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FLASHES AUTOBIOGRAFIA go: mais imparcialmente que suponha estar contando a sua vida, 0 \guém, para af déncia natural, porém, de cada um, € apresentar de sua propria vida Bar mor nao teve correspondéncia, a ambigao foi quebrada, o ot fetido © a esperanga mentiu? A nossa vida profunda se passa sempre fora ° :ontece, Entretanto, em fatos que parecem obra do acaso \mar para “sair melhor". O que aeaian sto tragos biograficos, mas 10 esses tragos se agrupam involuntariamente segundo uma imagem 36 FLASHES - AUTOBIOGRAFIA ideal, Narrar a propria vida, desde as fontes poéticas da infancia é, no funda, inculcar narcisicamente um destino que se quer fazer passar por grandioso, ot mostrar as razbes por que nao se alcangou tal destino. Uma narrativa dessa natureza € sempre uma evocacao, € evocagiio € ato pottico, a luz do qual a realidade historica se funde ¢ transfigura. Os cpis6dios secretos so quase sempre 0s mais ricos de significaco, € uma vitoria naval ‘em pleno oceano pode ser menos importante para o seu her6i do que um simples encontro com uma mulher numa esquina, Por tudo se vé que € objetivamente precéia a informagio de uma autobiografia, a no ser que esta se limite a registrar 0 essencial, sob o ponto de vista externo, da vida de um grande homem. Mas isso € com os grandes homens, no € comigo. E € como esboco de biografia de um homem qualquer que vou extrair do passado alguns dados de que nunca me lembro voluntariamente, mas que entram na combinagio moral ¢ afetiva do meu ser. Devo dizer que o passado nunca me invade inteira~ ‘mente; fica sempre uma larga margem em mim para 0 espirito livre, o que procura formas novas, o que afirma o presente e no nos deixa morrer, Foi nas 4guas de um rio histGrico, o Rio das Velhas, em Sabar, que as lavadeiras nos tiltimos anos do século passado atiraram o meu umbigo (para que dizer a data?). Esse rio de 4guas turvas até hoje ainda passa em ‘mim. Quando abri mais os olhos € comecei.a distinguir as coisas, divisei da ‘varanda da chiicara onde nasci, no alto de uma colina, as torres de uma porgio de igrejas da velha cidade colonial. Se 0 vento era favordvel, de lé me chegavam, também, sons de sinos. Nessa varanda contraf certo habito de contemplagio. Vi passar as barcas de meu pai (o Rio das Velhas entio dava calado), vi passar as velhas carolas, vi chegar a cavalo o médico da ‘cidade chamado para debelar a minha febre ou para ajudar o nascimento de mais um irm&o. Meu pai viajava sempre e, quando chegava, minha mae © recebia debaixo dos bambuais, de vestido novo, palida de emogio. Nos esperiivamos que os beljos acabassem para receber os presentes. Por causa do amor que os uniu até a velhice, custei a compreender que houvesse tantos casais desunidos. A minha primeira viagem foi a Congonhas do ‘Campo onde moraram os meus avés maternos. O pretexto era assistir& festa do Divino, em que minha av6 preta ia ser coroada a rainha. Nio fazia entao a menor idéia do Aleijadinho, mas ainda me lembro do pavor que ‘experimentou a crianga de cinco anos, que era eu, a0 passar debaixo de ‘seus profetas no adro da matriz. Minha tia carregava-me, 2s vezes, para 0 Rio. Da Praga Duque de Caxiase imediagdes do Largo do Machado ficaram- me varios fragmentos da infaincia, Eu sabia que entrando-se pela rua do FLASHES - AUTOBIOGRAFIA 37 Catete se perdia numa cidade imensa, Mas o meu desejo era voltar para as ‘montanhas de Minas, para a chacara as margens do Rio das Velhas. Da contemplagio deste tio, passei A sensagio fisica de suas aguas. E ~ antes dos dez anos, comboiado por um preto, filho ou neto de um dos escravos de meu bisav6, atravessei pela veza nado. £ facil supor que nao dormi aquela noite, tamanha a minha emogao. Fora a minha primeira vit6ria contra a natureza. Enormes arvores cercavam a nossa casa. Até a adolescéncia, passava muitas horas do dia, ou noalto delas, ou dentro das aguas. Nenhuma leitura. Havia muita coisa que descobrir fora dos livros, no mundo que nos cercava. Pastos, dobras de serra, grotas, c6rregos, rvores, lagoas e tudo o que vive, canta e se procria neles eram outras tantas descobertas a fazer. Todo este universo nunca era ‘© mesmo, conforme houvesse sombra ou sol, chuva ou vento. O medo das cobras era menor que o dos ladrBese assombragSes, personagens do terror noturno. Com o cascalho das antigas mineragbes, faziamos casas que se convertiam logo em fortalezas (era o tempo da guerra russo-japonesa). Parévamos a boca dos formigueiros para acompanhar a atividade das formigas. As pescarias noite pareciam aventura inverossimil, porque nos Jevam para junto dos elementos mais misteriosos como o gluglu das Aguas, parecendo fragmentos de frases, a escuridao € a vida enigmatica dos peixes. Quando os comboios que vinham do Rio de Janeiro passavam na ‘margem oposta, j4 nos encontravam dentro d’4gua, ao sol, fazendo gestos para os passageiros. Minha mie nos prendia sempre que de binéculo verificava a obscenidade deles. Tudo isso € comum a infancia em geral, mas faz parte da mitologia intima de cada um. Bramos livres, eo mundo era enorme, Certa vez fora jantar em nossa casa uma menina de quatore anos. Tao bestificado fiquei diante de sua beleza que perdi o caminho da boca e ja ia levando o garfo na diregio dos olhos, quando a gargalhada de todos me interrompeu cruelmente, ¢ eu me retirei da mesa para chorar. Foia minha primeira agonia diante de outra forga, da natureza. A adolescéncia havia chegado. Daf por diante comecei a freqiientar 0 rio, menos por ele do que pelas lavadeiras que batiam roupa as suas margens. Imagem de mogas, de criadinhas primas jé me circulavam pelo sonho. Coisa curiosa, sempre misturada &s 4guas do rio, dos tanques ou das lagoas. Da pagina de uma antologia lida na hora da ligao, saltou a primeira mulher toda rescendente: “Iracema, a virgem dos labios de mel, tinha os cabelos mais negros do que a asa da gratina e os olhos mais doces...", ete. Eu partia para o banho na certeza de encontrar Iracema, Jé era tempo de disciplinar essa alegria livre, tocada, as vezes, de inexplicaveis melancolias. Era preciso

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