Professional Documents
Culture Documents
INSTITUTO DE ARTES
DEPARTAMENTO DE MÚSICA
“I FIRED MY MÁSTER”:
a study on the work and the professional formation in the field of music.
CAMPINAS / SP
2008
ZILMAR RODRIGUES DE SOUZA
“I FIRED MY MÁSTER”:
a study on the work and the professional formation in the field of music.
CAMPINAS / SP
2008
ZILMAR RODRIGUES DE SOUZA
COMISSÃO EXAMINADORA1:
___________________________________________________________
PROFº. DR. RICARDO GOLDEMBERG
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS (UNICAMP)
(ORIENTADOR)
__________________________________________________________
PROFº. DR. JOSÉ ROBERTO ZAN
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS (UNICAMP)
(MEMBRO TITULAR INTERNO)
__________________________________________________________
PROFº. DR. ANTONIO RAFAEL CARVALHO DOS SANTOS
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS (UNICAMP)
(MEMBRO TITULAR EXTERNO)
__________________________________________________________
PROFª. DRA. LILIANA ROLFSEN PETRILLI SEGNINI
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS (UNICAMP)
(MEMBRO TITULAR EXTERNO)
__________________________________________________________
PROFª. DRA. APARECIDA NERI DE SOUZA
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS (UNICAMP)
(MEMBRO TITULAR EXTERNO)
1
A Ata da Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de
vida acadêmica do aluno.
Para Maiza, Sarah Esli e Rainer Vítor.
AGRADECIMENTOS
2
São Paulo (SP).
Aos professores e amigos Ronaldo Ferreira de Lima e João Barreto, minha
gratidão pelo incomensurável apoio;
Aos novos amigos que conheci em Campinas: Williams, Tina e Ana, Cândido,
Álvaro, Mônica, Abinoam Júnior, Léo e Paulão, pela amizade e por me permitirem partilhar
de suas agradáveis companhias;
Aos amigos Álvaro e Danilo, por me tirar, várias vezes, dos momentos de
reclusão para junto com eles compartilhar outros momentos também agradáveis, apreciando
sempre um bom vinho e degustando uma boa comida;
À Professora Dra. Dalcy Ribeiro da Cruz, pela carinhosa atenção, incentivo e
sugestões;
Devo um agradecimento especial aos alunos e professores da EMUFRN que mui
gentilmente aceitaram me conceder entrevistas e responder aos questionários, enriquecendo
esta pesquisa com seus valiosos depoimentos. Professores: Raquel Carmona, Ronaldo Lima,
Estevam, Rucker, Danilo, Fidja Siqueira, Mário Primata, Guilherme Rodrigues, Luíza Maria,
Cláudio Galvão (UFRN / História), Maria Clara, Cláudia, João Barreto, Maria Helena, e
Marcus André. Aos alunos Fernando Fernandes, Javandilma, Jaildo, Ana, Edmilson, Luiz,
Kelly e a todos que responderam aos questionários;
Ao amigo e Professor Alexandre Viana, pela amizade e pela incansável disposição
em me ajudar, fornecendo-me dados sobre o Curso Técnico;
Agradeço a Elizabeth Sachi Kanzaki Ribeiro, Bibliotecária responsável pela
Biblioteca Setorial Especializada Pe. Jaime Diniz, da EMUFRN, pela atenção e orientação
quanto às normas técnicas e o atendimento dispensado por sua equipe no que concerne
empréstimos de livros;
Ao Professor Dr. José Willington Germano, à Lisbeth Lima de Oliveira e ao
amigo Manoel Moura por suas significativas contribuições;
Ao amigo e produtor cultural Josenilton Tavares, pela entrevista concedida, apoio
e pelas referências cinematográficas;
Por fim, agradeço aos meus amados filhos Sarah Esli e Rainer Vitor, pela
paciência e carinho que tiveram comigo nas extensas horas em que passei no computador
trabalhando na tese, muitas vezes sacrificando nosso momento de lazer; e a Maiza, esposa
querida, presença constante e amorosa nessa etapa da minha vida, pessoa sem a qual
dificilmente teria realizado esta pesquisa.
RESUMO
The objective of this work was to search to understand the relations established
between professional of music throughout the time and the world of the work, mainly in what
it says respect its formation and professional performance. Intencionando to offer one better
understanding of this analytical picture, I point out study on the exercise of the musical
profession in the scope of the occured changes in the seio of the artistic world, in part
decurrent of new forms of production and elaboration artistic-musical comedy. The research
adopts as referencial for contextual analysis texts of diverse areas of the knowledge, as music,
education, philosophy and sociology. I conclude that the work of the musician always
possesss noticed singularidades nor in other professional areas, as talent, creativity,
inspiration and originalidade, but that, however, today, the exercise of the musical profession
is subject to the norms and rules delineated for the market. In this direction, I evidence related
conceptual aspects to the implemented educational politics from Law 9.394 / 96 - Law of
Guidelines and Bases of National Education (LDB), that they serve of deep cloth of thinking
the relation work-education-music.
1 INTRODUÇÃO............................................................................................. 16
2 O TRABALHO E O EXERCÍCIO DO MÉTIER ARTÍSTICO:
ELEMENTOS PARA SE PENSAR A MÚSICA COMO PROFISSÃO......... 21
2.1 Apontamentos sobre as noções de trabalho na cultura ocidental...................... 21
2.1.1 UMA BREVE INCURSÃO TEÓRICA SOBRE O SENTIDO PRIMEVO
DO TRABALHO NA TRADIÇÃO JUDAICO-CRISTÃ E NA
ANTIGUIDADE CLÁSSICA..................................................................... 21
2.2 O TRABALHO COMO VOCAÇÃO: O CUMPRIMENTO DA VONTADE
DIVINA NO MUNDO PELA PROFISSÃO................................................. 35
2.3 MAGOS, SACERDOTES E PROFETAS: SOBRE A ORIGEM
(RELIGIOSA) DAS PROFISSÕES.............................................................. 38
2.4 A HOMINIZAÇÃO PELO TRABALHO..................................................... 42
3 O TRABALHADOR DA MÚSICA: APORTES TEÓRICOS
INERENTES AO EXERCÍCIO DA PROFISSÃO MUSICAL................. 48
3.1 DEMIURGOS DO OITAVO DIA: O TRABALHO ARTÍSTICO COMO
REALIZAÇÃO CONTEMPLATIVA........................................................... 48
3.2 DA NATUREZA SINGULAR DO TRABALHO MUSICAL NA
SOCIEDADE CAPITALISTA........................................................................ 52
3.3 ASPECTOS CONCEITUAIS DA PRODUÇÃO E DIVISÃO DO
TRABALHO MUSICAL................................................................................. 58
3.4 O MÚSICO E O TRABALHO ASSALARIADO......................................... 69
3.5 RETRATOS DO TRABALHO E EXERCÍCIO DA PROFISSÃO
MUSICAL NO BRASIL............................................................................ 76
3.5.1 A boemia não dá camisa a ninguém: o músico evidenciando a questão do
trabalho.................................................................................................... 76
3.5.2 O sucesso do trabalhador da música............................................................ 91
3.6 O TRABALHADOR DA MÚSICA NAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO:
CORPORAÇÕES, CONSERVATÓRIOS E UNIVERSIDADES................... 97
3.6.1 O músico-professor na universidade: o emprego perfeito?.............................. 105
4 O TRABALHO E O EXERCÍCIO DO MÉTIER ARTÍSTICO:
REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO E PROFISSIONALIZAÇÃO
NO CAMPO DA MÚSICA....................................................................... 110
4.1 MÚSICA DE TRABALHO: CINCO CRÔNICAS COMENTADAS SOBRE
O TRABALHADOR-MÚSICO................................................................... 110
4.1.1 Preâmbulo................................................................................................. 110
4.1.1.1 I Ensaios................................................................................................... 111
4.1.1.1.1 Crônica I – Comentários............................................................................. 113
4.1.1.2 II Na lanchonete....................................................................................... 120
4.1.1.2.1 Crônica II – Comentários................................................................................ 122
4.1.1.3 III Como num jogo de xadrez: o músico como gestor da
incerteza................................................................................................... 128
4.1.1.3.1 Crônica III – Comentários.......................................................................... 131
4.1.1.4 IV Tá ligado?........................................................................................... 137
4.1.1.5 V No ônibus.................................................................................................. 139
4.1.1.5.1 Crônicas IV e V – Comentários.................................................................. 141
5 O MÚSICO COMPETENTE: A FORMAÇÃO PARA O MUNDO DO
TRABALHO............................................................................................ 145
5.1 NOTAS SOBRE A REFORMA DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL NO
BRASIL APÓS A LEI 9.394 / 96 (LDB)..................................................... 145
5.2 EDUCAÇÃO PROFISSIONAL: A FORMAÇÃO PARA A SOCIEDADE
(CIDADÃO EMANCIPADO) VERSUS A FORMAÇÃO PARA O
MERCADO (CIDADÃO PRODUTIVO).................................................... 151
5.3 AS NOVAS ORIENTAÇÕES CURRICULARES PARA OS CURSOS
TÉCNICOS DE MÚSICA NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS
VOLTADAS À EDUCAÇÃO PROFISSIONAL........................................... 156
5.4 COMPETÊNCIAS, ESTÉTICA DA SENSIBILIDADE E
NAVEGABILIDADE: NOVOS ELEMENTOS CURRICULARES PARA
A FORMAÇÃO DO MÚSICO........................................................................ 161
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................... 185
6.1 A FORMIGA SÓ TRABALHA PORQUE NÃO SABE CANTAR:
RETOMANDO A QUESTÃO DO TRABALHO, DA EDUCAÇÃO E DA
MÚSICA.................................................................................................. 185
REFERÊNCIAS....................................................................................... 191
16
1 INTRODUÇÃO
então a um ponto fundamental e transverso nesta pesquisa: pensar o músico como trabalhador.
Para isso, empreendi esforços no sentido de expor aportes teóricos que pudessem levar o leitor
a compreender como se formou a ideia de músico profissional e como ela se modifica ao
longo do tempo.
Partindo da assertiva de que o trabalho representa tanto nas esferas mítico-
imaginárias, quanto no âmbito de esferas do conhecimento que almejam por registrar aspectos
múltiplos da existência com o rigor científico, examinarei o tema do trabalho no contexto da
abordagem da literatura judaico-cristã, para em seguida me ater a múltiplas leituras
sociológicas. Acredito que esses dessemelhantes registros e experiências de saberes
(conhecimento científico-filosófico, mitos, representações religiosas) contribuirão para se
entender a relação do homem com o trabalho na cultura ocidental, eixo temático e
transversalizador deste estudo. Pontuamos aqui que o trabalho (como atividade essencial à
subsistência) possui um papel fundamental no processo de hominização.
A ideia de hominização, posta nesta pesquisa, se refere ao processo cuja ênfase
reside em acentuar os atributos constituintes e distintivos da espécie humana em relação aos
seus ancestrais. Trata-se de “múltiplas relações mútuas, interações, interferências entre os
fatores genéticos, ecológicos, práxicos (a caça), cerebrais, sociais e depois culturais”
(MORIN, 1979, p. 55), vivenciadas pelo homem no decorrer de um extenso período
cronológico. Como esclarece o pensador francês Edgar Morin, o proto-humano (i.e., o homem
primitivo) só se torna em sua plenitude humana, quando o conceito de homem passa a
comportar “uma dupla entrada: uma entrada biofísica e uma entrada psico-sócio-cultural, uma
remetendo à outra” (MORIN, 2002, p. 34). Em linhas gerais, está-se aqui falando de um
processo de desenvolvimento humano cuja complexificação é multidimensional e se apóia em
um princípio auto-organizador (MORIN, 1979). Nesse contexto, a inteligência, a linguagem,
o fabrico e o manuseio de instrumentos pelo homem, bem como a instituição de uma vida
social, são características desse processo que se chama hominização na qual o trabalho tem
papel central.
A discussão sobre o trabalho terá como objetivo direcionar a percepção sobre
alguns aspectos conceituais que servem de pano de fundo para se pensar o exercício
profissional da música no âmbito das relações produtivas. No que concerne à relação
trabalho-educação-música, a pesquisa toma como referencial analítico as políticas
educacionais implementadas a partir da Lei 9.394 / 96 – Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB), que orientaram e definiram os programas dos cursos da área
18
orientações curriculares aos sistemas de ensino. A questão central do texto é colocar como a
área artístico-musical se insere nesse contexto. Reflito ainda sobre o ideal de formação
expresso nos documentos governamentais para a formação do profissional da música e sobre
os referenciais de ensino, utilizados na construção de programas curriculares para educação
profissional na área da música.
21
2.1.1 Uma breve incursão teórica sobre o sentido primevo do trabalho na tradição judaico-
cristã e na antiguidade clássica
A primeira reação de Adão e Eva, após terem comido do fruto proibido, foi
enxergar que estavam nus, surgindo daí um sentimento de vergonha; de pudor4. É o pudor que
sugere, antes de tudo, a cisão do homem do seu ser natural. A necessidade do vestuário advém
desse sentimento de pudor e também do despertar de uma (nova) consciência. O sentimento
humano do pejo demarca um momento que sucede a inocência do primeiro casal. No que o
texto bíblico sugere, o homem não devia conhecer, mas manter-se num estado de inocência.
Portanto, o ato de desobediência do homem e de sua companheira corrobora para o
desvelamento de sua condição humana. Porém, após a infração cometida, o impronunciável
sentencia: “[...] maldita é a terra por tua causa; em fadiga comerás dela todos os dias da tua
vida [...] Do suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, porque dela foste
tomado; porquanto és pó, e ao pó tornarás” (PEIXOTO, [19--?c], cap. 3, vers. 17-19, p. 7).
Yahvéh já havia dito a Adão para não comer da “árvore do conhecimento do bem e do mal”,
4
A desobediência do homem o condenou a ser livre. A faculdade de pensar e a necessidade de se revoltar
(liberdade) combinadas na história irão materializar tudo o que constitui a humanidade (e a animalidade) dos
homens (BAKUNIN, 2000). Assim, pode-se afirmar que foi a necessidade material, pela dor no trabalho, que
revelou o ser humano em sua essência. É Lúcifer, na forma de serpente, o anjo de luz revoltado, que faz Adão
desobedecer ao Eterno, abrindo-lhe os olhos, fazendo-o envergonhar-se de si. Ele, Lúcifer, o emancipa,
imprimindo no corpo do homem a marca do livre arbítrio. O escritor Milan Kundera (1929) coloca no livro A
insustentável leveza do ser que “não existe nada mais miserável do que um corpo nu sentado sobre a
embocadura aberta de um cano de esgoto”. Penso que essa afirmação deva-se ao fato de que ao se lidar com as
necessidades materiais (fisiológicas) do corpo, o homem lembra sua condição humana (e animal) de alma
vivente destituída do paraíso, de simples mortal. Nesse sentido, a arquitetura e o espaço destinados à construção
de recintos no âmbito residencial, com vaso sanitário ou escavação no solo para dejeções, demonstram a
maneira como em cada época se lida com a vergonha pela excretione. É, pois, nesse sentido que o arquiteto
sempre fez o possível para que o corpo esquecesse sua miséria e para que o homem ignorasse o que acontece
“com os dejetos de suas entranhas quando a água da caixa os leva gorgolejando cano abaixo” (KUNDERA,
1983, p. 159). Pode-se destacar que as privadas foram primeiramente construídas isoladas dos outros espaços
residenciais, inicialmente pela noção de higienização dos espaços e do ar, mas, também, pela ambivalência
cristã da noção de limpo/sujo, pecado/purificação do corpo e da alma.
23
porque no dia em que comesse, certamente morreria (PEIXOTO, [19--?b], cap. 2, vers. 17, p.
6). Na interpretação literal que muitos religiosos fazem desse texto, todos os homens e
mulheres tornam-se herdeiros, em decorrência da desobediência de Adão, do pecado e da
morte (para o cristão, em duplo sentido; morte material e espiritual). Contudo, primeiro
Yahvéh confisca a estadia eterna do homem no Éden, em seguida, devolve-lhe uma vida, mas
uma vida no trabalho, envolta por uma morte diferida, ou seja, constantemente adiada. Está aí,
na narrativa bíblica, o sentido primevo, em seu modo mais genérico e abstrato, das atividades
laborais do homem. O Antigo Testamento nos fornece ricas narrativas e reflexões acerca da
visão do trabalho na antiguidade bíblica. Salomão, rei de Israel que sucedeu Davi,
considerava o trabalho como uma atividade fatigante, cujos frutos eram passageiros e
efêmeros, pois reconhecia que ao morrer o homem nada levaria desse mundo, logo, tudo
parecia sem sentido e inútil. As realizações e riquezas, resultados do trabalho humano,
mostravam-se insignificantes, diante da efemeridade e transitoriedade da vida, tudo não
passava de névoa-nada – expressão utilizada na tradução direta do hebraico que o poeta
paulista Haroldo de Campos (1929-2003) fez do livro Eclesiastes para o termo vaidade
(CAMPOS, 2004) Daí a angústia de Qohélet (O-que-Sabe)5 ao indagar em tom pessimista:
“pois, que alcança o homem com todo o seu trabalho e com a fadiga em que ele anda
trabalhando debaixo do sol?” (PEIXOTO, [19--?l], cap. 2, vers. 22, p. 494), muito embora
reconheça, também, que não há como o homem fugir do fardo divino. Diz ele:
Tenho visto o trabalho penoso que Deus deu aos filhos dos homens para nele
se exercitar. Tudo fez formoso em seu tempo; também pôs na mente do
homem a ideia da eternidade, se bem que este não possa descobrir a obra que
Deus fez desde o princípio até o fim. Sei que não há coisa melhor para eles
do que se regozijarem e fazerem o bem enquanto viverem (PEIXOTO, [19--
?o], cap. 3, vers. 10-12, p. 495).
5
Tradução que o poeta Haroldo de Campos dá à palavra Pregador, ou Colecionador de
provérbios, em referência ao Rei, e primeiro filósofo Judeu, Salomão.
24
Hades, deus dos mortos e Ares, deus da guerra. Ao morrer, Sísifo foi sentenciado por Zeus a
rolar um rochedo com suas mãos até a cista de uma montanha. Ocorre que sempre que atingia
a extremidade, para o seu desapontamento e desespero, a pedra sempre descia montanha
abaixo até o sopé da montanha. Talvez, a condenação mais cruel imposta a Sísifo consistisse
na sensação (eterna) de algo que nunca era (nem seria) concretizado. Sísifo também foi
denominado como sendo o trabalhador inútil dos infernos. Daí ser atribuído a toda e
qualquer atividade rotineira e cansativa, que empreenda esforços ditos inúteis, como sendo o
trabalho de Sísifo. As rotineiras atividades do trabalho doméstico, necessárias à nossa
subsistência, se encaixam perfeitamente nessa ideia. São atividades que nunca cessam, como
por exemplo limpeza do ambiente, cuidados familiares com filhos, o preparo de alimentos,
lavagem da louça e outras coisas necessárias para manter as pessoas e o ambiente em que
vivem. De certo modo, ocupamo-nos em nada completar, como Sísifo. Ao dar conta dos
afazeres domésticos do dia que passou, ao colocar tudo em ordem, por algum instante temos
uma fugaz sensação de tarefa concluída. Se esse mito possui uma tragicidade, é porque o
protagonista em algum momento torna-se consciente de sua condição, pondera Camus (2004).
Após a frustração de atingir o cume da montanha e se ver esvaziado da esperança que tinha
por concretizar finalmente seu trabalho, é no retorno ao início do sopé da montanha que a
pena de Sísifo adquire maior pesar: na consciência sobre sua condição miserável e impotente
perante o destino a ele imputado. A punição imposta por Zeus permite pensarmos que por
mais que haja semelhança entre homens e deuses, os primeiros não possuem a liberdade dos
últimos. Os deuses não precisam trabalhar; os homens precisam. Por isso o trabalho na
antiguidade clássica é desprezado. O homem livre (do trabalho) eleva-se à condição dos
deuses, como ser contemplativo. Zeus confisca o direito ao descanso eterno (morte) de Sísifo,
condenando-o ao trabalho. Num certo sentido metafórico, “quem trabalha, continua sendo
aquele que não foi condenado à morte, aquele a quem se recusou essa honra”
(BAUDRILLARD, 1996, p. 56). Zeus explora Sísifo até a morte? Não. O castigo maior reside
na recusa à morte. Sísifo é condenado (paradoxalmente) à vida no trabalho. Nesse sentido, a
liberdade dos mortais se encerra num caminho já traçado, finito, restando, pois, aos homens,
concentrar-se nas ocupações do dia-a-dia, considerando cada momento como sendo precioso e
o único possível de ser experimentado, usando de criatividade para atenuar a monotonia da
travessia (existencial)6. Talvez assim pensasse o Rei Salomão ao afirmar no livro do
6
Não há como deixar de mencionar a célebre frase do escritor Guimarães Rosa: “o real não está na saída nem na
chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (ROSA, 1994, p. 85).
25
Eclesiastes7: “eis aqui o que eu vi uma boa e bela coisa: alguém comer e beber, e gozar cada
um do bem de todo o seu trabalho, com que se afadigam debaixo do sol, todos os dias da vida
que Deus lhe deu; pois esse é o seu quinhão” (PEIXOTO, [19--?q], cap. 5, vers. 18, p. 497).
Basta ao homem, então, contentar-se e aproveitar como puder seu destino. Se Salomão, em
seu poema-sapiencial hebraico, expressa um regozijo, este não é pelo trabalho em si, mas
pelo que advém do próprio esforço humano. O trabalho é penoso, isso não é negado, porém
“não há nada melhor para o homem do que comer e beber, e fazer com que sua alma goze do
bem do seu trabalho [...]” (PEIXOTO, [19--?m], cap. 2, vers. 24, p. 495). Confirmando de
modo imperativo suas ideias, indaga o Rei aos homens: “pois quem pode comer, ou quem
pode gozar melhor do que eu?” (PEIXOTO, [19--?n], cap. 2, vers. 25, p. 495). De fato,
Salomão segundo a bíblia era detentor de tudo aquilo que os homens mais perseguem em
vida: uma riqueza descomunal, poder, uma sabedoria incomum e muitas mulheres
(“setecentas mulheres, princesas, e trezentas concubinas”) (PEIXOTO, [19--?x], cap. 11, vers.
3, p. 278). Maior do que a dor pela labuta é, em Qohélet, a consciência da efemeridade de sua
vida, que embora repleta de conquistas e feitos, passará um dia, e com ela todo seu vão
trabalho. O que sente na verdade é angústia; aflição intensa por reconhecer que um dia não
mais existirá. Sofre pela incerteza do além-túmulo, pela não existência. Todavia, esse
sentimento é algo passageiro em Salomão, e notadamente pouco comum em seus
contemporâneos, pois, como bem lembrou Arendt (2001), na perspectiva histórico-temporal
do Antigo Testamento, o homem tinha a vida como sagrada, uma dádiva; ele sentia-se feliz e
satisfeito por estar vivo. O anelo por um novo paraíso, anseio ao reino dos céus, livres da pena
do trabalho é uma ideia concreta, da vida em um plano mundano materializado, trata-se, pois,
de um reino terreno e não espiritual. Ao contrário do que se nota na era apostólica do Novo
Testamento, o indivíduo idealizava suas conquistas no plano mundano, na projeção e percurso
de uma vida farta em anos8.
A alegria de Qohélet pelo trabalho ressalte-se mais uma vez, advém da estreita
relação sentida entre o esforço (trabalho realizado) e a recompensa. Ou seja, ele exulta não o
trabalho em si, mas o que ele é capaz de proporcionar. Sensação similar à que irá ter o
trabalhador moderno no âmbito da cultura capitalista ocidental, quando o valor monetário
(mas só mediante altos salários) suplanta a fatigante atividade laboral, o que nos leva a
destacar conceitualmente a diferença entre as noções de fruto e recompensa. O fruto do
7
A autoria desse livro, escrito cerca de 971 a 931 a.C, é atribuída a Salomão, muito embora
não se possa afirmar ao certo.
8
Segundo a Bíblia, Matusalém, filho de Enoque, viveu 969 anos (PEIXOTO, [19--?f], cap. 5, vers. 27, p. 8). De
um modo geral, essa idéia de morte com “farturas de dias”, é colocada com freqüência no Antigo Testamento.
26
9
Tal qual a renúncia exigida pelo cristianismo ao homem dos prazeres terrenos. Conhecida é passagem do Novo
testamento em que o apóstolo Pedro, questiona a Jesus: “[...] Eis que nós deixamos tudo, e te seguimos; que
recompensa, pois, teremos nós? Ao que lhe disse Jesus: Em verdade vos digo a vós que me seguistes, que na
regeneração, quando o Filho do homem se assentar no trono da sua glória, sentar-vos-eis também vós sobre
doze tronos, para julgar as doze tribos de Israel” (PEIXOTO, [19--?bb], cap. 19, vers. 27-28, p. 708). A
renúncia, a existência terrena e ao gozo de suas benesses, dá uma recompensa ao cristão: a vida eterna ao lado
do próprio Jesus.
10
A respeito dessa inferência Morin (2002, p. 290) coloca que “o ser humano comporta, ao
mesmo tempo, a consciência e a inconsciência de sua finitude; sente-se invadido pela
experiência religiosa, poética e erótica do êxtase”.
27
Vai, pois, come com alegria o teu pão e bebe o teu vinho com coração
contente [...] Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias da tua vida
vã; porque este é o teu quinhão nesta vida, e do teu trabalho, que tu fazes
debaixo do sol [...] Tudo quando viera mão para fazer, faze-o conforme tuas
forças; porque no Seol, para onde tu vais, não há obra nem projeto, nem
conhecimento nem sabedoria alguma (PEIXOTO, [19--?t], cap. 9, vers. 7-10,
p. 498-499).
A máxima parece ser: comer, beber e gozar a vida com a mulher amada (carpe
diem), nessa vida vã (nessa vida-névoa-nada), mas sem esquecer, no entanto, que Yahvéh trará
juízo a tudo quanto o homem realizar embaixo do sol, durante sua fugaz existência
(PEIXOTO, [19--?p], cap. 3, vers. 11-12, p. 495), (PEIXOTO, [19--?r], cap. 5, vers. 18-20, p.
497), (PEIXOTO, [19--?s], cap. 8, vers. 7-10, p. 498-499), (PEIXOTO, [19--?v], cap. 11,
vers. 7-10, p. 499-500).
O reino de Yahvéh, na concepção judaica, possui uma concretude que se
materializa no gozo das benesses da vida, no plano terreno. Já na configuração ideológica
presente no Novo Testamento, o homem almeja em deixar esta vida para usufruto de outra ao
lado de Deus. De tal modo, o reino dos céus se localiza numa dimensão espiritual, distanciada
do mundo, no regozijo e usufruto de bens espirituais ao lado da santa trindade (pai, filho e
espírito santo). O trabalho ganha nesse contexto a conotação de subsistência, de faina
mundana. Nos tempos apostólico e neo-testamentário, os cristãos guardavam um significativo
grau de indiferença às atividades laborais mundanas, seguramente porque a partir de então o
plano mundano se apresenta insignificante, secundário, face às promessas da segunda vinda
de Cristo e da promessa de deleite eterno na morada celestial junto ao Salvador. No mito
mosaico da queda do homem, está resguardada a base da doutrina (da fé) cristã, ou seja, o ato
pecaminoso (pecado capital) e a necessidade de uma ação remediadora, e Jesus Cristo (para o
cristão) é o responsável por restaurar a condição decaída do homem.
Numa crítica à visão de mundo construída pelo cristianismo, quanto à sua
renuncia à vida terrena, mundana, o compositor Wagner (1997, p. 49, grifos do autor)
observa: “do homem apenas se espera fé, isto é, que se reconheça miserável e que renuncie a
toda a actividade pessoal cujo objetivo seja o de escapar a essa miséria da qual só há de ser
libertado pela imerecida graça divina [sic]”. Está aí, caracterizada pelo músico alemão, toda a
essência doutrinária do cristianismo: a renúncia da vida (laboral) em decorrência ao anseio
pelos céus. Diríamos que o trabalho na esfera da religiosidade cristã é uma “necessidade
infeliz”, cuja fatalidade deveria “ser reparada, ao mesmo tempo que o próprio pecado, de
geração em geração” (ATLAN, 2000, p. 19).
28
Por isso vos digo: Não estejais ansiosos quanto à vossa vida, pelo que haveis
de comer, ou pelo que haveis de beber; nem, quanto ao vosso corpo, pelo
que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do
que o vestuário? Olhai para as aves do céu, que não semeiam, nem ceifam,
nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não valeis vós
muito mais do que elas? Ora, qual de vós, por mais ansioso que esteja, pode
acrescentar um côvado à sua estatura? E pelo que haveis de vestir, por que
andais ansiosos? Olhai para os lírios do campo, como crescem; não
trabalham nem fiam; contudo vos digo que nem mesmo Salomão em toda a
sua glória se vestiu como um deles. Pois, se Deus assim veste a erva do
campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós,
homens de pouca fé? Portanto, não vos inquieteis, dizendo: Que havemos de
comer? ou: Que havemos de beber? ou: Com que nos havemos de vestir?
(Pois a todas estas coisas os gentios procuram.) Porque vosso Pai celestial
sabe que precisais de tudo isso. Mas buscai primeiro o seu reino e a sua
justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas. Não vos inquieteis, pois,
pelo dia de amanhã; porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a
cada dia o seu mal (PEIXOTO, [19--?z], cap. 6, vers. 25-34, p. 695).
A mensagem de Cristo é incisiva; o acesso ao reino dos céus requer uma renúncia
terrena, de tudo que se relaciona ao mundano, sobretudo o trabalho 11. Ora, sabe-se que dos
doze discípulos de Cristo, Pedro, André, Tiago e João eram pescadores, e foram convidados a
renunciar aos seus afazeres para seguir Jesus. Disse certa vez o nazareno aos primeiros:
“vinde após mim, e eu vos farei pescadores de homens” (PEIXOTO, [19--?y], cap. 4, vers. 19,
11
Conhecida é a passagem bíblica do encontro de Cristo com um jovem rico:
E eis que se aproximou dele um jovem, e lhe disse: Mestre, que bem farei para
conseguir a vida eterna? Respondeu-lhe ele: Por que me perguntas sobre o que é
bom? Um só é bom; mas se é que queres entrar na vida, guarda os mandamentos.
Perguntou-lhe ele: Quais? Respondeu Jesus: Não matarás; não adulterarás; não
furtarás; não dirás falso testemunho; honra a teu pai e a tua mãe; e amarás o teu
próximo como a ti mesmo. Disse-lhe o jovem: Tudo isso tenho guardado; que me
falta ainda? Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o
aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, segue-me. Mas o jovem, ouvindo essa
palavra, retirou-se triste; porque possuía muitos bens. Disse então Jesus aos seus
discípulos: Em verdade vos digo que um rico dificilmente entrará no reino dos céus.
E outra vez vos digo que é mais fácil um camelo passar pelo fundo duma agulha, do
que entrar um rico no reino de Deus (PEIXOTO, [19--?cc], cap. 19, vers. 16-25, p.
708).
Na verdade o que se condena não são os bens materiais, mas o apego a eles, pois tanto o trabalho quanto seus
frutos são indiferentes para quem acredita estar numa breve passagem no plano terreno e predestinados ao
paraíso celeste.
29
p. 693). Pode-se citar ainda o caso de Mateus, um dos apóstolos, publicano, que trabalhava
numa coletoria como cobrador de rendimentos públicos, ele também foi convidado a
renunciar à faina mundana (PEIXOTO, [19--?aa], cap. 10, vers. 3, p. 698). O próprio Saulo de
Tarso (Paulo), aquele que deu voz doutrinária ao Cristo no ocidente, torna-se indiferente às
coisas mundanas logo após sua conversão. Cidadão romano (ao que tudo indica nos textos
bíblicos pessoa de grande influência política), fazedor de tendas, renunciou a tudo para tornar-
se um apóstolo seguidor do Cristo, embora tenha continuado a fazer tendas para cobrir aos
custos de sua obrigação missionária e cristã (PEIXOTO, [19--?kk], cap. 23, p. 815-816),
(PEIXOTO, [19--?ll], cap. 26, vers. 10, p. 817), (PEIXOTO, [19--?oo], cap. 3, vers. 4-7, p.
864-865). Nesse sentido, defende o trabalho, mas, principalmente aquele cujos resultados
objetivem o sustento do discípulo missionário de Cristo. Está aqui um exemplo do trabalho
não condenado e apreciado pelos cristãos primitivos: aquele que é servil aos objetivos dos
ideais cristãos. Ainda na primeira epístola aos Tessalonicenses, Paulo tendo conhecimento
que seus irmãos estavam desperdiçando tempo, exorta-os para que procedessem como ele,
trabalhando12 para o próprio sustento:
Porque vós mesmos sabeis como deveis imitar-nos, pois que não nos portamos
desordenadamente entre vós, nem comemos de graça o pão de ninguém, antes com
labor e fadiga trabalhávamos noite e dia para não sermos pesados a nenhum de vós.
Não porque não tivéssemos direito, mas para vos dar nós mesmos exemplo, para nos
imitardes. Porque, quando ainda estávamos convosco, isto vos mandamos: se
alguém não quer trabalhar, também não coma. Porquanto ouvimos que alguns entre
vós andam desordenadamente, não trabalhando, antes intrometendo-se na vida
alheia [...] (PEIXOTO, [19--?ss], cap. 3, vers. 7-11, p. 873).
12
A conhecida frase do apóstolo Paulo “isto vos mandamos: se alguém não quer trabalhar, também não coma”
(PEIXOTO, [19--?rr], cap. 3, vers. 10, p. 873) é interpretada por Batagglia (1958, p. 71) como “quem não tem
riquezas pessoais deve trabalhar para não ser pesado a ninguém. É a independência o que está no coração de
São Paulo, não a relação direta entre trabalho e subsistência. Seu problema é realmente moral, não político e
econômico”. A questão é ética, mas também de caridade, como recurso providencial, de auxílio ao próximo:
Diz Paulo na epístola aos efésios: “Aquele que furtava, não furte mais; antes trabalhe, fazendo com as mãos o
que é bom, para que tenha o que repartir com o que tem necessidade” (PEIXOTO, [19--?nn], cap. 4, vers. 28,
p. 860).
30
genro de Marx13 fez uma inferência um tanto apressada, pois Jesus afirma categoricamente:
“meu pai trabalha até agora, e eu trabalho também” (PEIXOTO, [19--?ii], cap. 5, vers. 17, p.
775). Para ilustrar essa disposição ao trabalho (para Deus) pode-se ainda citar o fato de que
Jesus contravém aos mandamentos judaicos, infringindo o dia de descanso religioso dos
judeus, dia em que não é lícito trabalhar, em referência ao sétimo dia em que Deus descansou
após criar o mundo. No shabbath, ele é pego trabalhando, ou seja, pregando sua doutrina e
realizando milagres, conforme se encontra registrado no texto de São Lucas:
É certo que o trabalho está relacionado aqui com a missão proselitista messiânica
de Jesus, de esforço empreendido na pregação do seu evangelho para o mundo, em prol de
converter pessoas dispostas a pleitear o reino dos céus. Outro exemplo de trabalho encontrado
no Novo Testamento está na Parábola dos dez talentos, na qual Jesus narra a história de um
servo que é dispensado do emprego por não ter conseguido fazer com que determinada
quantia em dinheiro rendesse. Diz o mestre nazareno em alegoria:
13
Paul Lafargue casou-se em 1868, com a filha mais nova de Marx.
31
Há aí, na Parábola dos dez talentos14 a exposição dos elementos fudantes das
relações econômicas no âmbito da sociedade moderna ocidental: proprietário, trabalhador
(servo), moeda e lucro 15. Muito embora a sentença moral posta nessa narração alegórica seja a
de que; algum dia, todos terão de prestar contas dos talentos dados por Yahvéh. Portanto, o
trabalho é utilizado aqui de forma simbólica para indicar que o compromisso que se tem com
Deus é similar ao que tem o servo com o patrão.
Retornando ao trabalho no contexto do mito da criação é preciso que se esclareça
uma coisa: na verdade o castigo imposto a Adão não foi exatamente o labor, como também a
sanção aplicada a Eva não foi o parto. A esta Yahvéh além de impor-lhe eterna submissão ao
homem – instituição do modelo patriarcal – dar-lhe também como punição a dor no parto. A
sanção aplicada ao primeiro homem, também não reside na atividade laboral, pois o Absoluto
já havia dito a eles para cuidarem do jardim do Éden e prolificar. A esse respeito coloca o
filósofo John Locke (1632-1704):
Quando deu o mundo em comum para toda a humanidade, Deus ordenou também
que o homem trabalhasse, e a penúria de sua condição assim o exigia. Deus e sua razão
ordenaram-lhe que dominasse a Terra, isto é, que a melhorasse para benefício da vida, e que,
dessa forma, depusesse sobre ela algo que lhe pertencesse, o seu trabalho (LOCKE, 1998).
No pensamento de Locke (1998) o trabalho expressa a contribuição humana na
confecção de utilidades ao próprio mundo do homem. Numa menção bíblica, o trabalho é
inerente ao homem, em estado perfeito. Mas o cansaço decorrente das atividades laborais é do
homem em estado decaído (LIMA, 1956). A rigor dos textos bíblicos, Yahvéh apenas tornou
doloroso o labor e o nascimento, como bem lembrou Arendt (2001, p. 119), ou seja, o
“Impronunciável” perpetuou a ideia de trabalho no sofrimento e procriação na dor. Cabe citar,
ainda nesse contexto da construção simbólica do trabalho, o mito grego que narra a história de
Prometeu e Pandora, narrado pelo filósofo grego Hesíodo. Prometeu filho de Jápeto, um dos
doze titãs que enfrentaram Zeus e os deuses no Olimpo, na busca de ascensão ao poder, em
sua ousadia rouba o fogo (divino) de Zeus para dar aos homens. Ora, com o fogo o homem
poderia se diferenciar dos outros animais. Mediante essa descoberta, poderiam agora cozinhar
os próprios alimentos, se beneficiar pela luminosidade à noite, se aquecerem no frio, bem
como confeccionar instrumentos úteis para o trabalho e a guerra. O homem teve assim, acesso
a um conhecimento que apenas os deuses dispunham. Enfurecido Zeus não toma o fogo de
14
Moeda da Antiguidade grego-romana (tálanton).
15
A intenção aqui é, longe de identificar alguma espécie de espírito pré-capitalista, salientar que o impulso
humano por ganhar dinheiro e gerar lucro deu-se em várias épocas, sem distinção de classes e culturas (WEBER,
2004).
32
volta, mas penaliza Prometeu amarrando-o em um rochedo, onde por toda a eternidade as
aves de rapina punham-se a devorar seu fígado. Porém, aos homens para imputar-lhes o
castigo, utiliza-se de um sutil estratagema. Presenteia Epimeteu (irmão de Prometeu) com
Pandora, mulher criada por Zeus e dotada de atributos encantadores por outros deuses do
Olimpo. Hefestos, deus coxo, dar-lhe forma semelhante às deusas imortais, Atena dá-lhe
habilidades em trabalhos manuais, Afrodite colabora oferecendo-lhe beleza. Epimeteu deixa-
se seduzir pela beleza e o encanto de Pandora, e a toma por esposa. Ocorre que, juntamente
com a beleza e os dons, Zeus deu a Pandora um jarro, a caixa de Pandora, repleta de males.
Movida pela curiosidade Pandora abre o jarro, cujos males são dispersos perante os homens e
os filhos dos homens, concretizando assim a vingança de Zeus. Do jarro surgiram todas as
desgraças, moléstias, pestes, guerras e, sobretudo, a morte. Tem-se assim, a origem de todos
os males no mundo. Antes disso, os homens viviam sobre a terra “a recato dos males, dos
difíceis trabalhos, das terríveis doenças” (HESÍODO, 1991, p.29). Com esse presente
ambíguo, dado por Zeus, surge a necessidade do trabalho, em conseqüência do pecado de
Prometeu. Tal qual ocorre com o homem no mito de Pandora, Adão vivia confortavelmente
nas terras do jardim do Éden, o que não significa que não iria trabalhar. Há aqui uma distinção
entre trabalho (érgon) e trabalho árduo (ponos), notados também no “Mito de Prometeu e
Pandora” (LAFER, 1991, p. 63). Sobre esse aspecto duplo da noção de trabalho, nos
deteremos mais adiante. Tanto no Mito de Prometeu e Pandora, quanto na tradição judaico-
cristã, o ato de infração perante os deuses, descrito em metáfora, proporciona outra condição
de vida aos homens, cujo ponto de confluência entre esses mitos reside no fato declarado de
legar ao trabalho a ideia de pena. O ato de inobediência do homem condenou-o ao árduo
labor. Nesse sentido, pode-se afirmar que foi o (árduo) labor, mediante a dor da labuta, que
revelou o ser instintivo, desvelando num só ato a humanidade do homem. O mito da queda de
Adão aponta para uma cisão. O homem abandona seu estado de ser-da-natureza e transforma-
se num ser espiritual16. A natureza é para ele agora o ponto inicial de sua existência; deve
transformá-la, satisfazendo suas necessidades mediante o fabrico de objetos.
16
Espírito (finito) aqui entendido como alma ou intelecto, conceito estrito, de emprego
filosófico utilizado por Descarte e Hegel; “a substância na qual reside o pensamento”
(ABBAGNANO, 1999, p. 354). O homem possui uma existência exteriorizada; é um ser
animal pertencente a natureza, subordinado a dominação de suas leis. Todavia, ele também é
um ser espiritual. Mesmo sendo apenas corpo é preciso lembrar que perpassa na existência
desse corpo sentimentos como amor, amizade, paixão, desejo, tristeza, etc, são, sim, relações
físicas que não justificam, no intuito de compreensão dos fenômenos a ambivalência
corpo/alma, tal qual sempre colocou o platonismo e o cristianismo. Conceber-se homem, na
dimensão por ora abordada é procurar em si, não noutro lugar as razões do sentido de sua
33
Então disse o SENHOR Deus: Eis que o homem é como um de nós, sabendo
o bem e o mal; ora, para que não estenda a sua mão, e tome também da
árvore da vida, e coma e viva eternamente, o SENHOR Deus, pois, o lançou
fora do jardim do Éden, para lavrar a terra de que fora tomado (PEIXOTO,
[19--?d], cap. 3, vers. 22, p. 7).
isto é, todo o trabalho. Tem-se aqui, com o advento da outra vida, o início de uma espécie de
aposentadoria compulsória e eterna, mas que enfim proporcionada pela merecida graça divina,
desejada, alcançada e usufruída ao lado do eterno. Note-se que para o trabalhador envolto na
mais-valia absoluta – aquele tipo de trabalho fastidioso e fabril, cujo produto é apropriado
pelo empresário, exceto o insuficiente salário pago pelas horas despendidas – a auto-
realização se dá fora da vida laboral. O sentido da vida se situa à margem do trabalho, no
pouco tempo que lhe resta, nos momentos de lazer e entretenimento, num momento não-
produtivo. O tempo de lazer serve principalmente como fuga do trabalho, alívio e
revigoramento de suas forças. Todavia, paradoxalmente ao se aposentar o indivíduo vê sua
vida esvaziar-se de sentido, precisamente por enxerga-se como pessoa improdutiva, inútil aos
interesses do mundo produtivo capitalista. É claro que a própria de ideia de precarização do
trabalho (trabalho atípico, terceirização, contratos temporários, forma de prestação de serviços
diferente do modelo convencional), na impossibilidade do acesso ao trabalho para sustento de
suas necessidades, o indivíduo, mais precisamente a classe-que-vive-do-trabalho, como
denominou Antunes (2005), passa a enxergar a exploração capitalista um flagelo menor que o
desemprego. O proletário, como o cristão, perde sua vida para ganhá-la (GUSDORF, 1981).
Ressaltando-se que a visão cristã aponta um alento para o sofrido homem-cristão- trabalhador.
Embora, metaforicamente falando, o cristão perca sua vida (ao renunciar os projetos terrenos),
terá lugar garantido no reino dos céus, conforme esperançosamente aponta os apóstolos Paulo,
Marcos e João: “[...] sim, na verdade, tenho também como perda todas as coisas pela
excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; pelo qual sofri a perda de todas
estas coisas, e as considero como refugo, para que possa ganhar a Cristo” (PEIXOTO, [19--
?pp], cap. 3, vers. 8, p. 865); “Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a
sua vida? ” (PEIXOTO, [19--?pp], cap. 8, vers. 36 p. 865); “[...] quem ama a sua vida, perdê-
la-á; e quem neste mundo odeia a sua vida, guardá-la-á para a vida eterna ” (PEIXOTO, [19--
?jj], cap. 12, vers. 25, p. 784).
A felicidade do cristão não reside no trabalho e sim no descanso (eterno). A
própria existência é tida como uma mera e efêmera passagem do mundo miserável, para o
eterno lar celestial. Nessa expectativa (da fé cristã), reside a beatitude, ou seja, a bem-
aventurança do cristão. Já na Grécia antiga, de um modo geral, o trabalho é apresentado como
penoso. Mas é necessário, além de proporcionar resultados. As glórias sempre são
acompanhadas pelo suor e a fadiga. Os gregos viam nos feitos heróicos uma maneira
individual de se eternizar na lembrança dos homens. A vida, semelhantemente à visão
hebraica do trabalho, mesmo na labuta, era preterida. Num último exemplo, veja-se o caso de
35
Odisseu, narrando o momento em que desce ao Hades, mundo subterrâneo dos mortos, o
correspondente ao inferno na concepção cristã. Homero descreve o momento em que Odisseu
louva Aquiles por seus feitos em vida, ao que o herói responde: “Não tente consolar-me a
respeito da morte nobre Odisseu. Preferia estar sobre a terra e servir na casa de um homem
pobre, de poucos recursos, que ser o soberano de todos os cadáveres, de todos os mortos”
(HOMERO, c2009, p. 257-258, tradução nossa)17. Aquiles considerava que seria melhor
servir (mesmo na tortura) em vida, do que ser senhor num outro mundo, além deste.
17
“No intente consolarme de la muerte noble Odiseo. Prefiriría estra sobre la tierra y servir em casa de um
hombre pobre, aunque no tuviera gran hacienda, que ser el soberano de todos los cadáveres, de todos los
muertos” (HOMERO, c2009, p. 257-258).
18
São ideias postas por Weber na A ética protestante e o espírito do capitalismo. O texto antes de tudo, refere-
se a um estudo sociológico sobre o início da cultura capitalista na modernidade. O ponto de partida do texto de
Weber é um fenômeno de grande repercussão, evidenciado na imprensa católica da época. Trata-se do caráter
predominantemente protestante dos proprietários do capital e empresários. Ele afirma que os protestantes não
só era maioria, como eram também os mais qualificados entre os empregados católicos que ocupavam postos
de trabalho que exigiam melhor qualificação técnica. Os protestantes mostravam-se muito mais ávidos aos
negócios que os católicos. Para o autor a ética e as idéias protestantes (puritanas) exerceram influência no
desenvolvimento do capitalismo.
19
Famosa é a passagem bíblica onde Jesus assume seu compromisso, também, de cidadão
desse mundo, ao responder aos fariseus que lhe indagavam a cerca do tributo: “Daí, pois, a
César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (PEIXOTO, [19--?dd], cap. 22, vers. 21, p.
711). Vê-se aqui, aqui a delimitação clara de duas esferas de poder. Aqui, nessa passagem
bíblica, no entender de Teixeira (1969, p. 127), Jesus “lançou as bases de uma dualidade de
forças de organização, Deus e César, em que se pode lobrigar um princípio de liberdade,
implícito na limitação inevitável do poder de César”.
36
disciplina a conduta cotidiana do crente, evitando sua dispersão para às coisas do mundo,
eludindo que se gaste mais tempo vadiando que trabalhando. O homem tem de preencher o
tempo que lhe foi dado com o trabalho profissional, até mesmo os que já são possuidores de
riquezas, devem trabalhar para cumprir sua via-crúcis terrena. Perder tempo é considerado um
pecado. Para os puritanos, são sempre os ociosos em sua profissão que não acham tempo para
Deus. O trabalho apresenta-se como preventivo às tentações e no cultivo de uma vida regrada,
metódica e santificada. A ascese protestante intramundana confere ao trabalho um modo de
racionalização, imprimindo-lhe um caráter sistemático e metódico (WEBER, 2004). Nesse
sentido, dado seu caráter de controle severo, inibe o gozo das posses, ao mesmo tempo em
que quebra as correntes que limitavam a ambição ao lucro, legalizando-o mediante a vontade
divina. Combate-se por um lado o consumo do luxo, por outro, como forma compensativa,
libera-se o enriquecimento, embora em caráter acumulativo e sem usufruto das benesses
materiais, diferentemente do que irá ocorrer na contemporaneidade com os protestantes neo-
pentecostais, onde se adota o usufruto imediato das posses. Para os calvinistas não era pecado
ser rico, pecado seria usar a riqueza para satisfazer os prazeres e desejos mundanos e a
concupiscência da carne, contrariando aos preceitos divinos. A riqueza, além de moralmente
lícita, é considerada um mandamento. Querer ser pobre é que seria condenável. Nessa direção,
uma profissão é útil aos olhos de Deus quando se orienta pela capacidade que tem de dar
lucro. Ressalte-se, que o trabalho é, nesse sentido, um sinal que reforça a condição de
escolhido, de salvo, de eleito de Deus. O crente, de certo modo, deveria usar a sua vocação
profissional para conseguir o lucro. Daí a valorização religiosa do trabalho profissional, sem
descanso, ininterrupto e metódico.
A ascese protestante constrói seu caminho a partir da fuga do mundo pecaminoso
em direção ao trabalho. A ascese intramundana orienta o puritano a servir ao Senhor pelo
trabalho,eis porém algo ainda mais importante: a valorização religiosa do trabalho
profissional mundano, sem descanso, continuado, sistemático, como meio ascético
simplesmente supremo e a um só tempo comprovação o mais segura e visível da regeneração
de um ser humano e da autenticidade de sua fé, tinha que ser, no fim das contas, a alavanca
mais poderosa que se pode imaginar da expansão dessa concepção de vida que aqui temos
chamado de espírito do capitalismo. E confrontando agora aquele estrangulamento do
consumo com essa desobstrução da ambição de lucro, o resultado externo é evidente:
acumulação de capital mediante coerção ascética à poupança (WEBER, 2004).
Foi então, com as visões religiosas influenciadas pelas formas puritanas do
protestantismo, que se deu o surgimento da racionalização econômica do trabalho, de um
38
modo de trabalhar (e viver) racional, influenciado pelo controle austero aos prazeres
mundanos. A ideia geral é: “obrar no mundo para produzir, mas com pleno desapêgo ao
produto, sòmente para a glória de Deus; uma ascética atividade febril; um trabalho dirigido
aos bens econômicos, às riquezas, com o espírito voltado para o eterno [sic]” (BATTAGLIA,
1958, p. 132).
A explicação religiosa da vocação foi de extrema importância para justificar as
divisões do trabalho no capitalismo, pois estas divisões não poderiam parecer injustas, visto
que cada indivíduo desempenhava a função que Deus havia lhe destinado. O trabalho
vocacional era um instrumento de ascese e, ao mesmo tempo, um meio seguro de preservar a
fé. A perspectiva da abordagem cristã sobre o trabalho se apresenta como essencial para se
pensar este na cultura moderna e ocidental. Acima de tudo porque nesse contexto, para o
cristão, a vida só ganhará sentido fora do trabalho, no ócio (ou no descanso eterno), pois o
labor castiga o homem, sempre lembrando sua condição de destituído do paraíso. A análise
weberiana mostra-se de extrema relevância por desvendar a mudança, num determinado modo
de vida, posta pelo protestantismo, que fez do trabalho profissional (um Beruf), um ofício,
uma vocação, desempenhada aqui, no mundo.
grupos, logo entre deuses, define-se a ideia de bem e mal (deuses e demônios) onde, os
deuses, causa de culto e sacrifícios, inclinam-se a superar os demônios, encantados pela
magia, dos magos. O mago, espécie de micro-empresário independente que atua em tempo
parcial, é um prestador de serviços, solicitado por particulares em troca de uma remuneração,
“sem que para isso tenha sido especialmente preparado, além de não contar com qualquer
calção institucional (e operando quase sempre de maneira clandestina)” (BOURDIEU, 1974,
p. 68-69). O mago, como coloca Weber (1994, p. 303) “é freqüentemente pregador de
divinização; às vezes somente isto”. O mago atua amparado por seu carisma (dom) pessoal,
tal qual o profeta, só que este atua em favor dos deuses (não dos demônios) anunciando uma
doutrina religiosa ou preceitos divinos. O profeta, ao contrário do mago, presta seus serviços
gratuitamente, não lhe é permitido fazer de sua missão um ofício. O profeta é o portador da
(única) voz divina. O Senhor Yahvéh é quem anuncia (e sentencia) que “o profeta que tiver a
presunção de falar alguma palavra em seu nome, que este não lhe tenha mandado falar, ou o
que falar em nome de outros deuses, esse profeta morrerá” (PEIXOTO, [19--?i], cap. 18, vers.
20, p. 159). Yahvéh como deus único, descrendencia não só outros deuses, como também,
encantadores, feiticeiros e adivianhadores, tipos sociais situados a margem da empresa de
salvação:
Quando entrares na terra que o SENHOR teu Deus te der, não aprenderás a fazer
conforme as abominações daquelas nações / Entre ti não se achará quem faça passar pelo
fogo a seu filho ou a sua filha, nem adivinhador, nem prognosticador, nem agoureiro,
nem feiticeiro; / Nem encantador, nem quem consulte a um espírito adivinhador, nem
mágico, nem quem consulte os mortos; / Pois todo aquele que faz tal coisa é abominação
ao SENHOR; e por estas abominações o SENHOR teu Deus os lança fora de diante de ti /
Perfeito serás, como o SENHOR teu Deus / Porque estas nações, que hás de possuir,
ouvem os prognosticadores e os adivinhadores; porém a ti o SENHOR teu Deus não
permitiu tal coisa / O SENHOR teu Deus te levantará um profeta do meio de ti, de teus
irmãos, como eu; a ele ouvireis [...] (PEIXOTO, [19--?h], cap. 18, vers. 9-15, p. 159).
Já outro tipo social citado por Weber, o sacerdote, atua em virtude da legitimação
do seu cargo. A natureza de sua missão funda-se numa doutrina ou mandamento, não na
magia. Trata-se de um funcionário membro de um empreendimento de bens religiosos Por
que funcionário? Por que
A diferença, entretanto, deve ser buscada a partir de seus respectivos campo de saberes; o
empirismo-técnico do mago versus a disciplina racional do sacerdote (WEBER, 1996).
O mago e o profeta são portadores de um saber prático, embora sistemático,
empírico. O sacerdote pertence a uma instituição (igreja), reprodutora de bens simbólicos,
mediante o que Bourdieu chama de “uma ação pedagógica expressa” (BOURDIEU, 1974, p.
40).
O sacerdote domina um conjunto de normas e conhecimentos organizados e
sistematizados por especialistas pertencentes ao corpo institucional. Em última palavra, é
assim, que Weber define o que se pode chamar de primeiras estruturas profissionais, pautadas
primeiramente na legitimidade carismática e na racionalização das crenças e das práticas
religiosas.
somente pelo trabalho, por sua adaptação a manipulações sempre novas, pela
herança do aperfeiçoamento especial assim adquiridos dos músculos e
tendões (e, em intervalos mais longos, dos ossos; e, pela aplicação sempre
renovada, desse refinamento herdado, a novas e cada vez mais complicadas
manipulações), a mão humana alcançou esse alto grau de perfeição por meio
do qual lhe foi possível realizar a magia dos quadros de Rafael, das estátuas
de Thorwaldsen, da música de Paganini (ENGELS, 1985, p. 217).
O uso das mãos na produção de meios para sua própria subsistência marca o
princípio de dominação da natureza pelo homem. A princípio pela confecção manual de
43
ferramentas rudimentares para sobrevivência, como armas para caça e pesca, utensílios e
vestuário, para em seguida e no decorrer dos tempos, ser utilizada no desempenho de
atividades cada vez mais complexas.
Por isso Engels (1985) afirma: “a mão não é apenas o órgão do trabalho: é
também produto deste”. Marx e Engels (1986a, p. 27) reforçam a ideia assinalando que “o
primeiro ato histórico destes indivíduos, pelo qual se distinguem dos animais, não é o fato de
pensar, mas de o de produzir seus meios de vida” e, ainda, sublinhando em tom de insulto ao
sagrado, diz; foi o trabalho (e não Yahvéh) que criou o homem (ARENDT, 2001). Ou seja, o
trabalho (em sentido lato) na perspectiva marxiana, desvelou a humanidade do homem,
propiciando-lhe a consciência de si, do outro e do seu mundo. O trabalho é tido como
categoria fundante da sociedade na teoria marxiana, isso porque Marx o considera como
primeiro ato histórico, pois se leva em conta que o homem, antes de qualquer coisa, tem que
“comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisa mais”, ou seja, o homem
primeiramente terá de suprir suas necessidades materiais básicas (MARX; ENGELS, 1986a,
p. 39). O trabalho se apresenta como gerador de um valor vital, e, não apenas mercantil e
monetário como demarca o capitalismo.
Mas essa etapa fundamental ao processo de hominização veio acompanhada da
aquisição de outros atributos distintivos da espécie humana em relação aos nossos ancestrais
simiescos. A partir do uso das mãos, na confecção de ferramentas e utensílios, a cada nova
invenção, aumenta-se o campo perceptivo do homem. Mediante os conhecimentos exigidos
pelo trabalho o homem se educa a cada novo projeto empreendido. Nesse processo de
hominização, a caça desempenha um importante papel. Para Morin (1979, p. 68) trata-se de
um elemento chave no terreno das transformações antropológicas, pois, “a caça intensifica e
complexifica a dialética pé-mão-cérebro-instrumento, a qual, em compensação, intensifica e
complexifica a caça”. A caça faz com que o homem, enquanto animal presa, futuro animal
predador, faça uso da inteligência para criar táticas para sua sobrevivência. Lutar pela
sobrevivência num habitat tão complexo e diverso estimula no homem suas “aptidões
estratégicas: a atenção, a tenacidade, a combatividade, a audácia, o ardil, o engodo, a
armadilha, a espreita” (MORIN, 1979, p. 67). A caça é, portanto, um fenômeno humano
total. Ela atualiza novas habilidades, ao mesmo tempo em que acentuam outras pouco
utilizadas, assim como possibilita o surgimento de outras, pois, é no âmbito do ecossistema,
co-produtor e co-organizador dessa atividade de subsistência, que o homem irá desenvolver
seus atributos físico-biológico-sócio-culturais. São transformações que tiveram impacto no
desenvolvimento do indivíduo na sociedade e na espécie humana de um modo geral. A caça,
44
22
O trabalho, tido como sinônimo de fadiga física e moral, para os monges, possuía valor penitencial, mesmo em
se tratando de scribere (copiar) os manuscritos. Curiosamente até o século X, o ato de cultivar a terra era tido
como uma atividade laboral menos humilhante que a ação de copiar. A palavra, propriedade divina, deveria ser
utilizada para difundir a verdade (e a verdade cristã) nunca para a obtenção do lucro ou riquezas, ou qualquer
tipo de especulação mental ou material. Mas no que diz respeito a terra, doação divina, o monge considerava
que ao trabalhar com a ela, mantinha-se contanto Deus criador na lembrança de que o criador requeria que
ajudássemos a evidenciar sua fertilidade.
46
a Deus, a porta religiosa para a salvação da alma, sendo a profissão, uma vocação. Calvino
(1509-1564) entedia que o trabalho era uma virtude na qual por vontade divina o crente a ele
estava predestinado, uma vez que já tinha definida sua posição social no mundo, cabendo a
ele, Deus, decidir sobre o êxito ou a miséria do crente. O crente teria então que se contentar
com os desígnios de Deus, sem investir no vão esforço de mudar a própria sorte23. A vontade
divina é então, a resposta para a ideia da divisão do trabalho e a especialização da ocupação
do homem nas diversas profissões. Enquanto a doutrina católica condenava o lucro, a ambição
e a usura a doutrina protestante calvinista permitia o acúmulo de riquezas, pois a ideia de
prosperidade estava associada ao prêmio por uma vida santa, abençoada por Deus. Esta visão
de mundo proporcionou um novo status aos primeiros empresários, transformando-os em
referência no âmbito da sociedade.
Até aqui o conceito de trabalho foi tratado de uma maneira genérica, em seu
sentido primevo, como categoria antropológica e não no sentido abstrato contemporâneo do
termo; nas formas que assume sob as condições capitalistsa de produção, surgido na Europa a
partir do capitalismo manufatureiro. Na Bíblia observa-se um sentido contraditório ao termo,
às vezes como expressão concreta de vida, compreendido como necessidade, desígnio divino,
destino humano. Noutros momentos (Novo Testamento) como prática mundana efêmera,
apenas circunscrita à subsistência do homem produzida mediante seu próprio suor.
A concepção de trabalho como desvelamento da natureza humana, com efeito,
fica implícita na concepção ideológica e mítica judaico-cristã. Mas é preciso considerar
também que o cristianismo opera em sentido inverso, opera em prol de uma des-
humanização do homem. E mesmo considerando correntes filosóficas que defendem um
humanismo cristão, ainda assim, a centralidade da auto-realização do homem tem por
fundamento a base dos preceitos cristãos, de renúncia ao mundano. O simbólico caminho
percorrido pelos cristãos até o calvário (via crucis), até Cristo, demarca um percurso que
orienta o homem para sua não humanidade, para sua des-humanização. A própria
humanidade do Cristo encerra-se nos tormentos sofridos na cruz, quando ele pronuncia “Eli,
Eli, lamá sabactâni; isto é, Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (PEIXOTO,
23
Como coloca o próprio Paulo, na I Epístola aos Coríntios:
Cada um fique no estado em que foi chamado. Foste chamado sendo escravo? não te
dê cuidado; mas se ainda podes tornar-te livre, aproveita a oportunidade. Pois aquele
que foi chamado no Senhor, mesmo sendo escravo, é um liberto do Senhor; e assim
também o que foi chamado sendo livre, escravo é de Cristo. Por preço fostes
comprados; mas vos façais escravos de homens. Irmãos, cada um fique diante de
Deus no estado em que foi chamado (PEIXOTO, [19--?mm], cap. 7, vers. 20-24, p.
837).
47
[19--?ff], cap. 27, vers. 46, p. 718, grifo nosso), encerra-se com sua não-existência, sendo ele
figura paradigmal para os homens, o Cristo, o último Adão, personagem arquétipo da
natureza humana, homem primordial, símbolo máximo da evolução e superação das fraquezas
da natureza humana do primeiro homem Adão, meta a ser atingida por todo cristão. Em certo
sentido, quanto mais o homem se volta para Deus, tanto menos ele retém de si (MARX,
2004), de sua humanidade.
Reservado seus limites etimológicos, tanto na tradição judaico-cristã, quanto na
tradição sociológica (e antropológica), o trabalho representa uma ruptura. Ruptura
manifestada pela tomada de consciência da condição humana conferida ao homem pelo
trabalho na sua forma instintiva em decorrência de sua expulsão do jardim do Éden. Numa
das possíveis interpretações dessa narrativa mítica, é possível inferir que a saída (ou expulsão)
do Éden demarca para o homem o início de uma existência concreta, no mundo, tal qual a
criança ao sair do ventre materno. Reside, nesse contexto, a noção de trabalho em seu sentido
original, como produtor de valores de uso no âmbito da esfera da necessidade e de seu
provimento imediato. Seja como for, em ambas as concepções, estamos falando de uma etapa
importante no processo de humanização.
48
Arendt (2001) propõe uma distinção para os termos labor e trabalho, ambos
utilizados já amplamente como sinônimos. Arendt (2001) ressalta que na cultura européia são
utilizadas duas palavras etimologicamente diferentes para designar o que comumente
apresenta o mesmo sentido. Só as palavras semanticamente relacionadas ao labor fazem
conotação direta à ideia de dor. Essa distinção também é ignorada na Antiguidade,
ocasionada, sobretudo, pelo desdém que homem grego atribuía ao labor. No entanto, o
desprezo pelo trabalho ou labor que tinha o homem grego, adverte a autora, não era pelo fato
dessas atividades serem destinadas aos escravos, como geralmente se coloca. Aliás, como ela
mesma pontua; a escravidão, na polis grega, não possui o mesmo sentido adquirido nos
tempos modernos: da exploração humana com fins lucrativos e obtenção de mão-de-obra
fácil, mas demonstra, acima de tudo, o empenho da exclusão do “labor das condições da vida
humana” (ARENDT, 2001, p. 95). A vocação do homem livre era dedicar-se a política e as
armas. Enquanto que para os homens não-livres lhes era confiado a produção das coisas
materiais necessárias a vida.
O labor se relaciona com a dor e a fadiga do corpo pelo esforço da providência às
necessidades materiais, assegurando aos homens, a sobrevivência, tem a ver com o labor do
nosso corpo. Já o trabalho se define como o trabalho de nossas mãos, surge com o
aparecimento do homo faber, inventor de ferramentas e utensílios, que faz e trabalha sobre
objetos, subjugando a si a natureza na busca de matéria prima. O processo de trabalho finda
quando o objeto está pronto, enquanto o labor “move-se sempre no mesmo circulo prescrito
pelo processo biológico do organismo vivo, e o fim das ‘fadigas e penas’ só advém com a
morte desse organismo” (ARENDT, 2001, p. 109). Nesses termos, o trabalho (labor) como
subsistência, provedor das necessidades do cotidiano, necessário à reprodução e manutenção
da vida, distingue-se do conceito contemporâneo do termo (trabalho) e,
sobrevivência que, dia após dia, exigem ser renovados (GORZ, 2003, p.
24)
magistrados. Ao comentar a respeito dos homens de ofícios na Grécia (na época clássica)
Vernant (1989, p. 59-60), coloca:
que o homem além de empregar seu esforço e tempo para esculpir um instrumento de caça,
um objeto de utilidade, despende igualmente sua energia e tempo na decoração de um objeto
(DE MASI, 2000), uma atitude que ultrapassa o fim utilitário do objeto, ao tempo em que põe
um sentido estético-contemplativo nos artefatos. É claro que numa abordagem mais apurada
do uso da arte na sociedade ocidental, observaremos os muitos papéis funcionais legados a
arte no decorrer dos tempos. No caso especificamente da música ela possui um valor
utilitário, seja em rituais religiosos e populares, seja como entretenimento, seja ainda aplicado
em conjunto com outras áreas do conhecimento (musicoterapia, educação). Mas esse valor
utilitário a que nos referimos de antemão não é utilitário na conotação mercantil do termo.
Sobre a ideia de “música como mercadoria” nos determos mais adiante.
Yahwéh, o ser onipotente, onisciente e onipresente da religião judaico-cristã, o
artífice supremo, cria o mundo do nada, sem fadiga, não há presente na narrativa da criação a
ideia de trabalho, pelo menos no sentido em que se dá a atividade humana. Yahwéh contenta-
se com o que cria, ele exprime, segundo descrito no livro bíblico, sua satisfação logo após a
realização das obras, contenta-se com o percurso da realização. Mas então por que ele
descansa no sétimo dia após de criado o céu e a terra e tudo nela habita? O Absoluto descansa
no sétimo dia, não para revitalização do esforço desempenhado, mas como uma pausa
contemplativa; de deleite perante a criação.
Semelhante a Yahwéh o artista jubila-se com o processo de sua concepção. A
alegria usufruída é motivada pela obra e pelo ato da realização, como coloca Barenboim; Said
(2002, p. 51), músico israelense, ao descrever a amplitude de sua realização pessoal enquanto
profissional da música:
24
Fazendo alusão a performance musical como metáfora à fugacidade da vida, pode-se dizer que a sensação
produzida ao se vivenciar o ato da performance é uma sensação de contentamento, similar a alegria que se tem
pela vida, mesmo sabendo que ela findará, uma alegria por vivenciar com intensidade cada momento. O erro
no palco também é vivenciado por alguns com grande intensidade, chega a ser um momento de grande
frustração, tal como as frustrações das adversidades da vida, ao passo que para outros, é mais uma
oportunidade de celebrar a vida, “a própria prática da música é uma maneira de celebrar o nada possuirmos”
(CAGE, 1995).
52
Tal qual o demiurgo o artista opera sobre a matéria e forma um mundo, mas
nesse caso um mundo simbólico. O artista se apresenta como senhor do seu tempo (de
trabalho e ócio), criando coisas que transcendem o valor-de-uso. Considera o trabalho não
uma pena, algo fatigante, mas antes se realiza na satisfação do ato criativo, um contentamento
expresso não só por contemplar o produto do seu esforço, mas uma satisfação que acompanha
todo o processo do seu trabalho.
aqui nos mantemos cautelosos por colocar um assunto por demais complexo, uma vez que, a
pretensão de mensurar o grau de genialidade impresso numa composição musical, poderá
revestir-se de critérios totalmente abstratos e relativos. Porém, não se pode negar que no
âmbito do exercício da profissão musical conceitos como genialidade e inspiração, se
contrapõem a natureza das atividades repetitivas e rotineiras do trabalho (em seu sentido
moderno – fordista / taylorista). Nessa visão fordista do trabalho, o operário é expropriado do
seu trabalho, já o músico se enxerga detentor de sua ouvre (obra) e até compartilha com a
platéia sua realização. Contudo, enquanto alguns autores reservam à criação artística uma
dimensão quase sobrenatural (denominada por muitos de inspiração), outros a vêem fora
dessa visão romantizada e mística, assessorada (mas não dependente) pelo uso das
ferramentas técnicas25. Para Stravinsky (1996, p. 53) a inspiração “não é de forma alguma
condição prévia do ato criativo”. Embora não negue sua importância. Toda criação artística,
defende o compositor russo, tem na sua origem uma espécie de antevisão. Mas o
antecipadamente imaginado só toma forma “pela ação de uma técnica constantemente
vigilante” (STRAVINSKY, 1996, p. 54). Stravinsky (1996) ainda esclarece que prefere ser
chamado de inventor, ao invés de compositor. A ideia de invenção pressupõe uma
descoberta subsidiada pela técnica. Igualmente para o filósofo alemão Theodor W. Adorno
(1903-1969), no processo de concepção musical, o trabalho e a fantasia devem estar
intimamente ligados. Adorno (1970) define métier não como um conjunto de procedimentos
técnicos, mas como conjunto das faculdades que o artista se vale para conceber sua obra, o
que engloba os procedimentos técnicos por ele mobilizados. Diante da concepção na qual o
processo criativo é tido como fruto exclusivo da inspiração, o métier, a racionalização do
processo de produção artística, apresenta-se como destruidor da aura (aspecto único) da obra
de arte, uma vez que os procedimentos técnicos são agora reconhecidos, passíveis de serem
aprendidos, num sentido amplo; desmistificados. Essa racionalização da produção artística, na
concepção e no uso das técnicas, oferece outra visão sobre a obra de arte enquanto fruto do
sopro inspirador da criação genial. Nesse contexto é importante destacar que o texto do
crítico literário e ensaísta alemão, Benjamin (1975), a obra de arte na época da
reprodutibilidade técnica, já apontara que as modificações ocorridas nas condições de
produção da arte eliminaram em grande medida e conseqüentemente alguns conceitos
25
Até mesmo Mozart, talvez o ícone artístico máximo da atividade artística nata, pensava como estes: “Erram as
pessoas que pensam que minha arte me vem com facilidade. Eu lhe garanto, querido amigo, que ninguém
devotou tanto tempo e pensamento à composição quanto eu. Não há um único mestre famoso cuja música eu
não tenha estudado, diligentemente, muitas vezes” (MOZART, [17--] apud SOLMAN, 1991, p. 25).
54
clássicos, entre eles as noções de mistério e de valor singular e perene dos produtos26. Para
Benjamin (1975) as novas condições de produção possibilitam a reprodutibilidade do objeto
artístico, porém, mesmo deixando intacto seu conteúdo, mas desvalorizam seu hit et nunc, sua
originalidade. Benjamin (1975, p. 14) é enfático quando diz que “na época das técnicas de
reprodução, o que é atingido na obra de arte é sua aura”. Ora, com a multiplicação de cópias,
o evento, que é produzido apenas uma vez, torna-se um fenômeno de massa, possuindo agora
permanente atualidade. Nesse contexto industrial de produção, são conferidas à arte funções
inteiramente novas, uma vez que ela é agora emancipada de seu papel ritualístico, ao tempo
em que se vê modificado a atitude da massa com relação à arte, precisamente o modo de
perceber e senti-la. O antigo modo de perceber a arte exigia concentração, porém a massa
procura agora diversão. Para Adorno (1985, p. 128) tal ideia faz sentido, nesse moderno
contexto de produção, pois para ele a “diversão é o prolongamento do trabalho sobre o
capitalismo tardio. Ela é procurada por quem quer escapar do processo de trabalho
mecanizado, para se pôr de novo em condições de enfrentá-lo”. Diversão implica em esquecer
a labuta. O novo consumidor da arte, cuja atitude é desatenciosa e desinteressada, é
essencialmente um consumidor que se distrai. O culto a arte move-se para o segundo plano,
enquanto que, nesse sistema de produção capitalista, é ressaltado o culto ao astro.
No que diz respeito à genialidade, faz-se referência aqui a dois autores: Karl Marx
e Friedrich Engels. Eles não estão interessados em aprofundar e questionar a origem do
talento artístico nas pessoas, mas enfaticamente, na crítica de que o indivíduo ao se denominar
artista delimita seu campo de atuação na vida, encerrando no rótulo ocupacional artista seu
vir-a-ser:
26
De forma metafórica, o conceito de aura relacionado à arte, faz referência a uma suposta
aureola luminosa (de atribuição sobrenatural) sobre o objeto artístico conferindo-lhe um
aspecto único e possuidor de vibrações singulares, constituindo assim a própria essência da
arte, cuja experiência transcende a técnica. O que Benjamin (1975) põe em discussão é o fato
de que em decorrência da reprodução dos objetos artísticos (multiplicação e massificação),
especificamente, a partir da invenção da fotografia a arte perde sua aura. O que Aumont
(1995) coloca, comentando esse texto de Benjamin é que a natureza da aura é
simbolicamente mutável para os homens de diferentes tempos que lhe atribui de algum modo
um sentido.
55
27
“L’ organization du travail ne concerne que les travaux que d’ Autres peuvent faire pour Nous, par exemple
abattre les animaux, cultiver les champs, etc. Lês autres restent des travaux égoïstes, parce que personne, par
exemple, ne peut écrire tes compositions musicales, dessiner tes esquisses, etc...Persone ne peut remplacer lês
oeuvres de Raphaël. Ce sont celles d’un être Unique, et Seul celui-ci peut lês exécuter, tandis que l’on pourrait à
juste titre qualifier les autres d’ ‘humaines’ [...]” (STIRNER, 1988, p. 308).
57
próximo, a não ser que este o beneficie. O fato é que para Stirner a base do desenvolvimento
criador é de natureza individualista. Contudo, essas diferenças únicas e individuais
proclamadas por ele sugerem uma des-socialização do artista na visão de Marx28, que
concebe o trabalho artístico como um modelo do “trabalho não alienado, através do qual o
sujeito se realiza na plenitude de sua liberdade exprimindo as forças que fazem a essência de
sua humanidade” (MENGER, 2005, p. 49). O indivíduo não é, nesse sentido, um demiurgo à
margem (nem acima) da sociedade, ele dela faz parte. Marx, ao confrontar Stirner, se
empenha em mostrar que a originalidade e a criatividade não seriam características “únicas”
de alguns trabalhadores especializados na arte, mas supostamente poderiam vir a serem
atributos do indivíduo numa sociedade pós-capitalista, considerando que nela seria cultivado a
polivalência e a onissapiência. Embora, como já reportado antes, nessa antropologia
filosófica marxiana – tentativa de contorno das distorções da divisão e exploração do trabalho
no modelo de produção capitalista – alguns autores, como já sublinhado anteriormente,
identifiquem uma fragilidade: “a negação da necessidade de identificação de si próprio e de
negação ao outro, condição de possibilidade da organização de uma sociedade” (COHEN,
2000 apud MENGER, 2005, p. 53). A expressividade e a criatividade são características
encontradas no exercício da profissão musical. No entanto, cabe destacar que são cada vez
mais freqüentes a busca por um perfil de trabalhador criativo, flexível, com iniciativa, capaz
de resolver problemas e mobilizar saberes no mundo do trabalho. Ou seja, o que era dantes
em muitos aspectos, apontada como exclusividade do métier artístico, são características,
hoje, requisitadas no mundo do trabalho em outras áreas profissionais. O sociólogo alemão
Weber (2001) ressalta essa característica, ao tempo em que também infere que a orientação
imaginativa do artista, quanto ao seu sentido e resultado, é distinta do modo como se dá com
profissionais de outras áreas. Diz Weber (2001, p. 27):
28
Marx faz críticas severas ao livro O Único e sua propriedade de Max Stirner. Na Ideologia Alemã das 530
páginas do texto, mais da metade foram dedicadas a rebater, ponto por ponto, as colocações de Stirner. Na
Ideologia Alemã, Stirner recebe satiricamente o apelido de São Max, ou Sancho, referência irônica ao
personagem Sancho Pança, em Dom Quixote.
58
29
Sobre os aspectos que antecedem a performance musical propriamente dita (exercícios técnicos, suportes
teóricos, referentes aos aspectos da concepção musical, que antecede a performance propriamente dita) cabe
colocar que tais elementos é tido muitas vezes por estudantes de música, como algo penoso, embora
necessário, tendo por único fim a performance musical. Eis uma característica que lembra de modo estreito, o
sentido de trabalho posto pelo cristianismo, que pede para seus adeptos suportar as aflições do mundo, em
favor de recompensações futuras. A própria idéia corrente de que a prática leva à perfeição parece lembrar a
todo instante que o esforço empreendido no estudo (repetitivo, rotineiro e penoso) irá proporcionar no futuro,
no palco, a compensação almejada, a plena satisfação, o êxito e no mundo do trabalho contemporâneo: o
sucesso.
59
algumas definições a cerca do que se entende por processo de produção, termo clássico do
pensamento marxiano.
Inicialmente é preciso reafirmar dentro do que expomos até gora que, como
admitido na teoria marxiana, o trabalho é condição primordial à existência humana. O
trabalho humano é o fundamento da vida social, pois o homem que vive e trabalha o faz num
contexto social, estabelecendo relações de produção com outros homens. Entretanto, o
trabalho que produz mercadorias (valor-de-troca) é um modo específico de trabalho social. A
mercadoria se traduz em objetos de satisfação às necessidades humanas, independentemente
de “que essas necessidades tenham a sua origem no estômago ou na fantasia, a sua natureza
em nada altera a questão” (MARX, 1983, v. 1, p. 2). E mesmo que a performance do músico
em eventos diversos (prestações de serviços), não se traduzam literalmente em mercadorias –
pois o serviço prestado por um músico proporciona uma satisfação estética, o que se frui, é
momentâneo, tão logo cesse o trabalho do músico, finda a fruição proporcionada pela música,
ainda assim essa fruição sentida pelo expectador face ao espetáculo foi proporcionada por
uma relação de troca comercial.
A mercadoria se apresenta sob um duplo aspecto: valor-de-uso e valor-de-troca.
Para Marx os valores-de-uso são modos de subsistência resultantes da vida social, da força
humana efetivada, trata-se de trabalho objetivado, são combinações da matéria e do trabalho
humano. Cada mercadoria é portadora de características diversas, sendo útil (valor-de-uso) em
seus diferentes aspectos relacionados às necessidades humanas. Mas o valor conferido a
mercadoria não é algo intrínseco a ela, é convencionado pela própria sociedade, sob um duplo
ponto de vista; o da qualidade e (valor-de-uso) o da quantidade (valor-de-troca). É essa
característica utilitária que transforma a mercadoria num valor-de-uso, mas este só possui
valor na medida em que nele está materializado o trabalho humano.
Todavia, nem todo valor-de-uso é uma mercadoria. Uma coisa pode ter utilidade,
ser fruto do trabalho humano, sem ser mercadoria. Determinados produtos originados dos
afazeres domésticos proporcionam a satisfação apenas das necessidades individuais, logo
criam um valor-de-uso pessoal e por isso não podem ser considerados uma mercadoria. A
produção de mercadorias se caracteriza mediante a produção de valores-de-uso para os outros,
encerrado em trabalho social. Mas não é suficiente produzir para os outros. Exemplificando,
Marx coloca que nem o tributo e nem o dizimo pago em cereais pelo camponês medieval,
respectivamente ao senhor feudal e a igreja, podem ser considerado mercadoria, mesmo sendo
produzido para outrem. Para ser mercadoria, diz Marx (1983, v, 1, p. 6, grifos do autor), “é
necessário que o produto seja transferido para outrem, que o utilize como valor-de-uso, por
61
meio de troca”. Para ser um valor (de troca), o objeto tem de ser uma coisa útil. E o que
determina o valor de uma mercadoria? Para Marx é o tempo de trabalho gasto para a
fabricação de determinado (hora, dia). Mas esse tempo não é relativo a cada trabalhador. A
força de trabalho individual empregada na confecção de um produto é regulada pelo tempo de
trabalho socialmente necessário à produção das mercadorias, ou seja; o “tempo exigido pelo
trabalho executado com um grau médio de habilidade e de intensidade e em condições
normais, relativamente ao meio social dado” (MARX, 1983, v. 1, p. 6). A quantidade de
trabalho incorporado em um objeto determina, pois, o seu valor 30, e, esse mesmo princípio
rege o intercambio de mercadorias no mercado. No trabalho que é mensurado desse modo 31,
ou seja, pelo tempo, os indivíduos trabalhadores figuram simplesmente como órgãos do
trabalho e não como diferentes sujeitos que estão desempenhando um trabalho.
Se abstrairmos da mercadoria seu valor-de-uso restará apenas uma qualidade; o
fato de estar nela incorporado trabalho humano e abstrato, ou seja, o dispêndio de força
humana. Na sociedade capitalista a força de trabalho, a energia humana utilizada numa
determinada atividade, se converte em mercadoria. São necessárias duas condições básicas
para que a força de trabalho seja considerada uma mercadoria. Primeiro, considerar a
existência de um trabalhador que em sendo livre possa dispor de sua força de trabalho para
oferecê-la no mercado para quem bem entender em troca de um salário. Segundo, a existência
de um trabalhador que não disponha dos meios de produção e que em decorrência disso torna-
se impedido de trabalhar por conta própria e conseqüentemente é forçado a vender sua força
de trabalho32. O que o trabalhador produz além do valor de sua força de trabalho denomina-
se mais-valia.
As mercadorias são portadoras de uma forma-valor particular distinta de suas
múltiplas formas natural. As dificuldades inerentes á atribuição de conversão de valor na
permuta das mercadorias fez surgir um terceiro elemento equivalente; o dinheiro. Antes disso,
só era possível a troca em situações onde a mercadorias fossem diferentes e que seus
portadores a tivessem em sobra. Ainda para o intercambio ocorrer era necessário que ambos
demonstrassem ter interesse nessa permuta, ambos deveriam sentir necessidade de adquiri-las.
30
Na verdade o valor é a quantidade de trabalho socialmente necessário incorporado numa
mercadoria. O tempo de trabalho socialmente necessário leva em conta as condições sociais
de produção e a necessidade do produto manifesta pela sociedade (HARNECKER, 1983, p.
29).
31
Marx chama de trabalho simples, no qual qualquer indivíduo pode ser treinado para realizá-
lo.
32
Cf. HARNECKER, Marta. Os conceitos elementares do materialismo histórico. São Paulo: Global, 1983.
62
Se um indivíduo é detentor do que alguém precisa, mas não precisa do que o outro dispõe
certamente a troca não lhe interessará. Ainda é preciso que sejam definidos nessa relação de
intercambio entre mercadorias, parâmetros de equivalência (valor) para que a troca seja
efetivada. A solução para esse impasse relacionado ao valor das mercadorias foi o dinheiro. É
mediante o dinheiro que duas mercadorias podem expressar equivalência. A troca entre
mercadorias deixa de ser imediata, passando-se agora a se trocar o dinheiro por uma
determinada quantidade de mercadoria. O dinheiro dá maior fluidez e generaliza a troca. O
dinheiro divide o processo de intercâmbio das mercadorias em dois momentos; venda e
compra. Alguém que compra se coloca como necessitado da mercadoria almejada, seu fim é
um valor-de-uso adquirido pelo dinheiro (valor-de-troca). Já para alguém que vende
determinada mercadoria, esta nada mais é do que um meio de convertê-la em dinheiro,
emancipando-a do seu valor-de-uso.
No que diz respeito à conversão da música em mercadoria o disco assume um
papel crucial. A partir do advento da indústria fonográfica, a música se converte num produto
de características industrial, numa mercadoria, pronta para ser comercializada. Nesse sentido,
o valor da música também passa a ser determinado pelo tempo de trabalho socialmente
necessário. Uma vez registradas no disco uma música não valerá mais que outra. Quem
determina agora o valor é o disco, o produto, com todo o trabalho a ele incorporado, e não a
música. A música é a matéria prima utilizada para a elaboração do disco, o produto final, a
mercadoria a ser comercializada. Como também, nesse contexto, o que o músico vende não é
o seu trabalho, mas, sua força de trabalho. Os empresários se apropriam do produto do
trabalhador-músico que por não dispor dos meios de produção vende sua força de trabalho.
O que obriga o músico a ceder às condições imposta pelo sistema capitalista, são os mesmos
motivos expostos por qualquer trabalhador, são certamente a intenção de suprir suas
necessidades de subsistência. Então, um músico pode ser prontamente substituído por outro
numa gravação de um disco ou num espetáculo? Nem sempre. O trabalho do músico, bem
como as relações que estabelece com o objeto e os instrumentos do seu trabalho, é em parte
similar aos que o trabalhador, de um modo geral, opera no âmbito da divisão técnica do
trabalho especializado. Porém, o músico imprime muitas vezes um modo de tocar que o torna
singular, mas não substituível no âmbito do processo produção. O talento e as competências
técnico-profissionais são algumas das qualidades individuais que tornam o músico requisitado
em detrimento de outro colega de profissão.
Nessa trajetória conceitual, chega-se então a ideia de processo de produção.
Denomina-se processo de produção, todo procedimento que por meio da ação humana e
63
processo de produção musical. Por exemplo, além dos músicos propriamente ditos
(profissionais que concebem e executam, i.e., compositores, arranjadores e instrumentistas),
os técnicos de som, os iluminadores, também pode se incluir os fornecedores de materiais e
equipamentos responsáveis a produção musical – é o que se denomina hoje por cadeia
produtiva, ou seja, todas as conexões referentes a produção, distribuição, comercialização e
consumo da música. Os agentes de produção estão divididos em duas categorias. Os
trabalhadores diretos, que possuem estrita relação com a matéria básica da produção musical,
e os trabalhadores indiretos: “aqueles que têm função de organização e controle de níveis
diversos do processo, bem como aqueles que perifericamente participam do processo de
produção musical” (CASTRO, 1988, p. 21).
Nesse contexto do processo de produção da música, é preciso que nos detenhamos
um pouco mais em alguns aspectos conceituais relacionados à divisão do trabalho musical. O
trabalho em que o músico compõe e executa sua própria música e fica encerrado o processo
de produção é uma atividade artesanal. Trata-se de um tipo de trabalho individual e manual,
ainda encontrado nos ritos e festas populares ainda não estilizados. Seu valor de uso restringe-
se a dimensão litúrgica. No atual cenário contemporâneo, um músico pianista que compõe e
executa suas próprias músicas não se encaixa nessa definição uma vez que a música que faz é
um produto comercializável, e, em alguns casos participam vários agentes profissionais.
A divisão do trabalho musical, nos moldes estruturais das feições fabril, se define
de um modo geral, a partir da prática do ofício conjunto, nas várias formas musicais, bem
como da consciência da função individual que cada músico passa a ter no desempenho de suas
atividades. Esse processo se inicia com a divisão do trabalho entre compositor e intérprete. É
também no âmbito do espaço orquestral, ao lado de outros músicos, que o trabalhador da
música passa a dar conta apenas de sua parte complementar. À luz da teoria marxiana esse
tipo de produção chama-se manufatureira, pois consiste na especialização de uma atividade
a ser somada a um todo. De acordo com Castro (1988, p. 23-24):
forte concorrência, os músicos sem a proteção do mecenato eram mal afamados pela opinião
pública, relegados a condição mais baixa de animadores de ocasião. Estar a serviço da corte
ou das cidades tinha suas vantagens como também seus inconvenientes. Os músicos que
estavam a serviço das cidades poderiam obter a rescisão contratual de modo mais fácil.
Enquanto que o músico da corte estavam submetidos a conjuntura da vida política local, e isso
implica em dizer que qualquer crise econômica sofrida pela corte, poderia interferir
diretamente na atividade musical por ele desempenhada (diminuição de salários e
orçamentos).
Noutro caso, Bach ao pedir dispensa oficial de suas funções ao duque Wilhelm
Ernest, mesmo já indicando alguém qualificado para o cargo, tem sua petição indeferida.
Forçando sua solicitação é preso por obstinadamente requerer sua demissão. Para se evitar
algum desentendimento político entre as duas cortes envolvidas Bach é finalmente liberado
com notificação de sua indecorosa exoneração. O pai de Mozart, o compositor Johann
72
Georg Leopold Mozart (1719-1787), passara por humilhações semelhantes, numa época em
que o músico, no âmbito de uma sociedade dominada por aristocratas de corte, era apenas
um serviçal, cujo comportamento deveria ser coerente com sua condição inferior. Leopold
Mozart muitas vezes teve seus proventos não só atrasados, como também retidos (ELIAS,
1995).
O gradual desenvolvimento de um mercado musical fez com que os músicos além
de compositores e intérpretes, se tornassem também empresários. Exercer a atividade musical
de modo independente era um risco, até mesmo para talentosos músicos como Mozart. Além
do fato de que o artista independente tinha que complementar seus rendimentos dando aulas
particulares. O compositor de óperas podia ganhar dinheiro também com a montagem do
espetáculo em cidades circunvizinhas, porém o tempo despendido com as viagens trazia
prejuízos, uma vez que se ausentando de sua cidade deixava de receber por suas aulas
particulares. Nesse contexto, a venda de partituras, ou cópias autorizadas torna-se uma
importante fonte de renda para o artista, mesmo considerando que só a garantia das
vendagens, justificava em muitos casos o investimento na música impressa. Os compositores
na maioria das vezes levavam em conta as demandas apontadas por seus editores, estes em
certos casos chegavam a cometer abusos contra o compositor, publicando sem autorização
suas músicas, eximindo-se assim de pagar qualquer tipo de remuneração ao compositor.
Ainda relacionado a produção editorial de partituras, faz-se necessário lembrar que a
pirataria já se fazia presente nesse setor. Muitas vezes os editores atribuíam a autoria de
algumas obras musicais a nomes de compositores famosos, objetivando vender mais. Mesmo
o controle da execução de sua obra fugia ao controle do compositor. Era difícil, dado a
disseminação do registro impresso da obra, saber onde estava sendo executando a obra e
quem a executava.
Esse duplo papel exercido pelo músico compositor, especificamente o de virtuose
e o de professor, torna-se muito comum nesse processo de expansão da comercialização da
música entre os séculos XVIII e XIX. Por volta de 1830, ocorre uma mudança no modo de
recepção da música. Muda-se a relação entre o artista e o público, este não mais enxergado
como benfeitor, e aquele com maior liberdade comunicativa de sua arte com o público. O
músico virtuose estava dissociado de sua condição de criado, podendo agora lucrar com seus
serviços. O músico ganha dinheiro como criador de óperas e como compositor de música
instrumental. De qualquer modo tinha que agradar ao público, aspecto, é verdade, que não
favorecia a experimentação artística. Obviamente que o surgimento de uma classe social
situada acima do nível de subsistência contribuiu significativamente para o crescimento e
73
consumo de bens simbólicos na área musical, considere-se ainda que o piano torna-se um bem
ostentado pelas camadas abastadas, e, à esse novo público consumidor que o músico destina
peças curtas com melodia e acompanhamento simples para esse instrumento (estudos, pop-
pourri), compostas exclusivamente para diletantes, tratava-se de peças que sobretudo
recordavam as melodias ouvidas nos espetáculos musicais (óperas e concertos). Esse novo
cenário, mais precisamente composto de diletantes e músicos amadores (aqueles que não se
dedicavam em tempo integral ao exercício da profissão musical), tem um lugar de destaque na
expansão de um mercado para a música na Europa de meados do século XVIII. Há, nesse
contexto, o surgimento de um público destinado prioritariamente a ter com a música uma
relação de entretenimento (música de mesa), detentora do poder de “aliviar o peso dos
esforços e do cansaço de um dia dedicado (pelo burguês) a tratar de negócios, a ocupar-se
com números e contas” (SUPICIC, 1997, p. 412). Noutra via há a formação de um público
que busca além do “deleite”, “uma experiência musical enaltecedora” (RUSHTON, 1991, p.
73). Ocorre aqui uma mudança importante na história da música européia; a separação entre
gêneros ligeiros e sérios. Sem o apoio dos mecenas, já desde o final do século XVII, os
compositores dependem menos de patrões e mais de um público consumidor “no interior de
uma vida musical sempre mais comercializada e organizada para um publico novo de classe
média, na qual, entretanto o publico aristocrático ainda ocupam lugar de destaque” (SUPICIC,
1997, p. 418).
O sociólogo alemão Elias (1995, p. 135) aponta para um fato importante nesse
quadro de análise do exercício do trabalho artístico, ao distinguir historicamente o que chama
de “transição de arte de artesão para arte de artista”. O artista-artesão produzia uma arte
oficial, da corte, submissa ao gosto do patrono, pois era encomendada por este e tinha por
intuito agradar ao mesmo. A inventividade criativa do artesão-artista estava condicionada por
lementos que eram socialmente determinados. Enquanto a arte de artista” coloca em
evidência um novo modo de relacionamento entre o artista e sua obra, trata-se de uma
Dito de outro modo, essa nova situação social proporciona uma maior liberdade
inventiva, muito embora essa ousadia artística tenha que se confrontar com novos elementos
condicionantes que irão interferir no êxito profissional perseguido por cada artista, entre eles
74
Wagner considerava que a atividade artística não era trabalho (no sentido
alienante do termo marxiano), pois o artista trabalhador não estranhava o produto do seu
esforço, nem mesmo o considerava esforço, sobretudo porque “experimentava prazer na
manipulação dos materiais e na respectiva modelação; uma tal actividade produtiva é em si
mesma e por si mesma compensatória e plena de satisfação [sic]” (WAGNER, 1997, p. 72). A
75
relação do trabalhador com o produto de seu trabalho dar-se de modo estranho, logo, também
um na expressão marxiana estranhamento-de-si. O trabalhador se desgasta trabalhando para
criar um mundo objetivo, rico na diversidade dos objetos, mas para isso se aniquila no
produto do seu trabalho, este é para o homem uma via de acesso ao dinheiro (valor abstrato)
tendo em vista a aquisição do produto alheio.
O trabalhador assalariado, cujo produto do trabalho é alienado, tem por objetivo o
valor abstrato do dinheiro. Nesse sentido, ele, o trabalhador,
interessa-se apenas pelo objetivo dos seus esforços, pela utilidade que possa
colher do seu trabalho; a actividade que pratica não lhe traz satisfação,
constitui tão somente um fardo, uma necessidade incontornável, que de bom
grado empregaria uma máquina. O trabalho só o prende por obrigação e é
por isso que o assalariado tem o espírito ausente daquilo que faz e passa o
tempo a pensar noutros objetivos que pretende atingir tão depressa quanto
possível (WAGNER, 1997, p. 35).
33
Documento online não paginado.
77
34
O jornal Correio da Manhã, de 14 de novembro de 1904, assim como outros jornais da
época, registra a indignação do povo em relação à instituição da lei que instituía a vacina
obrigatória. Diz o jornal: “Foi extrema a indignação que o projeto do regulamento da vacina
obrigatória excitou no ânimo de todos os habitantes de Rio de Janeiro, cuja sensibilidade
ainda não embotou interesses dependentes do governo e da administração sanitária”
(VACCINAÇÃO..., 1904, p. 1).
35
Michel Foucault falando sobre o nascimento da medicina social distingue três etapas sobre o
seu processo de formação. A medicina de Estado, medicina urbana e a medicina da força de
trabalho (FOUCAULT, 1986).
36
A partir da descoberta do médico inglês William Harvey (1578-1657), sobre a circulação do sangue ainda em
1628, muda-se paulatinamente a compreensão sobre o corpo. A saúde passa a ser vista como responsabilidade
78
individual em vez de dádiva de Deus, a começar pela limpeza da pele, alterando desse modo, hábitos de vestir
e de asseio pessoal (SENNET, 2003). A Pele, sendo um órgão respiratório de significativa importância, deveria
ser mantida em bom estado de limpeza. A salubridade é base material hábil em garantir a saúde dos indivíduos.
É nessa perspectiva que a prática do banho é difundida. O banho começa a aparecer na literatura, nos romances
e memórias. Tomar banho e limpar as fezes do corpo tornou-se uma prática particularmente urbana e de classe
média. A partir de meados do século XVII, o banho é praticado nos países quentes, embora mais comum para
mulheres aos poucos fica reservado à limpeza das partes intimas. É considerado ainda nessa época como
prática de luxo pelo custo despendido. Nesse sentido, o banho marca as distinções sociais, como delimitação
do espaço burguês, impondo, pela sua hierarquização social, um código de distinção. Nesse contexto, a
insalubridade denota ignorância e atraso e o progresso da sociedade só poderá vir através de uma visão,
normatizadora do caos social. Impera a idéia de homem saudável, não doente, homem modelo (e modelado). A
idéia de corpo limpo saudável sugeria também que o próprio desenho urbano da cidade deveria possuir as
mesmas características de higiene por analogia ao corpo. Nasce aqui o conceito de medicina urbana e
higienista. Gondra (2004) ressalta que o modelo de formação dos indivíduos ao longo do século XIX, no
Brasil, pauta-se antes de tudo num projeto higienizador e moral que inclui questões relativas à salubridade da
localização e arquitetura escolar, vestimenta e cuidados pessoais, nutrição exercícios físicos, eliminação dos
resíduos no corpo e modelação dos sentidos, vinculadas aos sentidos da visão, do tato, do olfato e do paladar,
educação moral e religiosa.
79
37
Os cantadores de modinhas, entoadas em rimas, aproveitaram-se de temas polêmicos para tratá-los de modo
extrovertido, registraram através da música, além de outros temas, a “volubilidade, a despreocupação, a ironia
complacente do malandro nacional exteriorizadas nas canções resultantes de grandes agitações como as
causadas pela lei do selo, a reforma da higiene, a vacina obrigatória” (RIO, [1951?]). Nas palavras de João do
Rio “o selo só fez compreender ao malandro que os fornecedores podiam ser multados” [...]: “Sapateiro já não
pode / Bater sola sossegado / Se não selar as botinas / Catrapuz! está multado” (RIO, [1951?]). Do mesmo
modo em relação a lei da vacina. “Uma das canções mais populares sobre a peste bubônica tem este estribilho:
Os ratos fazem qui, qui, qui / Qui, qui, qui, qui, qui / As pulgas pulam daqui / Pra ali, dali praqui, daqui prali /
Os gatos fazem miau / Miau, miau, miau / Quem inventou a peste bubônica / Merece muito pau” (RIO,
[1951?]).
80
é dado à vadiagem e contribui para os objetivos do estado. Com o músico trabalhador, tema
central desse capítulo, tais preceitos não estão noutra via.
Até a primeira metade do século XX o discurso sobre o trabalho aparece como
central, junto à ideia de progresso da nação. Conforme escreve Martins Castelo, cronista de
rádio, em 1942, se reportando a década passada.
38
“Cheguei cansado do trabalho / Logo a vizinha me falou / Ó seu Oscar / Tá fazendo meia
hora / Que sua mulher foi embora / E um bilhete deixou / O bilhete assim dizia / Não posso
mais / Eu quero é viver na orgia / Fiz tudo para ver seu bem-estar / Até no cais do porto eu fui
parar / Martirizando o meu corpo noite e dia / Mas tudo em vão, ela é, é da orgia / É... parei!”
(BATISTA; ALVES, [1940]).
39
Documento online não paginado.
81
Para a classe média daquela época, viver de música ainda era considerado uma
prática que não gozava de boa reputação (ZAN, 2004a) (Só a partir do surgimento da Bossa
Nova é que é que se tem a superação do amadorismo musical no sentido artístico do tema. É
acima de tudo, um sinal de distinção entre música popular de qualidade e música comercial).
Aos poucos o samba e a música popular começam a ganhar prestígio, principalmente com o
surgimento de cantores e instrumentistas brancos “alguns até de boa família, como o Mário
Reis” (PEREIRA, 1967, p. 228).
Entretanto, durante a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, o Departamento
de Imprensa e Propaganda (DIP) convence aos sambistas compositores a utilizar como tema
em suas músicas o trabalho, em oposição, principalmente, a outros que fizessem alusão à
orgia e malandragem. Os sambas e marchinhas da década de 1940 faziam com freqüência
menção aos temas relacionados à despreocupação com a vida cotidiana.
Ainda no ano de 1938, o samba Tenha Pena de Mim40 (SOUZA; BABAÚ, [19--
?])41 ("Trabalho e não tenho nada, não saio do miserê”) (SOUZA; BABAÚ, [19--?]) provocou
discussões a respeito da letra entre o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e os
compositores. Em conseqüência dessas discussões viu-se a partir de então várias canções que
40
“Ai.. ai.. meu Deus! Tenha pena de mim / Todos vivem muito bem só eu que vivo assim / Trabalho e não tenho
nada, não saio do "miserê" / Ai.. ai.. meu Deus! Isso é pra lá de sofrer / Sem nunca ter, nem conhecer felicidade
/Sem um afeto, um carinho ou amizade / Eu vivo tão tristonho fingindo-me contente / Tenho feito força pra
viver honestamente / O dia inteiro eu trabalho com afinco / E à noite volto pro meu barracão de zinco / E pra
matar o tempo e não falar sozinho / Amarro essa tristeza com as cordas do meu pinho” (SOUZA; BABAÚ [19-
-?]).
41
Documento online não paginado.
82
42
“Quem trabalha é quem tem razão / Eu digo e não tenho medo de errar / O bonde de São
Januário / Leva mais um operário / Sou eu é que vou trabalhar / Antigamente eu não tinha
juízo / Mas resolvi garantir meu futuro / Sou feliz, vivo muito bem / A boemia não dá camisa
a ninguém” (BATISTA; ALVES, [1941]).
43
Documento online não paginado.
44
“Eu hoje tento tudo, tudo que um homem quer/ Tenho dinheiro, automóvel e uma mulher/
Mas para chegar ao ponto em que cheguei/ Eu trabalhei, trabalhei, trabalhei/ Eu hoje sou feliz/
E posso aconselhar/ Quem faz o que eu já fiz/ Só pode melhorar/ E quem diz que o trabalho/
Não dá camisa a ninguém/ Não tem razão. Não tem, não tem” (ROBERTI; FARAJ, [19--?]).
83
45
A música de barbeiros contém a essência evolutiva e constitutiva da formação da classe de profissionais da
música no Brasil: “tudo através de uma curiosa evolução que, partindo de pobres negros barbeiros, de pé no
84
João do Rio conta que os músicos ambulantes criavam suas estratégias para poder
sobreviver da música e que, embora não tivessem boa aparência, não eram mortos de fome.
chão, passaria sucessivamente aos mestiços da baixa classe média do fim do século XIX, conhecidos por
chorões, e aos músicos profissionais do rádio das três primeiras décadas do pressente século, para chegar aos
rapazes de bem da década de 60, cultivadores da chamada bossa nova” (TINHORÃO, 1997, p. 133).
85
Acrescenta ainda,
Viver de música não significava exatamente estar sob o mundo da orgia. João do
Rio cita o caso de Vicente, um músico italiano que se fazia passar por cego e com seu ofício
sustentava a família. Mas havia também os portadores de realejos escravizadores, músicos
malandros que viviam de modo epicurístico dedicados às mulheres, ao jogo e vinho.
De certo modo, o músico ambulante ganhava o necessário para permitir-lhe o
sustento básico. Ainda que João do Rio afirme que esses músicos ambulantes, em muitos
casos, ganhavam rios de dinheiro.
Aliado ao fato de que no contexto citado por João do Rio o músico consegue
ganhar dinheiro exercendo sua atividade, é fundamental destacar dois tipos diferentes de
profissionais da música: o artista lírico e o músico ambulante. Aqui a exposição da imagem
do músico ambulante é construída como uma pessoa pouco asseada e que apesar de ganhar
rios de dinheiro, é pedinte, que vive uma vida quase lamentável. Mesmo na condição de
deserdado da sorte, o músico ambulante se mostra tão vaidoso como um artista lírico. Num
ponto ele se iguala a qualquer outro comerciante; na ânsia de ganhar dinheiro. Mas como
argumentado por João do Rio, “de que serviria um realejo senão assegurasse ao seu possuidor,
além do conhecimento da própria alma, a satisfação do estômago?” (RIO, [1951?])46.
A literatura clássica brasileira nos fornece exemplos curiosos a respeito da
imagem pública do músico em finais do século XIX e início do século XX. Considerado
mestre do violão e da modinha Cassi Jones de Azevedo, personagem do romance Clara dos
Anjos, é tido como sujeito mal afamado. Sua má fama se dava por já acumular em seu
currículo cerca de dez defloramentos e a sedução de muito maior número de senhoras
casadas. Tudo isso era associado ao modo como cantava e tocava seu violão, este,
considerado uma espécie de elixir do amor. Cassi não fazia acepção de pessoas. Para tirar a
honra das moças não escolhia classe social nem cor. Apesar de não possuir nem as melenas
comuns aos virtuoses do violão, nem traços do capadócio. Apresentava, no entanto, uma
única pelintragem que se adequava ao seu mister: o fato de “trazer o cabelo ensopado de óleo
e repartido no alto da cabeça, dividido muito exatamente ao meio - a famosa
‘pastinha’”(BARRETO, 2003, p. 25). Sujeito que Joaquim dos Anjos, pai de Clara, põe
profundas restrições a possibilidade de que ele venha a freqüentar sua casa. Era bem verdade
que Joaquim dos Anjos, gostava de música, mas considerava o violão, um instrumento
desmoralizador, além de ter Cassi como um quase analfabeto. A descrição de Barreto
(2003, p. 102), é esclarecedora quanto a postura do personagem em relação a música:
46
Documento online não paginado.
87
Algumas pessoas eram da opinião que como músico Cassi não valia nada, não
aceitavam sequer que um sujeito considerado semianalfabeto, gozasse da fama de artista. Mas
o fato é que Cassi tinha fama, e sua fama era atribuída ao modo “dengoso, do meloso que ele
punha no cantar, chegando a ser até uma indecência. Ele cantava que parecia estar num café-
concerto, no meio de mulheres de vida airada [...]” (BARRETO, 2003, p. 105).
O escritor Lima Barreto, noutro romance descreve o alvoroço causado na
comunidade em motivado pela iniciativa do Major Policarpo Quaresma - personagem do
romance Triste fim de Policarpo Quaresma – em dedicar-se ao estudo do violão:
Antes o violão era mal visto. Depois o violão começou a ganhar aceitação
nas camadas mais ricas da população. As moças de boa família começaram a
aprender violão. O Patrício Teixeira foi uma violonista prêto que encontrou
um nôvo meio de ganhar dinheiro ensinando violão para moças da sociedade
[sic.] (ALMIRANTE, 1963, p. 229).
Eu era músico desde 1919, mas quase não tinha trabalho. Um dia, em 1925,
um compadre meu que também era músico, veio a minha casa avisar que
uma orquestra famosa da cidade, que só tocava em danças, estava precisando
de músico. Fui procurar o maestro. Êle me perguntou o que eu sabia tocar:
violão, bandolim, pandeiro e tamborim, respondi. Então êle me perguntou: o
que eu é que eu vou fazer com você? Minha orquestra não tem repertório
que exija o uso dêsses instrumentos. Preciso é de um pianista e de um
violinista, e dos bons. Quando ia saindo, êle me chamou e disse: dê uma
demonstração do que você sabe fazer. Dei. Êle gostou mais repetiu as
mesmas palavras. Três anos depois fui procurado por êsse mesmo maestro
que foi logo perguntando: Você ainda quer trabalhar comigo? Eu disse:
quero. [...] Depois disso, toquei em orquestra de rádio; fiquei conhecido e
cheguei a tocar durante muitos anos no Cassino da Urca [sic.] (PEREIRA,
1967, p. 230-231)47.
47
Depoimento fornecido por um músico não identificado constante na obra de Pereira (1967,
p. 230-231).
89
bem raro o local que não aceite negro, cantor ou músico. Hoje êles estão na
moda. Mas naquele tempo [sic] (PEREIRA, 1967, p. 234)48.
As duas citações acima, apesar de longas, são de suma importância por recuperar
falas de músicos que vivenciaram o início da construção de todo um complexo cultural ligado
à música industrializada. Nessas narrativas destaca-se o fato de que até 1919 as oportunidades
de trabalhos para o músico eram escassas. Instrumentos como violão e bandolim, só tiveram
aceitação (pelo menos em São Paulo) algum tempo depois. E por último, a clara
discriminação sofrida pelo músico negro nesse contexto incipiente da música popular
industrializada.
A evidente marginalização do exercício da profissão musical no Brasil ainda hoje
pode ser constatada. No ano de 2002, como ministrante da disciplina Metodologia da
Pesquisa em Música, do curso de Bacharelado em Música da UFRN, realizamos uma
atividade como parte das tarefas curriculares da disciplina. Munidos de um arcabouço teórico,
organizamos um roteiro que incluía alguns questionamentos relacionados à iniciação musical
dos jovens da cidade de Acari, no Rio Grande do Norte. A atividade constava de coletas de
dados mediante a realização de entrevistas direcionadas aos músicos da banda daquela cidade.
Um dos entrevistados ao ser indagado a respeito da discriminação do ofício disse:
“Justamente, fui discriminado: ah, quem toca em banda é o cara que bebe: é o que fuma, o que
não presta, o desmantelado. E o pior é que eu era tudo isso [risos]” (informação verbal) 49.
Pode-se questionar no que diz respeito ao tema da marginalização da profissão do músico, que
tais fatos são notados apenas no âmbito da música popular. De fato, ela se fez mais presente
nessa esfera artística, numa época em que as noções de popular e erudito, no interior do
exercício da profissão musical, eram bem mais acentuadas que hoje. Não desconsideramos o
fato de que a aristocracia da época do Segundo Reinado Imperial, no Brasil, dava expressivo
apoio às artes. Mas o artista, de um modo geral, fosse ele músico, escultor ou pintor, caso
desejasse uma melhor formação tinha que ir estudar na Europa. Para concretizar tal projeto, o
músico que não dispunha de recursos financeiros, dispunha de poucas alternativas de apoio.
Uma delas era o prêmio viagem, dado pelo Conservatório de Música, vinculado a então
Academia de Belas-Artes, ou ainda, o poderia ser beneficiado pelo imperial bolsinho, uma
espécie de auxílio concedido aos artistas talentosos por Sua Majestade Imperial, ou
simplesmente aos que tinham a sorte de cair na sua graça. A versatilidade do músico no
48
Depoimento fornecido por um músico não identificado constante na obra de Pereira (1967,
p. 234).
49
Informação fornecida durante entrevista realizada junto a Banda Filarmônica de Acari Felinto Lúcio, na cidade
de Acari, Rio Grande do Norte em 2002.
90
Império ainda já era considerada uma estratégia de sobrevivência. Veja-se o caso de Vítor
Augusto Nepomuceno, pai de Alberto Nepomuceno. Ele acumulava as funções de violinista,
regente, professor, compositor e organista da catedral de Fortaleza. No que concerne a
atuação desses compositores da chamada música erudita já se demarcava um território.
Alguns críticos da época, entre eles, Oscar Guanabarino, defendiam existir duas extirpes de
compositores. Um, dedicado a música artística, autor de obras sérias e outro, fabricante de
música de danças, cuja produção era destinada ao mercado, sendo tocadas nos teatros e
editadas para consumo do público urbano 50. Geralmente esses artistas recebiam pela execução
da obra (espetáculo, encenação) e pela publicação da música impressa. É preciso lembrar que
até a transformação da música num produto industrializado, especificamente (para demarcar
temporalmente), com o surgimento da Casa Edson,
50
A aceitação da música popular nas escolas e conservatórios só se dará bem mais adiante e paulatinamente.
Lembre-se que a criação do primeiro curso de nível superior em música popular no Brasil deu-se no ano de
1989, na UNICAMP. Anterior a essa data há casos registrados de alunos que foram proibidos de tocar música
popular no Conservatório ou Escola de Música.
91
presencial, nas salas de concerto ou ao ar livre), traz novas oportunidades de emprego para o
músico (ampliando o até então restrito mercado), possibilita o surgimento de um mundo de
celebridades, dentre outras importantes mudanças ocorridas. Como coloca Tinhorão (1981, p.
23):
51
Televisão (TV).
52
Informação verbal transmitida pelo personagem Francisco (pai de Zezé Di Camargo e
Luciano) exibida no filme: 2 FILHOS de Francisco: a história de Zezé Di Camargo &
Luciano. Direção: Breno Silveira. [Estados Unidos]: Sony Pictures, c2005. 1 DVD (129 min.)
53
Informação verbal transmitida por Mirosmar (Zezé Di Camargo) exibida no filme: 2
FILHOS de Francisco: a história de Zezé Di Camargo & Luciano. Direção: Breno Silveira.
[Estados Unidos]: Sony Pictures, c2005. 1 DVD (129 min.)
95
para irem com o Miranda] então diga para o seu filho que ele vai fazer faxina!” (informação
verbal) 54. Finalmente na estrada, a dupla tem boa recepção e chega a cantar para quantidades
expressivas de pessoas. Porém, num acidente automobilístico morre Emival, e, vê-se assim
interrompida de modo dramático o sonho da família Camargo. “Prestes a quase desistir de
cantar, Mirosmar retoma a carreira, anos mais tarde e agora como Zezé Di Camargo”. Em São
Paulo compõe para duplas sertanejas com projeção mídia e grava um disco solo, cuja
repercussão foi insignificante. Casado e com duas filhas, Zezé não consegue sustentar sua
família vivendo de música. Pensa mais uma vez em desistir. Nesse momento encontra em seu
irmão Welson (Luciano), onze anos mais novo, a parceria para o próximo disco. “Está quase
pronto, seu Adiel. Daqui a pouco estamos nas lojas, não estamos?” (informação verbal) 55.
“É..., não é bem assim... uma coisa é gravar, outra coisa é lançar o disco” (informação
verbal) 56. “Mas o senhor disse...” (informação verbal) 57. “Eu disse que ia gravar e estou
gravando..., e já é muito” (informação verbal) 58. No ano de 1990, Zezé Di Camargo e Luciano
gravam e lançam um disco com a música É o Amor, composta por Zezé. Com a ajuda do pai,
os 2 filhos de Francisco conquistam as rádios e vendem um milhão de discos.
No que interessa a nossa análise, intenciona-se destacar alguns aspectos referentes
à produção da música industrializada visualizados nesse filme. A primeira coisa a ser
destacada é a ideia do sucesso, reconhecimento e meta do trabalhador da música, via
indústria fonográfica. O músico cantor é visto como aquele que tem talento inato, cujo
reconhecimento e legitimação são mediados pela gravadora e expresso nos altos índices de
vendagens. Quando se vende grandes quantidades de disco, quando a música do artista é
tocada nas rádios e quando a imagem do artista é veiculada constantemente nos principais
54
Informação verbal transmitida pelo personagem Francisco (pai de Zezé Di Camargo e
Luciano) exibida no filme: 2 FILHOS de Francisco: a história de Zezé Di Camargo &
Luciano. Direção: Breno Silveira. [Estados Unidos]: Sony Pictures, c2005. 1 DVD (129 min.)
55
Pergunta proferida por Zezé Di Camargo ao produtor do disco (no estúdio) já prestes a
finalizar a gravação, exibida no filme: 2 FILHOS de Francisco: a história de Zezé Di
Camargo & Luciano. Direção: Breno Silveira. [Estados Unidos]: Sony Pictures, c2005. 1
DVD (129 min.)
56
Resposta proferida pelo produtor do disco a Zezé Di Camargo exibida no filme: 2 FILHOS
de Francisco: a história de Zezé Di Camargo & Luciano. Direção: Breno Silveira. [Estados
Unidos]: Sony Pictures, c2005. 1 DVD (129 min.)
57
Palavras proferidas por Zezé Di Camargo ao produtor do disco exibida no filme: 2 FILHOS
de Francisco: a história de Zezé Di Camargo & Luciano. Direção: Breno Silveira. [Estados
Unidos]: Sony Pictures, c2005. 1 DVD (129 min.)
58
Palavras proferidas pelo produtor do disco a Zezé Di Camargo exibida no filme: 2 FILHOS
de Francisco: a história de Zezé Di Camargo & Luciano. Direção: Breno Silveira. [Estados
Unidos]: Sony Pictures, c2005. 1 DVD (129 min.)
96
meios de comunicação, o artista é visto pelo senso comum como sendo alguém que
conseguiu vencer na vida. Outro aspecto merece destaque. O produtor musical de Zezé Di
Camargo e Luciano tinha razão: gravar um disco até a década de 1980, ainda exigia um
investimento com altos custos. Claro que paulatinamente, ocorre um barateamento nos custos
de produção, em parte pelo o surgimento de gravadores multicanais semiprofissionais,
tornando o estúdio mais acessível. Porém lançar um disco sempre foi sinônimo de grandes
investimentos. Sobre esse aspecto a Revista Veja, no ano de 1997, publicava uma matéria
intitulada Talento para fazer milhões onde tratava do rigoroso controle em todas as etapas
de fabricação do disco, para o fabrico do sucesso. O artigo coloca que “para subir ao topo das
paradas, faturar milhões e se tornar motivo de amor e paixão da platéia, talento é condição
necessária para vencer, mas está longe de ser suficiente ou mesmo determinante”.
(PIMENTA; SANCHES, 1997, p. 128).
Para se colocar um artista em alta no ápice do sucesso artístico é preciso um
investimento significativo (marketing e dinheiro). As gravadoras chegavam a ter custos mais
elevados com o processo de divulgação e distribuição do que mesmo com produção do
trabalho. Mas, não basta somente investimento financeiro, todo processo é subsidiado por um
detalhado planejamento e realização de pesquisa de mercado (PIMENTA; SANCHES, 1997).
A inserção do artista no mercado é apoiada pela divulgação do trabalho em horários nobres
nos diversos veículos de comunicação, distribuição grátis de discos, produção de videoclipe e
para garantir o estouro no rádio, recorre-se ao procedimento conhecido como new-jabá, ou
seja, uma espécie de acordo promocional conjunto entre várias emissoras de rádio. A
gravadora fornece às rádios brindes promocionais para que sejam sorteados entre os ouvintes.
Ao referir-se à diversificação dos investimentos e à segmentação do mercado fonográfico na
década de 1970, Dias (2000, p. 79) enfatiza a tendência das empresas de discos em se
concentrar na promoção do que se denominava “artista de marketing”, aquele artista que
possuía uma atuação delineada a partir de projetos específicos elaborados por produtores e
empresários. Era em artistas com esse perfil que se dava o maior investimento da empresa no
que diz respeito ao aspecto promocional. Já para o artista de catálogo, artistas com carreiras
já consolidadas, a maior parte do investimento era destinada à produção musical.
Hoje, mesmo em processo de extinção, o CD já não é mais um fim, e, sim um
meio do artista tentar conquistar uma fatia do mercado. As empresas fonográficas, já há
algum tempo com as várias etapas da produção terceirizadas, cuidam prioritariamente da
distribuição do produto, em ampliar a quantidade de produtos já existentes. A gravadora
97
Aqui se faz necessário destacar a importância das corporações de ofícios 59. Eram
compostas por artesãos associados; mestres, proprietários das oficinas, os companheiros,
trabalhadores experientes no ofício que recebiam salário do mestre e os aprendizes,
geralmente adolescentes, que recebiam do mestre o ensino orientado para o exercício da
profissão. Cabe salientar que até o século XVIII, só as pessoas que trabalhavam por jornada,
59
Anterior as corporações de ofício, registra-se na Itália, durante a alta idade média as Scholae (associações de
ofício) constituída de pescadores e açougueiros. Há razões, segundo alguns autores, para se inferir que
provavelmente a utilização do termo Scholae pode indicar a preocupação não só com a formação, mas pode
que exibiam conhecimentos de natureza cultural e pedagógica, providos de singulares técnicas de transmissão.
O uso do termo ‘corporações’ somente passou a ser difundido na Itália a partir da segunda metade do século
XIX galgado num projeto fascista de neo-corporativização em prol do progresso econômico. O uso do termo
corporation, tanto para o inglês quanto para o francês, possui sentido comercial e industrial e assim também é
entendido no contexto americano. Muito embora no latin arcaico, corporatus significasse ‘membro de um
corpo moral’, onde o corpus poderia ser referir a uma associação ou uma comunidade - universitas (RUGIU,
1998, p. 24-25).
98
bem como os demais trabalhadores manuais eram remunerados pelo seu trabalho, só os
artesãos recebiam por sua obra. As corporações possuíam clara estrutura hierárquica,
regulavam a atividade produtiva bem como o acesso as técnicas de produção. Os estudos dos
aprendizes eram custeados pelos pais. O acesso a condição de mestre dava-se mediante a
elaboração de uma obra prima ou de outro modo, quem se casasse com a filha do mestre (ou
viúva), já sendo companheiro, era promovido à condição de mestre. Mas a rígida estrutura
hierárquica das corporações dificultava sobremaneira as promoções, o que acabou por revoltar
aprendizes e companheiros, que nutriam poucas esperanças quanto a possibilidade de
ascensão a melhores condições de trabalho, levando conseqüentemente ao desgastes dessas
entidades. Foram suprimidas com a Revolução francesa em 1789, pois foram consideradas
conflitantes com o ideal de liberdade do homem. As corporações de ofício se apresentam no
decorrer da história das profissões como entidades portadoras de um rigor organizacional
(mister) e dotada de um modo de fazer secreto (mistério), características de uma formação
profissional artesã. A tradição formativa artesanal até o século XIX considerava que
Escolas de Ler e Escrever, onde também os jesuítas ensinavam a cantar e tanger; nos
seminários, com um mestre de solfa; e, nas matrizes e catedrais com um mestre de capela60.
Durante o período imperial tem início no Brasil o ensino institucionalizado de música, a partir
da criação da Sociedade de Beneficência Musical, em 1833, transformado pelo Governo no
Conservatório de Música do Rio de Janeiro, no ano de 1841. O Conservatório, no entanto, só
teve efetivamente iniciado suas atividades a partir de 1848. No ano de 1855, o Conservatório
foi vinculado à Academia de Belas Artes. Anos mais tarde, em 1889, com o advento da
Proclamação da República, por meio do Decreto nº. 143, de janeiro de 1890 (BRASIL, 1890),
o Conservatório é extinto e cria-se o Instituto Nacional de Música. Posteriormente, em 1937,
o Instituto Nacional de Música passa a se chamar Escola Nacional de Música, e, já na segunda
metade do século XX, em 1965, em decorrência do Decreto nº. 4.759 (BRASIL, 2003),
promulgado durante a ditadura militar, passa a se chamar Escola de Música da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
Durante a administração do pianista e compositor Luciano Gallet (1930-1931), o
Instituto Nacional de Música foi incorporado à Universidade do Rio de Janeiro,
transformando-se no primeiro estabelecimento superior de ensino da área musical61. O novo
currículo teve a contribuição de Mário de Andrade e Antônio de Sá Pereira. Para Mário de
Andrade, era fundamental que os conservatórios fossem imersos no contexto do ensino
universitário. Ele veio externar claramente isso anos mais tarde. No ano de 1935, num
discurso de colação de grau, como paraninfo, coloca:
60
Eurico Nogueira França coloca no livro A música no Brasil que se tinha notícia de que no
século XVII havia uma escola para desenvolver as habilidades musicais dos negros. Depois
da expulsão dos jesuítas do Brasil seus discípulos passaram a atuar ministrando aulas de canto
e instrumento e até de composição na Real Fazenda de Santa Cruz, criada por D. João VI. Os
músicos oriundos dessa escola atuavam nas capelas reais (FRANÇA, 1952). Cernicchiaro
(1925) deixa registrado que se tratava do Conservatório dos Negros.
61
Esse itinerário percorrido pela Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), rumo à
oficialização de seus cursos foi percorrido também por outras instituições de ensino musical do país que foram
incorporadas às instituições federais de ensino superior, entre elas a EMUFRN.
102
para as coisas da música. Nem isso sequer! Cada qual traz a sua preocupação
voltada apenas para a parte da música em que se especializou. Quem que
tenha convivido com nossos músicos, ou apenas seguido o ramerrão dos
concertos, sabe disso tanto como eu. Os violinistas vão aos recitais de sues
próprios alunos ou, dos violinistas célebres, os pianistas, só se interessam
por teclados. Essa a regra comum, quase uma lei cultural entre nós. Uma
curteza de espírito assombrosa; um afastamento desleal das outras artes, das
ciências, da vida econômica e política do país e do mundo; uma
incapacidade lastimável para aceitar a existência, compreendê-la, agarrá-la;
uma rivalidade vulgaríssima; uma vaidade de zepelin sozinho no ar. Cada
qual se julga dono da música e recordista em especialidade (ANDRADE,
1991, p. 188).
Talvez estejais ainda lembrados da armadilha com que quase todos os anos
inicio os meus cursos de História da Música... À pergunta que faço sobre o
que os meus alunos vieram estudar no Conservatório, todos respondem, um
que veio estudar piano, outro canto, outro violino. Há catorze anos faço tal
pergunta. Não tive até hoje um só aluno que me respondesse ter vindo
estudar música [sic] (ANDRADE, 1991, p. 187).
Nas palavras de Mário de Andrade reside um dos principais argumentos para que
se tivessem os conservatórios no Brasil sob égide da universidade 62: um conhecimento
musical que possibilitasse uma formação humanista, mais ampla.
Falando sobre a música no espaço universitário, Vieira (2004, p. 145) coloca:
62
O processo itinerante que demarca o percurso dos Conservatórios até a transformação em
Escola de Música, entendendo esta como instituição universitária, aponta para um conjunto de
mudanças significativas na área musical, originários do próprio sistema acadêmico
universitário. As escolas de música no Brasil, enquanto instituições especializadas de ensino
se adequaram, no decorrer do tempo, a uma estrutura organizacional possuidora de grande
rigor burocrático se empenhando agora por também abranger atividades de pesquisa e
abandonando seu caráter eminentemente conservatorial europeu.
103
63
Boethius (c. 480, c. 524) expressivo teórico da Baixa Idade-Média, autor de Os Fundamentos da música (De
Institutione musica), foi o responsável pela difusão do conhecimento musical grego para a cultura ocidental.
Ele classificava os músicos em três categorias: 1) Teóricos: classe superior dotada de inteligência; 2)
Compositores: classe média com algum discernimento e inteligência; e 3) Instrumentistas e cantores: classe
inferior, ignorante.
64
Documento não paginado.
104
criação de um título exclusivo para a área se dá a partir do ano de 1959, com a criação do grau
de Doctor of Musical Arts.
No Brasil ocorre uma maior distância entre a natureza dos conservatórios e as
universidades, com estas dando menor ênfase à performance, o que evidencia a antiga
discussão entre prática e teoria. Muito embora este cenário esteja se modificando a partir do
surgimento dos cursos de graduação em música (inclusive música popular) nas universidades,
onde são oferecidas várias habilitações nessa área.
A pesquisa e a reflexão, como se sabe, são intrínsecas a Universidade 65, mas
parece que isso não é claramente compreendido na área musical. Tecendo reflexões sobre o
fazer e refletir em música, Duprat (1997, p. 3) afirma:
Melhor seria, então, que tais atividades fossem agregadas a um nível técnico
sofisticado, do que fazer passar por universitárias atividades que não o são.
Esta é uma opção que a Universidade, nas suas autênticas funções de
Universidade, acabará tendo de fazer. Porque é á Universidade que cabe
precipuamente a tarefa de refletir, especular sobre as suas diversas atividades
e sobre as atividades da sociedade, sobre o fazer e o agir. Porque sem
reflexão não há prática, não há ação, não há produção.
O texto de Duprat (1997) nos traz alguns aspectos interessantes. Como muitas
vezes o currículo universitário não propicia mecanismos apara inserção do egresso no mundo
do trabalho, a carreira acadêmica acaba sendo uma via empregatícia, embora restrita, para
muitos profissionais que não encontram outros espaços para atuar. É coerente pensar, por
exemplo, que conteúdo musical formativo um currículo para pianistas clássicos apresenta para
possibilitar a inserção desse profissional no mundo do trabalho. Quando sugere um nível
técnico sofisticado como alternativa profissionalizante, Duprat de modo algum está excluindo
a reflexão da formação técnico-profissional, mas apenas salientando que as atividades de
65
Sobre a pesquisa no âmbito universitário é importante que se teça algumas considerações. Influenciado pelas
ideias da corrente neo-humanista defendida por W. Von Humboldt, Fichte e Schleirmacher. A partir de meados
do século XIX, o ensino universitário alemão se caracteriza pela liberdade de ensino; pela liberdade do
pesquisador e do estudante (liberdade de aprender, liberdade de ensinar, recolhimento e liberdade do
pesquisador e do estudante, enciclopedismo). Ocorre nesse período o crescimento de seminários e o
surgimento de novas disciplinas como a Filologia, Matemática e a Física. Os grandes cursos nos quais se
estudam os importantes sistemas filosóficos cedem paulatinamente seu lugar à especialização. Tendo como
suporte laboratórios e clínicas, essa visão do ensino tem como objetivo a formação de professores e
especialistas. Posteriormente a França segue o modelo alemão e desenvolver também a pesquisa. O modelo
universitário germânico também influenciou as universidades americanas. Com o intuito de formar elites para
o novo contexto urbano-industrial, a emergência do sistema universitário americano baseia-se no utilitarismo e
crença no progresso econômico, flexibilidade e combinação de disciplinas, aliando formação técnica
profissional à geral ou científica. As disciplinas são organizadas por departamentos e não por cadeiras. Um fato
significativo, é que a partir do início do século XX, passa-se a dar mais importância à pesquisa, amparado
pelos laboratórios e institutos agora ligados às universidades e subsidiado por ótimas condições estruturais
(equipamentos, bibliotecas, acomodações profissionais, etc.) patrocinados pelo mecenato e doações
(CHARLE; VERGER, 1995, p.71-95).
105
Isso por um lado é bom porque o professor tem em suas mãos o destino da
instituição. No entanto, por outro lado, é também conflitante para o músico.
Porque o professor de música, de instrumento, além de dar aulas, é também
artista, recitalista, atividade que demanda muito tempo e prática constante.
Até porque ele é o primeiro referencial para seu aluno, que está sempre na
expectativa de ver seu professor tocar e tocar bem. O músico na universidade
tende a gastar mais tempo com as rotinas burocráticas do que com sua
prática musical e isso tende a levá-lo a um desânimo (informação verbal)66.
66
Informação fornecida pelo professor RFL, durante entrevista, na EMUFRN.
107
4.1.1 Preâmbulo
bandas de forró, bandas pop). A intenção foi manter a fidelidade das expressões muitas vezes
registradas na informalidade dos depoimentos a mim concedidos. Foi uma maneira de
registrar o linguajar usado no dia-a-dia desses músicos sem perder o conteúdo sublinhado
pelas falas.
4.1.1.1 I Ensaios
um tanto difícil, pois ao terminar o ensaio, todos muito apressadamente se ausentavam, uma
vez que não sentiam prazer em estar ali. O ensaio da Banda ocorria inicialmente num galpão
da prefeitura, antes usado como oficina de carros. Agora dispunham de uma sala exclusiva,
mas ainda necessitava de melhorias; de um isolamento e tratamento acústico e de um
equipamento de ar condicionado. Além da questão salarial e das melhorias das condições de
trabalho, incomodava a Euterpe ainda o fato de que a instância administrativa para qual havia
prestado concurso, não tinha ainda um plano de cargos e salários para o profissional da
música. Buscando informações sobre sua condição de funcionária pública municipal,
descobriu que o músico profissional estava inserido num subgrupo denominado Grupo de
Assistente de Serviços Gerais (GASG), divididos entre aqueles profissionais cujo
desempenho da função não era exigida escolarização (copeiro, coveiro) e outro que se exigia
minimamente o ensino fundamental (guarda municipal, músico, fotógrafo). Pensara então em
mobilizar seus colegas em prol de reivindicações que proporcionasse melhorias para o grupo e
em recorrer a Ordem dos Músicos do Brasil (OMB) no intuito de que ela pudesse mediar as
reivindicações da Banda, mas a OMB era uma instituição desacreditada pela maioria dos seus
colegas. Na verdade Euterpe percebia haver um descrédito da própria ingerência da Banda;
seus componentes não entendiam, por exemplo, por que se registrava a falta de alguns
músicos e para outros se fazia vista grossa. Acreditava-se que havia certo favorecimento em
torno de alguns privilegiados, eram os mafiosos, como se dizia na Banda. Os componentes
iam chegando, e à medida que o grupo ia se completando a zoada era ensurdecedora. Todos
aqueciam ao mesmo tempo. Um dos seus colegas de naipe acabara de chegar.
– Oi Euterpe..., cansada?
– Muito...
– Vamos nos reunir após o ensaio para tratar de nossas reivindicações? Perguntou
Euterpe.
– Não sei... Estou um pouco sem estímulo..., o pessoal é muito acomodado. Não
entendo como não se incomodam com esse cheiro forte de mofo. Lembra do nosso último
ensaio? Falei que o cheiro tava insuportável, e, que nessas condições, era impossível
ensaiar..., e aí o que foi que fizeram? Inicialmente concordaram e disseram: “realmente, não
dá pra ensaiar”. Mas aí o maestro disse: “ok pessoal, mas, então vamos passar só uma
música”. Só que já tínhamos definido: “Não dá pra ensaiar”. Aí, saiu eu, você e outra pessoa
da Banda, em ato de protesto, todos os demais músicos ficaram, eles reclamaram,
reclamaram, mas ficaram lá..., ou seja, dentro de um grupo, onde estamos trabalhando juntos,
113
não era pra todo mundo ter se unido em prol dessa causa e não ter ensaiado? Ter batido o pé e
não ter ensaiado?
– Sim..., você tem razão – disse Euterpe.
– Mas aí quando você vai perguntar e questionar as pessoas sobre o motivo pelo
qual não se retiraram do recinto, elas respondem: “a gente tem que tomar cuidado aqui,
porque senão a gente perde o nosso emprego, sobretudo os que estão na banda e na orquestra;
os que têm acúmulo de cargos”. Essas pessoas se esquecem que esse cheiro forte de mofo está
prejudicando a todos. Tanto nós quanto eles podemos adquirir algum tipo de problema
respiratório em decorrência disso..., é estranho até; estamos juntos musicalmente, ao tempo
em que estamos sozinhos na luta por condições dignas de trabalho, entendeu? Não se pensa na
coletividade, é cada um por si e Deus por Todos!
– É..., acho que temos que primeiro sensibilizar as pessoas aqui para lutar em prol
delas mesmas... – exclama Euterpe.
– Mas enfim, podemos tentar. Diz o colega de profissão.
O grupo se completa. Os músicos afinam seus instrumentos junto ao spalla e o
maestro pede silêncio.
algumas décadas no Brasil as atrizes que quisessem atuar recebiam a mesma carteira
fornecida pela então Delegacia de Costumes às prostitutas. Na Europa, durante um longo
período, a mulher se via muitas vezes impossibilitada de exercer a música publicamente, uma
vez que a etiqueta não permitia sequer que ela tivesse seu nome impresso na partitura. Ainda
assim, era requisitada como cantora, muito embora ainda no século XIX ainda se fizesse uso
dos castrati, cantores castrados antes da adolescência de modo a preservarem o registro agudo
da voz, nas companhias de óperas. De um modo geral, seja como compositora, ou solista a
mulher não tinha espaço garantido nesse incipiente mercado da música.
No que concerne a um contexto específico sobre esse tema, Lima (2006) falando
sobre a paulatina inserção da mulher nas bandas norte-rio-grandenses descreve a impressão,
ainda na década de 1990, atribuída ao ofício musical na comunidade seridoense do Rio
Grande do Norte.
de ingressar no exercício da profissão musical, um fato ocorrido com o escritor Lima Barreto,
ao escrever para o A Lanterna, em 25 de janeiro de 1918 (BARRETO, 1918). Ele comenta
da reivindicação que as meninas (estudantes musicistas) do Instituto de Música fizeram aos
jornais da época, cobrando que se tivesse por ocasião da colação de grau do curso de música,
um anel de formatura, a exemplo de outras profissões. O autor responde as musicistas assim
(Chamando-as também ironicamente por sacerdotisas de Euterpe – deusa da música e da
poesia lírica):
Lima Barreto, em tom debochado, situa o estudo musical das mulheres estudantes
do Instituto de Música do Rio de janeiro, atribuindo ao curso concluído apenas a agregação de
valor para se conseguir um bom casamento. O anel, a ser exposto, mostraria publicamente o
seu valor, mas, enquanto sinônimo de um dote, pois para Barreto (1918)68: “[...] de todas as
profissões femininas, a que tem maiores possibilidades entre nós é a de professora de
música”. A desqualificação de Lima Barreto a solicitação das estudantes de música ainda vai
além, ele questiona a capacidade musical das formandas (não fica claro no texto se; por serem
mulheres, ou serem alunas do referido instituto):
A música, entre nós, é a única arte em que raramente aparece uma tentativa
de criação. Entregue, como está, a moças, melhor, a mulheres, que em geral
nunca em arte foram criadoras - estudam unicamente para o professorado - a
arte musical, na nossa cidade, não dá nenhuma demonstração superior da
nossa emoção, dos anseios e sonhos peculiares a nós. Limita-se a repetir,
trilhando os caminhos batidos. Não há invento nem novidade (BARRETO,
1918)69.
67
Documento online não paginado.
68
Documento online não paginado.
69
Documento online não paginado.
116
Minha irmã [...] já tocou numa banda de forró [...] A preocupação de minha
mãe era muito maior quando ela saía para tocar do que quando eu venho
para Natal estudar. Acho que é devido ao ambiente. E no ambiente de uma
banda sinfônica você está lidando com pessoas mais [...] Acho que era a
preocupação dela [minha irmã] se envolver com coisas que não prestam na
noite [como] prostituição, bebidas, que no ‘ambiente sinfônico’ você não vê
(MAIARA, [200-] apud LIMA, 2006, p. 84).
Maria Euterpe da Silva, nome fictício dado a uma personagem construída com
base nos vários depoimentos por mim colhidos, situa a mulher musicista num contexto atual.
Euterpe não ganha menos que seu colega de naipe, ganha o mesmo salário e está tentando
lutar por melhorias de trabalho para o grupo. Quando se trata de se ir à busca de
oportunidades de trabalhos, os conflitos e as tensões manifestas no mundo artístico são as
mesmas para homens e mulheres, embora o tratamento dado a estas ainda seja diferenciado,
como ocorre em outras esferas profissionais. Se a mulher musicista, ao se inserir no mundo
artístico, vê-se impelida a romper com vários obstáculos específicos ao gênero, essas
dificuldades aumentam entre as que têm filhos, dado ao papel ainda legado a elas como
cuidadora e mantenedora do lar. Euterpe desconstrói até certo ponto essa imagem.
Outro tema deixado nas entre linhas por Euterpe é o papel da OMB no âmbito das
reivindicações dos interesses coletivos dessa classe profissional. De um modo geral, o músico
não reconhece a OMB como sua representante. Muitos são da opinião de que a instituição não
funciona, além de possuir uma legislação totalmente desatualizada e em descompasso com o
atual mercado de trabalho. No entanto, me ocuparei de situar melhor esse tema objetivando
contextualizar os supostos conflitos ocorridos ao longo dos anos entre os músicos e esse
órgão.
A OMB instituída a partir da União dos Músicos do Brasil (UMB) tem como
idealizador o maestro e advogado paraibano José de Lima Siqueira, no ano de 1957, em pleno
117
70
Documento online não paginado.
118
71
Ver também o Art. 59 da Lei nº 3.857 - de 22 de dezembro de 1960 que trata dos tipos de empresas
empregadores (BRASIL, 1960).
72
Documento online não paginado.
119
consta que a má performance musical tenha causado prejuízo a alguém” (PHILIPPSEN, [200-
?] apud FINOTTI, 2002, p. E3). Na cidade de Campinas, Estado de São Paulo, uma liminar
concedida pela justiça garantiu para cinco músicos respaldo legal para se apresentar, sem ter
que se filiar a Ordem dos Músicos e conseqüentemente pagarem anuidade. O juiz ao emitir a
liminar faz referência a Constituição Federal Brasileira que garante a liberdade de expressão,
incluindo a artística e o livre exercício da profissão (A ORDEM..., 2004). Curiosamente,
reportando-se até o ano de 1962, o então senador Saulo Ramos, contrário a decisão de
submeter compositores e cantores à uma banca examinadora para avaliação profissional
argumenta: “a pior banca examinadora que um artista pode enfrentar é o público”
(MORELLI, 2000, p. 195-196).
Recentemente a discussão sobre a OMB teve um desfecho de grande repercussão
no Estado de São Paulo. Trata-se da aprovação da Lei nº 12.547, de 31 de janeiro de 2007
(SÃO PAULO, 2007), que dispõe sobre a dispensa de apresentação da Carteira da OMB, na
participação de músicos em shows e espetáculos afins que se realizem no Estado de São
Paulo73. A lei se justifica na ideia de “proporcionar aos músicos a possibilidade de exercerem
seu mister, sem nenhum tipo de constrangimento” (SÃO PAULO, 2003)74.
No que diz respeito ao entendimento jurídico sobre esse assunto, a questão é
bastante polêmica. Muitos músicos enxergam na OMB um órgão regulamentador com
possibilidades de garantir a manutenção dos direitos dessa classe. Consideram que a
vinculação a OMB, principalmente para o músico free-lance, para efeitos legais, é de extrema
importância. Para alguns a regulamentação é inconstitucional, pois fere o disposto nos incisos
IX e XIII, do artigo 5º, da atual Constituição Brasileira, que diz: “IX - é livre a expressão da
atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou
licença [...]. XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as
qualificações profissionais que a lei estabelecer” (BRASIL, 1988)75. Para outros, essa
interpretação é equivocada, uma vez que se trata de uma atividade econômico-produtiva, que
em decorrência dessa natureza precisa de regulamentação. Desse modo, é entendido que, não
73
Eis a redação da lei: “Faço saber que a Assembléia Legislativa decreta e eu promulgo a seguinte lei: Artigo 1º -
Ficam os músicos, no Estado de São Paulo, dispensados da apresentação da Carteira da Ordem dos Músicos do
Brasil na participação de shows e afins. Artigo 2º - Esta lei será regulamentada no prazo de 60 (sessenta) dias,
a contar de sua publicação, estabelecendo-se os critérios e as penalidades a serem impostas aos infratores.
Artigo 3º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. Palácio dos Bandeirantes, aos 31 de janeiro de
2007. José Serra - João Sayad (Secretário da Cultura)- Aloysio Nunes Ferreira Filho (Secretário-Chefe da Casa
Civil). Publicada na Assessoria Técnico - Legislativa, aos 31 de janeiro de 2007” (SÃO PAULO, 2007, p. 1,
grifo nosso)
74
Baseado no Projeto de lei nº 1.302/2003 (SÃO PAULO, 2003), do Deputado Alberto "Turco Loco" Hiar do
Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).
75
Documento online não paginado.
120
4.1.1.2 II Na lanchonete
uma pessoa versátil, sem limitações..., uma espécie de ‘músico Bombril’, o que possui ‘mil e
uma utilidades’, porque o mercado não tá fácil”. O modo como Chico conduzira sua formação
condizia com as convicções por ele assumidas e defendidas. Tinha ingressado no Curso
Técnico como baterista, querendo aprender a tocar de modo “mais consciente”, ter
experiência com instrumentos de percussão e levar pra bateria o que havia aprendido, mas aí
visualizara outra coisa: “Eita..., mas pra eu ganhar dinheiro como é que vai ser?” Pensou em
como diversificar seu campo de atuação. Começou por investir na música erudita, pois
objetivara tocar numa orquestra. Concomitantemente, passou a tocar bateria numa banda
especializada em música latina e a fazer participações em shows avulsos, na maioria das vezes
indicado por colegas. Sempre que precisavam dos seus serviços, era acionado: “chama Chico
Batéra”. E por fim, com o conhecimento que havia adquirido no Curso Técnico, ainda
ganhava uns trocados editando partituras no computador. Sempre que era indagado sobre sua
versatilidade, respondia na ponta da língua: “antes de qualquer coisa nós somos músicos,
né?... e enquanto músico você não precisa se limitar a tocar um instrumento..., é claro que a
gente precisa escolher um para se aprofundar, mas é extremamente necessário que o músico
seja versátil. Se não for assim, fica a margem do mercado, sempre reclamando, que não tem
oportunidade”. Há poucos dias um colega saxofonista, que também compartilhava de suas
ideias, comentou numa dessas ocasiões também na lanchonete:
– Rapaz, no mercado de hoje, totalmente restrito e competitivo, o músico tem de
aderir a tocar outros tipos de instrumentos..., porque é a tendência do mercado, né? Acho que
daqui pra frente vai ser comum a gente ouvir de proprietários de banda ou estúdios: “rapaz
você toca saxofone?”, aí você responde que sim, “Mas, toca flauta?”, “não toca?”, “então,
beleza, vou chamar outro saxofonista”. Porque ele quer exclusivamente um saxofonista que
também toque flauta, pois o custo é menor. Foi o que de fato aconteceu com os músicos, num
concurso que houve recentemente aqui na Escola: o edital especificava uma única vaga para
quem tocasse saxofone e clarinete.
Enquanto fazia o desjejum pensava nos seus projetos futuros. Nesse semestre
ainda concluiria o Curso Técnico.
Um colega violonista senta ao seu lado e indaga:
– Pronto para a prova?
– Mais ou menos..., não tive tempo de estudar.
– É..., eu também..., às vezes acho tudo isso uma perda de tempo...
– E aí..., vamos tentar o vestibular para o bacharelado em música? Dia vinte,
encerram-se as inscrições – diz Chico.
122
– Não sei cara..., vi a matriz curricular..., achei o curso muito teórico..., gostaria
de fazer um curso que formasse a pessoa pra realidade, pra vida..., porque às vezes se exige
conhecimentos que só irão ser válidos aqui, dentro desse mundo acadêmico, entendeu? Na
vida, “no vamo vê”’, quando você precisa trabalhar..., é outra história.
– Concordo em parte com você...
– Por quê?
– Acho que, segundo o que colegas me contam, o problema do Curso é se prender
demais a grade curricular entendeu? Por exemplo: duas vezes um colega meu foi reprovado,
por falta, numa disciplina que chamam de “Prática de Conjunto...”. Imagine que ele não via
sentido em freqüentar as aulas. Ele já trabalhava profissionalmente com a Orquestra
Sinfônica, além de tocar já há cinco anos num conceituado grupo de jazz.
– Não entendi.
– Veja bem, ele já havia adquirido experiência de “Prática de Conjunto” e as
atividades propostas para a disciplina não iriam acrescentar nada a sua formação. Vê que
sacanagem... , com toda essa experiência, ele ainda teria que cursar essa disciplina, entendeu
agora? Fora isso, acho que o curso propicia ao músico a oportunidade de ampliar
possibilidades de atuação no mercado.
– É pode ser... , mesmo assim não me sinto atraído por fazer um curso desses.
Esse diploma, a meu ver, só terá valia para quem pretende ingressar como professor
universitário..., meu negócio é tocar, é palco, entendeu?
– Acho que você devia pensar melhor cara... . Mas vamos lá..., vamos para nossa
prova – falou Chico se encaminhando para os degraus que davam acesso a sala de aula.
O aprendizado que parece ser mais justo com o músico popular, o músico
que trabalha na noite, que acaba trabalhando [também] em estúdios, é um
[tipo] de aprendizado que é obtido no traquejo com a música; no tocar na
noite, no ensaio. É uma coisa muito intuitiva, muito da percepção. Na noite
se encontra poucos músicos com uma formação pautada nos rudimentos
teórico-musicais, mas são grandes profissionais, otimizados para
desempenharem uma atividade específica. O aprendizado se dá por meio do
traquejo no contato com outros músicos (informação verbal) 76
76
Informação fornecida por Mário Cavalcanti (professor de contrabaixo elétrico da
EMUFRN), na EMUFRN em 2006.
77
Documento online não paginado.
78
Informação fornecida por Mário Cavalcanti (professor de contrabaixo elétrico da
EMUFRN), na EMUFRN em 2006.
125
situações que se apresentam para quem toca na noite (solicitação de músicas pelo público
não inclusas no repertório, transposição de tonalidade, improvisação, etc.), possibilitam ao
músico esse traquejo. A classificação brasileira de ocupações define a base da formação do
músico intérprete como heterogêneo, reconhecendo que poderá
Com o passar dos tempos nota-se, seja no campo erudito ou até mesmo no popular
a opção pelo conhecimento acadêmico formalizador do saber-fazer profissional em
detrimento do autodidatismo. Não que tal prática venha a desaparecer completamente, mas o
126
próprio nível requerido para atuação exige uma formação cada vez mais técnica e
especializada, mas também, versátil e ampla.
Se no campo da música o autodidatismo ainda é valorizado, os cursos acadêmicos
nessa ainda são vistos com certas reservas pelos músicos. Nesse sentido, uma das personagens
do Conto II, questiona a valia dos conhecimentos apreendidos na escola para o exercício de
sua profissão.
Os currículos dos institutos79, conservatórios e escolas de música, durante algum
tempo, apresentaram significativa falta de sintonia com o mundo do trabalho, por expressar,
na opinião de muitos músicos, um conteúdo de pouca utilidade, ou quase nenhuma, no
exercício profissional do músico instrumentista. Tal concepção foi fruto de um ideal de
formação institucional, cuja concepção de ensino objetivava formar o músico “performático”
por excelência, o virtuose, empreendimento este que alcançou pouco sucesso, dado os poucos
atrativos monetários que a profissão oferecia e o fato de que nem todas as pessoas que
estudavam música queriam necessariamente seguir uma carreira profissional.
Uma das reclamações dos músicos em relação aos currículos escolares, sempre foi
a falta de sintonia dos conteúdos disciplinares com os necessários para se atuar no mercado de
trabalho, ou seja, de se ter que assimilar conteúdos pouco utilizados no exercício profissional
do instrumentista; em situações concretas. Os cursos livres de música, modalidade de curso
não regulamentada pelos sistemas oficiais de educação (o correspondente aos cursos de
extensão nas universidades), apresentavam como componentes curriculares a teoria musical e
o estudo do instrumento. O primeiro, tido muitas vezes como sinônimo de alfabetização
musical, foi sempre acusado de conter conteúdos pouco requisitados na performance do
futuro instrumentista. Mas a crítica a essa teoria musical, além de conteudística é também
metodológica; por não proporcionar ao aluno recursos cognitivos para mobilizar e transpor
tais saberes para situações concretas.
A tensão estabelecida entre o currículo e o mercado, dar-se pelo fato, pelo menos
na área musical, de a escola não atender plenamente nenhuma coisa nem outra. É importante
destacar que Castro (1988) aponta como um dos problemas relativos ao ensino da música nas
instituições musicais especializadas o processo de construção do saber. Para ele “a escola de
música concebe a questão do saber-música de uma forma estática, imóvel, e funda o seu
79
A Exigência de um currículo, que pudesse nortear as atividades de ensino da escola, parece
ser uma exigência implícita na reforma educacional proposta pela Lei 9.394 (BRASIL,
1997b). Pelo menos na área musical a escola se valia apenas do regimento e dos planos de
cursos, contendo os programas disciplinares e repertório a ser estudado. Portanto, a exigência
de um Projeto Político Pedagógico é recente.
127
4.1.1.3 III Como num jogo de xadrez: o músico como gestor da incerteza
O saxofonista que ainda não havia externado sua opinião diz de modo incisivo:
– Mas o que fecha muito o mercado, no que diz respeito às oportunidades de
trabalho para os metais, principalmente em gravações, é o fato de apenas um naipe ser
chamado pra gravar. Trata-se da famosa e conhecida panelinha. Na verdade ou entra por
meio da panelinha ou por política. Precisamos romper com esse mau hábito, que privilegia
apenas uns poucos.
– Mas existe a questão do mérito, da competência, né? O cara lá tem um estúdio e
diz: “só gravo com saxofonista ‘tal’ porque o ‘bicho’ não me dá problema”, ou seja, não deixa
de ser uma “panelinha”, mas o cara entrou nessa panelinha por competência – argumenta o
guitarrista.
– É..., por mérito – diz a pianista.
– Mas concordo que existem os dois, realmente – completa o saxofonista.
– Só que quando você é beneficiado por influência política, pode ser colocado pra
fora a qualquer momento... – acrescenta o percussionista.
– É..., já por competência ninguém tira – concordou o violinista.
– Exato, é o diferencial, né? É o que cada um tem que ter; o seu diferencial.
Mesmo que dois músicos desempenhem a mesma função, cada um tem que ter o seu
diferencial– diz o guitarrista.
– É isso aí pessoal, tirando as “panelinhas”, tirando tudo; se o músico for
obstinado pela ideia de fazer bem o seu trabalho, estudando, tendo uma identidade própria,
acho que ele irá se dá bem. Dificuldades todas as profissões apresentam, umas mais outras
menos – fala o saxofonista.
– Tudo isso é como jogar xadrez, né? As jogadas estão todas ali. Você pode vê-las
ou não. Muitas vezes a solução é uma coisa que a gente nem pensou ainda, porque a gente tá
muito focado no problema, né? Coloca empolgado o percussionista – O meu irmão costumava
dizer que; “não existe sorte, existe uma pessoa preparada quando se apresenta uma
oportunidade”.
– Exato, devemos estar preparados para quando as oportunidades surgirem,
principalmente no meu caso, que sou pianista, às vezes só a docência salva – diz a pianista...
– Mas para isso, preparando-se. Interrompe o violista – Concordo que tem a
questão do mercado, das oportunidades, mas creio que o esforço também conta. Meu
professor é hoje um dos instrumentistas mais conceituados do país, mas conseguiu esse status
graças a muito estudo. Ele me disse que quando era adolescente ao invés de ficar a toa como
fica a galera hoje, tava era malhando no instrumento.
131
– Porque não é só aguardar o emprego, não, podemos, até certo, ponto influenciar
o mercado – diz o guitarrista.
– Tive uma experiência que até hoje guardo como exemplo. Participei de um
encontro de percussão, onde quem ministrou o curso foi um percussionista de renome
internacional, que é também compositor. Aí, ele fez vários arranjos, várias composições,
editou os livros, gravou os CDs, tudinho dele e bancando tudo. Aí, quando ele vai pra um
lugar, ele vende os CDs, os arranjos, os livros e ainda recebe cachê por tocar... É assim que
sobrevive – coloca o percussionista.
– É..., um cara muito esperto – fala o saxofonista.
– Também acho – concorda o violinista.
– Muito organizado também... – diz a pianista.
– São muitas alternativas, né? Não é só uma, se não der certo, tentam-se outras.
Mas uma saída vai existir – enfatiza o percussionista.
– Ok pessoal, a conversa tá muito boa, mas acho que devemos retomar a discussão
sobre o nosso seminário – diz a pianista.
– Tudo bem, mas antes vamos fazer uma breve pausa para um lanche? Pergunta o
violinista.
Todos concordam e se encaminham para a lanchonete da Escola.
estratégias e táticas diversas, subsidiadas por habilidades tais como: raciocínio lógico-
dedutivo, capacidade de resolver problemas, imaginação e criatividade, dentre outras
qualidades. O tabuleiro do jogo de xadrez (campo de batalha) se apresenta como um espaço
reservado ao exercício do inusitado, porque são também inusitadas as ações do oponente.
O trabalho artístico possui uma aura de incerteza, no que diz respeito ao processo
criativo. A atividade criativa é “a própria essência da produção livre é a desmultiplicação da
idiossincrasia individual, e o trabalho criador do artista é a sua incarnação mais elevada e pura
[sic]” (GENTILI, 1994, p. 25). A inventividade criativa é uma atitude de riscos, sem
prenúncio, sem protótipos, estabelecidos e antemão. Ao improvisar numa performance
musical o artista se utiliza de artifícios técnicos e clichês, ao tempo em que abandona tais
recursos e entra no vazio da incerteza, aceitando os riscos (NACHMANOVITCH, 1993).
Reeves (2002), fazendo uma analogia entre o comportamento da natureza e sua
estreita relação com a arte, destaca como ponto comum a ideia de acaso. Os fenômenos da
natureza são organizados por leis que os regem, mas, no entanto, não indicam com precisão o
fluxo dos acontecimentos. Por isso que não há monotonia nos eventos naturais, pois,
profissional competitiva, cujos ingredientes para o sucesso, além do árduo trabalho, são ainda
o talento e a sorte. A lógica parece cruel, mas, quanto maior o somatório de profissionais a
assumirem o risco, maior as chances de se ter profissionais menos preparado, em
contrapartida maior o impacto na área para quem se destaca. Nessa direção o risco torna-se,
de certo modo um elemento regulador da concorrência interindividual do mercado artístico.
Diferentemente do que ocorre em carreiras previsíveis nas organizações
empresariais, no campo artístico é essencial, para o funcionamento dos mercados das
celebridades, “que o sucesso permaneça incerto, para estimular a inovação, conservar a
dimensão criativa do trabalho e não desanimar concorrentes e novos candidatos” (MENGER,
2005, p. 90). O êxito de sucesso ou o reconhecimento de talentos são legitimáveis ora pelo
consumo de massa, ora pela ideia de qualidade e originalidade, postas como prova
comparativa dos talentos. O surgimento do teclado sintetizador na área musical desempenha
um importante papel, não só no que diz respeito as novas concepções estéticas, mas
modificou completamente o modo de produção da música industrializada. O teclado
(sintetizador) no final da década de 1980 foi um dos grandes responsáveis pelo barateamento
dos custos da produção de um disco. Mas assume parte dessa façanha por descartar as funções
desempenhadas antes por outros músicos. Com o teclado-sintetizador, considerado suas
atualizações-tecnológicas, torna-se possível gravar as partes atribuídas a outros instrumentos
como bateria, contrabaixo, violino, entre outros. Se Por um lado o teclado proporcionou o
desemprego de muitos músicos, por outro, fez surgir um novo profissional da música: O
músico-compositor-aranjador de estúdio. Aquele profissional plural que além de produzir o
disco, tocar arranjar ainda faz o serviço do técnico de mixagem e ainda tem que gerenciar sua
própria carreira. Ao músico profissional autônomo, free-lancer, lhe é também exigido que
seja empreendedor. Os Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Profissional de
Nível Técnico reconhece a necessidade de se incluir essa competência profissional no
currículo:
Ou seja, de acordo com a citação acima o músico deveria ser orientado para gerir
sua própria carreira. Falar que o músico tem de encontrar novas formas de aproximação
135
com público é sugerir que o músico deverá se apropriar das diferentes ferramentas, canais de
comunicação e táticas diversas para disponibilizar sua música. A respeito da importância de
ferramentas como a rede mundial de computadores nesse contexto do trabalho musical, basta
colocar, que, hoje um estudante de música, sendo ainda amador, poderá disponibilizar via
internet sua música para todo o mundo (e até ficar famoso), isso é de certo modo burlar um
pouco o clássico caminho para o sucesso consagrado pelo mercado da música. Uma das
diferenças do musico de hoje para o de décadas atrás é que antes ele entregava sua carreira
para ser gerenciada por outras pessoas (gravadora, agente, produtor musical), hoje se exige
que ele seja o próprio gestor do processo, ou seja; ele tem que saber gerir para se promover e
fazer com que o produto que ele cria a musica chegue a alguém. Parte da ideia agora, que no
mundo produtivo o profissional tem de ter capacidade para se adaptar a novas situações que a
atividade profissional lhe impõe; ser possuidor, também, de uma capacidade gerencial e
estratégias de marketing.
inimigo" – para sobreviver procurando espaços para que possa se promover: tocando em
bares, pequenos eventos, geralmente ele deixa um portfólio, release e um CD demonstrativo.
Falando sobre o artista no contexto das profissões Menger (2005, p. 26) ressalta que “o artista
é ao mesmo tempo trabalhador, e mestre da desmultiplicação de si, saltimbanco e homem de
métier, impaciente face a todo limite e igualmente hábil a inventar soluções inéditas para gerir
os riscos aos quais se expõe”. O prefixo des, deixa claro que o termo desmultiplicação, não
deve ser usado como sinônimo de multiplicação. O termo desmultiplicar tem a ver com
desaceleração, mas um modo diferente de desacelerar. Quando dirigimos um automóvel e
mudarmos da terceira para segunda marcha, estamos diminuindo (desmultiplicando) a
velocidade do carro ao tempo que este ganha força. Nessa redução da engrenagem o veículo
perdeu velocidade, mas adquire maior potência, detalhe fundamental, se quisermos conduzir o
automóvel por um aclive. No contexto da atividade artística desmultiplicar, significa o ato de
dividir o trabalho em várias tarefas, com vistas a aumentar as chances para se chegar ao
objetivo principal.
figura do empresário tal qual o personagem conhecido como o homem banda80” (Figuras 1, 2
e 3), indivíduo que dado aos seus apetrechos demonstra uma versatilidade caricatural ao lidar
com tantos instrumentos. Recentemente o estúdio cinematográfico Pixar produziu um curta
metragem, que também reproduz essa capacidade profissional múltipla, necessária ao músico
para sobrevivência. No caso de A banda de um homem só da Pixar, trata-se de dois músicos
multi-instrumentistas, que enfrentam num árduo embate musical para ganhar a atenção e uma
moeda de um único expectador, no caso uma criança. Ganha aquele que, com todos seus
recursos, conseguir impressionar a garotinha. Na verdade, é pouco comum no mundo artístico
as situações de trabalho que possibilitam o músico a prestar serviços de caráter não eventual a
outrem sob a dependência de um salário. Trata-sede um cenário composto por profissionais
autônomos, freelancings e que se relacionam com diversas formas atípicas de trabalho
(intermitência, tempo parcial, multi-assalariado) e quem tem na versatilidade profissional
o principal mecanismo de sobrevivência. Na verdade, termos como músico plural, são
sinônimos de outro conceito que faz presente no léxico referente as orientações curriculares
para a Educação Profissional, trata-se da palavra flexibilidade. Uma educação flexível tem
precisamente seu foco no trabalho e dês-especialização.
4.1.1.4 IV Tá ligado?
80
Habit de Musicien. Nicholas de Larmessin (Paris, 1684 - 1753). There follows a selection of images from a
series entitled Les Costumes Grotesques: Habits des métiers et professions […]. Disponível em: <
http://www.spamula.net/blog/archives/000168.html >. Acesso em: 12 jan. 2008.
138
João do Trumpete, como era popularmente conhecido em Pau dos Ferros, cidade
interiorana do Rio Grande do Norte, estava no aeroporto Deputado Luís Eduardo Magalhães,
na cidade de Salvador, Bahia, esperando o horário de embarque para São Paulo. Iria para um
estúdio, participar da gravação de um disco e de lá sairia para uma tournée na Europa. Pôs
para tocar seu aparelho de MPEG Layer 3 (MP3) ouvindo as músicas do álbum Kind of Blue,
de Miles Davis. Ao som de So What tomava um café expresso e desligava-se do seu entorno,
sob o improviso do sax tenor de John Coltrane. De modo inusitado, um dos seus colegas de
banda, senta-se ao seu lado e pede um expresso. Ambos estavam tocando numa banda de
forró, mais uma daquelas cujo nome possui um sentido ambíguo, do tipo: Ferro na Boneca,
Bicho de Pé, Collo de Menina, Calango Aceso, e tantas outras.
– “E ai véi como e que vão as coisas?” Indaga seu colega músico.
– Cara..., tá rolando o maior bode... Acho que vou tocar na banda só até conseguir comprar
um bom instrumento e um carango..., tá cansativo demais..., tocar em banda sempre foi um
bom negócio pros donos..., pra gente nunca deu pôrra nenhuma, tá ligado?
– É, saquei..., mas não sei bem ainda o que dizer sobre isso...
– Cara, sabia que ganho o mesmo cachê de quando entrei na banda há tempos
atrás? ..., e olha que na época a banda nem era conhecida no Brasil... Hoje os proprietários, o
marido e esposa, possuem uma cobertura” nas principais cidades do país, são conhecidos na
TV, e nós? Continuamos na mesma merda..., ganhando a mesma mixaria. Acho bobeira ficar
ainda na banda.
– Mas por que a galera não se junta e pede aumento?
– Cara, nós até batemos um lero com a dona..., mas aí ela falou que estávamos
chorando de bucho cheio, que ganhávamos mais que um médico..., e que se não
quiséssemos mais tocar, era só falar que tinha uma lista de espera enorme de músicos
aguardando para tocar na banda...
– É..., entendo. Mas, entrei na banda agora..., me acho até cagado; estava sem
ganhar um tostão..., fodido, sem trampo nenhum..., por enquanto, não tenho nada do que
reclamar.
– Falo por mim. Cada um sabe onde o sapato aperta..., só sei que não tenho tempo
pra mim, nem pra minha família, viajo muito..., nem pra tocar o que gosto tenho tempo..., pra
estudar meu instrumento..., fico nesse troço sem futuro, chega uma hora que cansa, né?
– Pôrra cara..., mas, fazer o quê? Na nossa área é caixão mesmo, a gente termina
tocando coisas que não gosta. Quantas vezes a gente não escuta um ou outro músico dizendo:
139
ah, véi, eu não gosto desse estilo aí, mas eu vou tocar..., vou ganhar essa grana, porque tô
precisando, senão, não iria, cada um se vira como pode.
– Vê então, que fulerage, a gente ter que lidar com essa situação sinistra; a gente
faz o que gosta, porque a música é pura vibração, energia, mas aí vem a necessidade de
ganhar dinheiro nos forçando a pegar qualquer trampo, tá ligado?
– Mermão, é o seguinte, no momento não vejo saída para esse troço não..., mas,
digo a tu, que se um dia puder me dar o luxo de não tocar por grana, seria muito massa. Eu
desejaria isso pra gente. Porque aí eu iria tocar, quando realmente tivesse afim; com e para as
pessoas que eu quiser, saca? Mas isso é viagem. Por enquanto não posso rejeitar nenhuma
chance para ganhar dinheiro na música..., vivo disso..., dou uma força pra meus pais e cinco
irmãos. Acho que para a maioria dos músicos é uma questão de sobrevivência mesmo.
– É isso aí..., mas estou na batalha, estou botando fé que irei melhorar minha
situação financeira, ser um músico de moral, justamente pra um dia tocar a música que eu
quero, e tocar com prazer, tá ligado?
Nesse momento ambos se encaminham para sala de embarque 81.
4.1.1.5 V No ônibus
81
Glossário de gírias usadas na crônica: 1) Bater um lero: Ter uma conversa séria; 2) Bobeira: vacilo, erro; 3)
Boiar: Não entender, estar por fora do assunto; 4) Botar fé: acreditar; 5) Bucho: Barriga, estômago, ventre; 6)
Cagado: Sortudo; 7) Cara: Denominação para pessoa de maneira informal; (sinônimos meu, mano, brother);
8) Carango: Automóvel; 9) Dá uma força: Ajudar; 10) E aí: Saudação (o correspondente a oi, como vai,
tudo bem?); 11) É caixão!: O mesmo que difícil, complicado; 12) Esquema: Referente a uma ação tática,
como ir, fazer, trocar, comprar etc.; 13) Fodido: Estar em situação má ou desesperadora; estar sem saída
(sinônimos; frito, ferrado, lascado); 14) Fulerage: (Fuleiragem): algo que não preste; 15) Galera: Grupo,
conjunto de pessoas (amigos, torcedores, plateia); 16) Grana: Dinheiro; 17) Legal: Algo bom, divertido; 18)
Maior Bode: Desânimo, tristeza; 19) Massa: (ver. Legal); 20) Mermão: Junção de meu irmão (ver. Cara);
21) Mixaria: Coisa sem valor; insignificância, bagatela; 22) Pôrra: Expressão que denota enfado,
impaciência, desagrado; 23) Sacô?: O mesmo que entendeu?; 24) Sinistro: De difícil explicação (sinônimo;
tenebroso); 25) Tá ligado: O mesmo que entendeu?; 26) Ter moral: Pessoa que é respeitada em algum
lugar; 27) Trampo: Trabalho, oportunidade de emprego; 28) Troço: Negócio, coisa indefinida; 29) Véi: (ver.
Cara); 30) Viagem (I): Estar no mundo da lua, não estar presente mentalmente; 31) Viagem (II): Devaneio,
situação utópica, situação fora da realidade.
140
distante da cidade, na periferia. Ao todo, o percurso durava cerca de uma hora. Tivera que
tocar muito para adquirir seu instrumento, até um empréstimo fizera para completar o valor.
Já havia feito amizade com vários motoristas e cobradores da linha. Durante o percurso da
viagem era comum observar olhares surpresos indagando sobre que tipo de coisa seria aquilo.
O formato do estojo dava uma dica: era uma espécie de violão grande. Mas, poucas eram às
vezes em que a curiosidade desses eventuais passageiros era satisfeita. Só quando
perguntavam: “eita..., o que é isso homi, é um caixão, é?”. Num desses dias, o ônibus estava
quase vazio e o cobrador resolveu puxar conversa:
– Rapaz, sempre vejo você com esse negócio aí..., pelo menos isso dá algum
dinheiro?
– Mais ou menos.
– Então porque você não arranja um emprego? Pra ganhar a vida, a gente tem que
dar duro.
– Pô cara, você acha que tocar a noite toda não é trabalho?
– Acho que isso é diversão.
– A música me traz muita satisfação..., é o que sinto..., independente se vou
ganhar bem ou não. Tenho um amigo que cursou até o terceiro ano de medicina, mas sempre
gostou de música..., e aí abandonou a medicina para se dedicar só a música, hoje é um
profissional desta área. A gente tem que fazer o que gosta, né? De que adiantaria desempenhar
a medicina de modo medíocre, só pensando na grana? E é o que mais acontece por aí...
– Mas, ganhar dinheiro não conta? Pergunta o cobrador.
– Sem dúvida, conta, mas o sentimento, a satisfação de tocar e o prazer de fazer
música, isso não tem preço.
Observando o diálogo entre os dois, um rapaz que se encontrava sentado diz:
– Pessoal, permitam-me participar da conversa. Eu também sou músico, toco
piano, e, convenhamos, é difícil fazer música sem pensar no aspecto financeiro. Chega um
momento em que a gente cai na real. Optei por ingressar na área artística, encantado com a
música (não que a gente perca esse encanto), mas, com o passar do tempo a gente vê que
precisa comprar bons instrumentos, livros, partituras, fazer cursos fora para se aperfeiçoar, e,
acima de tudo, sobreviver, para isso precisamos de grana.
– A questão é que não me imagino exercendo outra atividade. Escolhi a música
como profissão e apesar de não ter o retorno financeiro que gostaria, sou feliz com o que faço.
Vê bem gente; ser um profissional da música me satisfaz porque estou lidando com uma coisa
que é dinâmica. Algo que está sempre se recriando, onde cada momento é único. Olha que
141
bacana! Exercer uma profissão onde é possível a gente se renovar a cada instante, entendem?
Explica o contrabaixista.
– Entendi..., é bom pensar que nossa profissão se enquadra nesse tipo de
comparação. É legal perceber que aquilo que se faz não se reduz a rotina – coloca o pianista.
– Claro..., tudo isso é lindo isso, mas eu imagino que o músico, como qualquer
pessoa, espera ter um retorno financeiro naquilo que faz, afinal, como todo mundo, ele precisa
pagar as contas de água e luz no final do mês, enfim, sustentar a família... – argumenta o
cobrador.
– É..., não é uma profissão fácil. Ás vezes cansa ter de batalhar tanto pra ganhar
uma mixaria, pra poder fazer valer a nossa arte, entendeu? Por isso estou cursando Direito...,
é o meu plano B, caso não dê certo a música. Fala o pianista.
– Muito bem pessoal, valeu aí, desço na próxima parada, a gente se vê – diz o
contrabaixista se despedindo.
De acordo com as informações colhidas nos questionários por mim aplicados aos
os alunos do Curso Técnico da Escola de Música da UFRN, a maioria dos entrevistados acha
o mercado da música difícil, competitivo e com pouca oportunidade de trabalho. Outra
parcela afirma que há uma relativa dificuldade de alguns instrumentos (como violão, piano)
em inserir-se no mercado de trabalho. Para estes profissionais só a docência salva. A esse
respeito destaco alguns extratos de depoimentos: “Acho que não tem muitas opções e nem
oportunidades, o que deixa vários músicos desempregados e outros vão tocar nessas bandas
de forró totalmente banais, mas uma boa oportunidade dada pelo governo é de mestres de
banda” (informação verbal)82. “[O mercado de trabalho para o música é] difícil, pois muitos não
capacitados acabam por amizade tomando o lugar de bons músicos capacitados, não há uma unidade
entre os músicos, enfim [...] muita coisa” (informação verbal)83. “Infelizmente é pouco o mercado de
82
Informação fornecida por um aluno de clarinete na EMUFRN em 2006.
83
Informação fornecida por um aluno de canto na EMUFRN em 2006.
142
trabalho para a área na qual me dedico - música erudita. No entanto, a música popular tem um amplo
espaço para novos representantes” (informação verbal)84.
Como na primeira citação acima, e de igual modo na fala de João do Trumpete,
personagem do Conto IV, parte dos músicos ou vê-se explorado pelas bandas (bandas-bailes,
bandas de forró) ou ainda não possuem nenhuma identificação com o repertório a que é
submetido a tocar. O magistério artístico aparece como uma importante alternativa de
trabalho, principalmente para instrumentos que possuem pouca (ou restrita) inserção no
mercado da música. Nesse sentido os instrumentos de orquestra trazem uma perspectiva de
inserção mais favorável. Mas os estudantes ainda relacionam o acesso a oportunidade de
trabalho a competência profissional.
De um modo geral, os estudantes reconhecem que se trata de uma área
profissional difícil, mas que estão dispostos a enfrentar os desafios, sobretudo por estarem
exercendo a atividade profissional numa área, que proporciona alegria e prazer e segundo a
visão deles, proporciona suas realizações pessoais, pois, além de ser uma profissão, a
música é uma atividade prazerosa. Noutras palavras, além de ser o exercício da profissão uma
atividade provedora do sustento material, ainda assim é acompanhada de satisfação. Para a
maioria dos estudantes entrevistados a música lhes traz realização (ou satisfação) pessoal,
apesar de admitir que estejam tendo pouco retorno financeiro. Porém, quando colhemos deles
a opinião de seus familiares sobre a opção profissional por eles escolhidas, vêem-se
argumentos que na maioria das vezes vão de encontro ao que pensam. Em alguns casos os
pais rejeitam inicialmente a ideia de o filho optar pelo trabalho artístico, mas com decorrer do
tempo, e à medida que o estudante mostra empenho, ingressa em cursos, passam a viver da
música, paulatinamente obtém a aceitação da familiar. Segundo o depoimento de alguns
entrevistados, seus pais sequer aceitam a ideia da música ser uma profissão, e mesmo
admitindo ser é considerada desqualificada em relação às outras profissões. Os pais são
incisivos a respeito da rejeição pela opção profissional de seus filhos pela música, motivados,
sobretudo, pelo argumento de que a música não trará a estabilidade financeira aos seus filhos.
Tanto no depoimento dos entrevistados quanto no Conto IV fica enfatizado as
gratificações psicológicas em detrimento da monetária, sobretudo pela ideia de que o trabalho
que o músico desempenha é livre, não rotineiro.
84
Informação fornecida por um aluno de piano na EMUFRN em 2006.
143
A tensão reside no ajuste entre as gratificações psicológicas (realização pessoal), ou seja, nas
gratificações não monetárias e o ganho obtido mediante seu trabalho.
Falando especificamente sobre o retorno proporcionado pela música com alunos
do Curso Técnico de Música da UFRN, a maioria das colocações aponta diretamente para o
fato de que a atividade musical trás para eles realização (ou satisfação) pessoal, apesar de
admitir que estejam tendo pouco retorno financeiro:
“É uma profissão que tem dado um bom retorno, tanto financeiramente, quanto
reconhecimento e sem falar que é prazeroso” (informação verbal) 86
“Até agora só o prazer de está fazendo e estudando o que gosto. Mas passando
para o lado profissional nenhum, pois os cachês que nós músicos fazemos não são
satisfatórios” (informação verbal)87.
Diante das oportunidades trabalho, de acordo com os estudantes, os instrumentos
de orquestra trazem uma perspectiva de inserção mais ampla e favorável. Mesmo assim, uma
fala aponta a necessidade de se criar mais orquestras como meio de gerar mais oportunidades
de trabalho. É importante colocar o entendimento de alguns alunos em relacionar a
oportunidade de trabalho à competência profissional. Mas poucos relacionaram o ingresso no
mercado a aquisição de uma certificação. É preciso salientar que ideia de artista
contemplativo, criador de coisas belas, desinteressado, vai se modificando ao longo do tempo
a partir do momento em que músico adquire a postura de assumir uma relação também
capitalista com a música.
85
Informação fornecida por um aluno de clarinete na EMUFRN em 2006.
86
Informação fornecida por um aluno de contrabaixo elétrico na EMUFRN em 2006.
87
Informação fornecida por um aluno de clarinete na EMUFRN em 2006.
145
Além do que essa reforma educacional se encontrava num momento em que o Brasil almejava
participar da economia internacional. Nesse sentido, as políticas educacionais, concentram-se
em formar recursos humanos, ou seja, força de trabalho para o mercado. Só no ano de 1982
com a promulgação da Lei de n. 7.044 (BRASIL, 1982), torna-se facultativa a
profissionalização no ensino de segundo grau, restringindo a formação profissional a
instituições especializadas como o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC),
Serviço Social da Indústria (SESI), Escolas Técnicas Federais, entre outras (MANFREDI,
2002).
A Educação Profissional, de acordo com o disposto no artigo 39 da Lei n. 9.394,
de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996), que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional está integrada às “diferentes formas de educação, ao trabalho, à ciência e à
tecnologia” e deve conduzir o estudante ao constante desenvolvimento de aptidões para a vida
produtiva. Para implementação das políticas no âmbito institucional, essa modalidade de
ensino ganhou significativa atenção e recursos financeiros88. Em decorrência da reforma,
foram propostas ao projeto político-educacional brasileiro, entre os anos de 1994-2002, novas
orientações curriculares aos sistemas de ensino, entre eles o musical.
A operacionalização das rotinas acadêmicas que a implantação da educação
profissional impôs à viabilização de ofertas, de habilitações técnicas na área musical, às
instituições especializadas, causou alguns transtornos à área, no que diz respeito a esses novos
paradigmas. A tentativa de adequação a esse modelo se deu mais pela exigência de
ajustamento ao modelo pedagógico sugerido pelo MEC do que pela opção consciente a essa
nova configuração curricular. A não assimilação do vasto repertório lexical, que acompanhou
a reforma (competências, habilidades, bases tecnológicas, módulos, flexibilidade,
navegabilidade) pode ser apontada como um importante elemento no processo de análise da
implantação do ensino profissional de nível médio no Brasil.
88
Veja-se a esse respeito às verbas destinadas ao Programa de Expansão da Educação Profissional (PROEP) na
composição da contrapartida da operação de Crédito Externo com o Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID). A Escola de Música de Brasília foi o primeiro Centro de Educação Profissional a
funcionar no País, de acordo com o disposto na Lei 9394 / 96 (BRASIL, 1996) e o Decreto 2.208 / 97
(BRASIL, 1997b) que regulamentou a Educação Profissional. Após haver sido indicada ao PROEP /
Secretaria de Educação Média e Tecnológica (SEMTEC) / MEC firmou convênio de investimentos com
financiamento do BID / MEC / Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Segundo o Jornal a Folha de São
Paulo de 18 de dezembro de 1998, até então o programa de expansão do ensino técnico, financiado pelo MEC
e Ministério do Trabalho, com o apoio do BID, já havia destinados $ 500 milhões para reequipar escolas
técnicas públicas.
147
89
A Educação Profissional, de abrangência nacional, com base nos princípios constitucionais,
regula-se: pela Lei Federal n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996); pelo
Decreto Federal n. 2.208, de 17 de abril de 1997 (BRASIL, 1997b)[revogado]; Decreto n.
5.154, de 23 de julho de 2004 (substitui o Decreto Federal n. 2.208) (BRASIL, 2004a); pela
portaria 646 de 14 de maio de 1987 (BRASIL, 1997a), Diretrizes Curriculares Nacionais
(Parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) / Câmara de Educação Básica (CEB) n.
16/99 (BRASIL, 1999a) e Resolução CNE / CEB n. 04/99 (BRASIL, 1999b) e os
Referenciais Curriculares para cada área. O Decreto 2.208 (BRASIL, 1997b) regulamentava o
§ 2º do art. 36 e os arts. 39 a 42 da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996)
foi revogado e substituído no Governo Lula da Silva pelo Decreto n. 5.154, de 23 de Julho de
2004 (BRASIL, 2004a).
90
“Art. 38 - A educação escolar de 2o grau será ministrado apenas na língua nacional e tem por objetivo propiciar
aos adolescentes a formação politécnica necessária à compreensão teórica e prática dos fundamentos
científicos das múltiplas técnicas utilizadas no processo produtivo” (BRASIL, 1991).
148
flexível. Se por um lado o Decreto Lei de n. 2.208 / 97 (BRASIL, 1997b), tinha estrita
sintonia com as lógicas de produção ultrapassadas, por outro, se apresentava atualizado no
que diz respeito a lógica imposta pelo capital internacional.
Por ser considerado portador de um estreito vínculo com os ditames neoliberais é
que o Decreto Lei n. 2.208 / 97 (BRASIL, 1997b), foi revogado, durante o Governo Lula da
Silva, no ano de 2004. Foi disponibilizado para o público, através da rede mundial de
computadores, o processo e a minuta do ato de revogação. Eis a síntese da justificativa
exposta pelo então Ministro da Educação Tarso Genro, propondo apresentar aos sistemas de
ensino novamente a possibilidade de oferta de cursos de educação profissional de forma
integrada e articulada ao ensino médio:
91
Com a reestruturação do MEC ocorrida no ano de 2004, o ensino médio passa a ser gerenciado pela Secretaria
de Educação Básica e cria-se também uma Secretaria exclusiva voltada à Educação Profissional e Tecnológica
(SETEC). A SEMTEC passa a se chamar SETEC.
150
justificada em face das mudanças estruturais que se esperava em várias áreas, sobretudo a
educacional, mas, que não ocorreram. A política econômica praticada no Governo Lula da
Silva é considerada como a continuação daquela herdada do Governo Cardoso. Nesse sentido,
o Decreto n. 5.154 / 2004 (BRASIL, 2004A) nasce de uma complexa conglobação de forças,
oriundas de entidades da sociedade civil e de intelectuais.
Veja se ainda o que Frigotto; Ciavatta; Ramos (2005, p. 5) diz a respeito:
Como bem coloca esse autor, a aprovação do Decreto Lei de n. 5.154 / 2004
(BRASIL, 2004a), por si não muda nenhuma conjuntura. Já perto do final do primeiro
mandato do Governo Lula, percebe-se mediante as várias análises já realizadas sobre a
implementação do Decreto Lei de n. 5.154 / 2004 (BRASIL, 2004a), que as mudanças no
âmbito das políticas educacionais não se dão simplesmente por meio de decretos, ou seja, o
documento legal não garante a implementação de uma nova concepção de ensino, mesmo
apontando mudanças substanciais. O projeto educacional ideal só poderá vir a ser construído
pelas forças sociais que tem poder de voz e decisão e que por isso fazem chegar seus
interesses ao estado e a máquina governamental, influenciando na formulação e
implementação das políticas.
nexo entre si, elementos que foram tecidos juntos. A complexidade se faz presente “quando
elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como o econômico, o político, o
sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico), e há um tecido independente, interativo e
inter-retroativo entre o objeto do conhecimento e seu contexto [...]” (MORIN, 2000, P. 38).
Na (pós) moderna sociedade capitalista, a produção e consumo de bens materiais e
simbólicos, é a força motriz que alimenta a existência humana, influenciando diretamente as
relações sociais. Nesse sentido, não é cabível o esforço de entendimento de um estudo sobre
determinado fenômeno sócio-educacional sem considerar seu entorno social. A análise das
práticas pedagógicas na área da Educação Musical deixa evidente a influência das reformas
educacionais, do mesmo modo que estas expressam obviamente interlocução com a história
política, social e cultural, a cada momento histórico em que são consideradas. Nesse tópico do
estudo, mas do que realizar um esforço por anexar um rótulo neoliberal às políticas
educacionais do Governo Cardoso, como tem demonstrado a literatura escrita a partir da Lei
de Diretrizes e Bases da Educação, nº 9.394 / 96 (LDB / Lei Darcy Ribeiro), esforça-se por
evidenciar como tal ideologia se materializa nas orientações curriculares.
A análise da implementação de políticas educacionais exige que se identifiquem
os atores mais relevantes, acompanhando as várias etapas do processo. É importante tentar
compreender como as instituições de ensino musical absorveram e exprimiram as políticas
governamentais predominantes, ao mesmo tempo, apontar possíveis conseqüências em
relação ao impacto dessas políticas no âmbito das instituições musicais.
Como já sublinhado anteriormente, deve-se entender o ensino da música como
integrante de um núcleo educacional maior, senão, haverá grandes dificuldades em se
evidenciar elementos que permitirão problematizar o espaço analítico reservado a prática da
Educação Profissional nos estabelecimentos de ensino de música do país.
Com isto chama-se atenção para algumas postulações que se mostram
fundamental à compreensão do tema ora abordado. Cabe lembrar aqui das significativas
mudanças ocorridas com o ensino nas últimas décadas no Brasil. Também, como parte desse
projeto educacional maior, podem os citar o relevante papel das universidades nos diversos
momentos históricos no Brasil. Escrevendo sobre a universidade pública, Chauí (2000)
argumenta que a Universidade pública, como instituição social, pautada nos ideais de
formação, reflexão, criação e crítica, transformou-se na atualidade, numa organização, uma
entidade administrada, ou como ela mesma denomina, uma organização prestadora de
serviços, ou seja, “numa entidade isolada cujo sucesso e cuja eficácia se medem em termos de
gestão de recursos e estratégias de desempenho” (CHAUÍ, 2000, p. 187). Para a autora uma
153
Não vamos exagerar, mas não há dúvida de que a sociedade está cada vez
mais controlada, administrada, subjugada. Não há dúvida de que há muitos
indícios de que essa chamada razão instrumental, razão técnica, essa
tecnificação exacerbada das instituições, das organizações, que vem da
empresa e que penetra progressivamente em diferentes esferas da vida social
está sacrificando cada vez mais aquilo que é o espírito, a cultura, a
criatividade, a independência, a liberdade, e subjugando tudo a algo que é
puramente instrumental e que corresponde à lógica do mercado, à lógica do
capital, à lógica da acumulação (IANNI, 1997).
92
O anexo do Parecer nº 45 / 72, Resolução nº 2, de 27 de janeiro de 1972, fixava os
conteúdos mínimos a serem exigidos em cada habilitação. A habilitação de instrumentista
musical contendo no currículo as seguintes matérias: história da música, harmonia, estética,
canto coral, folclore musical, instrumento e prática de orquestra (Habilitações Profissionais no
Ensino do 2º Grau, 1972, p. 124).
157
ensino obter-se-ia uma clientela melhor preparada para a graduação, além de se ter um curso
de música que forneceria diploma, ou seja, reconhecido e oficializado pelo MEC.
Na prática, porém, o Curso Técnico de Música por algum tempo foi encarado
como uma mera preparação para a graduação, não se propunha necessariamente a qualificar
para o trabalho.
No parecer de n. 1.299 / Conselho Federal de Educaão (CFE) de 1973, a
organização curricular era fixada pelo MEC, já no Decreto Lei n. 2.208, torna-se prerrogativa
e responsabilidade de cada instituição. Ressalte-se ainda que a nova legislação possibilita a
organização curricular dos cursos em módulos, disciplinas ou etapas. Como a perspectiva é de
formação profissional a instituição escolar teria ainda de repensar sua oferta em relação a uma
perspectiva de demanda regional e ou local, conforme sua necessidade. Quanto às orientações
didáticas para o ensino nos vários níveis de educação a partir da nova LDB, tem se priorizado
a formação curricular por competências, conforme consta no Art. 6º do Decreto Lei 2.208:
93
PCNEM, parte II, p. 22-23.
158
94
Resolução CNE/CEB Nº 04/99 estabelece 20 áreas para a educação profissional de nível
técnico. 1. Agropecuária; 2. Artes; 3. Comércio; 4. Comunicação; 5. Construção Civil; 6.
Design; 7. Geomática; 8. Gestão; 9. Imagem Pessoal; 10. Indústria; 11. Informática; 12. Lazer
e Desenvolvimento Social; 13. Meio Ambiente; 14. Mineração; 15. Química; 16. Recursos
Pesqueiros; 17. Saúde; 18. Telecomunicações; 19. Transportes; 20. Turismo e Hospitalidade.
95
Disponível em:<http://siep.inep.gov.br/siep/owa/consulta.inicio>.Acesso em: 23 out. 2004.
96
BRASIL, Parecer n. 16/99, p. 53.
159
processos que darão suporte as competências (Quadro 2). Ou seja, para cada competência a
ser desenvolvida, se tem como suporte um conjunto de conceitos e suportes conteudísticos.
97
Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Profissional de Nível Técnico, 2000, p.
22.
160
mundo do trabalho nas últimas décadas, especificamente na área das artes e espetáculos.
Observam-se nesse setor novas formas de elaboração artística, produção e consumo:
Nesse sentido, o documento defende que a escola poderá contribuir não só para
despertar o interesse das pessoas para a arte, como também, e em grande medida, se apresenta
como lugar onde o artista se aperfeiçoa e obtém conhecimentos que o ajudarão a lidar melhor
com as inovações técnicas, tecnológicas e conceituais ocorridas no mundo artístico e suas
aplicações no exercício da profissão. Os Referenciais Curriculares reconhece ainda as
especificidades do perfil profissional dos trabalhadores dessa área, são, em sua maior parte
autônomos ou free lancers, detentores de seus recursos ou equipamentos próprios de trabalho,
e ainda auto-gerenciadores de suas carreiras.
A área de Artes integra uma das vinte uma áreas profissionais da Educação
Profissional de Nível Técnico, sendo formada por subáreas do campo artístico, como artes
dramáticas, música, artes visuais, dança e circo. Trata-se de uma área que tem como
característica a criação, desenvolvimento, difusão e conservação de bens culturais, de ideias e
de entretenimento. De modo geral essa área “está voltada para a criação, desenvolvimento,
difusão e conservação de bens culturais, assim como de serviços culturais” 99. Nesse sentido,
os planos escolares para os cursos técnicos de música deveriam conter elementos que
simulassem aspectos reais do espaço dirigido ao trabalho do musical caracterizado por aulas
operatórias, dirigido a projetos concretos e experimentais100, ou seja, à simulação dos espaços
de atuação profissional. O uso crescente de recursos tecnológicos; veículos de longo alcance
como o rádio, cinema, TV, internet, tudo esse contexto modifica de modo estrutural a relação
do artista com os meios de produção, seu público e sua arte.
98
Referenciais Curriculares, op. cit., p. 13.
99
Ibid., p. 9.
100
Ibid., p. 26.
161
101
Pará (PA).
102
Grupo de Trabalho (GT)
103
Belém do Pará, 8 set. 2000.
104
Regulamenta o § 2º do art. 36 e os arts. 39 a 42 da Lei Federal nº 9.394/96, que estabelece
as Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
162
CNCT105·. Somente no Estado de São Paulo, numa estimativa parcial, foi possível identificar,
mediante consulta on-line, 60 unidades escolares especializadas em música (entre escolas e
conservatórios), ofertando o ensino técnico, sendo 85% dessas instituições pertencentes a rede
de ensino privada particular, 11% pública municipal e apenas 4% pertencente ao setor
público estadual. É preciso assinalar que, muito embora não constem cadastros algum de
esferas administrativas como o Rio de Janeiro, isso não pode ser deduzido como ausência de
escolas e/ou conservatórios atuantes nessa modalidade de ensino, mas simplesmente como
escolas ainda não cadastradas, fato muito comum desde a implantação da Educação
Profissional ainda nos anos 90, dado a complexidade da adaptação à nova legislação para
algumas escolas e conservatórios; principalmente pelo desafio entender a natureza da reforma
na Educação Profissional. Tratava-se da formação profissional para o mundo do trabalho. Por
outro lado, o Governo Cardoso, entendido como modelo neoliberal, incorporava, no entender
de muitos críticos, em seus fundamentos a lógica de mercado, reduzindo a produção do
conhecimento à formação de mão de obra para a estrutura da produção. Nesse sentido, a
propositura desse novo modelo curricular gerou receios, principalmente pelo aparecimento da
utilização de neologismos e novos conceitos, como competências, no currículo escolar.
Diante de um modelo curricular já muito perpetuado no ensino brasileiro que sempre se
pautou na subdivisão disciplinar, o currículo por competências se mostrou minimamente
como um modelo desconexo e descontextualizado a realidade educacional do momento, uma
vez que os principais atores responsáveis pela implementação dessas políticas, os professores,
viam-se diante de um modelo de ensino cuja estrutura conceitual era para eles, em duplo
sentido, estranha, uma espécie de revolução silenciosa106 vista apenas no alto escalão
governamental.
A lógica curricular, proposta pelos Referenciais Curriculares, conforme
averiguado nos planos curriculares coletados para essa pesquisa, não foi adotada pela quase
totalidade das escolas cadastradas no CNCT – havia só no ano de 2004 mais de cinqüenta
escolas ofertando cursos técnicos no estado de São Paulo. O que se vê nos projetos
curriculares, em sua maioria, é uma relação de competências sugeridas nos Referencias
Curriculares agrupadas em disciplinas 107. Se há algum mérito na disponibilização dos
105
Disponível em: <http://siep.inep.gov.br/siep/owa/consulta.inicio>. Acesso em: 23 out.
2004.
106
Título do prefácio do livro (A revolução gerenciada) do ex-ministro da Educação Paulo
Renato de Souza (1995-2002) escrito pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
107
Sistema de Informação da Educação Profissional (SIEP). Cadastro Nacional dos Planos de Cursos no CNCT.
Disponível em: < http://siep.inep.gov.br/siep/owa/consulta. inicio >. Acesso em 23/10/2004.
163
108
WAGNER, op. cit., p. 56.
109
BENJAMIM, Walter. O autor como produtor. In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São
Paulo: Brasiliense, 1994, p. 136.
164
Estética da sensibilidade
110
Parecer CNE/CEB n. 16/99, p. 119-120.
165
submissão e o conformismo” do indivíduo face ao mundo produtivo capitalista 111. Não se quer
dizer com isso que o trabalhador deixe de ter esmero pelo que faz. Se o trabalhador moderno
não se identifica com o que o que faz, não é porque não dispõe de uma “estética da
sensibilidade”, mas porque há muito, e, em decorrência de um contexto produtivo castrador,
tornou-se alheio ao que faz. Se quisermos enfatizar uma educação que dê conta de dimensões
além do fazer tecnicista, é preferível falarmos de uma educação para o sensível para o
indivíduo (pós) moderno embrutecido no seio da sociedade de consumo.
É sabido que, a partir dos anos 90, presenciaram-se no mundo do trabalho
significativas transformações. O neoliberalismo e a reestruturação produtiva da era da
acumulação flexível contribuíram em grandes proporções para essas mudanças. No caso da
re-apropriação do pleonasmo estética da sensibilidade – pois as palavras originárias do grego
aisthetiké e aisthetikós, já fazem correlação com o sensível – fica assinalado de modo claro o
discurso da qualidade total, pois está “diretamente relacionada com os conceitos de
qualidade e respeito ao cliente [grifo nosso]”112. Nesse sentido, várias instituições que
passaram a tratar o estudante como cliente-aluno. Sobre a aplicação dos princípios
empresariais de controle de qualidade na educação comenta Gentili (1994) num texto
esclarecedor quanto a essa questão:
Todo mundo gosta de qualidade (e sendo total então...), isso não é novidade.
Como bem lembrou Rubem Braga114, todos os serem vivos, de certo modo, cuidam da
qualidade. O peixe rejeita a água poluída, o bebê distingue leite bom e leite ruim,
identificamos quando o ar é perfumado ou transmite odor, etc. No final das contas o critério
de qualidade passa sempre pelos órgãos dos sentidos. A questão é que a estética da
111
TROJAN, Rose Meri. Estética da sensibilidade como princípio curricular. Cadernos de Pesquisa, v. 34, n.
122, maio/ago. 2004, p. 6.
112
Parecer CNE/CEB n. 16/99. In: Educação Profissional: legislação básica. Brasília, 2001, p.
119.
113
GENTILI, Pablo. A. A. O discurso da “qualidade” como nova retórica conservadora no
campo educacional. In. Neoliberalismo, qualidade e educação. Rio de Janeiro: 1994, p. 152.
114
BRAGA, Rubem. Conversas com quem gosta de ensinar. Campinas, SP: Papirus, 2005.
166
Vista desse modo, a criança, nesse modelo de ensino, era entendida como um
“produto a ser moldado pelo currículo, de maneira a garantir sua formação eficiente”. Essa
eficiência consistia no atendimento às demandas do modelo produtivo dominante.
Modularização
115
ANTUNES, Ricardo. O caracol e sua concha. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 42.
116
GENTILI, Pablo. A. A., 1994, op. cit., p. 21.
167
117
Organização Internacional do Trabalho. Certificação de Competências Profissionais -
Glossário de Termos Técnicos - 1ª ed. Brasília: OIT, 2002, p. 37.
118
WERLANG, 1999, p. 62
119
WERLANG, 1999, op. cit., p. 62.
168
Flexibilidade
120
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional de Nível Técnico
- Conselho Nacional de Educação - Câmara de Educação Básica parecer n. º 16 / 99, p. 127.
121
SENNET, Richard. A corrosão do caráter.: as conseqüências do trabalho no novo
capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 20004, p. 53.
122
O nome técnico para esse fenômeno é a re-engenharia; a idéia de fazer mais com menos.
123
SENETT, op. cit., p. 60-61.
169
Definir como articular os vários perfis das várias ocupações, para que as
pessoas tenham condições de navegabilidade no mundo do trabalho e não
fiquem presos na bitola de uma única ocupação. Não se trata mais de
preparação para o posto de trabalho, mas de preparação profissional para o
mundo do trabalho, numa área profissional na qual cada especialidade deve
ser entendida e articulada num contexto mais amplo, da área profissional 124.
Essa ideia, embora não exposta nos documentos basilares da reforma que
auxiliaram na elaboração de projetos dos cursos de formação profissional, foram divulgados
de forma ampla em congressos e palestras. Empregabilidade, semelhantemente, é o
Competências
124
CORDÃO, Francisco Aparecido. A LDB e a nova Educação Profissional. p. 9.
125
Organização Internacional do Trabalho. Certificação de Competências Profissionais -
Glossário de Termos Técnicos - 1ª ed. Brasília: OIT, 2002, p. 25.
170
competência, já que a dimensão social se fundamenta nos inalterados conteúdos de uma dada
atividade, e, a dimensão conceitual impõe uma lacuna entre as competências e o diploma. A
proximidade entre a qualificação (experimental) e a competência reside em que ambas se
reportam ás qualidade individuais do trabalhador e ao conteúdo da atividade. Porém, a
dinamicidade implícita na noção de competências delineia as diferenças. O trabalhador
caminha de uma lógica do ter (ter conhecimentos), para uma lógica do ser (ser competente).
Aqui habita o conceito de competência na lógica defendida nos planos curriculares. Quando o
indivíduo tem algo, é para toda vida, ao passo que a ideia de ser, se apresenta de modo
transitório, momentâneo (devir). Essa ideia deve ser entendida na perspectiva de um
deslocamento “de uma lógica da certeza a uma lógica de incerteza, de uma lógica de
estabilidade a uma lógica de instabilidade, de uma lógica de permanência a uma lógica de
transformação”126. O indivíduo pode ser competente num momento e não ser em outro, daí ser
comum associar termos como flexibilidade, polivalência e readaptação a noção de
competências. Manter esse estado de competência requer que o indivíduo seja portador da
consciência de que deve sempre ter uma atitude permanente e adaptadora frente às novas
situações de trabalho, atitude ausente na concepção certificativa do diploma (e
conseqüentemente da ideia tradicional de qualificação, como formação para um emprego ou
um determinado posto de trabalho).
Uma das críticas a qualificação foi o fato de esta não reconhecer os saberes
adquiridos no espaço de trabalho. Porém, a noção de competência começa a se evidenciar
quando o setor industrial passa a ter a necessidade de reconhecer saberes dos trabalhadores
independentemente de suas ocupações no posto de trabalho 127, como é o caso das empresas
pós-tayloristas, cujo trabalhador, passa a fazer uso da mobilização de aptidões criativas de
modo a lidarem com imprevistos surgidos em situações de trabalho. Na verdade, esse cenário
se modifica quando levados em conta as transformações ocorridas no processo de produção
do capital e suas influências no processo do trabalho contemporâneo. A ideia de fim do
emprego, posto na literatura que trata das transformações do trabalho na atualidade, é
subsidiada pela superação dos modos de produção taylorista e fordista, em detrimento de um
modo de produção flexível, observados principalmente no que se convencionou chamar, na
literatura sobre as metamorfoses do trabalho, por Toyotismo. Pode-se caracterizar esse modo
de produção da seguinte maneira: trata-se de uma forma de produzir direcionada pela
126
ROCHE, Janine. A dialética qualificação-competência: estado da questão. Da qualificação
à competência. In.: TOMASI, Antônio. Campinas, SP: Papirus, 2004. p. 46.
127
ZARIFIAN, Philippe. Objetivo competência. São Paulo: Atlas, 2001, p. 40-49.
172
demanda, variada e heterogênea, com vistas a suprir o consumo, este determinando o que será
produzido (ideia de estoque mínimo), diferentemente da produção fordista (que se constituía
como produção em série e de massa). O Toyotismo adota ainda o princípio just in time, ou
seja, o melhor aproveitamento possível do tempo de produção (qualidade, variedade, prazo,
estoque, prazo). Para dar conta de uma demanda individualizada, com parâmetros delineados
no conceito da qualidade total e no menor tempo possível, a produção tem que se sustentar
no que os autores denominaram por processo de produção flexível, onde o operário, além de
trabalhar em equipe opera com várias máquinas, exercendo assim uma (única) atividade,
porém, com múltiplas funções:
128
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? São Paulo: Cortez; Campinas, SP: UNICAMP,
2003, p. 34.
173
Zarifian (2001, p. 68, grifo do autor), um dos primeiros pesquisadores no campo das
ciências sociais na França a escrever sobre o que na época chamou de modelo da competência,
conceitua o termo como “o tomar iniciativa e o assumir responsabilidade do indivíduo diante de
situações profissionais com as quais depara”.
129
OIT, 2002, op. cit., p. 15.
130
MERIEU, P. Aprender...Sim, mas como? Porto Alegre: Artmed, 1998, p.18.
131
Construindo competências. Entrevista com Philippe Perrenoud, Universidade de Genebra. Paola Gentile e
Roberta Bencini (mimeo).
174
132
NUNEZ, Isauro Beltrán; RAMALHO, Betânia Leite. Competência: uma reflexão sobre o seu sentido. In:
OLIVEIRA, Vila Q. Sampaio F. de (Org.). O sentido das competências no projeto político pedagógico. 2.
ed. Natal-RN: UFRN, 2004. (Coleção pedagógica, 3). p. 24-26.
133
BERGER FILHO, Ruy Leite. Formação baseada em competências numa concepção
inovadora para a formação tecnológica. In: V CONGRESSO DE EDUCAÇÃO
TECNOLÓGICA DOS PAÍSES DO MERCOSUL. Texto não publicado. Pelotas, RS, 1998.
134
PIAGET, Jean. Problemas de psicologia genética. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril
Cultural, 1983, p. 266.
135
Id. In: PIÉRON, Henri. Dicionário de Psicologia. Porto Alegre: Globo, 1966, p. 157.
175
submeter à prova constante”136, por isso alguns autores consideram que a competência se
refere a um processo e não a um estado, tendo como produto a performance, esta avaliada ou
mensurada em razão da demonstrada competência 137.
Uma das características das competências é que sua verificação é freqüentemente
exercida por meio dos resultados obtidos (via indicadores de desempenho), e não por
intermédio de conhecimentos e atributos culturais adquiridos na socialização profissional.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) (2202, p. 22) entende o termo
competências como a
136
DEFFUNE, Deisi, DEPRESBITERIS, Lea. Competências, habilidades e currículos de educação
profissional. São Paulo: Senac, 2000, p. 77.
137
Cf. WITTORSKI, Richard. D a fabricação das competências. In.: TOMASI, Antônio. Da qualificação à
competência: pensando o século XXI. Campinas, SP: Papirus, 2004, p. 75-92.
176
138
Na atividade laboral (e igualmente no cotidiano) faz-se o uso de competências diversas. A OIT traz algumas
definições, tais como: básicas, específicas, gerais (genéricas), competências, tácitas e as competências
transversais. As competências básicas são aquelas adquiridas nos dez primeiros anos de estudo escolar
(leitura, escrita, as quatro operações, etc.). As específicas são as adquiridas na especialização profissional. As
gerais se referem as competências adquiridas na escola e no trabalho; “são apoiadas em bases científicas e
tecnológicas e em atributos humanos, tais como criatividade, condições intelectuais e capacidade de transferir
conhecimentos a situações novas”. Esse tipo de competência é utilizado em qualquer atividade profissional,
pois se referem aos atributos pessoais como a capacidade de tomar decisão, iniciativa e comunicação oral. As
competências profissionais se referem ao contexto “específico do exercício da experiência profissional”. As
competências tácitas são aquelas “adquiridas e exercidas na prática do trabalho diário, os chamados segredos
do ofício”, resultantes do sistema formal, de ensino, ou desempenhadas no espaço do exercício profissional,
ou ainda na interação entre os dois. E por último as competências transversais. Estas são “são comuns a
diversas atividades profissionais. Permitem a transferibilidade de um perfil profissional a outro ou de um
conjunto de módulos curriculares a outros”. Dominar um processador de textos é útil a todas as atividades
profissionais que se valham da escrita. Assim é como a leitura da pauta musical é imprescindível a toda
atividade profissional ligada à música (OIT, 2002, p. 22).
139
LOPES, Alice Casimiro . Competências na organização curricular da reforma do ensino médio. Mimeo,
p. 5.
140
RAMOS, Marise Nogueira. A Pedagogia das competências. São Paulo: Editora Cortez, 2002, p. 152.
177
organização curricular poderá ser composta por competências gerais e específicas, pois
segundo Perrenoud (1999) uma competência pode mobilizar várias outras.
Um currículo por competências parte fundamentalmente da análise de situações,
da ação, e disso derivar conhecimentos, ou seja, por uma via de mão dupla que parte da
teoria para prática e vice-versa, como também do concreto ao abstrato do real para o
conceitual. É desse modo que se compõe um currículo por competências. Portanto, uma
reformulação curricular por competências implica em um desenho curricular que ultrapasse
programas ainda tradicionais em sua práxis, que apenas utilizam um verbo de ação na frente
da descrição dos conteúdos disciplinares para indicar uma suposta mudança.
Perrenoud (2000b)141 nos auxilia na abordagem conceitual de uma pedagogia
diferenciada, propondo mudanças na representação curricular e prática docente.
Propor uma organização curricular por competências supõe então, uma mudança
na postura metodológica da ação pedagógica docente que engloba novas estratégias e
metodologias de ensino, foco na construção de competências, avaliação por competências e
adoção de um contexto interdisciplinar do ensino. Um currículo por competências não se
baseia exclusivamente na tradicional organização curricular por objetivos, ementas e
disciplinas, muito embora possa se valer das últimas de forma pluridisciplinar,
interdisciplinar, e trans-disciplinar num contexto de transversalidade de conhecimentos.
Desse modo, conteúdos disciplinares deverão constituir um meio e suporte para a construção
de competências e não um fim em si. Nesse sentido, as competências não precisam figurar nos
programas de cursos só para atender a uma exigência governamental do momento. Não se
trata, entretanto de maquiar o processo em prol de uma exigência de reforma curricular. Nem
tampouco mudar apenas a redação do Projeto Político Pedagógico colocando, conforme cita
Perrenoud, “onde se lia; ensinar o teorema de Pitágoras, agora irá se ler; servir-se do teorema
de Pitágoras para resolver problemas de geometria”142.
141
Documento não paginado.
142
PERRENOUD, Philippe. Pedagogia diferenciada: das intenções à ação. Porto Alegre: Artmed, 2000b. p. 52.
178
143
LOPES, op.cit.
144
RAMOS, op. cit., p. 169.
179
soberania territorial disciplinar “mesmo que algumas trocas incipientes se efetivem” entre
elas145. Podemos afirmar que o século XX foi profuso em propostas inovadoras para o campo
da educação, mas que, no entanto, não tiveram uma perpetuação na prática escolar. Termos
como interdisciplinaridade, conhecimento significativo, método de problemas, método de
projetos não foram inaugurados pela reforma do ensino na era Cardoso. É nesse sentido que
as propostas metodológicas deverão mostrar-se numa incompletude, aberta às novas re-
organizações, preferindo a trilha nova àquela já andada.
No âmbito da música a discussão sobre o uso do currículo por competência se
pauta em questões semelhantes ao que foi discutido anteriormente na educação e no setor
produtivo de um modo geral. Os conhecimentos que a escola se propõe a ensinar e a
transposição destes para contextos concretos, ainda continuam sendo um problema na área
musical, basta notar a dicotomia ainda existente entre a teoria e a prática nas escolas de
música. Quando um músico estuda escalas, por exemplo, isso não implica que
automaticamente saberá fazer uso delas em diferentes situações. Talvez seja no âmbito do
exercício da atividade musical que a noção de competência seja mais bem compreendida, uma
vez que é na performance, em situações de trabalho, onde profissional da música é avaliado
pelos seus colegas profissionais e pelo público de um modo geral. A questão é que lidar com
esse formato curricular implica numa outra lógica, diferente do currículo por objetivos,
créditos e disciplinas, como já colocado. Se no ensino tradicional tem-se registro de notas no
currículo por competências tem-se registro de resultados, tem-se ainda a competência em
detrimento do conteúdo, a contextualização em detrimento da dicotomia teoria/prática, a
interdiplinaridade em detrimento da fragmentação disciplinar, dentre outras características.
No currículo por competência estão expressos o que o estudante deverá ser capaz de fazer,
constando nessa carta de intenção (currículo) as experiências de aprendizagens e atividades
concretas e práticas, tendo por base os diversos contextos ou situações reais de trabalho.
A organização do currículo por competências pode ser considerada um equívoco
por não atender (segundo a visão de alguns autores) à perspectiva da formação humana.
Porém, pode ser considerada como uma das estratégias possíveis de ser utilizada dentre as
encontradas no vasto espectro das alternativas metodológicas utilizadas para a aquisição de
um novo olhar sobre os recursos metodológicos da aprendizagem, outra maneira de se criar
condições favoráveis para o educando construir seu conhecimento. A opção por este caminho
implica na consciência de que toda a pedagogia precisa ser encarada dentro dos seus próprios
145
MORIN, 2002, op. cit., p. 50.
180
Certificação de competências
146
POPPER, Karl R. Sociedade aberta universo aberto. Portugal: Dom Quixote, 1991. p.68.
147
Distrito Federal (DF).
148
“Certificação de competência profissional deve ter participação da sociedade” (Brasília, CATÁLOGO
NACIONAL DE CURSOS TÉCNICOS (CNCT) - 10/9/2004, Boletim n. 259) e “Sistema de certificação de
competências terá participação do setor produtivo” (INEP - 10/9/2004).
181
149
Parecer CNE/CEB n. 17/97 que Estabelece as Diretrizes Operacionais para Educação
Profissional.
150
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Políticas
Públicas para a educação Média e Tecnológica. Brasília, 2004, p. 36.
182
Tal qual na Lei 9.394 são apontadas no Decreto Federal 2.208 duas situações em
que pode ser utilizada a certificação de competências; para prosseguimento (dispensa de
disciplinas ou módulos) ou conclusão de curso (Habilitação).
O Parecer de n. CNE/CEB 17 / 97 – Estabelece as Diretrizes Operacionais para a
Educação Profissional; trata o tema como “uma importante inovação prevista na legislação: a
possibilidade de avaliação, reconhecimento, aproveitamento e certificação de competências e
conhecimentos adquiridos na escola ou no trabalho”. Além de considerar uma “importante
inovação” no campo da formação ainda coloca que “é preciso superar e o preconceito e o
flagrante desperdício de não valorizar a experiência profissional e o autodidatismo”. É
importante notar que se faz referência aqui à certificação de conhecimentos.
De igual modo o Parecer do CNE / CEB n. 16/99 – que trata das Diretrizes
Curriculares para a Educação Profissional de nível técnico, nele o Francisco Aparecido
183
151
Lei que dispõe sobre a estruturação do Plano de Carreira dos Cargos Técnico-Administrativos em Educação,
no âmbito das Instituições Federais de Ensino vinculadas ao Ministério da Educação, e dá outras
providências.
184
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não vou iniciar essas últimas linhas discorrendo sobre a noção da palavra
tripalium instrumento utilizado para torturar, termo que tem origem no latim, e que deu
origem ao termo trabalho (tentado por não fazê-lo anteriormente). Claro que existe uma
contradição nessa declaração, uma vez que mostro disposição, logo de início, para abordar o
assunto nessa perspectiva. Isso é proposital e estou usando de ironia, deixando subtendido que
ao tentar falar sobre a categoria trabalho logo nos deparamos com alguns clichês conceituais.
O trabalho foi, e ainda é bastante discutido, nas mais diferentes gamas de abordagens e nas
várias áreas do conhecimento, incluindo e principalmente a sociologia e a filosofia. A ideia
mais recorrente na cultura ocidental é relacionar inicialmente o trabalho como fardo, castigo
para em seguida situá-lo como realização pessoal. O caminho escolhido de modo a evitar não
ser redundante diante do que já foi escrito sobre esse tema e fugir da ideia de uma simples
revisão bibliográfica, foi aprofundar questões relacionadas ao tema.
Preferi intitular esse tópico com um trecho de uma canção de Raul Seixas e Paulo
Coelho (como vovó já dizia), ela põe em relevo questões inerentes à noção de trabalho na
cultura ocidental. A freqüente indagação feita geralmente aos filhos, ainda criança, pelos
pais: “o que você vai ser quando crescer”, denota muito mais uma perspectiva do vir-a-ser do
indivíduo na direção servil-funcional ao mundo capitalista do que uma aposta na formação
integral do indivíduo enquanto pessoa. O fato de que muitas vezes ao apresentarmos alguém
salientamos prioritariamente sua profissão, também reforça o argumento de que geralmente se
passa a identificar e privilegiar o indivíduo pelo status profissional exercido por ele noâmbito
da sociedade, como de certo modo lembrou Duarte Júnior (1987). Trata-se de uma ordem de
importância que sobrepõe o valor humano ao valor do mercado 152. Diz- se primeiramente que
152
Na visão de Marx o capitalismo transformou significativamente o modo das pessoas se relacionarem entre si e
ainda, consigo mesmas. Homens e mulheres, influenciados pela burguesia, detentora dos meios de produção.
Ela, a burguesia: “onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia calcou aos pés as relações feudais,
patriarcais e idílicas. Todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus ‘superiores
naturais’ ela os despedaçou sem piedade, para só deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio
interesse, as duras exigências do ‘pagamento à vista’. Afogou os fervores sagrados do êxtase religioso, do
entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da
dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistadas com tanto
esforço, pela única e implacável liberdade de comércio. Em uma palavra, em lugar da exploração velada por
ilusões religiosas e políticas, a burguesia colocou uma exploração aberta, cínica, direta e brutal. A burguesia
despojou de sua auréola todas as atividades até então reputadas veneráveis e encaradas com piedoso respeito.
186
alguém é médico, engenheiro ou professor e não, por exemplo, uma pessoa que gosta de
música ama a gastronomia, gosta de crianças, etc. Ora, o ser humano, durante toda sua vida
nascimento, insere-se num vir-a-ser que só cessa com sua não existência. Mas o modo de vida
desfrutado pelo trabalhador no âmbito do sistema capitalista veda o olhar para essa
perspectiva de realização humana e contínua. O próprio viver acaba se vendo reduzido ao
limite das conquistas monetárias. Por cessar o trabalho produtivo-capitalista é comum
acreditar que já não há mais o que fazer; “o que trabalhar” 153. Ao mencionarmos um tipo de
orientação para vida fundada numa visão de mundo exclusivamente produtivo-utilitário ao
modo de produção capitalista, fazemos referência aqui aos contos do fabulista e poeta Jean de
La Fontaine (1621-1695), disseminados ao longo dos séculos. Eles são um contributo sobre a
construção do sentido do trabalho na cultura ocidental. La Fontaine passa a ideia, em pelo
menos dois dos seus contos, de que o trabalho é um tesouro, uma dádiva154. La Cigale et la
Fourmi ( a cigarra e a formiga) é uma fábula direcionada às crianças onde podemos salientar
vários aspectos pertinentes a abordagem exposta até agora sobre a questão do trabalho. La
Fontaine faz uso em seu conto, de insetos animados (com sentimentos humanos) colocados
como exemplos extremos do trabalho (formiga) e do prazer (cigarra). Esta narrativa faz parte
de um conjunto de 124 fábulas distribuídas em seis livros, escritos em março de 1668 e
dedicados por La Fontaine a Dauphin, filho de Louis XIV e de Marie-Thérèse. A fábula diz o
seguinte155:
Tendo a cigarra em cantigas / Folgado todo o verão, / Achou-se em penúria
extrema / Na tormentosa estação. / Não lhe restando migalha / Que trincasse,
a tagarela / Foi valer-se da formiga, / Que morava perto dela. / Rogou-lhe
que lhe emprestasse, / Pois tinha riqueza e brio, / Algum grão com que
manter-se / Té voltar o acesso estio. / ‘Amiga’ - diz a cigarra - / ‘Prometo, à
fé d'animal. / Pagar-vos antes de agosto / Os juros e o principal.’ / A formiga
nunca empresta, / Nunca dá, por isso junta: ‘No verão em que lidavas?’ / A
pedinte ela pergunta. / Responde a outra: ‘eu cantava / Noite e dia, a toda
hora.’ / ‘- Oh! Bravo!’ - torna a formiga - / ‘Cantavas? Pois dança agora!’.
Do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio fez seus servidores assalariados. A burguesia rasgou o
véu de sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-as a simples relações monetárias”
(MARX, K. Manifesto do partido comunista, p. 3).
153
DEMO, Pedro. Trabalho: o sentido da vida.Rio de Janeiro: B. Téc. SENAC, v. 32, n. 1, jan./abr., 2006, p. 9.
154
LA FONTAINE, Jean de. Le laboureur et ses enfants. Disponível em: < http://www.la-fontaine-ch-thierry.net
>. Acesso em: 12/09/2007.
155
“La cigale, ayant chanté / Tout l'été, / Se trouva fort dépourvue / Quand la bise fut venue. / Pas un seul petit
morceau / De mouche ou de vermisseau . / Elle alla crier famine / Chez la fourmi sa voisine, / La priant de lui
prêter / Quelque grain pour subsister / Jusqu'à la saison nouvelle. / Je vous paierai, lui dit-elle, /Avant l'août , foi
d'animal, Intérêt et principal / La fourmi n'est pas prêteuse ; / C'est là son moindre défaut . Que faisiez-vous au temps
chaud ? / Dit-elle à cette emprunteuse. / Nuit et jour à tout venant / Je chantais, ne vous déplaise. / Vous chantiez ? j'en
suis fort aise : / Et bien ! dansez maintenant”. Disponível em: <http://www.la-fontaine-ch-thierry.net >. Acesso em:
12 set. 2007.
187
156
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 44.
188
[Pergunta a formiga a cigarra] ‘E que fez durante o bom tempo, que não
construiu sua casa?’. A pobre cigarra, toda tremendo, respondeu depois de
um acesso de tosse. ‘Eu cantava, bem sabe...’. ‘Ah!...’, exclamou a formiga
recordando-se. ‘Era você então quem cantava nessa árvore enquanto nós
labutávamos para encher as tulhas?’. ‘Isso mesmo, era eu...’. ‘Pois entre,
amiguinha! Nunca poderemos esquecer as boas horas que sua cantoria nos
proporcionou. Aquele chiado nos distraía e aliviava o trabalho. Dizíamos
sempre: que felicidade ter como vizinha tão cantora! Entre, amiga, que aqui
terá cama e mesa durante todo o mau tempo’. A cigarra entrou, sarou da
tosse e voltou a ser a alegre cantora dos dias de sol.
[...] a formiga era uma usuária sem estranhas. Além disso, invejosa. Como
não soubesse cantar, tinha ódio à cigarra por vê-la querida de todos os seres.
‘Que fazia você durante o bom tempo?’. ‘Eu... eu cantava!...’ ‘Cantava? Pois
dance agora, vagabunda!’. E fechou-lhe a porta no nariz: a cigarra ali morreu
entanguidinha; e quando voltou a primavera o mundo apresentava um
aspecto mais triste. É que faltava na música do mundo o som estridente
daquela cigarra morta por causa da avareza da formiga. Mas se a usurária
morresse, quem daria pela falta dela? Os artistas, poetas, pintores, músicos,
são as cigarras da humanidade.
Não se pode deixar de notar que há, em ambas as versões do escritor brasileiro,
uma espécie de reconhecimento pela atividade profissional do músico – é possível fazer essa
inferência, pois a formiga reconhece o valor do canto da cigarra e intenciona recompensá-la
por ter proporcionado alegria e alívio no período em que se dedicava a sua labutação
cotidiana. Além do que a voz do narrador da fábula explica num último desfecho: “Os artistas,
poetas, pintores, músicos, são as cigarras da humanidade”. Na segunda parte, a moral da
fábula se preocupa, igualmente a primeira parte, em enfatizar a importância da música (de um
modo geral do artista, no mundo do trabalho). Na verdade não se trata de um axioma moral,
mas de uma metáfora que valoriza na sua máxima a arte em geral. Ainda é preciso frisar que,
embora na versão da formiga má de Monteiro Lobato a cigarra tenha o mesmo fim trágico da
157
LOBATO, Monteiro. Fábulas. São Paulo: Melhoramento, 1994.
189
versão de La Fontaine, todavia, o narrador nos convida a realizar uma reflexão sobre nossas
relações humanas158.
Ao falar sobre o exercício do métier artístico-musical, um aspecto apresentou-se
como relevante. O trabalho do músico é passível de comportar aspectos singulares (talento,
criatividade, inspiração, originalidade, rebeldia às regras), que, sobretudo diferenciam o
trabalhador da música, por exemplo, do operário fabril, cuja identidade dilui-se na alienação
do trabalho. O músico tem com o exercício de sua profissão uma relação de sacrifício e
satisfação. Satisfação plena pelo que faz; uma espécie de encantamento, alegria contínua.
Sacrifício pelo fato de muitas vezes ignorar quaisquer benefícios monetários em prol de uma
satisfação, sem perceber muitas vezes que o que faz é tido como uma atividade passível de
gerar lucro. Mas se por um lado o exercício profissional do músico congrega aspectos da
subjetividade criativa, por outro, ressalta elementos que o situam no mundo do trabalho, cuja
atividade, tal qual ocorre em outras áreas profissionais, também é possuidora de regras. Nesse
sentido, a atividade musical deixa sua aura sobrenatural e passa a inserir-se num contexto de
relações concretas e complexas referente à divisão do trabalho no mundo capitalista, no que
diz respeito aos meios de produção, às profissões, relações de emprego e carreiras
profissionais 159.
Teci reflexão sobre parte do conjunto lexical presente na reforma do ensino
brasileiro durante o Governo Cardoso, especificamente me ative as noções de competências,
navegabilidade, estética da sensibilidade, mundo do trabalho e flexibilidade esforçando-me
por evidenciar como tal ideologia se materializou nas orientações curriculares destinadas ás
instituições de ensino musical. Embora, não tenha aprofundado a investigação empírica no
que concerne aos resultados obtidos inerentes a implementação da reforma nas instituições de
ensino musical, me arrisco a colocar que o conteúdo ideológico da reforma se esvaziou no
percurso das várias instâncias de implementação, restando para escola discussões já
direcionadas; sobre os aspectos técnicos da operacionalização curricular, ou seja, de como
treinar professores para se executar o já concebido. O que disso ocorre é que, conforme a
análise feita entre a proposta curricular do Curso Técnico de Música da UFRN e a prática
docente, é que: o que se tem previsto é uma coisa e o que se faz em sala de aula é outra
(currículo oculto). Tenho clareza de que o Projeto político pedagógico pode ser definido como
uma carta de intenção, uma declaração de implementação do projeto de ensino defendido pela
158
Conf. MARTHA, Alice Áurea Penteado. Monteiro Lobato e as fábulas: adaptação à brasileira. Cuatrogatos.
Revista de literatura infantil, n° 7, julho-setembro, 2001.
159
MENGER, op. cit., p. 8.
190
REFERÊNCIAS
______. A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In: ADORNO,
Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
______. Sobre música popular. In: COHN, Gabriel (Org.). Sociologia. São Paulo: Ática,
1986.
ÂNGELO, Assis. Eu vou contar pra vocês. São Paulo: Ícone: 1990.
ANDRADE, Mário. Aspectos da música brasileira. Rio de Janeiro: Villa Rica, 1991.
A ORDEM dos Músicos em debate: liminar obtida por cinco músicos da Campinas traz à
baila velha rixa entre os artistas e a entidade. Jornal Correio Popular, Campinas, 7 de
novembro de 2004.
______. Interromper a direita: realizar trabalho educativo crítico numa época conservadora.
Currículo sem fronteiras, [EUA], v. 2, n. 1, p. 80-98, jan.-jun. 2002.
______. Triste fim de Policarpo Quaresma. [20--?]. Versão para ebook. Disponível
em:<http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/policarpoE.pdf>. Acesso em: 30 nov. 2005.
BATISTA, Wilson; ALVES, Ataulfo. Oh! Seu Oscar. [1940]. Não paginado. Disponível
em:<https://www.letras.mus.br/wilson-batista/386927/>. Acesso em: 24 nov. 2005.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. São Paulo:
Abril Cultural, 1975.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997.
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2002.
BORGER, Hans. Uma história do povo Judeu. São Paulo: Sefer, 1999.
BORGES, Vera. A arte como profissão e trabalho: Pierre-Michel Menger e a sociologia das
artes. Revista crítica de ciências sociais, [S.l.], n. 67, p. 129-134, dez., 2003.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.
BRAGA, Rubem. Conversas com quem gosta de ensinar. Campinas, SP: Papirus, 2005.
______. Lei nº 3.857, de 22 de dezembro de 1960. Cria a Ordem dos Músicos do Brasil e
dispõe sobre a regulamentação do exercício da profissão de músico e dá outras providências.
Brasília, DF, 22 dez. 1960. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/
L3857.htm>. Acesso em: 15 dez. 2005.
______. Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971. Fixa diretrizes e bases para o ensino de 1º e
2º graus, e dá outras providências. Brasília, DF, 11 ago. 1971. Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5692.htm>. Acesso em: 15 mar. 2006.
______. Projeto de Lei n. 1.258-a, de 1988. Diário do Congresso Nacional, Brasília, DF, n.
175, 25 jan. 1991. Suplemento.
______. ______. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE / CEB nº 17 / 99. Brasília,
DF, 9 nov. 1999c. Disponível em:<http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/
pdf/1999/pceb017_99.pdf>. Acesso em: 25 mar. 2006.
______. ______. ______. Parecer CNE / CEB nº 16/99. Brasília, 8 dez. 1999d. Disponível
em:<http://www.educacao.pr.gov.br/arquivos/File/pareceres/parecer161999.pdf>. Acesso em:
6 mar. 2005.
CAMPOS, Haroldo de. Qohélet = O-que-Sabe: Eclesiastes: poema sapiencial. 2. ed. São
Paulo: Perspectiva, 2004. (Signos, 13).
CASTRO, Antonio José Jardim e. Música: uma outra densidade do real: para uma
filosofia de uma linguagem substantiva. 1988. 121 f. Dissertação (Mestrado) - Conservatório
Brasileiro de Música, Rio de Janeiro, 1988.
______. Poiesis, sujeito e metafísica. In: ______. A construção poética do real. Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2004.
CERNICCHIARO, Vincenzo. Storia della musica nel Brasile. Milano: Fratelli Riccioni,
1926.
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1996.
CHARLE, Cristophe, VERGER, Jacques. História das universidades. São Paulo: UNESP,
1996.
COLI, Juliana. A precarização do trabalho imaterial: o caso do cantor do espetáculo lírico. In.:
ANTUNES, Ricardo (Org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo,
2006, p. 311-312.
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Martins, 1965.
DEMO, Pedro. Trabalho: sentido da vida. Boletim Técnico do SENAC, Rio de Janeiro, v.
32, n. 1, jan.-abr., 2006.
DÍAZ, Carlos. Max Stirner: uma filosofia radical do eu. São Paulo: Imaginário, Expressão e
Arte, 2002.
DUARTE JÚNIOR, João Francisco. O que é beleza. São Paulo: Brasiliense, 1987.
2 FILHOS de Francisco: a história de Zezé Di Camargo & Luciano. Direção: Breno Silveira.
[Estados Unidos]: Sony Pictures, c2005. 1 DVD (129 min.)
DUBAR, Claude; TRIPIER, Pierre. Sociologie des Professions. Paris: Armand Collin, 1998a.
(Tradução livre de Odilamar Lopes Mioto. Mímeo).
ÊLES dizem “não”, mas todo mundo aplaude. Veja, São Paulo, n. 12, p. 64-67, 27 nov. 1968.
Disponível em:<https://acervo.veja.abril.com.br/index.html#/edition/34544?page=
66§ion=1&word=Eles%20dizem%20n%C3%A3o%2C%20mas%20todo%20mundo%20
aplaude>. Acesso em: 21 nov. 2005.
ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
200
FERRETI, Celso J.; SILVA JÚNIOR,João Maria dos Reis; OLIVEIRA, Maria Rita N. S.
(Orgs.). Trabalho, formação e currículo. São Paulo: Xamã, 1999.
FINOTTI, Ivan. Juiz ironiza Ordem dos Músicos do Brasil em sentença. Folha de São Paulo,
São Paulo, 10 abr. 2002. Folha ilustrada, p. E3. Disponível em:<
http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/2002/04/10/21/>. Acesso em: 5 jan. 2006.
FREIRE, Vanda Lima Bellard. Educação musical, música e espaços atuais. In: ENCONTRO
ANUAL DA ABEM, 10., 2001, Uberlândia, MG. Anais... Uberlândia: UFMG, 2001. p. 11-
18.
GEIRINGER, Karl. Johann Sebastian Bach: o apogeu de uma era. Tradução: Álvaro Cabral.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
GEWIRTZ, Sharon. Alcançando o sucesso? reflexões críticas sobre a agenda para a educação
da “Terceira Via” do New Labour. Currículo sem Fronteiras, [EUA], v. 2, n. 1, p. 121-139,
jan.-jun. 2002.
GONDRA, José Gonçalves. Artes de civilizar: medicina, higiene e educação escolar na Corte
imperial. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2004.
HARNONCOURT, Nicolaus. O discurso dos sons. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
202
HAUG, Wolfgang Fritz. Crítica da estética da mercadoria. São Paulo: UNESP, 1997.
HOBSBAWM, Eric. História social do jazz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
______. Era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
HOMERO. Odisséia. Tradução de Manoel Odorico Mendes. c2009. Disponível em: <
http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/odisseiap.html>. Acesso em: 12 set. 2007.
KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
______. A reforma do ensino técnico no Brasil e suas conseqüências. In: FERRETTI, Celso J.
e tal (orgs). Trabalho, formação e currículo. São Paulo: Xamã, 1999.
LA FONTAINE, Jean de. Le laboureur et ses enfants. [19--?]. Disponível em: <
http://www.la-fontaine-ch-thierry.net>. Acesso em: 12 set. 2007.
LIMA, Sônia Albano. A educação profissional de música frente à LDB n. 9.394/46. Revista
da ABEM, Porto Alegre, v. 5, p. 39-43, set. 2000.
LIMA, Ronaldo Ferreira de Lima. Bandas de música, escolas de vida. 2006. 149f.
Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2006.
LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
MANFREDI, Silvia Maria. A educação profissional no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002.
MARX, Karl. Teorias da mais valia: história crítica do pensamento econômico. São Paulo:
Civilização Brasileira, 1980. v. 1, livro 4 de “O Capital”.
205
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã (Feuerbach). São Paulo: Hucitec,
1986a.
MASSIN, Brigitte; MASSIN, Jean. História da música ocidental. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1997.
MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005.
MORAES NETO, Benedito. Século XX e trabalho industrial. São Paulo: Xamã, 2003.
MORIN, Edgar. O enigma do homem: para uma nova antropologia. Rio de Janeiro: Zahar,
1979.
______. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2000.
NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. O trabalho de Dionísio. Juiz de Fora, MG: UFJF, 2004.
NUNEZ, Isauro Beltrán; RAMALHO, Betânia Leite. Competência: uma reflexão sobre o seu
sentido. In: OLIVEIRA, Vila Q. Sampaio F. de (Org.). O sentido das competências no
projeto político pedagógico. 2. ed. Natal-RN: EDUFRN, 2004. (Coleção pedagógica, 3).
OLIVEN, Ruben George. 1997. O vil metal: o dinheiro na música popular brasileira. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 12, n. 33, p. 143-168, fev. 1997.
O QUE é musicologia. BBC Music Magazine, Longon, GB, maio 1999. Tradução Marcus
André Varela Vasconcelos. Mimeo. Não paginado.
PACHECO, José Augusto. Políticas curriculares: referenciais para análise. Porto Alegre:
Artmed, 2003.
207
PEIXOTO, Paulo Matos (Ed.). Gênesis. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João
Ferreira de Almeida. São Paulo: Paumape, [19--?a]. p. 5-46.
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?b]. cap. 2, vers. 17, p. 6.
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?c]. cap. 3, vers. 17-19, p. 7.
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?d]. cap. 3, vers. 22, p. 7.
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?e]. cap. 3, vers. 23, p. 7.
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?f]. cap. 5, vers. 27, p. 8.
______. Êxodo. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?g]. cap. 20, vers. 7, p. 62.
______. Deuteronômio. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida.
São Paulo: Paumape, [19--?h]. cap. 18, vers. 9-15, p. 159.
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?i]. cap. 18, vers. 20, p. 159.
______. Segundo livro de Samuel. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de
Almeida. São Paulo: Paumape, [19--?j]. cap. 11, vers. 12, p. 251.
208
______. Provérbios. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?k]. cap. 14, vers. 23, p. 482.
______. Eclesiastes. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?l]. cap. 2, vers. 22, p. 494.
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?m]. cap. 2, vers. 24, p. 495.
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?n]. cap. 2, vers. 25, p. 495.
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?o]. cap. 3, vers. 10-12, p. 495.
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?p]. cap. 3, vers. 11-12, p. 495.
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?q]. cap. 5, vers. 18, p. 497.
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?r]. cap. 5, vers. 18-20, p. 497.
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?s]. cap. 8, vers. 7-10, p. 498-499.
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?t]. cap. 9, vers. 7-10, p. 498-499.
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?u]. cap. 9, vers. 15, p. 498.
209
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?v]. cap. 11, vers. 7-10, p. 499-500.
______. Primeiro livro dos Reis. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de
Almeida. São Paulo: Paumape, [19--?x]. cap. 11, vers. 3, p. 278.
______. Mateus. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?y]. cap. 4, vers. 19, p. 693.
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?z]. cap. 6, vers. 25-34, p. 695.
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?aa]. cap. 10, vers. 3, p. 698.
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?bb]. cap. 19, vers. 27-28, p. 708.
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?cc]. cap. 19, vers. 16-25, p. 708.
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?dd]. cap. 22, vers. 21, p. 711.
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?ee]. cap. 25, vers. 14-27, p. 714.
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?ff]. cap. 27, vers. 46, p. 718.
______. Lucas. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?gg]. cap. 10, vers. 7, p. 752).
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
210
______. João. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo:
Paumape, [19--?ii]. cap. 5, vers. 17, p. 775).
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?jj]. cap. 12, vers. 25, p. 784).
______. Atos. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo:
Paumape, [19--?kk]. cap. 23, p. 815-816.
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?ll]. cap. 26, vers. 10, p. 817).
______. I Cotíntios. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?mm]. cap. 7, vers. 20-24, p. 837).
______. Efésios. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?nn]. cap. 4, vers. 28, p. 860).
______. Filipenses. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?oo]. cap. 3, vers. 4-7, p. 864-865).
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?pp]. cap. 3, vers. 8, p. 865).
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Paumape, [19--?qq]. cap. 8, vers. 36, p. 865).
______. ______. In: ______. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São
211
PEREIRA, João Batista Borges. Côr profissão e mobilidade: o negro e o rádio de São Paulo.
São Paulo: Enio Matheus Guazzelli, 1967.
PEREIRA, Avelino Romero. Música, sociedade e política. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007.
______. Construir competências desde a escola. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999b.
______. Dez novas competências para ensinar. São Paulo: Artmed, 2000a.
______. Pedagogia diferenciada: das intenções à ação. Porto Alegre: Artmed, 2000b.
PIAGET, Jean. In: PIÉRON, Henri. Dicionário de Psicologia. Porto Alegre: Globo, 1966.
______. Problemas de psicologia genética. In: ______. Os pensadores. São Paulo: Abril
Cultural, 1983.
PIMENTA, Angela; SANCHES, Neuza. Talento para fazer milhões. Veja, São Paulo, n.
1511, p. 128-132, 3 set. 1997. Disponível em:<https://acervo.veja.abril.com.br/#/edition/
33023?page=128§ion=1>. Acesso em: 6 dez. 2005.
POPPER, Karl R. Sociedade aberta universo aberto. Portugal: Dom Quixote, 1991.
RAMOS, Marise Nogueira. A pedagogia das competências. São Paulo: Cortez, 2002.
REEVES, Hubert. Um pouco mais de azul: a evolução cósmica. São Paulo: Martins Fontes,
1986.
REGO, Alcides Marinho. Formação profissional no Brasil. Cultura Política, Rio de Janeiro,
ano 2, n. 22, p. 41-45, dez. 1942.
RIBEIRO, Maria Luisa Santos. História da educação brasileira. Campinas, SP: Autores
Associados, 1998.
RIO, João do. A alma encantadora das ruas. [1951?]. Não paginado. Disponível em:<
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000039.pdf>. Acesso em: 25 nov. 2005.
______. ______. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1987. Biblioteca Carioca,
4.
ROBERTI, Roberto; FARAJ, Jorge. Eu trabalhei. [19--?]. Não paginado. Disponível em:<
http://www.letras.com.br/orlando-silva/eu-trabalhei>. Acesso em: 18 nov. 2005.
213
ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
SANTOMÉ, Jurjo Torres. O curriculum oculto. Porto, PO: Porto Editora, 1995.
SAVIANI, Dermeval. Da nova LDB ao novo plano nacional de educação: por uma outra
política nacional. Campinas, SP: Autores Associados, 1998.
______. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record,
2003.
SILVA, Tomaz Tadeu. Teorias do currículo: uma introdução crítica. Porto, PO: Porto
Editora, 2000.
SODRÉ, Nelson Werneck. [Texto sobre o trabalho artístico]. [19--?]. Disponível em: <
http://www.sindescritores.hpg.ig.com.br/razoes.html>. Acesso em: 14 mar. 2007.
215
SOLMAN, Joseph. Mozartiana: dois séculos de notas e anedotas sobre Wolfgang Amadeus
Mozart. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
SOUZA, Zilmar Rodrigues. Pressupostos para a formação por competências In: OLIVEIRA,
Vila Q. Sampaio F. de (Org.). O sentido das competências no projeto político pedagógico.
2. ed. Natal, RN: EDUFRN, 2004. (Coleção Pedagógica, 3).
SOUZA, Ciro de; BABAÚ. Tenha pena de mim. [19--?]. Não paginado. Disponível em:<
https://www.vagalume.com.br/aracy-de-almeida/tenha-pena-de-mim.html>. Acesso em: 20
nov. 2005.
STIRNER, Max. L’ unique et sa propriété. [S. l.]: L’ Age D’ Homme, 1988.
STRAVINSKY, Igor. Poética musical em 6 lições. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
SUPICIC, Ivo. Situação histórica da música no século XVIII. In.: MASSIN, Brigitte;
MASSIN, Jean. História da música ocidental. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
TINHORÂO, José Ramos. Música popular: do gramofone ao rádio e TV. São Paulo: Ática,
1981.
______. Música popular: um tema em debate. São Paulo: Ed. 34, 1997.
______. História social da música popular brasileira. São Paulo: Editora 34, 1998.
TOQUE aquela: como funciona a seleção de músicos para orquestra. Revista Veja, São
Paulo, 26 nov. 2003.
216
WARNKE, Martin. O artista da corte: os antecedentes dos artistas modernos. São Paulo:
EDUSP, 2001.
______. Metodologia das ciências sociais. São Paulo: Cortez, 1995. Parte II.
WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. São Paulo: Cultural e Industrial, 1980.
ZAN, José Roberto. Música popular brasileira, indústria cultural e identidade. Eccos: revista
científica, São Paulo, v. 3, n. 1, p. 105-122, 2001.
______. O laboratório da praça mauá. Campinas, 2004a, p. 6. Texto de apoio para aula.
______. Nos primeiros tempos do rádio. Campinas, 2004b, p. 7. Texto de apoio para aula.