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Introdução
mente tese de doutoramento do professor da UFPB Durval Muniz, tem por objeto as elabo-
do século XX, tendo por base a idéia do que ele chama de “naturalização” do espaço pro-
cedida por esses discursos e seu profundo anti-modernismo, fruto de uma ardilosa articula-
ção das “elites” produtoras “nordestinas” em crise, que construíram uma “máquina discur-
siva” da qual ninguém, nem nas artes nem na academia, conseguiu escapar, a não ser, pelo
visto, o próprio Durval Muniz. Surpreendentemente, mesmo os marxistas, até então reco-
nhecidos como os mais vorazes críticos do regionalismo, estavam, sem que tivessem per-
da construção de um “ideário” da crise, que perpassava todas as esferas mas que se “mate-
um “espaço” naturalizado que ganha vida própria, que institui a região como forma de ho-
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Professor Substituto do Departamento de História da UFPB (Campus I) e doutorando em Sociologia
(UFPE)
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Muniz afirma que autores como Rosa Godoy (O Regionalismo Nordestino) e Francisco de Oliveira (Elegia
para um Re(li)gião), ao trabalharem com a idéia de existência do “Nordeste” como uma região, acabam por
legitimar essa “dizibilidade” regionalista e, mais ainda, estão presos “à rede de poderes que sustenta a idéia
de região como referencial válido para instituir um saber, um discurso histórico”. (Muniz Albuquerque Jr.,
1999:28)
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conservadora, portanto. Por isso, para Muniz só é possível falar em “Nordeste” a partir de
uma temporalidade específica, para opô-lo a um movimento mais amplo de mudança, capi-
talista, que modifica profundamente a geografia da “região”, deixa nela suas marcas, pro-
de poder estabelecido. O “Nordeste” nasce, dessa maneira, como uma poderosa “máquina
discursiva” que institui uma idéia e que passa a ser, desde então, associada ao atraso, à
baseadas na “honra”, pessoais, ao rural, enfim. No lado oposto, está o “Sudeste”, espaço da
construção dessa “identidade” é o Sudeste, de onde também partem discursos que ajudam a
No primeiro capítulo, Muniz trabalha essa oposição a partir de uma idéia central do
seu trabalho que é a de “naturazalização” do espaço. A partir daí toda produção artística e
intelectual que tenha como referência o “Nordeste” como recorte espacial “naturalizado” –
ou seja, como um conceito já dado, sem história, portanto – será tratada como peças de
uma mesma engrenagem, que não questiona, não põe em xeque, mas legitima, dá continui-
dade, reforça um discurso que é o das elites regionais. Nos capítulos posteriores, Muniz faz
uma análise da produção cultural que institui a região, estabelecendo como marco o Con-
gresso Regionalista de 1926, um evento que demarca amplo significado cultural e político.
seguintes parece ter dado seus frutos: as obras José Américo de Almeida, especialmente A
Bagaceira, de José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos,
Luiz Gonzaga, Ariano Suassuna, Portinari, Di Cavalcanti, Caribe, João Cabral de Melo
Neto, Glauber Rocha e outros não conseguem, apesar das diferenças entre eles, que o autor
não desconsidera, fugir das imagens do regional, das suas fronteiras naturalizadas, seja
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com uma postura mais “conservadora” – como é o caso de José Lins e José Américo, por
exemplo – seja como postura crítica, mais à esquerda, que tratam a “região”, segundo Mu-
va idéia de Nordeste da qual ele não sabe muito bem qual seria, mas deixa indícios sutis de
que o tropicalismo poderia se constituir na base por onde se poderia começar essa ruptura
discursiva, algo que ele deixa mais claro no último capítulo de sua tese, que trata do tropi-
calismo, infelizmente excluído do livro. Muniz constrói sua argumentação a partir de duas
Este trabalho é uma tentativa de diálogo crítico e sincero com essas idéias, hoje tão
em voga nas ciências humanas e sociais. É uma tentativa de responder ao desafio à polêmi-
ca que o livro em tela chama, que representa, ao mesmo tempo, uma leitura bastante origi-
nal sobre a “questão regional nordestina” e uma negação, uma desconstrução da mesma,
objetivo que é perseguido, devemos aqui reconhecer, com brilhantismo. O estilo de Muniz
permite uma leitura fácil, quase literária, o que certamente ajuda na clareza da exposição e
das idéias que o texto expõe. E estas são muitas, e polêmicas. Por isso, este trabalho que se
remos desenvolver uma crítica da concepção de espaço adotada por Muniz, como já enfati-
zamos, central para sua argumentação e trabalho com as fontes, sua visão quanto ao mo-
debate teórico a respeito da concepção de poder e de história esboçada no livro aqui anali-
sado.
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O espaço de uma história em ruínas
No que diz respeito à primeira questão, o discurso regionalista se estruturaria a par-
fia como detentora de um saber que “naturaliza” o espaço, portanto, tornando-o empecilho
às transformações e mudanças históricas, o que dessa maneira, acaba por opor história e
São recorrentes as referências nesse sentido: “O espaço perdia cada vez mais sua dimensão
natural, geográfica, para se tornar uma dimensão histórica, artificial, construída pelo ho-
mem” (p. 47), como se o espaço antes da modernidade capitalista no Brasil não tivesse
ja-se que o espaço é uma dimensão a priori, como em Kant, mero palco das ações huma-
nas, portanto, da história. O espaço é visto aqui como mero repositório das obras humanas,
que são artificiais, ou seja, não fazem parte do espaço, alteram-no, modificam sua percep-
ção. O espaço é separado do homem, não tem um conteúdo social, a não ser como subjeti-
vidade, como percepção. O espaço é apenas exterioridade. Por isso, para Foucault, a geo-
jeto de fazer interagir espaço (seria mais correto usar aqui “lugar”) e poder. Como diz Fou-
cault:
“Cada vez mais me parece que a formação dos discursos e a genealogia do saber de-
vem ser analisadas a partir não dos tipos de consciência, das modalidades de percep-
ção ou das formas de ideologia, mas das táticas e estratégias de poder. Táticas e estra-
tégias que se desdobram através das implantações, das distribuições, dos recortes, dos
controles de territórios, das organizações de domínios que poderiam constituir uma
espécie de geopolítica (...)” (Foucault, 1990:164)
lacionado ao poder, se fragmenta nos lugares, na sua irredutibilidade, que é o corpo, “espa-
ço” onde são exercidas “as forças de repressão, da socialização, da disciplina e da puni-
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ção”, mas onde se podem criar também as “heterotopias” – “espaços de resistência e liber-
dade” (Harvey, 1995:195), porque, para Foucault, “o indivíduo não é o dado sobre o qual
se exerce e se abate o poder. O indivíduo, com suas características, sua identidade é, fixado
a si mesmo, o produto de uma relação de poder que se exerce sobre corpos, mutiplicidades,
tido apenas político-administrativo já que tem uma relação direta com o poder, com o terri-
tório. São recortes “históricos”, são elaborações umbilicalmente gestadas e ligadas aos
com o tempo, não produzem elas também o tempo. As mudanças espaciais são apenas in-
dícios da existência da dinâmica do tempo. Essa idéia tem um sentido ontológico e meto-
dológico: o espaço é visto como separado do sujeito cognoscente, entre este e o “objeto”
ais no trabalho.
“Tentar fazer com que este espaço [a região Nordeste] cristalizado estremeça, rache,
mostrando a mobilidade do seu solo, as forças tectônicas que habitam seu interior, que
não permitem que a vejamos como efeito da sedimentação lenta e permanente de ca-
madas naturais ou culturais, buscando apreender os terremotos no campo das práticas
e dos discursos, que recortam novas espacialidades, cartografam novas topologias,
que deixam vir à tona, pelas rachaduras que provocam, novos elementos, novos
magmas, que se cristalizam e dão origem a novos territórios.” (Muniz de Albuquerque
Jr, 1999:26 [grifos nossos])
O espaço não tem assim existência “real”, é mera construção discursiva, por isso,
poder ser escavado pela arqueologia de Muniz. A recusa do uso do conceito de espaço,
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e se relacionam diretamente com o campo de forças que a institui”, “acúmulos de camadas
rico”, obedece a essa estratégia que possibilitará, no decorrer do trabalho, o tratamento das
dade nordestina, sendo uma construção discursiva instituída pelas “elites” proprietárias, só
existe enquanto tal como percepção de uma realidade dada, de um espaço dado. Portanto, a
metáforas funcionam como mecanismos que não apenas substituem os conceitos, mas di-
não auxiliam o pensamento através das imagens, mas o torna mais nebuloso, obscuro, invi-
abilizando-o devido às suas várias possibilidades de realizar-se como científico porque cai
Precisemos, agora, com a ajuda de Milton Santos, definir o que entendemos por es-
“(...) Estes [os indivíduos] podem ter dele [o espaço] diferentes percepções e isso é
próprio das relações entre sujeito e objeto. Mas, uma coisa é a percepção individual do
espaço, outra é a sua objetividade. O espaço não é nem a soma nem a síntese das per-
cepções individuais. Sendo um produto, isto é um resultado da produção, o espaço é
um objeto social como qualquer outro. Se, como para qualquer outro objeto social, ele
pode ser apreendido sob múltiplas pseudoconcreções, isto de nenhuma forma o esva-
zia de sua realidade.” (Santos, 1990:128)
Chegamos a uma definição de espaço que com certeza escapa ao olhar de Muniz, o
espaço como uma produção social, não apenas cultural ou discursiva. O espaço compõe
uma das estruturas da sociedade porque é produzido por ela e também a produz, assim co-
mo outras instâncias do social. Portanto, o espaço não como exterior ao homem, separação
rígida entre sujeito e objeto, ou mera abstração conceitual, ou produto de uma relação entre
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amente como “realidade objetiva”. O espaço não é meramente por onde a história caminha,
deixando nele seus rastros. O espaço não é apenas paisagem, não é apenas a mudança ou a
permanência visíveis. O espaço, como chama a atenção mais uma vez Milton Santos, nas
suas formas materiais, guardam uma certa “autonomia de existência”, o que lhe possibilita
uma relação com os outros “dados da vida social”. O espaço ao mesmo tempo em si e é
porque é para alguma coisa, ganha existência material apenas no interior de sua relação
David Harvey procura enfatizar o que ele chama de “qualidades objetivas do espaço
e do tempo” e o “papel das práticas humanas em sua construção” nas suas elaborações
conceituais, deixando claro que os seus “significados objetivos” só têm sentido se levados
A citação acima introduz nesse debate uma categoria fundamental e cara à tradição
marxista: formação social, e que pode designar o ponto central de ruptura com as elabora-
ções e questionamentos de Muniz, e toda a “tradição” pós-moderna que ele aqui represen-
ta, acerca dos conceitos de espaço, região, História Regional. Para o historiador campinen-
se, qualquer consideração, por parte não apenas dos historiadores, do “Nordeste” como
uma “proposição concreta”, um “referente fixo”, como já foi deixado claro anteriormente,
acaba por jogar água no moinho do discurso regionalista. Essa “teia inescapável” apreen-
derá de José Lins do Rego a Jorge Amado, Rachel de Queiroz a Graciliano Ramos, Luiz
Gonzaga a João Cabral de Mello Neto, Portinare a Glauber Rocha, Di Cavalcanti a Caribé.
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Enfim, todos que, apesar das diferentes abordagens e dos diferentes “nordestes” vividos e
descritos em suas obras, tinham-no como “referente”, trabalharam o “Nordeste” como pon-
to de partida de suas obras, e, portanto, não conseguiram escapar ao olhar onipresente des-
sa formação discursiva. É só nessa condição que faz algum sentido o trabalho de Muniz.
ceito, e suas relações com as formações sociais distintas que foram gestadas como vários
“nordestes” – o de José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ra-
mos, só para citar alguns escritores com os quais Muniz trabalha –, ele acaba por negar a
importância de percebermos as especificidades históricas e sociais que ele diz tanto procu-
rar. As totalidades conceituais, como a de região, por exemplo, não objetivam negar o par-
ticular, o específico, mas torná-lo visível, sem deslocá-lo de suas relações com mudanças e
transformações históricas mais amplas, de mais longo alcance. Quem pode dizer que o
Brasil não é uma formação social distinta na América Latina, por exemplo? E que o Nor-
Assim, a História Regional, que parte de um recorte espacial antes de tudo históri-
co, se justifica porque pretende perceber as distintas maneiras como se estruturou a forma-
ção social brasileira. O Nordeste, sem aspas agora, guarda a sua especificidade histórica.
Obviamente, não poderíamos falar de “Nordeste” até antes do final do século XIX e pri-
meiras décadas do século XX, como demonstrou Rosa Godoy há mais de 20 anos (Silveira,
1984), partindo da análise da base material em que as distintas “regiões” foram surgindo
no Brasil. A “crise” da produção açucareira de que parte Muniz como elemento decisivo
para “criar” o Nordeste como uma mera formação discursiva, é originada a partir do final
do século XVII e se aprofunda nos séculos seguintes, mantendo-se até os nossos dias. Não
há sequer referência a isso no livro de Muniz. Apenas a referência à crise. Se esse aspecto
é fundamental, por que não analisar suas raízes, pelo menos remeter-nos a obras que tratem
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dela? No entanto, isso é compreensível. Proceder assim seria considerar os aspectos de
continuidade, desfigurando o seu objeto de estudo: o regionalismo e a região que ele “cria”
lista no Brasil. Fazendo isso, ele reduz a importância do Estado e das classes na construção
não todos, tenham seus vínculos com as classes proprietárias. E é neste sentido que pode-
mos considera-lo deslocado do tempo, porque este não é apenas o presente do aconteci-
mento, não a conjuntura em que o objeto se constrói, tem uma “carga histórica” que o
acompanha.
suas relações cada vez mais dinâmicas com o mercado externo, é obra da complexificação
classes dominantes nesses espaços com o Estado Nacional que se consolidava e a ação
O espaço nada tem a ver com essas diferenças? A relação homem-natureza, o traba-
lho social, marcará profundamente a história e a sociedade nesses espaços, produzirá cultu-
ras distintas, modos especiais de conceber e organizar a vida e o mundo, discursos tam-
bém. Mas, esses são tão arbitrários assim? Impuseram-se de maneira tão avassaladora que
ninguém a eles possa escapar? As ideologias, esses afastamentos entre ser e pensar, essa
“emancipação” da consciência sobre os atos que produzem nossa existência pelo aprofun-
damento da divisão social do trabalho, que recria o mundo na forma de pensamento, não
partem do nada, não são produtos de relações sociais e históricas, e ao lado disso, espaci-
ais? Não por acaso, a primeira condição para se produzir a história, n’A Ideologia Alemã
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(Marx e Engels, 1987:39), é a “produção material” da existência humana, da qual a nature-
za não pode ser abstraída, é claro. O espaço, mesmo no capitalismo, impõe obstáculos, cria
limites. Para Edward Soja (1993), na crise da pós-modernidade verifica-se uma revitaliza-
ção do espaço, em vista das turbulências e instabilidades do tempo, mas de um espaço re-
condição de existência real. Só na condição de ser uma “formação discursiva” é que tornou
possível, viabilizou o tratamento de uma empiria tão diferenciada e pouco articulada, pro-
duto de espaços e tempos tão distintos, com recortes tão heterogêneos, colocados num cal-
Perguntamos quais as condições em que Muniz consegue aplicar seu “modelo” teó-
rico sem prestar a atenção nessas “condições históricas”. Penso em duas hipóteses, que
A primeira hipótese é de que essa opção metodológica viabiliza que o material em-
pírico, as fontes, a produção cultural e artística, sejam utilizados sem que seja necessária
uma abordagem que articule as representações do real e as esferas que o compõe. Substi-
tui-se, como muito bem chama a atenção François Dosse, o estudo de um “sistema causal
que torne a totalidade inteligível” – que Muniz acusa os que assim procedem, de corrobo-
uma outra causalidade, esta sim, “mecânica e arbitrária”. Como reconhece Margareth Rago
no prefácio ao livro: “Longe da análise das ‘condições objetivas’, supõe-se que a subjetivi-
dade é uma dimensão fundamental na construção das relações sociais e que, nesse sentido,
estas são tanto relações de poder quanto emanações de afetos, de sentimentos, de vontade”
(Rago, 1999:15). Ora, operada essa inversão, a subjetividade seria apreendida no estreito
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limite da individualidade dos sujeitos históricos, fornecendo-nos infindáveis possibilidades
de leituras e uma empiria quase inesgotável. Deslocada do tempo que a produz (não só
conjuntural como permanentemente Muniz se socorre, para dar ao seu trabalho o traço his-
tórico), tais fontes empíricas possibilitariam a abertura dos “buracos” no tempo, das des-
Assim, liberto de suas amarras, o empirismo correria solto, os textos falariam por si
e por todos, e emanaria o complô antimoderno, articulado pelas classes dominantes açuca-
reiras, a partir dos anos 20. Nesse ponto, Muniz segue ao pé da letra Foucalt a respeito do
Ou seja, o discurso permite-se trespassar e ser atingido no coração, ser desvendado. Não
são objetos os agentes que produzem os discursos, mas os próprios discursos, assim trans-
Assim, os agentes que tornaram possível essa dizibilidade sobre o Nordeste – torna-
ram-no objeto autônomo, homogêneo, com vida própria – permitem-se, através dos seus
textos, de suas obras, que suas “verdadeiras” intenções sejam apreendidas pela voraz mé-
todo da desconstrução, à procura do não dito, do inconsciente não exposto pelas palavras.
Essa nova inversão casa-se bem com os objetivos empiristas dos foucaultianos: a lingua-
gem, esta sim, é densa, pode ser revelada, pode nos revelar o mundo através do dito e do
“Tornada a realidade histórica espessa e consistente, a história constitui o lugar das tradições,
dos hábitos mudos do pensamento, do espírito obscuro dos povos; acumula uma memória fatal
que não se conhece nem mesmo como memória. Exprimindo seus pensamentos em palavras de
que não são senhores, alojando-se em formas verbais cujas dimensões históricas lhes escapam,
os homens, crendo que seus propósitos lhes obedecem, não sabem que são eles que se subme-
tem às suas exigências”. (Foucault, 1992:314 - Grifos nossos)
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Podemos verificar neste ponto o que Ferry e Renaut (1998) chamam de desloca-
prática dos sujeitos históricos – a prática tornada racional pelos sujeitos do conhecimento,
estes agora tornados meros produtores e objetos de uma exegese sem fim – nada mais diz.
O que se passa a levar em consideração é apenas o que eles dizem, para se chegar ao não
dito, “quem” ele é e de “onde” ele fala. Como chama a atenção os filósofos franceses, atra-
vés da reificação da linguagem – esta tornada autônoma, transparente (para usar uma ex-
pressão tão ao gosto dos foucaultianos) – a si mesma, revela do homem o que nem mesmo
ele sabe. Fica instaurado, assim, um tribunal sem juiz, só com advogados de acusação:
“(...) o sujeito consciente torna-se, desta forma, para a genealogia, um puro objeto que não
transformam o mundo, não têm mais significados – apenas aqueles revelados inconscien-
temente pelos discursos – não são elas apenas que se desfiguram, mas a própria história.
Porque, se há algo objetivo nisso tudo, na história humana, é que estas objetividades são
determinadas pelas práticas humanas transformadoras, que nos dão indicativos de que a
fração dominante ligada à produção açucareira, já então em franca decadência nesse perío-
do, que coordena os discursos que começam a fundar o Nordeste, representado, desde en-
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tão, pelo olhar da seca. É ela que se torna a artífice principal de toda essa engenharia cultu-
ral e discursiva que nos tornou habitantes de vastos espaços de miséria e de seca, pois, em
geral, é essa imagem que vem à cabeça de qualquer brasileiro sobre o Nordeste, inclusive
temporal – permite que se proceda também um deslocamento dos agentes históricos desse
gia regionalista, que tem por base a elaboração de uma identidade que era a sua “imagem e
sua hegemonia econômica e política, em Muniz são os intelectuais e artistas que operam a
construção discursiva – e apenas ela – que dará a luz à região. O nascimento do Nordeste –
e é com um certo desconforto que se percebe que, mesmo antes dos anos 20, são abundan-
dade espacial e histórica – em Muniz, é obra dos discursos de uma intelectualidade regio-
Às vezes, procura-se estabelecer uma relação dessa produção discursiva com os in-
teresse de uma elite proprietária decadente, sem, no entanto, proceder-se uma análise das
suas condições econômicas que tornou isso possível – em síntese, uma abordagem que
torne mais claro os vínculos dessa intelectualidade com os interesses dessas classes. Mas,
se assim ele procedesse, seria fatal para o seu projeto de desconstrução de uma história
total que ainda persiste teimosamente. Se o olhar se desloca para as descontinuidades, para
aspectos, traços que também aparentemente, parecem negar uma “totalidade” histórica, as
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existem, mesmo como produto de recortes arbitrários, já que as descontinuidades se for-
mam fora desse fluxo de tempo que pode ser racionalizado, ou seja, elas pululam, nas mar-
onal, que se quer total. Daí porque se passa a privilegiar essas descontinuidades do “real”.
Como em Foucalt:
“Para a história, em sua forma clássica, o descontínuo era, ao mesmo tempo, o dado e o impen-
sável; o que se apresentava sob a natureza dos acontecimentos dispersos – decisões, acidentes,
iniciativas, descobertas – e o que devia ser, pela análise, contornado, reduzido, apagado, para
que aparecesse a continuidade dos acontecimentos. A descontinuidade era o estigma da disper-
são temporal que o historiador se encarregava de suprimir da história. Ela se tornou, agora, um
dos elementos fundamentais [grifos nossos] da análise histórica (...).” (Foucault, 1995:159)
Não façamos aqui uma genealogia da genealogia, mas apontemos essa dualidade no
Muniz (que tem mãe paulista) que se manifesta em oposição ao seu nordestinismo incorpo-
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regionalista – mas não só ele – ajudou na construção desses estereótipos sobre os nordesti-
nos e que nós tão bem conhecemos. Se o regionalismo nordestino se forma em oposição ao
discurso modernista parece se construir tendo o Nordeste como uma de suas referências para
irracional. É nessa oposição permanente que Muniz apresenta tanto os “sulistas” quanto o
“nordestino”. Uns e outros constróem discursos, mas são estes últimos os adeptos de um
complô que visava paralisar, senão fazer a história voltar atrás. No decorrer da leitura do
livro, vai-se tendo a impressão que só existem vilões nessa história, mas uns – os intelectuais
e artistas nordestinos – são mais vilões do que os outros. Se não, como explicar determina-
“Essa idéia [de “Nordeste”] vai sendo lapidada até se constituir na mais bem acabada
produção regional do país, que serve de trincheira para reivindicações, conquistas de
benesses econômicas e cargos no aparelho de Estado, desproporcionais à importância
econômica e à força política que esta região possui.” (Grifos nossos)
Não há dúvida quanto a isso. Mas, esse discurso, visto a partir dos debates políticos
atuais sobre a repartição do bolo federativo, é paulista, não? Se há uma reivindicação reco-
política”. Se qualquer pacto federativo entre as classes regionais se baseasse nesses crité-
rios ele se inviabilizaria por falta de acordo possível. Muniz cita um pouco mais à frente a
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criação do IAA – ao lado do DNOCS – como uma instituição criada para drenar recursos
nos, “funcionando como incentivos [grifo nosso] à uma obsolescência tecnológica e uma
para separarmos o joio do trigo e não jogarmos a bacia com água suja com o bebê dentro:
primeiro, o IAA nunca funcionou, como o DNOCS, como um órgão sob controle dos nor-
açucareira para os produtores do Centro-Sul do país. Lembremos que o IAA foi criado nos
primeiros anos do primeiro governo de Vargas e o DNOCS ainda é fruto do pacto oligá-
quico da “Primeira República” (Ver a respeito, por exemplo, Oliveira, 1985 e Guimarães
Neto,1989). Segundo, seria apenas isso – as práticas, agora não discursivas da apropriação
timentos produtivos”, ao que parece, originados pela ação meramente parasitária das oli-
garquias nordestinas? A “carga histórica” desse fenômeno é mais significativa do que Mu-
niz supõe ou talvez desejasse suprimir. Não entremos na discussão da origem desta crise,
que remonta o século XVIII, mas nos parece certamente insuficiente qualquer tentativa que
procure identificar nos produtores nordestinos uma “propensão” ao parasitismo, a não ser
Enveredaríamos por dezenas de passagens que denotam uma posição pouco objeti-
va – apesar de Muniz se propor a escrever uma “história sentimental”, como chama a aten-
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“Freyre acusa os modernistas de abandonarem a pesquisa histórica, sociológica e an-
tropológica, de não se preocuparem com a caracterização histórico-social do país. Isso,
evidentemente, não corresponde à verdade, porque, longe de terem ‘desprezado as
tradições brasileiras’ de ‘terem desprezo pelas coisas do passado brasileiro, como a ar-
te colonial’, como fala Freyre, os modernistas estiveram sempre preocupados com a
questão da tradição, mas percebendo-a de forma diversa, como uma tradição ainda a
ser sistematizada [por que não recriada?], uma tradição primitivista a ser elaborada
com o dado moderno e não apenas preservada como dado museológico e folclórico
como queria o sociólogo pernambucano” (Idem:88 – grifos nossos)
produção, Freyre, que os acusa, não. Freyre não tem argumentos, tem discurso regionalista
nação com o “dado moderno”, ou seja, percebê-la no tempo, enquanto que Freyre procura-
va mumificá-la, tornar a tradição o que ela sempre foi: a repetição, o tempo que não muda.
Entre o discurso e outro, Muniz é abertamente modernista, o que para nós é positivo, mas
não deixa de ser contraditório para um intento pós-moderno de destruir e reinventar o Nor-
deste. Mas, incoerência é coerência para a análise pós-moderna. Mesmo quando Freyre
passa a se identificar com o modernismo ele é “provinciano” (idem:90), assim como seu
sença da materialidade histórica, visível, e que certamente não passou despercebida pelo
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escritor paulista. No Nordeste sobrevivia, cultura e materialmente, traços pré-capitalistas,
daí porque a leitura freyriana era conservadora mas não era tão arbitrária assim. A identi-
nordestina. É nessa relação que elas se constróem. Mas, ela não é fruto meramente de um
“complô” das classes proprietárias, de intelectuais e artistas, ela tem traços de existência
literatura vira uma arma para a consecução desse objetivo. A obra de José Lins do Rego,
“Por isso, sua prosa é nitidamente judicativa. É uma forma de vingança contra aqueles
que levaram a dissolução das relações sociais tradicionais, por isso, espalha por seus
livros dor, doença, melancolia, aleijões, tristeza, loucuras. Só nesta paisagem social
seus personagens e ele próprio parecem se reconhecer” (Idem:131)
criança que ele foi – e veja-se que, em boa parte da obra de José Lins, esse é o contraponto
ao olhar das mudanças que, como adulto, ele percebe, ver, interpreta – está se desfiguran-
do. José Lins representaria então o paradoxo de ser um conservador que tinha como tema
principal de sua obra as mudanças, as transformações do seu mundo, relatadas com dor,
saudade, angústia. Não seria por isso que ele é tão universal, colocado entre os grandes
escritores brasileiros do século XX? Sua obra não reflete uma visão muito pessoal do seu
mundo (material), não oferece ela uma narrativa dessa materialidade que desmoronava?
José Lins é anti-moderno, para Muniz, porque sua obra, além de referir a um recorte espa-
cial que ele ajudou a construir, uma “máquina discursiva” da qual ele é peça chave, fala de
saudade e de dor. Esse seria o traço que possibilitou a Muniz reunir escritores, apesar de
suas diferentes abordagens, estilos, espaços, formação política e ideológica desde José Lins
do Rego, Rachel de Queiroz, José Américo de Almeida a Jorge Amado e Graciliano Ra-
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mos, todos eles originários de famílias de proprietários decadentes ou de classe média
“nordestinas”. Preso ao texto e não na obra o historiador campinense só consegue ver sau-
leração dos ritmos do tempo provoca nas pessoas comuns e nos intelectuais, os faz neces-
Vocação, o sociólogo alemão assume um aberto ceticismo diante das transformações acele-
radas pelo capitalismo e seus reflexos sobre a vida humana. Parece assumir, por vezes,
uma posição de simpatia pela vida dominada pelos elementos mágicos, pelas sociedades
am realizar uma sociedade mais estável, sem problemáticos conflitos éticos e existenciais.
Vejamos essa passagem de Weber que expressa esse olhar voltado para o passado em con-
traposição a angustiante vida desencantada moderna e sua permanente busca para a solução
velhos e ‘plenos de vida’, pois que estavam colocados num círculo orgânico de vida, que
lhes havia oferecido, ao fim dos seus dias todo o sentido que poderia proporcionar-lhe e
porque não subsistia enigma que eles teriam que resolver. “ (Weber, 1994:440)
tante produziu esse profundo desconforto que Weber expõe em outra parte:
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farão verdade aquela frase: ‘especialistas sem espírito, hedonistas sem coração,
essas nulidades se imaginam ter alcançado um estágio da humanidade superior a
todos os anteriores.” (Apud Haddad, 1998:125-126)
capitalista tem uma referência muito mais no passado do que no futuro. Aliás, o futuro é
sempre visto como sombrio, duvidoso. O passado é mais luminoso, mais humano, menos
filósofos como Nietzsche e Foucault. As elaborações deste último a respeito dos projetos
homem, a não ser a ruptura individualista com o “fascismo que está em nossas cabeças”, o
que, convenhamos, como o próprio Harvey também reconhece, não parece ter criado ne-
nhum tipo de empecilho à reprodução das “formas centrais de exploração e repressão capi-
Ora, por acaso a crítica da modernidade levada a cabo por esses filósofos (Nietzs-
che, Heidegger, Foucault, Derrida, Lyotard) não expressaria esse profundo sentimento de
desconforto diante de um mundo que afunda numa pantanosa ausência de bases mais sóli-
das para um projeto de ciência e de sociedade que se articulem. Por isso, o lugar e não o
espaço, o indivíduo e não o social, a metáfora e não a teoria permitem um mínimo de esta-
bilidade.
Concluirei este trabalho com uma longa citação de David Harvey sobre as tendên-
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“(...) o pós-modenismo, com sua ênfase na efemeridade da jouissance, sua in-
sistência na impenetrabilidade do outro, sua concentração antes no texto do que
na obra, sua inclinação pela desconstrução que beira o niilismo, sua preferência
pela estética, em vez da ética, leva as coisas longe demais. Ele as conduz para
além do ponto em que acaba a política coerente, enquanto a corrente que busca
uma acomodação pacífica com o mercado o envereda firmemente pelo caminho
de uma cultura empreendimentista que é o marco do neoconservadorismo reaci-
onário. Os filósofos pós-modernos nos dizem que não apenas aceitemos mas até
nos entreguemos às fragmentações e à cacofonia de vozes por meio das quais os
dilemas do mundo moderno são compreendidos. Obcecados pela desconstrução
e pela deslegitimação de toda espécie de argumento que encontra, eles só po-
dem terminar por condenar suas próprias reivindicações de validade, chegando
ao ponto de não restar mais nada semelhante a uma base para ação racional. O
pós-modernismo quer que aceitemos as reificações e partições, celebrando a
atividade de mascaramento e de simulação, todos os fetichismos da localidade,
de lugar ou de grupo social, enquanto nega o tipo de metateoria capaz de apre-
ender os processos político-econômico (fluxos de dinheiro, divisões internacio-
nais do trabalho, mercados financeiros etc.) [grifos nossos], que estão se tor-
nando cada vez mais universalizantes em sua profundidade, intensidade, alcance
e poder sobre a vida cotidiana. (Harvey, 1994:111-112)
crítica radical de suas estruturas, e uma recusa da análise dessa possibilidade; uma negação
sa vida e a nossa prática, que nos impõem a sua aceitação voluntária ou senão a desconsi-
deração completa das opiniões que se querem críticas desses determinantes. E esta não é
uma questão qualquer, é uma questão de poder, não de um poder que age fragmentado,
mas que articula uma dominação que é moral, ética, estética e intelectual sobre todos os
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