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Resenha 'O existencialismo é um humanismo" Jean-Paul

Sartre

Apresentaremos aqui uma resenha de tipo descritiva do texto “O existencialismo é


um humanismo” do filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980); conferência
proferida no ano de 1946 onde o pensador visa esclarecer uma série de pontos a
respeito da sua filosofia, o existencialismo (o existencialismo de Sartre, como
veremos, caracteriza-se por ser ateu e por, ao contrário do que pensa o senso
comum, uma humanismo e um otimismo). Os esforços de Sartre em esclarecer sua
filosofia foram essenciais para que ela não se dissipasse (PENHA, 1987, p. 55).
Faremos uma apresentação sucinta das preocupações de Sartre e então faremos
uma panorama bastante geral que costura as principais ideias do texto, a saber, a
tese central do existencialismo, de que a existência precede a essência (faremos
menção à distinção 'ser em-si' e 'ser para-si', atrelada à tese que consideramos
central), a liberdade, a questão de Deus e a má-fé.

Sartre abre o seu texto tratando de algumas críticas feitas a sua doutrina, em
especial aquelas dirigidas por marxistas (o existencialismo seria uma filosofia que
prega a contemplação, luxo burguês) e por católicos (o existencialismo passa uma
imagem negativa do ser humano [“esquecemos o sorriso da criança”] e por
transformar a moral num reino de relatividade radical, por tirar Deus de cena). Sarte
nos adianta que, ao contrário do que pensam, o existencialismo se caracterizará
tanto por um humanismo, no sentido de que há uma construção da subjetividade
humana (SARTRE, 1987, p. 3) como por um otimismo, uma doutrina da ação
(SARTRE, 1987, p. 4). Sartre também rechaça a vulgarização do vocábulo.

Então, diferencia entre duas escolas existencialistas: o existencialismo cristão, onde


alinha Jaspers e Marcel e o ateu, onde coloca Heidegger e ele próprio como
representantes. Muito embora, Sartre aponte, paradoxalmente, que o
existencialismo não está preocupado em fornecer uma prova da inexistência de
Deus e que a existência ou não dele é indiferente para todo seu sistema, seja no
plano ontológico seja no plano moral. Ademais disso, tanto Marcel quanto Heidegger
objetaram o alinhamento em que Sartre os colocou (PENHA, 1987, p. 69n).

Após esse intróito, Sartre apresenta sua célebre tese de que “a existência precede a
essência” (SARTRE, 1987, p. 5). Essa tese, acreditamos, nada mais é que um reforço
das ideias apresentadas em sua obra clássica, O ser o e nada de 1943, três anos
antes de nosso opúsculo. Nessa obra, Sartre diz que o que diferencia os seres
humanos dos outros seres é a consciência. Não trazemos nada impresso em nossa
consciência quando nascemosi, ela é um vazio; nossa consciência é impressionada
pelos fenômenos externos a partir do momento que viemos à existência. O conteúdo
da consciência é formado pelo que ela percebe e que provém da natureza. É essa
consciência que dá sentido aos objetos que ocupam a natureza, consciência envolve
intenção, toda consciência é consciência de alguma coisa. Dessa fenomenologia
emerge uma distinção, já presente em Hegel: entre ser para-si, no caso, o homem,
aquele que percebe que percebe e utilizada essa capacidade para dizer o que é e o
que fará e entre ser para-si, que apenas são percebidos mas não se percebem e
não são dotados de autonomia.

Toda essa fundamentação teórica subjaz o que Sarte está dizendo em O


existencialismo é um humanismo, não temos natureza humana, não somos
determinados por nada, existimos por nós mesmos, construímos a nós mesmos, daí
o humanismo do existencialismo, a doutrina preconiza uma construção de si
mesmo: “O homem nada mais é do que aquilo que ele faz a si mesmo: é esse o primeiro
princípio do existencialismo” (SARTRE, 1987, p. 6). Uma coisa é claramente consequência
da outra, na medida em que não há natureza que nos determine, só nos resta a nós mesmos,
após sermos impactados pelos fenômenos do mundo, nos constituirmos enquanto seres que
existem, pode-se dizer que não nascemos com uma alma, mas que a adquirimos com o passar
do tempo.

Ser herói ou covarde, é um escolha de cada um, deixar de sê-lo também: “o existencialismo
afirma é que o covarde se faz covarde que o herói se faz herói; existe sempre, para o covarde,
uma possibilidade de não mais ser covarde, e, para o herói, de deixar de o ser (Sartre, 1987, p.
14)”. Eis o otimismo do existencialismo, não se trata de ser um fracassado e resignar-se com
isso ou aceitar passivamente, pois cabe a cada um mudar sua condiçãoii, na medida em que
não há natureza que nos determine.

Daí claramente decorre o outro ponto de destaque que apontamos, que é a questão da
liberdade, outra marca do pensamento existencialista. Se “a existência precede a essência,
nada poderá jamais ser explicado por referência a uma natureza humana dada e definitiva, ou
seja, não existe determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade (SARTRE, 1987, p. 9),
o homem está “condenado” a ser livre. Disso depreendemos alguns outros pontos:
a angústiapela qual o homem passa no existencialismo, por estar incondicionalmente livre,
por ser o único responsável pelos seus atos, que não são seus em sentido egoísta, mas são de
todos, os atos de todos os homens (SARTRE, 1987, p. 6), o homem carrega o peso e a
preocupação que acompanham sua liberdade extrema e também o “imperativo categórico”
sartreano, nessa esteira, reforçando o porquê do existencialismo ser um humanismo:
“Humanismo, porque recordamos ao homem que não existe outro legislador a não ser ele
próprio” (SARTRE, 1987, p. 21).

Assim, a doutrina existencialista rompe com a tradição essencialista que submete o ente à sua
essência ao dizer que o ente não só não se submete à sua essência como a constrói. Nesse
contexto, como o existencialismo pensa a liberdade?

Também há um rompimento com a tradição, não se trata de identificá-la a livre-arbítrio, a


escolha entre alternativas possíveis, não é apenas optar entre variáveis. Mas, como
ressaltamos no ponto da angústia, a liberdade para Sartre é a escolha livre mais
a responsabilidade plena pelos próprios atos. Disso destacamos também, que a concepção
sartreana não autoriza um “tudo pode” anárquico ou egoísta, na medida em que o
engajamento é estabelecido, não considero apenas a minha liberdade, mas a de todos os outros
na sociedade em que convivo, a escolha que faço não é minha, mas universal. Impossível não
retornarmos a um paralelo entre a posição de Sartre e o imperativo categórico de Kant:
Sem dúvida, a liberdade enquanto definição do homem, não depende de outrem, mas, logo
que existe um engajamento, sou forçado a querer, simultaneamente, a minha liberdade e a dos
outros, não posso ter objetivo a minha liberdade a não ser que meu objetivo seja também a
liberdade dos outros (SARTRE, 1987, p. 19).

Por fim, não podemos deixar de tratar com mais vagar, num panorama deste importante texto
de Sartre, de outros dois pontos: a noção de má-fé e um maior aclaramento sobre o papel
reservado a Deus no existencialismo.

A má-fé, tal como pensada e exposta por Sartre, pode ser renomeada, no meu entender, como
auto-engano. Primeiro porque diz respeito a uma relação de cada um consigo mesmo, depois,
porque trata de uma mentira contada para si mesmo, como se fosse possível mentir para a
própria consciência, trata-se de uma tentativa de escapismo do peso imposto pela
responsabilidade pelos atos. Seria, portanto, um momento pós-angústia. A má-fé é um
empecilho para o engajamento (Cf. SARTRE, 1987, p. 19). A má-fé corrompe a liberdade que
nos caracteriza, impinge em nós um falso determinismo, sendo atravanco para a adoção da
cosmovisão existencialista.

Por fim, no que diz respeito a Deus, como dissemos, Sartre ressalta que a existência ou não de
Deus é indiferente ao seu sistema (muito embora isso seja difícil de se aceitar, pois,
especialmente no plano da moral, a existência ou não de Deus faz toda a diferença), o que
leva Sartre e enfatizar que o existencialismo não é um ateísmo,

(...) no sentido em que se esforçaria por demonstrar que Deus não existe. Ele declara, mais
exatamente: mesmo que Deus existisse, nada mudaria, eis nosso ponto de vista. Não que
acreditamos que Deus exista, mas pensamos que o problema não é de sua existência, é preciso
que o homem se reencontre e se convença de que nada pode salvá-lo dele próprio, nem
mesmo uma prova válida da existência de Deus (Sartre, 1987, p. 22).

A não-existência de Deus decorre também do fato de não haver natureza humana, não há
natureza humana na medida em que não há Deus que a criou, também do fato de sermos
livres, não podemos reportar nossas ações a nenhuma entidade sobrenatural, ela não existe;
apenas nós somos responsáveis e causadores das nossas ações.

O ateísmo existencialista apenas reforça o que fora mostrado previamente aqui, na medida em
que não existem valores transcendentais e absolutos a serem seguidos e que a vida é
gratuidade, só nos restariam duas opções: o desespero suicida ou um humanismo
terrenamente fundamentado, Sartre enverada pela segunda via, não trata-se de resignar-se ou
adotar uma postura pessimista, mas de reconhecer sim, a solidão do homem enquanto ser
consciente e livre e arcar com as responsabilidades decorrentes disso.

Referências bibliográficas

PENHA, José da. O que é existencialismo. São Paulo: Brasiliense, 1987.


SARTRE. Jean Paul. O existencialismo é um humanismo. Seleção de textos de José Américo
Motta Pessanha. Tradução de Rita Correira Guedes, Luiz Roberto Salinas Forte, Bento Prado
Júnior. 3ª Ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

i Em outro jargão (ainda filosófico): não possuímos natureza humana, somos, como
queria Locke, tábula rasa.
ii Destacamos daí o contraste dentro da obra do própria Sartre, se a altura de A
náusea (1938) Sartre era uma representação fidedigna da imobilidade, conformismo
e pessimismo da personagem Antoine de Roquentin, se tornou, posteriormente o
filósofo do engajamento (a participação na Resistência Francesa, a rejeição do
Nobel de Literatura e toda a militância esquerdista).
 

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