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Estado do Amazonas e seus Municípios

Contexto do Instituto Federal do Amazonas


Campus São Gabriel da Cachoeira (IFAM –
CSGC) Território Etnoeducacional do rio Negro:
municípios de Barcelos, Santa Izabel e São
Gabriel da Cachoeira

Microrregião do rio Negro


Mapa da Região Norte – microrregião do rio Negro:
Índice de Vulnerabilidade Social (alta e muito alta)
Região de Abrangência de Atuação do IFAM/CSGC
(municípios de Barcelos, Santa Izabel do Rio Negro
e São Gabriel da Cachoeira – Amazonas)
Sustentabilidade
Amazonas - Para entender a Cabeça do Cachorro
No extremo noroeste do País, o município de São Gabriel da Cachoeira zela pela vegetação praticamente intocada
ao mesmo tempo que os povos indígenas lutam contra as mudanças de cultura e comportamento
Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/sustentabilidade/para-entender-a-cabeca-do-cachorro

Acesso: 03 de abr. 2016

por Bruno Huberman e Patricia Blumberg — publicado 31/08/2010 17h10, última modificação 31/08/2010 17h13

No extremo noroeste do País, o município de São Gabriel da Cachoeira zela pela vegetação praticamente intocada ao mesmo tempo que os
povos indígenas lutam contra as mudanças de cultura e comportamento

A Cabeça do Cachorro, região cujo nome é dado exatamente pelo seu contorno no mapa brasileiro, ocupa 200 mil quilômetros quadrados, área
maior do que muitos países europeus. Faz parte do município de São Gabriel da Cachoeira, o terceiro maior do País em extensão territorial.
Constituída à margem esquerda do Rio Negro, está a 1.146 quilômetros de Manaus por via fluvial, distância maior do que São Paulo a Porto
Alegre. Dá um trabalho danado chegar no lugar: apenas de barco, que custa três dias de paciência, e de avião, que custa os olhos da cara.

A região do Alto e Médio Rio Negro é habitada há pelo menos 3 mil anos por um conjunto diversificado de povos indígenas, que falavam
idiomas pertencentes a quatro famílias linguísticas distintas: aruak, maku, tukano e yanomami. Para se ter uma ideia, hoje, a cidade de São
Gabriel da Cachoeira ainda é composta basicamente por índios. 90% da população tem origem indígena, pertencentes a uma das 23 etnias da
região. Número considerável para uma imensa diversidade de idiomas e tradições culturais, tão complexas quanto à grande floresta que os
cerca.

O observador desavisado, que do avião olha para baixo, tem a impressão de um deserto pintado de verde, inóspito, onde habitam apenas
verdadeiras cobras negras, vivas, pulsantes águas do Rio Negro. Ledo engano; embora a densidade populacional seja de 0,25 habitantes por
quilômetro quadrado, nas margens dos rios existem cerca de 720 povoados; desde agrupamentos de duas ou três famílias a comunidades com
mais de trezentos moradores.

O Rio Negro, que drena a área pelo seu curso Alto e Médio, é considerado o maior afluente do Rio Amazonas e forma a maior bacia de água
preta do mundo. Suas águas escuras se encontram como óleo e água, com a cor barrenta do Amazonas, formando uma das mais belas
paisagens fluviais do Brasil.

A baixa concentração de peixes e de animais de caça - devido à acidez da água negra e a precariedade do solo - criam limites rígidos para o
tamanho das comunidades ribeirinhas. Cada família realiza todas as tarefas necessárias à subsistência. A parte mais dura cabe às mulheres,
encarregadas de cuidar das roças, trazer madeira para o fogo, buscar água nos rios e igarapés, preparar farinha, cuidar dos filhos, cozinhar e
lavar, entre outros afazeres. Os homens ajudam na roça, assim como os filhos, e caçam também.

Não é fácil a vida de quem é obrigado a sobreviver da caça e pesca em locais em que os peixes rareiam nas cheias e os animais de caça estão
cada vez mais arredios. A agricultura não é menos trabalhosa, numa terra infértil que, além de mandioca e de meia dúzia de frutas, nada
produz. Uma natureza, na certa, cheia de caprichos: uma floresta exuberante e um solo ingrato para agricultura.

As distâncias descomunais e as dificuldades de navegabilidade encarecem o custo de vida (dica: se você pretende ir para lá, economize antes
de se jogar). É muito mais barato fazer compras no Rio de Janeiro do que na Cabeça do Cachorro. Isso sem falar dos índios que tentam a vida
na cidade. Quando vários indígenas ocupam postos de trabalho remunerado, ou se fazem pequenos comerciantes, suas relações com grandes
comerciantes de São Gabriel da Cachoeira são nitidamente caracterizadas pela patronagem.

Essas são algumas das muitas características em comum entre as 23 etnias que vivem no Alto Rio Negro. Cada uma se diferencia de todas as
outras, ainda que apenas em pequenos detalhes. Mas no que diz respeito aos mitos, à arquitetura tradicional e cultura material, esse contexto
de diversidade ainda converge.

Os povos que habitam as margens dos rios se organizam em “comunidades”, nome dado há décadas pelos missionários. Há cerca de três
gerações os índios não vivem mais em malocas, presente hoje apenas na memória e em poucos povoados.
A comunidade compõe-se, geralmente, de um conjunto de casas com paredes de casca de árvore, pau-a-pique ou tábuas e cobertura de palha
ou zinco, construído em um pátio aberto, uma capela (católica ou, como na maioria das vezes, protestante), uma escolinha e, eventualmente,
posto de saúde. Cada comunidade possui um capitão, não mais pajé, sempre um homem, que tem o papel de reunir o grupo. É um verdadeiro
relações-públicas da aldeia. Não se trata de um chefe ou comandante todo poderoso que dá ordens e aplica punições. Na maioria dos casos
ele apenas orienta.

Por razões ecológicas, sociológicas e simbólicas, vigoram na área especializações artesanais (produção especializada de certos artefatos por
diferentes etnias) que define uma rede de troca. Os tukanos são conhecidos por seus bancos de madeira, os desana e baniwa por seus balaios,
os kubeo pelas suas máscaras funerárias, os maku pelas flautas de pã. Esses artigos carregam símbolos e contém, nas entrelinhas, uma
história de sobrevivência em meio aos avanços da sociedade capitalista.
Leia na CartaCapital dessa semana reportagem sobre o entrevero entre o prefeito de São Gabriel da Cachoeira, Pedro Garcia, e o seu vice,
André Fernando.
Para ler o texto da nossa colunista Marina Barbosa sobre as suas experiências em São Gabriel da Cachoeira, .

Sociedade
Desenvolvimento & Outras histórias

Memórias do Alto Rio Negro


A antropóloga Marina Barbosa relembra sua viagem ao Alto do Rio Negro onde conheceu um município
isolado por matas e rios dos grandes centros que abrigava enorme quantidade de carros. A cidade tinha
apenas 10 ruas
Por Marina Barbosa — publicado 24/08/2010 16h22, última modificação 27/08/2010 14h50
A antropóloga Marina Barbosa relembra sua viagem ao Alto do Rio Negro onde conheceu um município isolado por matas e rios dos
grandes centros que abrigava vários carros. Foto: Bruno Huberman
Vivenciei algo forte e transformador. Difícil expressar em palavras quando a experiência é extrassensorial, corporal, por alterações de
temperaturas e flashes de imagens – um verdadeiro choque que expande a compreensão e o entendimento de algo indescritível. Uma voz
indicava o caminho. Eu era capaz de andar no escuro com a plena certeza de onde estava pisando. Ela dizia: “é isso”, “eu sei” e percebia no
silêncio que aquela comunicação era comigo e com mais ninguém.

Eu olhava para os lados, naquela imensidão amazônica, no meio de uma comunidade indígena, a uma distância de voadeira-balsa-avião-avião
do meu porto seguro, separada pelas grandes nuvens que se transformavam em chuvas fortes e que impediam qualquer movimento de sair
daquela situação extremamente incômoda, de medo do desconhecido.

Quando o barulho ensurdecedor dos trovões anunciou aquela quantidade imensa de água que, em poucos segundos, despencaria naquela
tapera de palafita sem paredes, me vi pela primeira vez diante da impossibilidade do ser humano de controlar a natureza, ainda que
continuemos a acreditar nesta possibilidade, criando continuamente tecnologias e instrumentos de controle. Esse foi o anúncio da grande
aventura em que tinha me colocado, um passo que não teria mais volta.

Fui de avião da FAB (Força Aérea Brasileira) para as comunidades indígenas do Alto Rio Negro, acompanhar o trabalho de uma ONG, mais
especificamente às comunidades de Taraquá e Camanaus - compostas pelas etnias Tukano, Desana, Pira-Tapuia e Tariana -, localizadas na
região conhecida como a cabeça do cachorro, estado do Amazonas, terras que fazem fronteira com a Colômbia e a Venezuela. O município de
São Gabriel da Cachoeira possui 39 mil habitantes e a maior concentração de população indígena do Brasil. 90% dos habitantes da cidade vêm
de grupos étnicos que conhecia apenas pela visão parcial e idílica, escrita por meus semelhantes nos livros de história. Somente depois fui
saber: o que chamamos de índios, na verdade, hoje, no Brasil, são 225 povos totalmente diferentes entre si, com 180 línguas, compostos por
600 mil pessoas aproximadamente, sendo que, na época da conquista do território, viviam no país entre 4,5 a 5 milhões de pessoas.

Na primeira noite, na base do exército, em São Gabriel da Cachoeira, fomos ao “baile de meninas e meninos” no Pop star, onde dançamos
brega com índios aculturados, colombianos, venezuelanos, peruanos, antropólogos e militares, todos convivendo dentro do mesmo espaço. Um
verdadeiro caldo cultural. O Brasil real. A terra sem lei. A dança do brega, pouco conhecida por nossas bandas paulistanas, é imensamente
difundida pela região amazônica, inclusive nas comunidades indígenas daquela região. Todos se aboletavam pelo pequeno espaço, sem
distinção de grupos, raças, etnias ou preferências sexuais.

Para mim, naquele lugar remoto, para minhas referências, foi o primeiro “choque de realidade”. Os índios, objetos da minha ignorância,
construídos em minha memória a partir da memória coletiva absorvida nos livros escolares – os selvagens que viviam em harmonia com a
natureza -, dançando, no meio daquela fumaça? Como podiam eles desejar o carro, o tênis, o relógio das propagandas, bebendo, cantando e
dançando como os brancos? E como um município isolado por matas e rios dos grandes centros, podia abrigar aquela quantidade enorme de
carros, sendo que a cidade em si tinha apenas 10 ruas? Havia muitos “caciques” de tribos desconhecidas, submersas em uma realidade com a
qual nos familiarizamos nas leituras dos jornais (tráfico de drogas, invasões de terras, problemas de fronteira, garimpo, contrabando etc.),
coexistindo no mesmo lugar. O silêncio do que de fato acontece naquela região paira no ar. Tudo está à vista, mas nada se verbaliza. O silêncio
é proteção.

As experiências são a essência da vida, o que nos redimensiona e nos traz a sabedoria. Para quem vivia dentro do mesmo ambiente durante
várias horas do dia, fazendo sempre a mesma coisa, os dias na Amazônia foram a expansão da mente e do coração. Estava mais disponível ao
novo, ao diferente.

O convívio com as comunidades indígenas do Alto Rio Negro foi um marco de mudança de minhas perspectivas. Fomos recebidos com apreço,
com certa expectativa, olhares curiosos que atentavam sempre para o que não damos valor - um saco de bolacha, uma peça de roupa –
somados por abraços calorosos de quem esperou tanto por aquele momento. Momento de conviver, de trocar, de coexistir.

Entrei em outro tempo, um tempo sem tempo, era uma observadora experimental, sem um “propósito” específico de estar ali, sem um plano
para a semana seguinte, sem saber para onde ia e quando voltava, rodeada pela densidade da natureza, pelo ar úmido e quente, por pessoas
desconhecidas de uma cultura sobre a qual não tinha nenhuma informação. Estava perceptiva, tendo como única bússola para minhas ações
os meus sentimentos.

Saía pela comunidade observando, fotografando, registrando o que sentia, escrevendo poemas, me comunicando com os indígenas pelo olhar,
às vezes sem dizer uma palavra. Foi-me permitido pelo chefe da comunidade realizar as fotografias, mas os olhares de consentimento foram os
mais significativos. Como se abrissem o universo de suas vidas, de suas almas, para que entrasse para conhecê-los, com respeito e admiração.
Eu sentia o amor de seu coração, a pureza das crianças, a beleza, alegria, o medo, e com cada um estabelecia uma relação totalmente distinta.

Neste movimento, minhas crenças se foram por terra e eu comecei a me dar conta de que somos partes integrantes da natureza e nossas
relações com o outro são essencialmente como é a relação entre seus elementos (terra, vento, chuva, sol, plantas, animais etc).

O mais interessante é que na cultura indígena tradicional, tudo que ainda está preservado segue essencialmente esta dinâmica. O
conhecimento e profundo respeito e adequação às suas leis são expressas na maneira de se organizarem em comunidade: o intercâmbio e
rituais entre comunidades, a divisão de trabalho entre homens e mulheres, a valorização do funcionamento em unidade (“a união faz a força”,
dizia o chefe da tribo de “Camanaus”).

Rememorar todo este trajeto tem a finalidade fundamental de promover a reflexão sobre a importância da memória no resgate de valores e do
sentido fundamental da vida, de seus aspectos mobilizadores, necessários para a requalificação das relações humanas.

Até hoje a lembrança da experiência de convívio com os habitantes das comunidades do Alto Rio Negro se eterniza em minha memória.
Pessoas que, envoltas na simplicidade e pureza dos sentimentos, me ensinaram a resgatar o amor pela natureza e a reconhecer os valores
fundamentais que hoje servem de referência para a vida.

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