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Recensões

Filomena Silvano (2001), Antropologia do Espaço. Uma Introdução, Oeiras, Celta.

Dulce Moura

O subtítulo do livro apresenta-o desde logo salesianos que usavam a destruição da organiza-
como um material introdutório, um desafio di- ção espacial das aldeias dos Índios, enquanto
dáctico. Percorrendo a definição de espaço como método pragmático de perda de identidade, de
conceito, método e etnografia, a obra vai atraves- desestruturação das tradições e dos seus sistemas
sando o património que legado pelos autores social e religioso.
nesse domínio, dos clássicos aos contemporâneos, Simmel e Benjamin desenvolvem a explici-
de campos diversos – filosofia, geografia, sociolo- tação de factores de organização da cultura e do
gia, literatura – e que vão configurando a espaço das cidades, de um certo “estilo de vida”,
disciplina da antropologia do espaço. associado à mobilidade (desenvolvimento de fi-
Síntese de uma disciplina afirmativa no guras como o “estrangeiro ou o “passeante” numa
pensamento científico – a antropologia do espaço posição de síntese entre proximidade/distância),
– a obra desenvolve-se em três partes fundamen- e ao “carácter transitório, efémero e movente das
tais, que atravessam períodos históricos e de práticas sociais”.
reflexão sobre o espaço, numa perspectiva de Ainda na primeira parte do livro, a Escola
desenvolvimento cronológico e de configuração de Chicago surge referida através dos seus per-
da disciplina. cursores – Park e With – numa leitura do espaço
A primeira parte do livro situa-se na análise da cidade que retoma a figura do “estrangeiro”,
do património clássico da antropologia do espaço, definindo a mobilidade, a heterogeneidade ou a
e apresenta textos de clássicos da sociologia excentricidade, como um tipo de sociabilidade e
(escola durkheimiana), da antropologia (Mauss e mentalidade urbanas. Estes conceitos cruzam-se
Lévi-Strauss), ou ainda autores como Simmel, no desenvolvimento de um trabalho dos autores
Park e Wirth. No seu conjunto estas reflexões sobre os guetos, suportes de “relações raciais”,
conceptuais e metodológicas abordam o espaço, onde a mobilidade, a posição e a distância desen-
embora não o autonomizem ainda como conceito volvem formas de relação específicas.
de central ou autónomo. O trabalho de Evans-Pritchard sobre os
Desde logo a reflexão apresenta algumas nuer permite apresentar dois temas fundamentais
referências fundamentais na conceptualização do ao desenvolvimento do pensamento antropológico
conceito de espaço pela “escola sociológica sobre o espaço: a distância ecológica e estrutural
francesa”, pensado como representação material e a organização espacial relacionada com a rela-
e como representação (social). Ainda na visão tividade da pertença. Nesta segunda relação o
durkheimiana, algumas dimensões do espaço são autor relativiza o “ser de” (pertença ou não
desenvolvidas, como a dimensão material, a sua pertença), segundo a escala em que se coloca o
realidade dinâmica, e enquanto suporte de indivíduo numa determinada interacção social,
memórias colectivas, apreendendo o espaço como
segundo o contexto do sujeito ou grupo.
uma representação social relacionada com pro-
A segunda parte do livro, parte do período
cessos de identidade e de memória simbólica e
posterior a 1960, quando o conceito de espaço se
afectiva de um grupo. Trata-se de abordar o
autonomiza enquanto objecto das ciências so-
espaço na sua relação intrínseca com a
ciais, e são apresentados autores dominantes no
sociedade, relacionando conceitos como: estru-
tura espacial, estrutura social, memória e pensamento sociológico como Lefebvre, Ledrut,
significação simbólica do espaço. Rémy e Voyé, apresentando ainda num último
Ainda nesta perspectiva de leitura do momento uma obra essencial na constituição do
espaço nos autores clássicos, Lévi-Strauss é campo disciplinar da antropologia do espaço da
referido, pela associação que desenvolve entre a autoria de Paul-Lévy e Segaud.
estrutura do espaço e a organização social dos Partindo da complexidade do pensamento de
grupos, as suas identidades colectivas. Alguns Henri Lefebvre, a autora coloca algumas questões
exemplos do autor são referidos para sublinhar a fundamentais, num esforço de rigor sintético já
relação entre a organização empírica do espaço e assinalável noutros momentos do livro, e refere a
a organização social ou as identidades colectivas discussão do conceito de produção do espaço.
que aí se desenvolvem, como os missionários Lefebvre situa-se assim, na observação das práti-

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CIDADES Comunidades e Territórios

cas sociais que constituem o espaço, na comple- A apresentação de “L’Anthropologie de


xificação da relação entre o social e o espacial, l’ Espace”, de Paul-Lévy e Segaud, surge por se
sustentando a sua reflexão em três conceitos fun- constituir como um marco na institucionalização
damentais: prática social, representação do espa- da antropologia do espaço, e o segundo capítulo
ço e espaço de representação. termina com o desenvolvimento das principais
Ledrut vem retomar alguns dos conceitos ideias desenvolvidas pelas autores
que foram sendo explicitados para defender a A terceira parte apresenta três propostas
ideia do espaço como forma produzida, articu- analíticas desenvolvidas em contextos de pro-
lando a universalidade da espacialização com dução de um pensamento antropológico do
modalidades particulares de cada sistema social. espaço: as heterotopias de Foucault (“lugares que
O autor dicotomiza ainda o espaço arcaico, indis- estão fora de todos os lugares, mas que no entanto
sociável da comunidade, das suas representações, são localizáveis”), os não-lugares e a sobremo-
do modo de espacialização contemporâneo que dernidade de Augé (lugares não relacionais, não
fabrica um espaço “homogéneo, exterior, fechado identitários e não históricos e o “excesso de
e contínuo”. tempo, de espaço e de individualismo”) e as
A autora relativiza este carácter exclusivo ethnoscapes de Appadurai (noção de fronteira, de
dos modos de espacialização de Ledrut, referindo mobilidade).
as múltiplas modalidades espaciais da sociedade Refira-se por fim, que este guia ao fazer um
contemporânea, avançando com as propostas de atravessamento das principais abordagens con-
Rémy e Voyé sobre estas novas espacialidades, ceptuais e metodológicas da noção de espaço,
sobre a urbanização e a mobilidade, a noção de constitui-se privilegiadamente como um material
que existem zonas não urbanizadas das cidades de reflexão disciplinarmente diverso e original,
(referindo o caso dos bairros tradicionais) e um contributo para o debate académico sobre os
aldeias cenários de urbanização, associadas desafios de uma visão disciplinarmente descom-
geralmente a uma intensa relação com o exterior plexada de conceitos transversais às diversas
(mobilidades quotidianas). disciplinas científicas.

Miguel Chaves (1999), Casal Ventoso: da Gandaia ao Narcotráfico.


Marginalidade Económica e Dominação Simbólica em Lisboa, Colecção Estudos e
Investigação 13, ICS.
Dulce Moura

O autor começa por contextualizar temporal- desestruturou uma parte do tecido residencial
mente o livro: “Ele encontra-se conjugado no degradado.
presente. Como se tivesse sido escrito há algumas Mas a própria constatação das mudanças no
horas atrás. Este é, e permanecerá, portanto, o Casal Ventoso, é um desafio para quem lê o livro,
Casal Ventoso de 1996.” Esta referência é tornando-se um retrato dinâmico, de vivências
importante, pois o trabalho do autor no Casal que entretanto foram urbanística e socialmente
Ventoso começou em 1992, num projecto de reconstituídas num território contíguo, e o “Casal
“Intervenção Comunitária”, onde desenvolveu Ventoso de 1996”, serve de referencial de estudo
actividades culturais com “jovens em risco”, e para quem quer conhecer o Bairro hoje.
desenvolveu-se até à dissertação de mestrado em Uma das principais preocupações do autor,
1996. Mas se o livro é o resultado de um per- foi a criação de um quadro analítico capaz de
curso, o autor não pode deixar de referir, que os colocar as principais questões que estão em jogo
anos que passaram desde 1996 até à data da pre- no Casal Ventoso, e para o seu desenvolvimento,
sente publicação, trouxeram ao Casal Ventoso associando e integrando dois tipos de paradigmas
profundas alterações, com base no “plano inte- capazes de compreender a “pobreza” e o
grado de reconversão” apoiado pelo Urban, da “desvio”. O primeiro corresponde à “tese de
Comunidade Europeia, e com o realojamento que transmissão cultural” que valoriza o processo de

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transmissão e socialização em determinados gru- identificar 3 ou 4 “famílias-seita” que tiveram a


pos e espaços, através da aprendizagem e da supremacia no Bairro, e assumiram mais tarde
inculcação cultural, enquanto o segundo um papel fundamental na emergência do tráfico.
paradigma, a “tese adaptativa” defende a referên- Essas famílias funcionavam como “microestru-
cia das pessoas desprovidas de bens, a ideais e turas de oportunidades ilegais”, gerando
valores globais, e sublinha a sua exclusão da pos- processos de reprodução social no Bairro gerados
sibilidade de acederem a esses bens globalmente a partir do tráfico, em agregados com condições
valorizados. tendenciais para manterem um ”estilo de vida
O desafio está em articular estas teses, e em instável”.
compreender a realidade com base em formu- Nos anos 80 e 90, algumas das famílias
lações teóricas pouco vagas e instrumentalizadas, mais envolvidas no tráfico, adquirem rendimentos
como “subcultura de classe”, “subcultura de mas isso corresponde a um investimento de capi-
bairro”, “subcultura delinquente” ou até con- tal na educação dos filhos ou na nobilitação
ceitos como habitus. social da família. Esta constatação, serve ao
Também as opções metodológicas foram autor para perceber a dominância de jovens no
difíceis, pois o secretismo é um processo de Bairro sem a escolaridade obrigatória, cujas
sobrevivência do bairro, e a inquirição por ques- condições perante o trabalho legal não sofreram
tionário teria fraca fiabilidade. Logo, o autor opta grandes alterações das décadas anteriores, não
fundamentalmente pela observação directa, existindo significativa mobilidade social ou até
recorrendo ainda a entrevistas a informantes- espacial intergeracional.
-chave, viveu ainda no Bairro durante algum O tráfico dá visibilidade ao Casal Ventoso,
tempo, procurando integrar redes sociais locais. tornando-se “as traseiras da cidade” onde a
Esta apresentação do trabalho dá conta de droga existe simultaneamente na vertente do trá-
um caminho que pretende “compreender a forma fico e do consumo, e o Bairro fica sujeito “a
como o bairro do Casal Ventoso e os seus habi- processos de dominação física e simbólica por
tantes se encontram integrados no sistema parte do Estado, dos média e da sociedade
sociocultural global e qual o tipo particular de global.” Mas o autor demonstra um outro tipo de
dependência que experimentam por relação a dominação, ao constatar que o discurso de conde-
esse sistema.” A partir deste objectivo global, o nação do tráfico é interiorizado pelos próprios
autor explica as formas de produção internas do habitantes do Bairro, e “ muitos traficantes inter-
bairro, a construção da própria comunidade e das nalizam, naturalizam e reproduzem o mundo e a
identidades pessoais, assim como o mecanismo ordem social que condena o tráfico.”
que motiva a integração das pessoas no sistema Mas estes “valores antitráfico” não são os
de tráfico. únicos valores fundamentais entre a população do
Partindo do processo de edificação do Bairro Bairro, e os argumentos defensivos de um certo
e da progressiva integração da população num “estilo de vida” que gira em torno do tráfico são
determinado sistema social, o autor avalia os levantados pelo autor, por “serem detidas,
“estilos de vida” existentes no Bairro antes e enquanto outras que elas entendem terem respon-
depois da instalação do narcotráfico, fazendo uma sabilidades acrescidas na actividade de tráfico
reconstrução das representações internas, e permanecem livres”, e demonstram um “patri-
procurando perceber as motivações da adesão ao mónio representacional colectivo” que se mantém
tráfico e o papel que essa actividade tem nos pro- no presente.
jectos de vida dos habitantes. O livro resulta de uma estrutura diacrónica
O autor assinala assim alguns grandes que vai reconstituindo um processo de construção
períodos no Bairro. Até à década de 40, quando comunitária, onde o narcotráfico assume um
as famílias do Casal Ventoso recorrem essencial- papel fundamental “facilitando o funcionamento
mente a plurirendimentos, que resultam de desta enquanto actividade colectiva”, dominando
actividades legais da periferia do sistema produ- no Bairro, mesmo que as representações facilita-
tivo e ilegais (também periféricas), além do doras do tráfico não sejam uniformemente
recurso a meios como a penhora, a mendicidade interiorizadas por todas as famílias. O autor con-
ou o fiado, evidenciando uma precaridade em segue trabalhar no Casal Ventoso, com rigor
relação ao trabalho e à condição salarial que per- metodológico, e perceber uma evolução histórica
manece até hoje. A partir da década de 40, que organiza o território e as famílias que o inte-
período em que algumas famílias se foram organi- gram, tornando dominante um determinado estilo
zando em torno de actividades ilegais, podem-se de vida.

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