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Profetisas no Antigo Israel 1

Entre um conselho e outro, interferindo no curso da história.

Lília Dias Marianno

Resumo

Este artigo tem a intenção de delinear a figura da profetisa no Antigo Israel, reler o de-
sempenho destas mulheres na religiosidade popular e levantar suspeitas hermenêuticas
sobre o “desaparecimento” destas mulheres tanto do profetismo em Israel quanto da
Bíblia Hebraica.

Abstract

This article intent to establish who is the prophetess in Ancient Israel, re-read the fulfill-
ment of these women on the popular religiosity and to raise hermeneutic suspicions
about the disappearance of these women from the prophetic books on Hebrew Bible.

1
Este ensaio é resultado do intenso diálogo estabelecido com várias idéias dos/as seguintes pes-
quisadores/as, aos quais considero como meus co-autores: Mercedes BRANCHER. A violência
contra as mulheres feiticeiras. Em: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Petró-
polis, n.50, p. 86-90, 2005; Athalya BRENNER. A mulher israelita. São Paulo: Paulinas,
2001; Luiz DIETRICH; Shigeyuki NAKANOSE; Francisco OROFINO. Primeiro livro de Samuel:
pedir um rei foi nosso maior pecado. Série comentário Bíblico. São Leopoldo/Petrópolis: Si-
nodal/Vozes, 1999; Fokkelien van DIJK-HEMMES. Mães e uma mediadora no cântico de Dé-
bora. Em: Athalya BRENNER (org.). Juízes a partir de uma leitura de gênero. São Paulo:
Paulinas, p. 139-146, 2001; Diana EDELMAN. Hulda, a profetisa de Yhwh ou de Aserá? Em:
Athalya BRENNER (org.). Samuel e Reis a partir de uma leitura de gênero. São Paulo: Pauli-
nas, p. 296-322, 2001. Sandro GALLAZZI. Por que consultaram Hulda? Em: Revista de In-
terpretação Bíblica Latino-Americana. Petrópolis/São Leopoldo, n.16, p. 38-46, 1993; Alice
LAFFEY; Introdução ao Antigo Testamento em perspectiva feminista. São Paulo: Paulinas,
1994; Deirdre LEVINSON, A psicopatologia do rei Saul. Idem, p.135-152 Em: Christina BU-
CHMANN e Celina SPIEGEL (orgs). Fora do Jardim mulheres escrevem sobre a Bíblia. Rio de
Janeiro: Imago, p. 135-152, 1995, Carol MEYERS. As raízes da restrição. Em: Estudos Bíbli-
cos. Petrópolis n. 20, p. 9-25, 1990; Peter NASH; Elaine G.NEUENFELDT. De magias e de-
mônios: os processos de exclusão e marginalização do/a outro/a. Em: Estudos Bíblicos, Pe-
trópolis, n. 74, p.70-78, 2002. Elaine NEUENFELDT. Práticas e experiências religiosas de mu-
lheres no antigo Israel: um estudo a partir de Ez 8,14-15 e 13,17-23. São Leopoldo, 2004,
393p. [Tese- Doutorado em Teologia – Escola Superior de Teologia]. Nancy Cardoso PEREI-
RA. Hermenêutica feminista: roteiros de inimizade ou parcerias saborosas? Em: Revista de
Interpretação Bíblica Latino-Americana. Petrópolis, n.50, p.189-196, 2005; Nancy Cardoso
PEREIRA. Tamborins, espelhos e sonhos: profecia no imaginário das relações de gênero da
Bíblia Hebraica. Em Estudos Bíblico. Petrópolis, n. 73, p.67-75, 2002. Jose Luiz SICRE. Profe-
tismo em Israel: o profeta, os profetas, a mensagem. Petrópolis: Vozes, 1996.

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Introduzindo

Desde o início da história da humanidade, até o terceiro milênio aEC as


mulheres possuíam uma proeminência social incontestável, sendo muitas vezes
divinizadas. Eram reputadas como seres sagrados por poderem, em seus corpos,
conceber, gerar a vida e parir a vida.

Carol Meyers nos mostra que a restrição da participação da mulher na re-


gião da Palestina a partir do terceiro milênio aEC se deu por um fator preponde-
rante: homens e mulheres estavam morrendo em grande quantidade. Não sa-
bemos se por pragas, doenças, guerras, enfim, e a população da região estava
decrescendo, a estimativa de vida não passava dos 40 anos de idade.

Este decréscimo populacional fez com que a sociedade tomasse a iniciativa


de poupar as mulheres de esforços, de situações de risco e as concentrasse no
trabalho da casa e da família, num ambiente teoricamente menos agressivo do
que os campos de batalha onde elas também costumavam freqüentar. Na virada
da Idade do Bronze Tardio para a Idade do Ferro, que corresponde ao Israel tri-
bal, este era o cenário da região de Canaã. Foram poupadas, inicialmente, por
uma questão de preservação da espécie humana, pois se elas morressem antes
de gerar filhos, a extinção do ser humano na região seria apenas uma questão
de tempo.

Com o passar do tempo, esta “economia de mulheres”, foi-se acomodan-


do, e resultou numa desvalorização progressiva da mulher, desencadeando seu
silenciamento e também a restrição de sua participação em diversos segmentos
da vida em sociedade, principalmente da vida religiosa. Aparentemente as profe-
tisas bíblicas viveram esta transição na própria carne e podemos perceber, nos
Profetas Anteriores, alguns indícios desta mobilidade, desde a proeminência até a
restrição de suas atuações em diversos segmentos, principalmente na religião.

Entretanto, quem foi a profetisa nos tempos de tribalismo e monarquia do


Antigo Israel? Que tipos de pessoas recorriam às profetisas e com qual intenção?
A atuação das profetisas restringia-se apenas aquelas que eram portadoras ofici-
ais da denominação nevî´áh ou um perfil profético também poderia ser encontra-
do em outro tipo de personagem feminina que não ostentasse este nome? Ou
melhor, qual era a diferença entre uma profetisa e um profeta?

A nevî´áh

A palavra nevî´áh (profetisa) é rara na Bíblia Hebraica. Apenas seis apari-


ções da expressão em todo o Antigo Testamento, e se referem especificamente à
Miriam (Ex 15,20), Débora (Jz 4,4), Hulda (1 Rs 22,14 e 2 Cr 34,22), Noadias
(Ne 6,14) e à profetisa em Isaías (Is 8.3). O termo pode se referir não apenas à

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profetisa na verdadeira acepção da palavra, mas à esposa do profeta (Is 8,3) e


também à poetisa (Ex 15,20)2.

O êxtase (ou transe) profético no AT está, algumas vezes, ligado à ativi-


dade musical. Isso nos conduz às primeiras profetisas citadas (Miriam e Débora),
uma do deserto e outra da região do norte do Israel tribal, ambas ligadas à mú-
sica, à poesia, como acontece com Eliseu

(2 Rs 3,14-19), que é conduzido à revelação da palavra de Deus através


da música. “O ingrediente que se destaca na profecia executada por mulheres é
a performance vinculada com a dança e com o canto. Este meio de comunicação,
com canto e com dança profética de mulheres é conhecido a partir de alguns tex-
tos bíblicos. Jz 11,34; 21,21;1 Sm 18,6; Jr 31,4”3.

O profetismo em Israel passou por profunda mutação num período de oito


séculos (1200 à 425 aEC). Personagens que mentoreavam batalhas, fomentavam
transição de poder, submetiam os governantes aos seus oráculos (como Samuel
e Elias) se tornaram, ao longo deste período, coadjuvantes do centralizado sis-
tema do templo (como Ageu e Malaquias).

Neste intervalo, sua autoridade sobre os reis foi-se perdendo, tornaram-se


coadjuvantes do rei (Natan) até que uma total ruptura com o governo e o templo
se estabeleceu. Isso aproximou os profetas dos pobres da terra e da religiosida-
de popular, consequentemente os afastou dos governantes. O fato é bastante
perceptível em atuações como as de Elias, Eliseu, Amós, Oséias e Miquéias, pro-
fetas dos séculos IX e VIII aEC, considerado o século áureo da profecia bíblica. A
quantidade de profetas se proliferou de tal forma que a profecia caiu em descré-
dito. Para se reconhecer o verdadeiro profeta se deveria registrar seus oráculos e
aguardar que o tempo comprovasse a veracidade dos mesmos.

As mulheres estavam ligadas ao exercício da religiosidade popular, seu


espaço para o exercício da religiosidade sempre esteve vinculado à casa e aos
elementos de seu cotidiano, principalmente aqueles ligados à produção e repro-
dução4. A partir dos dias de Josias esta religiosidade não apenas tornou-se mar-
ginal como foi efetivamente proibida. Durante o exílio, a partir da profecia de
Ezequiel, as mulheres se tornam desautorizadas pelo oráculo do profeta. Perce-
be-se então que o descrédito pelo qual a profecia bíblica estava passando, atin-
giu em cheio às mulheres, pois os períodos e eventos coincidem.

2
George V. WIGRAM. The englishman’s hebrew and chaldee concordance of the Old Testament.
Grand Rapids: Baker, 1980, p.786. Conferir também Samuel BAGSTER.Gesenius’ hebrew and
chaldee lexicon. Grand Rapids: Baker,1980, p.528.
3
Elaine Gleici NEUENFELDT, Práticas e experiências religiosas de mulheres no Antigo Israel, p.106,
também conferir José Luiz SICRE. O profetismo em Israel, p. 101-110.
4
Elaine NEUENFELDT, Práticas e experiências, p.108-109.
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Com isso é necessário que nossa análise da profetisa não se limite apenas
àquelas que possuem o título de nevî´áh , mas devemos também perguntar pe-
las “pistas proféticas” em outras mulheres nos Profetas Anteriores. O profeta tí-
pico de Israel se identifica como a pessoa com quem Yahweh fala através de so-
nhos, visões e oráculos e os meios de transmissão desta palavra se dá através
da fala do próprio profeta ou por dramatização das “ações simbólicas”.

Entretanto as profetisas deste bloco da Bíblia Hebraica não apresentam es-


ta delimitação tão determinante em suas atuações. Ao mesmo tempo em que
tais mulheres são raras no texto bíblico, elas demonstram uma atuação envolvi-
da com outros tipos de atividades além das proféticas em si mesmas. A profetisa
não tem um formato muito definido, sua atuação se dá através das ações do co-
tidiano, em meio à sombra de uma palmeira, nas “confecções de roupas” de Je-
rusalém, ou ainda das janelas do palácio real... enfim, como aparecem?

Comecemos pelas mulheres literalmente chamadas nevî´áh nos Profetas


Anteriores: Débora e Hulda.

Sem Débora, sem guerra!

Débora é o nossa principal pista sobre profetisas do período tribal. Para


descrevermos Débora temos que recorrer a dois estilos diferentes de literatura: a
poesia (Jz 5) e a narrativa (Jz 4). Isso também nos leva à dois círculos traditivos
diferentes, nos quais a oralidade destes eventos foi desenvolvida: o círculo oficial
dos redatores da historiografia e os círculos populares onde a poesia era repetida
nas cantorias das tribos. Vamos tratar separadamente os dois materiais. Come-
cemos pelo cântico, que é o material mais antigo, mais próximo dos eventos.

No cântico (Jz 5), o papel de Débora é menos explícito, ela nem mesmo é
identificada como profetisa. O texto nos diz que Débora compõe/entoa cântico de
vitória (Jz 5,1), também nos informa que Débora se levanta no papel de mãe em
Israel (5,7). Débora é convocada a despertar para levar os prisioneiros (5,12).
Ela também lança palavra de elogios aos líderes de outras tribos que estiveram
com ela (5,15) e de censura àqueles que não vieram lutar junto de seus irmãos
(5,15-23). Débora tem poder de proferir bênção sobre Jael, a mulher que derro-
tou Sísera (5,24). Seu perfil no cântico mais se assemelha ao de uma conselhei-
ra, ou mentora do povo, nem sequer a palavra de Deus se manifesta através de-
la no poema.

Sem entrar em grandes detalhes quanto às camadas redacionais, pois isto


já deve ter sido feito em outro artigo, alocaremos a narrativa de Jz 4 a partir do
século VII aEC, período em que os Profetas Anteriores começam a ganhar um
corpo redacional. É a narrativa que atribuiu a esta mulher o título de nevî´áh e
não o cântico.

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Débora era casada (Jz 4,4) e liderava Israel (4,4). Exercia a função de juí-
za sob uma tamareira que recebera seu nome e ficava entre Ramá e Betel (4,5),
lugares conhecidos pelos seus importantes santuários na região de Efraim (4,5),
para lá os israelitas se dirigiam quando precisavam resolver suas questões jurídi-
cas (4,5). Podemos pensar numa anciã, respeitada pela comunidade de Efraim,
mas se o estudo de Meyers pode contribuir para estabelecer sua faixa etária, é
mais provável que Débora fosse uma mulher com idade entre 30 e 40 anos, já
que esta era a estimativa de vida máxima de uma mulher no final da idade do
Bronze.

Débora tinha autoridade para convocar à sua presença um guerreiro de


outra tribo (Naftali) como era Baraque (4,6) e neste encontro ela transmitiu a
ordem de Deus: “reúna dez mil homens de Naftali e Zebulom...” (4,6). A rele-
vância do papel de Débora nesta conjuntura é inegável, tanto que Baraq condici-
onou sua participação na Batalha à presença de Débora no “front” (4,8). Débora
compareceu à batalha (4,9), entretanto profetizou a morte do inimigo pelas
mãos de uma outra mulher (4,9) e a narrativa não mostra qualquer desconten-
tamento de Baraq por causa desta predição. Ela é acatada passivamente. Débora
foi quem deu a ordem de partida para a batalha (4,14).

Em suma, a Débora descrita em Jz 4 e 5 foi uma mulher tremendamente


atuante na política e nas guerras de Israel, num tempo em que Javé era conhe-
cido como o Senhor dos Exércitos. Era uma mulher com seu próprio “tribunal”,
não na porta das cidades, mas sob a tamareira que recebeu seu nome, vinculada
ao povo do campo. Esta mulher guerreira, que falava em nome do Senhor dos
Exércitos, é identificada como profetisa também proferiu a mudança do desfecho
da batalha quando Baraq se recusou a seguir sem ela. Também predisse a vitória
pela mão de uma outra mulher.

A palmeira/tamareira de Débora, situada entre dois santuários cananitas


importantes, pode nos sugerir um vínculo desta personagem com a liturgia nes-
tes santuários ou pelo menos com a religiosidade sincretista muito típica deste
período.

A atuação de Débora foi muito similar à de Samuel: ouviu a voz de Deus,


transmitiu aos seus destinatários, conferiu autoridade divina numa batalha, pre-
disse o futuro, comissionou líderes, enfim, neste primeiro momento, não nos pa-
rece que a profetisa fosse reputada com inferior ao profeta ou seu papel fosse
secundário, ao contrário, Baraq se sentia dependente da presença de Débora no
campo de batalha para ser bem sucedido. Devemos lembrar que Samuel surgiu
na história de Israel substituindo os filhos de Eli que eram sacerdotes, e não pro-
fetas. Assim, podemos suspeitar que o sistema tribal apresentava este acúmulo
de funções sacerdotais (com muitos ritos mágicos em sua rotina) e proféticas
numa só pessoa que era importante na casa e na família. Débora se levantou

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como mãe em Israel (Jz 5,7)! Ela foi matriarca, juíza, profetisa e poetisa. Este
conjunto é bastante significativo.

Hulda: dizei ao homem que te enviou o seguinte:

As narrativas sobre Hulda contam eventos dos dias de Josias (630 – 609
aEC). Uma vez que a própria redação dos Profetas Anteriores está muito com-
prometida com este período, podemos dizer que a distância entre os eventos
narrados e o próprio texto sobre Hulda é consideravelmente pequena. A confir-
mação da profetisa sobre o conteúdo do livro encontrado no templo desencadeia
a reforma religiosa promovida por Josias.

Hulda era casada, e seu esposo se chamava Salum, filho de Ticvá, neto de
Haraas (2 Rs 22,14). Ela era esposa do homem que guardava os vestiários
(22,14). O texto não define se o guarda dos vestiários era o próprio Selum ou o
seu avô Harehas, entretanto só há sete menções iguais da palavra habbegádim.
Quando aparece no plural, todas as referências indicam vestes sacerdotais, mas
quando no singular (outras quatro ocorrências) se destina a vestes diversas. O
termo indica tanto vestes sagradas do sumo sacerdote como os panos do taber-
náculo (Nm 4,6-13) ou forros de camas (1 Sm 9,13) 5. Isso cria um vínculo da
profetisa também com as ocupações sacerdotais. É provável que prestassem
serviço ao templo, por isso fora imediatamente lembrada pelo sumo sacerdote.

Ao contrário dos relatos sobre Débora, cuja origem está nitidamente vin-
culada com o norte de Israel, Hulda está no sul, uns seiscentos anos depois, lite-
ralmente em Jerusalém, com um detalhe interessante: morava no bairro novo de
Jerusalém (2 Rs 22,14). E que lugar era este?

Quando Samaria foi despovoada, a partir de 722 aEC, houve uma explosão
demográfica em Jerusalém. A população da cidade aumentou cerca de quinze
vezes num período de uma geração. Isto indica uma grande migração de israeli-
tas do norte de Israel para a região de Judá, especificamente para Jerusalém,
cidade ainda não conquistada pelos assírios.

A cidade que possuía entre dez e doze acres nos dias de Davi passou a
possuir cento e cinqüenta acres nos dias do rei Ezequias. O bairro novo de Jeru-
salém (novo nos dias de Josias) era um desses lugares dentro dos muros a partir
da ampliação da cidade. Este crescimento se refletiu também nas regiões agríco-
las e em outras cidades fortificadas de Judá6.

O papel e autoridade profética de Hulda bem como seu vínculo com o sa-
cerdócio eram, aparentemente, incontestáveis. O rei ordenou: “ide consultar a

5
Louis GOLDBERG. Em: R.Laird HARRIS; Gleason L. ARCHER JR, Bruce K. WALTKE.Dicionário
Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 149.
6
Israel FINKELSTEIN; Neil Asher SILBERMAN. A Bíblia não tinha razão. São Paulo: A girafa, 2003,
p. 329-333.
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Yahweh por mim e pelo povo” (2 Rs 22,13). Sem qualquer discussão, seus funci-
onários, encabeçados pelo sumo-sacerdote, se dirigiram à Hulda. O que Hulda
sabia sobre a Lei que os judaítas desconheciam?

É Sandro Gallazzi quem nos traz a interessante visão de que, nem Jere-
mias ou Sofonias, contemporâneos de Hulda, foram cogitados, nem mesmo as
dezenas de profetas que eram usualmente consultados pelos governantes (1Rs
22,5-6). Para ele, Hulda representava os segmentos do povo da terra que se
opunham ao rei, representando o julgamento de Deus sobre a monarquia e o
templo 7. “O Deuteronomista [fala] de Hulda justamente aqui, quando é narrada
a aparição do livro mais importante para ele: o Deuteronômio! (...) Hulda é
quem, em nome de Javé, dá ‘autoridade’ ao livro do Deuteronômio!” 8.

Diana Edelmann, todavia, levanta uma outra hipótese. Ela sugere que Hul-
da poderia ser uma profetisa não de Javé, mas de Aserá. Nas suas palavras:

O tempo em questão era aquele em que o culto a Aserá ainda faria


parte do javismo nacional. Haveria sacerdotes e profetas de Aserá
oficialmente designados e patrocinados.Se um livro contendo as pa-
lavras de Yhwh tivesse sido encontrado nessa época e se fosse des-
coberto que havia muito tempo não se observavam as palavras de
Yahweh é mais provável que o rei tivesse enviado uma delegação
para consultar um profeta de Aserá, a fim de saber como estava o
humor de Yahwh, em vez de consultar diretamente Yahwh por in-
termédio de um de seus próprios profetas, o que chamaria a aten-
ção para as infrações e aumentaria a fúria da divindade.Um inter-
cessor, neste caso, a consorte de Yhwh, seria capaz de amenizar a
necessidade de castigo ou persuadir a outra divindade a ser clemen-
te em sua punição ou resposta e, desta forma, amainar a situação
potencialmente desastrosa9.

O sumo-sacerdote Hilquias foi o mesmo homem que encontrou o livro per-


dido no templo (22,14). Ele procura por Hulda com determinação real para solu-
cionar a questão. Todavia, a forma como Hulda responde parece, ou ignorar a
autoridade real que está por trás do sacerdote, ou simplesmente desprezá-la.
Hulda não falou: “ide dizer ao rei, meu senhor”, com a solenidade de um Natan,
ela simplesmente disse: “dizei ao homem que vos enviou a mim” (22,15). No
relato posterior do livro de Crônicas a expressão é semelhante (2 Cr. 34,23).

Esta curiosa “irreverência” nos faz retomar a explicação sobre o local onde
Hulda era encontrada. Seria o bairro um reduto dos nortistas refugiados que mi-
graram progressivamente para a cidade após 722 aEC? Seria Hulda uma profeti-
7
Sandro GALLAZZI, Por que consultaram Hulda? p. 38-46.
8
Sandro GALLAZZI, Ibidem. p.39.
9
Diana EDELMANN. Hulda, a profetisa de Yhwh ou de Aserá? p. 316.
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sa educada nos moldes da escola profética de Samuel no norte? Teria esta escola
migrado para o sul, uma vez que é a partir desta época que um profetismo mais
substancial se desenvolveu no sul? Em um relato anterior, o texto atribui a Lei
como sendo entregue ao povo através dos seus servos, os profetas (2 Rs 17,13).
Este vínculo da lei com a profecia, já nos dias de Ezequias era bastante significa-
tivo. Agora com Hulda ele está incontestável, seguindo a suspeita de Gallazzi.

O “pouco caso” de Hulda com a pessoa do rei bem nos lembra as falas de
Elias, Eliseu e Amós, importantes profetas do norte durante os séculos IX E VIII
aEC? Por que o teor da palavra profética de Hulda tem essa insolência para com
o rei, este “sotaque” tão... nortista?

“Hulda é totalmente ligada ao seu papel impopular. Ela é en-


volvida em assuntos de Estado porque provê um oráculo aos
emissários do rei e o faz diretamente e sem receio. Suas pa-
lavras prevêem a destruição de Jerusalém e, no entanto, o
próprio Josias morreria em paz (...) a não realização da parte
final da profecia de Hulda marca-a como uma genuína predi-
ção política, ocorrida antes dos fatos a que se refere”10.

Este “passeio” pela ocupação, pelo bairro, pelo “sotaque” e pela credibili-
dade de Hulda, nos mostra, num material literário bem menor que o de Débora,
uma profetisa muito mais “elaborada”. Débora pertencia ao momento em que os
profetas atuavam na política, período pré-monárquico. Hulda pertencia ao mo-
mento oposto: o de consolidação da monarquia, e nestes dias a figura do profeta
andava muito depreciada diante de seus governantes. Hulda viveu num momen-
to de descrédito da profecia, um tempo no qual se proliferavam falsos profetas
em nome de Javé, poucos eram aqueles em que uma palavra do Senhor poderia
ser consultada e confiada, e Hulda foi uma dessas referências.

Concluindo

Este breve panorama nas biografias de Débora e Hulda, nas poucas pistas
que o texto bíblico nos deixa nos mostra as profetisas com aspectos bem diferen-
tes dos profetas. Quando olhamos para a delimitação da atuação do próprio pro-
feta, perguntamos mesmo o que faz estas mulheres serem cognominadas como
profetisas.

Entretanto há algo em comum entre Débora e Hulda. Ambas são atuantes


através do conselho no meio do povo para fins específicos. Não há oráculos pro-
féticos proferidos por Débora ou Hulda, mas há confirmações da vontade de Javé

10
Athalya BRENNER, A mulher israelita, p. 84.
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para uma batalha e confirmações dos aspectos da lei e da aliança no Deutero-


nômio que são confirmados por tais mulheres mediante consulta das pessoas
que a elas se dirigem.

Isso nos sugere que, provavelmente, a profetisa, não era uma vidente ou
uma personalidade exótica ou que precisava se desdobrar em mirabolantes
ações simbólicas para ser canal da mensagem de Deus. Elas eram conselheiras.
Eram consultadas, a elas se dirigia para pedir conselhos, para julgar causas, para
confirmar leis.

Esta perspectiva nos aponta então para uma atuação mais ampla das mu-
lheres, ao lado dos líderes homens, servindo como conselheiras ou como aquelas
que proferem a palavra final de Javé sobre um determinado projeto.

Obviamente, do mesmo modo que as profetisas eram consultadas, outras


mulheres também eram consultadas, ou proferiam palavras que se cumpriam e
se transformaram em verdadeiras profecias, tamanho efeito que causaram. Um
desses casos seria a própria Mical. Suas palavras podem muito bem ter causado
enorme efeito no restante da história de Davi11. Também temos a necromante de
En-Dor. É possível, inclusive, que as profetisas tenham sido reputadas como fal-
sas-porta-vozes de Javé por transmitirem seus conselhos através de práticas sin-
créticas que misturavam a orientação de Javé com magia e outros rituais corri-
queiros na religiosidade popular, mas plenamente condenados, não apenas pelo
Deuteronômio como também pela reforma religiosa de Josias que sucedeu à des-
coberta da lei. Ou seja, não se submetiam aos formatos impostos pelo modelo
religioso de preeminência masculina.

Nossa suspeita é que, de alguma forma, as profetisas foram assemelhadas


ou colocadas na mesma categoria que as feiticeiras, necromantes e todas as mu-
lheres que eram “consultadas” pelo povo para, por meio delas, se receber conse-
lhos. As profetisas sumiram da história no mesmo momento em que o modelo
oficial de profecia se definiu como masculino.

Quando Dt 18, 9-22 descreve o verdadeiro profeta, este é um návî, nunca


uma nevî´áh. Com isso se exclui qualquer possibilidade de atuação da mulher
numa função como esta.

Faz sentido Hulda ser a última profetisa reconhecida em Judá. A partir da


aplicação desta lei, até a própria Hulda, que lhe deu confirmação teológica ficou
desautorizada, sorte dela que falou antes de a lei ser aplicada! “Todas as práticas

11
Essa foi uma consideração importante feita por Milton Schwantes, se as palavras de Mical não
foram, em certo sentido, proféticas quanto ao desdobramento complicado na história da su-
cessão do trono em Judá e, se o que ocorreu com Davi depois disso não teria sido uma con-
seqüência do desprezo que devotou à ela. Este é um assunto a ser desenvolvido num outro
momento, mas fica aqui a suspeita para motivação de novas pesquisas.
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que estão fora do olhar e do alcance da mão oficial são rechaçadas para o âmbito
proscrito da deslegitimação”12.

Mas lá de seus cantinhos, seus quartinhos mal-iluminados, nas suas ten-


das cheirando a incenso, no campo entre as que colhem espigas, as mulheres
continuaram sendo buscadas para conselhos. E os deram! Quem sabe quanto
curso da história acabou sendo modificado por causa das pessoas que seguiram
os conselhos de tais mulheres. Afinal, quem consegue calar a boca de uma mu-
lher?

Fonte:

MARIANNO, Lília Dias. Profetisas no Antigo Israel – Entre um conselho e outro,


interferindo no curso da história. Em: Revista de Interpretação Bíblica Lati-
no-Americana – RIBLA, n. 60 (Profetas Anteriores: Josué, Juízes, 1 e 2 Sa-
muel, 1 e 2 Reis). Petrópolis: Vozes, 2008/2, p. 158-166.

12
Elaine NEUENFELDT, Práticas e experiências, p.107.
Página 10

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