You are on page 1of 19

A 6 de Junho de 1984 Calvino foi oficialmente convidado pela

Universidade de Harvard a realizar as Charles Eliot Norton Poetry


Lectures. Trata-se de um ciclo de seis conferências que têm lugar no
decorrer de um ano lectivo (para Calvino seria o ano de 1985-1986)
na Universidade de Harvard, Cambriclge, no Massachusetts. O termo
«Poetry» significa neste caso toda a forma de comunicação poética
- literária, musical, figurativa — e a escolha do assunto é inteira-
mente livre. Esta liberdade foi o primeiro problema que Calvino teve
de enfrentar, convencido como estava de que é importantíssima a
pressão sobre o trabalho literário. A partir do momento em que
conseguiu definir claramente o tema a tratar — alguns valores lite-
rários a conservar no próximo milénio, — passou a consagrar quase
todo o seu tempo à preparação das conferências.

Em breve se tornaram uma obsessão, e um dia disse-me que


tinha ideias e materiais para oito lições pelo menos, e não só as seis
previstas e obrigatórias. Conheço o título da que poderia ser a oita-
va: «Sobre o começar e o acabar» (dos romances), mas até hoje não
encontrei o texto. Só apontamentos.
Na altura de partir para os Estados Unidos, das seis lições já
tinha escrito cinco. Falta a sexta, «Consistency», e desta sei apenas
que iria referir-se a Bartleby de Herman Melville. Esperava escrevê-la
em Harvard. Naturalmente estas são as conferências que Calvino le-
ria. Haveria sem dúvida uma nova revisão antes de serem impressas:
não creio porém que lhes introduzisse alterações importantes. As di-
ferenças entre as primeiras versões que li e as últimas dizem respeito
à estrutura, e não ao conteúdo.
Este livro reproduz o texto dactilografado tal como o encontrei.
Um dia, não sei quando, haverá uma edição crítica dos cadernos

9
índice

manuscritos. Deixei em inglês as palavras por ele escritas directa-


mente nessa língua, assim como as citações permanecem na língua
or

Estou agora a chegar ao ponto mais difícil: o título.


Calvino deixou este livro sem título italiano. Deveria preocupar-
-se antes com o título inglês, «Six memos for the next millennium»,
que era o definitivo. É impossível saber o que seria em italiano. Se
me decidi finalmente por Lezioni americane {Lições americanas) é
porque nesse último Verão de Calvino, Pietro Citati vinha visitá-lo
muitas manhãs e a primeira pergunta que fazia era: "Como vão as 1. Leveza 15
lições americanas?" E era de lições americanas que se falava.
Sei que isto não basta, e que Calvino preferia dar uma certa 2. Rapidez 45
uniformidade aos títulos dos seus livros em todas as línguas. Palo-
mar fora escolhido precisamente por esta razão. Penso também que 3. Exactidão 71
«for the next millennium» deveria fazer parte do título italiano: em
todas as suas tentativas de descobrir o título certo em inglês mudam 4. Visibilidade 99
as outras palavras, mas «for the next millennium» mantém-se sempre.
E foi por isso que o conservei. 5. Multiplicidade 121
Acrescento que o texto dactilografado se encontrava na sua
secretária, em perfeita ordem, cada conferência numa capa trans- 6. Começar e Acabar 147
parente, e o conjunto dentro de uma pasta rígida, pronto para ser
metido na mala de viagem.

As «Norton Lectures» iniciaram-se em 1926 e foram confiadas ao


longo dos anos a personalidades como T. S. Eliot, Igor Stravinsky,
Jorge Luis Borges, Northrop Frye, Octavio Paz. Era a primeira vez
que as propunham a um escritor italiano.

Desejo exprimir a minha gratidão a Luca Marighetti, da Univer-


sidade de Konstanz, pelo profundo conhecimento da obra e do pen-
samento de Calvino, e a Angélica Koch, também da Universidade de
Konstanz, pela ajuda que me deu.

Esther Calvino

10
Ladies and Gentlemen, Dear Friends

Peço licença para dizer em primeiro lugar como estou feliz e


reconhecido por ter sido convidado para vir a Harvard este
ano como Charles Eliot Norton Lecturer. Com emoção e hu-
Estamos em 1985: só quinze anos nos separam do início
mildade recordo os Norton Lecturers que me antecederam,
de um novo milénio. Por agora não acho que o aproximar-se
desta data desperte alguma emoção especial. Contudo não uma longa lista que abrange muitos dos autores que mais ad-
estou aqui para falar de futurologia, mas sim de literatura. O miro. Quis o acaso que fosse eu o primeiro autor italiano a
milénio que está prestes a terminar viu nascerem e expan- aparecer nesta lista: este facto acrescenta à minha tarefa a res-
direm-se as línguas modernas do Ocidente e as literaturas ponsabilidade especial de representar aqui uma tradição lite-
destas línguas que exploraram as possibilidades expressivas, rária que se prolonga interruptamente desde há oito séculos.
cognitivas e imaginativas. Foi também o milénio do livro, Vou tentar sobretudo aproveitar as características da minha
dado que viu o objecto-livro tomar a forma que nos é fami- formação italiana que me aproximam o espírito destas con-
liar. Talvez o sinal de que o milénio está a encerrar-se seja a ferências. Por exemplo, é característico da literatura italiana
frequência com que nos interrogamos sobre a sorte da litera-
considerar num único contexto cultural todas as actividades
tura e do livro na era tecnológica chamada pós-industrial. Não
tenho a menor tentação de me aventurar neste tipo de pre- artísticas, pelo que para nós é perfeitamente natural que na
visões. A minha confiança no futuro da literatura consiste em definição das «Norton Poetry Lectures» o termo «poetry» seja
saber que há coisas que só a literatura com os seus meios entendido em sentido lato, de modo a compreender também
específicos pode dar-nos. Desejaria assim dedicar estas mi- a música e as artes visuais; tal como é perfeitamente natural
nhas conferências a alguns valores ou qualidades ou especi- que eu, escritor de fiction, tenha presente no mesmo dis-
ficidades da literatura a que estou particularmente ligado, ten- curso a poesia em verso e o romance, porque na nossa cul-
tando situá-las na perspectiva do novo milénio. tura literária a separação e especialização das duas formas de
expressão e das respectivas reflexões críticas é menos acen-
tuada que noutras culturas.
As minhas reflexões têm-me levado sempre a considerar a
literatura como universal e sem distinções de língua e de
carácter nacional, e a considerar o passado em função do fu-
turo; assim farei também nestas lições até porque não saberia
fazer de outra forma.
Leveza
Vou dedicar a primeira conferência à oposição leveza-pe-
so, e defender as razões da leveza. Isto não quer dizer que
considere menos válidas as razões do peso, mas simples-
mente sobre a leveza penso que terei mais coisas a dizer.
Ao cabo de quarenta anos em que escrevo fiction, depois
de ter explorado vários caminhos e realizado experiências
diversas, chegou a altura de procurar uma definição de
conjunto para o meu trabalho; poderei propor esta: a minha
operação foi na maioria das vezes uma subtracção de peso;
tentei tirar peso ora às figuras humanas, ora aos corpos ce-
lestes, ora às cidades; sobretudo tentei tirar peso à estrutura
do conto e à linguagem.
Nesta conferência tentarei explicar — a mim mesmo e aos
presentes -- por que razão fui levado a considerar a leveza
um valor e não um defeito; quais são os exemplos entre as
obras do passado em que reconheço o meu ideal de leveza;
e como situo este valor no presente e como o projecto no
futuro.

Começarei por este último ponto. Quando iniciei a minha


actividade, o dever de representar o nosso tempo era o im-
perativo categórico de todos os jovens escritores. Cheio de
boa vontade, tentei concentrar-me na impiedosa energia que
move a história do nosso século, nos seus acontecimentos
colectivos e individuais. Procurei captar uma sintonia entre o
movimentado espectáculo cio mundo, ora dramático ora gro-

17
Leveza Leveza

tesco, e o ritmo interior picaresco e aventuroso que me im- A relação entre Perseu e a Górgona é muito complexa:
pelia a escrever. Em breve me apercebi de que entre os factos não acaba com a decapitação do monstro. Do sangue da Me-
da vida que deveriam ser a minha matéria-prima e a agilidade dusa nasce um cavalo alado, Pégaso; o peso da pedra pode-
impetuosa e cortante que eu pretendia que animasse a minha -se converter no seu contrário; com uma patada no Monte
escrita havia uma diferença que me custava a superar com Hélicon, Pégaso faz jorrar a fonte em que bebem as Musas.
cada vez maior esforço. Talvez só então eu estivesse a des- Em certas versões do mito, é Perseu quem vai cavalgar o ma-
cobrir o peso, a inércia, a opacidade do mundo: qualidades ravilhoso Pégaso, tão querido das Musas, nascido do sangue
que se -agarram logo à escrita, se não descobrirmos a maneira maldito da Medusa. (De resto, até as sandálias aladas provi-
de lhes fugir. nham do mundo cios monstros: Perceu recebera-as das irmãs
Em certos momentos parecia-me que o mundo estava a da Medusa, as Graias de um único olho). Quanto à cabeça
ficar todo de pedra: uma lenta petrificação mais ou menos cortada, Perseu não a abandona mas leva-a consigo, fechada
avançada de acordo com as pessoas e os lugares, mas que num saco; quando os inimigos estão prestes a vencê-lo, basta
não poupava nenhum aspecto da vida. Era como se ninguém que ele a mostre, erguenclo-a pela cabeleira de serpentes, e
pudesse escapar ao olhar inexorável da Medusa. este sangrento despojo torna-se uma arma invencível nas
O único herói capaz de cortar a cabeça à Medusa é Per- mãos cio herói: uma arma que ele só usa em casos extremos
seu, que voa de sandálias aladas, Perseu que não volta os e só contra quem merecer o castigo cie se transformar em
olhos para o rosto da Górgona mas só para a sua imagem estátua de si próprio. É claro que neste caso o mito quer di-
reflectida no escudo de bronze. E Perseu vem em meu auxílio zer-me alguma coisa, uma coisa implícita nas imagens e que
também neste momento em que já me sentia capturado pela não se pode explicar de outro modo. Perseu consegue domi-
mordaça de pedra, como me acontece sempre que tento fazer nar essa figura tremenda mantendo-a escondida, tal como
uma evocação histórico-autobiográfica. É melhor deixar que antes a vencera olhando-a no espelho. É sempre na recusa da
o meu discurso se componha com as imagens da mitologia. visão directa que reside a força de Perseu, mas não numa
Para cortar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar, Per- recusa da realidade do mundo de monstros em que estava
seu apoia-se no que há de mais leve, o vento e as nuvens; e destinado a viver, uma realidade que ele traz consigo e as-
fixa o olhar no que só poderá revelar-se-lhe numa visão in- sume como sendo o seu próprio fardo.
directa, numa imagem captada num espelho. Sinto logo a ten- Sobre a relação entre Perseu e a Medusa podemos ficar a
tação de descobrir neste mito uma alegoria da relação do saber mais lendo Ovídio nas Metamorfoses. Perseu venceu
poeta com o inundo, uma lição do método a seguir ao escre- uma nova batalha, massacrou à espadeirada um monstro ma-
ver. Mas sei que todas as interpretações empobrecem o mito rinho, libertou Andrómeda. E agora dispõe-se a fazer o que
e o sufocam: com os mitos não podemos ter pressas; é me- qualquer um de nós faria após uma façanha deste género: vai
lhor deixarmos que eles se depositem na memória, determo- lavar as mãos. Neste caso o seu problema é onde colocar a
-nos a meditar em todos os pormenores, meditar neles sem cabeça da Medusa. E aqui Ovídio tem versos (IV, 740-752)
sairmos da sua linguagem de imagens. A lição que podemos que considero extraordinários para exprimir a delicadeza de
extrair de um mito assenta na literalidade da narrativa, e não alma que é necessária para se poder ser um Perseu, vencedor
no que lhe acrescentarmos nós de fora. de monstros:

18 19
Leveza Leveza

«Para que a rija areia não desgaste a cabeça anguícoma era quello d'un fiammifero» [o ténue clarão que se riscou /
(anguiferumque caput dura ne laedat harena), amolece o ao longe não era de um fósforo]).
terreno com uma camada de folhas, estende sobre esta algas Para conseguir falar da nossa época, tive de dar uma volta
nascidas debaixo cias águas e aí depõe a cabeça da Medusa longuíssima e evocar a frágil Medusa de Ovídio e o betumino-
de cara para baixo». Parece-me que não se poderia represen- so Lúcifer de Montale. Para um romancista é difícil representar
tar melhor a leveza de que Perseu é o herói, do que com este a sua ideia de leveza, ilustrando-a com exemplos da vida
gesto de refrescante gentileza para com aquele ser monstruo- contemporânea, sem a tornar o objecto inatingível de uma
so e tremendo, mas também de certo modo frágil e deterio- procura sem fim. Foi o que fez Milan Kundera de maneira
rável. Mas a coisa mais inesperada é o milagre que se segue: evidente e imediata. O seu romance A Insustentável Leveza
as algas em contacto com a Medusa transformam-se em do Ser na realidade é uma amarga constatação do Inelutável
corais, e as ninfas para se enfeitarem de corais acorrem Peso do Viver: não só da condição de opressão desesperada
aproximando ramos e algas da terrível cabeça. e all-pervading que calhou em sorte ao seu desventurado
Este encontro de imagens, em que a graça delicada do país, mas de uma condição humana que também nos é
coral aflora o horror atroz da Górgona, está tão cheio de su- comum a nós, embora infinitamente mais afortunados. O peso
gestões que não quero estragá-lo com tentativas de comentá- do viver para Kundera está em todas as formas de opressão:
rios ou de interpretações. O que posso fazer é juntar a estes a densa rede de constrições públicas e privadas que acaba
versos de Ovídio os de um poeta moderno, o Piccolo testa- por envolver toda a existência com nós cada vez mais aper-
mento de Eugênio Montale, em que também en^ntramos ele- tados. O seu romance demonstra-nos que na vicia tudo o que
mentos delicadíssimos que são como as divisas cia sua poesia escolhemos e avaliamos como leve não tarda a revelar o seu
(«traccia madreperlacea di lumaca / o smeriglio di vetro cal- peso insustentável. Talvez só escapem a esta condenação a
pestato> [marcas madreperláceas de caracol / ou esmeril de vivacidade e a mobilidade da inteligência: as qualidades com
vidro moído]) postos em confronto com um medonho mons- que foi escrito o romance, que pertencem a outro universo
tro infernal, um Lucífer de asas de betume que paira sobre as que já não é o do viver.
capitais do Ocidente. Nunca como nesta poesia escrita em Nas alturas em que o reino do humano me parece mais
1953 Montale evocou uma visão tão apocalíptica, mas o que condenado ao peso, penso que como Perseu deveria voar
os seus versos colocam em primeiro plano são esses minús- para outro espaço. Não estou a falar de fugas para o sonho
culos traços luminosos que contrapõe à negra catástrofe ou para o irracional. Quero dizer que tenho de mudar o meu
(«Conseruane Ia cipría nello specchietto / quando spenta ogni ponto de vista, tenho de observar o mundo a partir de outra
lâmpada / Ia sardana si fará infernale,,.» [Deixa o pó de ar- óptica, outra lógica, e outros métodos de conhecimento e de
roz na caixinha / ao apagar de todas as lâmpadas / a sardana análise. As imagens de leveza que procuro não deverão
há-de ser infernal...]). Mas como poderemos ter esperança de deixar-se dissolver como sonhos pela realidade do presente e
nos salvarmos no que há de mais frágil? Esta poesia de Mon- do futuro...
tale é uma profissão de fé na persistência do que mais parece No universo infinito cia literatura abrem-se sempre outras
destinado a perecer, e nos valores morais investidos nos ves- vias a explorar, novíssimas ou antiquíssimas, estilos e formas
tígios mais ténues: «U ténue bagliore strofinato / laggiú non que podem transformar a nossa imagem do mundo... Mas se__

20 21
Leveza Leveza

| a literatura não basta para me garantir que não ando só a terminam qualquer acontecimento, sente a necessidade de
perseguir sonhos, procuro na ciência alimento para as minhas permitir aos átomos desvios imprevisíveis da linha recta, de
visões em que se dissolve todo o peso... modo que garantam a liberdade tanto da matéria como dos
Hoje em dia todos os ramos da ciência parecem querer seres humanos. A poesia do invisível, a poesia das infinitas
demonstrar-nos que o mundo assenta em entidades delicadís- potencialidades imprevisíveis, tal como a poesia do nada, nas-
simas: tal como as mensagens do ADN, os impulsos dos neu- cem de um poeta que não tem dúvidas quanto ao carácter
rónios, os quarks, os neutrinos vagueando pelo espaço desde físico do mundo.
o princípio dos tempos... Esta pulverização da realidade abrange também os aspec-
F, também a informática. É verdade que o software não tos visíveis, e é aí que se demonstra excelente a qualidade
poderia exercer os poderes da sua leveza senão por meio do poética de Lucrécio: os grãos de poeira que rodopiam num
peso do hardware; mas é o software que comanda, que actua raio de sol numa sala escura (II, 114-124); as minúsculas
sobre o mundo exterior e as máquinas, que só existem em conchas todas parecidas e todas diferentes que a onda impele
função do software, evoluindo de modo a elaborar programas docemente para a bibula arena, a areia embebida (II, 374-
cada vez mais complexos. A segunda revolução industrial não -376); as teias de aranha que nos envolvem sem nós darmos
se apresenta como a primeira com imagens esmagadoras por isso enquanto caminhamos (III, 381-390).
como prensas de laminadoras ou torrentes de aço, mas sim Já citei as Metamorfoses de Ovídio, outro poema enciclo-
como os bits de um fluxo de informação que corre por cir- pédico (escrito uns cinquenta anos depois do de Lucrécio)
cuitos sob a forma de impulsos electrónicos. Continuam a que parte, já não cia realidade física, mas sim das fábulas mi-
existir máquinas de ferro, mas obedecem aos bits sem peso. tológicas. Para Ovídio também tudo se pode transformar em
novas formas; para Ovídio também o conhecimento do mun-
Será lícito extrapolar do discurso das ciências uma ima- do é dissolução da compacidade do mundo; para Ovídio tam-
gem do mundo que corresponda aos meus desejos? Se me bém há uma paridade essencial em tudo o que existe, contra
atrai a operação que estou a tentar, é porque sinto que ela todas as hierarquias de poderes e de valores. Se o mundo de
poderia ligar-se a um filão muito antigo na história da poesia. Lucrécio é feito de átomos inalteráveis, o de Ovídio é feito
O De rerum natura de Lucrécio é a primeira grande obra de qualidades, de atributos e de formas que definem a dife-
de poesia em que o conhecimento do mundo se torna disso- rença entre todas as coisas, plantas, animais e pessoas; mas
lução da compacidade do mundo, percepção do que é infini- estes não passam de simples invólucros de uma substância
tamente minúsculo, móvel e leve. Lucrécio pretende escrever comum que — se for agitada por uma paixão profunda — se
o poema da matéria mas avisa-nos logo de que a verdadeira poderá transformar na coisa mais diferente.
realidade desta matéria é feita de corpúsculos invisíveis. É o É ao seguir a continuidade da passagem de uma forma
poeta do concreto físico, visto na sua substância permanente para outra que Ovídio desenvolve todos os seus dotes inigua-
e imutável, mas começa logo por dizer-nos que o vácuo é tão láveis: quando conta como uma mulher se apercebe de que
concreto como os corpos sólidos. A maior preocupação de está a transformar-se em arbusto. Os pés ficam-lhe presos na
Lucrécio parece ser a de evitar que nos esmague o peso da terra, pouco a pouco vai-lhe nascendo uma casca mole que
matéria. Para estabelecer as rigorosas leis mecânicas que de- lhe cobre as virilhas; vai para arrancar os cabelos e descobre

77
Leveza Leveza

que tem as mãos cheias de folhas. Ou quando fala dos dedos gi sono in Santa Reparata, e molte altre dintorno a San
de Aracne, tão ágeis a cardar e desfiar a lã e a fazer rociar o Giovanni, e egli essendo tralle colonne dei porfido che
fuso, a mover a agulha de bordar e que de repente vemos vi sono e quelle arche e Ia porta di San Giovanni, che
alongarem-se em finíssimas patas de aranha que se põem a serrata era, messer Betto con sua brígata a cavai venen-
tecer a sua teia. do su per Ia piazza di Santa Reparata, vedendo Guido
Tanto em Lucrécio como em Ovídio a leveza é um modo lá tra quelle sepolture, dissero: «Andiamo a dargli bri-
de ver o mundo que assenta na filosofia e na ciência: as dou- ga»; e spronati i cavalli, a guisa d'uno assalto sollazze-
trinas de Epicuro para Lucrécio, e as doutrinas de Platão para vole gli furono, quasi prima che egli se ne avvedesse,
Ovídio (um Pitágoras que, como Ovídio o apresenta, é pare- sopra e cominciarongli a dire-, «Guido, tu rífiuti d'esser
cidíssimo com Buda). Mas em ambos os casos a leveza é algo di nostra brígata- ma ecco, quando tu avrai trovato che
que se cria na escrita, com os meios linguísticos que são os Iddio non sia, che avrai fatto?».
do poeta, independentemente da doutrina do filósofo que o A' quali Guido, da lor veggendosi chiuso, presta-
poeta declara que pretende seguir. mente disse: «Signori, voi mi potete dire a casa vostra
cio cbe vi piace»; e posta Ia mano sopra una di quelle
A partir do que tenho dito ar^ aqui creio que começa a
arche, que grandi erano, si come colui che leggerissimo
precisar-se o conceito de leveza; espero em primeiro lugar
era, prese un salto e fusi gittato dalValtra parte, e svi-
que tenha demonstrado que existe uma leveza do pensamen-
luppatosi da loro se n'andò.
to, tal como todos sabemos que existe uma leveza da frivoli-
dade; aliás, a leveza do pensamento pode fazer a frivolidade
Ora aconteceu que um dia, tendo Guido saído do
parecer pesada e opaca.
Orto San Michele, pelo Corso dos Adimari até San Gio-
Não poderia ilustrar melhor esta ideia do que com uma no-
vanni, que era muitas vezes o seu caminho, onde havia
vela do Decameron (VI, 9) onde aparece o poeta florentino
grandes túmulos de mármore que hoje estão em Santa
Guido Cavalcanti. Boccaccio apresenta-nos Cavalcanti como
Reparata, e muitos outros em volta da igreja de San
um austero filósofo que passeia a meditar no meio dos sepul-
Giovanni, estando ele entre as colunas de pórfiro que
cros de mármore diante de uma igreja. Ajeunesse doréeRoren-
ali existiam, os túmulos e a porta de San Giovanni, que
tina cavalgava pela cidade em grupos que iam de uma festa
estava fechada, messer Betto e a sua brigada a cavalo
para outra, sempre à procura de ocasiões para ampliar o seu
subindo a praça de Santa Reparata, vendo Guido no
círculo de convites recíprocos. Cavalcanti não era popular en-
meio daquelas sepulturas, disseram: «Vamos lá provocá-
tre eles, porque, embora fosse rico e elegante, nunca aceitava
-lo»; e, esporeando os cavalos à maneira de um falso
participar nas suas boémias e porque a sua filosofia era consi-
assalto, quase antes que ele se desse conta, caíram-lhe
derada suspeita como ímpia.
em cima e começaram a dizer: «Guido, recusas-te a ser
Ora avvenne un giorno cbe, essendo Guido partito da nossa brigada; mas quando no fim descobrires que
d'Orto San Michele e venutosene per Io Corso degli Adi- Deus não existe, o que farás?».
mari infino a San Giovanni, U quale spesse volte era Ao que Guido, vendo-se por eles cercado, presta-
suo cammino, essendo arche grandi di marmo, cbe og- mente replicou: «Meus senhores, podeis dizer-me em

24
Leveza
Leveza

vossa casa o que vos apetecer»; e pondo a mão num


o poeta exilado dirige-se à própria balada que está a escrever
daqueles túmulos, que eram grandes, e levíssimo como
e diz: «Vá tu, leggera e piana / drítfa donna mia? (Vai, leve
era, deu um salto e passou para o outro lado, e livran- e ligeira, direito à minha dama). Noutro são os instrumentos
do-se deles foi-se embora.
da escrita - - penas e utensílios para afiar as penas - - que
tomam a palavra: «Noi siàn lê triste penne isbigottite, / lê ce-
O que nos interessa aqui não é tanto a saída atribuída a
soiuzze e'l coltellin dolente..." (Somos as penas desalentadas /
Cavalcanti (que se pode interpretar considerando que o pre- as tesourinhas e a faca dolente...). Num soneto, aparece a pa-
tenso «epicurismo» do poeta na verdade era averroísmo, segun- lavra «spirito» ou «spiritello» em cada verso: numa evidente pa-
do o qual a alma individual faz parte do intelecto universal: os
ródia de si mesmo, Cavalcanti leva às últimas consequências
túmulos são a vossa casa e não a minha, dado que quem se
a sua predilecção por essa palavra-chave, concentrando nos
eleva à contemplação universal através da especulação do in- catorze versos um complicado conto abstracto em que inter-
telecto vence a morte corporal). O que nos impressiona é a
vêm catorze «spiriti», cada um com uma função diferente.
imagem visual que Boccaccio evoca: Cavalcanti a libertar-se de
Noutro soneto, o corpo vê-se desmembrado pelo sofrimento
um salto, «levíssimo como era».
amoroso, mas continua a caminhar como um autómato «fatto
Se quisesse escolher um símbolo votivo para entrar no no-
di ranie o di pietra o di legno» (feito de cobre de pedra ou
vo milénio, escolheria este: o ágil salto repentino do poeta- de madeira). Já num soneto de Guinizelli a pena amorosa
-filósofo que se eleva sobre o peso do mundo, demonstrando transformava o poeta numa estátua de latão: uma imagem
que a sua gravidade contém o segredo da leveza, enquanto concretíssima, cuja força reside precisamente no sentido de
a que muitos julgam ser a vitalidade cios tempos, ruidosa, peso que comunica. Em Cavalcanti, o peso da matéria dis-
agressiva, desvastadora e tonitruante, pertence ao reino da
solve-se pelo facto de poderem ser muitos e intercambiáveis
morte, como um cemitério de automóveis ferrugentos. os materiais do simulacro humano; a metáfora não impõe um
objecto sólido, e nem a palavra «pedra» consegue tornar pe-
Gostaria que conservassem esta imagem na memória, ago-
sado o verso. Tornamos a encontrar aqui a paridade entre
ra que vou falar-lhes de Cavalcanti poeta da leveza. Nas suas
tudo o que existe de que falei a propósito de Lucrécio e de
poesias as «dramatis personae», mais que personagens huma-
Ovídio. Um mestre da crítica estilística italiana, Gianfranco
nas, são suspiros, raios luminosos, imagens ópticas, e sobre- Contini, define-a como «equalização cavalcantiana do real».
tudo os impulsos ou mensagens imateriais a que ele chama
O exemplo mais feliz de «equalização do real», clá-o Ca-
«espíritos». Um tema de modo nenhum leve como o sofrimen-
valcanti num soneto que começa com uma enumeração cie
to de amor, é dissolvido por Cavalcanti em entidades im-
imagens de beleza, todas destinadas a serem ultrapassadas
palpáveis que se movem entre a alma sensitiva e a alma pela beleza da mulher amada:
intelectiva, entre o coração e a mente, entre os olhos e a voz.
Em suma, trata-se sempre de uma coisa diferenciada por três Biltã di donna e di saccente core
características: 1) é levíssima; 2) está em movimento; 3) é um e cavalieri armati cbe sien genti
vector de informação. Em certos poemas esta mensagem-men- cantar d'augelli e ragionar d'amore;
sageiro é o próprio texto poético: no mais famoso de todos, adorni legni 'n mar forte correnti;

27
Leveza Leveza

ária serena qiitmd'apar 1'albore do Inferno sob uma chuva de fogo, em que para a ilustrar se
e bianca neve scender senza venti; introduz a semelhança com a neve. Em Cavalcanti tudo se
rivera d'acqua e prato d'ogni fiore; move com tanta rapidez que não podemos aperceber-nos cia
oro, argento, azzurro 'n ornamenti: sua consistência, mas só dos seus efeitos; em Dante, tudo
adquire consistência e estabilidade: determina-se com exacti-
Beleza de mulher, coração cauto, dão o peso cias coisas. Mesmo quando fala de coisas leves,
cavaleiros armados mas corteses; Dante parece que pretende dar o peso exacto dessa leveza:
cantar das aves e razão de amor; «come di neve in alpe senza vento». Tal como noutro verso
belas naus varcando as ondas do mar; muito semelhante, em que se contém e atenua o peso de um
o ar sereno quando nasce a aurora, corpo que se afunda na água e desaparece: «come per acqua
a branca neve que cai sem vento; cupa cosa grave» (como em água profunda um corpo grave)
torrente de água e prado de mil flores; (Paraíso, III, 123).
ouro, prata e azul como ornamentos: Assim, temos cie recordar-nos de que se nos impressiona
a ideia do mundo constituído de átomos sem peso é porque
O verso «e bianca neve scender senza venti» foi retomado temos experiência do peso das coisas; tal como não podería-
com poucas variantes por Dante no Inferno (XIV, 30): «come mos admirar a leveza da linguagem se não soubéssemos
di neve in alpe senza vento» (como cai a neve nos alpes sem admirar também a linguagem dotada de peso.
vento). Os dois versos são quase idênticos, contudo expri-
mem duas concepções totalmente diferentes. Em ambos a Podemos dizer que duas vocações opostas disputam o
neve sem vento evoca um movimento leve e silencioso. Mas campo da literatura através dos séculos: uma tem a tendência
fica-se por aqui a semelhança e começa a diferença. Em para fazer da linguagem um elemento sem peso, que flutua
Dante o verso é dominado pela especificação do lugar («in por sobre as coisas como uma nuvem, ou melhor, como uma
alpe»), que evoca um cenário montanhoso. Em contrapartida, finíssima poeira, ou melhor ainda como um campo de impul-
em Cavalcanti o adjectivo «bianca», que poderá parecer pleo- sos magnéticos; a outra tende a comunicar à linguagem o
nástico, unido ao verbo «scendere», também absolutamente peso, a espessura, a concreção cias coisas, dos corpos e das
previsível, apagam a paisagem dentro de uma atmosfera de sensações.
suspensa abstracção. Mas é sobretudo a primeira palavra que Nas origens da literatura italiana - - e europeia — estas
determina o diferente significado dos dois versos. Em Caval- duas vias foram abertas por Cavalcanti e por Dante. A oposi-
canti, a conjunção «e» põe a neve no mesmo plano das outras ção naturalmente só é válida nas suas linhas gerais, e exigiria
visões que a antecedem e que se seguem: uma fuga de ima- inúmeras especificações, dada a enorme riqueza cie recursos
gens, que surge como um inventário das belezas do mundo. de Dante e a sua extraordinária versatilidade. Não é por acaso
Em Dante o advérbio «come» encerra toda a cena dentro da que o soneto cie Dante inspirado na leveza mais feliz («Guião,
moldura de uma metáfora, mas no interior desta moldura ela i' vorrei cbe tu e Lapo ed /o» [Cuido, eu queria que tu, Lapo
tem uma sua realidade concreta, tal como não é menos e eu]) é dedicado a Cavalcanti. Na Vita nuova, Dante trata a
concreta e dramática a realidade que apresenta a paisagem mesma matéria que o seu mestre e amigo, e aí surgem pala-

28 29
Leveza Leveza

vras, temas e conceitos que se encontram nos dois poetas; Sépala, pétala, espinho
quando Dante quer exprimir leveza, até mesmo na Divina Na vulgar manhã de Verão,
Commedia, ninguém o faz melhor que ele; mas a sua genia- Brilho de orvalho — uma abelha ou duas -
lidade manifesta-se no sentido oposto, em extrair da língua Brisa saltando nas árvores -
todas as possibilidades sonoras e emocionais e de evocação E sou uma rosa!
de sensações, em captar no verso o mundo em toda a varie-
dade dos seus níveis, das suas formas e dos seus atributos, 2) a narração de um raciocínio ou de um processo psico-
em transmitir a ideia de que o mundo está organizado num lógico em que actuem elementos subtis e imperceptíveis, ou
sistema, numa ordem e numa hierarquia em que tudo tem o qualquer descrição que implique um elevado grau de abstrac-
seu lugar. Forçando um pouco a contraposição, poderei dizer ção.
que Dante dá solidez corpórea inclusivamente à mais abstrac- E aqui, para darmos um exemplo mais moderno, podere-
ta especulação intelectual, enquanto Cavalcanti dissolve o mos experimentar com Henry James, até mesmo abrindo um
concreto da experiência tangível em versos de ritmo escandi- livro seu ao acaso:
do, de sílabas bem marcadas, como se o pensamento se afas-
tasse cia obscuridade através de rápidas descargas eléctricas.
O deter-me em Cavalcanti serviu-me para esclarecer me- It was as if these depths, constantly bridged over by
lhor (pelo menos para mim próprio) o que entendo por a structure tbat was firm enough in spite of its ligbtness
«leveza». A leveza para mim está associada à precisão e à deter- and of its occasional oscillation in the somewbat verti-
minação, e não ao vago e abandonado ao acaso. Paul Valéry ginous air, invited on an occasion, in the interest of
disse: «// faut être léger comme Voiseau, et non comme Ia their nerves, a dropping of the plummet and a measu-
plum& (Deve-se ser leve como o pássaro e não como a pena). rement of the abyss. A difference had been made more-
Servi-me de Cavalcanti para exemplificar a leveza em pelo over, once for ali, by the fact she had, ali the while, not
menos três acepções diferentes: appeared to feel the need of rebutting bis charge of an
1) um aligeiramento da linguagem pelo que os significa- idea within her that she didn't dare to express, uttered
dos são canalizados num tecido verbal como que imponderá- just before one of the fullest of their later discussions
vel até assumirem essa mesma rarefeita consistência. ended. (The Beast in the jungle)
Deixo-vos a tarefa de encontrar outros exemplos neste
sentido. Por exemplo, Emily Dickinson pode fornecer-nos os Era como se essas regiões profundas, encimadas por
que quisermos: uma ponte de estrutura firme, embora leve e ocasional-
mente trémula no ar vertiginoso, convidassem de quan-
A sepal, petal, and a thorn do em quando ao uso dum fio de prumo e à aferição
Upon a common summer's morn - do abismo, no interesse do equilíbrio do sistema nervo-
A flask of Dew — a Bee or two — so. Além disso, estabelecera-se uma alteração irrepará-
A Breeze — a caper in the trees — vel, pelo facto de ela nunca ter sentido a necessidade
And I'm a Rose! de rebater a acusação de que possuía uma ideia a que

30
Leveza Leveza

não se atrevia a dar voz, formulada pouco antes cie ter- Her waggon-spokes made of long spinner's legs;
minar uma das discussões mais profundas. The cover, of tbe urings of grassboppers;
The traces, of the smallest spider's web;
The collars, of the moonshine's watery beams;
3) uma imagem figurativa de leveza que assuma um valor Her wbip, of crickefs boné; the lash, offilm;
emblemático, como, na novela de Boccaccio, Cavalcanti a vol-
tear com as suas pernas magríssimas por cima da pedra tu- Compridas patas de aranha são os raios das suas
mular. rodas; de asas de gafanhoto a cobertura; da mais fina
Há invenções literárias que se impõem à memória mais teia de aranha as rédeas; de húmidos raios de lua os
pela sua sugestão verbal do que pelas palavras. A cena de arreios; o cabo do chicote é um osso de grilo, com um
Dom Quixote a trespassar com a lança a pá de um moinho fio de cabelo.
de vento e é projectado no ar, ocupa poucas linhas do ro-
mance de Cervantes; pode dizer-se que o autor investiu nela e não nos esqueçamos de que esta carruagem é «drawn with
apenas uma quantidade mínima dos seus recursos estilísticos; a team of little atomies» (puxada por uma parelha de átomos
no entanto, continua a ser uma das passagens mais famosas impalpáveis): um pormenor decisivo, creio eu, que permite
da literatura de todos os tempos. ao sonho da Rainha Mab fundir o alomismo de Lucrécio com
o neoplatonismo renascentista e o folclore céltico.
Também gostaríamos que o passo de dança de Mercúcio
Penso que com estas indicações posso pôr-me a folhear nos acompanhasse para além do limiar cio novo milénio. A
os livros da minha biblioteca à procura de exemplos de leve- época que serve de fundo a Romeo and Juliet tem muitos
za. Em Shakespeare vou logo procurar o ponto em que entra aspectos que não diferem muito dos nossos tempos: as cida-
em cena Mercúcio: «You are a lover; borrou) Cupid's wings / des ensanguentadas de disputas violentas que não são menos
and soar with them above a common bouncl» (Estás enamo- insensatas que as dos Capuletos e Montéquios; a libertação
rado: leva emprestadas as asas de Cupido / e com elas ele- sexual preconizada pela Aia que não consegue tornar-se mo-
va-te mais alto que um salto). Mercúcio contradiz logo Romeu delo do amor universal; as experiências de frei Lourenço rea-
que acabara de dizer: «llnder love's beavy burden do I sink> lizadas com o generoso optimismo da sua «filosofia natural»,
(Afundo-me sob o peso cio amor). O modo de Mercúcio se mas que nunca temos a certeza se virão a ser usadas para a
mover no mundo define-se pelos primeiros versos que usa: vida ou para a morte.
to dance, to soar, to prickle (dançar, pairar, picar). O sem-
blante humano é uma máscara, a visor. Mal entra em cena, O Renascimento shakespeariano conhece os influxos eté-
sente logo a necessidade de explicar a sua filosofia, não com reos que ligam o macrocosmos e o microcosmos, desde o
um discurso teórico, mas sim contando um sonho: a Rainha firmamento neoplatónico até aos espíritos cios metais que se
Mab. Queen Mab, tbe fairies' midwife, (A Rainha Mab, par- transformam no cadinho dos alquimistas. As mitologias clás-
teira cias fadas) aparece numa carruagem feita de «an empty sicas podem fornecer o seu repertório cie ninfas e de ciríades,
bazel-nut» (uma casca de noz); mas as mitologias célticas, sem dúvida, com os seus elfos e

32 33
Leveza Leveza

fadas, são muito mais ricas no seu imaginário das forças na- cias, e mais precisamente de tantas experiências dife-
turais mais subtis. Este fundo cultural (penso naturalmente rentes de viagens durante os quais esse perpétuo rumi-
nos fascinantes estudos de Francês Yates sobre a filosofia nar me fez cair numa tristeza plena de graça.
ocultista do Renascimento e os seus reflexos na literatura) ex-
plica a razão por que é em Shakespeare que se poderá en- Assim, não é uma melancolia compacta e opaca, mas sim
contrar a exemplificação mais rica do meu tema. E não estou um véu de ínfimas partículas de humores e sensações, uma
a pensar só em Puck e em toda a fantasmagoria do Sonho de poeira de átomos como tudo o que constitui a substância úl-
uma noite de Verão, ou em Ariel e em todos os que «are such tima da multiplicidade das coisas.
stuff / As dreams are made on» (somos da mesma substância Confesso que são muito fortes as tentações que tenho cie
de que são os sonhos), mas sobretudo na especial modulação construir um Shakespeare seguidor cio atomismo de Lucrécio,
lírica e existencial que nos permite contemplar o nosso pró- mas sei que seria arbitrário. O primeiro escritor do mundo
prio drama como visto cie fora e dissolvê-lo em melancolia e moderno que faz profissão de fé explícita cie uma concepção
ironia. atomista do universo na sua transfiguração fantástica, só o en-
A gravidade sem peso de que falei a propósito cie Caval- contramos alguns anos depois, em França: Cyrano de Berge-
canti torna a florescer na época de Cervantes e de Shakes- rac.
peare: é a particular ligação entre melancolia e humorismo É um escritor extraordinário, Cyrano, que mereceria ser
que foi estudada em Saturn and Melancholy de Klibansky, Pa- mais recordado, e não só como o primeiro verdadeiro precur-
nafovsky e Saxl. Como a melancolia é a tristeza que se torna sor da ficção científica, mas pelas suas qualidades intelectuais
leve, assim o humor é o cómico que perdeu o peso corporal (a e poéticas. Seguidor do sensualismo de Gassendi e da astro-
dimensão da carnalidade humana que no entanto tornou nomia de Copérnico, mas nutrindo-se sobretudo da «filosofia
grandes Boccaccio e Rabelais) e põe em dúvida o eu e o mun- natural» do Renascimento italiano — Cardano, Giordano Bru-
do c toda a rede de relações que os constituem. no, Campanella - - Cyrano é o primeiro poeta do atomismo
São a melancolia e o humor misturados de maneira inse- nas literaturas modernas. Em páginas cuja ironia não encobre
parável que constituem a tónica do Príncipe cia Dinamarca uma verdadeira comoção cósmica, Cyrano celebra a unidade
que aprendemos a reconhecer em todos ou quase todos os de todas as coisas, inanimadas ou animadas, a combinação
dramas shakespearianos nos lábios dos numerosos avatares de figuras elementares que determina a variedade das formas
da personagem Hamlet. Um deles, Jacques em As You like it, vivas, e acima de tudo dá-nos o sentido da precariedade dos
define assim a melancolia (acto IV, cena I): processos que as criaram: ou seja, o pouco que faltou para
...but it is a melancholy ofmy own, compounded of que o homem não fosse o homem, nem a vida a vicia e o
mundo um mundo:
many simples, extracted from many objects, and indeed
the sundry contemplation of my traveis, which, by often
rumination, wraps me in a most humorous sadness. Vous vous étonnez comme cette matière, brouillée
pêle-mêle, au gré du hasard, peut avoir constitué un
... mas é à minha peculiar melancolia composta por homme, vu qu'il y avait tant de choses nécessaires ã Ia
elementos diversos, quintenssência de várias substân- construction de son être, mais vous ne savez pás que

35
Leveza Leveza

cent millions defois cette matière, s'acbeminant au des- Por esta via Cyrano chega a proclamar a fraternidade dos
sem d'un homme, s'est arrêtée â former tantôt une homens com as couves, e imagina assim o protesto cie uma
pierre, tantôt du plomb, tantôt du corail, tantôt une couve que está prestes a ser cortada:
fleur, tantôt une comete, pour lê trop ou trop peu de cer-
taines figures qu'ilfallait ou nefallaitpás à désigner un «Homme, mon cber frère, que t'ai-je fait qui mérite
homme? Si bien que cê n 'est pás merveille qu 'entre une Ia mort? (...) Je me leve de terre, je m'épanouis, je te
infinie quantité de matière qui cbange et se remue in- tends lês bras, je foffre mês enfants en graine, et pour
cessament, elle ait rencontré ã faire lê peu d'animaux, recompense de ma courtoisie, tu me fais trancher Ia
de végétaux que nous voyons; non plus que cê n 'est pás tête!»
merveille qu'en cent coups de dês U arrive une rafle.
Aussi bien est-il impossible que de cê remuement il ne se «Homem, meu querido irmão, que te fiz que mereça
fasse quelque cbose, et cette chose será toujours admirée a morte? (...) Desabrocho, estendendo-te os braços, ofe-
d'un étourdi qui ne saura pás combien peu s'en est faliu reço-te os meus filhos em semente e, como recompensa
qu'elle n'ait pás été faite. (Voyage dans Ia lune) cia minha delicadeza, cortas-me a cabeça!»

E admirai-vos de como esta matéria em desordem, Se pensarmos que esta peroração a favor de uma verda-
misturada ao sabor do acaso, pode constituir um ho- deira fraternidade universal foi escrita quase cento e cinquen-
mem quando tantas coisas se tornaram necessárias à ta anos antes da Revolução Francesa, veremos como se pode
constituição do seu ser. Não sabeis que esta matéria já anular num instante a lentidão da consciência humana a sair
cem milhões de vezes, ao prosseguir no intento de ser do seu parochialism antropocêntrico pela invenção poética.
homem, foi sustada para formar uma pedra, chumbo, Tudo isto dentro do contexto cie uma viagem à lua, em que
um coral, uma flor ou um cometa e tudo por causa de Cyrano de Bergerac supera em imaginação os seus mais ilus-
uma maior ou menor porção das figuras necessárias ou tres antecessores, Luciano de Samósata e Ludovico Ariosto.
desnecessárias para formar um homem? Tão bem o sa- Nesta minha exposição sobre a leveza, Cyrano figura sobre-
beis que não parece prodígio que no meio de uma tudo pelo modo como, antes de Newton, sentiu o problema
quantidade de matérias que mudam e incessantemente da gravitação universal; ou melhor, é o problema de escapar
se movimentam, estas se tenham encontrado para à força da gravidade que estimula tanto a sua fantasia que o
constituir o limitado número de animais, de vegetais e faz inventar toda uma série de sistemas para ir à lua, cada um
de minerais que nos é ciado conhecer e da mesma ma- mais engenhoso que o outro: com frascos cheios cie orvalho
neira não podemos considerar milagroso que em cem que se evaporam ao calor cio sol; untando-se com tutano cie
lanços de dados, saia um par. Desta forma é impossível boi que normalmente é sugado pela lua; com uma bola de
que não se crie coisa alguma nesta movimentação, e íman que é lançada ao ar repetidas vezes da barquinha de
haverá sempre com que admirar um leviano, que no um balão.
entanto ignora quão pouco seria necessário para que No que respeita ao sistema do íman, será desenvolvido e
ela fosse criada. aperfeiçoado por Jonathan Swift para manter no ar a ilha vo-

36 37
Leveza Leveza

lante de Lapúcia. A aparição de Lapúcia em voo é um mo- Deste impulso da imaginação a superar todos os limites,
mento em que parece que as duas obsessões de Swift se anu- o século XVIII vai conhecer o seu ponto máximo com o voo
lam num mágico equilíbrio: refiro-me à abstracção incorpórea do Barão de Miinchausen numa bala de canhão, imagem que
do racionalismo contra o qual ele dirige a sua sátira, e o peso na nossa memória está definitivamente identificada com a
material da corporeidade. ilustração que é a obra-prima de Gustave Doré. As aventuras
do Barão de Múnchauscn, que tal como as Mil e Uma Noites
... and I could see the sides of U, encompassed with seve- não se sabe se tiveram um autor, muitos ou nenhum, são um
ra! gradattons of Galleries and Stairs, at certain intervals, to contínuo desafio às leis da gravitação: o Barão voa transporta-
descend from one to tbe otber. In the lowest Gallery I beheld do por gansos, eleva-se nos ares a si mesmo e ao cavalo pu-
some People fisbing with long Angling Rods, and others loo- xando-se pela trança da peruca, desce da lua agarrado a uma
on. corda que vai cortando e atando de novo durante a descida.
Estas imagens da literatura popular, juntamente com as
... pude então compreender que se tratava de várias séries que já vimos na literatura culta, acompanham a fortuna lite-
de galerias, ligadas umas às outras por escadas. Na galeria rária das teorias de Newton. Giacomo Leopardi aos quinze
inferior vi algumas pessoas que pescavam à cana e outras pa- anos escreve uma história da astronomia de uma erudição ex-
radas, como simples espectadoras. traordinária, em que refere também as teorias newtonianas. A
contemplação do céu nocturno que inspirará a Leopardi os
Swift é contemporâneo e adversário de Newton. Voltaire seus versos mais belos não era apenas um tema lírico; quando
é um admirador de Newton, e imagina um gigante, Micróme- falava da lua, ele sabia exactamente do que estava a falar.
gas, que ao contrário dos de Swift é definido não pela sua Leopardi, no seu ininterrupto discurso sobre o insustentá-
corporeidade mas sim por dimensões expressas em números, vel peso do viver, representa a felicidade inatingível com ima-
por propriedades espaciais e temporais enunciadas nos ter- gens cie leveza: as aves, uma voz feminina que canta de uma
mos rigorosos e impassíveis dos tratados científicos. Em vir- janela, a transparência do ar, e sobretudo a lua.
tude desta lógica e deste estilo, Micrómegas consegue viajar Desde que começou a surgir nos versos dos poetas, a lua
no espaço de Sirius, Saturno e a Terra. Dir-se-ia que nas teo- tem tido sempre o poder de comunicar uma sensação de leve-
rias de Newton o que excita a imaginação literária não será za, de suspensão, de calmo e silencioso encantamento. Come-
o condicionamento cie todas as coisas e pessoas à fatalidade cei num primeiro impulso por querer dedicar esta conferência
cio seu próprio peso, mas sim o equilíbrio de forças que per- toda à lua: acompanhar as aparições cia lua nas literaturas de
mite aos corpos celestes pairar no espaço. todos os tempos e de todos os países. Depois decidi que se
A imaginação do século XVIII é rica de figuras suspensas devia deixar a lua toda para Leopardi. Porque o milagre de
no ar. Não foi impunemente que nos princípios do século a Leopardi foi o retirar à linguagem todo o peso até fazê-la pa-
tradução francesa das Mil e Uma Noites de Antoine Galland recer a luz cio luar. As numerosas aparições da lua nas suas
abriu à fantasia ocidental os horizontes do maravilhoso orien- poesias ocupam poucos versos mas bastam para iluminar toda
tal: tapetes voadores, cavalos que voam, génios a saírem de a composição com essa luz ou para nela projectar a sombra
lâmpadas. da sua ausência.

38 39
Leveza Leveza

Dolce e chiara è Ia notte e senza vento, Ó graciosa lua, como me lembro:


e queta sovra i tetti e in mezzo agli orti há um ano, no alto da colina,
posa Ia luna, e di lontan rivela cheio de angústia, vinha contemplar-te:
serena ogni montagna. e pairavas então sobre a floresta
como agora, a iluminá-la toda.

O graziosa luna, io mi rammento


che, or volge Vanno, sovra questo colle Querida lua, em cujos calmos raios
io vénia pien d'angoscia a rimirarti: dançam as lebres na floresta.
e tu pendevi allor su quella selva
siccome or fai, che tutta Ia ríschiarí.
Já todo o ar escurece,
azul faz-se o sereno e as sombras descem
dos telhados e das colinas
O cara luna, ai cui tranquillo raggio sob a brancura de uma nova lua.
danzan lê lepri nelle selve...

O que fazes no céu, diz-me, o que fazes,


Già tutta Varia imbruna, silenciosa lua? Cai a noite, e vais
torna azzurro U sereno, e tornan 1'ombre contemplando os desertos; e então deitas-te.
giú da' colli e da' tetti,
ai biancheggiar delia recente luna. Há muitos fios emaranhados no meu discurso? Qual tenho
de puxar para ter nas mãos a conclusão? Há o fio que liga a
Lua, Leopardi, Newton, a gravitação e a levitação... Há o fio
Che fai tu, luna, in ciei? dimmi, che fai, de Lucrécio, o atomismo, a filosofia do amor de Cavalcanti, a
silenziosa luna? magia renascentista, Cyrano... Depois há o fio da escrita como
Sorgi Ia será, e vai, metáfora da substância pulverulenta do mundo: já para Lucré-
contemplando i deserti; indi ti posi. cio as letras eram átomos em contínuo movimento que com
as suas permutações criavam as palavras e os sons mais di-
Doce e clara é a noite e não há vento, versos; ideia que foi retomada por uma longa tradição de
por cima dos telhados e jardins pensadores para quem os segredos do mundo estavam conti-
pousa calma a lua, e revela dos na combinatória dos sinais da escrita: a Ars Magna de
ao longe serenas as montanhas. Ramón Llull, a Cabala dos rabis espanhóis e a de Pico delia
Mirandola... Até Galileu verá no alfabeto o modelo cie toda a
combinatória de unidades mínimas... E a seguir Leibniz...

40 41
Leveza Leveza

Devo meter-me por este caminho? Mas a conclusão que grande frequência. Entre as «funções» catalogadas por Propp
me espera não será demasiado óbvia? A escrita modelo de na Morfologia do conto este é um dos modos do «transferência
todos os processos da realidade... aliás, a única realidade do herói», assim definida: «O objecto da demanda encontra-se
conhecível... aliás, a única realidade tout-court... Não, não vou "noutro" reino. Este reino pode estar, por um lado, muito
por este carril forçado que me leva demasiado longe do uso longe na horizontal, ou, por outro lado, muito alto ou muito
da palavra como a entendo, como perseguição perpétua das baixo, na vertical». Propp a seguir faz uma lista de vários
coisas, adequação à sua variedade infinita. exemplos do caso «O herói voa pelos are»: «a cavalo, sobre
Ainda me resta um fio, o que comecei a desenrolar ao uma ave, como um pássaro, num barco voador, num tapete
princípio: a literatura como função existencial, a procura da voador, às costas de um gigante ou de um espírito, na carrua-
leveza como reacção ao peso de viver. Talvez também Lucré- gem do diabo, etc..».
cio, e também Ovídio, tenham sido movidos por esta neces- Não me parece forçado ligar esta função xamânica e fei-
sidade: Lucrécio que procurava - - o u julgava procurar - - a ticeiresca documentada pela etnologia e pelo folclore ao ima-
impassibilidade epicuriana; e Ovídio que procurava — ou jul- ginário literário; pelo contrário, penso que tem de se procurar
gava procurar — a ressurreição noutras vidas segundo Pitágo- a racionalidade mais profunda implícita em todas as ope-
ras. rações literárias nas necessidades antropológicas a que ela
Habituado como estou a considerar a literatura como pro- corresponde.
cura do conhecimento, para me mover no terreno existencial Gostaria de encerrar esta conferência recordando um
tenho necessidade de considerá-lo extensível à antropologia, conto cie Kafka, Der Kúbelreiter (O cavaleiro do balde). É um
à etnologia, à mitologia. conto curto na primeira pessoa, escrito em 1917, e o seu pon-
Perante a precariedade da existência da tribo - - a seca, to de partida é evidentemente uma situação bem real naquele
as doenças, influências malignas - - o xamã respondia-lhe Inverno de guerra, o mais terrível para o império austríaco: a
anulando o peso do seu corpo, transportando-se em voo para falta de carvão. O narrador sai com o balde vazio à procura
outro mundo, para outro nível de percepção, onde podia de carvão para o aquecimento. Pelo caminho o balde serve-
arranjar forças para modificar a realidade. Em séculos e civi- -Ihe de cavalo, aliás eleva-o à altura cios primeiros andares e
lizações mais próximos cie nós, nas aldeias onde a mulher transporta-o baloiçando como se fosse na garupa de um ca-
suportava o fardo mais pesado de uma vida de opressões, as melo.
bruxas voavam de noite nos cabos das vassouras ou até mes- A carvoaria fica numa cave e o cavaleiro do balde está
mo em veículos mais leves como espigas ou palhas. Antes de demasiado alto; tem dificuldades em fazer-se entender pelo
serem codificadas pelos inquisidores estas visões fizeram carvoeiro que estaria pronto a atendê-lo, enquanto a mulher
parte do imaginário popular, ou digamos mesmo da vida real. se recusa a ouvi-lo. Ele suplica que lhe dêem uma pazacla do
Creio que é uma constante antropológica este nexo entre a carvão mais ordinário, embora não possa pagá-lo imediata-
levitação desejada e a privação sofrida. É este dispositivo an- mente. A mulher do carvoeiro tira o avental e expulsa o in-
tropológico que a literatura perpetua. truso como se estivesse a correr com uma mosca. O balde é
Em primeiro lugar, a literatura oral: nos contos populares tão leve que voa com o seu cavaleiro até se perder para além
o voo para outro mundo é uma situação que se repete com das Montanhas de Gelo.

42 43
Leveza

Muitos dos contos curtos de Kafka são misteriosos e este


é-o muito em especial. Talvez Kafka só quisesse contar-nos
que sair à procura de carvão, numa noite fria dos tempos de
guerra, se transforma em quête de cavaleiro andante, travessia
de caravana no deserto, voo mágico, ao simples baloiçar do
balde vazio. Mas a ideia deste balde vazio que nos eleva aci-
ma do nível onde se encontra o auxílio e também o egoísmo
dos outros, o balde vazio sinal de privação, desejo e procura,
que nos eleva a ponto de o nosso pedido humilde já não Rapidez
poder ser atendido — abre caminho a reflexões sem fim.
Falei do xamã e do herói dos contos de fadas, da privação
sofrida que se transforma em leveza e permite voar ao reino
em que todas as necessidades serão magicamente supridas.
Falei das bruxas que voavam em humildes instrumentos do-
mésticos como pode ser um balde. Mas o herói deste conto
de Kafka não parece dotado de poderes xamânicos nem má-
gicos; nem o reino para além das Montanhas de Gelo parece
aquele em que o balde vazio terá com que se encher. Tanto
mais que se estivesse cheio não teria conseguido voar. Assim,
a cavalo do nosso balde, iremos ao encontro do novo milé-
nio, sem ter esperanças de encontrar mais nada nele senão o
que seremos capazes cie levar. A leveza, por exemplo, cujas
virtudes esta conferência tentou ilustrar.

4/í

You might also like