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A TERAPIA OCUPACIONAL EM RELAGAO A PRODUGAO DE CONHECIMENTO Maria Heloisa da Rocha Medeiros Professora Adjunta do Departamento de Terapeuta Ocupacional da UFSCar, Mestre em Filosofia da Educaco pela PUCCAMP, Doutora ém Satide Mental pela UNICAMP, Terapeuta Ocupacional Resumo: Trata-se de uma discusso sobre a sempre atual preocupagao com 0 conhecimento e com as fundamentagSes cientificas da Terapia Ocupacional. Aborda-se os diferentes debates surgidos a respeito da fungdo social deste profissional a luz de diferentes paradigmas e questiona-se a busca da unicidade ou universalidade da profissao. Palavras-chave: epistemologia, terapia ocupacional, paradigmas, fungao social da profissao INTRODUCAO ‘Varias vezes temos sido chamadas a refletir e debater sobre este tema, quer em Congressos, ‘Simpésios ou em outros Encontros da categoria. Por que nos propomos esta questio? eno gue é porque queremos deixar de ser apenas meros aplicadores de técnicas, exercicios, atividades, ‘que queremos ser mais que do isso: alcangar maior status ou participar de um outro "clube", o dos cientistas e dos pensadores. Mas serd que € s6 isso? Acredito que, para muitos de n6s, 0 grande interesse pela fundamentagdo teGrica de Terapia Ocupacional vem desde © momento em que ouvimos aguela pergunta fatal: “afinal, o que € Terapia cupacional? Vocé faz Terapia Ocupacional? Mas 0 que €T. 0.2" Foi essa mesma pergunta que me fez buscar entender ¢, ao mesmo tempo, querer participar da construgio dessa profissio, * Texto baseado na Conferéncia proferida n0 V Simpésio Latinoamericano de Terapia Ocupacional ¢ V Congresso Argentino de ‘Terapia Ocupacional, La Rioja, Argentina, Setembro de 1999 Cad. Ter. Ocup. UFSCar, 2000, V.8, n.1 a + Reconhecendo o territério Buscar os fundamentos da Terapia Ocupacional, na verdade, é buscar conhecer 0 terreno em que estamos pisando, e antever que diregées essa profissdo, chamada Terapia Ocupacional, esti nos propondo. Séo questdes que nos colocamos para evitarmos cair em alguma ‘cilada", ou nos sentir "um peixe fora da gua". Dito de otra maneira, so questées que nos orientam no srocesso de uma escolha consciente e critica do nosso Jesempenho profissional. No entanto, ao examinarmos as. trajet6rias lelineadas © percorridas por esta profissio podemos ereeber que 0 seu trajeto tem sido diverso, ontradit6rio © até mesmo antagonico, e que a sua onstitigfo teve origens & motivagées distintas nos iferemtes paises onde ela se faz presente. Do mesmo modo, a0 analisarmos historicamente préprio conceito de Satide podemos observar que ele smbém se altera de tempos em tempos, em fungio de ana Iégica social , com isso, também se alteram os “essupostos € as priticas das profissées da Satide. Ou ja, alteramse as sustentagbes epistemolégicas, as ndamentagdes te6ricas e os modos de intervensio stas profissdes conforme mudam os valores ¢ as infiguragdes dos poderes politicos nos contextos em elas estio inseridas, ‘Assim, no podemos falar de uma evolugdo atural” das cigncias e to pouco de uma conseqiiente olugdo das profissées correlatas a estas cincias. ‘Se eu digo que a Terapia Ocupacional tem como 1 de seus pressupostos fundadores 0 Tratamento oral, eu no posso afirmar que ela esteja reproduzindo nesmo tratamento moral que foi feito e pensado nos uulos XVIII e XIX, pelo fato de utilizar atividades no E _necessério vcesso de suas intervengées. entendermos o que acontecia na Europa e suas Colénias do séc. XVII para entendermos como e porque surgi e se organizou a proposta do Tratamento Moral, ¢ qual era 0 sentido do trabalho terapéutico, ou da utilizago das atividades nas priticas da sade. © que podemos constatar € que alguns dos aspectos das priticas que existem hoje permanecem muito semelhantes as do século XVI, principalmente no que se refere aos tratamentos ainda dispensados aos doentes mentais. Constatamos portanto, que existe uma raiz, um fundamento, um valor que permanece mas que no se reproduz do mesmo modo. Existe, no entanto, um processo de transformacéo das. préticas institucionais, e até mesmo das suas fundamentagdes te6ricas, mas isto nfo decorreu apenas dos avangos do conhecimento produzidos pelas ciéncias imédicas. O que mudou, na verdade, foram as concepebes de Homem e trabalho para esta sociedade que, somadas. 4 uma outra ideologia, engendrou alteragSes nas anges sociais que essa profissio desempenhava, * 0 terapeuta ocupacional como um agente institucional, reprodutor de ideologias A Terapia Ocupacional, como qualquer outra prética profissional, cumpre, além da funco especifica que Ihe é cabida na divisio social do trabalho, uma fungao ideolégica dentro da sociedade. Por que? Porque vivemos em sociedade, ¢ por conseqiigncia vivemos sempre em uma Instituigdo, ito 6 participando de ‘organizagSes, quer como agentes privilegiados ou subordinados, tanto em entidades, estabelecimentos, grupos, familias, partidos politicos, constelacdo so reproduzidos os valores instituidos pela legica do poder dominante desta mesma sociedade. etc. Nesta Assim, quando dizemos que ela cumpre uma Cad. Ter. Ocup. UFSCar, 2000, V.8, n.1 fangdo ideol6gica, & porque ela ests necessariamente assumindo sempre um lado da hist6ria, um papel social, tum posicionamento em defesa de alguém ou de um ponto de vista ‘Ao nos propormos a indagar sobre os conbecimentos da TO devemos ent sobre quais tem la trabalha, qual ¢ a finalidade do tratamento proposto? Se ela tem uma finalidade, ela é ideolégica nesse sentido. E 0 que tem isso a ver com o conbecimento? Tem a ver, porque 0 processo de produgio © 0 uso do conhecimento produzido no so neutros. Bles estilo diretamente ligados a uma concepeio valorativa de Mundo ¢ de Homem que se institui e se toma dominante numa dada conjuntura E qual é 0 conceito de Homem instituldo pela ideologia atual? E 0 do ser "bem sucedido na vida" para se alcangar a felicidade, o bem viver. Isso implica a valorizago de uma certa eficiéncia (ou sucesso) social, © a necessidade de se excluir, tratar e punir 0 seu ‘posto: o ser da deficiéncia, do insucesso, da caréncia, Nesta perspective niio cabe a fragilidade, 0 softimento, a dor, a impossibilidade de consumo... Sio coisa a serem evitadas, pois destoam e ameagam o ideal de sucesso e eficdcia desejados, Também 0 conceito de Satde, proposto pela OMS (um estado de conforto, de bem estar fisico, mental ¢ social, genérico e irrestrito do individuo) é um exemplo dessa ideologia de homem adequado ou desejado para esta sociedade. uma definicdo ut6pica, mas no sentido negativo da utopia, uma vez. que nfo estabelece pontos de articulagdes vidveis com as ontras.instituigGes sociais necessérias para a efetivagao dessa utopia, o que nos Jeva a pensar a Satide como um estado estavel e no dindmico de sua efetivagao. Por isso essa utopia é vazia. Podemos mudar esse tipo de coisa? Sim, se a0 nos propormos uma andlise critica do conhecimento de nossa profissio, nos colocarmos como ‘um agente institucional capaz de entender e questionar as razées dos conhecimentos ¢ das priticas que nos sao propostas, assim como a visio de Homem e de Mundo embutidas nos diferentes modelos de Terapia Ccupacional e nos reconhecermos como produtores de conhecimento, podendo propor um novo modelo de atuagio, baseado em outros conceitos de Homem, de ‘Mundo, de vida, de felicidade, etc... * A Terapia Ocupacional: profissio ou um campo de saber? ‘A Terapia Ocupacional pode ser considerada como um campo de saber, porque toda prética essencialmente humana & perpassada pelo pensamento, por uma razlo que Ihe dé sentido, E nesse sentido produzimos ¢ nos utilizamos de conhecimentos, Todas as profissdes sio uma “invencio", uma construgio que surge a partir de uma necessidade e no apenas por uma proposigdo teérica. Temos profissdes que aparecem ¢ as que desaparecem também (engenheiros de produgio, engenheiros da computacio, ‘comunicadores de massa, psicélogos clinics, magos, astrélogos, ete...). Mesmo no existindo a profissto Terapia Ocupacional no século XVIII jé se fazia uso de atividades como recurso terapéutico, Entfo, como definir a Terapia Ocupacional? Qual seu objeto? Maitas vezes confundimos nosso objeto com os meios de que nos utlizamos: TO = uso de atividades. Outras vezes confundimos 0 objeto como objetivo a ser alcangado com a nossa pratica: Terapia Ocupacional = prética de reabilitago, de Iudicidade, de Cad. Ter. Qcup. UFSCar, 2000, V.8, n.1 6

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