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BATALHA CRÍTICA CONTRA O no domínio da teoria, o materialismo coincidente com o

humanismo, o socialismo e o comunismo francês e inglês


MATERIALISMO FRANCÊS1 o representam no domínio da prática.
KARL MARX "A rigor e falando em sentido prosaico", existem
duas tendências no materialismo francês, das quais uma
“O spinozismo havia dominado o século XVIII, tanto provém de Descartes, ao passo que a outra tem sua
em seu desenvolvimento francês, que convertia a origem em Locke. A segunda constitui,
matéria em substância, quanto no teísmo, que dava à preferencialmente, um elemento da cultura francesa e
matéria um nome mais espiritual... A escola francesa de desemboca de forma direta no socialismo. A primeira,
Spinoza e os partidários do teísmo eram apenas duas representada pelo materialismo mecânico, acaba se
seitas que brigavam entre si acerca do verdadeiro perdendo naquilo que poderíamos chamar de ciências
sentido de seu sistema... O simples destino desse naturais. Ambas as tendências se entrecruzam no curso
esclarecimento foi seu naufrágio no romantismo, depois do desenvolvimento. Não pretendemos nos ocupar aqui,
de elas terem sido obrigadas a se entregar à Reação, que em detalhe, do materialismo francês diretamente
começou a partir do movimento francês”. proveniente de Descartes, nem da escola francesa de
Newton e do desenvolvimento da ciência natural
É isso que a Crítica tem a dizer. francesa de maneira geral.
À história crítica do materialismo francês nós Por isso, basta dizer o seguinte:
haveremos de opor, em um breve esboço, sua história Em sua física, Descartes havia concedido à matéria
profana, de massa. E reconheceremos assim, cheios de força autocriadora: além disso, havia concebido o
respeito, o abismo que existe entre a História tal como movimento mecânico como a obra de sua vida. Ele havia
realmente aconteceu e tal como aconteceu segundo o separado totalmente sua física de sua metafísica. Dentro
decreto da "Crítica absoluta", criadora tanto do velho de sua física, a única substância, o fundamento único do
quanto do novo. E, enfim, obedientes aos preceitos da ser e do conhecimento, é a matéria.
Crítica, faremos do "Por quê?", do "De onde?" e do O materialismo francês mecânico aderiu à física de
"Para onde" da história crítica "objeto de um estudo Descartes, em contraposição à sua metafísica. Seus
bastante detido". discípulos eram antimetafísicas de profissão, quer dizer,
"A rigor e falando em sentido prosaico" 2 , o físicos.
Iluminismo francês do século XVIII e, concretamente, o Essa escola começa com o médico Le Roy, alcança
materialismo francês, não foram apenas uma luta contra seu apogeu com o médico Cabanis, e tem como ponto
as instituições políticas existentes e contra a religião e a central o médico La Mettrie. Descartes ainda vivia
teologia imperantes, mas também e na mesma medida quando Le Roy transferiu à alma humana a construção
uma luta aberta e marcada contra a metafísica do século cartesiana do animal – algo parecido com aquilo que
XVIII e contra toda a metafísica, especialmente contra a haveria de fazer La Mettrie no século XVIII –, explicando
de Descartes, Malebranche, Spinoza e Leibniz. a alma como uma modalidade do corpo e as idéias como
Opunha-se a filosofia à metafísica tal como Feuerbach, movimentos mecânicos. Le Roy chegou a crer, inclusive,
em sua primeira investida resoluta contra Hegel, opunha que Descartes havia guardado em segredo sua
à especulação embriagada a filosofia sóbria. A verdadeira opinião. Descartes protestou contra isso. No
metafísica do século XVII, derrotada pelo Iluminismo fim do século XVIII Cabanis completou o materialismo
francês e, concretamente, pelo materialismo francês do cartesiano com sua obra intitulada "Rapports du
século XVIll, alcançou sua restauração vitoriosa e physique et du moral de l'homme"3.
pletórica na filosofia alemã, especialmente na filosofia O materialismo cartesiano existe até os dias de hoje
alemã especulativa do século XIX. Depois que Hegel a na França. Ele obtém seus grandes resultados nas
havia fundido de urna maneira genial com toda a ciências naturais mecânicas, às quais, a rigor e para falar
metafísica anterior e com o idealismo alemão, em sentido prosaico, menos do que a quaisquer outras
instaurando um sistema metafísico universal, ao ataque se pode jogar na cara a pecha de romantismo.
contra a teologia veio a corresponder de novo, conforme A metafísica do século XVII, representada na França
já acontecera no século XVIII, o ataque contra a principalmente por Descartes, teve, desde a hora de seu
metafísica especulativa e contra toda a metafísica. Ela nascimento, o materialismo como seu antagonista. Ele
haverá de sucumbir, de uma vez para sempre, à ação do atravessou o caminho de Descartes pessoalmente na
materialismo, agora levado a ser termo pelo próprio feição de Gassendi, o restaurador do materialismo
trabalho da especulação e coincidente com o epicurista. O materialismo francês e inglês se achou
humanismo. Mas assim como Feuerbach representava, sempre unido por laços estreitos a Demócrito e Epicuro.
Outra antítese à metafísica cartesiana se encontrava no
1
Extraído do capítulo VI – A Crítica crítica absoluta ou a Crítica crítica
3
conforme o senhor Bruno – de MARX, ENGELS: “A Sagrada Família”. Referência à obra de Pierre-Jean-Georges Cabanis Relações entre o
2
Ao longo do texto, Marx ironiza esta e outras expressões usadas físico e o moral do homem. A primeira edição do livro foi publicada
por Bruno Bauer e demais “críticos” alemães. em Paris, em 1802. (N.T.)
1
materialista inglês Hobbes. Gassendi e Hobbes relação à metafísica, que servia de esteio para essa
triunfaram sobre seu adversário muito tempo depois de crença. Por isso ele submete a metafísica, em toda sua
terem morrido, no momento mesmo em que este já trajetória histórica, à crítica. Ele tornou-se seu
imperava como uma potência oficial em todas as escolas historiador, a fim de escrever a história de sua morte. E
da França. refutou, prioritariamente, Spinoza e Leibniz.
Voltaire observou que a indiferença dos franceses Com a desintegração cética da metafísica, Pierre
do século XVIII ante as disputas dos jesuítas e Bayle não apenas preparou a acolhida do materialismo e
jansenistas4 não se devia tanto à filosofia quanto às da filosofia do juízo humano saudável na França. Ele
especulações financeiras de Law. E assim o colapso da anunciou a sociedade atéia, que logo começaria a existir,
metafísica do século XVII pode ser explicado pela teoria mediante a prova de que podia existir uma sociedade
materialista do século XVIII apenas na medida em que se em que todos fossem ateus, de que um ateu podia ser
explica esse movimento teórico partindo da um homem honrado e de que o que desagrada ao
conformação prática da vida francesa de então. Essa homem não é o ateísmo, mas sim a superstição e a
vida era orientada para as exigências diretas do idolatria.
presente, para o gozo do mundo e dos interesses Pierre Bayle foi, segundo a expressão de um escritor
seculares, para o mundo terreno. À sua prática francês, “o último dos metafísicos no sentido do século
antiteológica e antimetafísica, à sua prática materialista XVII e o primeiro dos filósofos à maneira do século XVIII”.
tinham necessariamente de corresponder teorias Além da refutação negativa da teologia e da
antiteológicas, antimetafísicas, materialistas. A metafísica do século XVII, era necessário um sistema
metafísica havia perdido praticamente todo o seu positivo, antimetafísico. Era necessário um livro que
crédito. Aqui, nos interessa apenas sugerir de maneira elevasse a sistema e fundasse teoricamente a prática de
breve a trajetória teórica. vida da época. A obra de Locke "Ensaio sobre o
No século XVII, a metafísica (basta pensar em entendimento humano" veio bem a calhar, saída do
Descartes, Leibniz etc.) ainda aparecia mesclada com um outro lado do Canal. E foi acolhida com grande
conteúdo positivo, profano. Ela fez descobertas nos entusiasmo, como o convidado ao qual se aguarda com
campos da matemática, da física e de outras ciências impaciência.
exatas, que pareciam fazer parte de seu campo de Cabe perguntar-se: Locke é, por acaso, um discípulo
estudos. Essa aparência acabou destruída já no fim do de Spinoza? A História "profana" pode responder:
século XVIII. As ciências positivas haviam se separado da O materialismo é o filho inato da Grã-Bretanha. Já o
metafísica a fim de traçar para si mesmas suas órbitas escolástico Duns Escoto se perguntava "se a matéria não
próprias e independentes. Toda a riqueza metafísica já podia pensar".
se limitava apenas a entes especulativos e a objetos Para poder realizar esse milagre, ele se refugiou na
celestiais, precisamente no momento em que as coisas onipotência divina, quer dizer, ele obrigou a própria
terrenas começavam a absorver e concentrar todo o teologia a pregar o materialismo. E Duns Escoto era,
interesse. A metafísica havia se tornado insossa. No ademais, nominalista. O nominalismo é um dos
mesmo ano em que morriam os últimos grandes elementos principais dos materialistas ingleses, da
metafísicos franceses do século XVII, Malebranche e mesma maneira que é, em geral, a primeira expressão
Arnauld, vinham ao mundo Helvetius e Condillac. do materialismo.
O homem que fez com que a metafísica do século O verdadeiro patriarca do materialismo inglês e de
XVII e toda a metafísica perdessem teoricamente seu toda a ciência experimental moderna é Bacon. A ciência
crédito foi Pierre Bayle. Sua arma foi o ceticismo, forjado da natureza é, para ele, a verdadeira ciência, e a física
das próprias fórmulas mágicas metafísicas. Ele mesmo sensorial a parte mais importante da ciência da
partiu da metafísica cartesiana. Assim como Feuerbach natureza. Suas autoridades são, freqüentemente,
foi impulsionado ao combate da filosofia especulativa Anaxágoras, com suas homeomerias5, e Demócrito, com
através do combate da teologia especulativa justamente seus átomos. Segundo sua doutrina, os sentidos são
porque ele reconhecia a especulação como o último infalíveis e a fonte de todos os conhecimentos. A ciência
esteio da teologia, porque não tinha mais remédio a não é a ciência da experiência, e consiste em aplicar um
ser obrigar os teólogos a voltar a fugir da pseudociência método racional àquilo que os sentidos nos oferecem. A
para a crença tosca e repulsiva, assim também vemos indução, a análise, a comparação, a observação e a
como a dúvida religiosa impulsionou Bayle à dúvida em experimentação são as principais condições de um
método racional. Entre as qualidades inatas à matéria, a
4
Os jansenistas eram os seguidores do teólogo holandês Cornelius
primeira e primordial é o movimento, não apenas
Jansen. O jansenismo, surgido no seio da Igreja Católica no século enquanto movimento mecânico e matemático, mas
XVII e condenado em várias bulas papais, já foi definido como “a também, e mais ainda, enquanto impulso, espírito de
doutrina de santo Agostinho vista com olhos calvinistas". A teoria
jansenista pregava uma ética severa e um rigoroso ascetismo. Seus
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principais adversários eram os teólogos jesuítas, que, influenciados Homeomerias são partículas pequeníssimas de que são feitas as
pelo humanismo renascentista, passaram a pregar a importância do coisas. As coisas são diferentes porque as homeomerias se agrupam
livre-arbítrio e da colaboração da vontade humana na salvação. (N.T.) de diversas formas, segundo a posição ou perspectiva que ocupam.
2
vida, força de tensão ou tormento - para empregar a Locke, em seu ensaio sobre as origens do
expressão de Jacob Bohme - da matéria. As formas entendimento humano, fundamenta o princípio de
primitivas desta são forças essenciais vivas, Bacon e de Hobbes.
individualizadoras, inerentes a ela, e que produzem as Assim como Hobbes havia destruído os
diferenças específicas. preconceitos teístas do materialismo baconiano, assim
Em Bacon, na condição de seu primeiro fundador, o também Collins, Dodwell, Coward, Hartley, Priestley etc.
materialismo ainda esconde de um modo ingênuo os jogam por terra a última barreira teológica do
germens de um desenvolvimento omnilateral. A matéria sensualismo lockeano. O teísmo não é, pelo menos para
ri do homem inteiro num brilho poético-sensual. A o materialista, mais do que um modo cômodo e
doutrina aforística em si, ao contrário, ainda pulula de indolente de desfazer-se da religião.
inconseqüências teológicas. Nós já mencionamos o quanto a obra de Locke veio
Em seu desenvolvimento posterior, o materialismo a calhar aos franceses.
torna-se unilateral. Locke havia fundado a filosofia do bom-senso, do
Hobbes é o sistematizador do materialismo juízo humano saudável; quer dizer, havia dito através de
baconiano. A sensualidade perde seu perfume para um rodeio que não existem filósofos distintos do
converter-se na sensualidade abstrata do geômetra. O bom-senso dos homens e do entendimento baseado
movimento físico é sacrificado ao mecânico ou nele.
matemático; a geometria passa a ser proclamada como O discípulo direto e intérprete francês de Locke,
a ciência principal. O materialismo torna-se Condillac, dirigiu de imediato o sensualismo lockeano
misantrópico. E, a fim de poder dominar o espírito contra a metafísica do século XVII. Ele provou que os
misantrópico e descarnado em seu próprio campo, o franceses a haviam repudiado com razão, como se fosse
materialismo tem de matar sua própria carne e tornar-se urna simples obra mal-feita da imaginação e dos
asceta. Ele se apresenta como um ente intelectivo, mas preconceitos teológicos. E publicou uma refutação dos
ele desenvolve também a conseqüência insolente do sistemas de Descartes, Spinoza, Leibniz e Malebranche.
intelecto. Em sua obra intitulada "L'essai sur l'origine des
Se os sentidos fornecem ao homem todos os connaissances humaines", Condillac desenvolveu os
conhecimentos, conforme Hobbes demonstra – partindo pensamentos de Locke e demonstrou que não apenas a
de Bacon –, a intuição, o pensamento, a representação alma, mas também os sentidos, não apenas a arte de
etc. não são senão fantasmas do mundo corpóreo mais fazer idéias, mas também a arte da captação sensorial
ou menos despojado de sua forma sensível. A única eram obra da experiência e do hábito. Da educação e das
coisa que a ciência pode fazer é nomear esses circunstâncias externas dependerá, por conseguinte,
fantasmas. Um nome pode ser usado para mais de um todo o desenvolvimento do homem. Condillac apenas foi
fantasma. Pode haver, inclusive, nomes de nomes. Mas afastado das escolas francesas através da chegada da
seria uma contradição fazer, de um lado, que todas as filosofia eclética.
idéias encontrem sua origem no mundo dos sentidos e, A diferença entre o materialismo francês e o
de outro lado, afirmar que uma palavra seja algo mais do materialismo inglês é a diferença que existe entre as
que uma palavra, que além das entidades sempre duas nacionalidades. Os franceses dotaram o
concretas que representamos existam ainda entidades materialismo inglês de espírito, de carne e de sangue, de
gerais. Uma substância incorpórea representa, muito eloqüência. Eles lhe emprestaram o temperamento e a
antes, a mesma contradição representada por um corpo graça que ainda não tinha. Civilizaram-no.
incorpóreo. Corpo, ser, substância são uma e única idéia Com Helvétius, que também parte de Locke, o
real. Não é possível separar o pensamento da matéria materialismo adquire seu caráter propriamente francês.
que pensa. Ela é o sujeito de todas as mudanças. A De imediato, esse autor concebe o materialismo em sua
palavra infinito é carente de sentido, caso não significar a relação com a vida social. (Helvétius. "De I'homme"6). As
capacidade de nosso espírito para acrescentar sem fim. qualidades sensíveis e o amor-próprio, o gozo e o
E, como só o material é perceptível e suscetível de ser interesse pessoal bem entendido são o fundamento de
sabido, não se sabe nada da existência de Deus. Só a toda moral. Essa igualdade natural das inteligências
minha própria existência é certa. Toda paixão humana é humanas, a unidade entre o progresso da razão e o
um movimento mecânico que termina ou começa. Os progresso da indústria, a bondade natural do homem e a
objetos dos impulsos são o bem. O homem está onipotência da educação: são esses os momentos
submetido às mesmas leis que a natureza. Poder e fundamentais de seu sistema.
liberdade são idênticos.
Hobbes havia sistematizado Bacon, mas sem
6
fundamentar de maneira mais precisa seu princípio Referência à obra De l'homme, de ses facultés intellectuelles et de
fundamental, a origem dos conhecimentos e das idéias son éducation (Do homem, de suas faculdades intelectuais e de sua
partindo do mundo dos sentidos. educação) de Claude-Adríen Helvétius. Essa obra foi publica da pela
primeira vez depois da morte de seu autor em Haia, em 1773, através
do apoio do embaixador russo na Holanda, Dimitri Alekseiéwitch
Golizin. (N.T.)
3
Uma união entre o materialismo cartesiano e o indivíduo, mas [devem-se] sim destruir as raízes
materialismo inglês pode ser encontrada nas obras de La anti-sociais do crime e dar a todos a margem social
Mettrie. Ele utiliza a física de Descartes até os detalhes. necessária para exteriorizar de um modo essencial sua
Seu “L'homme machine”7 é um desenvolvimento que vida. Se o homem é formado pelas circunstâncias, será
parte do protótipo cartesiano do animal-máquina. No necessário formar as circunstâncias humanamente. Se o
"Système de Ia nature'' de Holbach8, a parte física é homem é social por natureza, desenvolverá sua
constituída também pela combinação entre o verdadeira natureza no seio da sociedade e somente ali,
materialismo francês e o inglês, assim como a parte razão pela qual devemos medir o poder de sua natureza
moral descansa, essencialmente, sobre a moral de não através do poder do indivíduo concreto, mas sim
Helvétius. Mas o materialista francês que no final das através do poder da sociedade.
contas guarda a maior relação com a metafísica, razão Essas sentenças e outras semelhantes podem ser
pela qual Hegel lhe tributa um elogio, é Robinet ("De Ia encontradas, quase ao pé da letra, até mesmo nos mais
nature"), que se refere expressamente a Leibniz. velhos entre os materialistas franceses. Aqui não é o
Não será necessário falarmos de Volney, Dupuis, lugar adequado para avaliá-Ias. Característico da
Diderot etc., tampouco dos fisiocratas, depois de termos tendência socialista do materialismo é a Apologie der
provado como o materialismo francês tem sua dupla Laster (Apologia do vício), de Mandeville, discípulo inglês
ascendência na física cartesiana e no materialismo dos de Locke, mais velho do que ele. Mandeville demonstra
ingleses, e de haver assinalado a antítese que o que na sociedade de hoje os vícios são indispensáveis e
materialismo francês representa no que diz respeito à úteis. O que não é, por certo, uma apologia da sociedade
metafísica do século XVII, à metafísica de Descartes, atual.
Spinoza, Malebranche e Leibniz. Essa antítese apenas Fourier parte diretamente da doutrina dos
pôde tornar-se visível aos alemães a partir do momento materialistas franceses. Os babouvistas eram
em que eles mesmos se encontraram numa posição materialistas toscos e incivilizados, mas também o
antitética em relação à metafísica especulativa. comunismo francês desenvolvido se origina diretamente
Assim como o materialismo cartesiano acaba na do materialismo francês.
verdadeira ciência da natureza, a outra tendência do Este perambula, na verdade, de volta a sua
materialismo francês desemboca diretamente no pátria-mãe, a Inglaterra, sob a feição que Helvétius lhe
socialismo e no comunismo. concedeu. Bentham erige seu sistema do interesse
Não é preciso ter grande perspicácia para dar-se bem-entendido sobre a moral de Helvétius, do mesmo
conta do nexo necessário que as doutrinas materialistas modo que Owen, partindo de Bentham, assenta as bases
sobre a bondade originária e a capacidade intelectiva do comunismo inglês. Desterrado na Inglaterra, o
igual dos homens, sobre a força onipotente da francês Cabet é estimulado pelas idéias comunistas que
experiência, do hábito, da educação, da influência das lá imperam e, de volta à França, converte-se no
circunstâncias sobre os homens, do alto significado da representante mais popular e, ao mesmo tempo, mais
indústria, do direito ao gozo etc. guardam com o superficial do comunismo. Os comunistas franceses,
socialismo e o comunismo. Se o homem forma todos mais científicos, Dézamy, Gay e outros, desenvolvem, da
seus conhecimentos, suas sensações etc. do mundo mesma forma que Owen, a doutrina do materialismo na
sensível e da experiência dentro desse mundo, o que condição de teoria do humanismo real e de base lógica
importa, portanto, é organizar o mundo empírico de tal do comunismo.
modo que o homem faça aí a experiência, e assimile aí o Pois bem, onde foi que o senhor Bauer – ou a
hábito daquilo que é humano de verdade, que se Crítica – soube arranjar os documentos autênticos para
experimente a si mesmo enquanto homem. Se o escrever a história crítica do materialismo francês?
interesse bem-entendido é o princípio de toda moral, o 1. A "Geschichte der Philosophie" ("História da
que importa é que o interesse privado do homem filosofia") de Hegel apresenta o materialismo francês
coincida com o interesse humano. Se o homem goza de como sendo a realização da substância spinozista, o que
liberdade em sentido materialista, quer dizer, se é livre é, desde logo, incomparavelmente mais inteligível do
não pela força negativa de poder evitar isso e aquilo, que a "escola francesa de Spinoza".
mas pelo poder positivo de fazer valer sua verdadeira 2. O senhor Bauer extraiu da leitura da "História da
individualidade, os crimes não deverão ser castigados no filosofia" hegeliana a idéia do materialismo francês
como escola de Spinoza. E, como encontrou em outra
7
obra de Hegel que o teísmo e o materialismo são duas
Essa obra ("O homem-máquina") de La Mettrie foi publicada
anonimamente em Londres e logo após queimada. E o autor foi
partes de um e do mesmo princípio fundamental, resulta
expulso da Holanda, para onde havia emigrado saindo da França. que Spinoza tinha duas escolas, que brigavam acerca do
(N.T.) sentido de seu sistema. O senhor Bauer pode encontrar
8
A obra de Holbach Système de !a nature, ou de !ois du monde a chave que buscava na "Fenomenologia" de Hegel. Ali
physique et du monde moral (Sistema da natureza, ou das leis do está escrito, literalmente:
mundo físico e do mundo moral) foi publicada em 1770. Por motivos
conspirativos, foi declarado autor da obra o secretário da Académie “Acerca daquele ente absoluto, entra em disputa
Française, J. B. Mirabaud, falecido em 1760. (N.T.) consigo mesmo o próprio Iluminismo... e se divide em
4
dois partidos... um deles... chama aquele ente absoluto entende não só a educação em seu sentido ordinário,
carente de predicados... de o mais alto dos seres... o mas todo o conjunto das condições de existência e
outro o chama de matéria... ambos são o mesmo relações de vida de um indivíduo), se é necessária uma
conceito, a diferença não está na coisa em si, mas reforma que faça desaparecer a contradição entre o
puramente no ponto de partida diverso de ambas as interesse particular e o interesse geral, é preciso, para a
formações”. ("Fenomenologia" de Hegel, p. 420, 421, realização de tal reforma, uma modificação de sua
422.) consciência: "Não se pode realizar as grandes reformas
3. Por fim o senhor Bauer pôde encontrar também senão debilitando a estúpida veneração dos povos pelas
em Hegel que a substância, se não segue se velhas leis e costumes"; isto é, acabando com a
desenvolvendo até chegar ao conceito e à auto- ignorância.
consciência, acaba no "romantismo". É algo semelhante 2. Holbach. "Só a si mesmo o homem pode amar
àquilo que um dia foi desenvolvido pelos "Hallischen nos objetos que ama; só a si mesmo pode estimar nos
Jarhbüher" ("Anais de Halle"). seres de sua espécie. O homem nunca pode separar-se
Mas o "espírito" tinha de decretar, a todo custo, um de si mesmo, em nenhum instante de sua vida; não pode
"destino simplório" a seu "adversário", o materialismo. perder-se de vista. É sempre nossa utilidade, nosso
interesse que nos fazem odiar ou amar os objetos".
(Sistema social, Paris, 1822; p.80, 112). Mas o homem,
Nota: O nexo do materialismo francês com por seu próprio interesse, deve amar aos outros
Descartes e Locke e a antítese da filosofia do século XVIII homens, porque são necessários para seu bem estar. A
diante da metafísica do século XVII aparecem expostos moral lhe mostra que, entre os seres, o mais necessário
em detalhe na maioria das modernas histórias francesas ao homem é o homem" (p. 76). "A verdadeira moral,
da filosofia. Aqui, nos limitamos a repetir algumas coisas assim como a verdadeira política, é a que trata de
já sabidas em relação à Crítica crítica. Já o nexo entre o aproximar aos homens, a fim de fazer-los trabalhar com
materialismo do século XVII e o comunismo inglês e seus esforços reunidos para sua mútua felicidade. Toda
francês do século XIX, ao contrário, merece ser exposto moral que separa nossos interesses dos de nossos
de maneira bem mais detalhada. Por isso nos associados é falsa, insensata, contrária à natureza" (p.
limitaremos a citar aqui algumas poucas, mas 116). "Amar aos outros é confundir nossos interesses
eloqüentes, passagens de Helvétius, Holbach e Bentham. com os de nossos associados, a fim de trabalhar peIa
1. Helvétius: "Os homens não são maus, mas estão unidade comum. A virtude não é outra coisa que a
submetidos a seus interesses. Não devemos, pois, utilidade dos homens reunidos em sociedade" (p. 77).
queixar-nos sobre a maldade dos homens, mas sim da "Um homem sem paixões ou sem desejos deixaria de ser
ignorância dos legisladores, que desde sempre um homem. Totalmente indiferente a si mesmo, como
colocaram o interesse particular em oposição ao poderia se determinar a sentir afeto por outros? Um
interesse geral." – "Os moralistas não tiveram, até aqui, homem indiferente a tudo, privado de paixões, que se
nenhum êxito, porque é necessário fuçar na legislação bastasse a si mesmo, não seria um ser sociável. A virtude
para extirpar a raiz criadora do vício. Em Nova Orleans, a não é senão a comunicação do bem" (p. 118). "A moral
mulher casada pode repudiar o seu marido, tão logo se religiosa nunca serviu para fazer mais sociáveis os
canse dele. Em tais países não encontramos mulheres mortais" (p. 36).
falsas, uma vez que elas não têm interesse algum em 3. Bentham. De Bentham, nos limitaremos a citar
sê-Io." – "A moral é apenas uma ciência frívola, quando a apenas uma passagem, na qual combate o "interesse
gente não a une com a política e a legislação." – "Os geral" em sentido político. "O interesse dos indivíduos
moralistas hipócritas podem ser reconhecidos, de um deve ceder ao interesse público. Mas... que significa
lado, na indiferença com que tratam dos vícios que isso? Por acaso todo indivíduo não é parte do póblico, o
acabam com impérios inteiros, de outro lado pela ira mesmo que qualquer outro? Esse interesse público que
com que fustigam os vícios privados." – "Os homens não personificais não é mais que um termo abstrato; apenas
nasceram nem bons nem maus, mas prontos a ser uma representa a massa dos interesses individuais... Se fosse
ou outra coisa, dependendo de como um interesse bom sacrificar a fortuna de um indivíduo para
comunitário os una ou separe." – "Se os cidadãos não incrementar a de outro, seria melhor ainda sacrificar a
pudessem conseguir sua felicidade particular sem de um segundo, de um terceiro, sem assinalar-se limite
fomentar o bem geral, não haveria mais homens viciosos algum... Os interesses individuais são os únicos
do que o número dos tolos, e a felicidade das nações interesses reais" (Bentham, "Théorie des peines et des
seria um benefício da moral" ("De l'esprit, Paris, 1822, I, récompenses" etc., Paris, 1826, 3éme., ed., II, p. [229],
P: 117,240,241,249,251,339 e 369.)9 – Como, segundo 230).
Helvetíus, o que forma o homem é a educação (pela qual

9
Referência à obra "De I'espirit" ("Do espírito"), de Helvétius,
publicada em 1758, em Paris. Anônima, a obra foi queimada em
1759, depois de ser considerada ofensiva à religião e ao Estado. (NT)
5

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