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INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGUÍSTICA
CURSO DE MESTRADO / DOUTORADO EM LETRAS
ANÁLISE DO FILME
“A PALAVRA ENCANTADA”
Salvador
2009
DEISE MÔNICA MEDINA SILVEIRA
ANÁLISE DO FILME
“A PALAVRA ENCANTADA”
Salvador
2009
A palavra encantada. A, artigo definido feminino, que neste caso designa um
universo infinito de palavras, designa todas as palavras que, ao mesmo tempo em que
cantam e encantam, pois são verbos, também são encantadas, pois são também
adjetivos. O que quer o que pode essa língua?
Quantas são as faces de uma palavra em uma língua? Quantas coisas diferentes ela
pode denominar/comunicar? Quantas vezes essa mesma palavra pode ser dita e
interpretada por uma mesma pessoa ou por pessoas diferentes, em contextos diferentes
com significados completamente diferentes? A propósito, o que é ser diferente? Será ir
de encontro ao que se espera? Será ir de encontro ao uso dado inicialmente a
determinada palavra? Se for assim, quem é capaz de responder qual foi o uso dado
“inicialmente” a determinada palavra? Onde tudo começou? Existe a palavra original?
Os versos de uma das composições de Chico Buarque apresentada no filme A
Palavra Encantada, dizem “Palavra viva / Palavra com temperatura / Que se produz /
Muda / Feita de luz mais que de vento / Palavra dócil / Palavra d’água pra qualquer
moldura / Que se acomoda em balde, em verso, em mágoa / Qualquer feição de se
manter palavra”. Esses versos nos levam a refletir sobre as diversas faces da “palavra”,
bem como a pensá-la como organismo vivo e dinâmico, concordando com as reflexões
pós-modernas que defendem a heterogeneidade e a multiplicidade de significados e
funções das palavras, contrariamente aos primeiros estudos no campo da tradução, que
defendiam uma equivalência de um para um no significado das mesmas.
Quando Gilberto Gil compôs a música Metáfora e a recheou com versos como:
Uma lata existe para conter algo / Mas quando o poeta diz: “Lata” / Pode
estar querendo dizer o incontível / Uma meta existe para ser um alvo / Mas
quando o poeta diz: “Meta” / Pode estar querendo dizer o inatingível / Por
isso, não se meta a exigir do poeta / Que determine o conteúdo em sua lata /
Na lata do poeta tudo nada cabe / Pois ao poeta cabe fazer / Com que na lata
venha caber / O incabível / Deixe a meta do poeta, não discuta / Deixe a sua
meta fora da disputa / Meta dentro e fora, lata absoluta / Deixe-a
simplesmente metáfora” (GILBERTO GIL, 1982)
“... um soneto deve ser traduzido por um soneto; uma balada, por uma
balada; versos metrificados e rimados por versos metrificados e rimados,
mantendo-se, se possível, a isomorfia da métrica e da rima; versos brancos
por versos brancos; versos livres por versos livres; e assim por diante. Fugir
disso é praticar recriação livre, transcrição livre, outros tipos de trabalho
cujo valor inegável não se discute aqui, mas que, a meu ver, não são
propriamente tradução”. (LARANJEIRA, 1993, apud ARROJO, 2002, p.
130)
Outro momento importante do filme é quando Adriana Calcanhoto fala sobre sua
sensibilidade, e do fato de gostar do que ouve, sem necessariamente saber quem é o
autor, apenas sentindo que há algo mais. É possível interpretar que o mesmo vale para
muitas pessoas, ao ouvir poemas musicados. Esse sentimento de “algo mais” pode ser
explicado pelo conceito de Fish (1980) de “comunidade interpretativa”, pois segundo
ele “as estratégias que o leitor põe em prática não procedem dele enquanto um
indivíduo, mas da “comunidade interpretativa” de que faz parte”, pois segundo o autor é
esta “comunidade interpretativa” que nos fornece uma forma particular de ler um texto.
Ao ouvir Lirinha dizer que aprendeu a recitar convivendo com os repentistas, e ao
ouvi-lo recitar o poema de João Cabral de Melo Neto, com tanta emoção, e sendo
tomado pela comoção do público, me reporta à opinião de poetas e escritores como
Nabakov, Frost, Valéry, citada no livro Oficina de Tradução: A teoria na prática, de
Rosemary Arrojo que diz que “... a tradução é uma atividade essencialmente inferior,
porque falha em capturar a “alma” ou o “espírito” do texto literário ou poético”.
Segundo Arrojo (2002: 27 e 28), essa visão reflete, portanto, a concepção de que,
especialmente no texto literário ou poético, a delicada conjunção entre forma e conteúdo
não pode ser tocada sem prejuízo vital, o que condenaria qualquer possibilidade de
tradução bem-sucedida. Além de contrária à visão de Rosemary Arrojo, a citação acima
vai também de encontro à visão de Walter Benjamin ao dizer que “uma tradução
verdadeira é transparente, não cobre o original, não encobre sua luz, mas permite que a
língua pura, como que reforçada por esse novo meio, brilhe mais completamente no
original”. Desta maneira, o fato de poemas de um escritor tão importante, ser levados a
público por um veículo diferente, mostra a importância da tradução como meio de
sobrevivência do original, bem como meio de acessibilidade da literatura a um público
mais vasto.
O conceito acima é reforçado no filme pela fala do Rapper Ferréz que diz que
“Nesse país há um paradigma que literatura é uma coisa sagrada, quando na verdade
tem que ser o café da manhã de todo mundo”. É preciso que se dessacralize a arte, como
ocorreu na década de 70, com o surgimento da poesia marginal, utilizando-se todas as
leituras possíveis, ou seja, é preciso que se lance mão de todo tipo de tradução
intersemiótica para que, a partir de veículos diferentes, as diversas classes sociais se
sintam, suficientemente, interessadas em consumir esses produtos, e assim fiquem
melhor informadas e, consequentemente, sejam mais capazes de questionar. Pois
segundo Venuti (2002, p.28) “A boa tradução é a minorização: libera o resíduo ao
cultivar o discurso heterogêneo, abrindo o dialeto-padrão e os cânones literários para
aquilo que é estrangeiro para eles mesmos, para o subpadrão e para o marginal”.
A reação de Tom Zé ao ouvir Dorival Caymmi executando ritmos diferentes em
uma mesma composição mostra um alto grau de conservadorismo na sua concepção de
regularidade musical, algo que foi completamente revisto pelo compositor, com o passar
do tempo.
Na entrevista da poeta Hilda Hilst com Zeca Baleiro, esta desmistifica a imagem
dos escritores ao dizer que “as pessoas cagam para os poetas”, e reclama do fato de não
ganhar dinheiro com sua literatura. Em seguida, Zélia Duncan se diz emocionada ao
saber que os poemas de Hilda Hilst seriam musicados, ou seja, outro momento em que a
tradução intersemiótica representa um importante meio de sobrevivência do original.
A banalização com que Caetano Veloso responde à pergunta do repórter sobre o
que o levou a fazer uma música bem moderna, pegando Coca Cola, Guerrilha, Brigitte
Bardot, etc., retrata muito bem o objetivo do Tropicalismo, movimento cultural, que
pretendia quebrar com os paradigmas da época, mesclando manifestações culturais
tradicionais com inovações estéticas radicais. Tendo sido este também um movimento
intersemiótico, pois se revelou e se impôs através da música, das artes plásticas, do
cinema e do teatro.
REFERÊNCIAS
ARROJO, Rosemary. Oficina de tradução: a teoria na prática. 4. ed. São Paulo: Ática,
2002.
FISH, Stanley. Is there a text in this class? The authority of interpretive communities.
Cambridge, Massachussets & London: Harvard University Press, 1980.