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Renato Dias Martino

PRIMEIROS PASSOS
RUMO À PSICANÁLISE

Vitrine Literária Editora

Primeira edição
2012
Copyright © 2012 by Renato Dias Martino

Projeto gráfico e revisão


Paulo Roberto P. Rezende

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Martino, Renato Dias


Primeiros passos rumo à psicanálise / Renato
Dias Martino. -- 1. ed. -- São José do Rio Preto,
SP : Vitrine Literária Editora, 2012.

Bibliografia.

1. Psicanálise I. Título

1. Ficção brasileira I. Título.

ISBN 978-85-64166-16-5-8
5-64166-13-4
CDD-616.8917
12-07746 NLM-WM 460

Índices para catálogo sistemático:


1. Psicanálise : Medicina 616.8917

Vitrine Literária Editora


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www.vitrinelitaria.com.br
(17) 3033-7200

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fotocópia, gravação, etc - nem apropriada ou estocada em sistema de banco de
dados, sem a expressa autorização do Autor.

4
Dedico este livro
aos meus queridos alunos:
ele foi feito pra vocês.

5
6
Agradeço à minha família,
que foi o continente acolhedor
para que o conteúdo deste livro
se desenvolvesse e se realizasse.

7
8
Prefácio

Sonhos e desvios do amor

Antes de se apresentar como um livro, esta


obra é, genuinamente, uma chave para o entendimento
de Sigmund Freud. É nas suas linhas que se apresenta e
ganha corpo a maturidade de uma obra genial, embalada
numa sequência de capítulos de formato breve, no entanto
inebriados por uma identidade e unidade que provocam
uma grande e instigante investigação lúdica, essencial
para os mergulhos da mente humana.
O presente livro fascina pelo gênero ensaís-
tico que subdivide aspectos, aproximando-os e ao mes-
mo tempo se afastando de cada um deles, – achega para
sentir e afasta-se para observar de uma perspectiva ainda
melhor. Ele recorre aos detalhes do método e dos pro-
cessos inerentes aos princípios do funcionamento mental,
apontando uma nova interface para a compreensão das
instancias da mente. Quando Sigmund Freud disse que os
descobridores do inconsciente haviam sido poetas e filó-
sofos, ele não suspeitava, creio eu, das inúmeras vertentes
que suas teorias iriam provocar no mundo contemporâ-
neo, principalmente no tocante ao método científico que
trouxe à luz as bases da análise do inconsciente.
O desafio e ousadia de fomentar os conceitos
de Freud é a chave mestra de “Primeiros passos rumo à
Psicanálise”, que de uma forma aberta e direta envolve o
leitor nos desdobramentos e consequências dos importan-

9
tes conceitos da Psicanálise Freudiana. É aqui, nas entre-
linhas de cada capítulo, que a essência dos pressupostos
teóricos transforma, radicalmente, a percepção individual
do ser enquanto personagem de uma sociedade cada vez
mais complexa. A cada fragmento da obra percebe-se que
o cunho da Psicanálise não é o último meio para a reso-
lução de problemas e doenças, mas sim um processo de
edificação, uma demonstração para indicar o inefável, o
eterno desejo pelo incognoscível.
Assim, compreende-se que a investigação sis-
tematizada do inconsciente apresentada aqui implica num
mergulho profundo à Filosofia, à Literatura, à Biologia da
Mente, à Cultura e, fundamentalmente aos inúmeros en-
cantos do mundo dos sonhos e das inconstantes arritmias
do amor. Por isso, diante da inegável complexidade do ser
humano frente à nossa coleção de neuroses, encontramos
na sublimação da perversão a energia para nossas reali-
zações culturais onde o “eu” e o “outro” se confundem
no êxtase das “leis” da realidade. Nesta obra, o leitor terá
o privilégio de mergulhar nesse campo de conhecimento
pelos olhos de um pesquisador que ultrapassa os limites
da ciência e busca na imersão do conhecimento respostas
para aquilo que ainda não compreendemos.

Alexandre Costa

10
Sumário

Introdução 13
Breve biografia de Sigmund Freud 15
A quebra de narcisismo 17
A histeria 19
Um novo método 22
Outros pensadores 23
C. G. Jung 24
Melaine Klein 25
Psicanálise e cultura 26
Conceito de libido 27
Os processos e os princípios do funcionamento mental 29
Instâncias da mente 31
O inconsciente - Ics. 33
O reprimido 35
Os sonhos 38
O pré-consciente - Pcs. 39
Conceito de representação 42
O consciente - Cs. 44
A dinâmica da libido no aparelho mental 46
Outros vértices analíticos 51
Filosofia e Psicanálise 52
Esboço da segunda tópica do aparelho psíquico 54
O segundo vértice 54
O id 55
O ego 57
O superego ou ideal de eu 59
Fases do desenvolvimento libidinal 64
O auto erotismo e o narcisismo 64
Objeto 65
As fases 69
Fase oral 70
Identificação 72
Contribuições de Melanie Klein 75
O conceito de símbolo 78
Aspectos sádicos orais 79
Objeto transacional: a primeira possessão não-eu 81
Fase anal 82
Fase fálica 85
O complexo de Édipo 88
Fase da latência 89
Fase genital 91
Perversão 93
Os desvios do amor 95
Conclusão 101
Bibliografia 103

12
Introdução

Boa parte das ideias originais desenvolvidas


e publicadas nos primeiros trabalhos de Sigmund Freud
(Viena, 1856 – Londres, 1939), médico austríaco e funda-
dor da Psicanálise, sofreram consideráveis transformações
e hoje o que chamamos Psicanálise é, sem duvida, bem
diferente do que nos tempos primitivos da ideia original da
psicanalítica. Contudo, ideias centrais como as da Primei-
ra Tópica e Segunda Tópica ainda representam um ex-
celente instrumento na concepção de aparelho psíquico,
criando assim uma possibilidade de mapeamento do espa-
ço mental, revelando-se um modelo invariante na constru-
ção da Psicanálise contemporânea. O intuito deste trabalho
é olhar mais atentamente e, de alguma forma, realizar os
elementos básicos que compõem as tópicas organizadas
por Sigmund Freud, essas abstrações que se tornaram a
base para o pensamento psicanalítico.
O conteúdo este trabalho tem certa caracte-
rística marcante quanto à subjetividade. Isso porque suge-
re ideias inerentes tanto à origem do material quanto à
proposta do surgimento de novas situações que possam
confirmá-las. Dessa forma, existe uma chance de se unir
conceito (nome) à intuição (experiência), como propõe
Immanuel Kant (1724 – 1804), filósofo alemão muito ci-
tado na obra freudiana. Algo como na ideia filosófica de
Sócrates, expressa por Platão (428/27 – 347 a.C), quan-
do descreveu o “Mito da Caverna” (útil metáfora para
o aparelho psíquico), ou, por outro lado, nas questões
diárias da prática clínica e toda problemática emergente
na dupla analítica.

13
A partir da ideia da Metapsicologia, trazida
pela Psicanálise, houve considerável mudança no vértice,
na percepção, no entendimento e no pensamento sobre
a Psicologia, Sociologia, Antropologia e, sobretudo, na
forma de perceber aquilo a que chamamos de aparelho
psíquico.

“Ia até o local da água, lambia


a umidade da parede, durante uma,
duas horas. Isso era uma tortura, o
tempo não tinha mais fim, o tempo
em que o mundo real me queimava
a pele. Arrancava alguns pedaços de
musgo e liquens das paredes, engolia-
os, agachava-se, cagava enquanto co-
mia, – rápido, rápido, tudo tinha que
ser rápido – e, como se fosse caçado,
como se fosse um animalzinho de car-
ne macia e lá no céu já andassem os
urubus em círculos, ele corria de vol-
ta a sua caverna, até o fim da galeria,
onde estava estendida a manta. Aí, fi-
nalmente, estava seguro.” 1

1 O PERFUME, Patrick Süskind 1985– O fragmento de tex-


to relata o auto-exílio do personagem Jean-Baptiste Grenouille, sete
anos vivendo em uma caverna.

14
Breve Biografia de Sigmund Freud

Freud nasceu numa família judia, em 6 de


maio de 1856, em Freiberg, na Moravia, pequena cida-
de situada onde hoje é a Tchecoslováquia. Em 1860, por
motivos financeiros, sua família é forçada a se mudar para
Viena, centro cultural e político e capital da Áustria. Ci-
dade aonde aquele que viria a ser o pai da Psicanálise
recebeu sua educação e passou a maior parte de sua vida.
Freud só saiu de Viena por conta da invasão da Áustria
pela Alemanha nazista de Adolf Hitler (1889 - 1945).
Primeiro filho entre oito irmãos, e do terceiro
casamento de seu pai, Jacob Freud, com Amalie Nathan-
sohn Freud, Sigmund Freud, muito cedo, se mostra inte-
ressado pelas questões da alma, assim como pela história
da Bíblia. Em 1865, é publicada na Inglaterra a primeira
versão da obra “Alice no País das Maravilhas (Alice's
Adventures In Wonderland)”, de Lewis Carrol (pseudô-
nimo do professor de matemática inglês Charles Lutwidge
Dodgson, 1832 - 1898). Esse livro, através de seu cenário
onírico, já prenunciava as descobertas que Freud faria no
campo da psicologia do inconsciente no final do século.
Em 1873, ingressa na universidade e, em
1881, como ele próprio observa em seu “Estudo Auto-
biográfico” (1925 [1924]), um tanto tardiamente, recebe
o grau de Doutor em Medicina. Neurologia era sua espe-
cialização. Contudo, sempre fora um questionador sobre
onde realmente estaria a dor do ser humano, se no corpo
ou na alma, interessando-se de forma especial justamente
por aquele paciente que se queixava de padecer sem que

15
apresentasse sinais somáticos. Depois de alguns estudos
frustrados sobre o uso da cocaína, Freud passa a estudar
as doenças da alma e a escrever uma coleção de obras
que hoje é um tesouro para o pensamento da psicologia
universal.
Em 14 de setembro de 1886 Freud casou-se
com Martha Bernays (1861 - 1951) e tiveram seis filhos.
Entre eles a caçula Anna Freud (1895 - 1982), também
destacada psicanalista. Freud viveu em Viena a maior par-
te de sua vida. No ano de 1923, descobriu um pequeno
tumor no seu palato direito. Esse câncer no maxilar o leva
a 33 cirurgias. Essa sequência de cirurgias o fizeram per-
der o maxilar superior, tendo de instalar aí uma prótese
para poder movimentar a boca. Nesse mesmo ano acon-
tece a primeira difusão das obras de Freud em espanhol
na América Latina.
Em março de 1938, acontece a invasão da
Áustria pelas tropas alemãs de Adolf Hitler (1889 - 1945).
Freud era judeu e Hitler, tomado por sua intensa perse-
guição a esse povo, então, mandou queimar qualquer
livro que possuísse a assinatura do pai da Psicanálise.
As forças do nazismo ainda invadiram e assaltaram a sua
residência, forçando a partida de Freud para Londres,
Inglaterra. Contando com a intervenção do diplomata
americano William Bullitt (1891 - 1967) e tendo o resgate
pago por Marie Bonaparte (1882 - 1962), sobrinha bis-
neta de Napoleão que com sua fortuna ajudou a popula-
rizar a Psicanálise, Freud pôde deixar Viena com sua fa-
mília. Em Londres, estabeleceu-se em uma bela casa em
Maresfield Gardes, onde no futuro se instalaria o Freud
Museum. Freud escreveu ali, sua última obra, “Moisés e
o monoteísmo”.

16
Depois de dois dias em coma, Sigmund Freud,
bastante idoso, faleceu em 23 de setembro de 1939, às três
horas da madrugada. Não suportando mais o sofrimento
decorrente do câncer, do qual era vítima há treze anos, ele
morreu tranquilamente por meio de injeções de morfina. A
seu pedido, e com o consentimento de Anna Freud, rece-
beu do médico e amigo, que cuidou de seus últimos dias,
Max Schur (1897 - 1969), três injeções de três centigramas
de morfina. Seu corpo foi cremado em Golders Green.

A quebra de narcisismo

Na construção da teoria psicanalítica Freud se


utilizou de inúmeras referências ornamentais dos processos
do funcionamento da mente, e a mitologia grega foi uma
fonte muito rica nessa tarefa de ilustração. O mito de Nar-
ciso, que diz a lenda morrera apaixonado pela sua própria
imagem, é um desses personagens fundamentais para o
pensamento psicanalítico.
Em seu texto “Uma dificuldade no caminho da
Psicanálise”, datado de 1917, escreve sobre três feridas nar-
císicas da humanidade. Quando desenvolve a metapsicolo-
gia, demonstra que o ser humano não é totalmente dono de
si mesmo. Despertou, com isso, grande oposição, pois essa
ideia tira o homem de certa onipotência do domínio de sua
própria vontade. No texto Freud coloca, assim, a Psicanáli-
se entre as três, como um pensamento que vem quebrar o
que chamou de ilusão narcisista. No nível do cosmos e da
ciência astronômica está Nicolau Copérnico (1473 - 1543),
que corajosamente introduz a ideia do heliocentrismo (mais
tarde, a base da teoria de Galileu Galilei, 1564 - 1642), de
que o sol seria o centro do universo e não a terra, como se

17
pensava até então. E o darwinismo, que propõe a ideia da
evolução, em que o homem não está no topo da evolução
biológica, sendo um animal entre os outros.
Grande admirador de Charles Darwin (1809 -
1882), e sua teoria, Freud o tem como referência em gran-
de parte de sua obra, e o elege como participante dessa
tríade de quebra narcísica. Descrevendo as pesquisas de
Charles Robert Darwin, propõe:

“O homem não é um ser dife-


rente dos animais, ou superior a eles;
ele próprio tem ascendência animal,
relacionando-se mais estreitamente
com algumas espécies, e mais distan-
ciadamente com outras.”

Assim, inaugura certo conflito com o pensa-


mento científico vigente em sua época, já que os olhares
da Psicologia se voltavam para o ponto de vista de escolas
de pensamento experimental, como a do fisiologista ale-
mão Wilhelm Wundt (1832 – 1920).
Na realidade, falar de quebra de narcisismo
é falar da maior proposta da própria Psicanálise, seja ela
aplicada na psicoterapêutica ou em qualquer que seja a
prática dessa teoria. A ideia da expansão do conhecimen-
to além do que se tem até então coincide com a tentativa
de co-nhecer o que Freud chamou de inconsciente. Expe-
riência que nunca acontece de forma simples, pois cada
nova verdade que passamos a admitir coloca em risco to-
das as outras que tínhamos até então.
A época de Freud e, em especial, no lado do
mundo que viveu, foi um período de muita produção de

18
pensamento na Arte, Ciência e Filosofia. Personalidades
como o físico Albert Einstein (1879 - 1955) e o filóso-
fo Friedrich Nietzsche (1844 - 1900) produziram grandes
obras contemporaneamente.

A Histeria

O tema da “histeria” coincide com o intuito


da própria criação de Freud, é verdade, enquanto a bus-
ca de compreender os sintomas da histeria era também,
para Freud, compreender a cadeia de sinais que ele pró-
prio apresentava. Dr. Joseph Breuer (1842 - 1925) era um
dos médicos mais respeitados de Viena, colega por quem
Freud tinha uma grande afeição e respeito, e inicia com
ele um estudo dos fenômenos da mente.
Em 1885, Freud, encantado com as descober-
tas que fizera nos estudos junto com Breuer, recebe uma
bolsa e viaja a França para estudar a histeria com Jean-
Martin Charcot (1825 - 1893), de quem já tinha conheci-
mento como brilhante estudioso das doenças da mente, e
que lhe despertara intensa admiração. Na escola Salpe-
trière, Charcot também fazia uso da hipnose no método
da “cura” desta patologia psíquica.
Em 1890, Freud escreve junto com Breuer uma
obra sobre a histeria, “Sobre o mecanismo psíquico dos
fenômenos histéricos: comunicação preliminar”, datado de
1893. Na primeira frase, os estudos sobre a mente apoia-
vam-se na teoria chamada “doble concience”. Acreditava-se
existir duas consciências disputando a mesma personalida-
de. Com isso, desenvolve-se uma visão horizontal do fun-
cionamento mental.

19
A técnica da clínica de Breuer e Freud era ba-
seada na sugestão, ou seja, através da hipnose o pacien-
te, em estado de transe, teria investigada sua mente em
seus resíduos e símbolos de ocorrências traumáticas. Nestes
elementos suspeitava-se originar a patologia mental. Assim,
descoberta a causa, esta era revelada ao paciente, em mo-
mento oportuno, tentando-se revivê-la. Dr. Breuer acredi-
tava no que se denominou “estados hipnóides da mente”.
Ele, então, desenvolve o método da catarse no tratamento
desta enfermidade do psiquismo.
Nas palavras de Freud:

“Nos casos de histeria, segundo


essa teoria, o afeto passava para uma
inervação somática fora do comum
(‘conversão’), mas se lhe podia dar
uma outra direção e ver-se livre dele
(‘ab-reagido’) se a experiência fosse
revivida sob hipnose. Os autores da-
vam a esse procedimento o nome de
‘catarse’ (purgar, liberar um afeto es-
trangulado).”

Neste período, Dr. Breuer atende uma pa-


ciente de vinte e um anos de idade, que apresentaria
sintomas indicativos de histeria. Ao tomar conhecimento
do caso, Freud se interessa muito e se envolve com o
projeto de pesquisa do colega e amigo. A paciente, se-
nhorita Bertha Pappenheim (1859 - 1936), ganha, nos
estudos de Freud e Breuer, o pseudônimo de ‘Anna O’
(caso que seria publicado só 13 anos mais tarde). Numa
noite em que Freud e Breuer foram ao teatro, encontra-
ram na ópera “Don Giovanni”, de Mozart (1756 - 1791),

20
a inspiração para o criptônio da primeira paciente trata-
da pela Psicanálise. Este fora o primeiro caso publicado
por Freud.
Partindo do radical “histeros” (útero), nasce
o termo histeria, que designaria um estado patológico
que, a princípio, seria descrito ocorrendo apenas em
mulheres. Nas palavras de Freud, em seu texto “Histe-
ria” (1888):

“O nome ‘histeria’ tem sua ori-


gem nos primórdios da Medicina e
resulta do preconceito, superado so-
mente nos dias atuais, que vincula as
neuroses às doenças do aparelho se-
xual feminino”.

Sigmund Freud teve sua formação médica em


neurologia, e desenvolveu a Psicanálise a partir da percep-
ção de que grande parte dos pacientes que ele atendia não
guardava a origem de suas doenças no corpo, ainda que
se manifestassem ali. Exames clínicos não apresentavam
diagnósticos fisiológicos e o organismo, em suas funções,
mantinha-se funcionando adequadamente. Ainda assim,
existia certa dor presente na queixa do paciente.
Entre 1892 e 1899, Freud desenvolveu uma
serie de ensaios que juntos formam as Primeiras Contri-
buições à Teoria das Neuroses. Nessa obra designou a
ordem patológica que percebia em seus pacientes, dando-
lhe o nome de neurose e nesse caso, mais especificamen-
te, histeria de conversão. Algo que existia na dimensão do
psíquico, mas se manifestava no corpo. Uma guerra que
se trava de forma interna, mas que ameaça transbordar
os limites emocionais do eu psíquico e manifestar-se no

21
corpo físico. Naturalmente, certo conflito entre um medo
e um desejo. Uma ordem de conflitos que pode promover
severas perturbações no funcionamento mental. Isso pelo
fato de que o medo é filho do desejo.
Em seu “Esboço de Psicanálise”, publicado
em 1940, Freud escreve:

“Os sintomas das neuroses, po-


der-se-ia dizer, são, sem exceção, ou
uma satisfação substitutiva de algum
impulso sexual ou medidas para im-
pedir tal satisfação, e, via de regra,
são conciliações entre as duas, do
tipo que ocorre em consonância com
as leis que operam entre contrários,
no inconsciente.” (Pag. 199)

Um novo Método

Freud usa da hipnose e do método catártico
por mais algum tempo, mas começa a perceber que esse
método, na busca da ab-reação, não apresentava bons re-
sultados em todos os pacientes. Percebe que a Psicanálise
não poderia continuar atrelada a um método tão trabalho-
so e cheio de restrições como o da hipnose. Na realidade,
percebe que, mesmo sem ser submetido à hipnose, o pa-
ciente revelava seus conflitos psíquicos no conteúdo que
trazia em sua fala. Assim, passa a desenvolver e utilizar-se
do método que chamou de associação livre. Com isso,
inicia o rompimento com os estudos do método catártico
do velho amigo e colega de estudos, Breuer, com quem
havia publicado estudos em conjunto.

22
O novo método conta com o que Freud cha-
mou de “regra fundamental”, o que consistiria em pedir
ao paciente que falasse livremente tudo o que lhe viesse à
mente, mesmo que lhe parecesse incoerente ou sem nexo.
Através das associações de ideias, o analista desenvolveria
interpretações, a fim de revelar conteúdos reprimidos em
sua mente. No discurso do paciente, estariam dois tipos
de conteúdo:
a) manifesto: é “o que”, representado nas
questões explícitas, naquilo que o paciente verbali-
za. Elementos conscientes para o sujeito.
b) latente: é o “como”, contido nas ques-
tões localizadas no ponto cego da mente, fatos re-
lacionados a frustrações e com tendência a serem
evitados, que o paciente não verbaliza, mas ainda
assim revela indiretamente. Isso por estarem incons-
cientes para o sujeito.
Em 1891, Freud publica “Contribuições à
Concepção das Afasias”, livro que assina, definitivamente,
o rompimento das teorias sobre os “estados hipnóides” e
o método catártico de Breuer.

Outros pensadores

Este modelo de aparelho psíquico e a teoria


que o compreende são estudados e desenvolvidos por
outros pensadores da psicologia, que surgem para a Psi-
canálise como uma continuação do pensamento freudia-
no. Muitas vezes, estes pensadores divergiam de alguma
forma com o pensamento do próprio Freud, o que, pelo
contrário que se possa pensar, não diminui seu valor, ou

23
o de cada um dos divergentes, mas soma a Psicanálise
como forma nova de pensar a dinâmica da mente. No
livro “W. Bion: uma Psicanálise do Pensamento” (1995),
Antônio Muniz de Rezende (importante psicanalista brasi-
leiro) usa a fórmula dos modelos para dizer que ser fiel a
Freud não é parar em suas ideias (modelos) originais, mas
partir delas para expandi-las, o que o próprio Freud fez
em toda a sua obra.

Carl Gustav Jung (1875 - 1961)

O primeiro integrante a se juntar ao grupo de


Freud que não fosse judeu, Carl Gustav Jung, um grande
pensador suíço e estudioso da mente humana, rompera
com Freud, em 1912, amizade que rendera grande avanço
para o estudo da Psicanálise, o que o indicaria para título
de precursor de Freud (título esse sugerido pelo próprio
Freud).
Jung esteve próximo do pensamento psica-
nalítico em uma fase de grande expansão. Sua teoria
diverge da Psicanálise freudiana em alguns pontos, como
na concepção da psicossexualidade e na disponibilida-
de do conteúdo presente no aparelho psíquico. Jung
acredita em elementos arquetípicos (arquétipos), e os
denomina, afirmando que estariam contidos na repre-
sentação chamada inconsciente coletivo, transmitido
hereditariamente e em conjunto com um inconsciente
individual, seria comum a todo ser humano, sendo as-
sim, invariante.

24
Melaine Klein (1882 – 1960)

Melaine Klein iniciou seus estudos e publi-


cou seu primeiro trabalho na década de vinte, quando a
Psicanálise já se fazia uma teoria psicológica importante
no panorama mundial, e alcançava certo respeito. Nessa
época, o nome de Freud já havia conquistado reconheci-
mento e prestígio pelo mundo todo. Essa pensadora in-
glesa desenvolve o método da ludoterapia no tratamento
e análise de crianças. Em sua trajetória, Klein enfrenta
inúmeras dificuldades como a “rivalidade teórica” com
Anna Freud (1895 - 1982), filha de Freud, que, nessa
época, desenvolvera também um método de psicotera-
pia infantil.
Klein diverge de Freud, principalmente quan-
to à precocidade do desenvolvimento mental da criança
e introduz à Psicanálise importantes conceitos, como o
de “Identificação Projetiva”, mecanismo do aparelho psí-
quico. M. Klein também contribuiu na Psicanálise com
sua teoria das posições (esquizoparanóide e depressiva)
e proporcionou grande avanço no que diz respeito ao
conceito de “símbolo” na formação e desenvolvimento
do ego.
Além de Jung e Klein, a Psicanálise deter-
minou muitos outros pensadores e continua produzin-
do-os incessantemente, como o pediatra inglês Donald
Woods Winnicott (1896 - 1971), o francês Jacques-
Marie Émile Lacan (1901 - 1981), o discípulo de Klein,
Wilfred Ruprecht Bion (1897 - 1979), Antônio Ferro e
no Brasil, Walter Trinca e Antônio de Muniz Rezende,

25
pensadores que trazem ideias de enormes proporções
para a Psicanálise. E assim como o próprio Freud es-
crevera, “outros virão”.
Retomaremos Jung e Klein em certa altura
deste trabalho que nos permita maior compreensão inter-
na (insight) do que é Psicanálise.

Psicanálise e cultura

Antes dos estudos de Freud, que conduziriam


a elaboração da teoria psicanalítica, a psicologia era vista
e trabalhada como se existisse atuante, exclusivamente,
na consciência. Isto é, o consciente era encarado como
a totalidade da mente. A própria histeria teve seu início
teórico como “doble concience”. Acreditava-se que de
uma forma geral, uma consciência disputaria, com outra
consciência paralelamente independente, os investimen-
tos mentais de um mesmo sujeito. Essa ideia inicial da di-
visão do aparelho mental aparece muito claramente tanto
na ciência como na literatura romancista do século XIX,
em pensamentos contemporâneos a Psicanálise, como
em “O Retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde (1854 -
1900) e “O Médico e o Monstro”, de Robert Louis Balfour
Stevenson (1850 - 1894). Essa ideia original se transforma
junto com a evolução dos estudos de Freud. O consciente
passa, então, a ter outra conotação. É, agora, uma parte
do que Freud chamaria de aparelho psíquico, um lugar na
topografia da mente, um sistema do ponto de vista eco-
nômico e um processo na dinâmica mental.

26
Conceito de libido

Para compreendermos o funcionamento de


certo aparelho, temos que pesquisar antes, sobre a ener-
gia que movimenta esse aparelho. No caso do aparelho
mental, falamos então de energia psíquica ou sexual e libi-
do foi como Freud denominou esse conceito. A libido é a
energia psíquica responsável pelas ligações entre as partes
psíquicas internas ou externas. Em 1905, Freud publica
os TRÊS ENSAIOS SOBRE A TEORIA DA SEXUALIDADE,
e procura um referencial cientifico para denominação da
pulsão:
“O fato da existência de necessi-
dades sexuais no homem e no animal
expressa-se na biologia pelo pressupos-
to de uma ‘pulsão sexual’. Segue-se nis-
so a analogia com a pulsão de nutrição:
a fome. Falta à linguagem vulgar [no
caso da pulsão sexual] uma designação
equivalente à palavra ‘fome’; a ciência
vale-se, para isso, de ‘libido’.”

Para Freud, essa libido se apresentaria em


duas formas básicas. Eros, ou o Cupido, é retratado na
mitologia grega como o deus do amor, aquele que une,
liga. Na Psicanálise aparece esse nome como indicativo
de pulsão de vida, ou movimento de libido (substrato
da pulsão) do interior para o exterior. É a manifestação
do movimento que parte de dentro e eclode para fora,
a expressão do movimento em direção à ligação com o
mundo (ao objeto). Na ausência da libido externa, quem

27
atua é a pulsão de morte, Thanatos - na mitologia grega,
filho de Nyx (a Noite), irmão gêmeo de Hipnos. Enquanto
Hades reina sobre os mortos, Thanatos é a própria per-
sonificação da morte, que vive paralelamente com Eros
e cujo objetivo é conduzir a inquietação da vida para a
estabilidade do estado inorgânico. A energia que era pro-
jetada para fora do aparelho psíquico agora é direcionada
para o mundo interno. A pulsão de morte é caracterizada
por ações repetitivas que parecem retornar a um está-
gio anterior do desenvolvimento, se expressa através de
tentativas de cisão das partes do objeto (amor X ódio).
Um movimento que tende à desvinculação das partes
frente à ameaça. Freud introduz a teoria das pulsões e
em 1924, monta um esquema que traz o princípio de
nirvana como objetivo da pulsão de morte. No texto O
PROBLEMA ECONÔMICO DO MASOQUISMO (1924),
Freud descreve:
“O princípio de Nirvana expres-
sa a tendência do instinto de morte; o
princípio de prazer representa as exi-
gências da libido, e a modificação do
último princípio, o princípio de realida-
de, representa a influência do mundo
externo. Nenhum desses três princípios
é realmente colocado fora de ação por
outro. Via de regra eles podem tolerar-
se mutuamente, embora conflitos es-
tejam fadados a surgir ocasionalmente
do fato dos objetivos diferentes que são
estabelecidos para cada um...”

O funcionamento mental com a introdução


do conceito de pulsão de morte passa a ter uma conota-
ção dialética: por um lado uma tendência leva o psiquismo

28
a buscar a paz (por isto Freud se refere ao conceito de
Nirvana), enquanto por outro lado, a libido (instintos de
vida), introduz no psiquismo uma dose de excitação e im-
pulsiona no sentido da busca de um objeto.

Os processos e os princípios do funcionamento mental

Em 1911, Freud chamou a atenção, com o


texto “Formulações sobre os dois Princípios do Funcio-
namento Mental”, para os processos mentais em funcio-
namento. No inconsciente a mente funciona através do
processo primário. Dentro desse processo, impera certa
verdade onde o “eu” coincide com o “tudo”. Não se ad-
mite nessa ordem de funcionamento mental a existência
do outro. O princípio do prazer é que comanda esse tipo
de processo que Freud chamou de processo primário. No-
ções como as de tempo e espaço não têm lugar neste
processo mental. Dentro deste funcionamento, a lógica se
estabelece por meio dos mecanismos de condensação e
deslocamento. Condensam-se e deslocam-se dados sen-
soriais em nome de afastar desconfortos. Isso cria uma
“realidade” diferente da realidade externa, conhecida do
sistema consciente e compartilhada entre sujeitos.
Contudo, na missão de afastar desconfortos,
o aparelho psíquico acaba por reconhecer o mundo exter-
no onde está o “outro”. Aquele que na realidade é quem
satisfaz as necessidades do aparelho psíquico. Então, regi-
do por Eros, o aparelho psíquico descobre outro processo
e com ele outra forma de funcionar.
O processo secundário começa se instalar no
aparelho psíquico a partir do reconhecimento do outro.

29
Agora o “eu” e o “tudo” já não se confundem mais. O
outro não é apenas reconhecido como outro, mas vem
com a realidade de que o eu depende fundamentalmente
dele. Se no processo primário a lei partia do afastamento
do desconforto independente da realidade, agora, no pro-
cesso secundário, o referencial é justamente a realidade.
Esse novo funcionamento onde o outro é fundamental é
regido pelo princípio de realidade. Essa é a introdução
da consciência, instância superior da mente que teremos
chance de estudar com mais cuidado em capítulos seguin-
tes. Sobre isso, Freud escreve em 1911:

“O pensar foi dotado de carac-


terísticas que tornaram possível para o
aparelho mental tolerar uma tensão in-
tensificada de estímulo, enquanto o pro-
cesso de descarga era adiado.”

O pensamento, então, foi desenvolvido a ser-


viço da realidade e, primariamente, como meio de adiar
a satisfação, sustentando a tensão. Mas uma parte deste
processo ficou reservada, sem contato com a realidade, e,
no mesmo artigo, Freud completa:

“Com a introdução do princípio


da realidade, uma espécie de atividade
do pensamento foi expelida (split off);
foi mantida livre do teste da realidade
e permaneceu subordinada apenas ao
princípio do prazer. Essa atividade é o
fantasiar.”

No funcionamento inconsciente o que se produz


são fantasias que são dependentes do princípio do prazer/

30
desprazer e servem para adiar ou afastar desconfortos, em
nome de um bom funcionamento mental. Entretanto, a ori-
gem do pensamento, que é da ordem do processo secun-
dário, se encontra na capacidade de testar a fantasia frente à
realidade. Não é um simples contraste, mas uma derivação.
O pensamento seria uma antiga fantasia que se submeteu ao
princípio de realidade, que, por sua vez, é o princípio do
prazer modificado pela realidade.
Esta realidade interna é sempre regida por um
alto grau de onipotência, que tende a se dissolver quando
emerge para camadas mais altas do aparelho mental. As-
sim, as ideias passam por aquilo que Freud denominou de
teste de realidade, e chegam à consciência em forma de
pensamento.
Apesar de a função mais evoluída dos pro-
cessos mentais, o processo secundário, ser parte do
sistema consciente, é apenas uma parte do aparelho
psíquico que funciona assim. Na maioria do tempo, o
aparelho psíquico funciona pelo processo primário, em
que o pensamento mágico impera. Essa é justamente a
forma de pensar que está disponível a um bebê em seus
primeiros anos de vida.

Instâncias da Mente

Através dos estudos sobre histeria e sobre o


funcionamento da cadeia de sintomas que este estado psi-
cológico provoca no sujeito, foi possível a Freud a desco-
berta do inconsciente e a partir de então entender a mente
através de um processo. Processo esse que ocorre em um
“aparelho”, compreendendo certa organização psíquica,

31
onde se apresentavam sistemas ou instâncias com fun-
ções específicas que funcionavam interdependentes entre
si. Assim, Freud desenvolve a teoria da Metapsicologia,
que envolve para além do conhecimento do sujeito. Freud
descreve um modelo de psicologia denominada Psicologia
Profunda, que abarca todas as nossas percepções, ideias,
lembranças, sentimentos e atos – todos fazem parte do
que é psíquico, sendo ou não compreendido no nível da
percepção.
Buscando no radical grego “topos”, que signi-
fica ‘lugar’, Freud determina o que seria “Primeira Tópi-
ca”, na teoria freudiana: a topografia da mente. Na geo-
grafia topográfica, por exemplo, se utiliza do termo para
descrever as regiões mais profundas ou mais elevadas do
terreno. Desta mesma forma, nesse primeiro modelo, a
psicanalise se utilizou desse conceito para descrever e
mapear a mente. Dentro desse modelo, Freud dividiu a
mente em três instâncias: Inconsciente, Pré-consciente e
Consciente.
Freud descreve o aparelho mental, mas alerta
sobre a subjetividade do termo quando propõe:

“Podemos evitar qualquer possí-


vel abuso desse método de figuração,
lembrando que as representações, os
pensamentos e as estruturas psíquicas,
em geral, nunca devem ser encaradas
como localizadas em elementos orgâni-
cos do sistema nervoso (...)”

Segundo o modelo freudiano, no aparelho psí-


quico as ideias e representações (termo melhor estudado à
frente) seguiriam em um fio lógico, que contém pontos no-

32
dais em que se encontram dois ou mais fios como se fossem
um só. Este fio de informações é a linha em que o analista,
através da associação livre de ideias, se apoia para a in-
vestigação e proposta de interpretações no tratamento dos
conflitos patológicos da mente. Com o modelo topográfico,
a perspectiva passa da antiga visão horizontal para um vér-
tice vertical, revelando uma conotação de profundidade, o
que poderíamos chamar de mapeamento mental.

O inconsciente - Ics.

Termo usado na psiquiatria para definir episó-


dio de perda da razão, ou momento onde o indivíduo fica
sem o controle de seus atos, o conceito de inconsciente
é, sem dúvida, a maior descoberta de Freud. Essa desco-
berta serviu, e nos serve até hoje, como esteio para toda
teoria psicanalítica. Freud descreve o inconsciente como
sendo a base geral do psiquismo humano, em que tudo
que chega à consciência do individuo passa primeiro pelo
inconsciente.
É a parte do eu que o próprio eu desconhe-
ce. O local de onde parte a libido inicialmente em forma
de pulsão. Do ponto de vista topográfico, o inconsciente
localiza-se na camada inferior do aparelho psíquico nas áre-
as mais profundas. Representando dinamicamente, é tudo
aquilo que não pode passar pela censura dos sistemas pré-
consciente e consciente (que estudaremos melhor adiante)
e finalmente, emergir à consciência. No inconsciente a lógi-
ca é muito diferente das outras instâncias mentais.
Freud mostra que, no sistema inconsciente,
não atuam noções presentes no consciente, como a de

33
tempo e espaço, atribuída só com a introdução da experi-
ência com a realidade externa, isto é, só a partir do nível
pré-consciente, e diz:

“Não há, nesse sistema, lugar


para negação, dúvida ou quaisquer
graus de certeza: tudo isso só é intro-
duzido pelo trabalho da censura entre o
Ics. e o Pcs.”

Podemos sugerir que o inconsciente denote


as seguintes peculiaridades em seus conteúdos:
– Se sente, mas não se sabe.
– Conteúdos originados das pulsões, é do
inconsciente de onde parte a libido.
– Não compreendem aspectos referentes a
temporalidade, noções espaciais tão pouco referen-
cias pessoais (definição objetal).
– Elementos referentes aos processos pri-
mários (condensação e deslocamento); regido pelo
princípio do prazer.
– Procuram emergir (ou retornar) à consci-
ência (realidade) por meio da ação.
– Não tem representante definido na rea-
lidade.
– Geralmente, são submetidos à censura
quando emergem.
– Podem ser representados nos sonhos,
nos atos falhos (parapraxia), nos sintomas mentais,
na vida mental primitiva, tanto da criança quanto na
dos nossos ansestrais.

34
Na realidade a capacidade de perceber as pro-
duções do inconsciente ainda é muito primitiva em nossa
espécie e, muitas vezes, nos vimos presos a essas produ-
ções, tomando-as como realidade.

O reprimido

Um conceito muito presente na teoria freu-


diana, como ilustrativo dos processos inconscientes, é o
“reprimido”. Escreve Freud em 1915:

“(...) a repressão constitui essen-


cialmente um processo que afeta as
idéias na fronteira entre o s sistemas Ics.
e Pcs. (Cs.).”

É pressionado a se manter inconsciente por


não suportar o teste proposto pelos outros sistemas mais
superiores no aparelho psíquico. São, em geral, recorda-
ções, desejos e vivências dolorosas, repletas de fracasso,
vergonha, fragilidade e, sobretudo, frustrações, que repre-
sentam, em primeira instância, algum tipo de ameaça. São
desejos reprimidos que, em forma de ideia, não suportam
emergir a consciência, mas que, amiúde, se manifestam
nos sonhos e, em forma sintomática, atuação motora que
caracteriza atos falhos. Freud descreve:

“(...) Podemos dizer que, em ge-


ral, um ato psíquico passa por duas fa-
ses quanto ao seu estado, entre as quais
se interpõe uma espécie de teste (cen-
sura). Na primeira fase, o ato psíquico é
inconsciente e pertence ao sistema Ics;

35
se, no teste, for rejeitado pela censura,
não terá permissão para passar à segun-
da fase; diz-se, então, que foi ‘reprimi-
do’(...).”

Em 1914, Freud publica RECORDAR, REPE-


TIR E ELABORAR (NOVAS RECOMENDAÇÕES SOBRE A
TÉCNICA DA PSICANÁLISE II). Neste texto, ele procura
estudar a compulsão à repetição que acomete o neu-
rótico, sobretudo durante o período de análise. Freud
propõe que o sujeito repita para não se lembrar, ou seja,
repita em ação aquilo que não pode achar em sua me-
mória. Essa repetição seria o mesmo sintoma do repri-
mido que tenta a erupção das profundas camadas do
inconsciente para o plano consciente. Falamos de certa
compulsão à repetição. Em 1920, Freud retoma o tema
e escreve sobre as resistências que surgiriam nas vicissi-
tudes do reprimido até a consciência. Nessa perspectiva
Freud escreve sobre as tentativas para que essa repeti-
ção não ocorra:

“o reprimido não oferece resistên-


cia alguma aos esforços do tratamento.
Na verdade, ele próprio não se esforça
ara outra coisa que não seja irromper
através da pressão que sobre ele pesa,
e abrir seu caminho à consciência ou a
uma descarga por meio de uma ação
real.”

Freud postulou que, na ocorrência do repri-


mido, entra em seu lugar uma “ideia substitutiva” ou, um
substituto por deslocamento. Um elemento do mundo ex-
terno é eleito como substituto da ideia que deve ser evita-

36
da. Esse elemento externo passa a ser, para a percepção,
um indicativo de ameaça e propenso a ser evitado de
maneira fóbica e não mais uma ameaça que parte do
impulso interno. Dessa maneira o reprimido passa a ser
uma parte do ‘eu’ que não pode ser assumida conscien-
temente como integrante do próprio eu. Um fato psíqui-
co que não consegue encontrar lugar na consciência, um
afeto, uma necessidade ou, simplesmente, um impulso
primitivo que não teve a chance de evoluir ganhando
sentido de ideia ou status de característica consciente
no ‘eu’ do indivíduo. O reprimido está condenado, pelas
instâncias censoras do “eu”, a viver nas profundezas do
inconsciente. Mas, amiúde, tenta emergir na personali-
dade consciente provocando, assim, os sintomas da neu-
rose. Segundo Freud, o sintoma da neurose traz consigo
um enigma que, através da interpretação, pode encon-
trar a solução para o conflito.
Segundo Freud, os conteúdos que não foram
aceitos no pré-consciente e no consciente ficam retidos
no inconsciente como conteúdo recalcado e que, poste-
riormente, podem se disponibilizar como material para
a instalação de uma patologia. Mas, Freud, em 1915,
descreve o inconsciente como algo mais abrangente que
um continente de elementos não aceitos e recalcados,
quando apoia:

“Tudo que é reprimido deve per-


manecer inconsciente; mas, logo de
início, declaremos que o reprimido não
abrange tudo que é inconsciente. O al-
cance do inconsciente é mais amplo.”

Continua:

37
“O inconsciente abrange, por um
lado, atos que são meramente latentes,
temporariamente inconscientes, mas
que, em nenhum outro aspecto, diferem
dos atos conscientes, e, por outro lado,
abrange processos tais como os reprimi-
dos, que, caso se tornassem conscientes,
estariam propensos a sobressair num
contraste mais grosseiro como restante
dos processos conscientes.”

Os sonhos

Os sonhos foram, para Freud, um caminho


indicativo na descoberta dos elementos oníricos e da exis-
tência do inconsciente. Proposto como a via régia para
essa instância do aparelho psíquico, o sonho, assim como
os conteúdos oníricos, traz consigo muito dos conteúdos
sintomáticos, presentes nas neuroses e outras patologias
da mente. Adicionado a fragmentos de fatos vivenciados
em vigília, ou seja, dados obtidos enquanto se está acor-
dado, o sonho traz fatores referente às pulsões. Estes con-
teúdos estariam presentes no inconsciente, representados
no sonho por ideias fantasiosas e confusamente ajustadas
a elementos vivenciados durante o período em que se está
acordado.
Freud atribui à censura dos níveis superiores
da mente a dificuldade de se compreender e se recordar
do conteúdo do sonho. Portanto, o sonho estaria para a
Psicanálise como uma janela reveladora de conteúdos in-
conscientes que não puderam ser educados pela doutrina
civilizatória e assim, não conseguindo emergir para níveis

38
mentalmente superiores, foram reprimidos e arremessa-
dos de volta para o inconsciente. Freud conclui o texto
“Comunicação entre os dois Sistemas”, com o seguinte
adágio:

“Se existem, no ser humano, for-


mações mentais herdadas – algo aná-
logo ao instinto nos animais – , elas
constituem o núcleo do Ics. Depois,
junta-se a elas o que foi descartado
durante o desenvolvimento da infância
como sendo inútil; e isso não precisa
diferir, em sua natureza, daquilo que é
herdado.”

Freud propõe uma ideia interessante para o


sonho, em 1924, no seu texto “Uma breve descrição da
Psicanálise”, quando escreve:

“O sonho é uma realização (dis-


farçada) de um desejo (reprimido).”

O pré-consciente - Pcs.

É a instância transicional do aparelho psíquico.


A partir do contato com a realidade o aparelho psíquico
conhece um funcionamento diferente daquele usualmente
frequente no inconsciente. Como pudemos estudar em ca-
pítulos anteriores, o contato com a realidade externa con-
vida a mente ao processo secundário, onde o principio de
realidade substitui o princípio do prazer/desprazer. Esse
é justamente o procedimento que dirige a libido ao cons-
ciente. Contudo, essa passagem nunca é feita de maneira

39
simples. Logo acima do sistema inconsciente, localiza-se
o pré-consciente. Freud escreve em 1915:

“O conteúdo do sistema Pcs. (ou


Cs.) deriva, em parte, da vida instintual
(por intermédio do Ics.) e, em parte, da
percepção”.

E, apesar de Freud ligar muitas vezes a fun-


ção da percepção-consciência ao sistema pré-consciente,
destaca a censura como condição para que se chegue à
ideia em si, mas Freud descreve melhor a condição deste
sistema quando defende:

“Grande parte desse pré-cons-


ciente se origina no inconsciente, tem a
natureza dos seus derivados e está su-
jeita à censura, antes de poder se tornar
consciente. Outra parte do Pcs. é capaz
de se tornar consciente sem qualquer
censura.”

Do ponto de vista metapsicológico, o sistema


pré-consciente é onde a mente começa a ser regida pelo
processo secundário, é nesse nível mental que o processo
secundário tem seu inicio. Localizado, topograficamente
acima do Ics. e abaixo do Cs., o sistema pré-consciente,
tem a função dinâmica de trabalhar elementos da memó-
ria que não se sustentam íntegros, quando representados
no nível consciente. No trabalho clínico-psicanalítico, um
ato psíquico só pode emergir à consciência se aceito pela
censura pré-consciente. Quando não, emerge como uma
atuação (acting out), algo que não pôde ser pensado e,
posteriormente, elaborado. Assim, surge, na consciência,

40
por meio de um ato motor ou um comportamento (não
congruente com a ocasião). De algum modo, este com-
portamento é caracterizado por uma forma repetida (re-
petição) de lidar com o conflito.
Conteúdos (ideias) do sistema pré-consciente
podem emergir e retornar ao nível profundo do incons-
ciente se necessário for, por medidas defensivas. Assim,
do ponto de vista econômico, pode ter investimentos
maiores e menores de catexias libidinais e, dependendo
do critério da censura, pode aparecer para a consciên-
cia. O conteúdo psíquico necessita passar pelo sistema
pré-consciente para atingir o topo do aparelho psíquico,
ou seja, pra que possa emergir a consciência. Antes dis-
so, esses conteúdos podem ficar abrigados no incons-
ciente, em que são mantidos como reprimidos (como
vimos anteriormente) da consciência. Freud escreve, em
1900, com propriedade, e mostra como se percebe o
Pcs.:

“Portanto, há dois tipos de incons-


ciente, que ainda não foram distinguidos
pelos psicólogos. Ambos são inconscien-
tes no sentido empregado pela Psicolo-
gia, mas, em nosso sentido, um deles,
que denominamos de Ics., é também
inadmissível à consciência, enquanto
ao outro chamamos Pcs., porque suas
excitações – depois de observarem cer-
tas regras, é verdade, e, talvez, apenas
depois de passarem por uma nova cen-
sura, embora, mesmo assim, sem consi-
deração pelo Ics. – conseguem alcançar
a consciência.”

41
Os elementos contidos no sistema pré-cons-
ciente podem ser exemplificados, em parte, por tudo aquilo
que lembramos, mas que, de alguma forma, não conse-
guimos trazer à consciência. Isso nos sugere um tipo de
critério de seleção baseado em uma censura que barra estes
conteúdos de se tornarem conscientes. É como se pudésse-
mos dizer: “eu sei mas não sei como dizer ao outro”.
Nesse estágio do processo mental, aquilo que,
até então, se mantivera como ideias primitivas e incons-
cientes, agora ganha atributos e definições pré-conscien-
tes como a temporalidade, noção espacial e uma escolha
objetal mais adequada. Só assim pode-se emergir a um es-
tágio superior do aparelho mental e, em um novo estágio,
se desenvolver até que chegue à consciência, podendo,
assim, ser vivido na realidade. Freud coloca uma condição
para que os conteúdos emerjam para as camadas supe-
riores do aparelho psíquico quando escreve em seu texto
“Instintos e suas Vicissitudes”:

“Um instinto jamais pode se tor-


nar um objeto da consciência – comente
a ideia que representa o instinto é que
pode.”

Conceito de Representação

É no pré-consciente que ocorre a junção de


algo que está dentro com algo que está fora (catexia), mo-
mento este em que um sentimento se liga a um objeto
externo, formando o que Freud chamou de representação
de coisa. Quando surgem, do interior do bebê, as primei-
ras experiências, estas são de desprazer (fome, frio, cóli-

42
ca, pânico), e, então, ele percebe alguém ou algo (objeto)
que pode trazer alívio (prazer). Talvez isto seja um protóti-
po de um modelo ulterior de relação: “Existe alguém que
cuida de mim e é confiável.” O oposto ocorre quando não
há quem cuide ou quando o período de espera é longo
demais, até que chegue o cuidador, ficando comprome-
tida então a chance de simbolizar a experiência. Daí em
diante, o caminho da libido investida pode tomar rumos
contrários, como é o caso do mecanismo de repressão
(conceito já estudado anteriormente). A libido que se bus-
cava ligar ao objeto externo é introvertida em direção ao
inconsciente. Não se construiu a representação.
Poderíamos, agora, fazer uso de um modelo
filosófico para pensarmos o conceito de símbolo. Imagi-
nemos, então, algo, alguém, algum lugar, que possamos
sentir a presença mesmo não podendo confirmar com
os órgãos dos sentidos. O símbolo se encontra exata-
mente na ausência real-sensória do objeto. O simbolizar
é a capacidade de sentir a presença mesmo na falta,
através de uma imagem internalizada. Teremos chance
de cuidarmos melhor do conceito de símbolo mais a fren-
te, nesse trabalho.
É no pré-consciente que ocorre a junção da
‘representação de coisa’ com a ‘representação de palavra’.
Freud, talvez orientado por Immanuel Kant
(coisa-em-si), propõe aquilo que chamou de “representa-
ção de coisa” (objeto). A partir desta capacidade de abs-
tração, desenvolve-se a “representação da palavra”.

“Uma palavra, contudo, adquire


seu significado, ligando-se a uma ‘repre-
sentação do objeto’, pelo menos, se nos
restringirmos a uma consideração de

43
substantivos. A própria representação
do objeto é, mais uma vez, um complexo
de associações formado por uma gran-
de variedade de representações visuais,
acústicas, táteis, sinestésicas, e outras. A
Filosofia nos diz que uma representação
do objeto consiste simplesmente nisso –
que a aparência de haver uma ‘coisa’ de
cujos vários ‘atributos’ essas impressões
dos sentidos dão testemunho, deve-se
meramente ao fato de que, ao enume-
rarmos as impressões sensoriais que re-
cebemos de um objeto, pressupomos a
possibilidade de haver grande número
de outras impressões na mesma cadeia
de associações.” (J. S. Mill) Freud. O
INCONSCIENTE (1915)

John Stuart Mill, (1806 - 1873), foi um filósofo


inglês, economista e reformador, entre os seus escritos es-
tão assuntos como: os diretos da mulher, a ética e a política.
Os seus trabalhos, muito influentes, aparecem como par-
te de seu pensamento. De forma mais notável, os críticos
disseram: era a justiça absoluta dele. Ele não só deu boas
vindas às ideias opostas à dele, mas também as adotou.

O Consciente - Cs.

A menor parte do aparelho psíquico, do pon-


to de vista tópico, o sistema percepção-consciência está
situado na periferia, ou seja, na mais alta camada do apa-
relho psíquico. Do ponto de vista dinâmico, ou funcional,

44
nele, não se inscreve qualquer traço durável das excita-
ções. No vértice econômico, caracteriza-se pelo fato de se
dispor de uma energia livremente móvel. O interesse cons-
ciente muda de direção com facilidade e a energia libidinal
se desloca. Isso é muito claro no mecanismo de atenção.
Desprendemos de atenção consciente para algo que no
próximo momento já não nos desperta tanto interesse.
Quando falamos do consciente estamos nos
referindo a certa camada do aparelho psíquico que fica
em contato direto com o mundo externo, a forma externa
da personalidade. Se pensarmos num modelo de forma-
ção natural ou de estrutura da natureza, poderíamos aqui
sugerir a figura de uma cebola. Onde as cascas mais du-
ras, secas e sem vida protegem aquilo que está lá dentro,
vivo e muito frágil. Sob esse ponto de vista o consciente
é a proteção daquilo que se encontra no interior, o pré-
consciente que também guarda certa cota de propriedade
defensiva da mente e o inconsciente que necessita ser de-
fendido por não conhecer (ser reconhecido) pela realidade
e funcionar de uma forma diferente do mundo externo.
Justamente por ser superficial é que o sistema consciente
guarda características superficiais da personalidade.
Assim, o sistema consciente tem a função de
receber informações das excitações provenientes do ex-
terior e também do interior (do sistema pré-consciente)
que ficam registradas, qualitativamente, de acordo com
o prazer e/ou desprazer que elas causam. Isso sempre
com o intuito de equilibrar as emoções visando o bom
funcionamento interno. Entretanto, o consciente não re-
tém esses registros e representações como depósito ou
arquivo deles. Nas palavras de Freud, “ser consciente não
pode ser a essência do que é psíquico” e já, em 1900, ele
descreve a função do sistema consciente como:

45
“Apenas o de um órgão sensorial
para a percepção de qualidades psíqui-
cas. De acordo com as ideias subjacentes
a nosso ensaio de um quadro esquemá-
tico, só podemos encarar a percepção
consciente como a função própria de
um determinado sistema e, para este, a
abreviação Cs. parece apropriada.”

Se utilizarmos aqui do vértice usado por Wil-


fred Ruprecht Bion (1897-1979) perceberemos que, ao es-
tudamos as instâncias da mente, teremos uma visão bem
mais clara se pudermos analisar a relação entre conteúdo,
que se encontra em cada uma das regiões topográficas
desse continente que chamamos aqui de aparelho psíqui-
co. Quero propor que analisar cada instância da mente,
deve incluir olharmos cuidadosamente para as caracterís-
ticas dos conteúdos tomando como referencial cada nível
desse sistema continente.
As ideias têm, na consciência, um referencial
que inclui lógica de tempo e espaço, isso permite que elas
possam ganhar o status do ‘existir’ e, em sua grande par-
te, compartilhadas com o outro (externo). O sistema cons-
ciente trabalha no que Freud (1911) chamou, em “Formu-
lações sobre dois Princípios do Funcionamento Mental”,
de processo secundário, e pode ser estudado com mais
atenção em tópicos anteriores, desse trabalho. A nos lem-
brarmos, funciona na base do princípio da realidade, ou
seja, tem a realidade como referencial para reconhecer e
diferenciar as produções da mente, de percepção da re-
alidade. Mas essa é apenas uma pequena parte do que é
psíquico. Logo abaixo, num referencial de vértice vertical,
fica o sistema pré-consciente ou Pcs.

46
Assim, podemos dizer que o consciente é o
campo do pensamento.

A dinâmica da libido no aparelho mental

Já tivemos oportunidade de compreender


que o inconsciente é o lugar na topografia mental do
qual não se conhece, só podendo ser conhecido através
de interpretações de manifestações como sonhos e atos
falhos. Essa instância do aparelho psíquico é a apoio da
ideia topográfica da mente e talvez a maior contribuição
freudiana. Em sua importante obra A INTERPRETAÇÃO
DOS SONHOS, de 1900, Freud dispõe a mente funcio-
nando sob certo prisma, onde os elementos contidos
nesse aparelho psíquico circulariam por regiões das mais
profundas às mais elevadas. Segundo Freud isso ocor-
reria numa escala graduada por ele em três instâncias:
Inconsciente, Pré-consciente e Consciente.
Os elementos dispostos no aparelho mental re-
cebem uma nomeação específica dependendo da etapa que
se encontrem nessa topografia. De uma forma esquemática
poderíamos alegar que cada evolução de cada elemento faz
com que possa subir um degrau na escala topográfica. São
pulsões que brotam do fundo da mente, onde primitivamente
pouco se diferenciam das necessidades corporais ou fisiológi-
cas, naquilo que Freud chamou de fronteira entre o psíquico
e o somático. Lugar de pulsões que percorrem um longo ca-
minho até encontrarem no mundo externo certo objeto que
seja capaz de representá-las por meio de um vínculo.
São elementos pulsionais formados a partir
da libido, mas que até então não podem ser chamados de

47
ideias. Isso por conta de sua primitiva forma, escassa de
qualidades da consciência que permitam ser comunicáveis
ao outro. Nesse estagio primitivo e profundo do aparelho
topográfico, ou seja, no nível inconsciente, os elementos
tentam por meio de ação emergir para o mundo externo
e assim aliviar o desconforto que é gerado a partir de sua
origem. São governados por um funcionamento descrito
por Freud como processo primário, onde o eu coincide
com a totalidade do mundo e a capacidade de distinção
entre o eu e o outro é impossível. Sob essa regência a
função do aparelho mental está calcada no principio do
prazer, que busca a todo custo o alívio das tensões que
partem do interior. Ao se pronunciar no mundo externo
por encontrar um possível objeto, conquista o status de
impulso, isso por se tratar agora de uma ação. Mas, para
ser chamada de impulso, é necessário que exista um obje-
to, assim como já propunha Arthur Schopenhauer (1788
- 1860) filósofo alemão do século XIX, em sua obra O Li-
vre Arbítrio: “Quando um homem quer também alguma
coisa: a sua volição sempre se refere para o qual tende,
não podendo ser pensada senão em relação àquele ob-
jeto.” (Pag. 33)
A libido que é agora projetada num objeto do
mundo externo tem as características de Eros o deus grego
do amor, do qual Freud utilizou-se para ilustrar a pulsão
de vida. Eros, que é para a Psicanálise o movimento da
libido do interior para o exterior, busca, através da libido
objetal, ligar-se ao objeto.
A partir daí é introduzido um novo funciona-
mento mental, que Freud denomina processo secundário.
Se no começo buscava-se o outro para satisfazer pulsões,
agora é justamente o outro que trará a proposta de um
novo funcionamento mental. Nesse novo modo de funcio-

48
nar, a realidade externa se mostra presente e importan-
te, assim o princípio do prazer que vinha comandando o
aparelho psíquico dá lugar para o princípio de realidade,
que usa a verdade externa como referência para funcio-
nar. Aquilo que se apresentava como libido livre agora se
acha vinculada a um objeto num novo modelo de ligação
designado catexia libidinal.
Contudo, se esse impulso que parte do inte-
rior do aparelho psíquico não encontra no objeto externo
um representante capaz de contê-lo, acolhê-lo, ele retorna
então para dentro do aparelho psíquico. Faz isso num tra-
balho de Tânatos, o deus da morte, mito grego que Freud
usou para ilustrar a pulsão de morte. A função da pulsão
de morte é recuperar a harmonia e a calma interna evi-
tando assim as tensões conflituosas entre mundo interno e
mundo externo.
Freud chamou esse estado mental ansiado
por Tânatos de principio de Nirvana. Por tender à sepa-
ração das partes, para forma inanimada, essa qualidade
de pulsão afasta a libido do objeto externo e direciona
para dentro, no inconsciente, lugar de onde partiu. As-
sim, na teoria psicanalítica essa pulsão toma o nome de
reprimido, um elemento renegado, expulso dos domínios
da consciência e retirado de volta para o inconsciente de
onde se originou. Agora esse conteúdo psíquico amiúde
tentará emergir no mundo externo. Mas a partir de ago-
ra o reprimido tentará emergir modificado por conta do
fracasso na primeira tentativa. Surge agora projetado no
outro. A partir daí não mais como parte ou características
do eu, mas como se existisse e vivesse no outro. Outro
esse, com o qual o sujeito da libido manterá certo vínculo
especial. Um vínculo cunhado por características ambi-
valentes. Amor e ódio rondarão e disputarão lugar nessa

49
ligação estabelecida com comprometimentos e repleta de
fantasias geradas através do processo de repressão.
Agora é no pré-consciente que esses ele-
mentos se encontram. Nesse nível do aparelho psíquico
apresentam-se em sua forma latente, podendo emergir
à consciência por ventura e dependendo da qualidade
do ambiente, enquanto objeto. No pré-consciente ocorre
certo processo de mistura e decantação daquilo que é
do imaginário e aquilo que é da realidade externa. Esses
elementos já puderam receber certas noções conscientes
por terem agora uma memória da experiência com o
mundo externo e passam a ser vinculados à represen-
tação verbal. Por ocasião do impulso, ganharam certas
noções como tempo e espaço. Contudo, ainda não são
totalmente conscientes, pois reservam uma cota muito
grande de conteúdos imaginários e fantasiosos sobre a
realidade.
No entanto, na experiência de contato com
o mundo externo, dependendo da prematuridade se dá
a repressão, os impulsos são arremessados como repri-
midos para o fundo do inconsciente. Isso sem ter tido a
chance de vincularem-se a características particulares do
sistema consciente. Nesse caso já não têm tanta chance
de um dia se tornarem dignos dos processos mais nobres
do aparelho psíquico como o consciente. Pois só ao atin-
gir esse estagio superior da topografia mental poderá se
manifestar como linguagem e assim tornar-se capaz de ser
comunicado ao outro (com – ciência).
Na medida em que o conteúdo psíquico
consegue encontrar um objeto continente no mundo ex-
terno, e que esse objeto o receba e sirva a ele como
representante, esse elemento evoluirá na escala do de-

50
senvolvimento mental e passará para a divisão superior
do aparelho psíquico. A camada que está diretamente
em contato com o mundo externo. Sendo um elemento
presente no consciente, pode agora desfrutar de uma
serie de experiências das quais antes não era capacitado.
Agora ele faz parte do “ser” do sujeito. Freud chamou
essa experiência de representação.

Outros vértices analíticos

Nesse ponto do trabalho, me parece interes-


sante retomarmos alguns pensadores que contribuíram
para Psicanálise de forma importante, contando agora
com algumas ideias mais apuradas sobre a teoria. Parale-
lamente à teoria freudiana, Jung traz a ideia de um incons-
ciente pessoal sendo uma camada deste aparelho psíquico
que abarcaria tudo que se refere a lembranças perdidas
e, propositalmente, esquecidas (inconscientemente), que
estariam acopladas ao inconsciente coletivo. Neste pla-
no, um ser humano se liga ao outro como uma herança
original da psique humana. Este inconsciente coletivo jun-
guiano se dispõe como uma colmeia circular ou mandala,
um conjunto de células originalmente vazias (arquétipos),
que seriam preenchidas pelas experiências individuais.
Jung introduz o conceito de arquétipo em sua obra “A
Psicologia do Inconsciente” (1916), quando propõe que
as fantasias:
“(...) são manifestações da cama-
da mais profunda do inconsciente, onde
jazem adormecidas as imagens univer-
sais e originais. Essas imagens ou moti-
vos, denominei-os arquétipos.”

51
Melaine Klein propõe um inconsciente pri-
mitivo de um bebê, representado por objetos parciais
e descreve este momento como posição esquizo-para-
nóide, que, na medida do desenvolvimento saudável de
seu aparelho psíquico, em que predomine a satisfação
às frustrações, o bebê integra estas partes em um objeto
total, entrando no que Klein chama de posição depres-
siva.

Filosofia e Psicanálise

A filosofia sempre foi para Freud como é hoje


para a Psicanálise, um pilar, ou um referencial crucial no
desenvolvimento teórico. A filosofia contribuiu enorme-
mente para o desenvolvimento da Psicanálise. Wilfred
Bion chegou a dizer que a Psicanálise é a prática de certa
filosofia. São autores como Immanuel Kant (1724 - 1804)
denominado fundador da filosofia crítica. Outro autor da
filosofia muito importante para a Psicanálise é Arthur
Schopenhauer (1788 - 1860). São pensadores constante-
mente citados na obra freudiana e assim continuam apa-
recendo em obras da Psicanálise contemporâneas. Freud
escreve, em 1937, pelas palavras de Theodor Lipps (1851
- 1947), em um dos seus últimos textos, “A Natureza do
Psíquico”:

“Um filósofo alemão, Theodor Li-


pps, afirmou, muito explicitamente, que
o psíquico é, em si mesmo, inconsciente
e que o inconsciente é o verdadeiro psí-
quico. O conceito de inconsciente por
muito tempo esteve batendo aos por-

52
tões da Psicologia, pedindo para entrar.
A Filosofia e a Literatura quase sempre
o manipularam distraidamente, mas a
Ciência não lhe pôde achar uso. A Psica-
nálise apossou-se do conceito, levou-o a
sério e forneceu-lhe um novo conteúdo.
Por suas pesquisas, ela foi conduzida a
um conhecimento das características do
inconsciente psíquico que, até então,
não haviam sido suspeitadas, e desco-
briu algumas das leis que o governam.
Mas nada disso implica que a qualida-
de de ser consciente tenha perdido sua
importância para nós. Ela permanece a
única luz que ilumina nosso caminho e
nos conduz através das trevas da vida
mental.”

O inconsciente acaba por ser renegado da sen-


sibilidade cotidiana e assim recoberto pelas circunstâncias
da racionalidade exigida pela realidade. O papel da arte da
Psicanálise é exatamente o de revelar, através do instrumen-
to da interpretação, os meios com que o indivíduo passa a
adotar para sobreviver, e quão incongruentes eles podem
se tornar quando a situação já não se apresenta como no
passado, onde realmente se apresenta o conflito.

“O inconsciente é a esfera mais


ampla, que inclui em si a esfera menor
do consciente. Tudo o que é consciente
tem um estágio preliminar inconsciente,
ao passo que aquilo que é inconsciente
pode permanecer nesse estágio e, não
obstante, reclamar que lhe seja atribu-
ído o valor pleno de um processo psí-

53
quico.” (Freud – O INCONSCIENTE E A
CONSCIÊNCIA- REALIDADE – 1900).

Platão, como se fosse contemporâneo de


Freud, diz:

“O homem virtuoso se contenta


em sonhar com o que o homem perver-
so realmente faz.”

Esboço da segunda tópica do aparelho psíquico

Trataremos agora do segundo modelo pro-


posto por Freud, como ideias de aparelho mental. Entre-
tanto, para que se possa partir de algum lugar seguro na
tarefa de iniciar um estudo sobre a segunda tópica do apa-
relho psíquico segundo Sigmund Freud, é necessário que
se possa contar com certa compreensão interna (insight)
do modelo sugerido por ele na primeira tópica. Através da
perspectiva do primeiro modelo topográfico permitiu-se
a inclusão de instrumentos importantes no mapeamento
da mente e o conceito de inconsciente, que é a base de
qualquer que seja a reflexão psicanalítica, também é fun-
damental nessa pesquisa.

O segundo vértice

Essa perspectiva sugerida até aqui talvez seja


uma das formas de se pensar a base do nosso estudo.
A dinâmica do conteúdo psíquico no interior da mente
e sua vinculação com o mundo externo é o que conduz

54
o estudo da segunda tópica, ou seja, o escopo desse
esboço.
A partir dessa nova perspectiva, a ideia da
segunda tópica se consolida de forma mais segura em um
dos últimos entre os grandes trabalhos teóricos de Freud,
O EGO E O ID (1923). Freud propõe um modelo que trans-
cende a visão passiva da topografia presente no primeiro
modelo e abre então uma visão estrutural do psiquismo.
Porém, para que possa haver boa e segura es-
truturação do aparelho psíquico é indispensável a inclusão
da função paterna ou, como coloca o psicanalista francês
Jacques Lacan (1901 – 1981), “o nome do pai”. O nome
do pai, que não tem necessariamente relação com a po-
sição biológica da paternidade, é o que nos estrutura en-
quanto sujeito, ou seja, “aquele que deseja”. É justamente
a introdução dessa figura que permitirá a representação
de uma parte significante dos processos psíquicos.

O Id

Partindo da ideia do inconsciente, na segunda


tópica temos o conceito de id. É a base da estrutura mental,
do alemão “Es” que é usado para representar a abstração
do “isso” ou “aquilo”. Freud busca essa ideia em Georg
Groddeck (1866 – 1934), médico e analista alemão que
manteve importantes correspondências com Freud trocan-
do ideias sobre trabalhos e investigações. Georg Groddeck
foi importante colaborador para o pensamento psicanalíti-
co. Groddeck introduz o conceito de id e no mesmo ano
Freud publica O EGO E O ID (1923), trazendo para esse
conceito um olhar dos constituintes somáticos e orgânicos.

55
Outro pensador que na mesma época também
cogitara a ideia de um modelo parecido foi Friedrich Wi-
lhelm Nietzsche (1844 - 1900), importante filosofo alemão
contemporaneo de Freud, que se esforçou na tarefa de co-
gitar o “isso” contido na alma humana. Contudo, o vértice
de Nietzsche guarda proporções da filosofia literal, distante
da aplicabilidade psicoterapeutica proposta por Freud.
Id é a parte do aparelho psíquico estrutural
mais primitiva, de onde partem as “paixões desenfrea-
das”, a origem das pulsões. O id fica totalmente imerso no
inconsciente, logo é comandado pelo principio do prazer
e funciona pelo processo primário (já mencionados nesse
trabalho quanto à primeira tópica).
Por se tratar de um polo psicobiológico, o que
se pode perceber sobre o id são manifestações de pulsões
que dali provém. A posição topográfica do id o coloca
muito próximo do campo somático, assim as manifesta-
ções do orgânico amiúde se confundem com as manifes-
tações do próprio id.
O suíço C. Gustav Jung (1875 - 1961), um dos
discípulos mais importantes de Freud, chama a atenção
para uma substância do inconsciente que chamou de in-
consciente coletivo, o lugar dos arquétipos. Os arquétipos
estariam, segundo Jung, esperando que os preenchamos
com nossas experiências. De qualquer forma, na dimen-
são do id somos todos muito parecidos, nos distinguindo
uns dos outros apenas quando submetidos a alguns atribu-
tos conscientes, logo deslocados da própria posição de id.
A ideia de id fica, sem duvida, mais clara quando se pode
pensar em sua relação com a parte da estrutura mental do
qual Freud chamou de ego.

56
O ego

A ideia de Freud para o ego (eu) é justamen-


te como sendo uma parte do id, modificada pelo conta-
to com a realidade. Surge como fator de ligação para os
processos psíquicos. Parte do aparelho psíquico que abre
mão do principio do prazer em nome do princípio da
realidade. Dessa maneira cada parte do id que se torna
ego deve então abrir mão de certa cota de satisfação de
prazer, logo deve haver ai certa tolerância ao desprazer.
No ego, a percepção é o referencial, enquan-
to o id é orientado pelas pulsões. Freud fazia uma analo-
gia da relação entre ego e id com a figura de um cavalei-
ro tentando dominar seu cavalo. Dessa forma o ego nos
parece ser uma proposta de organização coerente dentro
dos processos mentais. Freud propõe que o ego tem ori-
gem em precipitados de catexias abandonadas. Ligações
objetais que contribuíram com a formação do ego por
meio de modelos.
Para que haja a ligação objetal esse vínculo
deve ter passado por outro processo psíquico num mo-
delo de ligação mais primitivo chamado identificação. Em
ACHADOS, IDÉIAS, PROBLEMAS (1941 [1938]), Freud
menciona as manifestações do ‘Ter’ e ‘ser’ nas crianças.

‘Eu sou o objeto.’ ‘Ter’ é o mais


tardio dos dois; após a perda do objeto,
ele recai para ‘ser’. Exemplo: o seio. ‘O
seio é uma parte de mim, eu sou o seio.’
Só mais tarde: ‘Eu o tenho’ — isto é, ‘eu
não sou ele’…

57
Contudo, se a forma abandonada de ligação
não pode evoluir para ligação objetal e manteve-se como
identificação com o objeto, então o ego não poderá con-
tar com essa experiência para nutrir-se e expandir em seu
processo de desenvolvimento. Nesse momento a quali-
dade do vínculo conta com a capacidade do objeto em
conter os conteúdos psíquicos nele projetados.
Nessa fase do processo, se o que se instalar for
um padrão de relação de cunho narcisista, isso conduzirá à
cristalização do modelo da identificação. O sujeito é proibi-
do de ser ele mesmo, se vendo obrigado a ser um espelho
do outro, sob esse modelo vincular. O ego se desenvolve
conforme a capacidade da evolução no vínculo através do
modelo da ligação objetal.
Na visão de Wilfred R. Bion (1897 - 1979),
grande psicanalista contemporâneo e discípulo de Me-
lanie Klein (1882 - 1960), do id brotam os elementos
beta, o nome que deu para as pulsões desordenadas
que tenderiam por procurar a realidade. Buscando no
mundo externo (num movimento de Eros) um objeto
que possa ser capaz, através de certa função alfa, de
transformar elementos beta em elementos alfa. Des-
sa forma, através de um modelo continente/conteúdo
agora esses elementos integram-se ao ego e a persona-
lidade consciente. A capacidade de autocontenção das
emoções está localizada no ego. É o centro do “apare-
lho pensador”.
Entretanto, apesar das tentativas de diferen-
ciação entre ego e id, em 1923 Freud alerta: “O ego não
se acha nitidamente separado do id; sua parte inferior
funde-se com ele.” (pag. 37) Existe no ego uma parte in-
consciente de onde são gerados os mecanismos de defesa

58
do ego. São recursos auto-defensivos que antes de tudo
privam por um bom funcionamento psíquico.
Para Melanie Klein, em sua obra A IMPOR-
TÂNCIA DA FORMAÇÃO DE SÍMBOLOS NO DESENVOL-
VIMENTO DO EGO de 1930, a capacidade de formação
de símbolos é o que permite estar ligado a aquilo que
não está disponível ao alcance dos órgãos dos sentidos.
O símbolo é o vínculo afetivo com o real; o que integrará
e desenvolverá o ego em sua estrutura e posição topográ-
fica na mente. Na formação do ego abre-se mão de certa
urgência na confirmação dos órgãos dos sentidos. A par-
tir da estruturação egóica nos tornamos mais capazes de
tolerar faltas. Isso, por conta da capacidade de contenção
ou auto-contenção. O nome popular do ego é autoestima.
A capacidade de auto reconhecimento e autovalorização
coincide com o próprio ego.
Um ego fortalecido reflete justamente na ca-
pacidade de vincular-se às coisas do mundo de forma afe-
tuosa e verdadeira. A capacidade que se pode ter em valo-
rizar o outro, sem que isso comprometa o reconhecimento
do ego, coincide com a auto-estima. Logo, a gratidão é
sinal do bom funcionamento mental.

O superego ou ideal de eu

Segundo Freud, com a introdução da imagem


paterna desenvolve-se a função de juízo censor e crítico de
tudo aquilo que aparece como conteúdo psíquico. O supe-
rego ou ideal de eu é o terceiro personagem constituinte
da segunda tópica. Sempre influenciado pelos pensamen-
tos do filosofo alemão Immanuel Kant (1724 - 1804), Freud

59
desenvolve a ideia do supereu baseando-se na ideia do im-
perativo categórico introduzida por esse importante pen-
sador, em sua obra CRITICA DA RAZÃO PURA, de 1781.
Na "primeira crítica" de Kant o imperativo
categórico coresponde à noção moral do ser humano. O
representante de certo dever que coincide com ser e se
comportar da mesma forma como se deseja que todo ser
humano o faça.
Pensar em um modelo superegoico é pro-
por certa segurança confortante das certezas, mas com
o empobrecimento gerado pela escassez gritante de pos-
sibilidades. A saber, sobre a importancia do processo, a
presença das possibilidades é a unica maneira de se de-
senvolver a fé.
O superego pega emprestado da racionalida-
de fatos isolados e condena o eu como se essas partes da
realidade fossem o todo. Por conta dessa parte que foi re-
tirada da realidade, a afirmação de um sentimento incons-
ciente de culpa fica psicologicamente incoerente, assim
como coloca Freud, em 1924, quando propõe a idéia de
necessidade de punição, já que busca na realidade exter-
na argumentos racionais como álibis condenatórios nas
imperfeições do ego. Desvalorizando o ego ele assume o
comando.
Freud atribui ao superego o título de herdeiro
do complexo de Édipo. Sob essa perspectiva, a força que
reprimiu os sentimentos incestuosos nos processos edípi-
cos hoje atuam na estrutura do eu como superego. Dessa
forma, Freud oferece um modelo em 1923, onde aquilo
que antes pertencia à escala mais baixa nos processos
psiquicos é transformado, mediante a criação do ideal de
ego, na mais alta virtude.

60
Existem dificuldades especiais no caminho
para a compreenção interna dos processos geradores as-
sim como a formação do conceito de superego enquanto
constituinte da estrutura mental. Isso porque sua localiza-
ção trancende o modelo topografico. Freud escreve em O
EGO E O ID (1923) que “seria vão, contudo, tentar loca-
lizar o ideal de ego, mesmo no sentido que localizamos
o ego, ou encaixá-lo em qualquer analogia com auxilio
das quais tentamos representar a relação entre o ego e o
id.” (pag. 49). O superego surge como um representante
do id, mas agora se utilizando de fragmentos da realidade
externa em sua tarefa de desqualificar o ego que por sua
vez, é um representante do mundo externo. Ele é o ideal
de ego, ou seja, o que o ego deveria ser e cobrará isso do
ego em cada percepção de suas falhas.
Algumas obras anteriores ao trabalho publica-
do em O EGO E O ID de 1923 são de grande importância
na pesquisa sobre a segunda tópica, pois já revelavam um
modelo de pensamento que seria gerador desse vértice da
estrutura mental. No seu texto ALÉM DO PRINCÍPIO DO
PRAZER, de 1920 e também em 1921, no célebre capitulo
de PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO EGO, que
trata do conceito de identificação, o pai da Psicanálise
já havia definido muito claramente o modelo exposto em
1923, contudo, em SOBRE O NARCISISMO: UMA INTRO-
DUÇÃO, de 1914, Freud mencionara a ideia de um ide-
al de eu como um agente auto-observador, que amiúde
é projetado em figuras de autoridade como o professor,
o chefe, assim como na figura da pessoa amada. Essa
ideia evoluiu em 1917 quando Freud publicou LUTO E ME-
LANCOLIA, trazendo o a concepção melancólica de um
influente crítico que recai sobre o ego, na situação da per-
da do objeto. Já se mostra aí um esboço do pensamento

61
estrutural onde na perda do objeto do qual se mantinha
uma relação de identificação o superego obriga que o ego
“torne se” esse objeto, no intuito de satisfizer o id.
Daí por diante a segunda tópica tornou-se ins-
trumento fundamental na reflexão psicanalítica. Em 1924
no trabalho O PROBLEMA ECONOMICO DO MASOQUIS-
MO, Freud já utiliza com habilidade desse modelo e revela
aí dados importantes sobre a atividade do superego ou
ideal de ego no funcionamento mental, sua relação com
o lugar do id e assim o comprometimento disso com o
desenvolvimento do ego.
Melanie Klein publica em 1957 INVEJA E
GRATIDÃO, e nesse trabalho apresenta certo ponto de
vista que distingue do estudo de Freud quanto à estrutura-
ção do aparelho psíquico. Klein propõe um modelo mais
precoce do que o proposto por Freud. Na visão freudiana
focalizava-se a importância dos processos edípicos (logo
a formação do ideal de eu) na fase fálica do desenvolvi-
mento emocional (por volta dos três anos de idade). Nesse
período Freud chama a atenção para constituição do ideal
do ego, ou superego (identificações originalmente decor-
ridas dos contornos de autoridade dos pais), que passa
a existir como substituto dos desejos edípicos. “O ideal
do ego é, portanto, o herdeiro do complexo de Édipo
e assim constitui também a expressão dos mais podero-
sos impulsos e das mais importantes vicissitudes libidinais
do id.” (Pag. 48), Freud escreve em A DISSOLUÇÃO DO
COMPLEXO DE ÉDIPO (1924).
Dispõe essa teoria que indica um avanço no
pensamento psicanalítico de onde Klein parte e expande,
propondo os processos do complexo de Édipo ocorrendo
numa época mais primitiva da vida do bebê.

62
Existe um vínculo direto entre a
inveja que se experimenta para com o
seio da mãe e o desenvolvimento do
ciúme. O ciúme se baseia na suspeita
do pai e na rivalidade com esse, que
é acusado de ter se apossado do seio
materno e da mãe. Esta rivalidade assi-
nala os primeiros estágios do complexo
edipiano direto e invertido, que normal-
mente surge concomitantemente à posi-
ção depressiva no segundo trimestre do
primeiro ano de idade. (Pag. 63)

Bion destaca a importância da atuação do su-


perego na função do sonhar. Além de dividir o superego
em duas partes, superego social e superego individual,
Bion propõe em COGITAÇÕES, publicado em 1992, que
a rigidez dessa parte do aparelho psíquico pode impedir a
capacidade do processo onírico, ou seja, o sonhar, assim
comprometendo severamente o funcionamento mental. Já
que segundo a Psicanálise, a formação e expansão da capa-
cidade do ego dependem exclusivamente da capacidade do
pensamento onírico que conduz a formação de símbolos.
Com suas regras, o superego se instala no in-
terior do aparelho psíquico como uma instituição mental,
e a partir daí passa a ditar seus princípios. Isso se torna
complicado já que, para uma instituição que se mantém
através de suas regras fechadas e incontestáveis, o exer-
cício do sonhar é extremamente prejudicial. O superego
então proporciona a criação de certa casca morta. Ideias
saturadas e sem vida.
Em CONVERSANDO COM BION, de 1992, o
autor expõe: “De qualquer forma a gente cria estas cascas
– e segue criando. Mas a casca pode se tornar tão espes-

63
sa, tão forte, tão poderosa, que a coisa dentro não pode
se desenvolver”. Nessa mesma perspectiva Freud, já em
1923, postulava a dificuldade do tratamento psicológico
para aquele que se encontra encapsulado por um modelo
de superego rígido e cruel.
Aquele que não é capaz de amar pode usar a
culpa para não ser abandonado.

Fases do Desenvolvimento Libidinal

Como tivemos chance de conhecer na primei-


ra parte desse livro, foi a partir da introdução freudiana
do conceito de inconsciente que foi possível construir uma
ideia de aparelho mental, e isso levou ao vértice estrutural
desse mesmo aparelho. Vimos que Freud denominou “id”
à instância que se encontra nas camadas mais profundas do
aparelho psíquico, à parte do psiquismo totalmente imersa
no inconsciente, topograficamente falando. É dali que bro-
tam pulsões internas que se precipitam em direção ao mun-
do externo. O id é, então, a parte da personalidade de onde
partem os desejos inexplicáveis e paixões arrebatadoras.

O auto-erotismo e o narcisismo primário

Se estivermos de acordo, até aqui então ten-


deremos a pensar que o bebê viverá a experiência que
conduzirá ao reconhecimento do “outro” e posteriormen-
te a importância dele. Contudo, o bebê só admitirá que
existe alguém além dele mesmo no mundo se sentir muito
seguro com esse “outro alguém”, além dele. Passa então

64
a desenvolver o que chamaríamos de amor narcísico. Na
realidade só admitirá o outro se o outro for para ele um
espelho. No narcisismo primário, ele se vê no outro (mãe).
Nesse modelo, ele é (deve ser) o desejo da mãe. “Ela vive
para e por mim”.
Em 1914 no texto SOBRE O NARCISISMO:
UMA INTRODUÇÃO, Freud distinguiu duas formas da
libido: libido do ego ou libido narcísica; e a libido do
objeto, que é dirigida ao um mundo externo onde se
encontra o objeto, fixando-se, abandonando-o ou pas-
sando de um objeto para outro (modelo anaclítico de
ligação). A segunda permite maior observação e estudo,
enquanto a primeira se faz oculta, por se tratar de um
processo interno.

Objeto

Para a teoria psicanalítica o termo ‘objeto’ é


qualquer pessoa ou coisa do mundo externo, que tem im-
portância psíquica (investimento libidinal) para o sujeito,
podendo ser animadas ou inanimadas. A atitude do sujei-
to para com o objeto é designada ‘relações de objeto’. A
libido ou energia psíquica busca no mundo externo algo
em que se ligar e esse algo é o que chamaremos de objeto.
Quando encontra o objeto, aquilo que era simplesmente
libido livre se torna então catexia. Nos primórdios da vida,
a criança não consegue distinguir os objetos de si (identi-
ficação), adquirindo essa capacidade nos primeiros meses
de desenvolvimento. Porém, a erotização, já presente, se
faz de uma forma designada auto-erotismo – como já ci-
tada anteriormente.

65
Na busca pelo objeto, se dá o desenvolvimen-
to da libido. A personalidade se organiza em torno de
zonas erógenas, com vivências e sensações muito especí-
ficas. Uma área do corpo físico que fica especificamente
disposta para o contato com o outro. As zonas erógenas
concentram um elevado grau de excitação. Cada fase des-
te desenvolvimento é acompanhada de uma orientação
libidinal, que se desloca pelas zonas do corpo, até que
se desenvolva e concentrem-se predominantemente nos
órgãos genitais, para assim se encontrar sob a influência
da função reprodutora.
A predominância das zonas erógenas se mo-
difica ao longo do desenvolvimento caracterizando fases.
São tentativas de ligação com os pais, inicialmente com a
mãe (objeto), de quem se desligou fisicamente há pouco
tempo. Desde o nascimento até o segundo terço do pri-
meiro ano de vida, o interesse (libido) da criança se cen-
traliza quase que exclusivamente na mãe, é ela o objeto
inicial na vida emocional do bebê, mas as consequências
da ausência do vínculo paterno são tão graves quanto. A
presença do pai, a princípio, se faz importante enquan-
to ideia no interior da mãe, entretanto essa experiência
simbólica carece do encontro com o “outro real”. Não se
pode criar uma imagem interna sem um representante no
mundo externo.
É de extrema importância que, ao se arris-
car nesse abismo chamado bebê, a mãe conte com um
alguém (marido/pai) que mantenha a mão seguramente
dada. De outra forma existirá sempre um grande risco de
se perder nesse abismo. A mãe e o bebê se confundem,
e essa importante experiência de discriminação entre um
e outro só pode ocorrer com a entrada de mais alguém
(o pai) na relação. É daí que ela buscará a resposta para

66
o viver, ou a confirmação da existência: “Sou amada”, já
que o bebê não pode fazê-lo. Assim, a presença da figura
paterna é justamente aquilo que trará a qualidade de vín-
culo com o objeto (a mãe).
Um modelo muito interessante é o da for-
mação da natureza, onde a fêmea prenha busca um lo-
cal seguro para se aninhar e receber seu filhote. Nes-
se momento contará com o resguardo do macho que a
protegerá das ameaças externas e proverá recursos para
que ela se ocupe em assegurar as melhores condições
possíveis para o desenvolvimento deste que nasce. Uma
fêmea sem esse resguardo nunca poderá cuidar do que
precisa ser cuidado.
O nascimento de um bebê mexe profunda-
mente na estrutura, no funcionamento emocional do su-
jeito, assim como do casal e da família. O bebê traz angús-
tias das quais, a mãe, mesmo abalada pela situação, deve
velá-lo. O pai suficientemente bom, por sua vez, sente e
participa da mesma dor, que inunda esse complexo pro-
cesso, tentando elaborar sentimentos invejosos gerados
pela atenção da companheira, que se desloca dele para
a criança.
Essas relações são carregadas de erotismo e
afeto (amor e ódio). Freud 1940 escreve:

“Inicialmente, toda a atividade


psíquica se concentra em fornecer sa-
tisfação às necessidades dessa zona.
Primariamente, é natural, essa satisfa-
ção está a serviço da autopreservação,
mediante a nutrição; mas a fisiologia
não deve ser confundida com a psico-
logia. A obstinada persistência do bebê

67
em sugar dá prova, em estágio preco-
ce, de uma necessidade de satisfação
que, embora se origine da ingestão da
nutrição e seja por ela instigada, esfor-
ça-se todavia por obter prazer inde-
pendentemente da nutrição e, por essa
razão, pode e deve ser denominada de
sexual.”

A ideia da sexualidade sempre foi alvo de ata-


ques de pensadores que criticaram a Psicanálise, mas Freud
lembra, em 1905, que essas já haviam sido propostas na fi-
losofia por um dos pensadores de grande influência no pen-
samento freudiano:

“Já faz um bom tempo que o filó-


sofo Arthur Schopenhauer mostrou aos
homens em que medida seus feitos e
interesses são determinados por aspira-
ções sexuais (...) e, parece incrível que
todo um mundo de leitores tenha con-
seguido banir de sua mente, de maneira
tão completa, uma advertência tão im-
pressionante!”

No estudo das fases do desenvolvimento se-


xual veremos que as duas primeiras fases, as zonas eróge-
nas ainda não se concentram nos genitais e assim serão
denominadas fases “pré-genitais”. Importante ressaltar
que cada passo dado em direção a maturidade emocional
acompanhará uma ação inversa defensiva.

68
As fases

Nas etapas do desenvolvimento libidinal no


bebê, as primeiras fases ou fases pré-genitais são de ex-
trema importância, já que estarão se realizando as primei-
ras tentativas de interação com o mundo. Os recursos ou
defesas para essa interação são extremamente frágeis e os
cuidados maternos são, em grande parte, os recursos com
que essa vida que brota pode contar.
É importante ressaltar o fato de muitas pes-
quisas psicanalíticas se preocuparem com a vida psíquica
fetal e o comprometimento ulterior que possa gerar falhas
nesse período.

“Um bebê é algo que não existe,


querendo dizer, naturalmente, que sem-
pre que encontrarmos um bebê, encon-
traremos a maternagem, e que, sem a
maternagem, não existiria bebê algum.”
D. W. Winnicott (1940, pag. 42)

Winnicott, além de psicanalista também pe-


diatra, contribuiu enormemente com o desenvolvimento
da Psicanálise, e introduziu uma idéia muito importante
quando diz que “o bebê não existe”, ou seja, ele só existe
em relação à mãe, que em primeiro momento deve coinci-
dir com o ambiente que o recebe e acolhe. O bebê deve ter
tido um precedente relativo a uma construção simbólica
feita pelos pais. Nas palavras de Wilfred R. Bion (1897 -
1979) outro grande psicanalista contemporâneo e discípu-
lo de Melanie Klein: somos “pensamento em busca de um

69
pensador”, ou seja, o pensamento já existia e o pensador
nasce para sê-lo. A relação entre continente e conteúdo:
enquanto as paredes do continente são formadas por in-
variâncias, o conteúdo pode ser pura transformação.
Aqui cabe uma analogia interessante com o
mito de Narciso, que é fruto de um estupro. Diz o conto
do mito que, a ninfa Liríope, mãe de Narciso, é violentada
pelo rio Cefiso e assim concebendo a bela criança. Quan-
do Liríope consulta Tirésias, o oráculo de Delfos, tem a
notícia de que Narciso seria muito feliz e viveria muitos
anos, porém com a condição de nunca olhar pra si mes-
mo, ou se conhecer. Um dia ele olha para sua imagem na
margem do rio e se apaixona por si mesmo. Ficando ali,
definha ate a morte. Onde seu corpo ficou nasceu uma
flor bela, porém estéril. A origem da palavra “narcótico”
parte do nome de Narciso: “Narkissos” ou “narkes”, en-
torpecido, topor.
Logo, grande parte do que os pais imaginam
e desejam a respeito do filho, virá de alguma forma recla-
mar lugar na realidade psíquica deste que chega.
Não sendo o objetivo deste trabalho nos ater
na vida psíquica fetal, passemos então, em Freud, a pensar
sobre um modelo de psiquismo que pôde ter a chance de
experimentar um desenvolvimento psíquico fetal satisfatório.

Fase oral

Na primeira etapa da vida, ou seja, do nasci-


mento até o segundo ano de vida, o bebê não distingue
a necessidade de nutrição do prazer, que se encontram
unidos no ato de mamar. Segundo Freud, uma fusão do

70
instinto de auto-preservação com o instinto sexual. Grada-
tivamente o bebê vai percebendo e vê-se obrigado a criar
recursos para enfrentar a realidade do desprendimento da
mãe. Nessa fase, denominada por Freud de organização
sexual pré-genital canibal, a boca é a primeira via de con-
tato com o mundo externo, que neste momento se reduz
ao seio. É na região bucal que está localizada a área eró-
gena, nessa fase. A cada contato com o real compreende
uma tentativa de comê-lo, incorporá-lo pela boca. Freud
descreve essa fase em 1905 da seguinte forma:

“Nela, a atividade sexual ainda não


se separou da nutrição, nem tampouco
se diferenciaram correntes opostas em
seu interior. O objeto de uma atividade é
também o da outra, e o alvo sexual con-
siste na incorporação do objeto — mo-
delo do que mais tarde irá desempenhar,
sob a forma da identificação, um papel
psíquico tão importante.”

É pela boca que fará sua primeira e mais im-


portante descoberta afetiva.
Neste período da vida se dá o alicerce para
toda a personalidade, e o comprometimento no cuidado
com o bebê nesta época pode acarretar em fixação na
fase e gerar patologias de alto dano no psiquismo, que
podem persistir pela vida toda. Casos patológicos descri-
tos pela psiquiatria como “transtornos alimentares”, que
incluem bulimia e anorexia, são amiúde acompanhados
de histórico onde a relação afetiva com o alimento (o que
nutre) é repleta de conflitos e apresentaram falhas. Como
já tivemos chance de aprender anteriormente nesse tra-
balho, o funcionamento mental deste período é feito pela

71
orientação do prazer/desprazer, ou seja, o “principio do
prazer”. Esse modo de funcionamento mental é regido pelo
pensamento mágico, é repleto de fantasias. Por se tratar de
um período regido pelo processo primário, a condensa-
ção e o deslocamento são mecanismos básicos desta fase.
Os primeiros objetos são chamados objetos parciais, sendo
que a criança percebe cada aspecto de um objeto como
objetos diferentes e separados. Só depois de algum tempo
consegue percebê-los como um único objeto, a integração
(base da teoria kleiniana – mais bem estudada à frente).

Identificação

Outra característica dessas primeiras rela-


ções de objeto refere-se ao fenômeno da identificação
com o objeto, aspecto muito importante nos complexos
processos de formação e desenvolvimento do ego. Para
que haja a ligação objetal esse vínculo deve ter passado
por outro modelo de ligação mais primitivo chamado
identificação.
Neste ponto vejo como útil a possibilidade de
resgatar a ideia escrita em ACHADOS, IDEIAS, PROBLE-
MAS (1941 [1938]), quando Freud menciona as manifesta-
ções do ‘ter’ e ‘ser’ nas crianças, que já foi mencionada
neste trabalho.

‘Eu sou o objeto.’ ‘Ter’ é o mais


tardio dos dois; após a perda do objeto,
ele recai para ‘ser’. Exemplo: o seio. ‘O
seio é uma parte de mim, eu sou o seio.’
Só mais tarde: ‘Eu o tenho’ — isto é, ‘eu
não sou ele’…

72
Essa tendência à identificação com objetos
com grande investimento de libido permanece inconscien-
temente por toda vida, apesar de não ocupar papel cons-
ciente nas relações de objeto em fases posteriores da vida.
Se a identificação persistir como dominante nas relações
de objeto, na vida adulta, é uma evidência de um desen-
volvimento deficitário do ego, sugerindo talvez um quadro
patológico (podendo caracterizar-se em psicose). Nesses
casos, a personalidade do indivíduo varia, de acordo com
suas relações de objeto. “O outro me indica o desejo, o
que sinto e o que sou”. A partir desta ideia, original de
Freud, Melanie Klein (1882 - 1960) desenvolverá o con-
ceito de identificação projetiva.
Quando surgem as primeiras experiências de
desprazer (fome, frio, cólica, pânico) e surge alguém que
gera prazer ou alívio, cria-se a catexia do objeto, o que
Freud chamou de representação de coisa – “há alguém
que cuida de mim e é confiável”. O oposto, quando não
há quem cuide, ou o bebê é submetido a um longo perío-
do de espera, e não há chance de simbolizar a experiência
como boa, gera, posteriormente, personalidades menos
estáveis, onde o nível de tolerância à frustração é mínimo.
Isso por que a falta da maternagem foi registrada como
experiência de desamparo. O medo do abandono é vivido
pelo bebê como sensação de destruição iminente, já que
o bebê só sobrevive através da mãe. Falhas nesse perío-
do podem servir como protótipos de relações que serão
vividas sempre com uma carga enorme de desconfiança.
Como pudemos ver anteriormente, a dependência da mãe
é correspondida por uma forma especial de amor; o amor
narcísico, já que o bebê se vê na mãe.
Esta fase é delicada, já que é o inicio do desen-
volvimento do ego. Sua formação depende fundamental-

73
mente da capacidade de formação de símbolos. O processo
de formação simbólica é um modelo de estruturação mental
que percorre todas as fases e não é exclusivo da fase oral.
Quando Freud desenvolveu a teoria do apare-
lho funcional, denominou o ego como uma modificação do
id pelo teste da realidade, e assim a formação da persona-
lidade do sujeito. O pensamento foi desenvolvido a serviço
do teste de realidade e tem como precedente a fantasia.
Freud escreve que o sujeito faz uso da ação quando não
houve a possibilidade do pensamento. Poderíamos criar um
quadro esquemático onde há o impulso, que, num contato
com o real, cria certa fantasia, que por sua vez pode ser
transformada em ação ou, submetida ao teste de realidade,
transformada em pensamento.
Freud escreve em FORMULAÇÕES SOBRE OS
DOIS PRINCÍPIOS DO FUNCIONAMENTO MENTAL (1911-
1913)

“A coibição da descarga motora


(da ação), que então se tornou necessá-
ria, foi proporcionada através do proces-
so do pensar, que se desenvolveu a partir
da apresentação de idéias. O pensar foi
dotado de características que tornavam
possível ao aparelho mental tolerar uma
tensão aumentada de estímulo, enquan-
to o processo de descarga era adiado.”

Assim, com o pensamento o princípio do pra-


zer/desprazer é substituído pelo princípio de realidade,
quando submetido ao teste de realidade. Contudo, se a for-
ma abandonada de ligação não pode evoluir para ligação
objetal e manteve-se como identificação com o objeto, en-
tão o ego não poderá contar com essa experiência.

74
Contribuições de Melanie Klein
A Teoria das Posições

Contribuições a partir das ideias propostas


por Melanie Klein quanto ao que chamou de teoria das
posições no processo de divisão e integração da mente
e consequentemente do objeto primitivo, em seio bom e
seio mal, até alcançar o objeto total. Essa contribuição
kleiniana teve início fundamentalmente a partir da pu-
blicação das obras “Contribuições à psicogênese dos es-
tados maníaco-depressivos” de 1940, e complementada
mais tarde pelo “Luto e sua relação com estados maníaco-
depressivos”, de 1943. A pensadora parte das idéias de
Sigmund Freud dos processos primário e secundário da
mente. Klein, além disso, é fortemente influenciada pelo
modelo introduzido por Freud, no texto de 1917, “Luto
e Melancolia”. Melanie Klein expande a idéia freudiana
permitindo um novo olhar para as nuances funcionais da
mente. Quando Klein propõe essa ideia de teoria, ela indi-
ca certa experiência vivida pelo bebê que representa certo
protótipo de funcionamento mental, perpetuado pela vida
toda num ciclo mental.
Desde o início da vida mental do bebê existe
certa tendência à integração, e, como já vimos nesse traba-
lho, Freud chamou isso de Eros. Contudo, existe também
a influência de Tânatos que promove (defensivamente) a
desintegração. Além desse duelo dos mitos no interior dos
processos psíquicos, implica-se também o impacto da re-
alidade externa que nessa fase da vida coincide com a
própria mãe. O ego primitivo sendo frágil, lábil e variante

75
em sua integração, depende da mãe para proporcionar
noções de contenção, como as de amparo, constância e
equilíbrio. Em sua formação inicial, varia quanto ao grau
de integração e deflexão. Esse processo de disputa entre
Eros (pulsão de vida) e Tânatos (pulsão de morte) é a par-
tir de então projetado no mundo externo. Parte da pulsão
de morte é projetada e outra cota permanece direcionada
para o interior do aparelho psíquico. A projeção da pul-
são de morte se faz numa tentativa de evitar a ansiedade
gerada ao conter essa espécie de pulsão. Já a projeção da
pulsão de vida vem como tentativa de criar um objeto que
irá satisfazer suas necessidades. Assim, o seio se divide
em seio ideal e seio persecutório.
Isso acontece com as fantasias do seio bom ou
idealizado, fundindo-se com a experiência gratificante do
amor da mãe e a satisfação da alimentação; já a fantasia
de seio mal e perseguidor funde-se com a privação dessas
satisfações. Na imaturidade emocional a impossibilidade
de perceber a mãe como ‘outro’, ou seja, como alguém to-
tal, faz com que o bebê, em seus estágios iniciais da vida,
entenda a mãe como objetos parciais. Isso quer dizer que
cada aspecto dela é separado do todo. Assim, também as-
pectos desprazerosos são isolados dos aspectos prazero-
sos. Essa maneira de funcionar é descrita por Klein como
posição esquizoparanoide (esquizo = dividido, paranoide
= perseguidor). O objetivo desse funcionamento mental é
separar o bom do ruim, assim como manter um afasta-
do do outro. Contudo, cada movimento projeção dessa
espécie carrega também uma consequência interna. Ao
projetar o ruim como se estivesse no outro, implica em
que o outro seja o inimigo perseguidor, entretanto, manter
o ruim dentro de si, acarreta a sensação de abandono e
definhamento. A partir das idéias kleinianas, o ponto de

76
fixação das psicoses se encontra nessa posição, vivida na
tenra infância. Assim, percebemos que o ego se desintegra
para se defender e dessa mesma forma podemos sugerir a
manifestação de certo instinto de auto-preservação.
Na mesma medida em que as projeções pe-
culiares dessa posição puderem ser recebidas pelo objeto
e subsequentemente de volta introjetadas de maneira tran-
quila, o bebê vai se tornando mais capaz de reconhecer o
objeto externo (mãe). Wilfred Bion (1897 – 1979) chamou
essa função materna, de receber projeções do bebê e de-
volver a ele de uma forma emocionalmente inteligível, de
rêveri. A partir desse processo, conforme a integração do
ego, num ego total, também os objetos parciais podem ser
integrados, tomando a forma de objeto total. A essa posi-
ção Klein deu o nome de depressiva. É quando se é capaz
de suportar a culpa de ter odiado aquele que ama tanto.
A capacidade de reconhecer que o seio mal, odiado por
privar da satisfação, é o mesmo seio bom, nutridor e que
traz conforto. No entanto, reconhecer objeto total inclui
que o bebê seja capaz de admitir a existência de alguém
além dele e, também, que ele depende desse alguém para
viver.
Poder experimentar da posição depressiva é
ter a capacidade de recordar da satisfação durante a pri-
vação, contudo também ser consciente da privação du-
rante a satisfação. Nessa posição, a principal ansiedade
parte da fantasia de que os impulsos em forma de idéias
destrutivas e hostis tenham danificado o objeto amado.
Ao descobrir que o objeto não é uma criação sua, o bebê
então quer possuir esse objeto. É como se, por não ‘ser’
o objeto, o bebê quer, então, ‘ter’ o objeto. O impulso é
de manter o objeto dentro de si e, em última instância,
protegê-lo de sua própria hostilidade.

77
Na realidade estamos refletindo sobre a forma
como o bebê se manifesta emocionalmente na ausência da
mãe e como o adulto, em algum grau, tende a se manifes-
tar na iminência das perdas da vida adulta. Esse modelo
de transição das posições na vida adulta ainda acontece,
ou seja, quando Melanie Klein propõe esse modelo de
funcionamento mental, ela fala de algo que está presente,
em alguma medida, na vida emocional. Isso independente
da época da vida ou do grau de maturidade emocional. Na
realidade nossa vida é feita desse constante exercício em
eleger o que é bom ou ruim pra nós, assim como na ne-
cessidade da integração desses dois aspectos na tentativa
de certo equilíbrio mental.

O conceito de símbolo

Na visão de Melanie Klein, a partir de sua


obra, A IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO DE SÍMBOLOS
NO DESENVOLVIMENTO DO EGO (1930) a capacidade
de formação de símbolo é aquilo que permite estar liga-
do ao ausente. O símbolo é o vínculo afetivo com o real;
o que integrará e desenvolverá o ego em sua estrutura
e posição topográfica na mente. Como quando vemos o
símbolo de um time de futebol, por exemplo. Não vemos
o time, mas, somos remetidos ao que pudemos obter
de impressões desse time. O símbolo é o que sustenta
o vínculo na impossibilidade da confirmação sensorial. É
aquilo que fica em nós, enquanto não podemos confir-
mar no real externo através dos órgãos dos sentidos. O
que está na mente antes de chegar, ou depois que já
foi no real.

78
Símbolo, no grego clássico, symbállen (syn
= junto e bállein = lançar), que significa juntar, ou lançar
pra junto. Isso vem de encontro com a cópula propria-
mente dita. O sim-bólico está em contra ponto com o
dia-bólico do grego diabállein (dia = longe). Onde um
tem a função de unir o outro separa ou lança longe. O
símbolo é a única via segura de confirmação do que é
real, pois é uma ligação afetiva com a realidade. Uma
experiência emocional (interna) que encontrou no real
(no outro) um representante que se transforma em sím-
bolo. Tratamos aqui de certa experiência amorosa com
a verdade. O amor à verdade. A verdade que não se co-
nhece, mas, mesmo assim se persegue. Sem a promessa
do prazer que nos traz as certezas. A propósito, o dito
popular é coerente, “a verdade dói”. Assim, Immanuel
Kant (1724 - 1804), filósofo alemão nos orienta no uso
dela: “verdade sem amor é crueldade”.
O exercício do simbolizar é algo dinâmico, que
se transforma constantemente e dessa forma é invariavel-
mente mutável enquanto símbolo. O ‘eu’ é construído e
constituído através de símbolos e por eles faz sua manu-
tenção. Assim, somos feitos de símbolos. Importante seria
ressaltar o risco presente na incapacidade de simbolização
quando relacionada à concepção de uma vida é especial-
mente delicada.

Aspectos sádicos orais

Com o surgimento dos primeiros dentes do


bebê, as necessidades de satisfação orais mesclam-se com
componentes agressivos (sadismo oral). A agressão oral

79
pode manifestar-se na ação de morder, mastigar, cuspir
ou chorar está vinculada aos desejos e fantasias primiti-
vas. Esses fatores implicam em fantasias de hostilidade,
destruição do seio e assim como o espoliar do objeto.
Segundo Klein isso faz com que o objeto seja dividido
em seio bom e seio mal. O mundo é percebido pela
boca. Quando existe uma falha na capacidade da mãe
em receber (conter) estes impulsos sádicos e de certa
forma desorganizados (originários do interior do bebê) e
transformá-los em algo compreensível para ele, o bebê
recebe de volta todo sua insatisfação e desespero, com
o agravante da ausência de esperança. O que em um
adulto pode ser uma simples indisposição talvez causada
pela fome, em um bebê pode surgir como a iminência da
destruição.
Uma ação de maternagem suficientemente
boa proporciona a essa nova vida que surge, um ambiente
seguro para desenvolver-se a capacidade de pensamento
que permite ao bebê que simbolize cada impulso origi-
nado de dentro (vontade ou necessidade) com uma força
externa acolhedora, protetora e nutridora (a mãe, primeira
pessoa que ele conhecerá nesse mundo). É como se a
mãe dissesse: “pode sonhar, que do que está a sua volta
eu cuido”.
O êxito na resolução da fase oral proporciona
uma base na estrutura do caráter para a capacidade de
dar e receber sem excessiva dependência ou inveja; uma
capacidade de confiar no outro, com um sentimento de
segurança, confiança em si mesmo.

80
Objetos Transicionais:
Primeira possessão não-eu

Muito importante foram as contribuições do


pediatra e psicanalista D. W. Winnicott. Entre outros ele
introduziu o conceito de “fenômeno transicional” referin-
do-se a primeira tentativa de reconhecimento e possessão
de algo que existe fora do eu. A experiência da transi-
cionalidade começa a surgir por volta dos quatro ou seis
meses de vida, se estendendo até o final do primeiro ano
e inicio do segundo. No entanto, como toda característica
emocional, também o fenômeno transicional, não pode
estar ligado de forma inflexível à idade cronológica do
bebê. Isso por que cada sujeito guarda particularidades
em suas experiências de desenvolvimento.
O objeto transicional tenta ser um substituto
para o seio, o que em um primeiro momento pode ser o
dedo polegar, acompanhado de um pedaço de cobertor
ou lençol. Isso tudo faz parte dos fenômenos transicio-
nais. Algo que amenize a falta do seio (da mãe), sobretudo
na hora de dormir, ou quando a criança tem que ficar sozi-
nha. Winnicott descreve os fenômenos transicionais como
uma fase muito importante a caminho da relação com o
símbolo. Este objeto especial é dotado de ambivalência,
por simbolizar o objeto parcial. Sendo assim, ele não é
o seio real, que ao mesmo tempo representa simbolica-
mente.
Um ensaio que precede o teste de realidade.
Winnicott atribui à ausência do objeto transicional uma
perturbação no desenvolvimento emocional ou mesmo a

81
intervenção da mãe. Quando fala da mãe-ambiente pro-
põem um lugar seguro para cultivar a ilusão e uma forma
tranquila de se desiludir. O bebê imagina um seio e a mãe
coloca o seio real exatamente onde (e quando) o bebê está
pronto para criá-lo. Registra-se a ideia que existe um cor-
respondente externo (na realidade) para sua capacidade
de criar (fantasias – interno).

Fase anal

Logo depois do desmame a tarefa agora é


conter os impulsos anais. È a segunda fase, começa no
inicio do segundo ano de vida. A zona erógena que se
localizava na região oral, passa para a organização anal.
Nesse estagio da vida, a criança experimenta os primeiros
ensaios do domínio do corpo (físico) pela vontade (psíqui-
co). Isso se da fisiologicamente, pelo aumento na autono-
mia do Sistema Nervoso Central, que se encontra mais
maduro e adquire a capacidade de controle neuromuscular
dos esfíncteres. Isso corresponde com o controle voluntá-
rio sobre a retenção ou a expulsão das fezes. Do ponto de
vista emocional, na relação com os pais, surge a primeira
grande exigência: “agora você não pode mais fazer xixi
nem cocô nas calças”. A criança descobre que pode agra-
dar ou desagradar. E pode controlar os pais através do xixi
e cocô. Sua primeira produção. A satisfação libidinal está
em reter ou expelir.
O período da fase anal é essencialmente mo-
mento de esforços por independência e separação da de-
pendência e do controle dos pais. A aprovação dos pais
quanto a aquilo que se produz. O objetivo é o do controle

82
de esfíncter, sem controle excessivo (retenção fecal) ou
perda de controle (sujando-se), está unido às tentativas
de autonomia e independência da criança sem medo ou
vergonha da perda de controle.
Revela-se um valor simbólico das produções
anais. A criança descobre objetos que saem de seu inte-
rior e que de certa forma são parte dela. Assim como em
todas as fases, ocorrem sentimentos básicos nessa fase
que perdurarão nas etapas posteriores da vida, aqui, em
relação à adequação ou inadequação. A aprovação ou não
do mundo (pais) quanto a estas produções é o que definirá
o sentimento de ajustamento no mundo.
Nesta fase é que se instalam, através da fi-
xação, patologias como é o caso das neuroses obsessi-
vo-compulsivas. São neuroses que apresentam sintomas
ligados à compulsão da limpeza e organização, assim
como a avareza - já que reter ou soltar é algo que define
a aceitação, aprovação e amor dos pais. A criança ama
e ao mesmo tempo teme as substâncias que saem de seu
corpo. Uma vez que elas estão condenadas a desapare-
cerem devido às proibições dos adultos. A criança busca
na água, terra e areia os substitutos permitidos das fezes e
urina, simbologia utilizada por Klein no desenvolvimento
da ludo-terapia, técnica de analisar o brincar da criança.
Freud batizou esta fase de sádico-anal, já que
se estabelece desde a fase precursora (no surgimento dos
dentes) o desvio da pulsão de morte para o exterior a pul-
são de destruição, e ligada à função sexual se apresenta
como sadismo. O ato de evacuar organicamente coincide
com a experiência emocional de evacuar sentimentos des-
confortáveis ou desprazerosos. A projeção do ódio com-
bina com a projeção das fezes. O prazer está ligado ao

83
controle e o domínio de si mesmo e simultaneamente do
outro. Estabelecem-se padrões de funcionamento mental:
1 – Submeter-se a um tirano.
2 – Tiranizar a um submetido.
3 – Ser respeitado e respeitar como um ser
autônomo – porém educável para adaptar-se as
normas sociais.
Freud, em 1905, relata o estágio do psiquis-
mo desta fase:

“Nela, a divisão em opostos que


perpassa a vida sexual já se constituiu,
mas eles ainda não podem ser chama-
dos de masculino e feminino, e sim ati-
vo e passivo.”

Quanto à definição de aspectos constituin-


tes do desenvolvimento, mais à frente e no mesmo texto
Freud coloca:

“Nessa fase, portanto, já é possí-


vel demonstrar a polaridade sexual e o
objeto alheio, faltando ainda à organi-
zação e a subordinação à função repro-
dutora.”

Nessa fase o objetivo maior talvez seja o de-


senvolvimento de autonomia pessoal, reter ou expelir. O
caminho da erotização passa agora do sadismo referente
à região anal para regiões genitais. O erotismo uretral, no
entanto, refere-se ao prazer no urinar e ao prazer em reter
ou expelir urina, análoga à fase anal.

84
A perda do controle uretral, como na enure-
se, pode frequentemente ter um significado regressivo que
reativa os conflitos anais.

Fase fálica

Por volta dos três anos de idade, a libido inicia


nova organização que em condições favoráveis, se esten-
derá até por volta do quinto ano de vida. A erotização
passa a ser dirigida e concentrar-se nos genitais, desen-
volve-se o interesse infantil pela genitália, a masturbação
torna-se frequente e normal.
Mas Freud destaca que:

“...na fase fálica, há os primór-


dios de uma organização que subordi-
na os outros impulsos à primazia dos
órgãos genitais e determina o começo
de uma coordenação do impulso geral
em direção ao prazer na função sexual.
A organização completa só se conclui
na puberdade, numa quarta fase, a ge-
nital.”

A atenção é toda voltada ao órgão genital


masculino (o falo), devido à forma interna do órgão sexual
feminino. Freud, em texto publicado em 1932, mostra o
quanto oculto fica a definição de aspectos que definem o
gênero sexual quando propõe:

“Com seu ingresso na fase fá-


lica, as diferenças entre os sexos são
completamente eclipsadas pelas suas

85
semelhanças. Nisto somos obrigados a
reconhecer que a menininha é um ho-
menzinho.”

A tentativa é de demonstrar a ausência da


distinção dos gêneros (masculino/feminino) por uma vi-
são onde se encontram fálicos ou castrados. Nesta fase
surgem questões a respeito da diferença entre os órgãos
genitais entre meninos e meninas, não com habilidade de
compreensão, mas com toda duvida e ansiedade que é
peculiar deste período. Freud continua escrevendo:

“Nos meninos, conforme sabe-


mos, essa fase é marcada pelo fato de
que aprenderam a obter sensações pra-
zerosas do seu pequeno pênis, e rela-
cionam seu estado de excitação às suas
idéias de relação sexual. As menininhas
fazem o mesmo com seu diminuto cli-
tóris. Parece que em todas elas a ativi-
dade masturbatória é executada nesse
equivalente do pênis e que a vagina
verdadeiramente feminina, a essa épo-
ca, ainda não foi descoberta por ambos
os sexos.”

Com isso passa a contaminar a percepção dos


objetos assim como o despertar de fantasias referentes à
castração. Freud introduz os conceitos de “complexo de
castração” e “inveja do pênis”. No mesmo livro, no texto
sobre a feminilidade, escreve:

“O complexo de castração nas


meninas também inicia ao verem elas os
genitais do outro sexo. De imediato per-

86
cebem a diferença e, deve-se admiti-lo,
também a sua importância. Sentem-se
injustiçadas, muitas vezes declaram que
querem ‘ter uma coisa assim, também’,
e se tornam vítimas da ‘inveja do pênis’;
esta deixará marcas indeléveis em seu
desenvolvimento e na formação de seu
caráter, não sendo superada, sequer nos
casos mais favoráveis, sem um extremo
dispêndio de energia psíquica.”

A culpa acerca da masturbação que tem seu


objeto limitado no campo incestuoso, é experimentada e
com ela a necessidade de adequação do objeto. Descobre
a relação com os pais e nesse triângulo, sua exclusão. São
então definidos papéis como os de objeto, modelo, aliado
e rival. Freud denominou este sentimento como o do “ter-
ceiro excluído”. Descobre se o que ocorre com os pais é
algo cruel ou prazeroso. È nessa fase que se implementa
a fantasia quanto às relações sexuais, e surgem aí muitas
dúvidas sobre isso. O que é e como funciona o ato sexual
e o que é o ato de violência se confundem para a criança
nessa fase. O fato do domínio maior na capacidade de
argumentação verbal faz com que surjam questões, muitas
vezes constrangedoras para os adultos. A curiosidade sobre
o ato sexual é intensa, sobretudo entre seus pais, o que
Freud chamou de cena primária. Onde a criança se vê ex-
cluída do triangulo composto por ela, o papai e a mamãe.
A importância de poder suportar se sentir ex-
cluído dessa posição e assim passar por essa fase, elabo-
rando fantasias inerentes a ela, de maneira tranquila, é de
enorme influência na formação da personalidade. Imagi-
nações sobre traição e sobre questões incestuosas se mo-
vimentam no interior do psiquismo, causando ansiedade

87
peculiar desta fase, e contribuem com o retraimento da
fase posterior (período da latência).

O complexo de Édipo

Édipo é personagem da dramatização escri-


ta pelo filosofo grego Sófocles (497 - 406). Em seu dra-
ma, Édipo mata o pai (o rei Laio) e casa-se com a mãe
(Jocasta). Freud empresta o nome do mito em favor da
explicação do complexo que povoa a mente da criança
nesta fase. Neste momento do desenvolvimento, Freud
chama a atenção para formação do ideal de ego, ou su-
perego (identificações originalmente derivadas das figuras
de autoridade parentais), que surgiria como substituto dos
desejos edípicos.
Melanie Klein propõe as questões edípicas
de uma forma mais precoce e sugere que fantasias como
essas habitariam a mente da criança desde a mais tenra
infância. Explica isso com o auxilio da divisão do objeto
(objetos parciais).
A possibilidade de resolução do conflito edí-
pico de forma harmoniosa e suficientemente tranquila,
no “final” do período fálico, desperta poderosos recursos
internos para a regulação dos impulsos e sua orientação
para fins construtivos.
Nas palavras de Freud, 1940:

“Com a fase fálica, e ao longo


dela, a sexualidade da tenra infância
atinge seu apogeu e aproxima-se da sua
dissolução. A partir daí, meninos e me-

88
ninas têm histórias diferentes. Ambos
começaram a colocar sua atividade in-
telectual a serviço de pesquisas sexuais;
ambos partem da premissa da presença
universal do pênis. Mas agora os cami-
nhos dos sexos divergem.”

Quando, em 1905, Freud escreve sobre a se-


xualidade infantil descreve o fim desta fase e o inicio de
um novo período:

“...o complexo de Édipo reve-


la sua importância como o fenômeno
central do período sexual da primeira
infância. Após isso, se efetua sua disso-
lução, ele sucumbe à regressão, como
dizemos, e é seguido pelo período de
latência.”

Fase da latência

Através dos estudos psicanalíticos descobri-


mos que os germes dos impulsos sexuais já estão pre-
sentes no recém-nascido, continuam a desenvolver-se
durante algum tempo, para então serem dominados por
progressivo processo de supressão. A fase da latência se
estende, em média, dos seis anos de idade até a puber-
dade, que inicia por volta dos nove anos de vida, não
tendo tanto rigor dentro dessa noção cronológica. Como
já mencionado nesse trabalho, cada caso apresenta certas
possibilidades de experiência. Neste período a criança de-
monstra ‘aparente’ diminuição do interesse sexual, o que
seria o resultado dos fortes impulsos genitais (instinto),

89
conflitados pelas normas e regras sociais (realidade), ou
seja, com a repressão das idéias incestuosas componen-
tes do complexo de Édipo e a posterior maturação das
funções do ego. A energia da libido fica temporariamente
deslocada de seus objetivos sexuais. A criança é inunda-
da por sentimentos como asco, vergonha. As exigências
dos ideais estéticos e morais, são fatores que contribuem
com o afastamento do mundo externo quanto ao aspecto
sexual.
A partir da consolidação do superego e a
maturidade egóica, o caminho aponta para vivências
posteriores, deslocando-se dos pais para professores,
treinadores e outros adultos, representantes de autori-
dade. A criança tende a juntar-se em grupos do mes-
mo sexo. Faz piadas a respeito dos problemas sexuais.
Ocorrem as primeiras histórias de amor entre os meni-
nos e meninas.
Na latência são criadas forças psíquicas que
têm a função de dar conta de bloquear o curso do instin-
to sexual. Essas forças irão, então, buscar recursos para
assistir a demanda que tem um fluxo continuo. Como a
energia libidinal é permanentemente gerada, não pode
ser simplesmente eliminada, tão pouco suportam eficien-
temente a repressão. Boa parte dela é canalizada para
outras finalidades. Assim, ela é direcionada ao que Freud
denominou sublimação para o desenvolvimento intelectu-
al e social da criança.

“Os historiadores da cultura pare-


cem unânimes em supor que, mediante
esse desvio das forças pulsionais sexuais
das metas sexuais e por sua orientação
para novas metas, num processo que

90
merece o nome de sublimação, adqui-
rem-se poderosos componentes para
todas as realizações culturais. Acrescen-
taríamos, portanto, que o mesmo pro-
cesso entra em jogo no desenvolvimen-
to de cada indivíduo, e situaríamos seu
início no período de latência sexual da
infância.” Freud (1905)

O objetivo deste período é o aumento da ha-


bilidade para lidar com o mundo das coisas e pessoas ao
redor, sendo que hereditariedade e educação são corrobo-
rantes nesse processo de repressão dos impulsos.

“Após o fim deste período de la-


tência, como é chamado, a vida sexual
avança mais uma vez, com a puberda-
de; poderíamos dizer que tem uma se-
gunda eflorescência.”

Fase genital

Esta fase ocorre no que chamamos de ado-


lescência – dos 11 ou 13 anos, aproximadamente, até
que atinja a vida adulta. Constitui, para a Psicanálise,
atingir o pleno desenvolvimento do adulto normal. Pres-
supõe-se que aprendeu a competir, discriminar seu pa-
pel social, desenvolver-se intelectual e socialmente, ser
capaz de realizações e ser capaz de amar num sentido
amplo.
Mas, agora, a libido tende a se concentrar na
região genital, e assim também ocorre uma intensificação

91
dos impulsos, podendo amiúde provocar uma regressão
na organização da personalidade. Reaparecem conflitos
de estágios anteriores, oferecendo a oportunidade de re-
solver esses conflitos no contexto de alcançar maturidade
sexual e identidade adulta.
Com a libido voltada para a função reproduto-
ra, o desenvolvimento é norteado pela separação final da
dependência e do vínculo parental e pelo estabelecimento
de relações de objeto heterossexuais, não-incestuosas e
amadurecidas. Consolida-se a identidade individual que
resultará na integração adaptativa dentro das expectativas
sociais e dos valores culturais.
Os desvios patológicos devidos ao fracasso
em resolver exitosamente esse estágio do desenvolvimen-
to, são múltiplos e complexos. As falhas podem proceder
de todo o espectro dos resíduos psicossexuais, já que a
tarefa evolutiva do período adolescente se faz num senti-
do de reabertura, revivendo e reintegrando todos esses as-
pectos do desenvolvimento. As resoluções anteriores que
não puderam ser bem sucedidas e as fixações nas várias
fases ou aspectos do desenvolvimento psicossexual pro-
duzem imperfeições patológicas na personalidade adulta
que surge ou a criação de estruturas comprometidas. Ao
descrever esta fase e os progressos dos processos obtidos
até aqui, Freud escreve:

“Este processo nem sempre é re-


alizado de modo perfeito. As inibições
em seu desenvolvimento manifestam-se
como os muitos tipos de distúrbio da
vida sexual. Quando é assim, encon-
tramos fixações da libido a condições
de fases anteriores, cujo impulso, que

92
é independente do objetivo sexual nor-
mal, é descrito como perversão.” Freud
(1940 - 1938)

Na verdade a vida sexual nunca deixa de se


desenvolver por todo o período da vida do ser humano
e continua passando por experiências consecutivas, da
primeira infância até a velhice. Isso talvez seja a maior
expressão do estar vivo.

Perversão

“As perversões são ou (a) trans-


gressões anatômicas quanto às regiões
do corpo destinadas à união sexual,
ou (b) demoras nas relações interme-
diárias com o objeto sexual, que nor-
malmente seriam atravessadas com ra-
pidez a caminho do alvo sexual final.”
Freud (1905).

Na definição do que é uma perversão na Psi-


canálise, Freud lembra o leitor, com o mesmo texto acima,
que:

“Quando as circunstâncias são


favoráveis, também as pessoas normais
podem substituir durante um bom tem-
po o alvo sexual normal por uma dessas
perversões, ou arranjar-lhe um lugar ao
lado dele. Em nenhuma pessoa sadia
falta algum acréscimo ao alvo sexual
normal que se possa chamar de per-

93
verso, e essa universalidade basta, por
si só, para mostrar quão imprópria é a
utilização reprobatória da palavra per-
versão.”

Aí se encontra a dificuldade e o perigo no uso


do termo para descrever certo diagnostico que tenha perver-
são como processo patológico. Freud postula que um critério
mais seguro estaria na observação mais atida do processo.
Onde se percebesse não a perversão ao lado do objeto como
um facilitador do encontro (sexual) com o mesmo, mas quan-
do surge como substituto deste, em prol do objetivo perver-
so. Fatores como exclusividade e fixação estariam presentes
dentre suas características.
Buscando o vértice psíquico encontramos o
equivalente à idealização do instinto, isso quer dizer que o
trabalho de elaboração dos impulsos libidinais (o pensar)
fora substituído pela atuação (act-out) da fantasia que re-
mete a fases anteriores e se mostram manifestações pri-
mitivas.
Sentimentos como repugnância e vergonha
partem da componente estrutural do aparelho psíquico
denominada por Freud de superego, em conflito com os
impulsos instintivos oriundos da parte mais primitiva, cha-
mada id. Na perversão o id triunfa neutralizando o efeito
do supereu.
A neurose é entendida então, como o negati-
vo da perversão. Uma repressão mal sucedida da pulsão.

94
Os desvios no amor

... A saber, que o homem não é


realmente um só, mas verdadeiramen-
te dois em um. Digo dois, porque o es-
tado dos meus conhecimentos não vai
além desse ponto. Outros virão, outros
me ultrapassarão nessa mesma direção,
e aventuro-me a pensar que o homem
será finalmente conhecido como um
simples agregado multiforme de cida-
dãos incongruentes e independentes
uns dos outros. O Médico e o Monstro,
Robert Louis Stevenson (1850 - 1894).

Dr. Jekill deixa uma carta relatando sua expe-


riência. Escreve uma longa carta que antes de tudo traz a
revelação de um momento reflexivo daquele que tivera um
insight (compreensão interna) sobre si mesmo. Alguém
que descobrira o terrível fato de que talvez sua maior per-
versão fosse justamente o que o permitira manter-se in-
tenso em suas realizações.
Talvez em sua busca por ser alguém livre de
imperfeições, tivera que criar, no quarto dos fundos de
sua alma, um perverso. Alguém que ele mesmo não co-
nhecera. E quando o pode conhecer, foi o fim. Na obra
de Stevenson, Dr. Jekyll, um dedicado médico que reunira
em torno de seu nome qualidades como as de cavalhei-
rismo, educação e bondade, desenvolve uma fórmula que
permite transformá-lo em Mr. Hyde, um ser frio e nefasto
que age essencialmente por seus impulsos. O uso da po-

95
ção decompunha a personalidade do médico, que assim
se tornava alguém dividido. Um recurso criado por ele,
antes de tudo, para conseguir continuar vivendo. Justifica-
se com o argumento de que, amiúde era tomado por cer-
tos desejos estranhos que ameaçavam o desenvolvimento
e até a existência do médico bem sucedido. O preparado
farmacológico não criava alguém novo, mas revelava uma
parte escondida no interior do gentleman. Ao beber da
poção, o médico era arremessado para a extremidade
avessa do médico, ocupando sua alma da irracionalidade
do monstro. O uso da substância química criava um fenô-
meno onde era evitada assim a experiência do conflito, já
que delegava a cada parte do eu uma escolha. Enquanto
Dr. Jekyll (que carrega a morte em seu nome; kill), abriria
mão do desejo proibido e assim revelava um homem amá-
vel e preocupado com o outro; Mr. Hyde (escondido em
inglês), de forma inversa, abre mão da realidade e satisfaz
o impulso perversamente, atacando pessoas num ódio
mortal pelo ser humano. Entretanto, o maior oprimido e
grande sacrificado pelos atos perversos de Mr. Hyde seria
exatamente Dr. Jekyll.
O que poderia nos permitir cogitar, com pro-
priedade, sobre o que é perversão, que tipo de argumento
poderia nos autorizar diagnosticar ou designar algo como
sendo perverso?
A palavra "perversão", se entendida por um
vértice onde é utilizada a linguagem coloquial, ganha
logo um formato malévolo, um representante venenoso
da crueldade. No dicionário (Michaelis 2003), encontra-
remos a palavra como sinônimo de expressões que apa-
recem desde contaminação, infecção, até corrupção, ou
mesmo depravação. Se estivermos utilizando um estilo
em que se usa vocabulário e sintaxe bem aproximados

96
da linguagem do dia-a-dia, ou seja, coloquialmente, en-
contraremos a palavra perversão como significado de
algo que se encontre, quem sabe, no avesso do que é
humano. Na medicina (quiçá a primeira ciência a estudar
o termo), a palavra perversão aparece como classifica-
ção de uma enfermidade, ou descrição de algum tipo de
degeneração.
Contudo, se procurarmos a origem da pala-
vra, encontraremos no latim, per vertio, por sua vez deri-
vado de per vertere, que remete à noção de "por de lado",
ou "por-se à parte".
A partir dos estudos da Psicanálise, sobre
tudo na obra de Sigmund Freud publicada em 1905, TRÊS
ENSAIOS SOBRE A TEORIA DA SEXUALIDADE, a conota-
ção ganha alguns importantes ponderadores, apontando
para a mesma direção semântica do radical determinador
da palavra. Através de um exame mais polido, podemos
apreciar maduramente a palavra em seu significado e as-
sim perceberemos certos pontos de vista que permitem
deslocar o conceito da posição fixa, no extremo oposto
do bom, do bem, do humano e perceber um significado
mais amplo que poderia abarcar o termo. Na Psicanálise,
o termo foi e é (esse trabalho é um exemplo disso) de
essencial importância no escopo dos pensadores, sendo
cuidadosamente estudado e debatido desde o início dos
estudos de Freud.
No segundo tópico do primeiro capítulo da
obra freudiana de 1905, o termo é descrito como uma es-
pécie de desvio. Mas é importante percebermos que esse
desvio ocorre no caminho em direção ao encontro sexual,
ou a cópula em si. Como que um adiamento temporário
no objetivo da cópula, assim como um desvio no caminho

97
do desenvolvimento sexual, descritos como sadismo, ma-
soquismo, pedofilia, exibicionismo,voyeurismo, etc. Um
atalho que desvia do outro, ou do objeto, e se direciona à
satisfação narcísica. Como se em certo momento o desejo
de buscar o objeto externo convertesse simplesmente em
desejo de satisfação do impulso. A parte da libido que
ficou presa à satisfação nos objetos primitivos apresenta-
se na vida adulta como perversão. São pulsões que não
conseguem encontrar satisfação nos objetos.
Em UMA CRIANÇA É ESPANCADA - UMA
CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DA ORIGEM DAS PERVER-
SÕES SEXUAIS, de 1919, Freud propõe que:

“Uma fantasia dessa natureza,


nascida, talvez, de causas acidentais na
primitiva infância, e retida com o propó-
sito de satisfação auto-erótica, só pode,
à luz do nosso conhecimento atual, ser
considerada como um traço primário de
perversão.”

Porém, é importante percebermos que, ape-


sar de parte do eu pressionar a totalidade a olhar para
outro lado, só pode desviar-se aquele que segue alguma
direção. Freud postulara em 1905 sobre uma polêmica
ideia que ainda hoje nos parece de difícil compreensão,
ou no mínimo pega o leigo de surpresa, com certa sensa-
ção (muitas vezes repleta de restrições em seu reconheci-
mento) de que sempre sentira algo que ao mesmo tempo
acaba de conhecer.
Logo, perceberemos o fato de que utilizamos
muito mal a palavra perversão, ou pelo menos limitamos
muito sua utilização se atribuirmos a ela um movimento

98
de reprovação. A ideia é que a perversão se apresenta
como componente até mesmo da vida sexual sadia, sen-
do considerada pelo sujeito como qualquer outro pensa-
mento secreto. Freud dá um passo imenso na direção da
necessidade de desfazer a fronteira insolúvel entre saúde
e doença, pelo menos no âmbito psicológico, ou seja,
quando se estuda a mente humana.

“As perversões não são bestia-


lidades nem degenerações no sentido
patético dessas palavras. São o desen-
volvimento de germes contidos, em sua
totalidade, na disposição sexual indife-
renciada da criança, e cuja supressão
ou redirecionamento para objetivos as-
sexuais mais elevados — sua “sublima-
ção” — destina-se a fornecer a energia
para um grande número de nossas rea-
lizações culturais.”

É o que sugere Freud no seu FRAGMENTO DA


ANÁLISE DE UM CASO DE HISTERIA (1905 [1901]), e se
pudermos sustentar a direção deste pensamento freudiano
verificamos que reprovar a perversão é reprovar parte do
eu. Este afastamento temporário do objeto externo tem a
exclusividade e fixação (Freud 1905) como constituinte em
seu modelo. Freud nos dizia que "a neurose é o negativo
da perversão", ou seja, enquanto o neurótico fantasia, o
perverso atua (accting out). Esse desvio ocorreria por uma
impossibilidade de satisfação do desejo sexual, o que faria
com que no neurótico, a partir da repressão do impulso,
criassem-se sintomas que serviriam ao aparelho psíquico
como substitutos da satisfação sexual. Logo entendemos
que a neurose esconde um desejo perverso, encoberto

99
pelo sintoma. A partir deste ponto de vista, com auxilio
da Psicanálise, pudemos reconhecer que todos nós temos
uma coleção de neuroses e, da mesma forma, passamos
assim a perceber a perversão como certa característica
que pode ser descoberta até mesmo no sujeito dito nor-
mal ou saudável. Mesmo no adulto que, pelo menos a
priori, conquistara o status de maturidade, conserva-se em
sua personalidade (em um lugar secreto) partes infantiliza-
das que amiúde se revelam em situação de hiperexcitação,
ou mesmo no prenúncio da perda do objeto amado.
Através de um exercício de subjetividade po-
deríamos pensar em algo que se manifesta através do
desejo, vem sempre acompanhado de certa ânsia. Desse
modo, gradualmente suscita-se um processo gerador de
um modelo de estrutura, algo que possa sustentar a viabi-
lização desse desejo, mesmo que apenas imaginativamen-
te. A partir daí produzir-se-ia uma qualidade especial de
vínculo com aquilo que é da realidade, exatamente onde
está o outro, o objeto externo. Antes de tudo, no caso
aqui estudado, uma espécie de dificuldade de reconhecer,
integrar-se e interagir com o real. Isso se pensarmos o ato
sexual como um modelo de encontro entre duas partes di-
versas da realidade onde existe a possibilidade de criação
de uma terceira.
Verificamos por esse caminho que, através de
uma escala de evolução, a perversão estaria para o amor
como um primeiro tipo, um modelo menos desenvolvido,
entretanto em desenvolvimento. Um protótipo do amor
que tenta bravamente seguir em frente na tentativa de
desenvolver-se.
Longo é o caminho que percorre o bebê até
que aprenda a amar. Até que possa ser capaz de retribuir

100
aquilo que recebeu de seus dedicados cuidadores e criar
assim um modelo que possa servir a cada nova aproxima-
ção amorosa em sua vida. Tento propor que talvez quem
hoje ame um dia desejou perversamente. Eros (deus do
amor) é filho de Afrodite (deusa da beleza, sedução) a ge-
radora do afrodisíaco.
Mas voltando ao belíssimo romance proposto
no inicio do texto, se o médico tivesse sido capaz de su-
portar a imperfeição de seus pensamentos perversos teria
a chance de integração das partes de sua personalidade,
abrindo assim a oportunidade de viver algo real, logo im-
perfeito. Talvez custasse a ele momentos de “monstros”,
contudo sob sua responsabilidade, em detrimento da per-
feição do gentil médico bem sucedido. Seguindo o mesmo
caminho, percebemos que, a despeito da formulação po-
pular, onde o título de perverso é atribuído à descrição do
vilão, malvado e agressor, também o papel de vítima se
encaixaria na descrição perversa, quando cada agressor
carrega uma vítima dentro de si, pronta a ser projetada
naquele que possa oferecer um modelo adequado para
receber essa função.

Conclusão

Quando nos propomos estudar com cuidado


as fases do desenvolvimento emocional estamos diante
de um processo que envolve o desenvolvimento da capa-
cidade de vinculação entre o sujeito, incluindo seu mundo
interno, e o outro, compreendido pelo mundo externo.
Falamos de uma interação entre continente e aquilo que
pode ser contido. A possibilidade que a criança possa ter

101
de receber continência do ambiente que a acolhe. Isso na
fase de sua vida onde ela é só transformação e a colocan-
do na posição de conteúdo ansiando ser contido.
A esse conjunto de qualidades do ambiente,
Bion, aprimorando o pensamento de Melanie Klein, bati-
za de rêverie, que é em si, a capacidade de acolher, conter
e transformar, para somente então devolver ao outro, em
condições tais que este último acabe crescendo com a
colaboração do ambiente (analista-mãe).
Em cada fase desse desenvolvimento a crian-
ça contará com esse acolhimento para que possa assim
expandir-se na capacidade emocional e enfrentar os desa-
fios das próximas fases de processo.
O continente suficientemente bom servirá de
condição básica para que os impulsos conduzidos por Eros
na perspectiva da pulsão de vida sejam bem elaborados, e
que assim haja a qualificação emocional. Isso permitirá a
passagem do processo primário unidimensional, distante
do vínculo do outro e regido pelas leis do prazer/despra-
zer para o processo secundário dependente do vínculo
afetivo com o outro, no mundo externo, e que funciona
fundamentalmente pelas leis da realidade. Experiências
dessa ordem qualificam o sujeito na tarefa de abrir mão do
modelo de ligação calcado na identificação, onde o eu e
o outro se confundem e trazem a possibilidade da ligação
objetal com o outro, que agora não é mais uma “parte do
eu”, mas realmente o “outro”.

102
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à Psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978.

104
Sobre o autor

O Prof. Renato Dias Martino tem se dedicado


à pratica clínica da psicanálise desde 2003. No exercício
desse trabalho clínico, conta com a abordagem teórica
da psicanalítica na corrente de Freud, Klein, Winnicott e
Bion, como principal instrumento, conduzindo esse pen-
samento através de constante estudo teórico aliado a prá-
tica clínica.
Do resultado desse processo deriva o material
usado para ministrar aulas no ambiente universitário de
teoria psicanalítica, desenvolvimento da personalidade e
também psicologia aplicada à áreas diversas como comu-
nicação, pedagogia e organizacional. Também coordena
grupos de estudo na introdução à psicanálise.
Em 2011 publicou o livro “Para Além da Clí-
nica” onde, com uma linguagem agradável e por vezes
poética, faz um encontro entre a teoria e a prática das ex-
periências emocionais nas paginas de um livro que trans-
cende a aplicação clínica dos conceitos psíquicos.
Mantém um blog, onde se encontram dispo-
níveis os materiais em forma de textos teóricos, poesias e
vídeos, dedicados à reflexão:
http://pensar-seasi-mesmo.blogspot.com.
Contatos:
renatodiasmartino@hotmail.com
Twitter: @renatodmartino

105
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