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AS DIFERENÇAS ENTRE A TEORIA DOS ATOS DE COMÉRCIO
E A TEORIA DA EMPRESA SOB A ÓTICA DO DIREITO
FALIMENTAR
RESUMO
O artigo aborda a evolução do Direito Comercial / Empresarial, pela transição da teoria dos
atos de comércio, que definia o comerciante como sendo aquele que praticava quaisquer dos
atos previstos em lei como sendo comerciais. Em contraposição à teoria dos atos de comércio,
foi idealizada a teoria de empresa, que considera empresário aquele que exerce atividade
econômica organizada para a produção de bens ou de serviços. Mais que um alargamento do
conceito de comerciante, as teorias diferem, também, no âmbito de proteção dados pelas leis
falimentares, a elas contemporâneas: pela antiga lei de falências, vigente à época da teoria dos
atos de comércio, a proteção era dada ao comerciante; a nova lei, inspirada na teoria da
empresa, protege a empresa, enquanto atividade.
ABSTRACT
The article discusses the evolution of Corporate / Commercial Law, by the transition of the
theory of the acts of commerce, which defined the merchant as being one who practiced any of
the commercial acts referred in the law. In opposition to the theory of the acts of commerce, it
has been conceived the theory of enterprises, which considers businessman the one who has
got an economic activity organized for the production of goods or services. More than an
extension of the concept of merchant, the theories differ, also, in the scope of protection given
by the bankrupt laws, contemporary to these theories: the former law, in force at the same time
as the theory of the acts of commerce, protected the merchant; the new law, inspired by the
theory of enterprises, protects the business activity itself.
INTRODUÇÃO
Pode-se dizer que o Direito Comercial evoluiu em três fases: a primeira, chamada de
período subjetivo antigo, nasceu na Idade Média; comerciante, para essa teoria, era aquele
inscrito em uma corporação de comerciantes, que julgavam os conflitos existentes entre si. A
segunda fase, conhecida como período objetivo, é representada pela Teoria dos Atos de
Comércio. A última, a Teoria da Empresa, é conhecida como período subjetivo moderno.
A Teoria da Empresa, que surgiu em contraposição à Teoria dos Atos de Comércio, foi
mais que uma simples ampliação do conceito do comerciante para o empresário, agregando
atividades antes não abrangidas. A grande mudança, na verdade, foi a mudança no âmbito de
proteção, que passou da pessoa do comerciante para a empresa, enquanto atividade.
A Teoria dos Atos de Comércio teve início com o Código Comercial francês, de 1808,
de forte inspiração burguesa – num contexto histórico imediatamente posterior à Revolução
de 1789, em que a aristocracia francesa foi deposta do poder. Em virtude desse viés
ideológico foram excluídos da proteção do Direito Comercial, pelo Código de 1908, aqueles
que se dedicavam às atividades ligadas à terra (compra e venda de bens imóveis, produtores
rurais, etc.), em virtude de os bens imóveis serem, em grande parte, de propriedade da
aristocracia. Igualmente ficaram de fora os prestadores de serviço, por serem atividades sem
grande importância econômica à época.
No Brasil, a teoria foi adotada pelo Código Comercial de 1850, que foi regulamentado
pelo Decreto nº 737/1850 e determinava a prática de atos de comércio como critério para
identificação do comerciante. Por essa teoria, tinham proteção, não só aqueles praticavam o
comércio em sentido estrito, de compra e venda de bens móveis e semoventes, como também
as atividades de interesse dos comerciantes: bancária, de seguro, transporte de bens móveis e
semoventes, construção civil, etc. Tal qual na França, não foram contempladas como
comerciais as atividades de prestação de serviços e aquelas ligadas à terra.
A Teoria dos Atos de Comércio, por sua inspiração burguesa, tinha por objetivo a
proteção ao comerciante. O melhor exemplo desta teoria está na antiga lei falimentar
(Decreto-Lei nº 7.661/1945), em que os credores, muitas vezes, tinham que se submeter aos
caprichos do devedor comerciante, sem possibilidade de intervir nos processos de falência e
concordata.
A concordata tinha, com a atual recuperação judicial, a semelhança de buscar “atender
às situações de insolvência potencial iminente, procurando garantir a preservação da atividade
comercial”, nas palavras de Gladston Mamede (2006, p. 64). As semelhanças ficam por aí, na
lição de Mamede (2016, p. 210):
Em fato, a concordata assumia a condição de intervenção estatal nas relações
privadas, que se concluía sem a participação ou anuência necessária dos credores:
era um benefício que o Estado, por meio do Poder Judiciário, concedia àqueles que
preenchessem os requisitos legais, devendo ser acatado pelos credores atingidos.
Na concordata, o devedor tinha o prazo de dois anos para pagamento dos créditos a ela
sujeitos, quitando 40% no primeiro e 60% no segundo ano (arts. 156 e 177). Não raras vezes o
devedor se utilizava desse prazo para “limpar” a empresa, preparando-a para a falência. A
título de ilustração, a professora Maria Bernadete Miranda (2008, p. 2) afirmou “que de cada
dez empresas que pedem concordata, oito acabam na falência e fecham postos de trabalho”.
No processo de falência, então, o prejuízo experimentado pelos credores era ainda
maior: o síndico não tinha, como prevê a lei atual, a possibilidade de vender a empresa em
bloco, como forma de maximizar o ativo do devedor, estando obrigado leiloar o patrimônio
individualmente ou em lotes.
3. A TEORIA DA EMPRESA
“teoria da empresa acabou se desvencilhando das raízes ideológicas fascistas. Por seus
méritos técnicos, sobreviveu à redemocratização da Itália e permanece delimitando o Direito
Comercial daquele país até hoje”.
Com a Teoria da Empresa, alargou-se o conceito de comerciante, com a inclusão da
proteção das atividades econômicas que estavam excluídas, como as de prestação de serviços
e aquelas ligadas à terra. Fala-se, então, em empresário em substituição ao comerciante.
A Teoria da Empresa acabou por se espalhar pelos países de tradição romano-
germânica, chegando ao Brasil em 2002, com a edição do novo Código Civil, apesar de a
doutrina e jurisprudência nacionais já a reconhecerem e aplicarem, antes mesmo da edição do
estatuto civil, até por causa da longa tramitação do projeto (1975). Leis como o Código de
Defesa do Consumidor (1990), a de Locações dos Imóveis Urbanos (1991) e a de Registro de
Empresas (1994), já haviam ampliado o conceito de comerciante, na lição de Fábio Ulhoa
Coelho (2017, p. 16).
Mais que o alargamento do conceito de comerciante para o de empresário, a Teoria da
Empresa trouxe uma nova filosofia ao Direito Comercial (ou Direito Empresarial): da
proteção ao comerciante (enquanto exercente da atividade), passou-se para a proteção à
empresa (enquanto atividade).
Esse processo evolutivo iniciou-se em 1976, com a Lei nº 6.404 (sociedades por
ações), que em seu art. 154, dispõe: “O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o
estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências
do bem público e da função social da empresa”. Por função social da empresa deve-se
entender que a empresa é socialmente necessária porque gera tributos, postos de trabalho e
riqueza. É ela, e não o empresário, quem merece proteção do Direito.
Nossa Constituição, em 1988, igualmente reconheceu a função social da propriedade
com um dos princípios gerais da atividade econômica (art. 170, III).
A nova lei de falências e recuperação de empresas (Lei nº 11.101/2005), por sua vez,
houve por explicar e alargar o conceito de função social de empresas, ao tratar da recuperação
judicial de empresas:
Art. 47: A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação
de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte
A recuperação judicial, em que pese ter com a antiga concordata a semelhança de ter
por objetivo a recuperação da atividade, difere muito no tocante à participação dos credores.
Enquanto a concordata era concedida ao comerciante que cumprisse os requisitos legais, a
recuperação de empresas consubstancia-se em uma negociação entre o empresário devedor e
seus credores, negociação essa que poderá ser dar em juízo (recuperação judicial) ou fora dele
(recuperação extrajudicial). Nesse sentido, está a definição dada pelos professores Alessandro
Sanchez e Alexandre Gialluca (2012, p. 33):
[...] podemos conceituar a recuperação judicial como uma permissão legal que
concede ao devedor empresário ou sociedade empresária a possibilidade de negociar
diretamente com todos os seus credores ou tão somente com parte destes, de acordo
com suas reais possibilidades, ampliando o seu universo de medidas eficazes e
suficientes à satisfação dos créditos negociados, mantendo os direitos dos credores
não incluídos no plano, garantindo o controle do Poder Judiciário e dos credores por
instrumentos próprios, com a finalidade precípua de recuperar e preservar a empresa
viável com a reorganização de seu passivo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme demonstrado, a Teoria dos Atos de Comércio tinha por objeto a proteção ao
comerciante e seus equiparados. Na ocorrência de concordata, os credores acabavam por
sofrer inúmeros prejuízos, uma vez que não tinham qualquer controle sobre as atividades do
devedor que, muitas vezes, se utilizavam do instituto para “esvaziar” a empresa, preparando-a
para a falência. Na falência, então, os prejuízos continuavam, uma vez que não era possível a
venda da empresa, em bloco ou em unidades produtivas.
Com o advento da Teoria da Empresa, mais que o alargamento do conceito de
comerciante para o do empresário, o âmbito de proteção legal foi deslocado da pessoa do
comerciante – a pessoa que exerce o comércio – para a empresa, enquanto atividade. Dessa
forma, na hipótese de falência, deve-se preferir a alienação da empresa em bloco ou de suas
unidades produtivas, como forma de manutenção da atividade empresarial, preservando-se,
assim, a arrecadação de tributos e de postos de trabalho, socialmente necessários.
Os credores também foram beneficiados pela nova lei falimentar, uma vez que são
eles, em última análise, que decidem se concedem – ou não – a recuperação pleiteada pelo
devedor, além de ter voz ativa nas decisões sobre a forma de alienação do ativo do devedor.
REFERÊNCIAS
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial: direito de empresa. 29. ed. São Paulo:
RT, 2017.
Recebido em 08.11.2017
Aceito em 20.12.2017