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Leitura de Avaliação
Resumo
Este artigo tem a intenção de delinear a figura da profetisa no Antigo Israel, reler o de-
sempenho destas mulheres na religiosidade popular e levantar suspeitas hermenêuticas
sobre o “desaparecimento” destas mulheres tanto do profetismo em Israel quanto da
Bíblia Hebraica.
Abstract
This article intent to establish who is the prophetess in Ancient Israel, re-read the fulfill-
ment of these women on the popular religiosity and to raise hermeneutic suspicions
about the disappearance of these women from the prophetic books on Hebrew Bible.
1
Este ensaio é resultado do intenso diálogo estabelecido com várias idéias dos/as seguintes pes-
quisadores/as, aos quais considero como meus co-autores: Mercedes BRANCHER. A violência
contra as mulheres feiticeiras. Em: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Petró-
polis, n.50, p. 86-90, 2005; Athalya BRENNER. A mulher israelita. São Paulo: Paulinas,
2001; Luiz DIETRICH; Shigeyuki NAKANOSE; Francisco OROFINO. Primeiro livro de Samuel:
pedir um rei foi nosso maior pecado. Série comentário Bíblico. São Leopoldo/Petrópolis: Si-
nodal/Vozes, 1999; Fokkelien van DIJK-HEMMES. Mães e uma mediadora no cântico de Dé-
bora. Em: Athalya BRENNER (org.). Juízes a partir de uma leitura de gênero. São Paulo:
Paulinas, p. 139-146, 2001; Diana EDELMAN. Hulda, a profetisa de Yhwh ou de Aserá? Em:
Athalya BRENNER (org.). Samuel e Reis a partir de uma leitura de gênero. São Paulo: Pauli-
nas, p. 296-322, 2001. Sandro GALLAZZI. Por que consultaram Hulda? Em: Revista de In-
terpretação Bíblica Latino-Americana. Petrópolis/São Leopoldo, n.16, p. 38-46, 1993; Alice
LAFFEY; Introdução ao Antigo Testamento em perspectiva feminista. São Paulo: Paulinas,
1994; Deirdre LEVINSON, A psicopatologia do rei Saul. Idem, p.135-152 Em: Christina BU-
CHMANN e Celina SPIEGEL (orgs). Fora do Jardim mulheres escrevem sobre a Bíblia. Rio de
Janeiro: Imago, p. 135-152, 1995, Carol MEYERS. As raízes da restrição. Em: Estudos Bíbli-
cos. Petrópolis n. 20, p. 9-25, 1990; Peter NASH; Elaine G.NEUENFELDT. De magias e de-
mônios: os processos de exclusão e marginalização do/a outro/a. Em: Estudos Bíblicos, Pe-
trópolis, n. 74, p.70-78, 2002. Elaine NEUENFELDT. Práticas e experiências religiosas de mu-
lheres no antigo Israel: um estudo a partir de Ez 8,14-15 e 13,17-23. São Leopoldo, 2004,
393p. [Tese- Doutorado em Teologia – Escola Superior de Teologia]. Nancy Cardoso PEREI-
RA. Hermenêutica feminista: roteiros de inimizade ou parcerias saborosas? Em: Revista de
Interpretação Bíblica Latino-Americana. Petrópolis, n.50, p.189-196, 2005; Nancy Cardoso
PEREIRA. Tamborins, espelhos e sonhos: profecia no imaginário das relações de gênero da
Bíblia Hebraica. Em Estudos Bíblico. Petrópolis, n. 73, p.67-75, 2002. Jose Luiz SICRE. Profe-
tismo em Israel: o profeta, os profetas, a mensagem. Petrópolis: Vozes, 1996.
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Introduzindo
A nevî´áh
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George V. WIGRAM. The englishman’s hebrew and chaldee concordance of the Old Testament.
Grand Rapids: Baker, 1980, p.786. Conferir também Samuel BAGSTER.Gesenius’ hebrew and
chaldee lexicon. Grand Rapids: Baker,1980, p.528.
3
Elaine Gleici NEUENFELDT, Práticas e experiências religiosas de mulheres no Antigo Israel, p.106,
também conferir José Luiz SICRE. O profetismo em Israel, p. 101-110.
4
Elaine NEUENFELDT, Práticas e experiências, p.108-109.
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Com isso é necessário que nossa análise da profetisa não se limite apenas
àquelas que possuem o título de nevî´áh , mas devemos também perguntar pe-
las “pistas proféticas” em outras mulheres nos Profetas Anteriores. O profeta tí-
pico de Israel se identifica como a pessoa com quem Yahweh fala através de so-
nhos, visões e oráculos e os meios de transmissão desta palavra se dá através
da fala do próprio profeta ou por dramatização das “ações simbólicas”.
No cântico (Jz 5), o papel de Débora é menos explícito, ela nem mesmo é
identificada como profetisa. O texto nos diz que Débora compõe/entoa cântico de
vitória (Jz 5,1), também nos informa que Débora se levanta no papel de mãe em
Israel (5,7). Débora é convocada a despertar para levar os prisioneiros (5,12).
Ela também lança palavra de elogios aos líderes de outras tribos que estiveram
com ela (5,15) e de censura àqueles que não vieram lutar junto de seus irmãos
(5,15-23). Débora tem poder de proferir bênção sobre Jael, a mulher que derro-
tou Sísera (5,24). Seu perfil no cântico mais se assemelha ao de uma conselhei-
ra, ou mentora do povo, nem sequer a palavra de Deus se manifesta através de-
la no poema.
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Débora era casada (Jz 4,4) e liderava Israel (4,4). Exercia a função de juí-
za sob uma tamareira que recebera seu nome e ficava entre Ramá e Betel (4,5),
lugares conhecidos pelos seus importantes santuários na região de Efraim (4,5),
para lá os israelitas se dirigiam quando precisavam resolver suas questões jurídi-
cas (4,5). Podemos pensar numa anciã, respeitada pela comunidade de Efraim,
mas se o estudo de Meyers pode contribuir para estabelecer sua faixa etária, é
mais provável que Débora fosse uma mulher com idade entre 30 e 40 anos, já
que esta era a estimativa de vida máxima de uma mulher no final da idade do
Bronze.
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como mãe em Israel (Jz 5,7)! Ela foi matriarca, juíza, profetisa e poetisa. Este
conjunto é bastante significativo.
As narrativas sobre Hulda contam eventos dos dias de Josias (630 – 609
aEC). Uma vez que a própria redação dos Profetas Anteriores está muito com-
prometida com este período, podemos dizer que a distância entre os eventos
narrados e o próprio texto sobre Hulda é consideravelmente pequena. A confir-
mação da profetisa sobre o conteúdo do livro encontrado no templo desencadeia
a reforma religiosa promovida por Josias.
Hulda era casada, e seu esposo se chamava Salum, filho de Ticvá, neto de
Haraas (2 Rs 22,14). Ela era esposa do homem que guardava os vestiários
(22,14). O texto não define se o guarda dos vestiários era o próprio Selum ou o
seu avô Harehas, entretanto só há sete menções iguais da palavra habbegádim.
Quando aparece no plural, todas as referências indicam vestes sacerdotais, mas
quando no singular (outras quatro ocorrências) se destina a vestes diversas. O
termo indica tanto vestes sagradas do sumo sacerdote como os panos do taber-
náculo (Nm 4,6-13) ou forros de camas (1 Sm 9,13) 5. Isso cria um vínculo da
profetisa também com as ocupações sacerdotais. É provável que prestassem
serviço ao templo, por isso fora imediatamente lembrada pelo sumo sacerdote.
Ao contrário dos relatos sobre Débora, cuja origem está nitidamente vin-
culada com o norte de Israel, Hulda está no sul, uns seiscentos anos depois, lite-
ralmente em Jerusalém, com um detalhe interessante: morava no bairro novo de
Jerusalém (2 Rs 22,14). E que lugar era este?
Quando Samaria foi despovoada, a partir de 722 aEC, houve uma explosão
demográfica em Jerusalém. A população da cidade aumentou cerca de quinze
vezes num período de uma geração. Isto indica uma grande migração de israeli-
tas do norte de Israel para a região de Judá, especificamente para Jerusalém,
cidade ainda não conquistada pelos assírios.
A cidade que possuía entre dez e doze acres nos dias de Davi passou a
possuir cento e cinqüenta acres nos dias do rei Ezequias. O bairro novo de Jeru-
salém (novo nos dias de Josias) era um desses lugares dentro dos muros a partir
da ampliação da cidade. Este crescimento se refletiu também nas regiões agríco-
las e em outras cidades fortificadas de Judá6.
O papel e autoridade profética de Hulda bem como seu vínculo com o sa-
cerdócio eram, aparentemente, incontestáveis. O rei ordenou: “ide consultar a
5
Louis GOLDBERG. Em: R.Laird HARRIS; Gleason L. ARCHER JR, Bruce K. WALTKE.Dicionário
Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 149.
6
Israel FINKELSTEIN; Neil Asher SILBERMAN. A Bíblia não tinha razão. São Paulo: A girafa, 2003,
p. 329-333.
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Yahweh por mim e pelo povo” (2 Rs 22,13). Sem qualquer discussão, seus funci-
onários, encabeçados pelo sumo-sacerdote, se dirigiram à Hulda. O que Hulda
sabia sobre a Lei que os judaítas desconheciam?
É Sandro Gallazzi quem nos traz a interessante visão de que, nem Jere-
mias ou Sofonias, contemporâneos de Hulda, foram cogitados, nem mesmo as
dezenas de profetas que eram usualmente consultados pelos governantes (1Rs
22,5-6). Para ele, Hulda representava os segmentos do povo da terra que se
opunham ao rei, representando o julgamento de Deus sobre a monarquia e o
templo 7. “O Deuteronomista [fala] de Hulda justamente aqui, quando é narrada
a aparição do livro mais importante para ele: o Deuteronômio! (...) Hulda é
quem, em nome de Javé, dá ‘autoridade’ ao livro do Deuteronômio!” 8.
Diana Edelmann, todavia, levanta uma outra hipótese. Ela sugere que Hul-
da poderia ser uma profetisa não de Javé, mas de Aserá. Nas suas palavras:
Esta curiosa “irreverência” nos faz retomar a explicação sobre o local onde
Hulda era encontrada. Seria o bairro um reduto dos nortistas refugiados que mi-
graram progressivamente para a cidade após 722 aEC? Seria Hulda uma profeti-
7
Sandro GALLAZZI, Por que consultaram Hulda? p. 38-46.
8
Sandro GALLAZZI, Ibidem. p.39.
9
Diana EDELMANN. Hulda, a profetisa de Yhwh ou de Aserá? p. 316.
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sa educada nos moldes da escola profética de Samuel no norte? Teria esta escola
migrado para o sul, uma vez que é a partir desta época que um profetismo mais
substancial se desenvolveu no sul? Em um relato anterior, o texto atribui a Lei
como sendo entregue ao povo através dos seus servos, os profetas (2 Rs 17,13).
Este vínculo da lei com a profecia, já nos dias de Ezequias era bastante significa-
tivo. Agora com Hulda ele está incontestável, seguindo a suspeita de Gallazzi.
O “pouco caso” de Hulda com a pessoa do rei bem nos lembra as falas de
Elias, Eliseu e Amós, importantes profetas do norte durante os séculos IX E VIII
aEC? Por que o teor da palavra profética de Hulda tem essa insolência para com
o rei, este “sotaque” tão... nortista?
Este “passeio” pela ocupação, pelo bairro, pelo “sotaque” e pela credibili-
dade de Hulda, nos mostra, num material literário bem menor que o de Débora,
uma profetisa muito mais “elaborada”. Débora pertencia ao momento em que os
profetas atuavam na política, período pré-monárquico. Hulda pertencia ao mo-
mento oposto: o de consolidação da monarquia, e nestes dias a figura do profeta
andava muito depreciada diante de seus governantes. Hulda viveu num momen-
to de descrédito da profecia, um tempo no qual se proliferavam falsos profetas
em nome de Javé, poucos eram aqueles em que uma palavra do Senhor poderia
ser consultada e confiada, e Hulda foi uma dessas referências.
Concluindo
Este breve panorama nas biografias de Débora e Hulda, nas poucas pistas
que o texto bíblico nos deixa nos mostra as profetisas com aspectos bem diferen-
tes dos profetas. Quando olhamos para a delimitação da atuação do próprio pro-
feta, perguntamos mesmo o que faz estas mulheres serem cognominadas como
profetisas.
10
Athalya BRENNER, A mulher israelita, p. 84.
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Isso nos sugere que, provavelmente, a profetisa, não era uma vidente ou
uma personalidade exótica ou que precisava se desdobrar em mirabolantes
ações simbólicas para ser canal da mensagem de Deus. Elas eram conselheiras.
Eram consultadas, a elas se dirigia para pedir conselhos, para julgar causas, para
confirmar leis.
Esta perspectiva nos aponta então para uma atuação mais ampla das mu-
lheres, ao lado dos líderes homens, servindo como conselheiras ou como aquelas
que proferem a palavra final de Javé sobre um determinado projeto.
11
Essa foi uma consideração importante feita por Milton Schwantes, se as palavras de Mical não
foram, em certo sentido, proféticas quanto ao desdobramento complicado na história da su-
cessão do trono em Judá e, se o que ocorreu com Davi depois disso não teria sido uma con-
seqüência do desprezo que devotou à ela. Este é um assunto a ser desenvolvido num outro
momento, mas fica aqui a suspeita para motivação de novas pesquisas.
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que estão fora do olhar e do alcance da mão oficial são rechaçadas para o âmbito
proscrito da deslegitimação”12.
Fonte:
12
Elaine NEUENFELDT, Práticas e experiências, p.107.
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