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O Sermão de Santo António aos peixes

Padre António Vieira

Padre António Vieira nasceu, como Manuel de Melo, em 1608, em Lisboa. Em


1635 é ordenado membro da Companhia de Jesus, no Brasil, para onde partiu
em 1614, na companhia do pai. E a sua grande carreira de orador e de político
começa em Lisboa, em 1642. Fracassaram as duas tentativas que fez, em
Paris, para o casamento de D. Teodósio, filho de D. João IV, com a filha do
duque de Orleães, e outros fracassos assinalaram a sua incansável actividade
de diplomata, quer na Holanda, quer, mais tarde, na Itália. E, em 1652, ei-lo,
novamente, no Brasil, a dar-se ao trabalho de missionação. Era necessário
defender os Ameríndios da cupidez e violência dos colonos. Percorre
incansavelmente o Maranhão, o Amazonas, o Pará, a promover essa grande
massa de nativos. Levantam-se hostilidades, é obrigado a vir a Lisboa advogar
a causa junto do Rei. Mas em breve, nos sermões do Brasil, retoma a sua
actividade de apóstolo. Em 1663, já em Coimbra, começa a ser vítima da
perseguição do Santo Ofício, quer com base na obra Esperança de Portugal,
de tendência profética, marcadamente sebastianista, quer acusando-o de
simpatizante da causa judaica. Esteve preso dois anos e a pena que o privava
para sempre do exercício de pregador foi suprimida com a deposição de D.
Afonso VI. Entretanto vai a Roma, onde conquista fama, e regressa a Portugal
reabilitado e engrandecido, partindo definitivamente para o Brasil em 1681,
onde morreu, com perto de 90 anos, em 1697.

Não se pode estudar a obra de António Vieira sem um certo conhecimento da


ambiência política em que se moveu, a qual, pelo seu clima de agitação, tão
favorável foi ao seu temperamento nervoso e vivo. Por isso, tanto podemos
encontrar nele o sermão do missionário como o do político, o sermão de crítica
literária como o sermão panegirista, onde mais nos surpreende a elegância da
sua prosa incisiva, penetrante e geometricamente desenhada do que a
profundidade do pensamento e dos juízos.
Vieira não se apaixona pelo cartesianismo que orienta a oratória de Fénelon e
Bossuet e de que é contemporâneo, mas processa-se norteado pela
escolástica medieval em que se formara.
Por isso, consegue o orador fugir aos exageros do cultismo, procurando, com
um malabarismo surpreendente de argumentação, desenvolver o “conceito
predicável” que se propunha tratar, segundo a oratória do seu tempo, entre
nós, enquanto lá fora a oratória se processava alheia às explicações
sobrenaturais, fora das alegorias que a Bíblia lhes oferecia e que fora a base
da Escolástica.
Combativo, habilidoso, arrojado, entrincheirado no púlpito, que poder de
convicção e de ataque verbal o seu, movido pela certeza de que apresentava
uma causa justa, ou defendia uma posição injustamente julgada!

Sermão de Santo António aos Peixes – 1654, no Maranhão

Foi pregado este sermão três dias antes de partir para Lisboa, no seu período
de apogeu, como político e como orador. É uma peça oratória de primeira
classe, quer pela fina ironia, quer pela riqueza e sugestão das alegorias que o
seu extraordinário poder de observação lhe permitiu criar.
Partindo do conceito predicável “Vós sois o sal da terra”, faz o Exórdio, que
termina com a Invocação a Maria. Depois entra na Exposição, onde se
anuncia a sua assinalada ironia: “E desta maneira satisfaremos as obrigações
do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de
mortos”, diz, dirigindo-se, já, aos peixes. Ao fazer referência às virtudes destes,
começa a crítica irónica aos homens convertidos “não em peixes, mas em
feras”, os homens, que, diz ele em tom de troça, “tinham a razão sem o uso”,
enquanto os peixes tinham o “uso sem a razão”. De todos os animais, os
peixes são os únicos que não aceitam a companhia dos homens; e,
oportunamente, volta a surgir a crítica irónica: “Peixes! Quanto mais longe dos
homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus nos livre!” Por isso,
quando Deus destruiu o mundo pelo dilúvio, os peixes não só não
desapareceram como até se multiplicaram.
Começa, entretanto, a Confirmação, recorrendo a uma argumentação cerrada.
Numa apóstrofe aos “moradores do Maranhão”, Vieira concretiza a intenção do
sermão, mas rapidamente retoma a alegoria. E começa pela rémora, peixe que
compara com a língua de Santo António. Assim como a rémora, “pegada ao
leme da nau, é freio da nau e leme do leme”, assim foi a “virtude e força da
língua de António” que teve mão nos soberbos, nos vingativos, nos cobiçosos,
nos sensuais, o que sugere alegoricamente por meio de naus que a língua do
Santo prendeu.
Vem, depois, o torpedo, um peixe que tem o poder de electrizar. Que falta faz
ele nos pescadores da terra para lhes fazer tremer o braço e arrepiar caminho!
A terceira espécie de peixes que serve os seus intentos de crítica é a dos
quatro-olhos. Comenta: quanto mais necessários seriam nos homens, que a
esses peixes, os dois pares de olhos com que foram dotados!
E termina o elogio dos peixes, realçando a sua importância na prática do jejum
e o seu mais fácil acesso aos pobres. Naquele tempo, claro!
A Confirmação prossegue com a censura à prepotência dos grandes que,
como os peixes, vivem do sacrifício de muitos pequenos os quais “engolem” e
“devoram”. Objectiva, concretamente, esta crítica, à maneira de termocautério,
comparando os pequenos com o pão, que é alimento consumido diariamente,
enquanto outros alimentos são revezados no seu gasto. O alvo á a crítica aos
colonos que, no Brasil, são grandes, mas no Tejo “acham outros maiores que
os comam, também, a eles”. Volta a objectivar a crítica, referindo o xareo que
corre atrás do bagre “como o cão após a lebre e não vê o cego que lhe vem
nas costas o tubarão com quatro ordens de dentes, que o há-de engolir de um
bocado”.
Outro argumento vem reforçar este convite ao respeito mútuo - a evocação do
dilúvio em que os animais “somente dois de cada espécie” se respeitaram uns
aos outros para a conservação da espécie. E conclui a sua crítica, dizendo:
“Enfim, se eles em tantas ocasiões, pelo desejo natural da própria conservação
e aumento, fizeram da necessidade virtude, fazei-o vós também, ou fazei a
virtude sem necessidade e será maior a virtude”.
Vai, depois, criticar a vaidade dos homens, mesmo naquelas paragens. O peixe
não resiste à isca. Aqueles morrem por uma medalha ou distinção. E, se, no
Maranhão, “ainda que se derrame tanto sangue, não há exércitos, nem esta
ambição de hábitos”, há os chupistas, os exploradores que sugam o sangue
dos nativos, vendendo-lhes gato por lebre. Os panos que em Portugal não
passavam, cobiçam-nos eles, esfaimados “e ali ficam esgasgados e presos,
com dívidas de um para outro ano e de uma safra para outra safra, e lá vai a
vida: todos a trabalhar toda a vida, ou na roça, ou na cana, ou no engenho, ou
no tabacal”.
Depois desta visão de conjunto, vai particularizar a sua crítica. Começa por se
concentrar nos roncadores, a imagem dos soberbos, e é S. Pedro o símile
sugestivo que ele apresenta. “Tinha roncado e barbateado Pedro que se todos
fraqueassem, só ele havia de ser constante até morrer, se fosse necessário”. E
falhou no Horto das Oliveiras, onde se deixou adormecer, e falhou no pretório
de Pilatos, onde, por três vezes, negou que conhecia Cristo.
O exemplo do pequeno pastor David que venceu o gigante Golias vem dar
força ao argumento “os arrogantes e soberbos tomam-se com Deus; e quem se
toma com Deus, sempre fica debaixo”. Não foi o que aconteceu, também, com
Pilatos?
A crítica volta-se, em seguida, para os parasitas, objectivados nos pegadores
que aprenderam “este modo de vida, mais astuto que generoso ... depois que
os nossos portugueses o (mar) navegaram, porque não parte vice-rei ou
governador para as Conquistas, que não vá rodeado de pegadores”. Os peixes
pegadores, sobre os costados dos grandes, vivem descansados, mas,
lançando o anzol ao tubarão, com ele morrem todos os pegadores. E é a
pessoa de Herodes, qual tubarão, que vem concretizar, agora, o seu
pensamento crítico, pois, morto o perseguidor do Menino, pôde José voltar à
Pátria.
Num rasgo de argumentação, chega a considerar pegadores de Deus, David,
Santo António. Mas contrariamente ao que acontece no mundo, Deus “só
morreu para que não morressem todos os que se pegassem a ele”.
E a argumentação prossegue. Que o exemplo da famosa árvore que
representava Nabucodonosor lhes sirva de modelo! «Chegai-vos embora aos
grandes; mas não de tal maneira pegados, que vos mateis por eles, nem
morrais com eles». O homem, afinal, paga também pelo pecado de Adão,
como que o tubarão, de que a humanidade é pegadora.
Outra classe de homens vai criticar, agora, nos voadores - a dos ambiciosos,
que se deixam arrastar pela presunção e pelo capricho. A eles se refere,
quando diz: “Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que
tem”. A argumentação é cheia de graciosa ironia – “A natureza deu-te a água,
tu não quiseste senão o ar, e eu já te vejo posto ao fogo”, diz ele, em apóstofe
expressiva. E conclui com esta sugestiva metáfora: “Bem seguro estava ele do
fogo, quando nadava na água, mas porque quis ser borboleta das ondas,
vieram-se-lhe a queimar as asas”.
O símile da ambição dos homens é apresentado em Simão Mago que,
querendo fazer-se passar pelo verdadeiro filho de Deus, ao tentar subir ao Céu,
foi precipitado na terra, partindo os pés. Desta forma perdeu as asas e os pés,
esse homem ambicioso.
Depois de exaltar, uma vez mais, Santo António, diz aos peixes, sempre para
atingir os homens: “voadores do mar (não falo com os da terra) imitai o vosso
Santo pregador... ide-vos meter no fundo em alguma cova; e se aí estiverdes
mais escondidos, estareis mais seguros”.
Vai oferecer-nos a última alegoria deste inspirado sermão '- o polvo - símbolo
dos hipócritas, dos traidores. “O polvo, com aquele seu capelo na cabeça,
parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela;
com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma
mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta ou desta hipocrisia tão
santa, testemunham constantemente os dois grandes Doutores da Igreja latina
e grega que o dito polvo é o maior traidor do mar.”
Neste trecho magnífico, é evidente a propriedade da linguagem, onde todos os
elementos se ajustam perfeitamente, a sua tão vasta cultura sacra e profana, o
encadeamento lógico das ideias realçado com os recursos do seu talento de
orador:
- a adjectivação antitética – “hipocrisia tão santa” - e rica;
- a antítese – “as cores que no camaleão são gala, no polvo são malícia”;
- o paralelismo anafórico, insistente e incisivo, com o característico
alargamento das frases à medida que se aproxima do fim, cortando a
monotonia e arrebatando – “Se está nos limos, faz-se verde; se está no lodo,
faz-se pardo; e se está em alguma pedra, como mais ordinariamente costuma
estar, faz-se da cor da mesma pedra”;
- a subjecção, através da anadiplose – “E daqui que sucede? Sucede que outro
peixe... “;
- a interrogação retórica – “Fizera mais Judas?”;
- a comparação por contraste – “Judas abraçou a Cristo, mas outros o
prenderam; o polvo é o que abraça e mais o que prende... “;
- a apóstrofe e a exclamação retórica – “vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua
maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor!”.
Ao terminar este sugestivo perfil da traição, comenta, em progressão: “E que
neste mesmo elemento (a água sempre clara, diáfana, transparente - como
disse) se crie, se conserve e se exercite com dano do bem público um monstro
tão dissimulado, tão fingido, tão astuto, tão enganoso e tão conhecidamente
traidor!”
Do polvo, passa às terras de missão onde, também, “há falsidades, enganos,
fingimentos, embustes, ciladas, e muito maiores e mais perniciosas traições”.
Santo António volta a ser o modelo apontado, pois, nele verão “o mais puro
exemplar da candura, da sinceridade e da verdade”.
Tem ainda uma palavra a dizer aos que morrem, «com o alheio atravessado na
garganta»; e faz, então, referência aos que se aproveitam dos bens dos
naufragantes» que, por isso, «ficam excomungados e malditos», mergulhando
novamente na Sagrada Escritura para colher o caso concretizante: o do peixe
que morreu por ter engolido uma moeda.
Vai realizar a Peroração com a “última advertência” aos peixes. Estes foram
excluídos do sacrifício consagrado a Deus. Era motivo de desconsolação. Mas
tinha de ser assim, porque os peixes não poderiam ir vivos ao sacrifício “e
cousa morta não quer Deus que se lhe ofereça, nem chegue aos seus altares”.
E surge a apóstrofe consoladora e crítica: “Peixes, dai muitas graças a Deus de
vos livrar deste perigo, porque melhor é não chegar ao sacrifício, que chegar
morto”.
Antes de terminar o sermão com um magnífico hino de louvor, a remeter-nos
para os Cânticos de S. Francisco de Assis, retrata-se a ele próprio, como
pecador, em oposição aos peixes, para atingir a humanidade, em geral.

In Lilaz Carriço, Literatura Prática, vol. I, Porto Editora, 1982

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