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PROF. DR.

ANDRÉ THOMASHAUSEN
UNIVERSITY OF SOUTH AFRICA
I N ST I T UT E O F F O R E I G N & C O M PAR AT I V E L AW

A DI G N I DA D E DA
P E S S OA H U MA N A

APONTAMENTOS CONSTITUCIONAIS

Assembleia da República
Luanda, Angola
27 de maio 1999
THOM ASH AUSEN - DI GNI DADE D A PESS OA HUM A NA PÁGI N A 1

D IG NI DAD E DA P ES SOA HU MA NA :
A P O N TA M E N T O S C O N S T I T U C I O N A I S

RESUME:

O PRINCIPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO DIREITO CONSTITUCIONAL

A ORDEM DE VALORES

O DESAFIO DA CIVILIZAÇÃO AFRICANA DO SÉCULO 21

I . O P R I NCI P IO D A D I GNI D A DE D A P ES S O A HUM A NA NO D I RE I TO


C O NS T IT U CI O NA L

Numa recente conferência sobre o Estado de Direito e Princípios da Democracia tida


em Berlim, na Alemanha, para celebrar o aniversário de 50 anos da constituição alemã,
conhecida como o Grundgesetz, as questões dos valores constitucionais ocuparam um
relevo especial. E quem fala dos valores fundamentais na constituição fala do direito
da dignidade da pessoa humana. Na minha intervenção nessa conferência sobre
exactamente esses conceitos na nova constituição da África do Sul, senti-me
especialmente privilegiado, e foi para min uma altura de grande orgulho. Porquê?
Simplesmente porque pela primeira vez um pais Africano tinha sido convidado para
contribuir a nível de igualdade numa das mais prestigiosas congregações do mundo,
dedicada exclusivamente ao número ainda bastante restrito de países governados na
base duma constituição material e que alcançaram o Estado de Direito, e a
implementação do direito da dignidade da pessoa humana.

O inviolabilidade da dignidade da pessoa humana é hoje o principio fundamental que


distingue as constituições. O Artigo 1 da Constituição Alemã dispõe:

(1) Die Würde des Menschen ist unantastbar. (1) A dignidade humana é inviolável. É o dever
Sie zu achten und zu schützen ist Verpflichtung de todas as autoridades do estado respeitar e
aller staatlichen Gewalt. salvaguarda-la.

O artigo 1 da constituição da Africa do Sul dispõe:

(1) The Republic of South Africa is one (1) A África do Sul é um estado democrático
sovereign democratic state founded on the soberano baseado nos seguintes valores:
following values:
(a) a dignidade da pessoa humana, a realização
(a) Human dignity, the achievement of da igualdade e a promoção dos direitos e das
equality and the advancement of human liberdades humanas.
rights and freedoms.
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Na constituição de Angola em vigor , no artigo 2 está previsto:

A República de Angola é um estado democrático de direito que tem como fundamentos


a unidade nacional, a dignidade da pessoa humana, o pluralismo de expressão e de
organização política e o respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais do
homem, quer como indivíduo, quer como membro de grupos sociais organizados.

E na proposta duma nova constituição pela parte do partido MPLA, a referência à


dignidade humana encontra-se duas vezes, no artigos 1 e 2:

Angola é uma República soberana e independente baseada na dignidade da pessoa


humana e na vontade do povo angolano que tem como objectivo fundamental a
construção de uma sociedade livre, democrática e solidária, de paz, justiça, igualdade
e progresso social.

E:

(1) A República de Angola defende os direitos e liberdades fundamentais do homem,


quer como indivíduo, quer como membro de grupos sociais organizados e assegura
o respeito e a garantia da sua efectivação pelos poderes legislativo, executivo e
judicial, seus órgãos e instituições, bem como todas as pessoas singulares ou
colectivas.

Quais as razões que levam à proclamação da inviolabilidade do direito a dignidade da


pessoa humana, na Alemanha em 1949, e na África do Sul, ambos na constituição
transitória de 1994 e depois na constituição final de 1996. A dignidade humana é um
conceito filosófico, e a lei e os juristas normalmente insistem que tudo seja exacto,
capaz de ser medido, contado, transferível ou registado, antes de que possa ser
exigido em tribunal.

A decisão de dar ao direito constitucional um dimensão que na altura, em 1949, era


completamente nova e revolucionária, coma a referência da dignidade humana na
constituição da Alemanha, fora tomada deliberadamente, tal como aconteceu 4
décadas mais tarde, de novo na África do Sul. Em 1949, a Alemanha tinha sido apenas
ressuscitada da época mais escura de crimes contra a humanidade, dos horrores do
holocausto, e duma guerra que custara a vida a mais de 40 milhões de homens e
mulheres pelo mundo fora. E quatro décadas depois, a Africa do Sul se tinha
finalmente libertada dum dos sistemas de opressão e da injustiça mais teimosos dos
nossos tempos, o apartheid onde o poder política e o governo se baseavam no
privilégio definido por referência à raça, provocando assim a degradação do inteiro
sistema jurídico.

O que ambas estas experiências tiveram em comum, e além dos horrores da violência,
das torturas, da morte e da destruição, foi a perca do respeito pela qualidade especial
da nossa existência como seres humanos, aquilo que nos distingue dos animais e
outras formas de vida neste planeta, em soma a nossa condição humana. E penso que
o sofrimento dos milhões de Angolanos, desde a primeira exclamação de vida no
momento de nascer, até ao último suspiro, que por tantas vezes se segue só poucos
anos de dor e sofrimentos depois do nascimento, tem uma dimensão semelhante ao
horror das vítimas na Europa do holocausto, bem como das vitimas da degradação
racista na África do Sul. A grande e trágica diferença, porem, é que a Alemanha e
agora a África do Sul puderam afirmar a dignidade humana como principio chave do
desafio à escuridão e ao mal, depois de se terem libertado deles, enquanto que hoje e
aqui nesta sala dos representantes do povo, falamos deste principio, mas sabemos que
não existe respeito por ele, e não prevalece nem sequer minimamente fora desta sala,
e na realidade do povo mesmo aqui à nossa volta.
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I I . A O RD E M D E VA LO R E S

Alem da sua colocação no inicio do texto, a dignidade humana recebeu também


sistematicamente um especial relevo nas constituições da Alemanha e da Africa do Sul.
Trata-se duma técnica no direito constitucional bastante curiosa, que é a distinção ou
mesmo discriminação entre dispostos constitucionais através das provisões sobre a
revisão constitucional. No caso da Alemanha, o artigo 79 (3) prevê que o artigo 1 da
constituição, onde se encontra consagração da dignidade humana, não pode ser
alterado por revisão constitucional. E o artigo 74(1) da constituição da África do Sul
dispõe que o artigo 1, igualmente portador do direito da dignidade da pessoa humana,
só pode ser alterado em revisão constitucional mediante voto em favor de 75% dos
deputados da Assembleia, e o voto concorrente dos representantes de seis das dez
assembleias legislativas de Província na África do Sul.

Para a interpretação e implementação das constituições isto tem como efeito que os
juristas são obrigados a reconhecer uma ordem dos valores expressos na constituição,
sendo lógico que os direitos e princípios mais difíceis a alterar pelo legislador, ou
mesmo salvaguardados por completo contra qualquer emenda, são também os direitos
e princípios constitucionais de maior relevo, e de maior importância que os outros.
Estamos assim no ditado essencial da doutrina da ordem dos valores, da
Wertordnungslehre. Transforma a aplicação desta doutrina a natureza organisatória e
formal da constituição num ordenamento substantivo de grande força, que se estende
facilmente a todos os níveis da aplicação da lei e do direito num estado.

Significa, por exemplo que a liberdade de expressão não pode ser interpretada de
maneira a permitir publicações ou outros pronunciamentos públicos altamente
ofensivos à dignidade da pessoa humana. Assim num famoso julgamento do Tribunal
Constitucional da Alemanha recusou-se a protecção do direito da liberdade de
expressão a um autor e publicista que tinha persistido em negar o holocausto,
alegando que era verdade que pelo menos seis milhões de alemães de origem judaica
tinham sido assassinados pelos nazis, mas que simplesmente teriam morrido de fome
e doenças, tal como muitos outros naquelas circunstâncias. O Tribunal Constitucional
raciocinou que a discriminação entre pessoas judaicas e pessoas que eram judeus, era
um facto inegável, tal como era a proibição por lei, por exemplo do casamento entre
um judeu e quem não era judeu, bem como a proibição de comprar coisas numa loja
dum judeu, bem como internamento de milhões de judeus, e não de outros, não-
judeus, nos campos de concentração, onde praticamente ninguém sobrevivia. Segundo
o Tribunal, esses factos inegáveis criaram um relacionamento tragicamente especial
entre judeus e alemãs para todos os tempos. Negar esses factos seria fazer pouca das
vítimas, num atentado terrível à dignidade de qualquer pessoa judaica, como membro
do povo judeu. Essa dignidade tem valor superior na constituição, que se impõe as
outras liberdades e direitos, limitando e condicionando os (BVerfGE 90, 240; BGHZ
75,162).

O paralelo para a África do Sul é facilmente reconhecido, e não me surpreenderia se


num pouco distante futuro o Tribunal Constitucional da África do Sul venha a recusar,
de maneira semelhante, a protecção constitucional do direito da liberdade de opinião
às afirmações ofensivas dos ex-dirigentes e arquitectos do racismo de que esse nunca
teria feito mal a ninguém.
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I I I . O D E S A FI O D A C I VI LI Z A Ç ÃO A FR IC A NA DO S É C UL O 21

O conteúdo do principio de fundo do direito à dignidade da pessoa humana pode ser


resumido com bastanta simplicidade: respeitar o próximo, e não lhe fazer mal que não
queria que seja feito a si mesmo. Ou, em termos da filosofia oriental: reconhecermo-
nos no olhar do outro. Porem, esta escolha filosófica, nas sua dimensão existencial, é
mais complexa. Dita uma maneira de viver, uma maneira de ver as coisas. Dignidade
humana exige de nós uma vida no respeito pela justiça e no amor pelo próximo,
aceitando que cada um de nós foi criado na imagem de Deus (Gen. 1, 27), investido
de capacidade de decisão livre, e por isso possuidor de responsabilidade e
culpabilidade original. E é por isso que a dignidade humana é também inalienável.
Não se pode transferi-la, abdica-la, condiciona-la, o fazer dela o mero objecto da
política ou dos desejos de momento daqueles que possuem de mais poder que os
outros.

A dignidade humana pressupõe a igualdade. Todos, incluindo os nossos piores


inimigos, e o pior criminoso, temos direito igual à dignidade da pessoa humana. Não é
fácil fazer prevalecer este dimensão do direito da dignidade da pessoa humana no dia
à dia. Todos conhecemos a tentação da arrogância moral, daquele sentimento por
vezes mesmo fortes de que somos nós que temos razão, e que o outro está errado, e
que por isso estamos justificados, e temos direito de desconfiar nele, de o condenar, e
possivelmente até utilizar a força da arma contra ele para o humilhar e destruir.

Não nego que há, objectivamente justiça e injustiça, razão e a falta dela. Porem, a
nossa inocência na imposição da justiça e da razão dependem da nossa capacidade de
sempre respeitar, e fazer respeitar a dignidade humana, mesmo no caso daqueles que
a ofendem da pior forma. Só podemos reclamar e ter como nossa a dignidade humana
na medida em que estamos preparados a concedê-lo ao outro.

A realização material da dignidade na realidade da vida dos povos neste continente


Africano será a base da construção duma nova Civilização Africana. Civilização esta à
qual o Presidente Thabo Mbeki da Africa do Sul se tem referido como a Renascença
Africana. A falha dos povos Africanos, até à data de hoje, de realizar a dignidade da
pessoa humana nos países deste continente, tem sido a verdadeira causa da fraqueza
deste continente nos assuntos do mundo, e da insegurança e fragilidade dos seus
governos. Viver daqui para o futuro uma cultura da dignidade humana é o desafio do
próximo século 21, tal como a libertação dos povos Africanos da colonização e da
exploração capitalista primária, têm sido o desafio da humanidade neste século 20. E
ganharemos, tal como ganhamos o desafio da opressão colonialista.

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