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Realismo:
O Realismo foi um movimento lietrário que se desenvolveu na segunda metade
do século XIX.
A principal caraterística foi a abordagem de temas sociais e o tratamento
objectivo da realidade do ser humano. Este movimento apresenta uma linguagem
política e de denúncia dos problemas sociais, tais como a miséria, a pobreza, a
corrupção, a exploração. A linguagem clara e direta ao foco da questão opunha-se ao
subjetivismo do Romantismo.
Cesário Verde insere-se nesta corrente literária devido às temáticas tratadas
como a representação da vida burguesa (aspetos negativos) e da tensão da vida
urbana, a análise das relações e dos conflitos sociais.
Impressionismo:
O Impressionismo é um movimento artístico surgido na França no século XIX
que criou uma nova visão conceitual da natureza utilizando pinceladas soltas dando
ênfase na luz e no movimento. Geralmente as telas eram pintadas ao ar livre para que
o pintor pudesse capturar melhor as nuances da luz e da natureza.
2
O Autor- Cesário Verde:
Biografia:
Cesário Verde nasceu em Lisboa a 25 de Fevereiro de 1855 em Lisboa e com
dez anos de idade faz o seu exame de instrução primária.
Em 1873 matricula-se no curso superior de Letras, que abandona passado
poucos meses e em 1878 instala-se em Linda-a-Pastora e continua a publicar com
assiduidade, alvo de constantes críticas e incompreensões. Ao publicar, em 1880, o
poema O sentimento dum ocidental, a sua genialidade é comparada à de Camões.
Morre a 19 de Junho de 1886, com 31 anos, devido ao estado grave do seu estado de
saúde (tuberculose).
Bibliografia:
O Livro de Cesário Verde foi editado por Silva Pinto, seu amigo dedicado, meses
após a morte do poeta, em Abril de 1887. Esta edição, com uma tiragem limitada a 200
exemplares e destinada apenas a ofertas, era constituída por 22 poemas e
apresentava-se dividida em duas secções, intituladas Crise Romanesca e Naturais.
Apesar de todos os esforços, a ordenação destas composições e das que foram
incluídas o Livro nem sempre se baseia, como seria desejável, na data da elaboração
dos poemas, visto que um incêndio ocorrido na quinta em Linda-a-Pastora destruiu,
segundo se pensa, todos os manuscritos de Cesário e a sua biblioteca, pelo que a
ordenação é sempre baseada nas suas temáticas.
O próprio poeta assim se considerava, comprovado na sua frase: Pinto quadros por
letras, por sinais.
Estilo do Autor:
Cesário Verde pode ser considerando um “pintor”, dado que capta as
impressões da realidade que o cerca com grande objectividade e transmite as
percepções sensoriais.
Este poeta é caracterizado pela utilização do Parnasianismo (busca da perfeição
formal através de uma poesia descritiva e fazendo desta algo de escultórico,
esculpindo o concreto com nitidez e perfeição). Os temas desta corrente literária são
temas do quotidiano com um enorme rigor a nível de aspecto formal e há uma
aproximação da poesia às artes plásticas, nomeadamente a nível da utilização das
cores e dos dados sensoriais.
Cesário utiliza também uma linguagem prosaica, ou seja, aproxima-se da prosa
e da linguagem do quotidiano.
Através de uma adjectivação expressiva e do recurso a várias figuras de estilo, como a
Exclamação, o Estrangeirismo, a Interrogação, pretende ilustrar e embelezar o poema,
a nível musical, rítmico e conhecer as figuras de estilo utilizadas nos poemas.
3
Temáticas:
A mulher:
A mulher fatal, altiva, aristocrática, “frígida”
atrai/fascina o sujeito poético fisicamente, porém é
desprezada psicologicamente. É o tipo citadino artificial,
surge portanto associada à cidade servindo para retratar
os valores decadentes e a violência social. Esta mulher
surge na poesia de Cesário incorporando um valor
erótico que simultaneamente desperta o desejo e o
arrasta para a morte, conduzindo a um erotismo .
A mulher angélica, natural, pura, acompanhada
pela mãe, e, embora pertença à cidade, encarna
qualidades inerentes ao campo. Desperta no poeta o
desejo de protecção e tem um efeito regenerador. Renoir- Mlle Irene Cahen
d'Anvers (1880)
Há, então, uma oposição entre a mulher anjo e a
Neste quadro está
mulher demónio.
representada a mulher anjo
para Cesário Verde.
Cidade/ Campo:
O contraste cidade/campo é um dos temas fundamentais da poesia de Cesário
Verde e revela-nos o seu amor ao rústico e natural, opondo-se a um certo repúdio da
perversidade e dos valores urbanos a que, no entanto, adere.
A cidade personifica a ausência de amor e, consequentemente, de vida. É um
foco de infecções, de doença e de morte e um símbolo de opressão, de injustiça, de
industrialização.
O campo aparece associado à vitalidade, à alegria do trabalho produtivo e útil,
nunca como fonte de devaneio sentimental. Aparece ligado à fertilidade, à saúde, à
liberdade e à vida. A força inspiradora deste poeta é a terra-mãe, daí surgir o mito de
Anteu1, uma vez que a terra é força vital para Cesário. O poeta encontra a energia
perdida quando volta para o campo, anima-o, revitaliza-o, dá-lhe saúde, tal como
Anteu era invencível quando estava em contacto com a mãe-terra.
A oposição cidade/campo simboliza a oposição morte/vida. É a morte que cria
no poeta uma repulsa à cidade por onde gostava de deambular, mas que acaba por
aprisioná-lo.
1
De acordo com a mitologia, Anteu, filho da Gea (Terra) e de Posídon, era um gigante muito possante,
que era invencível enquanto estivesse em contacto com a mãe-terra. Desafiava todos os recém-
chegados para uma luta até à morte. Vencidos e mortos, os seus cadáveres passavam a ornar o templo
do deus do mar, Posídon. Hércules entrou em combate com Anteu e, descobrindo o segredo da sua
invencibilidade, conseguiu esmagá-lo, mantendo-o no ar.
4
Vincent van Gogh- Starry Night over the Rhone Claude Monet- Tulip Field in Holland (1886)
(1888). O campo é um local de rejuveniescimento dos
Tal como na poesia de Cesário Verde, a cidade é uma valores positivos. É descrito, em Cesário Verde,
zona da qual se deve distanciar, por ser disforme e como agradável, fértil, harmonioso (locus
apresentar valores negativos (locus horrendus). amoenus).
Sociedade:
O poeta coloca-se ao lado dos desfavorecidos, dos injustiçados e dos
marginalizados, dos quais admira a sua força física e vigor do povo trabalhador.
O poeta interessa-se pelo conflito social do campo e da cidade, procurando
documentá-lo e analisá-lo, embora sem interferir.
5
Poemas:
Deslumbramentos
Sem que nisso a desgoste ou desenfade2, Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas, E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
Eu vejo-a, com real solenidade, O modo diplomático e orgulhoso
Ir impondo toilettes complicadas!... Que Ana de Áustria4 mostrava aos cortesãos.
Análise:
Este poema pode dividir-se em quatro partes distintas: a primeira, composta
pelas quatro estrofes iniciais, é a confissão do fascínio que Milady exerce sobre o "eu"
lírico; a segunda, constituída pelas duas estrofes seguintes, é o relato do encontro
entre o sujeito poético e Milady; as duas estrofes seguintes compõem a terceira parte,
onde encontramos o sujeito lírico resignado à atitude altiva e orgulhosa que a mulher
que ama revelou quando se cruzou com ele; nas restantes estrofes (quarta parte), o
sujeito poético alerta Milady para os perigos das suas atitudes e do modo como todo o
orgulho e altivez se podem voltar contra ela.
2 Divirta.
3 Prazer, deleitação.
4 Rainha de Portugal, esposa de D. João V. Mulher extremamente culta e devota tornou-se regente do reino por
duas vezes.
5 Encoraje, incite.
6
O poema inicia-se com uma apóstrofe - Milady. Apesar de não conhecermos
esta mulher, sabemos desde logo que todo o poema é dirigido a uma mulher
aristocrática, de um estatuto social superior, uma vez que este modo de se dirigir a
uma mulher faz parte da cortesia que se respeita entre classes sociais mais elevadas.
Esta forma de tratamento leva-nos também a deduzir que Milady significará "my lady",
ou seja, minha senhora. Assim, esta é, com certeza, a mulher por quem o eu poético se
apaixonou. Se esta é, então, a mulher amada do sujeito poético e ele a trata como
Milady, estamos perante uma relação de criado-senhora, uma relação de subserviência
amorosa, encontrando-se ela num plano superior, aristocrático, e ele num plano
inferior, servil. Esta relação amorosa, onde há submissão de uma das partes, é o tema
tratado nas cantigas trovadorescas de amor, onde o trovador se declara à “sua senhor”
(não identificada), de beleza e carácter singular, apresentado uma postura submissa e
um sofrimento amoroso porque a mulher é ininteligível (coita de amor).
Fisicamente, Milady é uma mulher encantadora, bela, perfeita, fascinante,
sensual. O eu lírico confessa que "Em si tudo me atrai como um tesouro", que revela o
fascínio e o estonteamento que esta mulher exerce sobre ele - "Ah! Como me
estonteia e me fascina...". Dotado de um poder sedutor e encantador, o sujeito
poético fica extático à sua passagem, pois a beleza que dela irradia deixa-o
hipnotizado.
Todavia, esta mulher mostra-se fria, insensível e indiferente a todas as
solicitações amorosas do eu. A sua postura altiva e solene fere-o, uma vez que se sente
sentido pela indiferença que ela revela à sua passagem. Milady sabe que exerce este
poder encantatório sobre os homens. Por isso, revela-se altiva orgulhosa na sua
postura, mostrando-se superior a todos os homens. À semelhança da burguesia dos
finais do século XIX, que desprezava e mostrava-se
indiferente àqueles que pertenciam a classes sociais
inferiores, também Milady trata com desprezo todos
aqueles que se submetem. Nas duas últimas estrofes,
o sujeito poético deixa um aviso a Milady. Esta deve
ter cuidado e não se alegrar com esta sua condição de
rainha, capaz de um poder absolutista sobre os
homens. O eu lírico avisa-a que o seu poder advém de
algo passageiro, efémero: a sua beleza. Por isso, avisa-
a para não se animar (“afoitar” com esta sua condição
de rainha, pois os seus poderes “hão-de acabar” um
I VII
Balzac6 é meu rival, minha senhora inglesa! Metálica visão que Charles Baudelaire12
Eu quero-a porque odeio as carnações redondas! Sonhou e pressentiu nos seus delírios mornos,
Mas ele eternizou-lhe a singular beleza Permita que eu lhe adul13e a distinção que fere,
E eu turbo-me ao deter seus olhos cor das ondas. As curvas da magreza e o lustre dos adornos!
II VIII
Admiro-a. A sua longa e plácida estatura Desliza como um astro, um astro que declina,
Expõe a majestade austera dos invernos. Tão descansada e firme é que me desvaria14,
Não cora no seu todo a tímida candura; E tem a lentidão duma corveta15 fina
Dançam a paz dos céus e o assombro dos infernos. Que nobremente vá num mar de calmaria.
III IX
Eu vejo-a caminhar, fleumática7, irritante, Não me imagine um doido. Eu vivo como um
Numa das mãos franzindo um lençol de cambraia8!... monge,
Ninguém me prende assim, fúnebre, extravagante, No bosque das ficções, ó grande flor do Norte!
Quando arregaça e ondula a preguiçosa saia! E, ao persegui-la, penso acompanhar de longe
O sossegado espectro angélico da Morte!
IV
Ouso esperar, talvez, que o seu amor me acoite9, X
Mas nunca a fitarei duma maneira franca; O seu vagar oculta uma elasticidade
Traz o esplendor do Dia e a palidez da Noite, Que deve dar um gosto amargo e deleitoso,
É, como o Sol, dourada, e, como a Lua, branca! E a sua glacial impassibilidade
Exalta o meu desejo e irrita o meu nervoso.
V
Pudesse-me eu prostar10, num meditado impulso, XI
Ó gélida mulher bizarramente estranha, Porém, não arderei aos seus contactos frios,
E trémulo depor os lábios no seu pulso, E não me enroscará nos serpentinos braços:
Entre a macia luva e o punho de bretanha11!... Receio suportar febrões16 e calafrios;
Adoro no seu corpo os movimentos lassos17.
VI
Cintila ao seu rosto a lucidez das jóias. XII
Ao encarar consigo a fantasia pasma; E se uma vez me abrisse o colo transparente,
Pausadamente lembra o silvo das jibóias E me osculasse18, enfim, flexível e submissa,
E a marcha demorada e muda dum fantasma. Eu julgara ouvir alguém, agudamente,
Nas trevas, a cortar pedaços de cortiça!
6
Honoré de Balzac: Escritor francês que viveu no século XIX. Tinha um extraordinário poder de observação,
memória fotográfica e capacidade intuitiva para perceber as atitudes dos outros, os seus sentimentos e motivações.
O romance balzaquiano faz com que o leitor descubra a alma e os sofrimentos incógnitos, em particular os
sofrimentos de abandono e de humilhação. Os seus romances são interditos a leitores unidimensionais.
7 Imperturbável, fria, impassível, indiferente.
8 É um tecido leve feito de algodão ou linho e utilizado para trabalhos de renda e bordado.
9
Abrigar
10
Imobilizar, deitar.
11 Tecido muito fino, de algodão ou linho.
12
Charles Pierre Baudelaire: poeta e escritor francês do século XIX. Herdeiro do Romantismo, conseguiu exprimir a
tragédia do destino humano e dar uma visão mística do universo.
13
Elogiar.
14
Enlouquece.
15
Navio de guerra de três mastros.
16
Febres intensas.
17
Fracos, fatigados.
18
Beijasse.
8
Análise:
Neste poema está presente uma figura feminina que o sujeito poético
assemelha a um país do norte, a Inglaterra, quer pelos seus traços físicos- séria, magra,
alta, pálida, branca (“flor do Norte”, bonita, porém gélida) - quer pelos seus traços
psicológicos- fria, austera, sisuda, impassível, insensível (pois, “não cora”, ou seja, não
demonstra sentimentos).
Esta composição poética está repleta de oximoros, paradoxos e contradições,
tanto se deve aos sentimentos confusos do eu lírico, como pela caraterização da
mulher descrita. “Traz o esplendor do Dia e a palidez da Noite,/ É, como o Sol, dourada,
e, como a Lua, branca!”- a figura feminina ao longo de todo o poema apresenta
caraterísticas contraditórias, tanto é representada dócil e calorosamente, como glaciar
e inflexível. Ao mesmo tempo que a sua imagem física provoca atração, o seu carácter
frígido e destituído de sentimentos afasta-o- “Exalta o meu desejo e irrita o meu
nervoso”. De facto, apesar de, por vezes, a repudiar, o sujeito poético releva em
simultâneo uma atração física pela mulher e fantasia uma aproximação, embora tenha
a consciência que isso só lhe traria mal.
Há como que uma tentativa de destrinça os dois planos, o inteligível e o
sensitivo. Fisicamente, sente-se atraído pela figura feminina e chega mesmo a desejá-
la carnalmente, enquanto racionalmente reconhece que a mulher está longe do seu
ideal feminino e que representa um “espetro angélico da Morte”.
Na última estrofe é evidente a carga erótica conferida pelo sujeito lírico. Ao
desejar que a mulher “ abrisse o colo transparente”, ou seja, se desnudasse e o
beijasse (=”osculasse”), cedendo aos seus sentimentos revelando flexibilidade e
submissão, contrariando o seu estado normal “descansada e firme”. Todavia, mesmo
nesse momento de êxtase, o eu poético, tem consciência de que o mal se abateria
sobre si, qual som infernal equiparado à audição do corte de “pedaços de cortiça”.
Através da integração, no poema, da contradição anjo-demónio, o sujeito
poético também carateriza o campo (mulher anjo) e a cidade (mulher demónio). De
estatura baixa e larga, as mulheres campestres portuguesas,
simbolizam trabalho, maternidade/fertilidade, enquanto uma
mulher alta e de movimentos “lassos” simboliza a cidade, onde se
encontram valores negativos.
Cesário Verde demonstra conhecimento por poetas franceses
do século XIX, nomeadamente de Balzac, apologista de mulheres
emocionalmente amadurecidas que demonstravam em pleno os
seus sentimentos e de Charles Baudelaire, poeta que se distinguiu
na época devido ao significante valor erótico nas suas composições.
Tal como o último referido, o sujeito poético também quer elogiar a
sensualidade feminina, simbolizada pelos seios (“ a distinção que fere, /As curvas da
magreza e o lustre dos adornos!”)
Renoir- Mulher Amamentando
(1886)
A mulher do campo portuguesa
contrasta com a mulher citadina
9
retratada no poema
A débil
Adorável! Tu, muito natural,
Eu, que sou feio, sólido, leal, Seguias a pensar no teu bordado;
A ti, que és bela, frágil, assustada, Avultava, num largo arborizado,
Quero estimar-te, sempre, recatada19 Uma estátua de rei num pedestal.
Numa existência honesta, de cristal.
Sorriam, nos seus trens, os titulares;
Sentado à mesa dum café devasso20, E ao claro sol, guardava-te, no entanto,
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura, A tua boa mãe, que te ama tanto,
Nesta Babel21 tão velha e corruptora, Que não te morrerá sem te casares!
Tive tenções de oferecer-te o braço.
Soberbo24 dia! Impunha-me respeito
E, quando socorreste um miserável, A limpidez do teu semblante grego;
Eu, que bebia cálices de absinto, E uma família, um ninho de sossego,
Mandei ir a garrafa, porque sinto Desejava beijar sobre o teu peito.
Que me tornas prestante, bom, saudável.
Com elegância e sem ostentação,
« Ela aí vem!» disse eu para os demais; Atravessavas branca, esbelta e fina,
e pus-me a olhar, vexado e suspirando, Uma chusma25 de padres de batina,
o teu corpo que pulsa, alegre e brando, E de altos funcionários da nação.
na frescura dos linhos matinais.
« Mas se a atropela o povo turbulento!
Via-te pela porta envidraçada; Se fosse, por acaso, ali pisada!»
E invejava, - talvez que o não suspeites! - De repente, paraste, embaraçada
Esse vestido simples, sem enfeites, Ao pé dum numeroso ajuntamento.
Nessa cintura tenra, imaculada.
E eu, que urdia26 estes fáceis esbocetos,
Ia passando, a quatro, o patriarca. Julguei ver, com a vista de poeta,
Triste eu saí. Doía-me a cabeça; Uma pombinha tímida e quieta
Uma turba22 ruidosa, negra, espessa, Num bando ameaçador de corvos pretos.
Voltava das exéquias23 dum monarca.
E foi, então, que eu, homem varonil27,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és ténue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.
19 Discreta.
20 Libertino, individuo desregrado.
21 Torre de Babel: Significa a "porta do céu" ou a "porta de Deus", é mencionada na Bíblia (Génesis, 11), como uma
das construções mais ambiciosas do homem. Chegados ao Oriente, os Babilónios estabeleceram-se na planície de
Sinar, onde resolveram construir uma cidade, a Babilónia, com uma torre, erigida, de forma a alcançar o céu.
Todavia a Torre de Babel era obra do orgulho humano, pois pretendia estar à altura de Deus e eventualmente
contra ele. Quando Deus veio à Terra visitar a obra, considerou que, sendo um povo só com uma única linguagem,
nada os impediria de realizarem o seu projeto. Então, para castigar a obra do orgulho humano, Deus resolveu
confundi-los na sua linguagem, de tal forma que não se compreendessem uns aos outros. Sem se entenderem, os
construtores da Torre de Babel interromperam os seus trabalhos de construção e dispersaram-se por toda a terra,
dando origem às diversas culturas e diferentes línguas que se falam no mundo. A partir de então, Babel passou a ser
sinónimo de confusão e a simbolizar o castigo divino sobre a arrogância, orgulho e paganismo humanos.
22Multidão.
23 Funerais.
24 Arrogante, altivo
25 Gente.
26 Fantasiava.
27 Viril, másculo.
10
Análise:
Esta composição poética representa uma mulher que sobressai, no meio
citadino, não pela sua excentricidade, mas pela sua pureza e simplicidade.
O sujeito poético serve-se de um conjunto de termos para caracterizar esta
mulher singular: “frágil, recatada, assustada, honesta, fraca, natural, dócil, recolhida”,
remetendo para a sua caracterização psicológica.
Fisicamente, a mulher é caracterizada como sendo “loura, de corpo alegre e
brando, cintura estreita, adorável, com elegância e sem ostentação, esbelta e fina,
ténue”.
Assim, este poema retrata uma figura feminina que surge no espaço rural,
contrária à típica mulher da cidade. Possivelmente, por estar num espaço que lhe é
estranho, a cidade, a mulher sente-se perdida e desnorteada num espaço que não está
adequado à sua fragilidade, necessitando de protecção masculina.
O sujeito lírico considera-se "feio, sólido, leal; sente-se prestável, bom e
saudável quando a vê, ao ponto de desejar beijá-la. Afirma ainda ser "hábil, prático e
viril", ou seja, com força suficiente para a socorrer quando ela precisar.
O eu lírico apresenta a cidade de forma negativa. Nestes espaços movimenta-se
figuras sórdidas, que ele carateriza como “turba ruidosa, negra” e “uma chusma de
padres de batina”. Tal permite destacar a fragilidade da jovem que torna estes locais
mais brilhantes e atractivos. Este poema põe em relevo uma figura feminina que
escapa à típica mulher citadina, mas também à mulher que surge no espaço rural.
Com o intuito de evidenciar o contraste entre o espaço e a jovem senhora, o
sujeito poético faz referência ao ajuntamento, característico dos espaços urbanos,
onde a agitação e a confusão imperam. Sobressaem as diferentes classes sociais que se
podiam encontrar no espaço citadino, o que permite afirmar que a cidade era palco de
vários seres que nele se movimentam, uns por ociosidade, outros por obrigação, tal
como seria normal numa cidade onde está a chegar a industrialização e para onde
acorrem os mais pobres, na expectativa de aí encontrarem melhores condições de
vida.
A luminosidade deste dia só é posta em evidência quando a figura feminina
surge nos locais onde anteriormente se moviam figuras conotadas com os aspectos
negativos da cidade. Só a visão desta mulher frágil e pura lhe possibilita uma visão
mais positiva da realidade, estando aqui realçados o tempo e o espaço psicológicos, ou
seja, aqueles que se resultam do estado de espírito do sujeito poético e da sua
construção.
O sujeito lírico revela o receio de perder a mulher admirada, porque, "os
corvos" a poderiam arrancar daquele local. Deste modo, o sujeito poético mostra-se
capaz de a salvar, mesmo que seja a custo da sua própria vida, mostrando-se protector
da fragilidade e capaz de tudo para poder conservar aquela figura que o fazia recordar
a simplicidade do campo e das mulheres que o povoam.
11
Cesário Verde serve-se de um conjunto de processos que, também neste
poema, podem ser percepcionados. É o caso do vocabulário preciso e exacto e as
imagens carregadas de visualismo que dão uma visão perfeita das realidades
visionadas. Além disso, percebe-se a objectividade que imprime ao conteúdo,
afastando-se, deste modo, do lirismo romântico. Para retratar fielmente a realidade ou
as figuras com que depara, o autor emprega a adjectivação e as frases preposicionais
de valor adverbial. Acresce ainda referir o uso das quadras e dos versos decassilábicos
que permitem uma maior aproximação à prosa.
Concluindo, este é um texto cheio de referências à realidade social, onde se
percepciona a crítica e a ironia de que Cesário Verde se serve e que reflectem o seu
carácter subjectivo.
O sujeito poético dá bastante importância ao imperfeito do indicativo neste
poema, de modo a enfatizar o fascínio que a mulher exerceu sobre ele é durável e
ainda perdura.
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Intertextualidade:
Cesário Verde Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.
Análise:
Neste poema de o sujeito lírico, faz uma homenagem a Cesário Verde dizendo-
nos que lê o seu livro até lhe arderem os olhos, ou seja, repetidamente. Ambos os
poetas são apaixonados pelo campo, sendo que Caeiro vive no campo, Cesário Verde
encontra-se na cidade. Mas enquanto a cidade os enjoa e prende, o campo encanta-os
e é símbolo de liberdade.
O eu lírico afirma que Cesário Verde deambulava pela cidade, pintando-a nos
seus poemas, como um pintor retrata o que vê no seu quadro. O poeta admirado
descreve de forma realista e objectiva, o que o rodeia na cidade, como um pintor
pincela uma os tons da natureza tais como eles são. Apesar da sua poesia concreta, o
poeta trata assuntos com grande sensibilidade como a desigualdade social, focando a
sua atenção nos que considerava vítimas de injustiça.
Na última estrofe, o sujeito poético declara que Cesário Verde “andava na
cidade como quem anda no campo” mais parecendo admirar as paisagens naturais;
Cesário Verde, com saudade do meio campestre, encontra-se, muitas vezes a
deambular pela cidade, como quem deambula pelo campo. Por se encontrar
desenquadrado e desambientado, Cesário Verde é comparado a uma flor, se ao ser
posta num jarro é arrancada do seu meio natural.
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