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Cesário Verde

Corrente Literária e Artística:

Realismo:
O Realismo foi um movimento lietrário que se desenvolveu na segunda metade
do século XIX.
A principal caraterística foi a abordagem de temas sociais e o tratamento
objectivo da realidade do ser humano. Este movimento apresenta uma linguagem
política e de denúncia dos problemas sociais, tais como a miséria, a pobreza, a
corrupção, a exploração. A linguagem clara e direta ao foco da questão opunha-se ao
subjetivismo do Romantismo.
Cesário Verde insere-se nesta corrente literária devido às temáticas tratadas
como a representação da vida burguesa (aspetos negativos) e da tensão da vida
urbana, a análise das relações e dos conflitos sociais.

Impressionismo:
O Impressionismo é um movimento artístico surgido na França no século XIX
que criou uma nova visão conceitual da natureza utilizando pinceladas soltas dando
ênfase na luz e no movimento. Geralmente as telas eram pintadas ao ar livre para que
o pintor pudesse capturar melhor as nuances da luz e da natureza.

2
O Autor- Cesário Verde:

Biografia:
Cesário Verde nasceu em Lisboa a 25 de Fevereiro de 1855 em Lisboa e com
dez anos de idade faz o seu exame de instrução primária.
Em 1873 matricula-se no curso superior de Letras, que abandona passado
poucos meses e em 1878 instala-se em Linda-a-Pastora e continua a publicar com
assiduidade, alvo de constantes críticas e incompreensões. Ao publicar, em 1880, o
poema O sentimento dum ocidental, a sua genialidade é comparada à de Camões.
Morre a 19 de Junho de 1886, com 31 anos, devido ao estado grave do seu estado de
saúde (tuberculose).

Bibliografia:
O Livro de Cesário Verde foi editado por Silva Pinto, seu amigo dedicado, meses
após a morte do poeta, em Abril de 1887. Esta edição, com uma tiragem limitada a 200
exemplares e destinada apenas a ofertas, era constituída por 22 poemas e
apresentava-se dividida em duas secções, intituladas Crise Romanesca e Naturais.
Apesar de todos os esforços, a ordenação destas composições e das que foram
incluídas o Livro nem sempre se baseia, como seria desejável, na data da elaboração
dos poemas, visto que um incêndio ocorrido na quinta em Linda-a-Pastora destruiu,
segundo se pensa, todos os manuscritos de Cesário e a sua biblioteca, pelo que a
ordenação é sempre baseada nas suas temáticas.
O próprio poeta assim se considerava, comprovado na sua frase: Pinto quadros por
letras, por sinais.

Estilo do Autor:
Cesário Verde pode ser considerando um “pintor”, dado que capta as
impressões da realidade que o cerca com grande objectividade e transmite as
percepções sensoriais.
Este poeta é caracterizado pela utilização do Parnasianismo (busca da perfeição
formal através de uma poesia descritiva e fazendo desta algo de escultórico,
esculpindo o concreto com nitidez e perfeição). Os temas desta corrente literária são
temas do quotidiano com um enorme rigor a nível de aspecto formal e há uma
aproximação da poesia às artes plásticas, nomeadamente a nível da utilização das
cores e dos dados sensoriais.
Cesário utiliza também uma linguagem prosaica, ou seja, aproxima-se da prosa
e da linguagem do quotidiano.
Através de uma adjectivação expressiva e do recurso a várias figuras de estilo, como a
Exclamação, o Estrangeirismo, a Interrogação, pretende ilustrar e embelezar o poema,
a nível musical, rítmico e conhecer as figuras de estilo utilizadas nos poemas.

3
Temáticas:

A mulher:
A mulher fatal, altiva, aristocrática, “frígida”
atrai/fascina o sujeito poético fisicamente, porém é
desprezada psicologicamente. É o tipo citadino artificial,
surge portanto associada à cidade servindo para retratar
os valores decadentes e a violência social. Esta mulher
surge na poesia de Cesário incorporando um valor
erótico que simultaneamente desperta o desejo e o
arrasta para a morte, conduzindo a um erotismo .
A mulher angélica, natural, pura, acompanhada
pela mãe, e, embora pertença à cidade, encarna
qualidades inerentes ao campo. Desperta no poeta o
desejo de protecção e tem um efeito regenerador. Renoir- Mlle Irene Cahen
d'Anvers (1880)
Há, então, uma oposição entre a mulher anjo e a
Neste quadro está
mulher demónio.
representada a mulher anjo
para Cesário Verde.

Cidade/ Campo:
O contraste cidade/campo é um dos temas fundamentais da poesia de Cesário
Verde e revela-nos o seu amor ao rústico e natural, opondo-se a um certo repúdio da
perversidade e dos valores urbanos a que, no entanto, adere.
A cidade personifica a ausência de amor e, consequentemente, de vida. É um
foco de infecções, de doença e de morte e um símbolo de opressão, de injustiça, de
industrialização.
O campo aparece associado à vitalidade, à alegria do trabalho produtivo e útil,
nunca como fonte de devaneio sentimental. Aparece ligado à fertilidade, à saúde, à
liberdade e à vida. A força inspiradora deste poeta é a terra-mãe, daí surgir o mito de
Anteu1, uma vez que a terra é força vital para Cesário. O poeta encontra a energia
perdida quando volta para o campo, anima-o, revitaliza-o, dá-lhe saúde, tal como
Anteu era invencível quando estava em contacto com a mãe-terra.
A oposição cidade/campo simboliza a oposição morte/vida. É a morte que cria
no poeta uma repulsa à cidade por onde gostava de deambular, mas que acaba por
aprisioná-lo.

1
De acordo com a mitologia, Anteu, filho da Gea (Terra) e de Posídon, era um gigante muito possante,
que era invencível enquanto estivesse em contacto com a mãe-terra. Desafiava todos os recém-
chegados para uma luta até à morte. Vencidos e mortos, os seus cadáveres passavam a ornar o templo
do deus do mar, Posídon. Hércules entrou em combate com Anteu e, descobrindo o segredo da sua
invencibilidade, conseguiu esmagá-lo, mantendo-o no ar.

4
Vincent van Gogh- Starry Night over the Rhone Claude Monet- Tulip Field in Holland (1886)
(1888). O campo é um local de rejuveniescimento dos
Tal como na poesia de Cesário Verde, a cidade é uma valores positivos. É descrito, em Cesário Verde,
zona da qual se deve distanciar, por ser disforme e como agradável, fértil, harmonioso (locus
apresentar valores negativos (locus horrendus). amoenus).

Sociedade:
O poeta coloca-se ao lado dos desfavorecidos, dos injustiçados e dos
marginalizados, dos quais admira a sua força física e vigor do povo trabalhador.
O poeta interessa-se pelo conflito social do campo e da cidade, procurando
documentá-lo e analisá-lo, embora sem interferir.

Gustave Courbet- The Stone Breakers (1850)

5
Poemas:

Deslumbramentos

Milady, é perigoso contemplá-la, O seu olhar possui, num jogo ardente,


Quando passa aromática e normal, Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Com seu tipo tão nobre e tão de sala, Como um florete, fere agudamente,
Com seus gestos de neve e de metal. E afaga como o pêlo dum regalo3!

Sem que nisso a desgoste ou desenfade2, Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas, E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
Eu vejo-a, com real solenidade, O modo diplomático e orgulhoso
Ir impondo toilettes complicadas!... Que Ana de Áustria4 mostrava aos cortesãos.

Em si tudo me atrai como um tesouro: E enfim prossiga altiva como a Fama,


O seu ar pensativo e senhoril, Sem sorrisos, dramática, cortante;
A sua voz que tem um timbre de ouro Que eu procuro fundir na minha chama
E o seu nevado e lúcido perfil! Seu ermo coração, como um brilhante.

Ah! Como me estonteia e me fascina... Mas cuidado, milady, não se afoite5,


E é, na graça distinta do seu porte, Que hão de acabar os bárbaros reais;
Como a Moda supérflua e feminina, E os povos humilhados, pela noite,
E tão alta e serena como a Morte!... Para a vingança aguçam os punhais.

Eu ontem encontrei-a, quando vinha, E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,


Britânica, e fazendo-me assombrar; Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Grande dama fatal, sempre sozinha, Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E com firmeza e música no andar! E arrastando farrapos - as rainhas!

Análise:
Este poema pode dividir-se em quatro partes distintas: a primeira, composta
pelas quatro estrofes iniciais, é a confissão do fascínio que Milady exerce sobre o "eu"
lírico; a segunda, constituída pelas duas estrofes seguintes, é o relato do encontro
entre o sujeito poético e Milady; as duas estrofes seguintes compõem a terceira parte,
onde encontramos o sujeito lírico resignado à atitude altiva e orgulhosa que a mulher
que ama revelou quando se cruzou com ele; nas restantes estrofes (quarta parte), o
sujeito poético alerta Milady para os perigos das suas atitudes e do modo como todo o
orgulho e altivez se podem voltar contra ela.

2 Divirta.
3 Prazer, deleitação.
4 Rainha de Portugal, esposa de D. João V. Mulher extremamente culta e devota tornou-se regente do reino por

duas vezes.
5 Encoraje, incite.

6
O poema inicia-se com uma apóstrofe - Milady. Apesar de não conhecermos
esta mulher, sabemos desde logo que todo o poema é dirigido a uma mulher
aristocrática, de um estatuto social superior, uma vez que este modo de se dirigir a
uma mulher faz parte da cortesia que se respeita entre classes sociais mais elevadas.
Esta forma de tratamento leva-nos também a deduzir que Milady significará "my lady",
ou seja, minha senhora. Assim, esta é, com certeza, a mulher por quem o eu poético se
apaixonou. Se esta é, então, a mulher amada do sujeito poético e ele a trata como
Milady, estamos perante uma relação de criado-senhora, uma relação de subserviência
amorosa, encontrando-se ela num plano superior, aristocrático, e ele num plano
inferior, servil. Esta relação amorosa, onde há submissão de uma das partes, é o tema
tratado nas cantigas trovadorescas de amor, onde o trovador se declara à “sua senhor”
(não identificada), de beleza e carácter singular, apresentado uma postura submissa e
um sofrimento amoroso porque a mulher é ininteligível (coita de amor).
Fisicamente, Milady é uma mulher encantadora, bela, perfeita, fascinante,
sensual. O eu lírico confessa que "Em si tudo me atrai como um tesouro", que revela o
fascínio e o estonteamento que esta mulher exerce sobre ele - "Ah! Como me
estonteia e me fascina...". Dotado de um poder sedutor e encantador, o sujeito
poético fica extático à sua passagem, pois a beleza que dela irradia deixa-o
hipnotizado.
Todavia, esta mulher mostra-se fria, insensível e indiferente a todas as
solicitações amorosas do eu. A sua postura altiva e solene fere-o, uma vez que se sente
sentido pela indiferença que ela revela à sua passagem. Milady sabe que exerce este
poder encantatório sobre os homens. Por isso, revela-se altiva orgulhosa na sua
postura, mostrando-se superior a todos os homens. À semelhança da burguesia dos
finais do século XIX, que desprezava e mostrava-se
indiferente àqueles que pertenciam a classes sociais
inferiores, também Milady trata com desprezo todos
aqueles que se submetem. Nas duas últimas estrofes,
o sujeito poético deixa um aviso a Milady. Esta deve
ter cuidado e não se alegrar com esta sua condição de
rainha, capaz de um poder absolutista sobre os
homens. O eu lírico avisa-a que o seu poder advém de
algo passageiro, efémero: a sua beleza. Por isso, avisa-
a para não se animar (“afoitar” com esta sua condição
de rainha, pois os seus poderes “hão-de acabar” um

dia e os povos humilhados - os apaixonados Renoir


desprezados -, na sombra da sua beleza, "Para a Tal como esta mulher,
vingança aguçam os punhais." concentrada na sua leitura e
absorta de tudo o que a
rodeia, a mulher “frígida”
também ignora o sujeito
poético.
7
Frígida

I VII
Balzac6 é meu rival, minha senhora inglesa! Metálica visão que Charles Baudelaire12
Eu quero-a porque odeio as carnações redondas! Sonhou e pressentiu nos seus delírios mornos,
Mas ele eternizou-lhe a singular beleza Permita que eu lhe adul13e a distinção que fere,
E eu turbo-me ao deter seus olhos cor das ondas. As curvas da magreza e o lustre dos adornos!

II VIII
Admiro-a. A sua longa e plácida estatura Desliza como um astro, um astro que declina,
Expõe a majestade austera dos invernos. Tão descansada e firme é que me desvaria14,
Não cora no seu todo a tímida candura; E tem a lentidão duma corveta15 fina
Dançam a paz dos céus e o assombro dos infernos. Que nobremente vá num mar de calmaria.

III IX
Eu vejo-a caminhar, fleumática7, irritante, Não me imagine um doido. Eu vivo como um
Numa das mãos franzindo um lençol de cambraia8!... monge,
Ninguém me prende assim, fúnebre, extravagante, No bosque das ficções, ó grande flor do Norte!
Quando arregaça e ondula a preguiçosa saia! E, ao persegui-la, penso acompanhar de longe
O sossegado espectro angélico da Morte!
IV
Ouso esperar, talvez, que o seu amor me acoite9, X
Mas nunca a fitarei duma maneira franca; O seu vagar oculta uma elasticidade
Traz o esplendor do Dia e a palidez da Noite, Que deve dar um gosto amargo e deleitoso,
É, como o Sol, dourada, e, como a Lua, branca! E a sua glacial impassibilidade
Exalta o meu desejo e irrita o meu nervoso.
V
Pudesse-me eu prostar10, num meditado impulso, XI
Ó gélida mulher bizarramente estranha, Porém, não arderei aos seus contactos frios,
E trémulo depor os lábios no seu pulso, E não me enroscará nos serpentinos braços:
Entre a macia luva e o punho de bretanha11!... Receio suportar febrões16 e calafrios;
Adoro no seu corpo os movimentos lassos17.
VI
Cintila ao seu rosto a lucidez das jóias. XII
Ao encarar consigo a fantasia pasma; E se uma vez me abrisse o colo transparente,
Pausadamente lembra o silvo das jibóias E me osculasse18, enfim, flexível e submissa,
E a marcha demorada e muda dum fantasma. Eu julgara ouvir alguém, agudamente,
Nas trevas, a cortar pedaços de cortiça!
6
Honoré de Balzac: Escritor francês que viveu no século XIX. Tinha um extraordinário poder de observação,
memória fotográfica e capacidade intuitiva para perceber as atitudes dos outros, os seus sentimentos e motivações.
O romance balzaquiano faz com que o leitor descubra a alma e os sofrimentos incógnitos, em particular os
sofrimentos de abandono e de humilhação. Os seus romances são interditos a leitores unidimensionais.
7 Imperturbável, fria, impassível, indiferente.
8 É um tecido leve feito de algodão ou linho e utilizado para trabalhos de renda e bordado.
9
Abrigar
10
Imobilizar, deitar.
11 Tecido muito fino, de algodão ou linho.
12
Charles Pierre Baudelaire: poeta e escritor francês do século XIX. Herdeiro do Romantismo, conseguiu exprimir a
tragédia do destino humano e dar uma visão mística do universo.
13
Elogiar.
14
Enlouquece.
15
Navio de guerra de três mastros.
16
Febres intensas.
17
Fracos, fatigados.
18
Beijasse.

8
Análise:
Neste poema está presente uma figura feminina que o sujeito poético
assemelha a um país do norte, a Inglaterra, quer pelos seus traços físicos- séria, magra,
alta, pálida, branca (“flor do Norte”, bonita, porém gélida) - quer pelos seus traços
psicológicos- fria, austera, sisuda, impassível, insensível (pois, “não cora”, ou seja, não
demonstra sentimentos).
Esta composição poética está repleta de oximoros, paradoxos e contradições,
tanto se deve aos sentimentos confusos do eu lírico, como pela caraterização da
mulher descrita. “Traz o esplendor do Dia e a palidez da Noite,/ É, como o Sol, dourada,
e, como a Lua, branca!”- a figura feminina ao longo de todo o poema apresenta
caraterísticas contraditórias, tanto é representada dócil e calorosamente, como glaciar
e inflexível. Ao mesmo tempo que a sua imagem física provoca atração, o seu carácter
frígido e destituído de sentimentos afasta-o- “Exalta o meu desejo e irrita o meu
nervoso”. De facto, apesar de, por vezes, a repudiar, o sujeito poético releva em
simultâneo uma atração física pela mulher e fantasia uma aproximação, embora tenha
a consciência que isso só lhe traria mal.
Há como que uma tentativa de destrinça os dois planos, o inteligível e o
sensitivo. Fisicamente, sente-se atraído pela figura feminina e chega mesmo a desejá-
la carnalmente, enquanto racionalmente reconhece que a mulher está longe do seu
ideal feminino e que representa um “espetro angélico da Morte”.
Na última estrofe é evidente a carga erótica conferida pelo sujeito lírico. Ao
desejar que a mulher “ abrisse o colo transparente”, ou seja, se desnudasse e o
beijasse (=”osculasse”), cedendo aos seus sentimentos revelando flexibilidade e
submissão, contrariando o seu estado normal “descansada e firme”. Todavia, mesmo
nesse momento de êxtase, o eu poético, tem consciência de que o mal se abateria
sobre si, qual som infernal equiparado à audição do corte de “pedaços de cortiça”.
Através da integração, no poema, da contradição anjo-demónio, o sujeito
poético também carateriza o campo (mulher anjo) e a cidade (mulher demónio). De
estatura baixa e larga, as mulheres campestres portuguesas,
simbolizam trabalho, maternidade/fertilidade, enquanto uma
mulher alta e de movimentos “lassos” simboliza a cidade, onde se
encontram valores negativos.
Cesário Verde demonstra conhecimento por poetas franceses
do século XIX, nomeadamente de Balzac, apologista de mulheres
emocionalmente amadurecidas que demonstravam em pleno os
seus sentimentos e de Charles Baudelaire, poeta que se distinguiu
na época devido ao significante valor erótico nas suas composições.
Tal como o último referido, o sujeito poético também quer elogiar a
sensualidade feminina, simbolizada pelos seios (“ a distinção que fere, /As curvas da
magreza e o lustre dos adornos!”)
Renoir- Mulher Amamentando
(1886)
A mulher do campo portuguesa
contrasta com a mulher citadina
9
retratada no poema
A débil
Adorável! Tu, muito natural,
Eu, que sou feio, sólido, leal, Seguias a pensar no teu bordado;
A ti, que és bela, frágil, assustada, Avultava, num largo arborizado,
Quero estimar-te, sempre, recatada19 Uma estátua de rei num pedestal.
Numa existência honesta, de cristal.
Sorriam, nos seus trens, os titulares;
Sentado à mesa dum café devasso20, E ao claro sol, guardava-te, no entanto,
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura, A tua boa mãe, que te ama tanto,
Nesta Babel21 tão velha e corruptora, Que não te morrerá sem te casares!
Tive tenções de oferecer-te o braço.
Soberbo24 dia! Impunha-me respeito
E, quando socorreste um miserável, A limpidez do teu semblante grego;
Eu, que bebia cálices de absinto, E uma família, um ninho de sossego,
Mandei ir a garrafa, porque sinto Desejava beijar sobre o teu peito.
Que me tornas prestante, bom, saudável.
Com elegância e sem ostentação,
« Ela aí vem!» disse eu para os demais; Atravessavas branca, esbelta e fina,
e pus-me a olhar, vexado e suspirando, Uma chusma25 de padres de batina,
o teu corpo que pulsa, alegre e brando, E de altos funcionários da nação.
na frescura dos linhos matinais.
« Mas se a atropela o povo turbulento!
Via-te pela porta envidraçada; Se fosse, por acaso, ali pisada!»
E invejava, - talvez que o não suspeites! - De repente, paraste, embaraçada
Esse vestido simples, sem enfeites, Ao pé dum numeroso ajuntamento.
Nessa cintura tenra, imaculada.
E eu, que urdia26 estes fáceis esbocetos,
Ia passando, a quatro, o patriarca. Julguei ver, com a vista de poeta,
Triste eu saí. Doía-me a cabeça; Uma pombinha tímida e quieta
Uma turba22 ruidosa, negra, espessa, Num bando ameaçador de corvos pretos.
Voltava das exéquias23 dum monarca.
E foi, então, que eu, homem varonil27,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és ténue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.

19 Discreta.
20 Libertino, individuo desregrado.
21 Torre de Babel: Significa a "porta do céu" ou a "porta de Deus", é mencionada na Bíblia (Génesis, 11), como uma

das construções mais ambiciosas do homem. Chegados ao Oriente, os Babilónios estabeleceram-se na planície de
Sinar, onde resolveram construir uma cidade, a Babilónia, com uma torre, erigida, de forma a alcançar o céu.
Todavia a Torre de Babel era obra do orgulho humano, pois pretendia estar à altura de Deus e eventualmente
contra ele. Quando Deus veio à Terra visitar a obra, considerou que, sendo um povo só com uma única linguagem,
nada os impediria de realizarem o seu projeto. Então, para castigar a obra do orgulho humano, Deus resolveu
confundi-los na sua linguagem, de tal forma que não se compreendessem uns aos outros. Sem se entenderem, os
construtores da Torre de Babel interromperam os seus trabalhos de construção e dispersaram-se por toda a terra,
dando origem às diversas culturas e diferentes línguas que se falam no mundo. A partir de então, Babel passou a ser
sinónimo de confusão e a simbolizar o castigo divino sobre a arrogância, orgulho e paganismo humanos.
22Multidão.
23 Funerais.
24 Arrogante, altivo
25 Gente.
26 Fantasiava.
27 Viril, másculo.

10
Análise:
Esta composição poética representa uma mulher que sobressai, no meio
citadino, não pela sua excentricidade, mas pela sua pureza e simplicidade.
O sujeito poético serve-se de um conjunto de termos para caracterizar esta
mulher singular: “frágil, recatada, assustada, honesta, fraca, natural, dócil, recolhida”,
remetendo para a sua caracterização psicológica.
Fisicamente, a mulher é caracterizada como sendo “loura, de corpo alegre e
brando, cintura estreita, adorável, com elegância e sem ostentação, esbelta e fina,
ténue”.
Assim, este poema retrata uma figura feminina que surge no espaço rural,
contrária à típica mulher da cidade. Possivelmente, por estar num espaço que lhe é
estranho, a cidade, a mulher sente-se perdida e desnorteada num espaço que não está
adequado à sua fragilidade, necessitando de protecção masculina.
O sujeito lírico considera-se "feio, sólido, leal; sente-se prestável, bom e
saudável quando a vê, ao ponto de desejar beijá-la. Afirma ainda ser "hábil, prático e
viril", ou seja, com força suficiente para a socorrer quando ela precisar.
O eu lírico apresenta a cidade de forma negativa. Nestes espaços movimenta-se
figuras sórdidas, que ele carateriza como “turba ruidosa, negra” e “uma chusma de
padres de batina”. Tal permite destacar a fragilidade da jovem que torna estes locais
mais brilhantes e atractivos. Este poema põe em relevo uma figura feminina que
escapa à típica mulher citadina, mas também à mulher que surge no espaço rural.
Com o intuito de evidenciar o contraste entre o espaço e a jovem senhora, o
sujeito poético faz referência ao ajuntamento, característico dos espaços urbanos,
onde a agitação e a confusão imperam. Sobressaem as diferentes classes sociais que se
podiam encontrar no espaço citadino, o que permite afirmar que a cidade era palco de
vários seres que nele se movimentam, uns por ociosidade, outros por obrigação, tal
como seria normal numa cidade onde está a chegar a industrialização e para onde
acorrem os mais pobres, na expectativa de aí encontrarem melhores condições de
vida.
A luminosidade deste dia só é posta em evidência quando a figura feminina
surge nos locais onde anteriormente se moviam figuras conotadas com os aspectos
negativos da cidade. Só a visão desta mulher frágil e pura lhe possibilita uma visão
mais positiva da realidade, estando aqui realçados o tempo e o espaço psicológicos, ou
seja, aqueles que se resultam do estado de espírito do sujeito poético e da sua
construção.
O sujeito lírico revela o receio de perder a mulher admirada, porque, "os
corvos" a poderiam arrancar daquele local. Deste modo, o sujeito poético mostra-se
capaz de a salvar, mesmo que seja a custo da sua própria vida, mostrando-se protector
da fragilidade e capaz de tudo para poder conservar aquela figura que o fazia recordar
a simplicidade do campo e das mulheres que o povoam.

11
Cesário Verde serve-se de um conjunto de processos que, também neste
poema, podem ser percepcionados. É o caso do vocabulário preciso e exacto e as
imagens carregadas de visualismo que dão uma visão perfeita das realidades
visionadas. Além disso, percebe-se a objectividade que imprime ao conteúdo,
afastando-se, deste modo, do lirismo romântico. Para retratar fielmente a realidade ou
as figuras com que depara, o autor emprega a adjectivação e as frases preposicionais
de valor adverbial. Acresce ainda referir o uso das quadras e dos versos decassilábicos
que permitem uma maior aproximação à prosa.
Concluindo, este é um texto cheio de referências à realidade social, onde se
percepciona a crítica e a ironia de que Cesário Verde se serve e que reflectem o seu
carácter subjectivo.
O sujeito poético dá bastante importância ao imperfeito do indicativo neste
poema, de modo a enfatizar o fascínio que a mulher exerceu sobre ele é durável e
ainda perdura.

Claude Monet- Lady with umbrella (1886)


A mulher é retratada expondo pureza,
genuinidade, delicadeza e fragilidade. Tal
mulher deveria estar num sítio que
comparasse à sua essência: o campo.

12
Intertextualidade:
Cesário Verde Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.

Que pena que tenho dele! Ele era um camponês


Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas cousas,
É o de quem olha para árvores, Silva Porto: Paisagem com figura
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai
andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campo ...

Por isso ele tinha aquela grande tristeza


Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros...

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema III"


Heterónimo de Fernando Pessoa

Análise:
Neste poema de o sujeito lírico, faz uma homenagem a Cesário Verde dizendo-
nos que lê o seu livro até lhe arderem os olhos, ou seja, repetidamente. Ambos os
poetas são apaixonados pelo campo, sendo que Caeiro vive no campo, Cesário Verde
encontra-se na cidade. Mas enquanto a cidade os enjoa e prende, o campo encanta-os
e é símbolo de liberdade.
O eu lírico afirma que Cesário Verde deambulava pela cidade, pintando-a nos
seus poemas, como um pintor retrata o que vê no seu quadro. O poeta admirado
descreve de forma realista e objectiva, o que o rodeia na cidade, como um pintor
pincela uma os tons da natureza tais como eles são. Apesar da sua poesia concreta, o
poeta trata assuntos com grande sensibilidade como a desigualdade social, focando a
sua atenção nos que considerava vítimas de injustiça.
Na última estrofe, o sujeito poético declara que Cesário Verde “andava na
cidade como quem anda no campo” mais parecendo admirar as paisagens naturais;
Cesário Verde, com saudade do meio campestre, encontra-se, muitas vezes a
deambular pela cidade, como quem deambula pelo campo. Por se encontrar
desenquadrado e desambientado, Cesário Verde é comparado a uma flor, se ao ser
posta num jarro é arrancada do seu meio natural.

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