é exigido do
trabalhador uma maior participação no cotidiano da empresa, demandando dele, o
trabalhador, uma formação propedêutica, mais ampla. O que se tem agora, em face dos novos
processos de produção, é a substituição de um modelo de atuação rígido substituído por um

89
A Educação Profissional, de abrangência nacional, com base nos princípios constitucionais,
regula-se: pela Lei Federal n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996); pelo
Decreto Federal n. 2.208, de 17 de abril de 1997 (BRASIL, 1997b)[revogado]; Decreto n.
5.154, de 23 de julho de 2004 (substitui o Decreto Federal n. 2.208) (BRASIL, 2004a); pela
portaria 646 de 14 de maio de 1987 (BRASIL, 1997a), Diretrizes Curriculares Nacionais
(Parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) / Câmara de Educação Básica (CEB) n.
16/99 (BRASIL, 1999a) e Resolução CNE / CEB n. 04/99 (BRASIL, 1999b) e os
Referenciais Curriculares para cada área. O Decreto 2.208 (BRASIL, 1997b) regulamentava o
§ 2º do art. 36 e os arts. 39 a 42 da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996)
foi revogado e substituído no Governo Lula da Silva pelo Decreto n. 5.154, de 23 de Julho de
2004 (BRASIL, 2004a).
90
“Art. 38 - A educação escolar de 2o grau será ministrado apenas na língua nacional e tem por objetivo propiciar
aos adolescentes a formação politécnica necessária à compreensão teórica e prática dos fundamentos
científicos das múltiplas técnicas utilizadas no processo produtivo” (BRASIL, 1991).
148

flexível. Se por um lado o Decreto Lei de n. 2.208 / 97 (BRASIL, 1997b), tinha estrita
sintonia com as lógicas de produção ultrapassadas, por outro, se apresentava atualizado no
que diz respeito a lógica imposta pelo capital internacional.
Por ser considerado portador de um estreito vínculo com os ditames neoliberais é
que o Decreto Lei n. 2.208 / 97 (BRASIL, 1997b), foi revogado, durante o Governo Lula da
Silva, no ano de 2004. Foi disponibilizado para o público, através da rede mundial de
computadores, o processo e a minuta do ato de revogação. Eis a síntese da justificativa
exposta pelo então Ministro da Educação Tarso Genro, propondo apresentar aos sistemas de
ensino novamente a possibilidade de oferta de cursos de educação profissional de forma
integrada e articulada ao ensino médio:

O termo ‘articulação’ indica a conexão entre partes, neste caso, entre a


educação profissional e os níveis da educação nacional. No caso do ensino
médio, etapa final da educação básica, esta articulação adquire maior
especificidade, o que é evidenciado pelo artigo 36, § 2º, ao dispor que ‘o
ensino médio, atendida a formação geral do educando, poderá prepará-lo
para o exercício de profissões técnicas’ [...]. A preparação do estudante para
o exercício de profissões técnicas, quando realizada no ensino médio,
configura uma habilitação técnica. Esta preparação poderá ser desenvolvida
nos próprios estabelecimentos de ensino médio ou em cooperação com
instituições especializadas em educação profissional. Resta claro, portanto,
que o desenvolvimento da habilitação profissional no ensino médio é uma
possibilidade legalmente respaldada e necessária aos jovens brasileiros,
devendo-se assegurar a formação geral, consoante às finalidades dispostas
no artigo 35 e aos princípios curriculares a que se refere o artigo 36.
Entretanto, o Decreto n.º 2.208, de 17 de abril de 1997, ao regulamentar a
educação profissional, impossibilitou qualquer perspectiva profissionalizante
no ensino médio, eis que promoveu plena separação entre ensino médio e
educação profissional [sic] (BRASIL, 2007, p. 6).

A justificativa maior, como se vê, é a antiga discussão em torno do ensino


propedêutico, principalmente ao desvinculamento do ensino médio da educação profissional.
Muito embora, se considere que essa separação não tenha significado, na visão dos defensores
do Governo Cardoso que as instituições de educação profissional deveriam oferecer um
ensino exclusivamente descontextualizado (BRASIL, 1999c). Entretanto, outra grande
justificativa se encontra na atribuição à influência neoliberal nas políticas educacionais do
Governo Cardoso, como colocam Frigotto; Ciavatta; Ramos (2005, p. 28):

o embate para revogar o Decreto n. 2.208/97 engendra um sentido simbólico


e ético-político de uma luta entre projetos societários e o projeto educativo
mais amplo. Trata-se de um decreto que expressava, de forma emblemática,
da regressão social e educacional sob a égide do ideário neoconservador ou
149

neoliberal e da afirmação e ampliação da desigualdade de classes e do


dualismo na educação.

No documento Políticas públicas para a Educação Profissional elaborado pelo


então Ministério da Educação em conjunto com a ainda SEMTEC91, afirma-se que o Governo
Cardoso ao desvincular o ensino geral, propedêutico, do profissional “desescolarizou o ensino
técnico, retirando-lhe o conteúdo de formação básica e buscando atender às necessidades
imediatas do mercado de trabalho” (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005, p. 20). A
educação profissional, entendida também como educação escolar, reduziu-se a compreensão
instrumental e técnica. O documento enfatiza que o novo projeto educacional implementado,
foi fruto de uma adequação, dos objetivos desse projeto às necessidades econômicas do Brasil
no contexto de uma política neoliberal, objetivando, sobretudo, maior eficiência no gasto
social. Coloca ainda que a “urgência e a funcionalidade da produção capitalista contrastam
com o tempo necessário para a formação humana, que é um tempo de reflexão sobre os
problemas e de amadurecimento sobre seus possíveis encaminhamentos” (BRASIL, 2004b, p.
34). Faz-se, nesse documento, uma crítica aberta e direta a ideia de currículos modulados e a
formação por competências (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005).
O Decreto n. 2.208 / 97 (BRASIL, 1997b) foi considerado do ponto de vista
jurídico um ato ilegal, ao definir o apartamento entre o ensino médio e a educação
profissional; ao proibir também que o ensino médio possibilitasse a formação técnica, pois
entrava frontalmente em confronto com a LDB, que assinalava que além do ensino médio
poder sim atender uma formação geral do educando e prepará-lo para o exercício de
profissões técnicas, ainda o poderia fazê-lo em articulação com o ensino regular (BRASIL,
1996).
A Educação Profissional ainda de acordo com o Decreto Lei de n. 2.208 de 17 de
abril de 1997 (BRASIL, 1997b), estava constituída de três níveis de ensino: Básico, Técnico e
Tecnológico. O nível básico independia de escolaridade prévia cujos cursos não estariam
sujeitos à regulamentação curricular. Já o ensino Técnico estaria voltado a atender alunos
matriculados ou egressos do ensino médio. E por fim, o Tecnológico, considerado curso de
nível superior, para egressos do ensino médio ou técnico. Já pelo disposto no Decreto Lei de
n. 5.154, de 23 de Julho de 2004 (BRASIL, 2004a), a Educação Profissional será
desenvolvida por meio dos seguintes programas ou cursos: I - formação inicial e continuada

91
Com a reestruturação do MEC ocorrida no ano de 2004, o ensino médio passa a ser gerenciado pela Secretaria
de Educação Básica e cria-se também uma Secretaria exclusiva voltada à Educação Profissional e Tecnológica
(SETEC). A SEMTEC passa a se chamar SETEC.
150

de trabalhadores; II - educação profissional técnica de nível médio; e III - educação


profissional tecnológica de graduação e de pós-graduação. Os cursos e programas aqui
referidos “poderão ser ofertados segundo itinerários formativos, objetivando o
desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva e social” (BRASIL, 2004a).
O Decreto Lei de n. 5.154 (BRASIL, 2004a), contém mudanças substanciais.
Primeiramente são consideradas três formas de ensino dentro da modalidade da Educação
Profissional e não três níveis como colocava a legislação anterior. Retira-se o termo educação
básica, pela dubiedade com a própria ideia de educação básica (infantil, fundamental e
médio). A educação básica citada no Decreto Lei de n. 2.208 (BRASIL, 1997b), já era
praticada historicamente, na forma de cursos livres, em atividades extensionistas, realidade
presente nas Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), que alocam no mesmo
Departamento Acadêmico, cursos de graduação, pós-graduação, educação profissional e
cursos de extensão (cursos livres destinados à comunidade em geral). O nível técnico passa a
ser educação profissional técnica de nível médio lembrando a integração dessas duas
modalidades de ensino. O nível tecnológico se insere desde a sua denominação no contexto
da Educação Profissional como graduação e pós-graduação. Aliás, uma das questões bastante
complexa na área musical foi a discussão em torno dessa pluralidade de cursos de graduação
(graduação em música, tecnólogo musical e os cursos seqüenciais por campo de saber) em
especificamente como delimitar a natureza de cada um. O documento ainda refere-se à
formação inicial e continuada de trabalhadores, e usa o termo etapas ao invés da ideia de
modularização. Enfatiza a articulação com o ensino médio de modo integrado (ao ensino
médio) ou concomitante. Sobre a reforma educacional dos anos 90 Frigotto; Ciavatta; Ramos
(2005, p. 15) coloca:

A política de educação profissional do governo FHC não se resumiu ao


ensino técnico. Ela abrangeu ações voltadas para a qualificação e a
requalificação profissional, desviando a atenção da sociedade das causas
reais do desemprego para a responsabilidade dos próprios trabalhadores pela
condição de desempregados ou vulneráveis ao desemprego. Esse ideário teve
nas noções de ‘empregabilidade’ e ‘competências’ um importante aporte
ideológico, justificando, dentre outras iniciativas, projetos fragmentados e
aligeirados de formação profissional, associados aos princípios de
flexibilidade dos currículos e da própria formação.

De acordo com Frigotto; Ciavatta; Ramos (2005) o Governo Lula da Silva é a


“expressão de um bloco heterogêneo dentro do campo da esquerda e com alianças cada vez
mais conservadoras” (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005, p. 4). Tal afirmação é
151

justificada em face das mudanças estruturais que se esperava em várias áreas, sobretudo a
educacional, mas, que não ocorreram. A política econômica praticada no Governo Lula da
Silva é considerada como a continuação daquela herdada do Governo Cardoso. Nesse sentido,
o Decreto n. 5.154 / 2004 (BRASIL, 2004A) nasce de uma complexa conglobação de forças,
oriundas de entidades da sociedade civil e de intelectuais.
Veja se ainda o que Frigotto; Ciavatta; Ramos (2005, p. 5) diz a respeito:

O documento [Decreto n. 5.154] é fruto de um conjunto de disputas e, por


isso, mesmo, é um documento híbrido, com contradições que, para expressar
a luta dos setores progressistas envolvidos, precisa ser compreendido nas
disputas internas na sociedade, nos estados, nas escolas. Sabemos que a lei
não é a realidade, mas a expressão de uma correlação de forças no plano
estrutural e conjuntural da sociedade. Ou interpretamos o Decreto como um
ganho político e, também, como sinalização de mudanças pelos que não
querem se identificar com o status quo, ou será apropriado pelo
conservadorismo, pelos interesses definidos pelo mercado.

Como bem coloca esse autor, a aprovação do Decreto Lei de n. 5.154 / 2004
(BRASIL, 2004a), por si não muda nenhuma conjuntura. Já perto do final do primeiro
mandato do Governo Lula, percebe-se mediante as várias análises já realizadas sobre a
implementação do Decreto Lei de n. 5.154 / 2004 (BRASIL, 2004a), que as mudanças no
âmbito das políticas educacionais não se dão simplesmente por meio de decretos, ou seja, o
documento legal não garante a implementação de uma nova concepção de ensino, mesmo
apontando mudanças substanciais. O projeto educacional ideal só poderá vir a ser construído
pelas forças sociais que tem poder de voz e decisão e que por isso fazem chegar seus
interesses ao estado e a máquina governamental, influenciando na formulação e
implementação das políticas.

5.2 EDUCAÇÃO PROFISSIONAL: A FORMAÇÃO PARA A SOCIEDADE (CIDADÃO


EMANCIPADO) VERSUS A FORMAÇÃO PARA O MERCADO (CIDADÃO
PRODUTIVO)

Ao abordar o ensino da música na perspectiva da educação profissional torna-se


fundamental situar o primeiro em uma inserção contextual mais ampla. É preciso que o
abordemos não como um tema independente, à margem, mas integrado a um sistema
(educacional) complexo. Por que complexo? Ora, porque complexo segundo Morin (2000) é
tudo que abrange ou encerra muitos elementos ou partes que possuem qualquer ligação ou
152

nexo entre si, elementos que foram tecidos juntos. A complexidade se faz presente “quando
elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como o econômico, o político, o
sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico), e há um tecido independente, interativo e
inter-retroativo entre o objeto do conhecimento e seu contexto [...]” (MORIN, 2000, P. 38).
Na (pós) moderna sociedade capitalista, a produção e consumo de bens materiais e
simbólicos, é a força motriz que alimenta a existência humana, influenciando diretamente as
relações sociais. Nesse sentido, não é cabível o esforço de entendimento de um estudo sobre
determinado fenômeno sócio-educacional sem considerar seu entorno social. A análise das
práticas pedagógicas na área da Educação Musical deixa evidente a influência das reformas
educacionais, do mesmo modo que estas expressam obviamente interlocução com a história
política, social e cultural, a cada momento histórico em que são consideradas. Nesse tópico do
estudo, mas do que realizar um esforço por anexar um rótulo neoliberal às políticas
educacionais do Governo Cardoso, como tem demonstrado a literatura escrita a partir da Lei
de Diretrizes e Bases da Educação, nº 9.394 / 96 (LDB / Lei Darcy Ribeiro), esforça-se por
evidenciar como tal ideologia se materializa nas orientações curriculares.
A análise da implementação de políticas educacionais exige que se identifiquem
os atores mais relevantes, acompanhando as várias etapas do processo. É importante tentar
compreender como as instituições de ensino musical absorveram e exprimiram as políticas
governamentais predominantes, ao mesmo tempo, apontar possíveis conseqüências em
relação ao impacto dessas políticas no âmbito das instituições musicais.
Como já sublinhado anteriormente, deve-se entender o ensino da música como
integrante de um núcleo educacional maior, senão, haverá grandes dificuldades em se
evidenciar elementos que permitirão problematizar o espaço analítico reservado a prática da
Educação Profissional nos estabelecimentos de ensino de música do país.
Com isto chama-se atenção para algumas postulações que se mostram
fundamental à compreensão do tema ora abordado. Cabe lembrar aqui das significativas
mudanças ocorridas com o ensino nas últimas décadas no Brasil. Também, como parte desse
projeto educacional maior, podem os citar o relevante papel das universidades nos diversos
momentos históricos no Brasil. Escrevendo sobre a universidade pública, Chauí (2000)
argumenta que a Universidade pública, como instituição social, pautada nos ideais de
formação, reflexão, criação e crítica, transformou-se na atualidade, numa organização, uma
entidade administrada, ou como ela mesma denomina, uma organização prestadora de
serviços, ou seja, “numa entidade isolada cujo sucesso e cuja eficácia se medem em termos de
gestão de recursos e estratégias de desempenho” (CHAUÍ, 2000, p. 187). Para a autora uma
153

organização se diferencia de uma instituição. A organização é regida estruturalmente “pelas


ideias de gestão, planejamento, previsão, controle e êxito” (CHAUÍ, 2000, p. 197). Não lhe
cabe questionar sobre aspectos relacionados a sua existência na sociedade. Já a instituição tem
a sociedade como sua base valorativa. Ao discutir sobre questões relacionadas a produção e a
produtividade na universidade, a autora toma como referencia para discussão um fragmento
de texto de Eduardo Portella, ministro da Educação do Governo de João Figueiredo, onde se
lê que “os canais de agora terão de reproduzir o esquema dos grandes supermercados,
tornando o objeto cultural sempre mais acessível” (PORTELLA, [19--?] apud CHAUÍ, 2000,
p. 43) e ainda uma citação que reporta a ideia de que “ a universidade não é o templo do
saber, mas ‘uma espécie de supermercado de bens simbólicos ou culturais’ procurados pela
classe média” (CHAUÍ, 2000, p. 112). Para se fazer entender melhor, Chauí situa o conceito
de supermercado para além da ideia de loja de auto-serviço, local onde se concentra vasta
variedade de mercadorias. Ela coloca que o supermercado é “a versão capitalista do paraíso
terrestre” (CHAUÍ, 2000, p. 112). Ora, lembrando toda a argumentação que fizemos em torno
do mito da queda do homem no primeiro capítulo, vimos que o Éden era o lugar onde tudo era
perfeito, tudo corroborava para felicidade plena do primeiro casal. Ao entrarmos num
supermercado, as mercadorias expostas nas prateleiras (que camuflam todo o trabalho ali
concentrado), se apresenta tal qual no Éden (sem dor e sem esforço), onde todos os recursos
necessários a sua subsistência estão dispostos na natureza. Porém, como lembra Chauí (2000,
p. 112), a “caixa registradora é o fim do jardim paradisíaco e o retorno a brutalidade do
mercado”. De qualquer modo, comparar a universidade com um supermercado é algo bastante
curioso, se levarmos em conta que este nada produz, no seu âmbito é apenas responsável por
fazer circular e distribuir mercadorias. Para Chauí (2000), o Brasil insere-se nessa perspectiva
de mudança social sob os efeitos da nova forma de acumulação do capital. A autora aponta
três etapas sucessivas fundamentais para compreensão dessa condição exercida hoje pela
Universidade. Numa primeira etapa torna-se, ela, universidade funcional; na segunda
universidade de resultados e na terceira, universidade operacional. Situando histórico e
cronologicamente essas fases correspondem respectivamente ao milagre econômico na década
de 1970, ao processo conservador de abertura política na década de 1980 e o momento
neoliberal da década de 1990. Nesse contexto, a universidade funcional voltava-se para o
mercado de trabalho; a universidade de resultados para as empresas e a operacional, por ser
uma organização, volta-se para si como estrutura de gestão e de arbitragem de contratos.
154

Nessa perspectiva, é vasta a literatura que aborda a reestruturação produtiva e das


mudanças no mundo do trabalho numa ordem econômica neoliberal ao mesmo tempo em que
tais elementos se convertem em novas orientações para as políticas públicas e educacionais.
Sem pretender esvaziar a importância dessa abordagem, e não sendo a finalidade
dessas linhas uma discussão mais acurada dessa questão, é suficiente colocar que a reforma do
ensino no período do governo Cardoso (1994-2002) foi norteada por uma concepção
denominada por racionalidade financeira. Sob esse modo de tratar a gestão dos recursos
públicos, as políticas educacionais pautaram-se, não mais no “reconhecimento da
universalidade do direito à educação em todos os níveis, gratuita nos estabelecimentos
oficiais, mas no princípio da equidade, cujo significado é o tratamento diferenciado segundo
as demandas da economia” (KUENZER, 1998, p. 54). Sob essa nova orientação, “o
investimento em educação passa a ser definido a partir da compreensão de que o Estado só
pode arcar com as despesas que resultem em retorno econômico” (KUENZER, 1999, p. 132).
. É importante deixar anotado que o critério de distribuição de recursos adotado pelo Governo
às instituições de ensino foi pautado em índices de produção acadêmica (egressos,
publicações, titulação).
Contudo, como a ordem econômica neoliberal influencia as políticas
educacionais? Para Apple (2001, p. 2) os neoliberais

são os modernizadores económicos que pretendem a política educativa


centrada em torno da economia, objectivos de desempenho fundamentados
numa relação próxima entre a escolarização e o trabalho assalariado.
Pretendo aqui enfatizar a palavra ‘assalariado’ uma vez que tais pessoas têm
uma visão patriarcal da força de trabalho. Tendem a ignorar que quem
realiza o trabalho não remunerado nesta sociedade, na sua maior parte, são
as mulheres. Claramente são estes modernizadores económicos que se
encontram na liderança deste novo bloco. Vêem as escolas como estando
relacionadas com o mercado, sobretudo, não só com o mercado capitalista
global, como também com os processos e necessidades de um mercado desse
tipo. Também interpretam habitualmente as próprias escolas como
necessitando de serem transformadas, tornando-se mais competitivas
inserindo-as numa dinâmica mercantilista mediante os planos de vales
educativos e ou outras estratégias mercantilistas similares [sic].

Especificamente na área educacional, o pensamento neoliberal atua de modo a


deslocar os problemas educacionais (e por isso sociais) em meras questões técnicas, de gestão
e má administração de recursos. A Educação é entendida de modo utilitário, encarada como
investimento em Capital Humano competitivo no mercado de trabalho. As orientações
didáticas e curriculares decorrem de modo a fazer consonância com esses pressupostos,
155

proporcionando aos estudantes conhecimentos a serem utilizados no mundo produtivo


capitalista.
Coincidente com a ideologia neoliberal identifica-se a “teoria do capital humano”
que incorpora em seus fundamentos a lógica do mercado e a função da escola se reduz a
formação dos “recursos humanos” para a estrutura de produção (BIANCHETTI, 2001, p. 94).
Ianni falando sobre o que denomina de visão mercadológica do Governo, e, enfatizando o uso
da razão instrumental posta a serviço da tecnificação da educação coloca:

Não vamos exagerar, mas não há dúvida de que a sociedade está cada vez
mais controlada, administrada, subjugada. Não há dúvida de que há muitos
indícios de que essa chamada razão instrumental, razão técnica, essa
tecnificação exacerbada das instituições, das organizações, que vem da
empresa e que penetra progressivamente em diferentes esferas da vida social
está sacrificando cada vez mais aquilo que é o espírito, a cultura, a
criatividade, a independência, a liberdade, e subjugando tudo a algo que é
puramente instrumental e que corresponde à lógica do mercado, à lógica do
capital, à lógica da acumulação (IANNI, 1997).

Numa manifestação clara de adesão às recomendações feitas pelo Banco Mundial,


o governo Cardoso num texto denominado Planejamento Político Estratégico 1995-1998,
datado de maio de 1995, indicava de modo explícito a separação entre “o ensino médio do
profissional, possibilitando a adaptação das escolas técnicas às necessidades manifestas pelo
mercado e colocando-se à disposição das ingerências de empresários” (MARTINS, 2000, p.
68). Sobre isso é preciso enfatizar o que coloca a Resolução CNE / CEB n. 04/99 (BRASIL,
1999b), que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional de
Nível Técnico. No artigo 10, se posta o modelo para os planos curriculares a serem
submetidos à aprovação dos órgãos competentes dos sistemas de ensino para autorização de
funcionamento. Para isso são estabelecidos os seguintes itens: I - justificativa e objetivos; II -
requisitos de acesso; III - perfil profissional de conclusão; IV - organização curricular; V -
critérios de aproveitamento de conhecimentos e experiências anteriores; VI - critérios de
avaliação; VII - instalações e equipamentos; VIII - pessoal docente e técnico; IX - certificados
e diplomas. Embora não fique explicitado o conteúdo do primeiro item no documento
(justificativa e objetivos), mas é público que todo gestor de ensino foi orientado a fornecer
indicadores sócio-econômicos que justificassem a demanda de oferta da habilitação requerida.
Esses indicadores deveriam ser observados, sobretudo – como se dizia na época – para escola
evitar formar futuros desempregados.
156

Nesse sentido, uma habilitação do curso técnico de música do tipo instrumento-


harpa, apresentaria expressiva dificuldade de ser justificada, levando em conta a restringente
demanda mercadológica, uma vez que, de um modo geral, o uso desse instrumento é
requisitado na maioria das vezes no espaço orquestral, não implicando necessariamente nessa
exclusividade. O que se quer enfatizar aqui é a dificuldade na área musical de se estabelecer a
oferta de cursos orientada exclusivamente pela demanda do mercado. Aceitar essas condições
para criações dos cursos de música é negar o caráter substancialmente educador da arte, é
desconsiderar aspectos outros que a formação de mão-de-obra (artística) para o mercado (do
entretenimento).

5.3 AS NOVAS ORIENTAÇÕES CURRICULARES PARA OS CURSOS TÉCNICOS DE


MÚSICA NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS VOLTADAS À EDUCAÇÃO
PROFISSIONAL

A reforma que abrangeu o ensino técnico secundário de 1942 (Capanema), não


contemplou o ensino artístico-profissional. Somente pela lei orgânica do Ensino Normal de
1946 é possível observar uma menção a cursos de especialização e habilitação na área de
artes. Porém, esses cursos (desenho, artes aplicadas e música) somente seriam oferecidos
pelos Institutos de Educação.
O Ensino Técnico de Música dentro do atual contexto da reforma da Educação
Profissional é uma modalidade de ensino que, apesar de já haver sido regulamentada pelo
MEC desde o ano de 1973, é novo na ideia de qualificação e formação profissional para o
mundo do trabalho. Sobretudo pelo advento de novas formas de consumo de serviços gerados
pelo surgimento da indústria de entretenimento que possibilitou novas configurações da
música na sociedade.
O parecer de n. 1.299 / CFE de 1973 previa um curso de música com duração de
quatro anos divididos em duas mil e novecentas horas e quatro habilitações: Técnico em
Instrumento, Técnico em Canto, Técnico em Fanfarra e Técnico em Sonoplastia. 92 No
referido parecer fica evidente a preocupação em se estabelecer um vinculo de relações entre o
mercado de trabalho e o ensino técnico e também o fato de que com essa modalidade de

92
O anexo do Parecer nº 45 / 72, Resolução nº 2, de 27 de janeiro de 1972, fixava os
conteúdos mínimos a serem exigidos em cada habilitação. A habilitação de instrumentista
musical contendo no currículo as seguintes matérias: história da música, harmonia, estética,
canto coral, folclore musical, instrumento e prática de orquestra (Habilitações Profissionais no
Ensino do 2º Grau, 1972, p. 124).
157

ensino obter-se-ia uma clientela melhor preparada para a graduação, além de se ter um curso
de música que forneceria diploma, ou seja, reconhecido e oficializado pelo MEC.
Na prática, porém, o Curso Técnico de Música por algum tempo foi encarado
como uma mera preparação para a graduação, não se propunha necessariamente a qualificar
para o trabalho.
No parecer de n. 1.299 / Conselho Federal de Educaão (CFE) de 1973, a
organização curricular era fixada pelo MEC, já no Decreto Lei n. 2.208, torna-se prerrogativa
e responsabilidade de cada instituição. Ressalte-se ainda que a nova legislação possibilita a
organização curricular dos cursos em módulos, disciplinas ou etapas. Como a perspectiva é de
formação profissional a instituição escolar teria ainda de repensar sua oferta em relação a uma
perspectiva de demanda regional e ou local, conforme sua necessidade. Quanto às orientações
didáticas para o ensino nos vários níveis de educação a partir da nova LDB, tem se priorizado
a formação curricular por competências, conforme consta no Art. 6º do Decreto Lei 2.208:

A formulação dos currículos plenos dos cursos do ensino técnico obedecerá


ao seguinte:
I - o Ministério da Educação e do Desporto, ouvido o Conselho Nacional de
Educação, estabelecerá diretrizes curriculares nacionais, constantes de carga
horária mínima do curso, conteúdos mínimos, habilidades e competências
básicas, por área profissional.
II - os órgãos normativos do respectivo sistema de ensino complementarão
as diretrizes definidas no âmbito nacional e estabelecerão seus currículos
básicos, onde constarão as disciplinas e cargas horárias mínimas
obrigatórias, conteúdos básicos, habilidades e competências, por área
profissional.

As atuais propostas curriculares para o ensino médio, tanto quanto para a


Educação Profissional, propõem uma organização pedagógica comprometida com “a
construção de competências básicas, que situem o educando como sujeito produtor de
conhecimento e participante do mundo do trabalho, e com o desenvolvimento da pessoa,
como “sujeito em situação” – cidadão“ 93. O termo competências aparece desde o início da
reformulação, nas várias modalidades de ensino, a partir de 1996, nos diversos documentos
legais, nas falas de ministros e secretários, e de um modo geral no discurso sobre a educação,
recebendo críticas severas.
Referente aos documentos que incidem diretamente nas orientações curriculares
para os cursos técnicos o Parecer n.º: 16 / 99 que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais

93
PCNEM, parte II, p. 22-23.
158

para a Educação Profissional de Nível Técnico 94 tem-se em seu anexo, a caracterização da


área, carga horária, competências profissionais gerais e as específicas a serem completadas
por cada escola proponente. A questão é que quase em sua totalidade, segundo as amostragens
dos Planos de Cursos Técnicos de Música, disponíveis no Cadastro Nacional de Cursos
Técnicos (CNCT)95, coletados para esse trabalho, as escolas copiaram literalmente as
competências sugeridas, sem nada acrescentar, dando a entender pouca interação com
processo de implementação.
Entre os documentos basilares, os Referenciais Curriculares Nacionais da
Educação Profissional, foram a principal base para quem se propôs a implementar Cursos
Técnicos de Música. No âmbito das novas orientações curriculares para a Educação
Profissional, eles tiveram como objetivo subsidiar a elaboração de propostas curriculares para
o nível técnico. Os Referenciais Curriculares Nacionais caracteriza a área de Artes do
seguinte modo:

Compreende atividades de criação, desenvolvimento, difusão e conservação


de bens culturais, de ideias e de entretenimento. A produção artística
caracteriza-se pela organização, formatação, criação de linguagens (sonora,
cênica, plástica), bem como pela sua preservação, interpretação e utilização
eficaz e estética. Os processos de produção na área estão voltados para a
geração de produtos visuais, sonoros, audiovisuais, impressos, verbais e não
verbais. Destinam-se a informar e a promover a cultura e o lazer pelo teatro,
música, dança, escultura, pintura, arquitetura, circo, cinema e outros 96.

O plano curricular sugerido nos Referencias Curriculares é baseado na pedagogia


por competências. Divide-se em função (segmentação da atividade produtiva); sub-função
(conjunto de ações específicas desempenhadas em cada função) na especificação das
habilidades, competências e bases tecnológicas (conteúdos de tecnologia) para cada
habilitação. As competências dizem respeito aos saberes e habilidades (mentais, sócio-
afetivas e/ou psicomotoras) relacionadas às técnicas, ferramentas e atitudes necessárias ao
exercício profissional. Já as Bases Tecnológicas se referem aos conceitos, princípios e

94
Resolução CNE/CEB Nº 04/99 estabelece 20 áreas para a educação profissional de nível
técnico. 1. Agropecuária; 2. Artes; 3. Comércio; 4. Comunicação; 5. Construção Civil; 6.
Design; 7. Geomática; 8. Gestão; 9. Imagem Pessoal; 10. Indústria; 11. Informática; 12. Lazer
e Desenvolvimento Social; 13. Meio Ambiente; 14. Mineração; 15. Química; 16. Recursos
Pesqueiros; 17. Saúde; 18. Telecomunicações; 19. Transportes; 20. Turismo e Hospitalidade.
95
Disponível em:<http://siep.inep.gov.br/siep/owa/consulta.inicio>.Acesso em: 23 out. 2004.
96
BRASIL, Parecer n. 16/99, p. 53.
159

processos que darão suporte as competências (Quadro 2). Ou seja, para cada competência a
ser desenvolvida, se tem como suporte um conjunto de conceitos e suportes conteudísticos.

Quadro 2 - Referenciais Curriculares da Educação Profissional de Nível Técnico


(Exemplo).
BASES
FUNÇÃO SUB-FUNÇÃO COMPETÊNCIAS HABILIDADES
TECNOLÓGICAS
Percepção,
Realização organização e leitura
performancial de Executar repertório rítmica, melódica,
textos musicais Conhecer, analisar e específico e harmônica e textural
previamente aprimorar a técnica adequado a seu nível aplicados.
Execução
elaborados ou criados e a expressão de Ferramentas e
no ato mesmo de sua vocal/instrumental. profissionalização, técnicas de expressão
realização / priorizando a prática individual e coletiva e
atualização. coletiva. de manipulação de
repertórios.

Em seguida os Referenciais Curriculares tenta definir aspectos do exercício


profissional do músico hoje:

O artista, hoje, deve explorar as técnicas modernas, transcender seu espaço,


entender que a arte pela arte está sendo, de alguma forma, substituída pela
visão de produto/espetáculo. Tudo isso possibilita a diversificação das visões
artísticas, facilitando os intercâmbios e as possibilidades de escolhas
artísticas. As técnicas, dessa forma, passam a ser elementos de expressão
artística: a iluminação não tem mais a única função de fazer ver o artista ou
sua obra; a música é muito mais que um acompanhamento, ela contribui para
a evolução dramática dos espetáculos e está integrada a ele, o mesmo
valendo para a iluminação, o cenário, os figurinos e a ambientação sonora.
As leis do mundo do trabalho estão contribuindo para essa integração97.

Ou seja, os Referenciais Curriculares deixa claro que musico deve ser um


profissional plural no fazer, eclético em seu itinerário profissional, capaz de interagir com
outras artes, e fazer uso da sua técnica de modo que lhe possibilite dá um alcance
mercadológico ao seu produto. A música que o artista produz, poderá servir a diferentes
tecnologias. Em seu texto introdutório esse documento enfatiza ainda que a ideia de que arte
não se ensina, é hoje um conceito ultrapassado, sobretudo diante das mudanças ocorridas no

97
Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Profissional de Nível Técnico, 2000, p.
22.
160

mundo do trabalho nas últimas décadas, especificamente na área das artes e espetáculos.
Observam-se nesse setor novas formas de elaboração artística, produção e consumo:

Observamos, também, que as novas tecnologias estão desafiando os artistas. Atualmente,


o músico tem a seu dispor as tecnologias de editoração, de captação de som, de geração
de som, de gravação, entre muitas outras. O artista visual encontra na computação gráfica
diversas formas de melhor lidar com a criação e manipulação de seus materiais, formas,
etc. O circense tem a seu dispor efeitos visuais e aparelhos que só são possíveis pela
inserção da tecnologia. Outro fato a ser considerado diz respeito às tecnologias
emergentes como a internet e a transmissão via satélite, as quais trazem novos desafios no
que diz respeito à necessidade de achar novas formas para que os artistas possam
desenvolver planos de ação que fomentem os interesses sociais e econômicos no
desempenho de suas profissões e na relação com o público98.

Nesse sentido, o documento defende que a escola poderá contribuir não só para
despertar o interesse das pessoas para a arte, como também, e em grande medida, se apresenta
como lugar onde o artista se aperfeiçoa e obtém conhecimentos que o ajudarão a lidar melhor
com as inovações técnicas, tecnológicas e conceituais ocorridas no mundo artístico e suas
aplicações no exercício da profissão. Os Referenciais Curriculares reconhece ainda as
especificidades do perfil profissional dos trabalhadores dessa área, são, em sua maior parte
autônomos ou free lancers, detentores de seus recursos ou equipamentos próprios de trabalho,
e ainda auto-gerenciadores de suas carreiras.
A área de Artes integra uma das vinte uma áreas profissionais da Educação
Profissional de Nível Técnico, sendo formada por subáreas do campo artístico, como artes
dramáticas, música, artes visuais, dança e circo. Trata-se de uma área que tem como
característica a criação, desenvolvimento, difusão e conservação de bens culturais, de ideias e
de entretenimento. De modo geral essa área “está voltada para a criação, desenvolvimento,
difusão e conservação de bens culturais, assim como de serviços culturais” 99. Nesse sentido,
os planos escolares para os cursos técnicos de música deveriam conter elementos que
simulassem aspectos reais do espaço dirigido ao trabalho do musical caracterizado por aulas
operatórias, dirigido a projetos concretos e experimentais100, ou seja, à simulação dos espaços
de atuação profissional. O uso crescente de recursos tecnológicos; veículos de longo alcance
como o rádio, cinema, TV, internet, tudo esse contexto modifica de modo estrutural a relação
do artista com os meios de produção, seu público e sua arte.

98
Referenciais Curriculares, op. cit., p. 13.
99
Ibid., p. 9.
100
Ibid., p. 26.
161

No decorrer do processo de implementação, porém, o que se notou foi uma


situação de desinformação por partes das escolas de música e conservatórios em torno da
legislação para a educação profissional e das novas orientações curriculares, como atesta o
Relatório do Grupo de Trabalho do Ensino Profissionalizante ocorrido IX Encontro Anual da
ABEM em Belém, PA101:

O problema em torno do qual as discussões do GT102 foram desenvolvidas


consistiu na pergunta: qual o sentido atual do Ensino Profissionalizante?
Esta questão foi levantada em face da realidade presente, regida pelas
disposições da nova LDB sobre o ensino profissionalizante, que envolvem
aspectos em torno do redimensionamento musical e pedagógico das escolas
profissionalizantes, bem como de seu funcionamento, ou seja: dos novos
conceitos metodológicos e das reestruturações operacionais. Flagrou-se um
desconhecimento da quase totalidade dos participantes do GT sobre estes
dois aspectos, bem como dos novos documentos onde eles estão inseridos,
sobre as novas normas, os setores governamentais que delas tratam ou sobre
os programas governamentais que oferecem suporte ao seu cumprimento.
Foram verificados pelo menos dois efeitos desse desconhecimento: o
funcionamento precário das escolas profissionalizantes em termos de
recursos financeiros e a desatualização metodológica dos currículos, o que
significa desatualização de seus professores e dos profissionais dali egressos.
Mediante a distribuição de documentos e rápida exposição sobre eles e do
RN, pelo prof. Fulano da UFRN, foi possível ter uma dimensão inicial sobre
o sentido atual do ensino profissionalizante103.

As situações das escolas de música, no que tange ao oferecimento de cursos


técnicos eram das mais diversas. Na verdade os institutos de ensino superior por força da
legislação não poderiam ofertar o ensino técnico, e resolviam a questão como sendo
formação básica em música, nomeadamente como atividade extensionista. À medida que se
vai tomando conhecimento sobre os tramites legais necessários a implementação dos cursos
técnicos em música tem-se a crescente proliferação de novas escolas de música e
conservatórios nos últimos anos. O número de Cursos Técnicos de Música, nos setores
públicos, nas esferas estaduais e federais, em maior proporção nos setores privados e no
terceiro setor, principalmente com as Organizações não Governamentais (ONG’s), desde a
publicação do Decreto Lei 2.208104 tem sido expressivo, muito embora em menor número que
em outras áreas. Conforme demonstrado pelo Sistema de Informação da Educação
Profissional (SIEP) através dos dados do Cadastro Nacional dos Planos de Cursos no

101
Pará (PA).
102
Grupo de Trabalho (GT)
103
Belém do Pará, 8 set. 2000.
104
Regulamenta o § 2º do art. 36 e os arts. 39 a 42 da Lei Federal nº 9.394/96, que estabelece
as Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
162

CNCT105·. Somente no Estado de São Paulo, numa estimativa parcial, foi possível identificar,
mediante consulta on-line, 60 unidades escolares especializadas em música (entre escolas e
conservatórios), ofertando o ensino técnico, sendo 85% dessas instituições pertencentes a rede
de ensino privada particular, 11% pública municipal e apenas 4% pertencente ao setor
público estadual. É preciso assinalar que, muito embora não constem cadastros algum de
esferas administrativas como o Rio de Janeiro, isso não pode ser deduzido como ausência de
escolas e/ou conservatórios atuantes nessa modalidade de ensino, mas simplesmente como
escolas ainda não cadastradas, fato muito comum desde a implantação da Educação
Profissional ainda nos anos 90, dado a complexidade da adaptação à nova legislação para
algumas escolas e conservatórios; principalmente pelo desafio entender a natureza da reforma
na Educação Profissional. Tratava-se da formação profissional para o mundo do trabalho. Por
outro lado, o Governo Cardoso, entendido como modelo neoliberal, incorporava, no entender
de muitos críticos, em seus fundamentos a lógica de mercado, reduzindo a produção do
conhecimento à formação de mão de obra para a estrutura da produção. Nesse sentido, a
propositura desse novo modelo curricular gerou receios, principalmente pelo aparecimento da
utilização de neologismos e novos conceitos, como competências, no currículo escolar.
Diante de um modelo curricular já muito perpetuado no ensino brasileiro que sempre se
pautou na subdivisão disciplinar, o currículo por competências se mostrou minimamente
como um modelo desconexo e descontextualizado a realidade educacional do momento, uma
vez que os principais atores responsáveis pela implementação dessas políticas, os professores,
viam-se diante de um modelo de ensino cuja estrutura conceitual era para eles, em duplo
sentido, estranha, uma espécie de revolução silenciosa106 vista apenas no alto escalão
governamental.
A lógica curricular, proposta pelos Referenciais Curriculares, conforme
averiguado nos planos curriculares coletados para essa pesquisa, não foi adotada pela quase
totalidade das escolas cadastradas no CNCT – havia só no ano de 2004 mais de cinqüenta
escolas ofertando cursos técnicos no estado de São Paulo. O que se vê nos projetos
curriculares, em sua maioria, é uma relação de competências sugeridas nos Referencias
Curriculares agrupadas em disciplinas 107. Se há algum mérito na disponibilização dos

105
Disponível em: <http://siep.inep.gov.br/siep/owa/consulta.inicio>. Acesso em: 23 out.
2004.
106
Título do prefácio do livro (A revolução gerenciada) do ex-ministro da Educação Paulo
Renato de Souza (1995-2002) escrito pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
107
Sistema de Informação da Educação Profissional (SIEP). Cadastro Nacional dos Planos de Cursos no CNCT.
Disponível em: < http://siep.inep.gov.br/siep/owa/consulta. inicio >. Acesso em 23/10/2004.
163

Referenciais Curriculares, este consiste no fato de ter apontado questões referentes ao


exercício da profissão do artista no mundo do trabalho. Principalmente em deixar subtendido
que o profissional da arte tem que tratar o produto do seu trabalho de modo mais objetivo,
como não sendo produto da manifestação exclusiva de uma individualidade isolada e
romantizada, entendendo o resultado do seu trabalho como sendo produto/espetáculo, ou de
outro modo, sua obra terá pouca visibilidade no mercado. A questão é que o músico insiste
em dá conotação ao produto do seu trabalho como sendo não sendo uma mercadoria, embora
sobreviva do que faz. Na perspectiva dos Referenciais Curriculares o músico agora tem que
agregar ao seu fazer mecanismos e estratégias de comercialização de sua obra. Não faz muito
tempo que este profissional, conforme argumentei anteriormente, se apropriava de sua obra de
modo visceral, de modo que seu valor enquanto obra de fruição estética era algo
incomensurável (a ideia da arte pela arte). Ao defender que o artista seja empreendedor e
gestor de sua carreira, os Referenciais Curriculares está propondo que esse profissional,
deve criar mecanismos que façam com que sua arte seja disponibilizada para mídias diversas,
buscando novas maneiras de aproximação com público. Se há hoje maiores possibilidades do
músico exercer sua profissão, e uma relativa valorização do seu trabalho, isto se dá em grande
medida pelo uso da música em vários setores da economia (entretenimento, atividades
turísticas, lazer, entre outros setores, se fazendo presente na nossa vida cotidiana de uma
maneira nunca antes imaginada). Richard Wagner argumentou certa vez que a arte ao
conseguir se libertar de seus principais senhores, a Igreja mais espiritualizada e os príncipes
mais instruídos, vende-se de corpo e alma ao poder bem pior, a indústria 108. No entanto é
preciso achar um meio termo. Penso que seja possível atender as demandas do mercado – não
me refiro copiar o mercado ou a modismos mercadológicos – mas entender a dinâmica do
mercado para, a partir dessa compreensão, propor novos modelos. Trata-se de o músico
conhecer “conhecer sua posição no processo produtivo”109.

5.4 COMPETÊNCIAS, ESTÉTICA DA SENSIBILIDADE E NAVEGABILIDADE:


NOVOS ELEMENTOS CURRICULARES PARA A FORMAÇÃO DO MÚSICO

No processo de reforma da educação nos últimos da década de 1990, foram


incorporados neologismos, novas categorias lingüísticas, ao mesmo tempo em que antigas

108
WAGNER, op. cit., p. 56.
109
BENJAMIM, Walter. O autor como produtor. In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São
Paulo: Brasiliense, 1994, p. 136.
164

categorias e conceitos foram re-significados. Dentre eles, destacam-se termos como


competências, navegabilidade, estética da sensibilidade, mundo do trabalho, entre outros.
A reforma se fez presente não só nos principais documentos legais (decretos, leis, portarias),
mas foi fundamentado e ganhou reforço contextualizado em documentos como os Parâmetros
Curriculares e Referenciais Curriculares, documentos que evidenciavam os princípios
curriculares e metodológicos de cada modalidade de ensino.
É apontado nas Diretrizes Profissionais para a Educação Profissional de Nível
Técnico, um conjunto de princípios norteadores, a saber: a articulação da Educação
Profissional técnica com o ensino médio, respeito aos valores estéticos, políticos e éticos
(estética da sensibilidade, política da igualdade, a ética da identidade) e ainda princípios
específicos denominados de competências para a laborabilidade, flexibilidade,
interdisciplinaridade e contextualização, identidade dos perfis profissionais, atualização
permanente dos cursos e currículos e por fim a autonomia da escola. Pretende deter-se aqui a
quatro elementos curriculares enfatizados pelas Diretrizes Curriculares: 1) Estética da
sensibilidade; 2) modularização; 3) flexibilidade, e 4) competências para a laborabilidade e a
certificação profissional.

 Estética da sensibilidade

A estética da sensibilidade se propõe portadora de “elementos de uma nova


sensibilidade para com as questões que envolvem o mundo do trabalho e os seus agentes”. O
Parecer CNE / CEB n. 16/99, reivindica um ethos profissional do trabalhador, pois na sua
ótica a “obra mal feita não é obra do principiante, mas sim de quem nega os valores da
profissão, resultado da falta de identificação com a profissão, da falta de ethos profissional”.
Especifica ainda que a estética da sensibilidade convirja com o aparecimento de um novo
paradigma no mundo do trabalho, “que se contrapõe aquele caracterizado como industrial,
operário, assalariado, masculino repetitivo 110”.
Não obstante, Trojan (2004), ao analisar as entrelinhas de documentos
governamentais, como as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Parecer
CEB n. 15 / 98), coloca que a estética da sensibilidade, se trata antes de tudo, “de uma
concepção de estética fundamentada na aparência e na superficialidade, que mascara e
esconde as relações de opressão e exploração da classe trabalhadora, para justificar a

110
Parecer CNE/CEB n. 16/99, p. 119-120.
165

submissão e o conformismo” do indivíduo face ao mundo produtivo capitalista 111. Não se quer
dizer com isso que o trabalhador deixe de ter esmero pelo que faz. Se o trabalhador moderno
não se identifica com o que o que faz, não é porque não dispõe de uma “estética da
sensibilidade”, mas porque há muito, e, em decorrência de um contexto produtivo castrador,
tornou-se alheio ao que faz. Se quisermos enfatizar uma educação que dê conta de dimensões
além do fazer tecnicista, é preferível falarmos de uma educação para o sensível para o
indivíduo (pós) moderno embrutecido no seio da sociedade de consumo.
É sabido que, a partir dos anos 90, presenciaram-se no mundo do trabalho
significativas transformações. O neoliberalismo e a reestruturação produtiva da era da
acumulação flexível contribuíram em grandes proporções para essas mudanças. No caso da
re-apropriação do pleonasmo estética da sensibilidade – pois as palavras originárias do grego
aisthetiké e aisthetikós, já fazem correlação com o sensível – fica assinalado de modo claro o
discurso da qualidade total, pois está “diretamente relacionada com os conceitos de
qualidade e respeito ao cliente [grifo nosso]”112. Nesse sentido, várias instituições que
passaram a tratar o estudante como cliente-aluno. Sobre a aplicação dos princípios
empresariais de controle de qualidade na educação comenta Gentili (1994) num texto
esclarecedor quanto a essa questão:

Sendo excelentes exemplos de transposição semântica (do campo


empresarial ao escolar) ambos os programas [de qualidade total aplicado em
países latino-americano] não passam de um conjunto de receitas de duvidosa
eficácia política. Digamos que não superam o nível de um simples
encantamento fetichista frente a determinados indicadores que, que ao serem
descontextualizados, nada nos dizem, além do fragmento de realidade que
simplesmente mostram113.

Todo mundo gosta de qualidade (e sendo total então...), isso não é novidade.
Como bem lembrou Rubem Braga114, todos os serem vivos, de certo modo, cuidam da
qualidade. O peixe rejeita a água poluída, o bebê distingue leite bom e leite ruim,
identificamos quando o ar é perfumado ou transmite odor, etc. No final das contas o critério
de qualidade passa sempre pelos órgãos dos sentidos. A questão é que a estética da

111
TROJAN, Rose Meri. Estética da sensibilidade como princípio curricular. Cadernos de Pesquisa, v. 34, n.
122, maio/ago. 2004, p. 6.
112
Parecer CNE/CEB n. 16/99. In: Educação Profissional: legislação básica. Brasília, 2001, p.
119.
113
GENTILI, Pablo. A. A. O discurso da “qualidade” como nova retórica conservadora no
campo educacional. In. Neoliberalismo, qualidade e educação. Rio de Janeiro: 1994, p. 152.
114
BRAGA, Rubem. Conversas com quem gosta de ensinar. Campinas, SP: Papirus, 2005.
166

sensibilidade, no contexto da produção capitalista, impõe uma qualidade que é de natureza


mercantil, e, como toda mercadoria, na contemporaneidade, supérflua e descartável. “Quanto
mais qualidade total os produtos alegam ter, menor é o seu tempo de duração”115. Isso
porque, no produtivo de consumo, das formas-mercadorias, é fundamental que seja reduzido o
tempo de vida das mercadorias, para que logo sejam repostas tão rapidamente. Numa
sociedade onde o tempo de vida útil é cada vez mais reduzido (moda, eletrodomésticos,
software, automóveis, etc.), a qualidade total, de certo modo, é a negação da qualidade do
durável. A própria indústria na tentativa de aumentar a celeridade do ciclo reprodutivo, se
encarrega, por meio de mecanismos publicitários e marketing, de disseminar o obsoletismo
dos objetos, gerando uma postura de insatisfação no consumidor que reivindica de modo
ilusório um produto atualizado com uma efêmera-pseudo-qualidade total.
A ideia de qualidade total, oriundas do campo produtivo empresarial, foi
incorporada aos planos escolares. A crítica a qualidade total se dá quando esta assume
parâmetros mercantis, aplicando “os princípios empresariais de controle de qualidade no
campo pedagógico”116. No início do século XX o enfoque curricular na formulação por
objetivos, baseado nos princípios da administração científica “incluíam a definição precisa e
supostamente científica do produto a ser alcançado”. Sobre esse modelo de organização
didática Lopes (2002) acrescenta:

Na história do currículo, as teorias da eficiência social têm seu


desenvolvimento inicial associado aos trabalhos de Franklin Bobbitt e
Werret Charters, e seu ápice associado ao trabalho de Ralph Tyler. Como
afirma Kliebard, Bobbitt, em seu The Curriculum, publicado em 1918, nos
EUA, visava alcançar a eficiência burocrática na administração escolar a
partir do planejamento do currículo e o fazia transferindo as técnicas do
mundo dos negócios, marcado pela lógica de Taylor, para o mundo da escola
[...] A ideia dominante é de que a escola poderia educar de maneira mais
eficiente se reproduzisse os procedimentos de administração científica das
fábricas (na época, o modelo taylorista-fordista) e se executasse um
planejamento muito preciso dos objetivos a serem alcançados.

Vista desse modo, a criança, nesse modelo de ensino, era entendida como um
“produto a ser moldado pelo currículo, de maneira a garantir sua formação eficiente”. Essa
eficiência consistia no atendimento às demandas do modelo produtivo dominante.

 Modularização

115
ANTUNES, Ricardo. O caracol e sua concha. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 42.
116
GENTILI, Pablo. A. A., 1994, op. cit., p. 21.
167

A modulação na área educacional é entendida como uma “técnica de


desenvolvimento curricular que estabelece etapas de aprendizagem” permitindo mudanças no
itinerário formativo durante o processo de aprendizagem, possibilitando ao estudante refazer
os módulos, caso não tenha realizado uma aprendizagem significativa 117. A organização do
ensino por módulos, também denominada de formação acelerada é conseqüência desse
pensamento, dado à sua rápida resposta na formação para uma ação imediata no processo
produtivo118. Os módulos figuram nos projetos de curso na ideia de reportar à currículos
flexíveis cujo itinerário é definido pelo estudante. Quando possuem terminalidade, os
módulos possibilitam a certificação. A existência da organização curricular por módulos é um
recurso bastante usado hoje na educação profissional, e em outras proporções noutras
modalidades de ensino. A própria divisão do ensino infantil e fundamental em ciclos lembra a
ideia de modulação seqüencial.
O termo módulo, utilizado como recurso metodológico, não é recente. Refere-se à
qualificação específica para o mundo do trabalho “direcionada a uma ação imediata no
processo produtivo”119, com o objetivo de formar mão de obra em um curto espaço de tempo.
A organização modular possibilita maior flexibilidade no percurso de formação com a
possibilidade de estudos continuados e complementares, uma vez fossem exigidos pelo
processo produtivo: qualificação, re-qualificação e especialização, ou seja, oferece maior
oportunidade de formação profissional. Com a formação modular ocorria tanto a
flexibilização, oferecendo ao aluno trajetórias diferenciadas e intermediárias, de acordo com
seus interesses quanto proporcionava maior opção curricular. Algumas escolas de música
assumiram em seus projetos pedagógicos um modelo curricular por módulos por entenderem
que o próprio aluno poderia construir seu itinerário de formação.
O que é recente, ao que parece, é a adoção no Brasil, de módulos em outras
modalidades de ensino, como por exemplo, no ensino médio, que se situa historicamente
como curso propedêutico com organização serial, semestral ou anual. A organização modular
passa a ser utilizada na Europa denominando-se formação acelerada, dado a sua rápida
resposta na formação do educando.

117
Organização Internacional do Trabalho. Certificação de Competências Profissionais -
Glossário de Termos Técnicos - 1ª ed. Brasília: OIT, 2002, p. 37.
118
WERLANG, 1999, p. 62
119
WERLANG, 1999, op. cit., p. 62.
168

 Flexibilidade

Flexibilidade é um princípio que se reflete na construção dos currículos em


diferentes direções: na oferta de cursos, na organização de conteúdos por disciplinas, etapas
ou módulos, atividades nucleadoras, projetos, metodologias e gestão de currículos 120. Richard
Sennett (2004) no livro A corrosão do caráter, conseqüências pessoais do trabalho no novo
capitalismo, faz uma leitura interessante da ideia de flexibilidade121. A palavra flexibilidade,
de acordo com esse autor, entrou no vocabulário inglês no século XV. Seu sentido originou-se
da simples observação de que, embora a árvore se dobrasse ao vento, seus galhos sempre
voltavam à posição normal. Assim sendo, flexibilidade designa essa capacidade de ceder e
recuperar-se da árvore. No sentido em que é aplicada ao comportamento humano, reivindica-
se do indivíduo, no contexto do mundo do trabalho, ser possuidor dessa mesma natureza
verga: ser adaptável às circunstâncias variáveis do mercado, sem, no entanto, ser quebrado
por elas. Flexibilidade para alguns autores, dentro de uma perspectiva de comportamento
flexível, gera liberdade pessoal, com qualidades de caráter necessárias para livre ação.
Entretanto, Sennett (2004) enfatiza que “a nova economia política trai esse desejo pessoal de
liberdade”. Na verdade, a orientação empresarial que enfatiza e exige uma postura flexível do
trabalhador, o faz numa perspectiva já pré-determinada, uma espécie de (pseudo) liberdade já
circunscrita.
O discurso da flexibilidade é requisitado sempre que se abordam as mutações do
mundo do trabalho. É necessário que o trabalhador seja flexível em tempos de desemprego
como decorrência da redução do quadro (enxugamentos) das estruturas empresariais122.
Nesses termos a mudança que proporciona o caráter flexível do trabalho, que transfere a
realização das atividades da empresa para a residência é aparente, é apenas uma troca de
submissão de poder; da relação presencial para eletrônica.
A especialização flexível tenta pôr cada vez mais rápido, produtos no mercado.
“O ingrediente de mais forte sabor nesse novo processo produtivo é a disposição de deixar
que as mutantes demandas do mundo externo determinem as estruturas internas das
instituições” tentando dar rápida resposta e eficiência às demanda do mercado 123.

120
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional de Nível Técnico
- Conselho Nacional de Educação - Câmara de Educação Básica parecer n. º 16 / 99, p. 127.
121
SENNET, Richard. A corrosão do caráter.: as conseqüências do trabalho no novo
capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 20004, p. 53.
122
O nome técnico para esse fenômeno é a re-engenharia; a idéia de fazer mais com menos.
123
SENETT, op. cit., p. 60-61.
169

A flexibilização vem como pertinente discurso mercadológico ao lado de outros


termos sinônimos: navegabilidade e empregabilidade. Possuir esse senso de navegabilidade
é o mesmo que confrontar-se, tal qual o velejador, que diante dos imprevisíveis perigos
encontrados em alto-mar, com perícia tenta sobreviver a eles.

Definir como articular os vários perfis das várias ocupações, para que as
pessoas tenham condições de navegabilidade no mundo do trabalho e não
fiquem presos na bitola de uma única ocupação. Não se trata mais de
preparação para o posto de trabalho, mas de preparação profissional para o
mundo do trabalho, numa área profissional na qual cada especialidade deve
ser entendida e articulada num contexto mais amplo, da área profissional 124.

Essa ideia, embora não exposta nos documentos basilares da reforma que
auxiliaram na elaboração de projetos dos cursos de formação profissional, foram divulgados
de forma ampla em congressos e palestras. Empregabilidade, semelhantemente, é o

reconhecimento da capacidade de um trabalhador de atender a diversas


posições no mercado de trabalho, ou seja, de superar os limites de uma
ocupação ou campo circunscrito de trabalho, para transitar para outros
campos da mesma área profissional ou áreas afins. Supõe polivalência 125.

De qualquer modo, em ambas as definições estão contidas o pressuposto de que


num mercado incerto, de economia em constante mutação, o perfil do profissional flexível
parece ser o que mais adequado à sobrevivência no mundo trabalho. Muito embora, haja
indícios que os movimentos sindicais, de um modo geral, rejeitem concepções que
intencionem conferir ao trabalhador a responsabilidade pelos problemas relacionados ao
desemprego.

 Competências

O termo Competências, desde sua disseminação no Brasil, por volta da segunda


metade da década de 1990, foi, e é, até hoje, bastante discutido. Ele aparece com importância
central nos documentos basilares e legais referentes à Educação Profissional de Nível
Técnico. De modo amplo, a ideia aparece na literatura educacional produzido na esfera
governamental durante o período do governo Cardoso (1994-2002) e nesse contexto, a

124
CORDÃO, Francisco Aparecido. A LDB e a nova Educação Profissional. p. 9.
125
Organização Internacional do Trabalho. Certificação de Competências Profissionais -
Glossário de Termos Técnicos - 1ª ed. Brasília: OIT, 2002, p. 25.
170

discussão é difundida no espaço acadêmico robustecida pela iniciativa governamental de


implementar a ideia de competência nos projetos curriculares. As discussões sobre esse tema
caminharam por duas vias paralelas. Uma delas, a governamental acenava para uma discussão
sobre uma mudança na concepção de ensino, sobretudo no esforço por superar a formação
curricular por objetivos, sublinhando os conteúdos de formação, as estratégias metodológicas
de transmissão e a cerificação mediante o diploma. Outra, a via crítica, enxergava nessas
novas orientações curriculares uma íntima relação (em seu sentido perverso) entre o currículo
escolar e o mundo produtivo, especificamente no seu comprometimento com as ideias
neoliberais tão difundidas (e combatidas) na década de 1990. Daí a resistência e o olhar
desconfiado de muitos em vê a aplicação da lógica das competências nos modelos
curriculares no ensino brasileiro. Pretende-se aqui não mais revisar de modo intenso e
exaustivo a gênese conceitual da ideia de competências. Como já colocado, a literatura sobre
o tema é vasta e tem se ampliado ainda mais nos últimos tempos em face de revisões
bibliográficas no âmbito de trabalhos acadêmicos. Faz-se necessário, entretanto, nesse estudo,
apontar algumas ideias essenciais sobre esse termo.
O termo competências tem recebido vários significados de diferentes autores
(sobretudo dos sociólogos do trabalho) ao longo do tempo, configurando-se segundo
diferentes lugares e contextos sócio-econômicos. O termo ganha maior importância a partir do
momento em que os diplomas e as certificações, até certo ponto, se desvalorizam, ao tempo
em que a experiência profissional ganha maior ênfase no setor produtivo. O surgimento do
termo competências passa pelo tema da re-significação da ideia de qualificação profissional
no âmbito da reestruturação produtiva. Por muitas décadas, a qualificação era resultante de
uma formação que tinha por fim atender um conjunto de codificações ocupacionais que se
apresentavam até então inalteradas. A posição hierarquizada no posto de trabalho no modelo
de produção industrial taylorista era definida pelos saberes adquiridos no âmbito escolar
(mediante a expedição de certificados e diplomas). A qualificação, na acepção desse conceito,
é compreendida como qualificação para um determinado posto de trabalho. É preciso
esclarecer, que os sociólogos do trabalho atribuem diferentes conceitos à noção de
qualificação. Uma das definições do termo qualificação a situa como portadora de três
dimensões: social, conceitual e experimental. A social refere-se a tudo que engloba o
reconhecimento social do trabalho como, a remuneração e as classificações. A dimensão
conceitual diz respeito à formação profissional e ao diploma. A dimensão experimental se
relaciona com o conteúdo concreto das atividades, aos saberes e principalmente ao saber-
fazer. Dentre estas, só uma, a dimensão experimental, guarda estreitas relações com a ideia de
171

competência, já que a dimensão social se fundamenta nos inalterados conteúdos de uma dada
atividade, e, a dimensão conceitual impõe uma lacuna entre as competências e o diploma. A
proximidade entre a qualificação (experimental) e a competência reside em que ambas se
reportam ás qualidade individuais do trabalhador e ao conteúdo da atividade. Porém, a
dinamicidade implícita na noção de competências delineia as diferenças. O trabalhador
caminha de uma lógica do ter (ter conhecimentos), para uma lógica do ser (ser competente).
Aqui habita o conceito de competência na lógica defendida nos planos curriculares. Quando o
indivíduo tem algo, é para toda vida, ao passo que a ideia de ser, se apresenta de modo
transitório, momentâneo (devir). Essa ideia deve ser entendida na perspectiva de um
deslocamento “de uma lógica da certeza a uma lógica de incerteza, de uma lógica de
estabilidade a uma lógica de instabilidade, de uma lógica de permanência a uma lógica de
transformação”126. O indivíduo pode ser competente num momento e não ser em outro, daí ser
comum associar termos como flexibilidade, polivalência e readaptação a noção de
competências. Manter esse estado de competência requer que o indivíduo seja portador da
consciência de que deve sempre ter uma atitude permanente e adaptadora frente às novas
situações de trabalho, atitude ausente na concepção certificativa do diploma (e
conseqüentemente da ideia tradicional de qualificação, como formação para um emprego ou
um determinado posto de trabalho).
Uma das críticas a qualificação foi o fato de esta não reconhecer os saberes
adquiridos no espaço de trabalho. Porém, a noção de competência começa a se evidenciar
quando o setor industrial passa a ter a necessidade de reconhecer saberes dos trabalhadores
independentemente de suas ocupações no posto de trabalho 127, como é o caso das empresas
pós-tayloristas, cujo trabalhador, passa a fazer uso da mobilização de aptidões criativas de
modo a lidarem com imprevistos surgidos em situações de trabalho. Na verdade, esse cenário
se modifica quando levados em conta as transformações ocorridas no processo de produção
do capital e suas influências no processo do trabalho contemporâneo. A ideia de fim do
emprego, posto na literatura que trata das transformações do trabalho na atualidade, é
subsidiada pela superação dos modos de produção taylorista e fordista, em detrimento de um
modo de produção flexível, observados principalmente no que se convencionou chamar, na
literatura sobre as metamorfoses do trabalho, por Toyotismo. Pode-se caracterizar esse modo
de produção da seguinte maneira: trata-se de uma forma de produzir direcionada pela

126
ROCHE, Janine. A dialética qualificação-competência: estado da questão. Da qualificação
à competência. In.: TOMASI, Antônio. Campinas, SP: Papirus, 2004. p. 46.
127
ZARIFIAN, Philippe. Objetivo competência. São Paulo: Atlas, 2001, p. 40-49.
172

demanda, variada e heterogênea, com vistas a suprir o consumo, este determinando o que será
produzido (ideia de estoque mínimo), diferentemente da produção fordista (que se constituía
como produção em série e de massa). O Toyotismo adota ainda o princípio just in time, ou
seja, o melhor aproveitamento possível do tempo de produção (qualidade, variedade, prazo,
estoque, prazo). Para dar conta de uma demanda individualizada, com parâmetros delineados
no conceito da qualidade total e no menor tempo possível, a produção tem que se sustentar
no que os autores denominaram por processo de produção flexível, onde o operário, além de
trabalhar em equipe opera com várias máquinas, exercendo assim uma (única) atividade,
porém, com múltiplas funções:

Para atender às exigências mais individualizadas de um mercado, no melhor


tempo e com melhor ‘qualidade’, é preciso que a produção se sustente num
processo produtivo flexível, que permita a um operário operar com várias
máquinas (em média cinco máquinas, na Toyota), rompendo-se com a
relação um homem/uma máquina que fundamenta o fordismo. É a chamada
‘polivalência’ do trabalhador japonês, que mais do que expressão e exemplo
de uma maior qualificação, estampa a capacidade do trabalhador em operar
com várias máquinas, combinando ‘várias tarefas simples’ [...]128.

O Toyotismo horizontaliza o processo de produção, terceirizando a maior parte do


que produz. A ideia de qualidade total ganha um papel relevante nesse processo. Nota-se
nesse sentido a proliferação dos Círculos de Controle de Qualidade (CCQ). Um empresa que
opera nesse modo de produção, possuí uma forma flexibilizada de acumulação capitalista,
com uma reengenharia estrutural enxuta (setores terceirizados) e tem no seu quadro de
recursos humanos especialistas flexíveis, polivalentes pertencentes a um espaço
organizacional em que as decisões possuem maior grau complexidade e onde as ações mútuas
são mais comuns.
E onde se situa, nesse contexto, a questão das competências? A discussão sobre o
conceito de competências situa-se tanto no âmbito do mundo produtivo quanto nos espaços de
formação acadêmico-profissional, especificamente o discurso se encaminha para todas as
modalidades de ensino após a implantação da Lei 9.394 / 96. Sobretudo, por evidenciar um
problema observado já algum tempo no ensino escolar; o da mediação didática. Em geral, a
escola se preocupou mais com os ingredientes de certas competências, como os conteúdos,
por exemplo, e menos em fornecer subsídios que apontassem caminhos para que o estudante
as colocasse em sinergia nas situações concretas. Durante os primeiros anos escolares,

128
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? São Paulo: Cortez; Campinas, SP: UNICAMP,
2003, p. 34.
173

assimilam-se muitas vezes conhecimentos disciplinares e fragmentados não ocorrendo, na


maioria dos casos, a transferência e a mobilização desses saberes e conhecimentos a situações
da vida. Essa também era a principal reclamação do setor produtivo em relação a formação do
trabalhador: a escola se concentrou demais em repassar conhecimentos ditos teóricos, e pouco
fez para disponibilizar mecanismos de aprendizagens que fizessem com que esses saberes
fossem mobilizados para situações concretas, fornecendo elementos para que esse trabalhador
pudesse resolver problemas. A ideia era, nesse contexto, ter trabalhadores não mais (só)
titulados, mas, competentes, termo utilizado aqui em duplo sentido, na acepção mais usual
dessa expressão, como qualidade daquele que é capaz, e ao trabalhador portador de um
desempenho profissional, que atende aos “critérios ou normas, geralmente estabelecidos por
acordo ou consenso de especialistas, trabalhadores e empregadores” de determinada área 129.
Mas o que é uma competência? Vejam-se nesse sentido algumas definições do
termo. Meirieu (1998)130 considera competência como o “saber identificado colocando em
jogo uma ou mais capacidades em um campo nocional ou disciplinar determinado”.
Perrenoud (1999c), um dos mais conceituado estudioso desse tema, define o termo como a
“faculdade de mobilizar um conjunto de recursos cognitivos (saberes, capacidades,
informações etc.) para solucionar com pertinência e eficácia uma série de situações”. Ele
mesmo fornece uma ilustração para o conceito:

Saber orientar-se em uma cidade desconhecida mobiliza as capacidades de


ler um mapa, localizar-se, pedir informações ou conselhos; e os seguintes
saberes: ter noção de escala, elementos da topografia ou referências
geográficas. Saber curar uma criança doente mobiliza as capacidades de
observar sinais fisiológicos, medir a temperatura, administrar um
medicamento; e os seguintes saberes: identificar patologias e sintomas,
primeiros socorros, terapias, os riscos, os remédios, os serviços médicos e
farmacêuticos. Saber votar de acordo com seus interesses mobiliza as
capacidades de saber se informar, preencher a cédula; e os seguintes saberes:
instituições políticas, processo de eleição, candidatos, partidos, programas
políticos, políticas democráticas etc131.

Zarifian (2001, p. 68, grifo do autor), um dos primeiros pesquisadores no campo das
ciências sociais na França a escrever sobre o que na época chamou de modelo da competência,
conceitua o termo como “o tomar iniciativa e o assumir responsabilidade do indivíduo diante de
situações profissionais com as quais depara”.

129
OIT, 2002, op. cit., p. 15.
130
MERIEU, P. Aprender...Sim, mas como? Porto Alegre: Artmed, 1998, p.18.
131
Construindo competências. Entrevista com Philippe Perrenoud, Universidade de Genebra. Paola Gentile e
Roberta Bencini (mimeo).
174

Nunez; Ramalho (2004) entende a noção de competência como uma


potencialidade de ação, um saber intencional, cujo sucesso da ação não se sustente na
causalidade, trata-se de “um potencial de intervenção que pode se manifestar no contexto
real”, baseado no uso de um conjunto de recursos (saberes, conhecimentos e atitudes) 132.
Berger Filho (1998, p. 2)133 define competências como constituindo os “esquemas
mentais, ou seja, as ações e operações mentais de caráter cognitivo, sócio-afetivo ou
psicomotor que mobilizadas e associadas a saberes teóricos ou experimentais geram
habilidades, ou seja, um saber fazer”. Nesse sentido, o conceito de esquemas mentais vê-se
traduzido como uma operação, uma ação, uma habilidade, um comportamento a ser realizado.
As competências requerem a produção de habilidades, um saber fazer. Nas palavras de
Berger fica evidente um discurso sobre as competências influenciado pelas teorias elaboradas
por Jean Piaget, sobre o estudo da construção conhecimento e o desenvolvimento da
inteligência. Piaget não desenvolveu nenhuma teoria sobre as competências, porém, a ideia de
esquemas mentais, a que se refere Berger, é oriunda dos estudos cognitivistas piagetianos.

Nos níveis sensório-motores precedendo o aparecimento da linguagem, já


vemos se elaborar todo um sistema de ‘esquemas’ que prefiguram alguns
aspectos das estruturas de classe e de relações. Um esquema é, com efeito, o
que é generalizável numa ação dada: por exemplo, depois de ter atingido um
objeto afastado puxando o pano sob o qual ele estava, o bebê generalizará
essa descoberta utilizando muitos outros suportes para aproximar de si
muitos outros objetos em situações variadas. O esquema se torna assim uma
espécie de conceito prático, e, na presença de um objeto novo para ele, o
bebê procurará assimilá-lo aplicando-lhe sucessivamente todos os esquemas
que dispõe [...] [Sic]134.

No campo da Psicologia genética de Piaget, esquema, é definido como “aquilo


que numa ação, pode ser transposto nas mesmas situações, ou generalizando em situações
análogas”135. Como foi argumentado em linhas anteriores, a ideia de competência se contrapõe
a ideia de qualificação, estas definidas e mensuradas por um certificado ou diploma. As
competências se apresentam como um “conjunto de propriedades instáveis, que devem se

132
NUNEZ, Isauro Beltrán; RAMALHO, Betânia Leite. Competência: uma reflexão sobre o seu sentido. In:
OLIVEIRA, Vila Q. Sampaio F. de (Org.). O sentido das competências no projeto político pedagógico. 2.
ed. Natal-RN: UFRN, 2004. (Coleção pedagógica, 3). p. 24-26.
133
BERGER FILHO, Ruy Leite. Formação baseada em competências numa concepção
inovadora para a formação tecnológica. In: V CONGRESSO DE EDUCAÇÃO
TECNOLÓGICA DOS PAÍSES DO MERCOSUL. Texto não publicado. Pelotas, RS, 1998.
134
PIAGET, Jean. Problemas de psicologia genética. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril
Cultural, 1983, p. 266.
135
Id. In: PIÉRON, Henri. Dicionário de Psicologia. Porto Alegre: Globo, 1966, p. 157.
175

submeter à prova constante”136, por isso alguns autores consideram que a competência se
refere a um processo e não a um estado, tendo como produto a performance, esta avaliada ou
mensurada em razão da demonstrada competência 137.
Uma das características das competências é que sua verificação é freqüentemente
exercida por meio dos resultados obtidos (via indicadores de desempenho), e não por
intermédio de conhecimentos e atributos culturais adquiridos na socialização profissional.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) (2202, p. 22) entende o termo
competências como a

capacidade de articular e mobilizar condições intelectuais e emocionais em


termos de conhecimentos, habilidades, atitudes e práticas, necessários para o
desempenho de uma determinada função ou atividade, de maneira eficiente,
eficaz e criativa, conforme a natureza do trabalho. Capacidade produtiva de
um indivíduo que se define e mede em termos de desempenho real e
demonstrado em determinado contexto de trabalho e que resulta não apenas
da instrução, mas em grande medida, da experiência em situações concretas
de exercício ocupacional.

Como já observado anteriormente, são diversas as nuanças semânticas que giram


em torno da definição do termo competências. Mas nesse oceano conceitual algumas
características coincidem: o fato de que a maioria relaciona competência com a performance
(individual de uma pessoa), ou ainda que as competências não têm um conteúdo em si, são
dispositivos que mobilizam conhecimentos diversos, traduzindo-se numa determinada
habilidade, diretamente ligada a resolução de problemas. Mas como se identifica uma
competência? Numa situação problema é na demonstrada capacidade de mobilizar e articular
conhecimentos, saberes, habilidades, cogentes ao desempenho de uma dada atividade, no
enfrentamento de situações inéditas, que se reconhece uma competência.
Foi exposto, embora de modo sucinto, algumas noções sobre o conceito de
competência, intencionando situar o leitor num termo que ainda hoje é polêmico na esfera
educacional.
É preciso esclarecer que o esforço realizado para se compreender o termo foi no
sentido de apontar para um tipo de específico de competências utilizado nos currículos da

136
DEFFUNE, Deisi, DEPRESBITERIS, Lea. Competências, habilidades e currículos de educação
profissional. São Paulo: Senac, 2000, p. 77.
137
Cf. WITTORSKI, Richard. D a fabricação das competências. In.: TOMASI, Antônio. Da qualificação à
competência: pensando o século XXI. Campinas, SP: Papirus, 2004, p. 75-92.
176

Educação Profissional; “as competências profissionais” 138. É ainda de interesse do presente


estudo, enfatizar o uso do conceito de competências nos documentos legais relacionados a
Educação Profissional e sua repercussão nos currículos de música, no que se convencionou
chamar de ensino por competências, movimento educacional que surge em inícios da década
de 1970, nos estados Unidos e no Brasil na segunda metade da década de 1990.
A organização, curricular por competências exige outra lógica de uso dos
componentes curriculares; não é disciplinar, pois as competências a serem propostas requerem
conteúdos de diversas disciplinas139. Por isso, sua organização normalmente é por módulos,
supondo que cada módulo englobe conteúdos e atividades que sejam capazes de formar um
determinado conjunto de habilidades. A organização modular traz aos currículos a ideia de
possibilidade de caminhos formativos, bem como a terminalidade e continuação posterior de
estudos:

Do ponto de vista formativo, o enfoque das competências encontra-se


associado à modularidade como princípio de organização dos currículos,
concebendo-se os módulos como unidades formativas. Conforme dissemos,
a estrutura modular é essencial à ideia de itinerário ou trajetória de
formação140.

Em função dessa organização curricular não-disciplinar, o currículo por


competências pode ser considerado como um currículo integrado, pois as competências por si
expressam uma integração de conteúdos, conceitos e processos metodológicos. Em se
tratando de uma organização curricular as competências podem ser organizadas por blocos,
que tenham justificado seu agrupamento pela formação proposta pela escola. Essa

138
Na atividade laboral (e igualmente no cotidiano) faz-se o uso de competências diversas. A OIT traz algumas
definições, tais como: básicas, específicas, gerais (genéricas), competências, tácitas e as competências
transversais. As competências básicas são aquelas adquiridas nos dez primeiros anos de estudo escolar
(leitura, escrita, as quatro operações, etc.). As específicas são as adquiridas na especialização profissional. As
gerais se referem as competências adquiridas na escola e no trabalho; “são apoiadas em bases científicas e
tecnológicas e em atributos humanos, tais como criatividade, condições intelectuais e capacidade de transferir
conhecimentos a situações novas”. Esse tipo de competência é utilizado em qualquer atividade profissional,
pois se referem aos atributos pessoais como a capacidade de tomar decisão, iniciativa e comunicação oral. As
competências profissionais se referem ao contexto “específico do exercício da experiência profissional”. As
competências tácitas são aquelas “adquiridas e exercidas na prática do trabalho diário, os chamados segredos
do ofício”, resultantes do sistema formal, de ensino, ou desempenhadas no espaço do exercício profissional,
ou ainda na interação entre os dois. E por último as competências transversais. Estas são “são comuns a
diversas atividades profissionais. Permitem a transferibilidade de um perfil profissional a outro ou de um
conjunto de módulos curriculares a outros”. Dominar um processador de textos é útil a todas as atividades
profissionais que se valham da escrita. Assim é como a leitura da pauta musical é imprescindível a toda
atividade profissional ligada à música (OIT, 2002, p. 22).
139
LOPES, Alice Casimiro . Competências na organização curricular da reforma do ensino médio. Mimeo,
p. 5.
140
RAMOS, Marise Nogueira. A Pedagogia das competências. São Paulo: Editora Cortez, 2002, p. 152.
177

organização curricular poderá ser composta por competências gerais e específicas, pois
segundo Perrenoud (1999) uma competência pode mobilizar várias outras.
Um currículo por competências parte fundamentalmente da análise de situações,
da ação, e disso derivar conhecimentos, ou seja, por uma via de mão dupla que parte da
teoria para prática e vice-versa, como também do concreto ao abstrato do real para o
conceitual. É desse modo que se compõe um currículo por competências. Portanto, uma
reformulação curricular por competências implica em um desenho curricular que ultrapasse
programas ainda tradicionais em sua práxis, que apenas utilizam um verbo de ação na frente
da descrição dos conteúdos disciplinares para indicar uma suposta mudança.
Perrenoud (2000b)141 nos auxilia na abordagem conceitual de uma pedagogia
diferenciada, propondo mudanças na representação curricular e prática docente.

Para desenvolver competências é preciso, antes de tudo, trabalhar por


problemas e por projetos, propor tarefas complexas e desafios que incitem os
alunos a mobilizar seus conhecimentos e, em certa medida, completá-los.
Isso pressupõe uma pedagogia ativa, cooperativa, aberta para a cidade ou
para o bairro, seja na zona urbana ou rural. Os professores devem parar de
pensar que dar o curso é o cerne da profissão. Ensinar, hoje deveria consistir
em conceber, encaixar e regular situações de aprendizagem, seguindo os
princípios pedagógicos ativos construtivistas.

Propor uma organização curricular por competências supõe então, uma mudança
na postura metodológica da ação pedagógica docente que engloba novas estratégias e
metodologias de ensino, foco na construção de competências, avaliação por competências e
adoção de um contexto interdisciplinar do ensino. Um currículo por competências não se
baseia exclusivamente na tradicional organização curricular por objetivos, ementas e
disciplinas, muito embora possa se valer das últimas de forma pluridisciplinar,
interdisciplinar, e trans-disciplinar num contexto de transversalidade de conhecimentos.
Desse modo, conteúdos disciplinares deverão constituir um meio e suporte para a construção
de competências e não um fim em si. Nesse sentido, as competências não precisam figurar nos
programas de cursos só para atender a uma exigência governamental do momento. Não se
trata, entretanto de maquiar o processo em prol de uma exigência de reforma curricular. Nem
tampouco mudar apenas a redação do Projeto Político Pedagógico colocando, conforme cita
Perrenoud, “onde se lia; ensinar o teorema de Pitágoras, agora irá se ler; servir-se do teorema
de Pitágoras para resolver problemas de geometria”142.

141
Documento não paginado.
142
PERRENOUD, Philippe. Pedagogia diferenciada: das intenções à ação. Porto Alegre: Artmed, 2000b. p. 52.
178

Se a noção de competências esteve sob a crítica de olhares desconfiados na esfera


educacional (e não sem razão, pois em muitas situações os interesses empresariais foram
apontados como sendo também dos trabalhadores) foi por se associar sua lógica formativa aos
interesses mercadológicos do mundo produtivo, num contexto em que as novas formas de
produção pós-industrial passam a valorizar certos atributos em prol dos interesses do capital
(criatividade, flexibilidade, trabalhar em equipe):

Em função da análise empreendida até aqui, é possível afirmar que o


currículo por competências se associa a uma perspectiva não-crítica de
educação, sintonizada, sobretudo com os processos de inserção social e de
controle dos conteúdos a serem ensinados e, por conseguinte, de controle do
trabalho docente. Se por um lado o currículo por competências tenta superar
limitações do currículo por objetivos, introduzindo princípios mais
humanistas, visando à formação de comportamentos e de operações de
pensamento mais complexos, que hoje se mostram mais adequados ao
mundo do trabalho pós-fordista, por outro lado permanece no contexto do
eficientismo social. Ou seja, tem por base o princípio de que a educação
deve-se adequar aos interesses do mundo produtivo e não contestar o modelo
de sociedade na qual está inserida 143.

Ramos (2001) argumenta de modo semelhante ao discorrer de modo profundo


sobre a noção de competências, especificamente quando relaciona a competência ao fator
econômico e ao aspecto de diferenciação individual.

Constatamos, então, que a definição de competência presentes nos


documentos relativos ao ensino médio carrega uma conotação psicológico-
subjetivista, mantendo-se nos documentos da educação profissional como
fator econômico para o capital e como patrimônio subjetivo para os
trabalhadores 144

A capacidade de adaptação é vista como subordinada possibilidade de inclusão


social, criando um consenso social em torno do modo de produção capitalista transformando
todos os trabalhadores numa classe única, uma vez que a luta de classe se resolve na
adaptabilidade individual de cada trabalhador perante as mudanças sócio-econômicas do
modelo de produção capitalista.
Fala-se atualmente com freqüência na articulação de saberes, utilizando para isso
palavras como interdisciplinaridade, acreditando-se que através dela o problema da falta de
comunicação entre as disciplinas estaria resolvido. No entanto, é necessário transcender a

143
LOPES, op.cit.
144
RAMOS, op. cit., p. 169.
179

soberania territorial disciplinar “mesmo que algumas trocas incipientes se efetivem” entre
elas145. Podemos afirmar que o século XX foi profuso em propostas inovadoras para o campo
da educação, mas que, no entanto, não tiveram uma perpetuação na prática escolar. Termos
como interdisciplinaridade, conhecimento significativo, método de problemas, método de
projetos não foram inaugurados pela reforma do ensino na era Cardoso. É nesse sentido que
as propostas metodológicas deverão mostrar-se numa incompletude, aberta às novas re-
organizações, preferindo a trilha nova àquela já andada.
No âmbito da música a discussão sobre o uso do currículo por competência se
pauta em questões semelhantes ao que foi discutido anteriormente na educação e no setor
produtivo de um modo geral. Os conhecimentos que a escola se propõe a ensinar e a
transposição destes para contextos concretos, ainda continuam sendo um problema na área
musical, basta notar a dicotomia ainda existente entre a teoria e a prática nas escolas de
música. Quando um músico estuda escalas, por exemplo, isso não implica que
automaticamente saberá fazer uso delas em diferentes situações. Talvez seja no âmbito do
exercício da atividade musical que a noção de competência seja mais bem compreendida, uma
vez que é na performance, em situações de trabalho, onde profissional da música é avaliado
pelos seus colegas profissionais e pelo público de um modo geral. A questão é que lidar com
esse formato curricular implica numa outra lógica, diferente do currículo por objetivos,
créditos e disciplinas, como já colocado. Se no ensino tradicional tem-se registro de notas no
currículo por competências tem-se registro de resultados, tem-se ainda a competência em
detrimento do conteúdo, a contextualização em detrimento da dicotomia teoria/prática, a
interdiplinaridade em detrimento da fragmentação disciplinar, dentre outras características.
No currículo por competência estão expressos o que o estudante deverá ser capaz de fazer,
constando nessa carta de intenção (currículo) as experiências de aprendizagens e atividades
concretas e práticas, tendo por base os diversos contextos ou situações reais de trabalho.
A organização do currículo por competências pode ser considerada um equívoco
por não atender (segundo a visão de alguns autores) à perspectiva da formação humana.
Porém, pode ser considerada como uma das estratégias possíveis de ser utilizada dentre as
encontradas no vasto espectro das alternativas metodológicas utilizadas para a aquisição de
um novo olhar sobre os recursos metodológicos da aprendizagem, outra maneira de se criar
condições favoráveis para o educando construir seu conhecimento. A opção por este caminho
implica na consciência de que toda a pedagogia precisa ser encarada dentro dos seus próprios

145
MORIN, 2002, op. cit., p. 50.
180

limites e alcances, relativos principalmente à maneira como será entendida, absorvida e


implementada.
Para o filósofo judeu, naturalizado britânico, Karl Raimund Popper (1925-2004)
“viver é resolver problemas”. O importante, coloca Popper (1991)146, “é a faculdade de
propor várias possibilidades para a solução dos problemas”, pois “viver é resolver
problemas”. É nesse sentido que a predisposição para mobilizar recursos cognitivos para
resolver problemas; que a colocação de que dos mesmos pressupostos podem vir pelo menos
dois resultados diferentes, não é exclusividade da lógica das competências, esta enquanto
mobilização de saberes (ou ações cognitivas) na resolução de problemas.

 Certificação de competências

Foi realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio


Teixeira (INEP) / MEC – nos dias 8 e 9 de setembro de 2004, em Brasília, DF147, o “I
Encontro Internacional de Certificação de Competências Profissional” 148. Além de
representantes de vários Ministérios, entre eles o do Trabalho e Emprego e Educação,
participaram representantes dos vinte e seis Estados e do Distrito Federal das mais diversas
áreas profissionais, como também representantes dos segmentos do setor produtivo. Apontou-
se como ponto consensual entre os participantes do Encontro a necessidade da criação de uma
comissão interministerial objetivando estabelecer uma matriz referencial para a certificação
de competências, ouvidos os setores interessados. Hoje, nesse processo, são utilizados
diversos instrumentos de avaliação sem que tenham validade nacional. Como visto há
interesse dos vários segmentos da sociedade na criação de um sistema nacional de
reconhecimento de competências.
A certificação de competências é entendida como o processo por meio do qual
se reconhece e conseqüentemente se certificam os saberes necessários para alguém
desempenhar funções específicas, demonstrando o domínio e o emprego de conhecimentos,
habilidades e atitudes para a realização de atividades em uma situação laboral. A mobilização
dessas “ações cognitivas” no entender dos documentos governamentais que orientaram a
reforma do ensino no governo Cardoso, foi denominada de competências.

146
POPPER, Karl R. Sociedade aberta universo aberto. Portugal: Dom Quixote, 1991. p.68.
147
Distrito Federal (DF).
148
“Certificação de competência profissional deve ter participação da sociedade” (Brasília, CATÁLOGO
NACIONAL DE CURSOS TÉCNICOS (CNCT) - 10/9/2004, Boletim n. 259) e “Sistema de certificação de
competências terá participação do setor produtivo” (INEP - 10/9/2004).
181

A ideia básica que gira em torno dessa política é a intenção de se reconhecer a


experiência profissional de indivíduos adquirida em outros espaços de formação, escolar ou
informal, bem como o autodidatismo. É pertinente colocar que se trata de uma política
convergente com a formação curricular modular e flexível, o que na ótica do Governo
Brasileiro e sindicatos, amplia as possibilidades de qualificações, atendendo de maneira
rápida as demandas do mercado de economia flexível. “A modularização deverá proporcionar
maior flexibilidade às instituições de educação profissional e, também, contribuir para a
ampliação e agilização do atendimento às necessidades do mercado dos trabalhadores e da
sociedade”149.
A certificação de competências pressupõe a adoção de um modelo de formação
baseado na pedagogia de competências, sendo ela elemento de uma estratégia de ensino que
requer coerência metodológica no seu uso (formação por competências, avaliação por
competências). Nesse sentido, a política de certificação de competências refere-se ao
aproveitamento e certificação de competências, não de conteúdos programáticos. A
certificação especifica quais competências foram avaliadas, reconhecidas e certificadas, e não
os programas que foram cursados, além de garantir o direito a certificação ou ao diploma,
observados os itinerários formativos.
As políticas do governo Lula da Silva, voltadas para a Educação Profissional,
considera que “a certificação de conhecimentos e de saberes é mais abrangente, bem como
extrapola o âmbito dos interesses mais específicos da empresa que busca, com prioridade, o
reconhecimento do padrão de qualidade de seus produtos”, e acrescenta,

Ao trabalhador também pode interessar certificar certos conhecimentos,


saberes e habilidades ou competências para fins de habilitar-se para o
mercado de trabalho. É preciso destacar que as competências se reduzem a
uma parte dos atributos do trabalhador, não incluindo dimensões culturais e
cognitivas fundamentais à avaliação das potencialidades dos sujeitos 150.

Essa distinção entre conhecimentos e competências também é acentuada por José


Augusto da Silva Filho, Diretor de Assuntos Culturais e Orientação Sindical da CNTC /
MEC. Tomando por base essa diferença distingue três tipos de certificados: 1) certificado de
formação profissional; 2) certificado de competência profissional e 3) certificado de

149
Parecer CNE/CEB n. 17/97 que Estabelece as Diretrizes Operacionais para Educação
Profissional.
150
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Políticas
Públicas para a educação Média e Tecnológica. Brasília, 2004, p. 36.
182

conhecimentos. O primeiro é concedido a quem está apto e qualificado para o ingresso no


mercado, antes da experiência de emprego. Já o certificado de competência profissional
“representa a comprovação da capacidade de desempenhar os níveis requeridos pelas normas
e standard de trabalho em situação real de trabalho”. O certificado de conhecimentos engloba
habilidades, destrezas, conhecimentos e atitudes. Faz-se necessário citar alguns atos
normativos (Leis, Decretos, Portarias, etc) que fazem referência a ideia de certificação
profissional.
No artigo 41, Capítulo III, da Lei Federal n. 9.334 de 10 / 12 / 1996 (LDB); onde
diz que “o conhecimento adquirido na educação profissional, inclusive no trabalho, poderá ser
objeto de avaliação, reconhecimento e certificação para prosseguimento ou conclusão de
estudos”. O artigo enfatiza a certificação de conhecimentos (não de competências) em caráter
de prosseguimento ou conclusão de estudos.
No Decreto Federal n. 2.208, (Revogado no governo Lula da Silva), Artigo 8º § 2º
e Artigo 11 (Decreto n. 5.154, de 23 / 07 / 2004) inclui-se o aproveitamento de estudos ou
disciplinas, conforme os Artigos 8º e 11º:

Artigo 8º § 2º - Poderá haver aproveitamento de estudos de disciplinas ou


módulos cursados em habilitação específica para obtenção de habilitação
diversa [...]
Art. 11 - Os sistemas federal e estadual de ensino implementarão, através de
exames, certificação de competência, para fins de dispensa de disciplinas ou
módulos em cursos de habilitação do ensino técnico.

Tal qual na Lei 9.394 são apontadas no Decreto Federal 2.208 duas situações em
que pode ser utilizada a certificação de competências; para prosseguimento (dispensa de
disciplinas ou módulos) ou conclusão de curso (Habilitação).
O Parecer de n. CNE/CEB 17 / 97 – Estabelece as Diretrizes Operacionais para a
Educação Profissional; trata o tema como “uma importante inovação prevista na legislação: a
possibilidade de avaliação, reconhecimento, aproveitamento e certificação de competências e
conhecimentos adquiridos na escola ou no trabalho”. Além de considerar uma “importante
inovação” no campo da formação ainda coloca que “é preciso superar e o preconceito e o
flagrante desperdício de não valorizar a experiência profissional e o autodidatismo”. É
importante notar que se faz referência aqui à certificação de conhecimentos.
De igual modo o Parecer do CNE / CEB n. 16/99 – que trata das Diretrizes
Curriculares para a Educação Profissional de nível técnico, nele o Francisco Aparecido
183

Cordão, responsável pelo parecer reforça o caráter inovador já atribuído a certificação de


competências.
A Resolução CNE / CEB n. 04/99 – Regulamenta as Diretrizes Curriculares para a
Educação Profissional de Nível Técnico fala de certificação de conhecimentos;

Quanto à certificação de competências, todos os cidadãos poderão, de acordo


com o artigo 41 da LDB, ter seus conhecimentos adquiridos ‘na educação
profissional, inclusive no trabalho’, avaliados, reconhecidos e certificados
para fins de prosseguimento e de conclusão de estudos. Brasília, 05 de
outubro de 1999. Francisco Aparecido Cordão. Relator.

O Decreto nº 5.154 de 23 de julho de 2004, que Regulamenta o § 2º do Art. 36 e


os Arts. 39 a 41 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional, e dá outras providências.

Art. 3º Os cursos e programas de formação inicial e continuada de


trabalhadores, referidos no inciso I do art. 1o, incluídos a capacitação, o
aperfeiçoamento, a especialização e a atualização, em todos os níveis de
escolaridade, poderão ser ofertados segundo itinerários formativos,
objetivando o desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva e social.
§ 1o Para fins do disposto no caput considera-se itinerário formativo o
conjunto de etapas que compõem a organização da educação profissional em
uma determinada área, possibilitando o aproveitamento contínuo e articulado
dos estudos.
§ 2o Os cursos mencionados no caput articular-se-ão, preferencialmente,
com os cursos de educação de jovens e adultos, objetivando a qualificação
para o trabalho e a elevação do nível de escolaridade do trabalhador, o qual,
após a conclusão com aproveitamento dos referidos cursos, fará jus a
certificados de formação inicial ou continuada para o trabalho.

Outros atos normativos fazem referências a ideia de certificação e reconhecimento


de conhecimentos, como é o caso da Lei no 11.091, de 12 de janeiro de 2005: “Art. 3º A
gestão dos cargos do Plano de Carreira observará os seguintes princípios e diretrizes [...]”: “
IV - reconhecimento do saber não instituído resultante da atuação profissional na dinâmica de
ensino, de pesquisa e de extensão [...]”151.
O documento Políticas Públicas para a Educação Profissional elaborado pelo
Ministério da Educação em conjunto com a SEMTEC as competências dizem respeito a uma
“parte dos atributos do trabalhador não incluindo dimensões culturais e cognitivas
fundamentais à avaliação das potencialidades dos sujeitos”. É nesse sentido que o documento

151
Lei que dispõe sobre a estruturação do Plano de Carreira dos Cargos Técnico-Administrativos em Educação,
no âmbito das Instituições Federais de Ensino vinculadas ao Ministério da Educação, e dá outras
providências.
184

prioriza a “certificação de conhecimentos e saberes”, pois ao “trabalhador também pode


interessar certificar certos conhecimentos, saberes e habilidades ou competências para fins de
habilitar-se para o mercado de trabalho”. Atualmente o governo Lula da Silva trabalha na
elaboração de diretrizes para o delineamento de um modelo para se implementar a certificação
de competências laborais.
A implementação dessa proposta possui várias dimensões, dentre estas a
normativa, com consulta pública aos interessados: trabalhadores, sindicatos, empregadores e a
escola, cuja discussão possibilite mecanismo para descrição dos perfis profissionais e as
metodologias a serem utilizadas no processo de certificação. Porém, o impacto dessa política
no campo artístico-musical merece algumas considerações, sobretudo por essa proposta
considerar conhecimentos, saberes e competências apreendidas em contextos de vida, fora do
espaço escolar. É sabido que é significativo o número de profissionais que atuantes no
mercado (regentes de banda, instrumentistas, cantores) não possuem formação acadêmica.
Enquanto mecanismo de reconhecimento será fundamental a adoção dessa política na área,
muito embora isso de modo informal já esteja ocorrendo no âmbito das escolas especializadas
e de modo informal e não regulamentado. Outra coisa a destacar é o fato de que no campo da
música popular o mecanismo que legitima sua prática não é a certificação, mas algum
indicador da performance (Cd demonstrativo, vídeo, indicação de outros músicos, etc.).
185

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

6.1 A FORMIGA SÓ TRABALHA PORQUE NÃO SABE CANTAR: RETOMANDO A


QUESTÃO DO TRABALHO, DA EDUCAÇÃO E DA MÚSICA

Não vou iniciar essas últimas linhas discorrendo sobre a noção da palavra
tripalium instrumento utilizado para torturar, termo que tem origem no latim, e que deu
origem ao termo trabalho (tentado por não fazê-lo anteriormente). Claro que existe uma
contradição nessa declaração, uma vez que mostro disposição, logo de início, para abordar o
assunto nessa perspectiva. Isso é proposital e estou usando de ironia, deixando subtendido que
ao tentar falar sobre a categoria trabalho logo nos deparamos com alguns clichês conceituais.
O trabalho foi, e ainda é bastante discutido, nas mais diferentes gamas de abordagens e nas
várias áreas do conhecimento, incluindo e principalmente a sociologia e a filosofia. A ideia
mais recorrente na cultura ocidental é relacionar inicialmente o trabalho como fardo, castigo
para em seguida situá-lo como realização pessoal. O caminho escolhido de modo a evitar não
ser redundante diante do que já foi escrito sobre esse tema e fugir da ideia de uma simples
revisão bibliográfica, foi aprofundar questões relacionadas ao tema.
Preferi intitular esse tópico com um trecho de uma canção de Raul Seixas e Paulo
Coelho (como vovó já dizia), ela põe em relevo questões inerentes à noção de trabalho na
cultura ocidental. A freqüente indagação feita geralmente aos filhos, ainda criança, pelos
pais: “o que você vai ser quando crescer”, denota muito mais uma perspectiva do vir-a-ser do
indivíduo na direção servil-funcional ao mundo capitalista do que uma aposta na formação
integral do indivíduo enquanto pessoa. O fato de que muitas vezes ao apresentarmos alguém
salientamos prioritariamente sua profissão, também reforça o argumento de que geralmente se
passa a identificar e privilegiar o indivíduo pelo status profissional exercido por ele noâmbito
da sociedade, como de certo modo lembrou Duarte Júnior (1987). Trata-se de uma ordem de
importância que sobrepõe o valor humano ao valor do mercado 152. Diz- se primeiramente que

152
Na visão de Marx o capitalismo transformou significativamente o modo das pessoas se relacionarem entre si e
ainda, consigo mesmas. Homens e mulheres, influenciados pela burguesia, detentora dos meios de produção.
Ela, a burguesia: “onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia calcou aos pés as relações feudais,
patriarcais e idílicas. Todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus ‘superiores
naturais’ ela os despedaçou sem piedade, para só deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio
interesse, as duras exigências do ‘pagamento à vista’. Afogou os fervores sagrados do êxtase religioso, do
entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da
dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistadas com tanto
esforço, pela única e implacável liberdade de comércio. Em uma palavra, em lugar da exploração velada por
ilusões religiosas e políticas, a burguesia colocou uma exploração aberta, cínica, direta e brutal. A burguesia
despojou de sua auréola todas as atividades até então reputadas veneráveis e encaradas com piedoso respeito.
186

alguém é médico, engenheiro ou professor e não, por exemplo, uma pessoa que gosta de
música ama a gastronomia, gosta de crianças, etc. Ora, o ser humano, durante toda sua vida
nascimento, insere-se num vir-a-ser que só cessa com sua não existência. Mas o modo de vida
desfrutado pelo trabalhador no âmbito do sistema capitalista veda o olhar para essa
perspectiva de realização humana e contínua. O próprio viver acaba se vendo reduzido ao
limite das conquistas monetárias. Por cessar o trabalho produtivo-capitalista é comum
acreditar que já não há mais o que fazer; “o que trabalhar” 153. Ao mencionarmos um tipo de
orientação para vida fundada numa visão de mundo exclusivamente produtivo-utilitário ao
modo de produção capitalista, fazemos referência aqui aos contos do fabulista e poeta Jean de
La Fontaine (1621-1695), disseminados ao longo dos séculos. Eles são um contributo sobre a
construção do sentido do trabalho na cultura ocidental. La Fontaine passa a ideia, em pelo
menos dois dos seus contos, de que o trabalho é um tesouro, uma dádiva154. La Cigale et la
Fourmi ( a cigarra e a formiga) é uma fábula direcionada às crianças onde podemos salientar
vários aspectos pertinentes a abordagem exposta até agora sobre a questão do trabalho. La
Fontaine faz uso em seu conto, de insetos animados (com sentimentos humanos) colocados
como exemplos extremos do trabalho (formiga) e do prazer (cigarra). Esta narrativa faz parte
de um conjunto de 124 fábulas distribuídas em seis livros, escritos em março de 1668 e
dedicados por La Fontaine a Dauphin, filho de Louis XIV e de Marie-Thérèse. A fábula diz o
seguinte155:
Tendo a cigarra em cantigas / Folgado todo o verão, / Achou-se em penúria
extrema / Na tormentosa estação. / Não lhe restando migalha / Que trincasse,
a tagarela / Foi valer-se da formiga, / Que morava perto dela. / Rogou-lhe
que lhe emprestasse, / Pois tinha riqueza e brio, / Algum grão com que
manter-se / Té voltar o acesso estio. / ‘Amiga’ - diz a cigarra - / ‘Prometo, à
fé d'animal. / Pagar-vos antes de agosto / Os juros e o principal.’ / A formiga
nunca empresta, / Nunca dá, por isso junta: ‘No verão em que lidavas?’ / A
pedinte ela pergunta. / Responde a outra: ‘eu cantava / Noite e dia, a toda
hora.’ / ‘- Oh! Bravo!’ - torna a formiga - / ‘Cantavas? Pois dança agora!’.

Do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio fez seus servidores assalariados. A burguesia rasgou o
véu de sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-as a simples relações monetárias”
(MARX, K. Manifesto do partido comunista, p. 3).
153
DEMO, Pedro. Trabalho: o sentido da vida.Rio de Janeiro: B. Téc. SENAC, v. 32, n. 1, jan./abr., 2006, p. 9.
154
LA FONTAINE, Jean de. Le laboureur et ses enfants. Disponível em: < http://www.la-fontaine-ch-thierry.net
>. Acesso em: 12/09/2007.
155
“La cigale, ayant chanté / Tout l'été, / Se trouva fort dépourvue / Quand la bise fut venue. / Pas un seul petit
morceau / De mouche ou de vermisseau . / Elle alla crier famine / Chez la fourmi sa voisine, / La priant de lui
prêter / Quelque grain pour subsister / Jusqu'à la saison nouvelle. / Je vous paierai, lui dit-elle, /Avant l'août , foi
d'animal, Intérêt et principal / La fourmi n'est pas prêteuse ; / C'est là son moindre défaut . Que faisiez-vous au temps
chaud ? / Dit-elle à cette emprunteuse. / Nuit et jour à tout venant / Je chantais, ne vous déplaise. / Vous chantiez ? j'en
suis fort aise : / Et bien ! dansez maintenant”. Disponível em: <http://www.la-fontaine-ch-thierry.net >. Acesso em:
12 set. 2007.
187

Diferentemente do conto de fada, como se sabe, a fábula tem sempre ao final, a


exposição de um preceito moral, claramente explícito sem nenhum sentido ocultado, sem
permitir nenhum espaço para a imaginação e fantasia da criança. O desfecho moral é
imperativo e possui caráter amedrontador. A fábula a cigarra e a formiga é esvaziada de
qualquer esperança para quem se dedica ao prazer e negligencia a severidade da vida laboral.
A moral sustentada é que nesse mundo o trabalho é recompensado e a imprudência castigada.
Em certo sentido, a criança é conduzida a assimilar esse preceito sob o medo, sob a iminência
da morte. Ora, para a criança que se inicia na vida sem ainda ter noção da morte, torna-se
aterrorizante a possibilidade de lhe ser retirado àquilo de que mais gosta; sua própria vida. A
fábula coloca a cigarra em condenação pelo próprio prazer, pela escolha deste em detrimento
do trabalho, e, uma vez feita essa escolha, não há como reconsiderar 156. Na fábula a cigarra
implora a formiga por alimento, enquanto esta ironicamente lhe indaga: “no verão que
fazias?", responde a cigarra: "eu cantava, noite e dia, a toda hora." Ao que a formiga replica:
“oh! bravo!”, "cantavas? pois dança agora!". Geralmente é comum às crianças se
identificarem com os protagonistas dos contos infantis. Todavia, nesse caso, ao criar um
vinculo de identificação com a cigarra, a criança é forçada a assimilar (pelo temor da morte)
que quem não trabalha está fadado a ter um fim trágico, muito embora a cigarra não tenha
feito nada que justifique ser punida desse modo. A fábula induz a criança a pensar que é
errado usufruir da vida. Ensina ainda que se tome a formiga como exemplo – um ser que não
demonstra misericórdia pela aflição da cigarra. A fábula “a cigarra e a formiga” não dá
margens para que a criança, pelo exercício do livre pensamento, consiga vislumbrar que
teremos grandes dificuldades na vida se negligenciarmos as responsabilidades impostas pelo
cotidiano. A fábula não dá margens para se aprender com o erro. Seu princípio moral é
extremo e maniqueísta, configurador de uma escolha ambivalente e excludente, do tipo; “ou
isto ou aquilo”, com base em apenas dois princípios antagônicos e irredutíveis. Tal qual a
verdade cristã que nos apresenta um (único) percurso (para a vida eterna) sem possibilidades
de atalhos e sem bifurcações – quando coloca que Jesus é o (único) caminho, a (única)
verdade e a vida, dirá o cristão convicto.
Num texto que também permite reflexões acerca da discussão sobre o trabalho o
escritor brasileiro Monteiro Lobato apresenta outro desfecho para a fábula de La Fontaine,

156
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 44.
188

numa adaptação, dividindo-a em duas partes, respectivamente de nominadas de “a formiga


boa” e “a formiga má”157. Na primeira narra o seguinte:

[Pergunta a formiga a cigarra] ‘E que fez durante o bom tempo, que não
construiu sua casa?’. A pobre cigarra, toda tremendo, respondeu depois de
um acesso de tosse. ‘Eu cantava, bem sabe...’. ‘Ah!...’, exclamou a formiga
recordando-se. ‘Era você então quem cantava nessa árvore enquanto nós
labutávamos para encher as tulhas?’. ‘Isso mesmo, era eu...’. ‘Pois entre,
amiguinha! Nunca poderemos esquecer as boas horas que sua cantoria nos
proporcionou. Aquele chiado nos distraía e aliviava o trabalho. Dizíamos
sempre: que felicidade ter como vizinha tão cantora! Entre, amiga, que aqui
terá cama e mesa durante todo o mau tempo’. A cigarra entrou, sarou da
tosse e voltou a ser a alegre cantora dos dias de sol.

No momento posterior apresenta a outra versão da fábula:

[...] a formiga era uma usuária sem estranhas. Além disso, invejosa. Como
não soubesse cantar, tinha ódio à cigarra por vê-la querida de todos os seres.
‘Que fazia você durante o bom tempo?’. ‘Eu... eu cantava!...’ ‘Cantava? Pois
dance agora, vagabunda!’. E fechou-lhe a porta no nariz: a cigarra ali morreu
entanguidinha; e quando voltou a primavera o mundo apresentava um
aspecto mais triste. É que faltava na música do mundo o som estridente
daquela cigarra morta por causa da avareza da formiga. Mas se a usurária
morresse, quem daria pela falta dela? Os artistas, poetas, pintores, músicos,
são as cigarras da humanidade.

Não se pode deixar de notar que há, em ambas as versões do escritor brasileiro,
uma espécie de reconhecimento pela atividade profissional do músico – é possível fazer essa
inferência, pois a formiga reconhece o valor do canto da cigarra e intenciona recompensá-la
por ter proporcionado alegria e alívio no período em que se dedicava a sua labutação
cotidiana. Além do que a voz do narrador da fábula explica num último desfecho: “Os artistas,
poetas, pintores, músicos, são as cigarras da humanidade”. Na segunda parte, a moral da
fábula se preocupa, igualmente a primeira parte, em enfatizar a importância da música (de um
modo geral do artista, no mundo do trabalho). Na verdade não se trata de um axioma moral,
mas de uma metáfora que valoriza na sua máxima a arte em geral. Ainda é preciso frisar que,
embora na versão da formiga má de Monteiro Lobato a cigarra tenha o mesmo fim trágico da

157
LOBATO, Monteiro. Fábulas. São Paulo: Melhoramento, 1994.
189

versão de La Fontaine, todavia, o narrador nos convida a realizar uma reflexão sobre nossas
relações humanas158.
Ao falar sobre o exercício do métier artístico-musical, um aspecto apresentou-se
como relevante. O trabalho do músico é passível de comportar aspectos singulares (talento,
criatividade, inspiração, originalidade, rebeldia às regras), que, sobretudo diferenciam o
trabalhador da música, por exemplo, do operário fabril, cuja identidade dilui-se na alienação
do trabalho. O músico tem com o exercício de sua profissão uma relação de sacrifício e
satisfação. Satisfação plena pelo que faz; uma espécie de encantamento, alegria contínua.
Sacrifício pelo fato de muitas vezes ignorar quaisquer benefícios monetários em prol de uma
satisfação, sem perceber muitas vezes que o que faz é tido como uma atividade passível de
gerar lucro. Mas se por um lado o exercício profissional do músico congrega aspectos da
subjetividade criativa, por outro, ressalta elementos que o situam no mundo do trabalho, cuja
atividade, tal qual ocorre em outras áreas profissionais, também é possuidora de regras. Nesse
sentido, a atividade musical deixa sua aura sobrenatural e passa a inserir-se num contexto de
relações concretas e complexas referente à divisão do trabalho no mundo capitalista, no que
diz respeito aos meios de produção, às profissões, relações de emprego e carreiras
profissionais 159.
Teci reflexão sobre parte do conjunto lexical presente na reforma do ensino
brasileiro durante o Governo Cardoso, especificamente me ative as noções de competências,
navegabilidade, estética da sensibilidade, mundo do trabalho e flexibilidade esforçando-me
por evidenciar como tal ideologia se materializou nas orientações curriculares destinadas ás
instituições de ensino musical. Embora, não tenha aprofundado a investigação empírica no
que concerne aos resultados obtidos inerentes a implementação da reforma nas instituições de
ensino musical, me arrisco a colocar que o conteúdo ideológico da reforma se esvaziou no
percurso das várias instâncias de implementação, restando para escola discussões já
direcionadas; sobre os aspectos técnicos da operacionalização curricular, ou seja, de como
treinar professores para se executar o já concebido. O que disso ocorre é que, conforme a
análise feita entre a proposta curricular do Curso Técnico de Música da UFRN e a prática
docente, é que: o que se tem previsto é uma coisa e o que se faz em sala de aula é outra
(currículo oculto). Tenho clareza de que o Projeto político pedagógico pode ser definido como
uma carta de intenção, uma declaração de implementação do projeto de ensino defendido pela

158
Conf. MARTHA, Alice Áurea Penteado. Monteiro Lobato e as fábulas: adaptação à brasileira. Cuatrogatos.
Revista de literatura infantil, n° 7, julho-setembro, 2001.
159
MENGER, op. cit., p. 8.
190

instituição. A escola, mais especificamente a sala de aula são espaços concretizadores da


política e do planejamento que se tenta executar. O cotidiano escolar representa o elo final de
uma relação complexa que se monta para dar concretude aos projetos educacionais. Um dos
equívocos da proposta de reforma do governo Cardoso foi o de certa forma impor a formação
por competências. Nesse sentido figuraram programas curriculares de forma atender apenas
uma exigência da política governamental do momento para a educação, como foi o caso da
área musical. Observou-se, nesse sentido, professores perplexos, assistindo a uma reforma que
se deu apenas na instancia legal e basilar, nos vários documentos regulamentadores.
191

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