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O SUPERENDIVIDAMENTO:
Análise jurídico-econômica sobre
o acesso a bens e a serviços
RESUMO
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INTRODUÇÃO
3 De acordo com pesquisa divulgada pela Confederação Nacional do Comércio (CNC), atual-
mente, 59,4% de um total de 17,8 mil famílias entrevistadas estão endividadas. Desse percentual,
22% estão com contas em atraso e 7,9% alegam que não terão como quitar suas dívidas. (http://
www.cnc.org.br/noticias/economia/peic-dividas-caem-mas-inadimplencia-aumenta-em-julho - acesso
em 17 de agosto de 2015).
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seus titulares. A noção de “ter” do modelo liberal tem seu lugar de prioridade
ocupado pela concepção do “ser”, em uma autêntica defesa do indivíduo en-
quanto pessoa humana.
A dignidade direciona-se ao centro hermenêutico para uma leitura ju-
rídica civilista consistente, impulsionando o indivíduo sobre o patrimônio,
que passa a condição de instrumento do desenvolvimento humano. E nessa
perspectiva de promoção da dignidade como núcleo central, a existência de
um mínimo existencial apresenta-se como face da mesma moeda. A tutela
jurídica da dignidade humana se apresenta como elo indissociável um patri-
mônio mínimo capaz de torna-la efetiva frente aos anseios sociais.
E nessa compreensão de um patrimônio mínimo garantido aos indiví-
duos, atendendo as suas necessidades mais elementares, torna-se indispen-
sável que esses cidadãos efetivamente tenham acesso a tais bens4. Portanto,
diante de um cenário jurídico de inversão da ordem de valores, denominado
por vezes de despatrimonialização e repersonalização das relações jurídi-
cas, a concepção do patrimônio mínimo, como ferramenta de promoção da
dignidade, remete à reflexão do papel do Estado na promoção e na proteção
desse patrimônio.
Porém, a ressalva econômica dessa equação, ainda que se tenha como
fim a produção da dignidade do indivíduo, é o fato de não poder desarticular
a construção do patrimônio mínimo de uma visão eficiente dos institutos jurí-
dicos, na geração de benefícios e redução de custos coletivos. A promoção da
dignidade, ainda que fim, não deve atropelar a funcionalidade do patrimônio.
A pretensão de que o “ser” deve ocupar o centro de referencias e preocupações
do Direito com a proteção de um patrimônio mínimo tem gerado um reali-
dade não pretendida que é o superendividamento dos indivíduos em nome da
realização de um suposto bem-estar sem fim. E a busca por essa ideologia de
bem- estar parecer gerar, em contrapartida, não a realização do que se preten-
de como promoção de dignidade e inserção social já que mantém indivíduos
em condição de dependência em razão do superendividamento. Assim, para
que se possa falar em mínimo existencial como forma efetiva de promoção da
dignidade humana, políticas que possam coibir o superendividamento devem
4 Sobre o tema, Ricardo Luís Lorenzetti aduz: “ (...) o direito privado como garantia de acesso a
bens: um grupo numeroso vai sendo progressivamente posto de lado, excluído, são faces obscuras
do processo tecnológico (...). Fala-se hoje do acesso ao trabalho, o acesso a justiça, o acesso das
vitimas a reparação, acesso a propriedade privada. E preciso estabelecer uma garantia do acesso
aos bens primários.” LORENZETTI, 2003, p. 229)
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5 Evidentemente que não se pode precisar os períodos históricos, nem aqui si propõe a isso.
Portanto, a indicação de fatos e datas visam tão somente elucidar o contorno histórico proposto,
facilitando a compreensão do leitor.
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A crença liberal era no acordo livre de vontade das partes que impunha
o cumprimento das obrigaões pactuadas (pacta sunt servanda), cabendo ao
Estado apenas garantir o respeito a esses acordos livrementes formulados. O
modelo adotado era avesso a interferência judicial no que fora livremente pac-
tuado, valorizava-se a iniciativa privada e a liberdade contratual sem deter-se
sobre a proteção ao indivíduo, mas apenas legitimar sua participação, se este
indivídio era capaz, sob a perspetiva economica, para participar dessa circu-
lação de riquezas.
E como traço marcante desse momento histórico, a codificação repre-
sentou a possibilidade de validação dos ideais liberais, pois por meio do orde-
namento jurídico positivado pretendia-se sacramentar a proteção das relações
privadas, especialmente a defesa da construção plena do patrimônio, o exer-
cício da iniciativa privada e da autonomia da vontade, notadamente em sua
versão negocial.
A consolidação do pensamento liberal, predominando uma ideologia
patrimonialista, sugere como sua herança jurídico-normativa as premissas es-
tabelecidas pelo Código Civil Napoleônico de 1804 cujo “tom (de tal código)
era individualista e patrimonialista: o principal escopo era tutela e proteger os
direitos dos proprietários.” (FACHIN, 2006, p. 110).
E esse movimento de codificação do século XIX iniciado na Europa no
século XVII, repercutiu no Brasil por meio da elaboração do Código Civil de
1916, que procurou traduzir os valores típicos do Estado Liberal6. A aplicação
de um Código com esta natureza jurídico-economica, em pleno século XX,
6 Cumpre aqui salientar que o país teve um longo histórico de elaboração do Código Civil de
1916. Nota-see que o seu passo inicial foi dado no ano de 1823, quando foi promulgada a Lei de 10
de outubro de 1823, a qual ordenava a manutenção da legislação então vigente (as Ordenações
Filipinas, da época do Brasil-Colônia) até a realização de um código próprio do país. Posteriormene,
a Constituição imperial de 25 de março de 1824, em seu artigo 179, nº XVIII, determinou que, dentro
do lapso temporal de um ano, deveria ser feito, além do Código Criminal, o tão esperado Código
Civil, fundado “nas sólidas bases da justiça e da equidade”. De lá para cá, inúmeros foram os pro-
jetos elaborados, a exemplo da Consolidação das Leis Civis (1855) e do Esboço das Leis Civis (1865),
de Teixeira de Freitas, Apontamentos para o Projeto do Código Civil Brasileiro, de Joaquim Felício dos
Santos (1881), Projeto de Código Civil, de Coelho Rodrigues (1890), o Projeto de Clóvis Beviláqua (1899).
E foi apenas em 1o de janeiro de 1916 (Lei nº 3.071/1916), entrando em vigor em 1917, foi aprovado o
Código Civil Brasileiro que vigorou até a elaboração e vigência do Código Civil de 2002 - Lei 10.406.
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7 Interessante destacar que no campo específico do Direito de Família, seara do Direito Privado
onde naturalmente há maior valorização do indivíduo, o Código Civil a tutelou com um tom emi-
nentemente patrimonialista, tratando-a como um instituto de produção de riqueza. Nesse diapa-
são, ressalta-se que a visão do casamento apresentava um foco bastante econômico, a exemplo
do regime de bens (art. 230 – regime de bens) e da mútua assistência (art. 231, III), esta entendida
como um recíproco auxílio patrimonial, e do dever de educar e manutenção da prole (art. 231,
IV). Dessa forma, o genitor tinha como papel principal nutrir financeiramente seus filhos. Logo, a
paternidade não era inspirada na proteção da pessoa dos filhos, mas no patrimônio familiar.
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o livre mercado. Neste contexto então, não havia qualquer garantia a ideia
de patrimônio mínimo do cidadão voltado à preocupação com a promoção
da dignidade dos indivíduos, já que o pacta sunt servanda e a autonomia da
vontade em seu âmbito negocial se apresentavam com as principais diretri-
zes normativas. A ideologia liberal se dedicava ao patrimônio, fomentando
o “ter“ ainda que em prejuízo do “ser”, “impedindo a efetiva valorização da
dignidade humana, o respeito à justiça distributiva e à igualdade material ou
substancial” (RAMOS, 1998, p. 5).
Contudo, a partir da revolução industrial, que desencadeou uma ruptura
da metodologia de produção manufaturada para passar a construção de uma
filosofia de produção em larga escala, este teria sido um dos fatores relevantes
para que se implantasse, gradativamente, um demarcado cenário de desigual-
dade entre as classes sociais em razão de bens de produção que pudessem ser
por elas adquiridos. O desenvolvimento mercadológico, marcado por políticas
econômicas e novas técnicas produtivas, colocou determinadas classes sociais
à margem desse processo ou apenas como uma espécie de instrumento para
esse processo. A atividade empresária que estruturava cada vez mais robusta e
economicamente estabelecida passou a gerar uma grande quantidade de bens
no mercado, ignorando preocupações sobre qualquer tipo de consumo cons-
ciente dos bens fabricados. O crescimento do processo industrial marca uma
realidade socioeconômica relevantíssima para o Direito, pois a tutela jurídica
passa a ter que articular essa produção em massa de bens e a necessidade de
inserção dos indivíduos de todas as classes sociais no mercado de acesso a
esses bens, desde que de premissa principal fosse o reconhecimento do patri-
mônio a serviço da construção da “identidade” desse cidadão.
A partir dessa crítica à ideologia operacional do pensamento liberal,
pautada por uma suposta insuficiência do Estado em lidar com as questões
sociais, ou seja, com “a imensa pobreza e injustiças sociais derivadas do êxodo
rural, da concentração populacional das cidades e da revolução industrial”
(TIMM, 2008, p. 30), abriu caminho para o desenvolvimento de um modelo
operacional de Estado denominado do Bem-Estar Social (Welfare Sate), com
metodologia intervencionista e, por muitas vezes, extremamente paternalista.
O Estado, que sob a ética liberal, destinava-se a assegurar o respeito à liber-
dade e as escolhas individuais passa a desempenhar um papel interventor das
relações sociais e mercantis como mecanismo de proteção da qualidade e da
dignidade da vida humana, criando algumas possibilidades de inserção das
populações excluídas ao que seria um patrimônio mínimo.
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8 Exemplificado, nos termos dos artigos 5º, XXIII, e 170, III, da Constituição Federal (repetida
no art. 1.228, § 1º, do Código Civil de 2002), a propriedade deixa de ser um instituto com fim em si
mesmo, icone da valorização patrimonial, para ser concebida a partir de sua função social. no senti-
do de servir como instrumento para satisfação dos interesses da personalidade humana. A título de
ilustração, é com fulcro na dignidade da pessoa humana que a Constituição, ao longo do seu corpo,
elenca princípios que tutelam a prestação de alimentos (arts. 5º, LXVII, e 229), a saúde (arts 194 e
196), a ciência e tecnologia (art. 218), o patrimônio genético (art. 225, § 1º, II), os deficientes físicos
(arts. 203, IV, e 227, § 1º, II), o nascituro, a criança e o adolescente (art. 227) e o idoso (art. 230).
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Portanto, trata-se de uma categoria axiológica aberta, que não pode ser
fixada de modo definitivo, porque precisa ser permanentemente construída
pela dinâmica das situações concretas e a partir de uma hermenêutica jurídica
consistente. É dinâmica em sua essência. Em seu contorno a dignidade pode
ser interpretada como instrumento de inclusão, de consideração das diferen-
ças que envolvem os indivíduos, priorizando-se a perspectiva da solidarieda-
de e do interesse coletivo. E mesmo se houvesse um conceito universal de dig-
nidade, isso não evitaria conflitos na prática, quando da avaliação de um caso
concreto. Portanto, a necessidade de segurança jurídica indica a busca de uma
definição aberta e, minimamente objetiva, de dignidade da pessoa humana.
Para José Afonso da Silva (SILVA, 1998), “(...) a dignidade da pes-
soa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos
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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
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nos termos exigidos pelo art. 1º, III, CF. Todavia, modernamente destacou o
trabalho a tensão permanente entre a proteção de um patrimônio mínimo
como forma de efetivar o valor constitucional da dignidade e a realidade da
concessão de crédito e do acesso irresponsável a bens de consumo gerando a
situação jurídico-econômica do superendividamento.
A facilitação do acesso do consumidor ao crédito se revelou salutar já
que promove uma forma social de inclusão, porém tem permitido abusos
pelos fornecedores de crédito. Com a expansão do fenômeno do superendivi-
damento, novos paradigmas precisam ser discutidos e estruturados para a re-
gulamentação dos contratos de consumo que envolvam a outorga de crédito.
Apesar da ausência de legislação específica sobre o tema, a Constituição
Federal e o próprio Código de Proteção e Defesa do Consumidor contam
com princípios e dispositivos indiretos que permitiriam a tutelar os direitos
dos superendividados. O Projeto de Lei em tramitação no Senado (283/2012)
pretende criar regulamentação especial para a concessão responsável de cré-
dito com alteração do Código de Defesa do Consumidor exigindo maior
informação e aconselhamento por parte da instituição financeira na fase
pré-contratual, de forma a permitir a melhor possibilidade de reflexão antes
de assumir uma obrigação.
A proteção do superendividado revela-se mais um passo na permanente
construção do arcabouço jurídico-econômico para garantir um patrimônio
mínimo como recurso para promover o valor da dignidade humana, já que
permite a inclusão social do consumidor, seu acesso responsável aos bens de
consumo e o seu efetivo pertencimento ao Estado Democrático de Direito.
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