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A ARGUMENTAÇÃO DE GL 3,10-14, MAIS UMA VEZ.


DIFICULDADES E PROPOSIÇÕES
Jean-Noël Aletti, S.J.

Ao ler os estudos publicados nos últimos anos sobre Gl 3,10-14, não se pode deixar de pensar que,
para uma exegese Paulina, tais versículos permanecem uma vexata quaestio. Embora alguns tenham
tentado reconstruir, com pouco sucesso, o trabalho interno e as etapas da argumentação1, outros de-
sistiram pelo fato da lógica da passagem parecer tão desconcertante. Sem entrar em uma análise se-
mântica detalhada que pode ser encontrada em qualquer lugar; aqui, a lógica, com seus paradoxos,
suas principais características e seus limites, serão reexaminadas.

1. A finalidade de Gl 3,6-14
Todos os comentaristas reconhecem que Gl 3,6-14 forma uma unidade retórica na qual a demons-
tração é exclusivamente escritural, e isto não pode ser contestado. Também é aceito que a argumenta-
ção de Paulo é desenvolvida em duas unidades: vv. 6-9, nos quais Paulo afirma o elo essencial exis-
tente entre a fé e a bênção; e vv. 10-14, nos quais ele recusa a Lei2 como portadora de bênção e justi-
ficação:
vv. 6-9 o elo essencial entre a fé e a bênção (de Abraão para as Nações):
v. 6 = Gn 15,6 “ele (Abraão) creu no Senhor, e isso lhe foi imputado para justiça”
v. 8 = Gn 12,3/18,18 “nele serão benditas todas as nações (ou todas as famílias/tribos) da terra”
vv. 10-14 a ligação entre a Lei e a maldição (e não justificação pela Lei)
v. 10 = Dt 27,26 “Maldito aquele que não confirmar as palavras desta lei, não as cumprindo”
v. 11 = Hab 2,4 “o justo viverá pela sua fé”
v. 12 = Lv 18,5 “Portanto, os meus estatutos e os meus juízos guardareis, cumprindo-os o
homem viverá por eles”
v. 13 = Dt 21,23 “o que for pendurado no madeiro é maldito de Deus”
Portanto, Paulo inicia enfatizando o fato de que a justificação vem por meio da fé (vv. 6-9), e en-
tão mostra que a Lei não está associada a este processo (vv. 10-14). Ele faz isto para deixar claro que
os cristãos étnicos foram justificados sem serem sujeitos à Lei, em outras palavras, sem terem sido
circuncidados e sem cumprir as obras requeridas pela Lei. É importante perceber que ambas as uni-
dades terminam com a bênção das Nações (isto é, dos não judeus ou incircuncisos) e, desta forma, a
argumentação é positivamente orientada. Este dual terminus ad quem não deve ser esquecido.
vv. 8-9 Os gentios (e;qnh) abençoados (euvlogou/ntai) com Abraão,
v. 14 Que... a bênção (euvlogi,a) de Abraão virá sobre os gentios (e;qnh)
Se o terminus ad quem está claro, a forma que conduz a ele é menos clara. Entretanto, pode-se
perceber facilmente que a dificuldade confrontada por Paulo vem de Gn 17,10-14, no qual o próprio
Deus diz explicitamente ao Patriarca que os incircuncisos terão que ser cortados de seu povo, em
outras palavras, serão excluídos da família de Abraão e das bênçãos que a ele foram prometidas. As-
sim, é a circuncisão que permite a inserção como membro do povo, um descendente de Abraão e su-
jeito à Lei. Tornar-se sujeito à Lei é, em si, essencial para obter as bênçãos prometidas a Abraão, uma
vez que, do contrário, a exclusão do povo (por ser incircunciso) equivale a ser excluído dos descen-
dentes de Abraão. Portanto, Paulo precisou demonstrar que os crentes não judeus são abençoados em
(e com) Abraão (cf. vv. 6-9) sem se submeterem à circuncisão e se tornarem sujeitos à Lei (cf. vv.
10-14). Tal é a finalidade desta passagem.

1
Cf., os ensaios mais recentes de Bachmann, “Zur Argumentation von Galater 3.10-12”, e Marguerat, “L’évangile
paulinien de la justification par la foi.”
2
Com inicial maiúscula, esta palavra designa apenas a Lei Mosaica e não qualquer outra lei.
2

2. Versículos 6-9
Nos vv. 6-9, Paulo utiliza as Escrituras para provar que os gentios têm uma parte nas bênçãos
prometidas a Abraão. Para o Apóstolo, era importante o fato de que a Escritura tinha anunciado de
antemão (proeuhggeli,sato) a bênção dos Gentios em Abraão, e isto acontecera assim logo de início
(Gn 12,3); esta bênção, portanto, não significa que Deus tenha mudado Sua mente – ela, no final das
contas, precede Gn 17,10-14. Além disto, Ele quis que ela viesse por meio de Abraão e pela fé tal
como acontecera com Abraão.
Considerando sua finalidade, estes versículos são claros, mas, no entanto, eles levantam dificulda-
des, porque (i) se é necessário ser parte da descendência (spe,rma) de Abraão a fim de herdar as bên-
çãos, e se isto requer ser circuncidado, como Deus exigiu em Gn 17,10-14, os cristãos étnicos não
deveriam se submeter à circuncisão a fim de compartilhar das bênçãos? (ii) os versículos 6-9 também
são aplicados aos VIoudai/oi, que dizem ser homens de fé, uma fé expressa na obediência à vontade
divina promulgada na Lei, uma obediência desejada pelo próprio Deus.
Portanto, Paulo deve mostrar que os Gentios obtiveram as bênçãos prometidas a Abraão sem te-
rem que se sujeitar à Lei, em outras palavras, sem terem sido circuncidados e assim terem se tornado
VIoudai/oi. Existem dois tipos possíveis de argumentação nos quais o caso de Abraão é normativo para
ambos: (i) o primeiro, no qual é necessário mostrar que Gn 17 não torna obsoleto Gn 15 e que evita o
estabelecimento de uma ligação entre a Lei e a maldição; a escolha feita em Rm 4. (ii) O segundo, no
qual é necessário mostrar que a Lei, longe de ser necessária para obtenção das bênçãos prometidas,
carrega, antes, uma maldição. Esta é a forma escolhida por Paulo em Gl 3,10-14.

3. Versículos 10-12
A lógica destes versículos não está, de forma alguma, evidente, como demonstram as diferentes
interpretações3. Portanto, pode ser útil recordar os dois estágios pelos quais Paulo passa: os vv. 10-12
nos quais afirma-se, progressivamente, que a Lei não pode justificar porque nenhuma parte dela está
ligada com a fé; e os vv. 13-14 nos quais é dito que Cristo é o único que promoveu libertação da
maldição da Lei. Estes dois versículos (vv.13-14) são claramente necessários para a argumentação.
Realmente, não é suficiente dizer que a Lei não pode justificar (vv. 10-12) sem indicar por quem ou
graças a quem nós somos justificados (vv. 13-14).
Nestes dois estágios, as declarações de Paulo são seguidas por uma declaração bíblica que lhes
dão sustentação:

Declarações de Paulo Suporte da Escritura


Todos quantos, pois, são das obras da lei estão debaixo de maldição (v. 10a) Dt 27,26
É evidente que, pela lei, ninguém é justificado diante de Deus (v. 11a) Hab 2,4
Ora, a lei não procede da fé (v. 12a) Lv 18,5
Cristo nos resgatou da maldição da lei... (v. 13a) Dt 21,23

As declarações do v. 10
O v. 9 diz que aqueles que se apoiam na fé são abençoados com Abraão, o crente. Mas os judeus
consideram que eles também são crentes e que seu compromisso com a Lei faz com que obtenham as
bênçãos prometidas. Portanto, agora Paulo deve demonstrar que não é assim.
Na primeira razão, oferecida no v. 10a, muita tinta já foi gasta na tentativa de interpretá-la, pela di-
ficuldade com relação à sua semântica4. O que significa o[soi evx e;rgwn no,mou eivsi,n? Literalmente:
“todos aqueles que são da obras da Lei”, que as Bíblias ou comentários traduzem de maneiras dife-

3
Além da lista praticamente exaustiva dada por Bachmann em “Zur Argumentation von Galater 3.10-12”, veja tam-
bém um breve estado da questão em Marguerat, “L’évangile paulinien de la justification par la foi”.
4
Scott, “’For as Many as are of Works of the Law are under a Curse’ (Gal 3,10)”, identificou oito interpretações prin-
cipais e acrescentou a sua própria. Veja também Pitta, La lettera ai Galati, 183-186, e Das, “Galatians 3:10”.
3

rentes: “para os que confiam nas obras da lei”5, “para todos os que dependem das obras da lei”6, e
para “aqueles que se apoiam na observância da Lei”7. Primeiramente, vamos dispensar a interpreta-
ção – felizmente cada vez menos em voga – segunda a qual o versículo está descrevendo aqueles que
querem obter glória e valor por suas próprias obras conformadas à exigências da Lei. Além de carica-
turar a atitude do judeu fiel, esta leitura não pode ser recomendada porque não é uma questão de or-
gulho nem de vanglória. Por outro lado, os comentaristas comparam corretamente o evx e;rgwn no,mou
eivsi,n ao evk pi,stewj de Gl 3,7 e 9, com o qual é contrastado8. A preposição evk indica origem (famili-
ar, étnica, geográfica, religiosa, etc.), e aqui a expressão designa aqueles que são definidos com base
nas mesmas convicções, em outras palavras, todos que, seja de origem judaica ou não9, fazem da
observância da Lei10 o princípio de seu relacionamento com Deus e com o homem. Pois, Paulo acres-
centa, eles estão todos sob uma maldição (u`po. kata,ran eivsi,n). Por um longo tempo foi notado que o
v. 10a não os está declarando amaldiçoados (evpikata,ratoi), mas apenas sob a ameaça de uma maldi-
ção, sendo a razão dada pela passagem das Escrituras (Dt 27,26 no v. 10b) que enfatiza esta declara-
ção, radicalizando-a. Para saber o que Paulo quer dizer no v. 10a, é então importante examinar a cita-
ção no v. 10b. Estas duas declarações formam, levando-se em conta qualquer um dos comentaristas,
um entimema, no qual Dt 27,26 seria a premissa principal e o v. 10a, a conclusão11, a premissa ausen-
te seria então inferida das declarações presentes12:
Premissa 1 = v. 10b (M) todo que não observa e obedece a todas as coisas escritas no livro da
lei (A) é amaldiçoado (Dt 27,26)
Premissa 2 = ausente (B) Todo que confia nas obras da lei (M) não observa e obedece todas as
coisas escritas no livro da lei
Conclusão = v. 10a (B) Todo que confia nas obras da lei (A) estão sob uma maldição.

Este silogismo levanta algumas dificuldades. Que a Lei não é obedecida por todos é um fato de-
nunciado pelos profetas; mas alguns judeus, como o fariseu Saulo foi um dos obedientes13, existem
também aqueles que não hesitam em se declarar irrepreensíveis, e não podem aceitar, portanto, a
premissa ausente14. Notemos também que para os escritos bíblicos, a categoria daqueles que obser-
vam a Lei não é irreal nem utópica15. Então, aqueles que, a despeito de todos os seus esforços, são

5
Versão RSV. Também Dunn, The Epistle to the Galatians (BNTC; Peabody, MA 1993) 170, e muitos outros.
6
Versão NAB.
7
Versão JB.
8
Cf. Buscemi, Galati, e muitos outros antes dele.
9
O o[soi pode incluir vários grupos: (a) os judeus, especialmente aqueles que se recusaram a crer em Cristo por fideli-
dade à Lei; (b) aqueles judeus que costumam ser chamados de judeu-cristãos; (c) prosélitos; (d) e aqueles cristãos étnicos
que, sem querer se tornar prosélitos, eram desejosos de obedecer à Lei.
10
Nota do autor: eu traduzi a expressão e;rga no,mou, ambígua em alguns aspectos, desta forma porque ela pode desig-
nar os mandamentos impostos pela Lei ou a sua execução, em outras palavras, um estilo de vida que se conforma a esta
mesma Lei, como mostram as duas leituras de 4QMMT. Para a primeira (os mandamentos), veja, por exemplo, Bach-
mann, “4QMMT und Galaterbrief, hrwth yf[m und ERGA NOMOU”, e para a segunda (estilo de vida), de Roo, “The
Concept of ‘Works of the Law’ in Jewish and Christian Literature”, 144: “[I]n 4QMMT, ‘obras da lei’ se refere ao estilo
de vida obediente dos bons reis israelitas, seu “temor da lei” e sua “busca pela lei”, seu desejo de conhecer o que Deus
queria que eles fizessem, e suas “boas obras”. A expressão “obras da lei” expressa tudo isto: temer, buscar e praticar a lei;
em resumo, significa viver em obediência à lei de Deus”
11
V. 10a é também chamado por alguns de propositio da passagem, o que é necessário provar.
12
Cf., por exemplo, Das, “Galatians 3:10”, 146, que cito com satisfação, mudando a ordem dos componentes lógicos
(A, B e M) a fim de destacar melhor a forma do raciocínio. Neste silogismo da primeira figura, o termo médio (M), que
não é encontrado na conclusão, é colocado no início da primeira premissa e no fim da segunda; assim, o silogismo perce-
bido por Das não pertence a nenhum dos quatro tipos sempre verdadeiros, aqueles em barbara, celarent, darii e ferio, que
compelem a verificação da verdade de cada premissa. Além disto, já que (M) e (A) não correspondem exatamente um ao
outro a partir de uma declaração para outra, a construção do silogismo se torna problemática.
13
Cf. Gl 1,14b; Fl 3,6
14
Em outras palavras, a premissa 2 do diagrama.
15
Cf., por exemplo, Sl 118/119,51. 61.109; Ecl 8.14; Sb 2,10.12.18; 4,7; 5,15; 10,20; Dn 13,3 LXX; Lc 1,6; 2,25. E
também as afirmações dos Salmos nas quais se pede o louvor do justo, o que claramente assume sua existência.
4

incapazes de alcançar uma total irrepreensibilidade, sabem como confiar na misericórdia e no perdão
de Deus, convencidos de que eles têm parte nas bênçãos prometidas por Deus aos que amam sua Lei.
Portanto, o judeu que quer obedecer à Lei não exclui nem a misericórdia, nem o perdão pelas falhas e
imperfeições16. Se a citação de Dt 27,26 declara malditos aqueles que não mantêm rigorosamente
todos os mandamentos da Lei17, é a fim de enfatizar a seriedade da situação de todos aqueles para os
quais a Lei é a regra da vida: toda transgressão corre o risco da maldição18. Ao tomar Dt 27,26 e leva-
lo a sua máxima extensão19, Paulo está enfatizando sua seriedade20.
Tudo o que destacamos até agora pode ser resumido da seguinte forma: (a) o Apóstolo começa
advertindo os praticantes da Lei que eles devem ser completamente fieis senão se encontram sob o
risco de uma maldição; (b) os mandamentos a serem praticados não são apenas marcadores de limi-
tes21, pois a forma pela qual a citação é repetida mostra claramente que Paulo não está considerando
apenas uma lista de mandamentos, mas todos eles; (c) O v. 10 forma uma unidade retórica e demons-
trativa, portanto, não há necessidade de conectá-la ao v. 11a que, como será visto, responde a outras
questões; (d) mesmo aceitando que muitos se arriscaram a ser amaldiçoados, o v. 10 não é suficiente
como prova, pois ainda existem aqueles cujo deleite está na Lei de Deus, aqueles aos quais as Escri-
turas chamam de justos. O Apóstolo deve ir adiante e mostrar que, mesmo para eles, a obediência aos
mandamentos da Lei não pode torná-los justos. Este é o propósito do v. 11.

As declarações do v. 11
Alguns exegetas apresentam a progressão da argumentação da passagem, considerando os vv. 11-
12 uma unidade lógica que acreditam estar articulada sob a forma de um silogismo e que, para sim-
plificar, pode ser descrito como se segue22:
Premissa 1 = v. 11b (A) aquele que é justo (M) viverá pela fé (Hab 2,4)
Premissa 2 = v. 12a (B) a Lei (M) não procede da fé,
Conclusão = v. 11a (B) a Lei (A) não torna ninguém justo.

16
Cf. Pr 24,16 (“porque sete vezes cairá o justo e se levantará”), todas as confissões pós-exílicas de pecado e dos úl-
timos Salmos, tais como Sl 102/103, segundo os quais o primeiro de todos os benefícios divinos é o perdão.
17
Diferente do Grego, o texto Hebraico de Dt 27,26 não tem o lK, mas é encontrado em Dt 28,1, no Grego e no He-
braico: wytwcm lK ta twf[l (correção da tradutora – no original francês temos tAf[]l; wyt'wOc.mi-lK'-ta, e no inglês twf[l
wytcm lK ta) e poiei/n pa,saj ta.j evntola.j auvtou/.
18
Cf. Marguerat, “L’évangile paulinien”, 43, no qual a formulação está correta: “[L]a pratique de la Loi est surplom-
bée par une potentielle malédiction”. As expressões u`po. kata,ran no v. 10a e evpikata,ratoj no v. 10b não são equivalentes.
Por esta razão está fora de questão torna-los o mesmo termo (B) de um silogismo em barbara assim reconstruído: a prin-
cipal (10b) sendo composta de (M) e (B), a menor (v. 11a) de (A) e (M), e a conclusão (v. 10a), de (A) e (B), como
Bachmann sugere (“Zur Argumentation”, 536-540, especialmente no diagrama da p. 539) e outros. Se o u`po. kata,ran no
v. 10a e o evpikata,ratoj no v. 10b não são equivalentes, então o o[soi no v. 10a e o pa/j o]j no v. 10b não têm a mesma
extensão (já que, de acordo com o testemunho das próprias Escrituras, todos os sujeitos à Lei não são amaldiçoados).
19
Tem sido observado que, assim como Dt 28,58, Dt 27,26 parece se referir apenas ao livro de Deuteronômio. Cf.,
por exemplo, Bachmann, “Zur Argumentation”, 527.
20
Uma observação semelhante a esta em Gl 3,10 é encontrada em Tg 2,10: o[stij ga.r o[lon to.n no,mon
thrh,sh| ptai,sh| de. evn e`ni,( ge,gonen pa,ntwn e;nocojÅ
21
Dunn, Galatians, 172, para quem os referidos no v. 10 são “aqueles que em seu julgamento [de Paulo], estavam co-
locando peso demais no caráter distintivo dos judeus em relação aos gentios, e em leis especiais que formavam marcado-
res de limites entre eles, aqueles que colocaram sua confiança no status da ‘nação favorecida’ de Israel, aqueles que in-
vestiram demais a sua identidade na presunção de que Israel era separada das ‘Nações’ – incluindo, é claro, os judeu-
cristãos na visão em 1,6-8 e 2,4.12”.
22
Cf., por exemplo, Bachmann, “Zur Argumentation”, 538-539; Marguerat, “L’évangile paulinien”, 44. O v. 11a é o
que é necessário para provar (= conclusão) e é assim encontrado na última linha. Este silogismo é de segunda figura, em
outras palavras, o termo médio (M) é encontrado ao fim de cada premissa e, passa do positivo para o negativo; é o mesmo
para o termo (A), positivo na primeira premissa, e negativo na conclusão. Já que os termos (A) e (B) são universais, seria
necessário ser rigoroso ao traduzi-los assim: (A) = “todos aqueles que”; (B) = “todos os mandamentos da Lei”. Como se
pode ver, esta é uma questão de um silogismo em camestres (no qual a letra ‘a’ designa uma premissa principal positiva,
universal e ‘e’ uma premissa menor e uma conclusão universal negativa).
5

Na verdade, como o que o precede, o v. 11 forma – sem o v. 12 – um estágio em demonstração, e


é necessário que mostremos sua unidade e função.
Uma breve exegese deste versículo é essencial antes de qualquer discussão sobre seu significado.
À primeira vista, a sintaxe do v. 11a levanta uma dificuldade por causa da repetição da conjunção
o[ti. O segundo o[ti é claramente causal e tem a função de introduzir a citação bíblica (Hab 2,4) à qual
se recorre em apoio ao v. 11a. Quanto ao primeiro o[ti, ele é suficiente para suprimir o hipérbato e
para reestabelecer a ordem das palavras a fim de determinar que ele é completivo, pois está conecta-
do a dh/lon: “é claro que (dh/lon o[ti) na/pela Lei ninguém é justificado diante de Deus”. Então o evn
no,mw| tem um significado espacial ou instrumental? Se alguém optar pelo primeiro, lê-se que “no sis-
tema mosaico” – em outras palavras, para os sujeitos à Lei – ninguém obtém a justificação aos olhos
de Deus. Por outro lado, optando-se pelo segundo, então ninguém é justificado diante de Deus “por
meio da Lei”23. Se a segunda leitura parece ser mais apropriada, eles podem ser grosso modo consi-
derados como equivalentes: Paulo, provavelmente, usou a preposição evn em vez de um dia instru-
mental a fim de evitar descrever a Lei como meio de justificação – o que, para ele, não poderia ser.
Mesmo a leitura de evn no,mw| ainda levanta algumas dificuldades. Com o primeiro (“na Lei”), é neces-
sário concluir que nenhum sujeito à Lei, mesmo aquele que a cumpre bem, pode ser justificado ou se
tornar justo. Mas tal conclusão vai diretamente contra todas as passagens bíblicas – uma pequena
lista foi dada acima – nas quais os sujeitos à Lei são declarados justos. Dizer que nenhum sujeito à
Lei pode ser justo diante de Deus é, portanto, ir contra a própria palavra de Deus. Se alguém escolhe
a outra leitura, segundo a qual ninguém se torna justo diante de Deus por meio da Lei, ou seja, colo-
cando em prática os mandamentos divinos, a dificuldade é a mesma: uma variedade de escritos bíbli-
cos, conforme já observado, dizem o oposto.
Como a declaração no v. 11a parece ser contradita pelos fatos e pela própria palavra divina, Paulo
deve encontrar nas Escrituras um texto declarando que ninguém é justo diante de Deus por um ato de
conformidade à Lei. Ele teria sido capaz de repetir o Sl 142/143,2 ao qual já havia recorrido em Gl
2,16, e cuja extensão universal mostra que também é válida para os sujeitos à Lei: “ninguém [em Gl:
pa/sa sa,rx] seria justificado diante Dele [Deus]”. Mas ele preferiu usar Hab 2,4: o` di,kaioj evk pi,stewj
zh,setai, uma citação que também exigiu muita tinta, porque ela não corresponde nem ao hebraico,
nem ao grego24. Sem entrar em uma discussão acerca da formulação que Paulo dá ao texto de Haba-
cuque, deixe-nos apenas dizer que para saber se o evk pi,stewj deve estar conectado ao sujeito ou ao
verbo, basta aqui colocá-lo lado a lado com a seguinte citação de Lv 18,5:

Hab 2,24 o` di,kaioj evk pi,stewj zh,setai


Lv 18,5 o` poih,saj auvta. evn auvtoi/j zh,setai

As duas citações são compostas de três partes, cada uma tendo a mesma função, respectivamente,
mesmo se, no diagrama precedente, o evn auvtoi/j não tem o mesmo lugar como em Gl 3,12 e Lv 18,5;
e já que esta expressão modifica o verbo (“viver neles ou por eles”), deve ser o mesmo para evk
pi,stewj em Gl 3,11b: “O justo viverá pela fé”. O versículo 11, então, se torna mais claro: ninguém
pode ser justificado pela prática da Lei, pois é a fé que faz o justo. Pode-se ver aonde Paulo quer che-
gar: se o justo vive pela fé, não há razão para se tornar sujeito à Lei a fim de ser justo; os crentes vin-
dos do mundo gentílico, portanto, não precisam ser circuncidados e se tornarem judeus, já que a justi-
ficação vem a eles pela fé.
A citação de Hab 2,4, entretanto, levanta outra dificuldade, porque o judeu observante confessa
que sua fé é o que faz com que ele viva, ou melhor, que é sua fé que o conduz a desejar observar a
Lei e assim responder à vontade divina. A partir daí, a citação de Habacuque também pode descrever
o judeu para o qual a prática da Lei tem como meta a manifestação e operação da fé. Em outras pala-
vras, se o v. 11 significa que só a fé torna alguém justo aos olhos de Deus, ela sozinha não contraria a

23
Um significado mantido por H. D. Betz, nas duas versões, alemã e inglesa, de seu comentário sobre os Gálatas. Esta
leitura é mais seguida que a outra.
24
O problema é o mesmo em Rm 1,17b
6

situação daqueles que são comprometidos com a Lei. A citação de Habacuque é válida a fortiori para
os sujeitos à Lei cujo comportamento não é irrepreensível e que vivem do perdão de Deus; eles sa-
bem que são incapazes de serem justos por suas próprias obras e se colocam diante da misericórdia
de Deus: é a fé em Seu perdão que lhes dá vida. Em resumo, a citação de Habacuque pode ser aplica-
da àqueles que são comprometidos com a Lei, quer eles a observem fielmente ou não, porque seu
comportamento está enraizado na fé neste Deus que lhes revela Sua vontade, dando a eles o poder de
realizá-la e/ou porque eles creem que é o perdão que lhes dá vida e esperança para salvação.
O versículo 10 declarou que aqueles que são comprometidos com a Lei estão sob ameaça de uma
maldição; o v. 11 vai além já que ele acrescenta que é a fé e não a observância da Lei que torna al-
guém justo. É por isto que ele constitui um estágio distinto no desenvolvimento da argumentação e
deve ser, primeiramente, analisado sozinho. Mas ele não dispensa a questão da necessidade de passar
pela Lei. É por isto que Paulo agora tem que provar que o sistema da Lei não se fundamenta na fé.

As declarações do v. 12
Sem dúvidas, o v. 12a (o` no,moj ouvk e;stin evk pi,stewj) vai além de 10a e 11a, porque ele significa
claramente que o sistema da Lei não é uma forma de salvação e que os crentes vindos do mundo gen-
tílico não têm que ser circuncidados e se tornar sujeitos a esta Lei a fim de herdar as bênçãos prome-
tidas a Abraão, o crente. Se somente a fé justificasse, sem a Lei, seria praticamente inútil passar pela
Lei. Mas já que a validade de 12a vem da citação implícita que a acompanha (Lv 18,5), é importante
examinar o último de maneira mais detalhada.
A frase presente em Lv 18,5 também é citada em Rm 10,5, e os comentaristas percebem correta-
mente que este versículo de Levítico25 é representativo da espiritualidade judaica que, em nenhum
momento, foi interpretada negativamente. Deus pede ao Seu povo para guardar Seus mandamentos
porque, colocando-os em prática, eles viverão: para o judeu, a única condição para viver é fazer a
vontade de Deus. Associada a Hab 2,4, esta citação só pode ser interpretada pelos sujeitos à Lei como
uma forma de tornar sua fé concreta, porque a última é expressa na observância dos mandamentos.
Teria Paulo entendido mal o significado de Lv 18,5 e, ao fazer isto, providenciado uma arma a ser
usada contra ele?
Uma leitura em total oposição à do judeu piedoso também é possível: Paulo pode estar contrastan-
do Hab 2,4 e Lv 18,526. Tendo Lv 18,5 precedido Hab 2,4, isto levaria à “desqualificação do texto de
Levítico”, e de maneira mais ampla “à desqualificação teológica de uma palavra da Torah por meio
de uma palavra profética”27. Mas a função de uma gezerah shawah nunca foi a de opor duas passa-
gens das Escrituras28. Então o que é isto? É para explicar uma passagem das Escrituras com a ajuda
de outra a fim de resolver aparentes contradições na Torah ou entre a Torah e os Profetas, sendo a
unidade semântica das Escrituras o princípio que autoriza conectar as passagens. Como Lv 18,5 e
Hab 2,4 se iluminam reciprocamente para Paulo? Cada um está descrevendo um sistema diferente:
Hab 2,4 caracteriza o sistema da fé, no qual o crente se submete totalmente a Deus sem desejar nem
ser capaz de obter por si mesmo o que espera; enquanto Lv 18,5 evoca o sistema da Lei que requer
comportamentos específicos e julga o resultado deles. O sujeito à Lei é responsável pelo resultado de
seu comportamento, enquanto o crente tudo espera do Único em quem ele crê. Fé e Lei são assim
25
A leitura de Gl 3,12b (o` poih,saj auvta. zh,setai evn auvtoi/j) é muito próxima de Lv 18,5 LXX (a] poih,saj
a;nqrwpoj zh,setai evn auvtoi/j).
26
Cf. Marguerat, “L’évangile paulinien”, 44-45.
27
Marguerat, “L’évangile paulinien”, 45. Mesmo que o autor tenha reconhecido que Paulo está usado uma gezerah
shawah, seu papel nunca é descreditar uma passagem bíblica por outra, mas interpretar uma passagem conectando-a com
a outra. Sobre o sujeito e função da técnica, que é resolver contradições aparentes na Torah (ou até entre ela e os livros
proféticos), veja Aletti, “Romains 4 and Genèse 17. Quelle énigme et quelle solution?”, Bib 84 (2003) 305-326; Basta,
Gezerah Shawah. Storia, forme e metodi dell’analogia bíblica (Subsidia Biblica 26; Roma 2006); Rastoin, Tarse et Jéru-
salem, 94-144.
28
Para que as duas passagens sejam conectadas, é necessário: que elas tenham pelo menos uma palavra em comum
(aqui o verbo zh,setai); que a forma desta palavra seja rara o suficiente; e que o respectivo contexto das duas passagens
seja análogo a fim de evitar toda anarquia semântica. Aqui, levaria muito tempo para questionar em detalhe a pertinência
da gezerah shawah de Gl 3,11-12.
7

dois princípios muito diferentes. À luz destas considerações, o argumento de Paulo que, aparente-
mente, é baseado somente na ausência das palavras pi,stij e di,kaioj/ dikaiosu,nh em Lv 18,5, não
deve ser julgado de maneira muito rápida ou superficial, porque se Lv 18,5 descreve corretamente o
sistema da Lei, então a ausência de pi,stij neste sumário confirma a heterogeneidade dos dois princí-
pios: o` no,moj ouvk evk pi,stewj. E se é assim, ao dizer que o justo vive pela fé, Hab 2,4 significa que
somente a fé está na origem da justiça. Portanto, Paulo chegou aonde queria. Em resumo, ao conectar
estas duas passagens com a ajuda de uma gezerah shawah, Paulo está demonstrando que a oposição
entre os dois sistemas, o da fé e o da Lei, não tem origem nele: as Escrituras, sendo a palavra de auto-
ridade, já anunciaram antes dele. Portanto, Paulo só está seguindo o que as Escrituras já diziam. Ape-
nas notemos aqui a escolha ad rem do Apóstolo: é um texto da Lei, Lv 18,5, que implicitamente
anuncia que a Lei não pertence ao sistema da fé!
Alguém pode supor que a argumentação de Paulo, curta e elíptica, não convencera necessariamen-
te os comprometidos com a Lei. Entretanto, ela tem o mérito de questionar e romper a interpretação,
então corrente, da conexão entre fé e Lei. É necessário acrescentar que ela é apenas um prelúdio para
uma explanação mais longa sobre a natureza do papel da Lei em Gl 3,15–4,7. Em outras palavras, as
categorias iniciadas em Gl 3,6-16 serão explicadas e justificadas em maior extensão nos desenvolvi-
mentos posteriores.
Então, até que ponto a argumentação termina no v. 12? Depois de ter chamado a atenção para o fa-
to de que os sujeitos à Lei estão ameaçados por uma maldição, Paulo foi além a fim de mostrar, de
uma forma extremamente breve, que a própria Lei não está a serviço da justiça. Deste modo, os sujei-
tos à Lei que se achavam capazes de obter justiça pelo seu comportamento e obediência fiel agora se
encontram em uma situação dramática. Como eles podem ser colocados definitivamente fora do al-
cance de uma maldição? Apenas pela fé, que veio para livrá-los da maldição. Vejamos como Paulo
desenvolve sua resposta.

4. Versículos 13-14
Dt 21,23 – Uma Escolha Paradoxal
Antes de apresentar brevemente a função destes versículos em Gl 3,10-14 reconheçamos, junta-
mente com vários outros comentaristas, que a citação de Dt 21,23 é aparentemente contraproducente,
pois como poderia aquele que morreu na cruz, aparentemente amaldiçoado, ser o portador de uma
bênção universal? É difícil imaginar os primeiros discípulos de Jesus usando este versículo em suas
discussões com seus correligionários judeus. Paulo teria que se esforçar muito para fazer deste versí-
culo uma prova. Mas o que ele está provando exatamente? Que Jesus morreu por nós, ou antes, que
tendo morrido na cruz, ele foi tocado por uma maldição? Pois Paulo está realmente insistindo na
maldição. Na verdade, e todos os comentaristas concordam, ele não está citando a LXX ipsis litteris:
Dt 21,23 LXX kekathrame,noj u`po. qeou/ pa/j krema,menoj evpi. xu,lou
Gl 3,13b evpikata,ratoj pa/j o` krema,menoj evpi. xu,lou

O particípio perfeito passivo kekathrame,noj se tornou um adjetivo verbal, evpikata,ratoj, e a pala-


vra qeo,j é omitida: esta ausência procede do desejo claro de Paulo de evitar dizer que Deus amaldi-
çoou Jesus, Seu Filho. E já que o particípio passivo poderia também ter sido interpretado como um
passivo teológico, ele foi substituído pelo adjetivo, que é contraparte do mesmo adjetivo no v. 10b e
forma com ele uma gezerah shawah à qual retornaremos. Primeiramente, notemos que evpikata,ratoj
indica como entender o substantivo kata,ra no v. 13a. Esta declaração é ambígua: o que se quer dizer
com “fazendo-se ele próprio [Cristo] maldição em nosso lugar?” A palavra kata,ra pode designar a
ação de se amaldiçoar ou a sua causa, ou até seu resultado29. Paulo certamente não quer dizer que
Jesus é a causa de uma maldição – o versículo seguinte diz o oposto, ou seja, por ele temos recebido
a bênção. Ele pode ser seu objeto ou recipiente, e se Paulo está utilizando o substantivo é para indicar

29
O caráter é metonímico.
8

que todas as maldições, em número e em força, caíram, de alguma forma, sobre ele30. O Apóstolo
poderia muito bem ter dito que somente Cristo era capaz de libertar a humanidade da maldição sem
ter que acrescentar que ele se tornou uma maldição, e sem citar Dt 21,23. Pois Jesus não poderia ser
amaldiçoado por Deus, ele o Inocente por excelência. Pelo que então ele foi amaldiçoado? Pela Lei,
como declarado no v. 13a31.
Por que então Paulo pensou que seria bom recordar, usando um exagero encontrado em muitos de
seus escritos, que morrendo pendurado no madeiro Jesus se torna maldição? Na verdade, pode-se
encontrar o mesmo tipo de exagero e caráter metonímico em 2Cor 5,21: “Aquele que não conheceu
pecado, ele o fez pecado por nós...”32. Um breve olhar na gezerah shawah pela qual Dt 27,26 e 21,23
foram conectados permite a resposta a várias questões deixadas em aberto.

A gezerah shawah nos v. 10b e v. 13b


Paulo estava certo em conectar Dt 27,26 e 21,23? Na verdade, esta não é a questão de uma gezerah
shawah em stricto sensu, na medida em que os dois versículos não têm em comum a palavra evpika-
ta,ratoj: vimos acima que o adjetivo é encontrado em Dt 27,26; Dt 21,23, por sua vez, usa um particí-
pio perfeito passivo. Tendo dito isto, a raiz é a mesma, já que ambos vêm do mesmo verbo evpikata-
ra,omai. A dificuldade vem de outro lugar. Na verdade, para ser válido, uma gezerah shawah só pode
conectar versículos que têm contexto e orientação similares, que é o caso de Dt 27,26 e 21,23, no qual
um morto na cruz é declarado amaldiçoado só por um pecado grave: no hebraico e no grego, a maldi-
ção pronunciada no v. 23 é conectada a uma infração que realmente merecia a morte. Aplicando o ver-
sículo a Cristo, que não cometeu pecado, a fortiori um pecado que tenha merecido morte de cruz, Paulo
parece concordar completamente com aqueles que acusam Jesus de blasfêmia e rebelião33 - o argumen-
to seria então duplamente contraproducente. E mais, ao não respeitar, aparentemente, o contexto e a
motivação de Dt 21,23, ele parece remover a razão de ser da gezerah shawah...
O argumento de Paulo é, na verdade, mais probativo do que poderia parecer, porque se Jesus foi
capaz de ser declarado amaldiçoado pela Lei, pela morte na cruz, isto significaria que a Lei seria in-
capaz de salvar o inocente de uma maldição. Que um inocente possa ser pendurado e morrer em uma
cruz como um blasfemo e rebelde indica que a Lei pode ser usada de maneira contrária ao seu propó-
sito, que é proteger o inocente e condenar o culpado. O paradoxo é levado ao extremo quando aquele
que é colocado na cruz e declarado amaldiçoado em nome da Lei é o mesmo pelo qual recebemos
bênção. Assim, ninguém está protegido da maldição da Lei, nem mesmo um inocente! Além disto,
que a Lei tenha sido utilizada para condenar o Inocente por excelência significa que ela manifestou
sua fraqueza radical.
Alguém poderia ainda objetar que, não obstante as punições mais severas, Israel nunca foi amaldi-
çoado por Deus, tanto por causa das promessas quanto dos procedimentos de conversão formulados
pela própria Lei: cerimônias penitenciais, jejuns, sacrifícios pelo pecado, etc. Se Dt 27,26 diz que
uma potencial maldição ameaça todos os que são comprometidos com a Lei, esta mesma Lei fornece
os procedimentos para evitar isto. Realmente, mas a leitura mais recente dos livros proféticos e dos
escritos intertestamentários judaicos confirmam a interpretação de Paulo: pois ao longo do tempo e
até o início da era cristã, tal ameaça era levada a sério, como pode ser constatado pelo aumento de
sacrifícios pelo pecado e a urgência do apelo à misericórdia divina34.
Dt 21,23 sinaliza não apenas a verdade paradoxal de Dt 27,26, ou seja, que cada sujeito à Lei corre
o risco de uma maldição e que a própria Lei não tem poder para livrar ninguém da maldição, mas

30
Um substantivo metonímico pode designar a própria ação, sua causa (“este homem é a própria gentileza”) ou seu
efeito (na Itália, chamar alguém: “Amore!”).
31
Salvo erros, a expressão “amaldiçoado pela Lei” ou seu equivalente não tem outra ocorrência bíblica ou intertesta-
mentária judaica (Qumran, etc.).
32
Sobre esta passagem e sua força teológica, cf. cap. VIII.
33
Sobre blasfêmia, veja Mt 26,25, Mc 14,64; e rebelião, Lc 23,5.
34
Cf. por exemplo, Bautch, Developments in Genre between Post-Exilic Penitential Prayers and the Psalms of
Communal Lament, que apresenta principalmente três passagens da Bíblia hebraica: Is 63,7 – 64,11; Esd 9,6-15; Ne 9,6-
37. Não se deve esquecer a súplica de Azarias em Dn 2 (Grego); 11QS 24; etc.
9

também permite destacar um dos paradoxos que Paulo frequentemente mantém: é no momento em
que a situação parece mais desesperadora, já que o Filho de Deus foi declarado amaldiçoado pela Lei,
que uma inversão fundamental toma lugar. Seria necessária tal passagem extrema? Se as afirmações
do Apóstolo são fortes – Deus tornou pecado aquele que não conhecia pecado, ele aceitou que o Ino-
cente morresse como um amaldiçoado e rejeitado – elas não são seguidas de explicações ou justifica-
tivas. O paradoxo permanece um paradoxo, mesmo se seu propósito é indicado sempre: foi por nós
(u`per h`ma/j) que isto aconteceu.
É importante agora enfatizar a coerência de uma argumentação que, no início, dissemos permane-
cer uma vexata quaestio. Se é verdade que o v. 13 está conectado ao v. 10, sinalizando quão longe o
poder da maldição tinha ido, mas também, acima de tudo, afirmando a mudança radical que aconte-
ceu pela mediação de Cristo, conforme os diagramas da tabela a seguir:

v. 10a Declaração de Paulo Todos quantos, pois, são das obras da lei estão debaixo de maldição
v. 10b Justificação pela citação “Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas es-
critas no Livro da lei, para praticá-las.”
v. 13a Declaração de Paulo Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio
maldição em nosso lugar
v. 13b Justificação pela citação “Maldito todo aquele que for pendurado em madeiro”

então por que Paulo não passa diretamente do v. 10 para o v. 13, o que, em princípio é autorizado
pela gezerah shawah? Porque se ele fosse diretamente do v. 10 para o v. 13, a impotência radical da Lei
não teria sido verdadeiramente estabelecida. Por si mesmo, realmente, a gezerah shawah externa (Dt
27,26 e 21,23) apenas prova que a Lei traz consigo a ameaça da maldição e que ninguém, incluindo o
inocente, está protegido, mas não mostra que é necessário deixar o sistema mosaico a fim de obter a
bênção, pois o próprio livro de Deuteronômio diz que aquele que deseja observar a Lei e a observa ob-
tém a bênção35. Se os sujeitos à Lei não são todos amaldiçoados, então Cristo liberta da maldição ape-
nas os outros. Se Paulo não tivesse demonstrado nos vv.11-12 a impotência da Lei para justificar, aque-
les que fielmente obedecem a Lei seriam capazes de replicar que, pela Lei eles estariam assegurados da
justificação, que eles não teriam necessidade disto em ou por Jesus Cristo – justificação reservada para
aqueles que não estão debaixo da Lei ou que, estando debaixo da Lei, não são capazes de se dizer justos
por causa de seu comportamento negativo. Era então necessário mostrar com antecedência (i) a incapa-
cidade radical da Lei de justificar e (ii) o papel único da fé para obter justificação – os dois pontos rea-
lizados graças à gezerah shawah interna nos vv. 11-12. Em resumo, a lógica da argumentação em Gl
3,6-14 verdadeiramente existe. Assim, não há necessidade de desespero em encontrá-la, porque, pela
sequência de gezeroth shawoth, ela se torna progressivamente reconhecível.

A Libertação dos Sujeitos à Lei e seu Propósito Universal


No v. 13a, Paulo declara laconicamente: “Cristo nos resgatou36 da maldição da lei”. Que Cristo é o
autor da libertação, Paulo diz várias vezes e de muitas formas. O que é, por outro lado, original e não
é encontrado em nenhum outro lugar nas cartas do Apóstolo é a afirmação referente à libertação da
maldição da Lei. Mas quem então deve ser liberto da maldição da Lei: apenas os sujeitos a ela, os
judeus ou, com eles, até aqueles que não estavam sob seu poder, as Nações? Resumindo, quem o
h`ma/j em v. 13a está designando: somente os judeus, entre os quais Paulo, ou toda a humanidade? O
pronome poderia designar apenas aqueles que não estavam sob o sistema da Lei. Realmente, não se
vê porque aqueles que não estavam sujeitos à Lei correriam o risco de uma maldição destinada ape-
nas àqueles que estavam sujeitos, como é explicitamente mostrado na série de maldições em Dt 27.
Além disto, a passagem tem um paralelo em Gl 4,4-6, que convida fortemente a ver designados no

35
Cf. Dt 28,1-14; Sl 1; 119; 128; etc
36
Já que este não é um ensaio especificamente linguístico, o leitor deve consultar comentários, todos os mais amplos,
sobre o significado e uso paulino do verbo evxagora,zein que aqui, sem erro, pode ser traduzido como “libertar”.
10

h`ma/j de Gl 3,13a apenas os sujeitos à Lei. Na tabela a seguir, a ordem das expressões foi mudada na
coluna esquerda para destacar os elementos paralelos:

Gl 3,13-14 Gl 4,4-5
13 4
geno,menoj u`pe.r h`mw/n kata,ra\ [Kristo.n] geno,menon u`po. no,mon(
cristo.j h`ma/j evxhgo,rasen 5
i[na tou.j u`po. no,mon evxagora,sh|
14
i[na eivj ta. e;qnh h` euvlogi,a i[na th.n ui`oqesi,an avpola,bwmen
VAbraa.m ge,nhtai

Em Gl 4,5, a libertação dos sujeitos à Lei tem como corolário imediato a adoção filial de todos os
humanos, e a mesma lógica é aplicada a Gl 3,13-14. Estas duas razões militam em favor do pronome
h`ma/j designando os judeus e aqueles que apelam para a autoridade da Lei. É porque os sujeitos à Lei
foram libertos da maldição desta mesma Lei que a bênção prometida a Abraão pode se juntar às Na-
ções. Na verdade, porque a Lei se mostrou incapaz de justificar, as Nações não mais precisavam crer
que a justificação exigia que tornassem sujeitos à Lei – em outras palavras, se tornassem judeus – e
que poderiam receber a justificação e as bênçãos prometidas ao Patriarca – sendo o substantivo
ui`oqesi,an em Gl 4,5 o equivalente de euvlogi,a VAbraa.m ge,nhtai em Gl 3,14.
Sendo um pouco elípticos, tais versículos de Gl 3 levantam uma questão final. Se Cristo libertou
seus correligionários da maldição da Lei, então eles serão capazes de, agora em diante, permanecer a
ela sujeitos, isentos de toda ameaça e medo? A libertação da maldição da Lei equivale à libertação da
própria Lei? Como a ameaça da maldição é inseparável da Lei – é impossível suprimir Dt 27 sem se
arriscar à maldição! A libertação da maldição só pode ser ao mesmo tempo a libertação da Lei como
um sistema no qual seria necessário entrar e/ou permanecer a fim de obter as bênçãos prometidas.
Estes versículos permitem o entendimento da liberdade de Paulo, o discípulo de Jesus Cristo.
A originalidade de Gl 3,13-14 e 4,5 é, portanto, sua declaração de que se o comportamento salvífi-
co de Cristo tem um propósito universal, seu primeiro beneficiário é o povo de Israel. A redenção ou
libertação deste primeiro beneficiário é igualmente uma condição para o resto da humanidade, consti-
tuída pelas Nações, também capaz de herdar a salvação e a dignidade a ela associada. Se o comparti-
lhamento da libertação de Israel com o resto da humanidade é laconicamente expresso, ele não pode
ser mais claro. As razões fornecidas por h`ma/j são válidas para o u`pe.r h`mw/n que segue. Este segundo
pronome deve, sob risco de anarquia semântica, ter o mesmo referente do que o precede. É em uma
solidariedade com os sujeitos à Lei que Cristo se torna maldição, mas isto é também para o bem de-
les, em outras palavras, para sua libertação. Assim, alguém não pode dizer que a soteriologia paulina
ignora o que Cristo fez por aqueles de seu povo, sua solidariedade com eles e por eles. Levar esta
passagem a sério impede de ver Gálatas como uma soteriologia de substituição:37nem Gl 3 e Gl 4 diz
que aqueles que foram libertos da maldição da Lei estão excluídos da bênção patriarcal. De outra
forma, qual teria sido o bem em redimir e libertá-los?

5. Gl 3,6-14 e sua interpretação


Com o v. 14, Paulo chega ao objetivo: os crentes vindos do mundo gentílico não têm que ser cir-
cuncidados, em outras palavras, se tornarem judeus, sujeitos à Lei, a fim de obter as bênçãos prome-
tidas a Abraão. Sem dúvida, será útil mostrar como o Apóstolo procedeu ao longo destas duas unida-
des (Gl 3,1-5 e 6-14) que inauguraram a argumentação teórica desta carta.

A lógica geral da jornada


Em Gl 3,1-5, Paulo chama a atenção de que é pela fé que os cristãos étnicos receberam o Espírito
da promessa. A primeira etapa é essencial, e Paulo geralmente começa com ela: a primeira das provas
é fornecida a partir da experiência, em outras palavras, pelo que os crentes estavam/estão vivendo.

37
Sobre este assunto, veja a interpretação de Bell, The Irrevocable Call of God, 157, e minha própria resposta, Essai
sur l’ecclésiologie des lettres de Saint Paul, 96-97.
11

Pois se os cristãos vindos do mundo gentílico não tivessem recebido o Espírito e os dons que o
acompanham, todas as outras provas se limitariam ao nominalismo.
Mas se a experiência constitui a primeira prova, ela não basta; deve ser confrontada com a palavra
de Deus, pelos próprios princípios fixados por Deus para os crentes. Em outras palavras, se Paulo
começa com os fatos, ele deve então mostrar que o que é vivido pelos crentes não coloca em questão
a palavra divina, mas antes é confirmado por ela. As provas dos fatos devem ser seguidas pelos prin-
cípios da divina lo,goi. Como estes princípios divinos mostram, por sua vez, que os cristãos nascidos
como gentios, os e;qnh, não têm que se tornar sujeitos à Lei? A resposta é que a justificação ocorre
pela fé (vv. 6-9) e sem as obras da Lei, porque a Lei não pode justificar (vv. 10-12). Então o Apósto-
lo pode retornar ao evento decisivo, aquele da morte de Cristo na cruz pelo qual os sujeitos à Lei fo-
ram libertos e as Nações foram capazes de receber o Espírito. É interessante perceber que Paulo não
começa com a cruz, mas chega a ela por etapas. É um valor universal, realmente, não poderia ser
estabelecido de imediato para Israel e para as Nações; era necessário primeiro mostrar que o sistema
da Lei era o portador da maldição e não tinha sua origem na fé. De outra forma, os sujeitos à Lei teri-
am sido capazes de objetar que eles não precisavam de Cristo, tendo na Lei tudo o que era necessário
para obterem justificação e salvação. Tendo dito isto, Paulo está longe de ter terminado seu pensa-
mento. É necessário também dizer porque a Lei, se não traz consigo justificação, foi promulgada.
Este é o caminho que irá seguir de Gl 3,15 a 4,7.

Algumas interpretações de Gl 3,10-14


Tendo exposto o itinerário de Paulo, agora é possível ver porque algumas interpretações em voga
desta passagem não se sustentam mais atualmente. Passaram-se várias décadas desde que os comen-
taristas começaram a insistir no contraste ente fé e obras. A fé era vista como total dependência, e as
obras como autossuficiência, como um meio de estabelecer o valor próprio de alguém. Deus depen-
dia de algum tipo de comportamento fiel que merecesse recompensa e justiça. A importância dada à
retórica paulina modificou a abordagem exegética e tornou obsoleta tal leitura que reduzia o proble-
ma da justificação a um contraste entre a autojustificação e a justificação do pecador. A dificuldade
confrontada pela primeira geração cristã era claramente diferente. Para Paulo e os outros Apóstolos,
era uma questão de saber realmente se os crentes vindos do paganismo tinham que ser circuncidados
ou não a fim de compartilhar das bênçãos prometidas a Abraão. Gn 17,10-14 era o texto chave, exi-
gindo a circuncisão sem qualquer brecha possível. E como não havia texto bíblico que contradissesse
esta passagem, Paulo diversas vezes teve que recorrer à técnica da gezerah shawah a fim de mostrar
que as Escrituras confirmavam sua posição. A importância da argumentação das Escrituras claramen-
te indica que a antiga leitura estava fundamentalmente equivocada sobre o problema da justificação.
Nas últimas décadas do século XX, a nova perspectiva retomou a questão. Para seus representan-
tes, a dificuldade não estava na Aliança e na Lei como tais, mas nas regras de separação, especial-
mente a circuncisão, que determinavam, acima de tudo, a identidade judaica – os famosos marcado-
res de identidade. Paulo teria repreendido os crentes de origem judaica que tivessem mantido firme-
mente a circuncisão para os crentes vindos do mundo gentílico, absolutizando, assim, estes marcado-
res de identidade (circuncisão, regras de dieta e purificação, festas religiosas). Sem negar que estas
regras constituíam importantes obstáculos concretos, cada uma das argumentações de Paulo referente
à obtenção da justificação vai mais além. Ele não está pedindo apenas a relativização dessas regras –
embora isto seja uma consequência, mas também a admissão de que o sistema legislativo mosaico –
que ele não identifica com a Torah como profecia – não conduz à salvação. A questão que é levanta-
da em Gl 3, mas também em Rm 4 é, como foi vista, radical.
A exegese das cartas paulinas têm mudado o paradigma ao longo das últimas duas décadas, e isto
não é ruim. A nova atenção dada a retórica do Apóstolo tem permitido evitar lamentáveis pré-
julgamentos. Não se pode fazer outra coisa que não se regozijar nisto. É sem dúvida graças a estas
mudanças que uma exegese mais rigorosa de Gl 3,10-14 se fez possível.

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