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A Linguagem do Juiz

I– Com esse título, tirou a público o eminente Desembargador


Geraldo Amaral Arruda livro em extremo útil àqueles que se
consagraram ao serviço da Justiça(1).
Forte no argumento de que a linguagem das decisões judiciais
está comprometida com a linguagem culta(2), entrou Sua Excelência a
tratar “ex professo” de pontos, cuja inobservância tem levado muitos a
distanciar-se daquele áureo padrão de que justamente se ufanava o
jurista Bertrand: O Palácio da Justiça é o conservatório da língua(3).
Como é do ofício do juiz dizer o Direito, está além de toda a
disputa que unicamente na palavra achará o veículo de sua realização.
Daqui procede, pois, que deverá conhecer bem o idioma vernáculo e
saber exprimir-se nele com discreta e pontual correção(4).
No juiz não é mister concorram os dotes que distinguem os
exímios artistas da palavra e lhes asseguram a imortalidade no
panteão da glória literária; tampouco é preciso traga na fronte o louro
de Apolo; basta-lhe que, não podendo possuir todas as excelências de
sua língua, ao menos se empenhe por evitar as faltas graves que
amiúde contra ela se cometem e lhe abatem o esplendor(5).

II – Mas, visto pressupõe largo tirocínio, a ciência da linguagem não


se adquire sem o trato paciente e ininterrupto dos mais acabados
modelos da vernaculidade — os clássicos —, que Horácio mandava
correr com mão diurna e noturna(6).
A primeira objeção que nos fará algum colega é que,
verdadeiros reféns do tempo, e eternamente ocupados em leituras e
estudos de autos de processo, já não têm os juízes ócio para a
conversação dos mestres do bom dizer, que lhes regale a alma.
Verdade é esta que se não pode refutar cabalmente! Todavia,
àquele, em cujo peito ainda não feneceu a centelha do entusiasmo
pelas coisas belas e grandes, sempre deparará a fortuna alguns
instantes, nos quais possam reconciliar-se com os egrégios varões que
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deram lustre e majestade à formosa língua portuguesa. Eis a melhor


maneira de alcançar a riqueza do saber literário!
Não é para aqui a menção de todos os escritores cujas obras
importam muitíssimo à formação do gosto literário, à aquisição dos
cabedais da língua e à apuração do estilo. Alguns poucos, no entanto,
de nomeada clássica, merecem referidos: Antônio Vieira, Manuel
Bernardes, Luís de Sousa, Alexandre Herculano, Latino Coelho,
Camilo Castelo Branco, Machado de Assis…, demais dos que figuram
também no cânon dos juristas conspícuos: Rui, Lafaiete, Nélson
Hungria, Orosimbo Nonato e Eliézer Rosa. (O que escreveram estes
beneméritos espíritos constituirá sempre boa lição de vernaculidade e
excelente doutrina jurídica).

III – Entretanto, porque nem o talento supre a gramática, o livro


prestantíssimo de Geraldo Amaral Arruda também adverte o leitor
dos erros e impropriedades mais comuns que desprimoram sentenças
e outros escritos forenses. Alguns damos aqui de amostra:
a) “Recomende-se-o na prisão” (p. 23). Frase incorreta. Deve-se dizer:
“Recomende-se na prisão; recomende-se ele na prisão ou seja ele
recomendado na prisão”(7);
b) “Posto que, conjunção concessiva, que não deve ser usada como causal.
Posto que equivale a embora, ainda que, conquanto, etc., e se usa com o
verbo no subjuntivo” (p. 109)(8);
c) “De vez que…, vez que”: “muito comuns, tanto em peças redigidas por
advogados como até em sentenças” (p. 22), tais locuções constituem
solecismo condenável;
d) “Procedida a penhora” (p. 56). “Mas não será correto dizer procedida a
penhora… Por se tratar de verbo transitivo indireto, não é correto seu uso
em expressão passiva”. Diga: “procedeu-se à penhora”;
e) Reprimenda. “Tem essa palavra aparecido em sentença como sinônima de
pena. Há equívoco. Não há fundamento para o uso de reprimenda no
sentido de punição criminal” (p. 8). “No direito penal haverá
impropriedade em se denominar reprimenda qualquer pena detentiva.
Apenas pretendendo referir-se à admonição resultante da suspensão
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condicional da pena é que se pode falar, sem impropriedade, em


reprimenda ao réu” (p. 9). O Dicionário de Caldas Aulete e Santos
Valente dá ao verbete reprimenda os seguintes sinônimos:
admoestação severa; crítica acerba; censura forte;
f) Inobstante. “Nenhum dicionário autoriza esse neologismo, que circula nos
meios forenses a par de outras expressões de formação semelhante.
Preferível o uso das expressões vernáculas já consagradas não obstante ou
nada obstante” (p. 23);
g) “… a aberrante expressão datissima venia” (p. 11).

A segurança e a clareza com que foi escrito e a grande utilidade


que sua doutrina representa para os cultores do Direito e das boas
letras, notadamente os juízes, valem por idônea carta de
recomendação do livro A Linguagem do Juiz, no qual até os que se
presumem de doutos e sabedores terão muito que aprender e louvar.

Notas

(1) Geraldo Amaral Arruda, A Linguagem do Juiz, 1996, Editora


Saraiva.
(2) Op. cit., p. 5.
(3) Edgar de Moura Bittencourt, O Juiz, 1966, p. 287.
(4) “Não há bom Direito em linguagem ruim”, afirmou com assaz de
razão Hildebrando Campestrini (Como Redigir Ementas, 1994, p.
40).
(5) Ao juiz não lhe é defeso cultivar em grau assinalado a arte de
bem escrever. Disse-o Mário Guimarães: “Pode o juiz, se a tanto lhe
ajudar o engenho e arte, dar contorno elegante a cada frase. A elegância
não se opõe à simplicidade. Coexistem uma e outra, e até bem vai que se
associem” (O Juiz e a Função Jurisdicional, 1958, p. 360).
(6) Arte Poética, v. 268.
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(7) Vem aqui de molde o ensinamento do preclaro filólogo Mário


Barreto: “Todos, em letra redonda, já se referiram à combinação se o e
unanimemente lhe assentaram o ferro em brasa de sua condenação, por
monstruosa em face dos documentos exemplares do nosso idioma” (De
Gramática e de Linguagem, 1922, t. I, p. 47). Ainda: “Os pronomes se e
o jamais podem vir juntos na mesma oração; nunca devemos dizer: não se
o sabe, faz-se-o, vê-se-o” (Napoleão Mendes de Almeida, Gramática
Metódica da Língua Portuguesa, 29a. ed., p. 177; Edição Saraiva).
(8) Posto que, em lugar de porque: “É locução conjuntiva, de sentido
concessivo, e não causal; significa ainda que, bem que, embora, apesar de:
Um simples cavaleiro, posto que ilustre. E, posto que a luta fosse longa e
encarniçada, venceram” (Napoleão Mendes de Almeida, Dicionário
de Questões Vernáculas, 1981, p. 242). Outros exemplos, em abono
da lição do saudoso Mestre: “(…) alguns exemplos temos, posto que
poucos” (Antônio Vieira, Sermões, 1959, t. V, p. 74); “O tempo ia
sereno, posto que frio” (Alexandre Herculano, O Monge de Cister,
21a. ed., t. I, p. 46); “Estou melhor, posto que não inteiramente
restabelecido” (Idem, Cartas de Vale de Lobos, 1980, vol. I, p. 59;
Livraria Bertrand).

Carlos Biasotti
Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

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