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PRESIDÊNOA DA REPÚBLICA

Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa- 2001

ARQUIVO NACIONAL

COMISSÃO JULGADORA

Maria do Carmo Teixeira Rainho (presidente)


Afonso Carlos Marques dos Santos
Antônio Carlos de Souza Lima
Cláudia Beatriz Heynemann
Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves
Martha Campos Abreu

lvana Stolze Lima

Cores, marcas e falas:


sentidos da mestiçagem no Império do Brasil

Lima, Ivana Stolze


Cores, marcas e falas: sentidos da mestiçagem no
Império do Brasil.
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.
228p.: 22cm.- (Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa, 18)
"3° lugar no Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa - 2001"
ISBN : 85-70090-66-8
t.ldentidade Racial-Brasil-História, 1831-1833. 2. Brasil-
História, 1831-1833. 3. Negros-Rio de Janeiro (Província)-His-
tória, 1831-1833. 4. Brasil-Império, 1822-1889
CDD 305.8981
Copyright © 2003 by Arquivo Nacional
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Telefone: (021) 3806-6115
Tel. /Fa.:x: (021) 3806-6114

Presidente da República
Luís Inácio Lula da Silva

Ministro-Chefe da Casa Civil da Presidência da República


José Dirceu de Oliveira e Silva

Secretário-Executivo da Casa Civil da Presidência da República


Swedenberger Barbosa

Diretor-Geral do Arquivo Nacional


Jaime Antunes da Silva

Coordenadora-Geral de Divulgação e Acesso à Informação


Maria Isabel de Mattos Falcão

Divisão de Pesquisa e Difusão do Acervo


Reinaldo Cotia Braga

Edição de texto, copidesque e revisão


José Claudio Mattar

Projeto gráfico
Giselle Teixeira À memória de Sinhozinho Lima.

Diagramação
Alzira Reis

Capa
Ângelo Venosa

Foto da capa
Menino em Salvador, de Alberto Henschel, 1869
(coleção Reiss-Museum, Mannheim)
àgún á jó
E màriwô
àgún akôró
E màrlwô
Iwô a gba 'lê gb'ônà
àgún á jó
E màrlwô
Màá tú yeye

Ogum dançará
Coberto com a fronde
da palmeira
Ele ocupará a casa e
o caminho
Fronde da palmeira,
cresça
Digam o que disserem os moralistas a este respeito, o entendi-
mento humano deve muito às paixões, que por um comum teste-
munho também lhe devem muito: é através da sua atividade que
a nossa razão se aperfeiçoa; nós não procuramos conhecer se-
não pelo fato de desejarmos gozar e não é possível compreender
a razão pela qual aquele que não tivesse nem desejos nem temo-
res se daria ao trabalho de raciocinar.

Jean-Jacques Rousseau,
Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens
SUMÁRIO

Prefácio 13

Introdução

Marcas de uma polissemia 17

Capítulo 1

As cores dos cidadãos no teatro do jornalismo:


política e identidade no Rio de Janeiro, 1831-1833 31

A revolução na imprensa e a revolução na rua 34

O teatro, o riso e a polissemia das identidades 37

Os atributos do cidadão mulato 51

A platéia mal comportada 67

Uma disputa de símbolos: a noite das garrafadas 71

Um mito se apaga 76

Capítulo 2

Inventário das identidades: os censos e a cor 89

A utilidade da estatística 93

A população e o território 95

Artifícios de classificação 98

Descaminhos: a revolta contra o registro da cor 102

Raças estranhas habitam a província -Rio de Janeiro 109

A odiosa classificação por cores: a Corte 113


O Censo Geral do Império de 1872 119 PREFÁCIO
Falas e silêncios sobre a cor 121

Capítulo 3 É um grande prazer prefaciar a versão em livro do belo texto de Ivana


Lima sobre a polissemia da mestiçagem no Brasil oitocentista. Baseado em
Entre o tupi e a "geringonça luso-africana", eis a língua brasileira 133 pesquisa extensa e original, o trabalho surpreende pela forma inovadora com a
Descompassas entre a população e a nação qual aborda essa questão em suas relações com os processos de construção de
140
uma identidade nacional e de identidades sociorraciais no período. Segundo
Dicionários e língua brasileira 144 Ivana: "De certa forma, a identidade é uma ilusão e uma contingência, apoiada
exatamente na crença de que é uma verdade e uma necessidade".
A língua brasileira: o digno e o indigno 148

Índios e língua nacional em José de Alencar


O brilho dessa afirmação, que aparece despretensiosa em meio a um pará-
160
grafo na introdução do livro, dá bem a medida da originalidade da abordagem que
A piedade e o medo 171 busca desnaturalizar o processo de construção da identidade brasileira em suas
relações com a noção de mestiçagem racial, recuperando sua historicidade.
Um índio e os índios 175
As identidades nacionais e raciais como as conhecemos hoje são cons-
Conflito e morte na história da nação: Gonçalves Dias
truções históricas do século XIX, freqüentemente naturalizadas nas represen-
A "História pátria": um manifesto teórico 179 tações atuais sobre elas, tal as suas forças enquanto vetares culturais e organi-
zacionais da vida de todos nós. Se a idéia da nação como comunidade imagi-
Nações e nação 182 nada, na feliz expressão de Benedict Anderson, começa a tornar-se usual nas
análises históricas, a historicidade das identidades e classificações raciais é
Marabá e os valores incomuns da mestiçagem 185
tema menos freqüentado, porém igualmente central para a compreensão do
Nação e escravidão 187 processo de formação da identidade brasileira. De fato, creio que se pode afir-
mar, de um ponto de vista mais geral, que a construção das identidades nacio-
nais nas Américas implicou também um processo de racialização de suas po-
Conclusão 203 pulações. Parece-me urgente desenvolver uma agenda de estudos que permita
recuperar a historicidade desses processos, como única forma de superar os
Bibliografia 209 impasses colocados pelas disputas entre perspectivas essencialistas e univer-
salistas da questão racial no continente.

O Brasil, que pretendia se apresentar como nação independente no século


XIX, precisava forjar sua comunidade imaginada a partir de uma população étni-
ca, lingüística e culturalmente heterogênea. Nascidos no Brasil, escravos e livres
somavam-se a multidões de imigrantes europeus de diferentes nacionalidades, em
especial portugueses, de africanos de diferentes origens e línguas, de indígenas de
diferentes procedências, descidos como administrados ou escravizados em guer-
ras justas, disputando os significados do tornar-se brasileiro.

13
O texto de lvana acompanha esse processo, mostrando que as noções Delineava-se, assim, um homem de cor que não se identificava, pois
de identidade brasileira e de mistura de raças se apresentaram relacionadas escrevia usando o recurso do anonimato, e que recusava identificações raciais.
desde a afirmação do Brasil como país independente. Nem uma nem outra, Para ele, a igualdade entre os cidadãos brasileiros só poderia se efetivar atra-
entretanto, tinham significados precisos e amplamente compartilhados na- vés do silêncio sobre as marcas hierarquizantes, sentido este expresso desde a
quele período. Ao contrário, foram objeto de disputas de significação pelos época pombalina, que proibia que os ditos meus vassalos casados com as índi-
diversos atores sociais que interagiam no complexo cenário social das pri- as ou seus descendentes sejam tratados com o nome de caboclos, ou outro
meiras décadas após a abdicação de d . Pedro I, quando a perspectiva de rom- semelhante que possa ser injurioso.
pimento com Portugal tornou-se realmente definitiva, deixando como her-
deiro do Império do' Brasil, seu filho, nascido em terras brasileiras e por isso Calados os exaltados pela hegemonia conservadora, nem por isso o tra-
cabra como nós, como queriam alguns dos que foram às ruas para pedir a balho de identificar e classificar a população do jovem país se tornava fácil. Por
abdicação do pai. muitas décadas, qualquer tentativa de classificação da população livre por crité-
rios raciais continuou a ser percebida por muitos como armadilha hierarquizante
Cores, marcas e falas, em três capítulos densos, explora as diversas e discriminadora, trazendo ameaças de (re)escravização no horizonte.
dimensões por meio das quais aquela heterogeneidade básica foi crescente-
mente apropriada com conteúdos raciais, nas décadas que marcaram o proces- O segundo capítulo do livro traz ao leitor os muitos percalços de se
so de consolidação do Estado Imperial no Brasil. fazer o inventário da heterogeneidade brasileira, formatando os primeiros cen-
sos e projetas de registro civil da população. Nas listas de população das pri-
O primeiro capítulo abarca um momento em que as cores dos brasi- meiras décadas após a Independência, as categorias cor e condição apareciam
leiros e seus sentidos hierarquizantes herdados do Império português apa- quase sempre confundidas (listas, por exemplo, em que só constavam as cate-
recem como eixo dos combates de muitos dos jornais e panfletos dos cha- gorias brancos e escravos ou livres e escravos sem menção à cor, nas quais
mados liberais exaltados, marcando a emergência de uma linguagem racial não se previa a categoria preto para a população livre etc.). Já no censo de
da política. No teatro do jornalismo, construído a partir dos debates produ- 1872, a noção de raça, como critério de classificação independente da condi-
zidos por articulistas anônimos em pasquins exaltados de títulos sugesti- ção livre ou escrava, aparece consolidada, bem como a decisão de contar a
vos, como O Homem de Cor, O Cabrito, O Brasileiro Pardo, entre muitos população mestiça - no sentido biológico - identificada como pardos ou ca-
outros, a condição de mestiço podia surgir como signo do verdadeiro bra- boclos. Entre os dois momentos, não foram lineares os caminhos trilhados pe-
sileiro, diferenciando-o do português colonizador, no limite, tornando até los órgãos governamentais encarregados de conhecer e classificar a população
Pedro II, cabra como nós. As cores dos cidadãos mantinham-se, porém, do novo país, acompanhados com rigor pelo texto de Ivana. As discussões
como estigma e marca de inferioridade quando usadas contra os exaltados sobre as categorias de classificação a serem utilizadas nos levantamentos po-
em panfletos de retórica ultraconservadora. Principalmente, contudo, as pulacionais, os motins contra as primeiras tentativas de realização do registro
velhas designações dos homens livres de cor (pardo, caboclo, cabrito, ca- civil, que muitos estavam convencidos iria servir para escravizar os livres de
bra, bode, mulato, entre tantas outras) passavam a circunscrever um cida- cor, o desaparecimento das designações de diferenciações étnicas entre os afri-
dão de cor que lutava pelos mesmos direitos constitucionais que os cida- canos e seus descendentes diretos, as oscilações das autoridades responsáveis
dãos brasileiros brancos, combatendo o tráfico negreiro e buscando desra- pelos censos entre registrar ou não registrar a heterogeneidade da população
cializar a existência legal da escravidão no país, que deveria se manter por critérios raciais permitem desnaturalizar e melhor esclarecer as especifici-
apenas em nome do direito de propriedade. "No Brasil não há mais que dades do processo de racialização em curso.
escravos e cidadãos"; "O título 2 da Constituição não distinguiu o roxo do
amarelo, o vermelho do preto .. ."; "no Brasil não há brancos, nem mulatos, Por fim, um alentado terceiro capítulo aborda mais uma arena das apro-
há cidadãos brasileiros, ingênuos e libertos!" são algumas das enfáticas priações da mestiçagem e de sua polissemia, a discussão sobre a língua brasi-
declarações impressas nos jornais exaltados. leira , que iria se propor mapear a língua falada no Brasil, buscando os elemen-

14 15
tos a serem valorizados e integrados à norma culta. Língua mestiça que busca- INTRODUÇÃO
va valorizar os vocábulos de origem tupi , mas que repudiava tornar-se uma
geringonça luso-africana. Fazendo parte do movimento romântico, a discus-
são sobre a língua brasileira iria enfatizar a uniformidade lingüística como
uma das bases da unidade nacional, de fato reprimindo fortemente os falares
indígenas e africanos , ainda correntes em muitas regiões e grupos sociais do
país. Por intermédio dos personagens mestiços de Gonçalves Dias e de José de Marcas de uma polissemia
Alencar, Ivana conclui seu trabalho explorando a forma fortemente racializada
através da qual uma certa sensibilidade romântica incorporou a questão da
heterogeneidade sociocultural e da continuidade da escravidão ao processo de
construção da identidade nacional.

Os sentidos da mestiçagem no Império do Brasil, revelados pela leitu- Cabras, fuscos, caboclos, brancos, mulatos, pretos, crioulos, pardos,
ra do texto de Ivana, desnaturalizam os significados do termo enquanto mistu- caiados, fulos, cruzados, tisnados. Por que tantas palavras? O que desig-
ra biológica ou hibridismo cultural espontâneo. Hierarquizada e hierarquizan- nam? Que homens e mulheres suportaram essas marcas? A que procedimen-
te, a mestiçagem se apresenta como tentativa de apreender e atuar sobre a tos de classificação e identificação obedecem? Que códigos lhes fornecem
heterogeneidade sociocultural efetiva que se apresentava como um princípio inteligibilidade? Questões como essas estiveram presentes no diálogo que
de confusão, aos diferentes atores inseridos na cena política do novo país. procurei travar com diferentes representações em torno da experiência da
mestiçagem, na época do Império do Brasil, especificamente entre as déca-
das de 1830 e 1860. Deparei-me com uma intensa polissemia da mestiçagem,
que despontava como uma das singularidades daquela sociedade.

O cuidado com o singular e específico daquela experiência afasta-


va-me de uma concepção de mestiçagem que se tornou recorrente a partir
do final do século XIX - como um processo contínuo, articulado, ao qual
se emprestou uma vaga função generalizante. Apartir do final daquele
século, em um movimento que adquiriu bastante relevância sobretudo de-
pois da Segunda Guerra Mundial, diferentes funções foram sendo atribuí-
das à mestiçagem: a democracia, o intercâmbio entre os povos, a aliança;
ou então, em uma grade negativa: a degeneração, a criminalidade, ou uma
ameaça às identidades consideradas como autênticas. Nessas atribuições
acoplavam-se projeções sobre o futuro, utopias. 1 Pois bem, exatamente
esta perspectiva foi evitada, uma vez que, durante quase todo o Império,
não se atribuiu nenhuma função generalizante à mestiçagem enquanto um
processo articulado; ela deve ser entendida antes, apropriando-se do dizer
de um contemporâneo, como um "princípio de confusão". 2
Hebe Maria Mattos
Professora de História do Brasil da Claro que é difícil entender que uma confusão pudesse ter um princí-
Universidade Federal Fluminense pio (no sentido de preceito, regra ou lei), mas nessa dificuldade residem os

16 17
múltiplos sentidos da mestiçagem. Outras expressões- que não são equivalen- Além disso, a noção de identidade é bastante ampla; aqui foi conside-
tes entre si- aproximam-nos também da singularidade da época: "multiplici- rada a partir de três campos: a política, a população e a nação, relacionadas a
dade das raças'? "povo mesclado e heterogêneo", 4 "nação composta de raças temporalidades distintas no período que se estende entre as décadas de 1830 e
estranhas", 5 "amálgama do sangue, das tradições e das línguas". 6 1860. Em cada um deles à questão da identidade se constituiu de forma dife-
rente: as identidades raciais como tema da política no início do período regen-
O cantata com a documentação foi tornando cada vez mais irrelevante e cial; o conceito de população como forma de discurso e de racionalidade go-
inapropriada a hipótese previamente formulada, de que se poderia investigar neste vernamental, que será enfocado ao longo das referidas décadas; e as reflexões
momento uma genealogia ou formação do conceito de mestiçagem que conheceu sobre a nacionalidade, que adquiriram uma notável relevância política e mobi-
extrema recorrência a partir da passagem entre os séculos XIX e XX. 7 Por outro lização, sobretudo por volta da metade do século, e que aqui foram abordadas
lado, foi mostrando elementos muito mais ricos e variados, valorizações, símbolos a partir da problemática da língua nacional. A política, a população e a nação
e formulações antes insuspeitas. É o que subjaz à idéia de polissemia. foram os três campos em que se analisou a polissemia da mestiçagem, a qual
não se distribui simplesmente entre eles, mas também em seu interior. A cada
Seria válido agregar essa polissemia, reduzindo-a, e denominá-la um foi dedicado um dos capítulos deste livro.
"questão racial" na história do Brasil? A armadilha contida na idéia de
uma "questão racial" que atravessaria a história é exatamente naturalizar No primeiro capítulo, trabalhamos com a conjunção entre mestiçagem,
essa "questão", como se ela guardasse uma certa essência, que iria apenas identidade e política. Essa conjunção não foi previamente concebida; ao contrá-
tomando formas variadas ao longo das mudanças sociais, políticas e cul- rio, ela se definiu no contato com um material vastíssimo, em termos quantitativos
turais. Procurando uma dimensão mais apropriada para analisar os códi- e qualitativos, formado pela imprensa do período regencial (1831-1840). Esse
gos e práticas do momento histórico enfocado, propõe-se uma mudança de material passou por várias seleções, e a primeira que se pode adiantar é que traba-
perspectiva. Inicialmente, evitar tomar essa questão como um dado natu- lhei com os jornais publicados no Rio de Janeiro, priorizando o período entre
ral, ou como uma questão invariável. Em segundo lugar, ao invés de per- 1831 e 1833. Havia um enigma inicial apresentado por títulos como O Brasileiro
ceber a história da formação da sociedade brasileira como composta por Pardo, O Mulato ou o Homem de Cor, O Indígena do Brasil, O Filho da Terra, O
brancos, negros, índios e mestiços, conceber uma história dos termos bran- Cabrito etc. Passando à (difícil) leitura e análise dos conteúdos, e incluindo outros
co, negro, índio e mestiço e de tantos outros. Outro cuidado é não subesti- títulos, delineou-se o que pode ser chamado de uma linguagem racial da política.
mar o léxico profuso de designações raciais, nem reduzi-lo a termos que
tornem pobre a dinâmica social. Tudo isso aponta, em síntese, para a his- O período regencial, além de todo o interesse que desperta em termos
toricidade e complexidade das percepções e classificações raciais. de movimentos políticos e sociais, constitui-se em um tempo bastante fértil
para a discussão sobre a produção das identidades. Pode-se seguir a aprecia-
Considerar a polissemia da mestiçagem consistiu em considerar a ção que dele faz Gilberto Freyre em Sobrados e mucambos, englobando-o na
construção das identidades sociais. Focalizar a construção das identida- primeira metade do século XIX. Aquele foi o momento da
des, seu caráter relacional e cambiante, leva, mais uma vez, a uma desna-
turalização. De certa forma, a identidade é uma ilusão e uma contingên-
cia, apoiada exatamente na crença de que é uma verdade e uma necessida- vasta tentativa de opressão das culturas não-européias pela eu-
de. No entanto, enfatizar esses aspectos contingentes e um tanto ilusórios ropéia, dos valores rurais pelos urbanos, das expansões religio-
só faz sentido se, ao invés do que se poderia supor, os relacionamos às sas e 1údicas da população servil mais repugnantes aos padrões
situações de força em que se estabelecem, às suas implicações sociais, aos europeus de vida e de comportamento da população senhoril ,
projetas políticos que carregam. Não se trata de um esvaziamento, mas dona das câmaras municipais e orientadora dos juízes de paz e
sim da tentativa de inserir as identidades no contexto- que comporta sua dos chefes de polícia. [... ] Foi um período de freqüentes confli-
lógica, linguagem, conflitos e tensões -em que foram geradas. tos sociais e de cultura entre grupos da população - conflitos

18 19
complexos com aparência de simplesmente políticos - que todo A Corte do Império do Brasil era marcada por uma população diversifi-
ele se distingue pela trepidação e pela inquietação. 8 cada e em intenso e constante movimento. A formação da população da cidade,
desde a mais arraigada, fixa, até a mais flutuante, estava em estreita ligação com
suas diferentes funções. Enquanto capital, exercia atração não só sobre homens
Além de políticos, aqueles foram conflitos sociais e culturais, confli- de negócio e produção, mas também sobre visitantes involuntários, como os das
tos complexos entre grupos da população. Algo que de fato merece destaque é "deputações de índios selvagens" para a contemplação do imperador e para o
que tais conflitos de cultura ultrapassam em muito a tradicional explicação enriquecimento da coleção do Museu Nacional, com seus exóticos objetos. Índi-
sobre o período regencial que o apresenta como o das lutas entre "liberais os cuja visita seria ainda mais involuntária, porque capturados em "guerra justa"
moderados", "liberais exaltados" ou simplesmente "exaltados" e "restaurado- nas províncias distantes, eram trazidos para trabalhar em obras públicas. Do
res" ou "caramurus". interior vinham também tropeiros, que levavam suas mulas para beber água no
Campo de Santana. Chegavam escravos que fugiam das fazendas, abrigando-se
Dessa forma, seria genérico demais falar dessas disputas políticas no anonimato da cidade. "Atravessadores" de escravos vindos de outras provín-
de inspiração liberal- a luta que grupos urbanos travaram pelo reconheci- cias encontravam no Rio compradores, ou outros atravessadores. Havia ainda os
mento como cidadãos -, sem considerar um aspecto da cultura política que eram vistos como arredios e pérfidos ciganos, que vendiam bugigangas ama-
específica daquele momento, isto é, de seus valores, comportamentos e relas como se fossem ouro, e que tanto preocuparam as autoridades que não
experiências singulares: o fato de que eram disputas em torno da identida- conseguiam sequer enquadrar seu comportamento no Código CriminaJ.9
de. Em primeiro lugar, a identidade de "brasileiro" (que era por seu turno
pautada por uma posição política, a defesa da Independência, num mo- De procedências várias eram também os que chegavam pelo Atlântico.
mento em que esta ainda se encontrava em processo de consolidação, e Não se tratava apenas da diferença entre os africanos e os europeus, pois mesmo
não só pelo nascimento no território) e, em segundo lugar, uma identidade em cada um desses grupos havia distinções. Nem todos os homens de raiz africana
"racial", referida às cores dos cidadãos. O tema, tão presente, das cores trazidos como escravos provinham diretamente da África, ou lá tinham nascido;
dos cidadãos deve ser entendido não só como atributo físico; o sentido vinham também de outras regiões das Américas, como Estados Unidos, Argentina,
político do "cidadão de cor", do "brasileiro pardo" é muito mais rico e Uruguai, 10 Cuba. Nem todos vinham como escravos, mas como imigrantes livres. 11
complexo do que a cor da pele. Isso é o que torna ainda mais interessante
esse momento da história, e que contribui para o que se denominou anteri- Entre os europeus também existiam variações sociais, econômicas e
ormente de historicidade das percepções e classificações raciais. culturais. De financistas ingleses a mulheres estrangeiras sozinhas que volta e
meia envolviam "homens de família" em escândalos. 12 De artistas a modistas e
Não foi objetivo deste trabalho, e nem seria possível em uma pesquisa professores franceses que, cada um em seu campo, difundiam os valores da civi-
individual como esta, esgotar todo o material constituído pela imprensa dos lização, o gosto europeu. Havia ainda os operários, carpinteiros, artesãos de
anos 1831 a 1833; trata-se de uma documentação extremamente rica e comple- várias nacionalidades. Marinheiros que freqüentavam casas de diversão na re-
xa, com uma linguagem que não é exatamente transparente para o leitor atual, gião portuária e eram vigiados de perto pela polícia. Como, enfim, colocar em
e que ainda está por merecer inúmeras pesquisas que não a submetam a cate- uma mesma situação os grandes comerciantes portugueses e os jovens, ou mes-
gorias preconcebidas e que busquem sua própria inteligibilidade. mo crianças trazidas de Portugal e que eram praticamente escravizadas aqui? 13

Considerar os múltiplos sentidos da mestiçagem é considerar a rua. Sidney Chalhoub desvenda uma dimensão do Rio de Janeiro como uma
Na imprensa do período regencial a rua adquiriu "voz"; seus ecos continuaram cidade-esconderijo, espaço de uma resistência à escravidão, nas práticas mais
nos capítulos seguintes, como horizonte geral da investigação. Tomando como diversificadas - desde insurreições, levantes, recusas aos castigos corporais,
referência a cidade do Rio de Janeiro, vejamos a rua, não como lugar exclusi- fugas, até atos mais rotineiros ou cotidianos, como manifestações culturais,
vo, mas como lugar de evidência da mestiçagem. estabelecimento de relações sociais e afetivas, de uma rede de solidariedade

20 21
social, apesar da escravidão, senão contra a mesma. O conceito de cidade No segundo capítulo o foco é deslocado para uma temporalidade mais
negra desenvolvido por este autor é um horizonte presente, mesmo que nem ampla, que abrange o processo de formação do Estado imperial a partir de
sempre explícito, nesta pesquisa. O que conceitua como cidade negra ocupou outra perspectiva: a cçmstrução de uma "linguagem oficial" sobre a população,
espaços físicos e simbólicos marginais, e apesar de objeto de práticas especí- especialmente em relação à questão da classificação pela cor. A população,
ficas de dominação e controle, seus membros devem ser considerados pelo entretanto, não constitui uma realidade prévia, para a qual se atentou após
historiador como sujeitos históricos, em seu sentido micropolítico. 14 certo momento da história política. Trata-se de um conceito e de um objeto
que foi construído, a partir da economia política e da ciência da estatística, em
As manifestações culturais cotidianas- sem que o adjetivo cultural dei- um movimento que expressou o sinuoso processo de centralização do Estado
xe de significar político, econômico, social -são privilegiadas para superar o imperial. Enquanto um saber político, a estatística criou realidades, definiu
entendimento das relações raciais e sociais como dualizadas entre o branco e o fronteiras sociais, articulou e sintetizou oposições entre grupos- os livres e os
negro, ou entre o senhor e o escravo. Essa dualidade não é falsa, ao contrário, escravos, os nacionais e os estrangeiros, os cidadãos ati vos e os não-ati vos, os
mas atuou como um modelo , e sua aceitação, pelo historiador, sem questiona- brancos, os pretos, os pardos, os índios - em uma sociedade que não apenas
mentos, deixa perder a dimensão mais complexa da polissemia da mestiçagem- foi marcada pelas hierarquias, mas foi uma sociedade hierarquizante, constru-
um jogo de forças múltiplas, de códigos válidos para determinadas situações, indo e reconstruindo essas diferenças, entendidas como naturais.
mas não para outras, de regras e transgressões, de combinações entre controle e
tolerância. As manifestações culturais, o comportamento cotidiano, a constitui- As vicissitudes e tensões, dentre as diferentes instâncias do Estado, re-
ção de identidades sociais, de laços afetivos, talvez componham as principais velaram-se no forte investimento da estatística, considerada "luz do governo".
respostas às técnicas de controle impostas à população urbana. 15 Isso poderia parecer um paradoxo, mas apenas para aqueles que concebem o
Estado como unitário, e não para aqueles, como advertiu Michel Foucault, que o
Estudando a cultura negra e as relações raciais nos Estados Unidos, Co- tomam como uma "realidade compósita" e uma "abstração mitificada". 17 Assim,
18
lette Pétonnet critica a dicotomia que em geral é usada para caracterizar as rela- a noção de governo manifesta mais concretamente aquela abstração. A análise
ções raciais naquele país. Essa dicotomia daria lugar, nas relações sociais, políti- tomou por base censos populacionais, listas de batismo, casamento e óbitos,
cas, culturais concretas, a um jogo mais complexo de oposições, a uma miríade de avisos, regulamentos e instruções para recenseamentos, relatórios ministeriais
gradações, a posicionamentos entrecruzados. Em primeiro lugar, porque a cor da (das pastas do Império e da Justiça) e memórias e artigos sobre estatísticas po-
pele é uma categoria imprecisa, e as inconstantes tendências da mestiçagem - a pulacionais publicadas, principalmente, na Revista do Instituto Histórico e Ge-
autora fala da "palidez negra" - não são observadas pela dicotomia negro/branco. ográfico Brasileiro, órgão que teve uma atuação importante nessa área.
E ainda porque um indivíduo que se considera ou que é considerado negro pode
apresentar, dependendo da situação, uma posição "negra"- no caso da militância Longe de atuarem como mero recolhimento de dados e informações,
política em nome da minoria - , mas pode também estar absolutamente integrado isto é, como um saber técnico, as estatísticas revelam uma dimensão interessante
em manifestações culturais "brancas", por exemplo. No entanto, essa complexida- constituída por diferentes formas de resistência, nascidas entre diversos seg-
de é silenciada, pois pairaria aí uma espécie de tabu, que acaba contribuindo para mentos sociais, à própria atividade de classificação e ordenação, e, por exten-
a manutenção da imagem da dicotomia. Assim, escreve Pétonnet: são, ao governo. A estatística pretendeu alcançar uma regularidade na popula-
ção, noção complementar à noção de governo, mas, sobretudo em relação ao
Como todos os seres em situação de dupla cultura, eles (os ne- nosso objeto central- a classificação pela cor-, a irregularidade e a inconstân-
gros que entrevistou) resolvem individualmente os constrangi- cia foram marcantes. Nossa proposta foi analisar em detalhe e minúcia os termos
mentos por escolhas culturais, oscilando de um mundo a outro usados nas estatísticas, sem tentar sobre eles uma atividade também classificató-
em função de uma personalidade dual cuja história pessoal -a ria, isto é, sem agrupá-los em novas categorias, sem traduzi-los. Assim, um ma~a
ascendência e, neste caso, a cor- é um fator constitutivo. Como de batismo que está organizado na divisão entre "brancos" e "escravos" não diZ
esta cor não é uniforme , a herança varia com as mestiçagens. 16 exatamente o mesmo que um mapa que opere a distinção entre "livres" e "escra-

23
22
vos", por exemplo. E essa diferença não é casual, ela revela uma dimensão soci- Segundo limar Rohloff de Mattos, a difusão de um "espírito de associa-
al tensa. Um dos momentos em que essa tensão tomou a forma de ameaças arma- ção" constituiu uma dimensão essencial do que conceitua como ações do gover-
das às autoridades foram as revoltas em algumas localidades do Nordeste no no do Estado sobre o governo da Casa, atuando de modo eficaz e duradouro, na
final de 1851, por ocasião do Regulamento para o recenseamento da população medida em que procuraria construir um consenso 21 em torno da suposta unidade
do Império e para o registro civil de nascimentos e óbitos. 19 moral, cultural, histórica da nação. O movimento romântico teve nesse processo
um papel central. A literatura brasileira, a língua brasileira, a história e a ciên-
A análise da documentação mostrou, ainda, como diferentes instânci- cia nacionais ajudaram a construir aquela unidade, perturbada (ao menos para
as da administração mantiveram posições múltiplas acerca da classificação da alguns) pela existência das divisões. A questão seria como, simbolicamente, con-
população pela cor. Nesse sentido, um presidente de província tinha objetivos ceber essas divisões em uma unidade? A concepção de nação no Império do
diferentes em comparação com um ministro de Estado, o que ficou claro no Brasil não operava uma união direta entre os cidadãos. Ao contrário, as diferen-
confronto entre documentos relativos ao mesmo levantamento populacional, ças não só eram percebidas, mas também entendidas como naturais. Contudo,
tal como apresentado por uma e por outra instância. A mesma diferença estra- nem por isso foi uma operação tranqüila para os românticos, notadamente em
tégica foi verificada entre a atuação policial e o discurso ministerial. Gonçalves Dias. E tampouco isenta de disputas, tendo deixado vestígios a serem
recuperados. A questão do terceiro capítulo deste livro interroga exatamente de
No terceiro capítulo passamos a considerar a problemática da língua que forma o processo de construção de uma língua nacional lidou com a diversi-
brasileira, no bojo da formação da nacionalidade, tendo esta constituído o ho- dade; como ela fez face à polissemia da mestiçagem?
rizonte da literatura, bem como da historiografia e das artes, principalmente a
partir de meados do século XIX. O sentido da palavra "brasileiro", sujeito a Como parte do movimento romântico, houve todo um debate a respei-
tão acirradas disputas políticas ao longo do processo de emancipação e, espe- to da língua nacional, ou, como alguns a definiram, a "língua brasileira". Esse
cialmente, nos anos iniciais do período regencial, foi de certa forma pacifica- debate é privilegiado para discutir a questão da diversidade na reflexão sobre
do pelo movimento romântico no Brasil. Não porque houvesse absoluta con- a nação. A língua foi considerada exatamente o fator de união entre os elemen-
cordância sobre o que significaria ser brasileiro, mas porque as tensões sociais tos do que se pretendia conceber como um conjunto - a nação. Pode-se afir-
e regionais do período anterior passaram por certa domesticação. Polêmicas mar que a difusão da língua nacional foi uma forma de reduzir os particularis-
ocorreram, mas em outro cenário. Quando a palavra foi deslocada para a ques- mos, de governar pelo caminho da incorporação a uma imagem de unidade ao
tão nacional, saindo do tenso foro político- uma vez que este havia sido am- Império. Por meio da língua as regiões se uniam, livres e escrav~s tornavam-~e
pliado pelas revoltas, insurreições, motins e tentativas de certos grupos sociais membros (embora sempre diferenciados) de uma comunidade. A língua brasi-
de se firmarem como cidadãos -, ela tornou-se mais abstrata. leira foi atribuído o ambíguo papel tanto de filiação como de emancipação em
relação a Portugal. Nesse sentido, a idéia de uma história própria da língua na
Pacificação não significou fim das tensões, porém outras estratégias, América, bem como da sua relação com essa natureza, tida como singular,
mais ligadas à difusão de um consenso, de um "espírito de associação", do que passa a ser alimentada. Houve, ainda, uma controvérsia em relação ao desta-
à repressão e à força. O contraste entre o período regencial e a época de mea- que que seria dado entre as línguas diferentes do português, ou aos falares
dos do século, aproximadamente, constitui uma imagem recorrente na histori- singulares, regionais, como influências relevantes.
ografia produzida na segunda metade do século XIX, imagem essa que contra-
põe uma turbulência, uma tormenta, uma exaltação a uma paz, estabilidade, Essa produção romântica em torno da língua manifestou-se na refle:ão
vitória da civilização e da ordem. Tratar-se-ia, nessas décadas, do "apogeu do sobre a língua literária - através da qual se discutiu a relação com os padro~s
Segundo Reinado": as revoltas provinciais controladas, a ameaça de "anar- clássicos portugueses -e, também, em um movimento inicial de documentaçao
quia" debelada, o imperador coroado, a conciliação entre os partidos. Porém, da língua falada no Brasil, com o surgimento de dicionários e vocabulá.rios; ~este
esta constitui muito mais a imagem dos próprios dirigentes imperiais sobre trabalho procuramos explorar exatamente as tensões entre a língua hterana e a
seu próprio tempo 20 do que uma categoria neutra de análise. língua falada: tratou-se de uma relação de aproximação e distanciamento. Hou-

24 25
Mariella, Simone Rodrigues e, especialmente, à minha irmã Tânia Stolze Lima.
ve, de um lado, uma i~corporação, procurando transformar um conjunto de lín-
A meus amigos da Casa de Rui Barbosa agradeço a carinhosa e estimulante
guas em uma língua brasileira e, de outro lado, todo um processo de depuração
acolhida . Os funcionários do Arquivo Nacional, Biblioteca Nacional, Biblio-
do que era considerado indigno de se fazer representar naquela língua, sobretu-
teca da PUC-Rio e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foram funda-
do uma depuração dos africanismos . Daí o título do capítulo evocar, por um
mentais para a realização deste trabalho . O CNPq concedeu o auxílio financei-
lado, o que foi apontado por um contemporâneo como a "geringonça luso-afri-
cana", um falar viciado, desprezível, que estaria contaminando até mesmo as ro indispensável para a dedicação à pesquisa.
pessoas "de qualidade" e, por outro, as elaborações românticas sobre o tupi e
Gostaria de expressar algo que suponho seja compartilhado pela co-
como isso significava uma exclusão das demais línguas indígenas.
munidade de historiadores do Brasil, que é o lugar desempenhado pelo Arqui-
vo Nacional na divulgação científica. Anos de pesquisa cotidiana, minuciosa,
No campo da ficção , a análise de algumas obras permitiu dar vida ao
lenta, ganham visibilidade e a possibilidade de compor a memória social do
exame da encruzilhada formada pela vontade de conceber uma nação e pela
país. Ao Arquivo Nacional agradeço a publicação deste trabalho.
diversidade e hierarquia marcantes da sociedade no Brasil imperial. Optou-se
por trabalhar, como forma de complementar a interrogação central, com dois
E finalmente ao Francisco e à nossa (agora presente) muito querida Laura.
escritores românticos que tiveram destaque na produção de imagens e repre-
sentações sobre a nação e que, também, se envolveram ativamente no debate
sobre a língua brasileira : Gonçalves Dias e José de Alencar. Por intermédio de
algumas de suas obras indianistas pode-se investigar o sentimento- dimensão
de destaque no olhar romântico sobre o mundo- sobre as raças naquele mo-
mento da história do Brasil.

***

Este livro é fruto de uma tese de doutorado, defendida no Programa de


Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, em agosto
de 2000. Agradeço aos professores Flávio dos Santos Gomes, Manoel Luís
Lima Salgado Guimarães, Martha Abreu e Hebe Mattos a oportunidade de um
diálogo tão vivo sobre meu trabalho e o incentivo que cada um deles, em mo-
mentos e formas diferentes , têm me concedido . O professor limar Rohloff de
Mattos foi meu orientador, e além da atenção, críticas e sugestões decisivas no
encaminhamento da pesquisa, agradeço mais ainda que ele tenha compartilha-
do comigo o apreço por certos livros, leituras e palavras.

Alguns professores e amigos, uns mais saudosos do que eu gostaria,


apoiaram direta ou indiretamente a conclusão do trabalho . Sinto-me grata a
Mareio Goldman, Margarida de Souza Neves , Maria Manuela Ramos de Sou-
za Silva e Selma Rinaldi de Mattos . E ainda a Ana Paula Meyer Cordeiro,
Claudia Heynemann, Flavia Eyler, Keila Grinberg, Ricardo Freitas, Ricardo

27
26
14 "A cidade negra é o engendramento de um tecido de significados e de práticas sociais que
NoTAS
politiza o cotidiano dos sujeitos históricos [ ... ] no sentid.o .da transfor~~ção de eventos
aparentemente corriqueiros no cotidiano das relações sociaiS na escrav1dao em aconteci-
mentos políticos que fazem desmoronar os pilares da instituição do trabalho forçado. Castigos,
"Se quisermos evitar a incompreensão, a guerra, o genocídio, é preciso preparar os povos e as alforrias , atos de compra e venda, licenças para que negros vivam 'sobre si', e outras ações
culturas para a única via possível de paz e justiça, que não é outra senão a da mestiçagem". comuns na escravidão se configuram então como momentos de crise, como atos que são
Jacques Le Goff, entrevista a Juan Carlos Vida!. Folha de São Paulo, 28 d setembro de 1997. percebidos pelas personagens históricas como potencialmente tr.a nsformadores de suas vidas
e da sociedade na qual participam. Em suma, a formação da cidade negra é o processo de
2 A expressão faz parte do discurso de Nicolau Rodrigues dos Santos França e Leite, na funda- luta dos negros no sentido de instituir a política- ou seja, a busca da liberdade- onde
ção da Sociedade Contra o Tráfico e Promotora da Colonização, e Civilização dos Indígenas. antes havia fundamentalmente a rotina". S. Chalhoub, op. cit., p . 186.
O Philantropo, n• 76, de 13 de setembro de 1850.
15 Sobre esse tema, as seouintes obras de Martha Abreu constituem referências fundamentais :
3 idem. Festas relioiosas no Rio de Janeiro: perspectivas de controle e tolerância no século XIX, p .
183-203;: O império do divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro-
4 José Bonifácio de Andrada e Silva, Representação à Assembléia Geral Constituinte e 1830-1900.
Legislativa sobre a escravatura, Paris , Firmin Didot, 1825, p. 123-126.
16 Colette Pétonnet, La pâleur noire : couleur et culture aux Etats-Unis , p. 201.
5 Leopoldo Cesar Burlamaque, apud Célia Azevedo, Onda negra medo branco: o negro no
imaginário das elites no século XIX, p. 43 17 Michel Foucault, A governamentalidade, in Microfísica do poder, p. 292 .

6 José de Alencar, Pós-Escrito à segunda edição, in Iracema , edição do Centenário, p. 244. 18 Sobre a experiência de governar no processo de formação do Estado imperial ver limar
Rohloff de Mattos, O tempo saquarema, p. 117.
7 Essa recorrência foi o tema da minha dissertação de mestrado: Ivana Stolze Lima, O
Brasil mestiço: discurso e prática sobre relações raciais na passagem do século XIX 19 É importante ainda ressaltar que as reflexões de Hebe Maria Mattos acerca dos significados
para o século XX. da cor na sociedade escravista do século XIX constituem referências importantes no desen-
volvimento deste trabalho. Hebe Maria Mattos, Das cores do silêncio: os significados da
8 Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos, p . 389-390. liberdade no sudeste escravista- Brasil século XIX; e Escravidão e cidadania 110 Brasil
monárquico.
9 J. B. Debret, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, p. 7-8; Mary Karasch, Slave life in
Rio de Janeiro (1808-1850), p . 7; Thomas Holloway, Polícia no Rio de Janeiro, p. 22 e 129; 20 Para a crítica a esta imagem de apogeu do Segundo Reinado na~ décadas de 1850 e 1860,
Sidney Chalhoub, Visões da liberdade, p. 50 e segs.; Gilberto Freyre, op. cit. , p. 256-257 e 460. ver Sidney Chalhoub, Diálogos políticos em Machado de Assis, p. 103-104. E também
limar Rohloff de Mattos, op. cit., especialmente p. 83, 116 e 128.
1O Um ofício da Secretaria de Polícia da Corte (Arquivo Nacional, 116 204, 25 de abril de 1845)
cita o caso de três mulheres provenientes de Montevidéu e que, provavelmente, tendo sido 21 limar Rohloff de Mattos, op. cit., p . 157 .
abolida a escravidão naquele país em 1842, foram trazidas para serem vendidas como escravas.
O caso suscitou também o problema do regresso de escravos levados para fora do Brasil, uma
vez que a lei de 1831 proibia a entrada de escravos . No Diário do Rio de Janeiro (2 de
janeiro de 1850, n. 8.290), existe referência a quatro "orientais", da República Oriental do
Uruguai, que estariam sendo escravizados ilegalmente na Corte, o que sugere que isso tenha
sido um problema comum.

11 Mary Karasch, op . cit., p. 3 e 9. Acredito porém que se deva ter cuidado com a conclusão
da autora, pois o estatuto de imigrante livre, embora não seja impossível, pode ter sido um
subterfúgio de comerciantes ou proprietários para burlar a lei de 1831 , que proibia a entra-
da de escravos no país.

12 Secretaria de Polícia da Corte, op. cit., Arquivo Nacional, 116 204, 1845 .

13 Gilberto Freyre fala dos "escravos quase louros que aqui chegavam, das aldeias portuguesas,
uns inocentes de oito, nove anos". O autor cita outros exemplos colhidos de anúncios de
jornal, oferecendo-se ou procurando-se portugueses entre dez e 14 anos . Gilberto Freyre,
op cit., p . 271-272 e 334.

29
28
CAPÍTULO 1

As cores dos cidadãos no teatro do jornalismo:


política e identidade no
Rio de Janeiro, 1 831-1833

"Cabra gente brasileira


Do gentio da Guiné
Que deixou as cinco chagas
Pelos ramos de café"'

Esta paródia do Hino da Independência, que circulava na época das


lutas desencadeadas pela emancipação, leva-nos a indagar sobre as repre-
sentações em torno da identidade nos anos iniciais do período regencial,
quando alguns segmentos da população urbana procuraram participar ati-
vamente da política, não só vivendo, mas sendo responsáveis por um con-
texto de expectativa de transformação do poder e da cultura política, de-
sencadeado pela Independência e pela Abdicação. De forma mais direta, a
questão colocada é a seguinte: como entender publicações intituladas O
Brasileiro Pardo, O Homem de Cor, O Crioulinho, O Indígena do Brasil,
O Filho da Terra, O Meia Cara, O Cabrito, entre outras, vindas à luz na
cidade do Rio de Janeiro entre 1831 e 1833?

No duplo movimento em que grupos urbanos perceberam-se como


atores políticos e procuraram representar-se por meio de um conjunto de
imagens e valores , confrontaram-se discussões sobre a nacionalidade; e,
subjacentes a esta , tematizações em torno de identidades raciais. Existiam
certas figuras mestiças -o crioulo, o pardo etc. -que eram utilizadas ora

31
como auto-imagem positiva, ora como xingamento ou insulto, ora como o tempo que será aqui considerado, os anos de 1831 a 1833, é ainda
desqualificação. Há uma historicidade da questão racial/ e neste momento marcado pelo processo da consolidação da ema~cipação d_o_Esta~o , in~ciado
encontramos uma forma própria de invenção do tema das diferenças raciais, em 1822, bem como pela formação de uma soctedade pohtlc~ CUJOS. nucleos
preenchendo de significados políticos palavras como "mulato" ou "branco" serão titulados como cidadãos, seguindo os preceitos daquela epoca hberal. O
-algo que acontecia simultaneamente aos conteúdos reivindicados para o liberalismo não existe em forma pura, existe apenas referido a certos usos, e
atributo "brasileiro". sua ocorrência, mesclada a muitas outras formas de entender e imprimir valor
ao mundo, não é menos material por isso. Por outro lado, não foi apenas o
As lutas de representações em torno da identidade nacional relacio- corpo de doutrinas, valores e mecanismos de repres~ntaç~o polític~ do libera-
navam-se à formação da sociedade política, ao seu direcionamento, aos lismo que influiu na construção das concepções de tdenttdade nacwnal e das
dispositivos de inclusão e exclusão nesse corpo político. Havia diferentes designações raciais produzidas por certos campos discursivas .
eixos de tensões: os portugueses, aos quais se podia negar ou confirmar o
título de "brasileiros ado ti vos", tanto nos vários conflitos localizados que É muito comum tratar essa época como a da disputa entre liberais
compõem o movimento que levou à abdicação do imperador d. Pedro I, moderados, liberais exaltados, e restauradores ou caramurus. Mas o histo-
como, posteriormente, nas disputas pela ocupação de postos militares, pelos riador, ao invés de tomar essa classificação como uma categoria neutra de
empregos públicos, pelo mercado de trabalho urbano; outro eixo de ten- análise, pode entendê-la como parte do jogo político da época. Esses ter-
são era o governo regencial, do qual se reprovavam os atos considerados mos foram mais utilizados como forma de desqualificação e insulto do
traidores da aliança que fez com que seus membros chegassem ao poder. A que pelos supostos grupos que tais termos evocam, grupos estes que nem
alteridade poderia assim ser atribuída tanto aos que eram considerados sempre se compreenderam e se organizaram enquanto tais. A violência,
estrangeiros, como aos que não seriam suficientemente brasileiros. um dos estigmas lançados sobre os "exaltados", foi utilizada também pe-
los "moderados". Veja-se o exemplo de Diogo Feijó , ministro da Justiça
Ao se procurar a singularidade daqueles impressos, a sua gramáti- em 1831, e primeiro responsável pela manutenção da ordem pública na
ca própria, relativa ao tema da identidade, uma postura se faz cada vez Corte : sua atuação foi sobretudo no sentido de reprimir a "anarquia", isto
mais obrigatória. Trata-se de, ao invés de contar a história dá formação da é, a dissidência política e a ameaça social por ela expressada. Outro pro-
sociedade brasileira como composta por brancos, negros, índios e mesti- blema é que a oposição que aquela classificação apresenta entre os dois
ços, supor uma história dos termos branco, negro, índio e mestiço. Essa é grupos liberais, de um lado, e o grupo restaurador, de outro, quase obriga
a perspectiva que será adotada. a excluir qualquer traço de liberalismo entre os restauradores, o que tam-
bém não é totalmente exato. Sem dúvida é importante verificar a ocorrên-
Nela, a primeira operação consiste em alargar o conjunto desses cia daqueles termos, mas enquanto um jogo de acusações mútuas e de iden-
4
signos, isto é, não empobrecer o léxico tão profuso de designações raciais tidades relativas, construídas no calor dos embates .
que de alguma forma é uma marca cultural daquela história. Trata-se de
um inventário de designações. 3 A segunda operação consiste em velar pela O foco será antes lançado ao processo que forjou uma espécie de
sua variação histórica. Nenhuma designação racial tem um sentido trans- linguagem racial das disputas políticas. 5 Em busca dessa gramática, das
histórico ou invariável. Como terceiro passo, deve-se procurar o envolvi- regras dessa linguagem, a análise do período foi organizada a partir de
mento com o próprio contexto histórico. Toda forma de denotar carrega alguns aspectos destacados.
um conjunto de objetivos, de interesses, de usos e finalidades, que obede-
ce tanto a lógicas variáveis segundo o sujeito que profere o discurso - Dentre os muitos lugares de produção discursiva e os distintos pro-
uma conversa informal e privada, as diversas instâncias da justiça, o cen- cessos sociais de produção da identidade, a imprensa será neste capítulo
so populacional, o exercício da disciplina etc . - como ao próprio contexto focalizada. Uma torrente de publicações - periódicos - percorreu o Rio
6
histórico vivenciado . de Janeiro e outras cidades e províncias do Império naqueles anos .

32 33
A revolução na imprensa e a revolução na rua Multiplicava-se o alcance da palavra impressa. 11 Nesses casos a dimen-
são coletiva dos pasquins torna-se evidente . Esses impressos não sedes-
tinavam apenas a uma leitura individual ou isolada, mas sim a uma ence-
Houve uma pequena revolução da palavra impressa. Revolução no nação pública. Em 1832, houve um motim que reivindicava a volta de
conteúdo do que se imprimia, como conceito e valor utilizados. A "nossa um ministro:
revolução" era principalmente a "sempre gloriosa revolução do 7 de abril'', 7
cuja memória será disputada naqueles anos e nos seguintes, ou a "Revolu-
ção regeneradora de 7 de abril de 1831 ". 8 Poderia ter sentidos diferentes, [No dia 12 de setembro] houve no largo do Paço , na Porta do
como atesta a Aurora Fluminense ao argumentar contra aqueles que pre- Correio, um ajuntamento ilícito com motim e assuada; pedindo
tendiam que "nossa revolução" deveria ter o mesmo rumo que "a Revolu- os amotinadores a reintegração por meios ilegais do ministro de
ção Francesa de 1789": três de agosto, e a queda do ministro nomeado; afixando-se pro-
clamações impressas na Tipografia do Diário na parede do Cor-
reio a seu fim chamando às armas os cidadãos [.. .].
Para pôr a derradeira mão de semelhança, o sr. J. B. de Queiroz
toma o epíteto de Jurujuba, para o dar confusamente àqueles
indivíduos que na França se enfeitavam com o apelido de sans- Uma das testemunhas do caso contava que viu "um fulano conhe-
cullottes, e a outros que se intenta agora amalgamar sem razão cido por Fuão que parece ser branco" e que "na parede do Correio afixara
alguma com os sans-cullotes do Brasil, só porque em matérias uma proclamação convidando os povos às armas". Naquele dia, outros
políticas pensam talvez com alguma exageração, mas cujo cora- impressos foram também distribuídos à multidão. 12
ção não vai para o crime. 9
Referindo-se às transformações em que houve estreita participa-
ção da imprensa ao longo da época moderna, Roger Chartier faz a seguin-
O jornal O Jurujuba dos Farroupilhas começara a ser publicado te indagação: "Como, entre os séculos XVI e XVIII, nas sociedades do
em 7 de setembro de 1831. Ainda mais perigosa seria a "revolução do Antigo Regime, a multiplicada circulação do escrito transformou as for-
Haiti" com a qual mesmo um periódico como o Nova Luz Brasileira, que mas de sociabilidade, permitindo novos pensamentos e modificando as
se preocupava em divulgar um novo vocabulário político oferecendo em relações de poder?" . 13
suas páginas definições de "povo" e "nação", não queria se confundir. 10
Mantenhamo-nos atentos à historicidade das práticas da escrita e
Mas ao lado da disputa sobre o sentido da revolução, houve uma aos indícios de que esses periódicos não existiram apenas para serem li-
espécie de revolução no acesso à produção da palavra impressa. Ainda dos individualmente e em silêncio, mas eram também comprados em lo -
que não tenha sido acompanhada de uma transformação no mesmo ritmo cais determinados; eram portados e isso, na cidade de ânimos tão acesos,
no acesso ao domínio da escrita, as transformações da produção impres- não devia passar despercebido; eram provavelmente brandidos, como ar-
sa supõem o aumento da cultura letrada, ao menos em algumas das maio- mas invocadas.
res cidades, como o Rio de Janeiro. Não seria, porém, rigorosamente
necessário saber ler para estar envolvido com a prática da escrita . Leitu- Como salientou Laurence Hallewell, a introdução oficial, e efeti-
ras coletivas em torno de pasquins afixados em praças ou largos eram va, da imprensa em 1808 foi um ato paradoxal, pois após a proibiç~o de
atos que faziam parte do cotidiano daquelas disputas, não raro classifi- séculos, a própria Metrópole, em sua figura máxima, trazia, no boJO da
cados como "motins" ou "assuadas" pela redobrada vigilância policial transferência da Corte, a Impressão Régia. Mesmo tendo o monopólio de
supervisionada de perto pelo ministro da Justiça em 1831, Diogo Feijó. tudo que pudesse ser impresso, não se pode avaliá-la como mero instru-

34 35
mento burocrático. Publicava-se nela, ainda que sob a condição da censu- O teatro, o riso e a polissemia das identidades
ra prévia dos manuscritos, muito mais que papéis oficiais, leis e avisos.

Em 1821 teve fim o monopólio da Impressão Régia. As cortes de A imprensa, como a política, era um teatro. Em outras palavras: a im-
Lisboa decretaram a liberdade de imprensa. No Brasil, foi formulado em prensa, ela própria uma forma de representação do drama social, e funcionan-
1823 um projeto de regulamentação do tema, 14 e no ano seguinte a Consti- do como uma cena em que cada título constitui um atar-personagem, com suas
tuição do Império dedicou-lhe um parágrafo no artigo 179, excluindo a ne- falas, imprecações, notícias, denúncias, zombarias e convencimentos, teatrali-
cessidade de censura prévia: "Todos podem comunicar os seus pensamentos zava a política. Sem que haja sucessão temporal, mas simultaneidade, pode-se
por palavras, escritos, e publicá-los pela imprensa, sem dependência de cen- dizer que a política era tornada pública pela imprensa. De uma teatralização
sura, contanto que hajam de responder pelos abusos, que cometerem no exer- em um cenário privado, como na sociedade de corte, surgia uma ampliação do
cício deste direito, nos casos, e pela forma que a lei determinar". jogo- uma platéia que podia se tornar ativa, uma proliferação de autores, uma
enxurrada de impressos-, fazendo da rua um lugar de política.
Novas leis de imprensa se sucederam a essas, como a de 1830,
expressando já a preocupação manifestada pelo imperador, e mesmo por Infelizmente, restam poucos vestígios históricos da produção propria-
alguns homens da imprensa, com o perigo dos abusos da liberdade de pu- mente dita, que poderiam permitir recompor o funcionamento das tipografias,
blicar. O anonimato foi preservado - algo que, se incomodava, era tam- qual a relação entre impressores, donos de tipografias, e editores - que eram
bém cômodo a muitos-, sendo porém obrigatória a menção ao lugar, tipo- na época chamados de redatores- dos periódicos. Falta sobretudo informação
grafia e data de impressão. Estabeleciam-se detalhadamente os procedi- sobre os que tomavam a iniciativa de publicação dos periódicos efêmeros, que
mentos para a acusação de abuso da liberdade. 15 A medida contudo não foi permaneceram anônimos. 18 Dado o número de tipografias e o de títulos, publi-
capaz de fazer recuar a torrente de periódicos. car um periódico provavelmente tenha sido uma atividade relativamente aces-
sível. Como muitas vezes o ramo se confundisse com o das livrarias, não fica
A mudança não se manifestou só no campo das leis, mas também difícil imaginar também as tipografias como sendo mais que um simples dis-
no das tipografias. No mesmo ano de 1821, decisivo para a história de positivo mecânico, propiciando uma produção intelectual, encontros e deba-
Portugal e seu Império, o diretor do Diário do Rio de Janeiro obteve li- tes. Ao menos uma figura histórica pode ser citada como exemplo: Francisco
cença do regente para imprimir seu jornal, montando uma tipografia pró- de Paula Brito, membro fundador da Sociedade Petalógica. Funcionando na
pria, a Tipografia do Diário, que se tornou uma das maiores do Rio. O praça da Constituição, a loja de Paula Brito tornou-se um ponto de encontro
próprio Diário do Rio de Janeiro era uma novidade, não só pela sua peri- literário entre as décadas de 1840 e 1860. 19
odicidade, mas por publicar anúncios particulares e notícias locais: "até
então, quando se tinha que anunciar qualquer coisa ou novidade, pregava- Situada na rua dos Pescadores, a livraria de Pedro da Veiga, irmão de
se o anúncio manuscrito nas esquinas das ruas ou nas portas das igrejas, Evaristo, era também um lugar de debate político, sem dúvida mais seletivo e
ou apregoava-se pelas ruas o que se queria vender, alugar ou comprar" . 16 moderado que os encontros em torno dos pasquins.
O número de tipografias multiplica-se rapidamente desde então, em diver-
sas províncias do Império. Dentre os vários dramas representados nesse "teatro do jornalismo e da
política", encontraremos o das imputações e reivindicações de identidades raciais.
Conjugam-se intimamente duas transformações, a da imprensa e a Antes de abordá-lo diretamente, tratemos de algumas práticas essenciais a esse
da política. A estas se acrescentam e mesclam-se representações de identi- teatro. Um primeiro elemento consistia em sempre tomar como alvo ou referência
dade. Lançar um jornal não era simplesmente um ritual de iniciação na um outro periódico. Uns comentavam os atos dos outros, publicavam trechos, cri-
arena política- como muitos fizeram -, mas em si mesmo uma forma de ticavam-nos, procuravam apoios. Sem sombra de dúvida, a Aurora foi a campeã
compor uma identidade política. 17 seja das críticas, seja dos apoios. E o periódico respondia às imputações recebi-

36 37
das, bem como os demais. Aliás, é notável o tempo e o espaço dedicados a polémi- escreveu o Verdadeiro Patriota, e muito nos insultou chamando-nos Cabelos In-
cas que quase só diziam respeito à própria vontade de polemizar. subordinados? Quem disto souber, e nos queira esclarecer, receberá alvíssaras"Y

A noção de "teatro do jornalismo" foi delineada pelos próprios redato- Se o anonimato não fosse uma das armas desse teatro, isto é, se
res .20 Para bem explicar sua relevância nos anos próximos a 1831, pode-se citar todos soubessem implicitamente quem eram os autores, tais preocupações
os adjetivos que atribui à imprensa Stanley Stein: prolífera, vociferante, desen- não teriam relevância.
freada.21 É verdade que ela também era moderada e elegante. Mas a primeira
marca sinaliza a própria dinâmica desse jogo: a proliferação de títulos, em meio A legislação sobre a imprensa paulatinamente forjou a noção de autor,
aos títulos mais estáveis. A quantidade é essencial pois é o que desequilibrava o imputando-lhe a responsabilidade pelos escritos. Não qualquer material escri-
jogo, indicando não o efémero negativo (o que não persiste, ou que perece), mas to, mas sim o material impresso, e que exatamente por isso fosse lido por certo
um efémero que carregava a novidade ou o inesperado. A mobilidade, a trans- número de pessoas. 25 Foi uma "apropriação penal dos discursos", indicando
mutação, a novidade, mesmo que acontecendo dentro de um certo horizonte de um processo em que a afirmação da identidade do autor esteve ligada à censu-
expectativas, possibilitavam a entrada em cena de personagens novos. ra e à proibição dos textos considerados perigosos. 26 Esse fato não pode deixar
de ser relacionado a uma dimensão essencial do anonimato: seu envolvimento
Nem sempre eram absolutamente conhecidos os autores, e especula- com as expectativas na definição do cidadão político. O anonimato forjava
ções e imputações eram comuns. Na seção "Ferroadas" do jornal O Lafuente, brechas, ainda que arriscadas, nas tentativas de controle sobre a imprensa.
publicava-se: "O R. [redator] do Indígena [do Brasil] declara que ele não es-
creve O Cabrito porque sendo inimigo deles, como bastante mostrou insultan- A dimensão efémera é difícil de ser avaliada mais exatamente na do-
do com esse apelido o sr. Lafuente no ato de sua prisão, não havia [de] pôr no cumentação, uma vez que as coleções atualmente disponíveis são incompletas.
periódico, que é a menina de seus olhos, um título que detesta"Y Se por um lado pode ser próprio dos pasquins o número único, há indícios de
uma duração um pouco maior para títulos dos quais só restou o número inicial.
Em estilo jocoso, o Sete de Abril publicava uns versinhos sobre João Ba- É curioso que o termo periódico tenha sido, apesar de tudo, constantemente
tista de Queiroz, atribuindo-lhe a autoria de alguns títulos, que terminavam assim: empregado. Alguns títulos definiam-se mesmo pela liberdade na periodicidade.

Por meio de levantamento na coleção de periódicos raros da Bibliote-


Lá vai ele! Está feroz! ca Nacional e do Arquivo Nacional, chegamos aos seguintes números de títu-
Lá vai o enredador; los existentes na cidade do Rio de Janeiro, em cada ano, entre 1830 e 1833: 12
Tareco restaurador em 1830; 45 em 1831; 36 em 1832; 51 em 1833. Após o ápice do último ano,
João Batista de Queiroz! a proliferação cedeu lugar a um silêncio.
Pela pena e pela voz,
Não sabe mais que insultar, Atuar no "teatro do jornalismo" era o caminho para a atuação no teatro
Se por doido quer passar, político. Freqüentemente, o título de uma folha equivalia ao nome de seu autor-
Agarre-se o mariola, ou "redator" como era mais comum-, ocorrendo uma personificação dos títulos.
Vistam-lhe uma camisola, A Aurora Fluminense, O Jurujuba dos Farroupilhas, O Cabrito, O Independen-
E vá nas palhas berra. 23 te etc. não eram meros títulos, mas figuras, personagens da "cena periódica" e
portanto da cena política. Reclamava o jornal O Exaltado - que curiosamente
procurava um "estilo popular" e uma "linguagem franca" -de um desconcerto
Outro trecho de especulações mescladas a imputações e insultos: "O dessa cena: "Os Republicanos vão de encontro ora a estes, ora àqueles: a Astréa
redator do Homem de Cor, do Adotivo, do 7 de Setembro, será o mesmo que fala : a Nova Luz prega: o Tribuno grita: o Independente ralha: a Aurora intriga;

38 39
cada um no tom, que lhe insinua a comunhão a que pertence. Reina a intriga, tarde, à noite, vive na ociosidade mais profunda discorrendo sobre política; e
continua o Despotismo, tudo são paixões particulares ... "Y que política!". 31 O mesmo estranhamento era expresso em outros periódicos,
como se, fora de espaços delimitados e de certos códigos compartilhados, falar
Ainda sobre a personificação dos títulos, um indício digno de nota é a de política fosse uma pretensão descabida. Já não se podia, porém, conter uma
forma como a documentação judicial sobre as "garrafadas", em março de 1831, onda da qual a imprensa retirava sua razão de existência. Seria importante, aos
designou dois dos envolvidos : não pelo seu nome, mas como "o Repúblico" e olhos das posições semelhantes à da Aurora, temperar a linguagem. A livraria
28
"o Tribuno". Tanto o relato da autoridade policial como algumas das teste- resguardava-se da desordem do teatro da rua: os botequins, armarinhos, boticas ...
munhas assim se referem a essas duas figuras, ou a esses personagens. Publi-
car um jornal era uma espécie de batismo político: ganhava-se um nome. A metáfora do teatro poderia transformar-se quase em um gênero da
imprensa periódica, como parece ser o caso de O Teatrinho do Sr. Severo. 32 O
Olhando por outro viés, as "publicações incendiárias" 29 tornavam pú- formato de periódico (tamanho, cabeçalho, periodicidade) confundia-se então
blicas as questões políticas, e o próprio jogo político . A forma mais explícita com este texto organizado em diálogos, cenas, atos, personagens. Estes eram:
desse mecanismo era quando se publicavam os debates na Câmara dos Depu- Xico Bandurra ("militar e alta personagem") e sua esposa d. Fufia. Os criados
tados, discursos de certos membros, posicionamentos sobre os projetas discu- chamavam-se Severo e Lagartixa. Outra "alta personagem" era João Burro, ao
tidos. Publicavam-se também decretos, leis (como o Código Criminal em 1830). ]ado de Ripanso ("conselheiro privado"), Aurélio e Marinho ("ministros con-
Mas o impresso não era simples intermediário, sobretudo quando os usos da fidentes") e Vergoto ("ministro discordante"). Personagens apenas semifictí-
política se diversificavam, e quando se pretendia ser mais que espectador. cios33 eram antes caricaturas através das quais se ludibriavam a incompetência
política, o desleixo, a rede de influências e presentes recíprocos; sobretudo
Como nas novelas machadianas, freqüentava-se o teatro não tanto para escarnecia-se da hierarquia militar, não em seu princípio- pois o cômico nem
ver, mas também para se fazer visto, e a platéia expressava seu próprio charme sempre contesta a ordem quando a pinta em cores ridículas -, mas por estar
teatralizado. Se, por um lado, os atores da imprensa representavam entre si e desviada, associada ao enriquecimento ilegítimo, como seria o caso de Xico
os personagens eram a própria platéia, por outro a materialidade das tiragens, Bandurra, ou "gato ruivo", como o próprio apelido indicava. (Bandurrear
das publicações, das permutas, das assinaturas, dos pontos de venda, a leitura significa viver ociosamente, vadiar, tocar bandurra). Lagartixa, a criada, é
coletiva e mesmo a afixação em lugares públicos, continuando costume anti- quem sugeria: "E que mal ia a meu amo, sem meter prego nem estopa, e só
go, indicava que a platéia era mais difusa. Como a do teatro, podia ser uma por ter entrado como tolo em revoluções, achar-se-ia senhor de uma soma,
platéia pouco ou nada comportada. A palavra impressa formava opinião, exi- que nunca seu bisavô ganhou em toda a sua vida".
gia participação e cumplicidade, captava apoios.
Sem qualquer aptidão intelectual, bebendo cachaça, Bandurra seria
As ruas da cidade invadiram a política. Ou foi uma forma supostamente apenas manipulado por Ripanso, um "vende folhinhas". Aliás, a alcunha Ri-
nova de fazer política que invadiu as ruas? 30 Dessa tensão surgiram os empregos panso (que significa preguiçoso 34 ) aparecia em outros periódicos como O Eva-
de "mulato", "homem de cor", "pardo"; surgiram as cores dos cidadãos. risto35 e O Meia Cara. A esposa aflita teme que a reforma da carreira militar do
marido possa levá-lo à ruína, junto com João Burro, passando a ser tratados
Ao mesmo tempo em que pretendia contribuir para a divulgação de um "como negros", o que provavelmente significava que seriam tratados como
ideário de participação política, a Aurora Fluminense estranhava e temia sua escravos, mas no sentido político que em geral essa palavra assumia nos dis-
vulgarização. Em uma de suas edições, o texto lamentava o comportamento de cursos da imprensa: ausência de liberdade e autonomia.
pretensos cidadãos que, em vez de se ocuparem com a riqueza da nação, aceitan-
do para isso a contribuição européia, e seguindo o exemplo dos "americanos do Vem da criada, mais uma vez, a opinião sensata. Condenando as ações
Norte", gastavam seu tempo com atitudes condenáveis: o "nosso patriota por da família a que serve, Lagartixa diz: "esta gente parece que perdeu toda a
excelência, nos armarinhos, nas boticas e mesmo nos botequins de manhã de vergonha, são mais escravos do que negros".
' '

40
41
Os criados ocupam, entre os personagens, o papel da sabedoria e do E o Conselheiro acrescenta: "É justo: uma pitada boa tem seu lugar, e
equilíbrio. Um deles é o dono do teatrinho, e lhe empresta o nome. O teatrinho, quando é em boceta alheia tanto melhor!". Além dessas pitadas, a pinga circu-
aqui, é impresso, simulacro de vários outros teatros particulares espalhados pela lava: Gerebita não era o único beberrão. Ripanso procurava encaminhar me-
cidade, mantidos por amadores, como o Teatrinho do Largo de S. Domingos,36 o lhor a reunião:
Teatrinho do Largo do Rocio, que entre 1815 e 1817 disputava a audiência com
o Real Teatro de São João, e a Sociedade do Teatrinho da Rua dos ArcosY
[... ]vamos sempre tratar de objetos legais, que interessam cá aos nos-
No mesmo teatrinho impresso do sr. Severo seria representado um en- sos; cá está o nosso financeiro presente, e o seu novo colega que deve
tremez, As obras de Santa Engrácia, cujos personagens são igualmente figu- ser ensaiado na matéria; temos também aqui vários liberais entendi-
ras da hierarquia militar e política. Gerebita, também bandurra, também be- dos no negócio ; ele é de espalhar capitais: isto de capitais empatados
berrão, será mais uma vez personagem desse entremez (peça burlesca que ter- não nos convém, porque são o mesmo que bens em mão de frades.
mina em música) e é ele quem comandará, ao final, não propriamente a músi-
ca, mas uma divertida e nada inocente "embigada" . Seus interlocutores são:
Burro Mono ("colega de Gerebita, e grande personagem"), Estouvado ("co- Em determinado momento, Paulo Baeta sai para chamar Mandu
mendador, ministro dos chã-chãs"), Orelhão ("dito da chicana"), Cachorro Tamina, "bagaço de cana chupado pelo Chalaça", "jesuíta", "findinga ta-
Grama ("dito do interior"), novamente o preguiçoso Ripanso ("conselheiro, e baquento" e "corcunda", que estava jogando cartas com pedreiros e apren-
prognóstico"), Saturno ("militar d'água doce, irmão de Orelhão"), Mestre Bento dizes, em provável referência à maçonaria que permite advinhar o sentido
("caboclo assassino, empreiteiro de valas e picadas"), Pó Fulminante ("mes- da palavra " obras" no título.
tre-de-obras"), Mandu Tamina 38 ("dito"), Mestre Trino ("pedreiro"), Travesso
("apontador"), Paulo Baeta ("chichisbéu, e caudatário de Saturno"), João da Após a reunião de "trabalho", todos terminam em uma indecente farra,
Pólvora ("artista") e Um aprendiz de pedreiro. com laivos sensuais entre Estouvado e Ripanso. Paulo Baeta foi o mestre-sala,
distribuiu os instrumentos, pois era entendido no assunto ("Ah! bom tempo
A cena é uma "sala ricamente mobiliada", onde acontece uma conversa. que passei na fazenda de meu pai, que belas embigadas dei, era um fado rasga-
Ao lado dos temas da corrupção, da inépcia que ridiculariza os "grandes persona- do toda a noite com a escravatura que tenho."). Estouvado, ministro dos chã-
gens" ("a nossa pátria é a nossa mãe, e com seus filhos deve ela repartir boa fatia", chãs, dançava com o Conselheiro:
dizia um dos convivas), a farsa apresenta vários trechos picantes, como este, em
que à interpelação de Ripanso sobre o silêncio de Burro Mono, este responde:
Muito gosto de dançar. .. assim meu bem .. . venha saindo meu
Ripanso , quebra meu negro, derrete candinha ... miudinho ... miu-
O que tinha eu de dizer, sr. Ripanso, se tudo o que observo nesta dinho ... moderado ... moderado ... furrundu ... furrundu ... furrun-
companhia é tão moral , que me enche as medidas: já não conhece du ... traca ... traca ... traca .. . huhu ... por baixo ladrãozinho ... es-
o meu gênio? Eu sou calado, com minha comadre e vizinha da ses pezinhos ... a barriguinha ... a barriguinha ... toma côco ioiô.··
rua mesmo eu nunca converso senão para pedir-lhe a boceta a assim meu bem ... meu Ripansinho ... machuca meu negro ... es-
cada passo; agora eu estou-me lembrando disso : o sr. Gerebita dá maga-me este palacar. .. que tenho aqui no peito ... assim ... der-
a pixoleta pela sua pinga (do que eu também gosto), porém , sr. rete-me todo já ... toma embigada ... gangula [sic].
Ripanso, o tabaquinho de minha comadre tem um sainete que logo
me faz chegar o catarro à venta: com isto me ocupo, e assim vou
moralizando esta gente, eu e o nosso Cônego, que coitado tem Acaba em êxtase coletivo a farra, aqui expressa em uma linguagem
sete bocetas de óleo vermelho, para si, e para dar aos amigos. que trocou o discurso indireto por uma fala ritmada , cheia de sensualidade

42 43
através de palavras que dançam. O fato de tratar-se de uma peça, de um discur- Lagartixa:
so organizado em forma de diálogos, cenas, um pequeno enredo, não deve Eu não posso meu Severo
obliterar sua materialidade de palavra escrita, que talvez nesse caso seja o Ter uma alma de cortiça
próprio fim deste discurso. Dizendo de outra maneira: esse discurso não tem Se a Igreja vai por terra
como finalidade uma única encenação, que lhe completaria o objetivo; mas, Adeus pechincha! Adeus missa! [ .. .]
em si, parece ser um uso pouco convencional da palavra escrita e impressa.
Severo:
Não é simplesmente uma peça de teatro que foi impressa, é uma práti- Vasconcelar, minha bela
ca cultural- o teatro burlesco- que se apropria da crescente difusão dos peri- É coisinha delicada!
ódicos. Por outro lado, a linguagem dos periódicos é invadida por essa orali- É pechincha que tem feito
dade e dramatização. Muita gente moderada!
[ ... ]
Tais pecinhas em forma de periódico, farsas ou entremezes, encontra- Ora taques tataques.
ram sua fonte em tradições culturais praticadas no Rio de Janeiro desde o tem-
po colonial, prezando as farsas burlescas, que difundiam o "chiste desbragado Severo:
insultuoso e baixo". 39 Os teatrinhos eram comuns, e gozavam de popularidade. Eu quase estalo de riso
Assim, os pasquins talvez transponham, para a linguagem e materialidade pró- Quando vejo no Brasil
prias, uma cultura de zombaria da política, das hierarquias sociais, do parado- As mil caras que tem feito
xal liberalismo que era encenada nas comédias que compunham o variado pro- Certa gentinha d' Abril.
grama teatral. Os entremezes, de origem lusitana, apresentavam pequenos en-
Ora taques tataques.
redos "descosidos", segundo Vilma Arêas, na medida em que não havia uma
unidade dramática mais consistente, e que terminavam nesses "números de dan-
Lagartixa:
ça sensual ritmada. A transposição vale também para os lundus, ou fados, em-
Quando a aleluia chegar
bigadas, números meio musicais e dançantes que também faziam parte da pro-
Que coisinhas se verão!
gramação . Na primeira "peça" citada, há uma "cantata gostosa" e um "lun-
Uns a correrem sem sangue
dum", este cantado por Severo e Lagartixa, tematizando a inversão da hierar-
Outros de calções na mão.
quia social. O estilo indica que tal texto seria oralizado, dramatizado:
Ora taques tataques

Severo: Severo:
Victor sério Lagartixa! Então nós ambos unidos
Leve o diabo paixões! Por um laço verdadeiro
Imitemos nossos amos Veremos esses bandalhos
Não sejamos toleirões! Como porcos no chiqueiro.

Ora taque tataques Ora taques tataques


Vamos tafular. Vamos tafular
E que viva quem sabe E que viva quem sabe
Bem vasconcelar. Bem vasconcelar. 40

44 45
Mais um indício da cultura política no teatro é a comédia de Martins dúvida, é um racha na estrutura do mundo, na clássica natureza ordenada. Como
Pena, O juiz de paz na roça , escrita, segundo Darcy Damasceno, em 1833 , sugere Georges Balandier, o bufão indica que "as classificações impostas pela
embora não tenha sido logo encenada, pois o autor, então com 18 anos, teria sociedade e pela cultura podem ser confusas". 45
temido pela sua ambição de desfrutar um emprego público (o que ele, ironica-
mente, conseguiu poucos anos depois) . Seu desfecho é um festivo fado, cujo
anfitrião declara: "Essa casa não é agora do juiz de paz - é de João Rodri- A ordem social parece ter todas as regalias, compreendida a cum-
gues".41 Em seu decorrer, vários movimentos da presença do Estado (o recruta- plicidade das consciências, fora dos períodos críticos. No entanto,
mento, a guerra para garantir a unidade nacional, as eleições, a "justiça" do juiz ela é vulnerável; detrás da fachada das aparências, trabalha a desor-
da paz, a Constituição, a Assembléia Provincial) tornam-se matéria de riso. dem, o movimento transforma e a usura do tempo degrada. O jogo
da verdade é muito perigoso; embora o bufão tenha licença para
O célebre periódico Aurora Fluminense respondia aos pasquins lança- dizê-la, é o modo da irrisão que a torna menos ofensiva. Os pintores
dos quase a cada dia ou semana, bem como procurava dar conta do que se durante muito tempo tiveram como temas as 'cenas de poder', in-
publicava, por todo o Império, em termos de folhas mais sérias. De alguma troduzindo grotescos, doidos, bufões ou mascarados. Isto é o rever-
forma, este deboche parecia eficaz. Não era Ripanso, o "vende folhinhas" , so do aparato , do poder seguro de si mesmo e de sua grandeza.
uma sátira lançada ao próprio Evaristo da Veiga? 42 Entretanto, essas figuras não permanecem somente como nascidas
do artifício e da arte, elas restituem uma realidade que não é própria
O ridículo era um meio para se fazer ouvir na Corte. Uma forma de nem de uma época nem de uma civilização.<6
encarar a política, que criaria uma cultura política singular, em um momento em
que os limites do escárnio não estariam fechados em colunas, seções, ou mesmo
folhas específicas. Mikhail Bakhtin, a partir de sua própria concepção de histó- A linguagem bufona dos pasquins e correlatas tematizava a desigual-
ria , vislumbrou as diferentes manifestações da cultura pop~lar, marcadas pelo dade racial (mesmo sem tematizar diretamente as raízes desse problema, os
gosto do baixo, do grosseiro, do escárnio, como exercendo uma força que em fundamentos da hierarquia social). Formulava questões sobre como deverá
seus critérios adjetivava de revolucionária, uma vez que gestava a mudança, a existir a sociedade política, dados os desiguais sentidos do ser brasileiro.
transformação, direcionando suas forças contra a cultura oficial séria e sóbria. 4 3
Sob o formato comum do periódico, encontram-se diferentes gêneros,
. . O ridículo não seria uma forma de conhecimento? Martins Pena, espe- ou diferentes formas de dispor do discurso escrito: a disposição formal, os te-
Cialista no tema, questionava (e afirmava) a relação entre riso e verdade: "Se mas, o tratamento dado aos temas. Pelo viés do sério, pelo ridículo, pela zomba-
não nos podemos guindar à lírica sublimidade ou à grandíloqua eminência da ria . Caçoar o comportamento. Ou elevar a linguagem e escrever com decência,
epopéia, fiquemos na rasteira e singela narração da verdade .. . Mas como, se a como preferia Evaristo da Veiga. Procurar convencer ou procurar deleitar os
verdade aqui parece peta? ... Como, se a verdade aqui, para não provocar in- leitores. Dentro do estilo cômico, encontra-se igualmente tanto um texto que na
dignação , carece de ser auxiliada provocando bom frouxo de riso?". 44 disposição formal não se afasta demais do discurso sério (um texto que se subdi-
vide em seções, por exemplo), como a forma do diálogo entre personagens fictí-
Complementam-se a ambigüidade do riso, a incerteza da ironia (ou cios, ou peças na forma teatral (como vimos, com personagens, atos, cenas, diá-
sua posição oblíqua) e as indefinições da classificação racial, nacional, étnica logos, e um enredo). Também se encontram versos satíricos, como as séries de
et~. Através do riso, o pasquim tematiza a identidade, explora a incerteza das Simplício Poeta. Um deles intitulava-se Simplício Poeta, jornal sem data, sem
ongens sociais . Ainda que esse não seja necessariamente seu objetivo final hora e sem preço certo, publicado em benefício dos doidos. 41 E havia ainda o
(que. podena ser reconstruir uma identidade, ou restaurar uma moralidade, na Simplício da roça, A verdadeira mãe do Simplício ou a Infeliz viúva peregrina,
medida em que a ironia sempre se reveste de um tom sobranceiro, uma pergun- O neto do Simplício (estes do ano de 1831) e Afilha única da mulher do Simplí-
ta feita por quem já conhece a resposta), a brecha é inevitável. A ironia é a cio (de março a abril de 1832). Este soneto é do primeiro título:

46
47
Os perversos aos quais dói o cabelo, Como em muitos outros periódicos, a atuação dos militares é uma importante
Por causa das ações mal enroladas, reivindicação de O Filho da Terra . Trata-se, em suma, de tentativa séria.
Com gritos, e palavras enfeitadas,
Aos bons querem quebrar o tornozelo. Alguns dias depois era publicado O Veterano, ou o Pai do Filho da
Terra, vendido na loja de livros de Evaristo da Veiga, indicativo de sua posi-
A América do Norte é seu modelo, ção de proximidade diante do governo regencial, bem como da inquietação
Mas, da sua eloqüência nas rajadas, quanto ao defendido direito de insurreição do "povo". Tudo se passa na forma
Vêm-se na mesma arenga encastoadas de um diálogo entre o Veterano e seu Amigo. O primeiro teria aparecido repen-
Pretensões de homem livre, e de Camelo. tinamente na Corte, e confessado estar ali em função de um filho, até então não
conhecido pela sociedade como tal, mas sim como seu afilhado. O Amigo en-
Consultando somente seus botões tão pergunta (afirmando): "que o dito seu afilhado era filho de uma preta sua
Jamais à reflexão dão exercfcio, escrava que levou tanta surra por comer terra? Não era v. m. o mesmo, que lhe
E obram sempre quais fofos toleirões. chamava o filho da terra, por ser filho da dita preta, e a quem chamavam a
terra por alcunha?".
Farinha eles não fazem c'o Simplício,
Que com suas jocosas mangações O Amigo fica surpreso ainda por ser o tal veterano "tão branco" e seu
Desmascara estes rábulas do vício. filho ter saído "tão fusco ". O Veterano responde que a verdadeira mãe do me-
nino não era a escrava, e sim uma sua amante, "alva como a neve". (Parece que
nos deparamos aqui com um furo no roteiro, pois como teria o menino saído
Alguns temas que aparecem nesses versinhos são recorrentes. Por exem- "fusco"? A não ser que seu objetivo fosse afirmar que mesmo com pais bran-
plo, a junção do cabelo a ações "mal enroladas", sugerindo cabelos enrolados cos tal possibilidade existiria.)
sinal físico possivelmente atribuído a quem não fosse branco.lnsulto semelhan~
te foi o de "Cabelos Insubordinados", em trecho já citado. 48 Vemos também a O menino foi criado com toda a atenção pelo Veterano. Foi mandado à
crítica tanto à violência das "rajadas", quanto à inspiração norte-americana. escola, mas o mestre não lhe ensinou as primeiras letras, pois ocupava todo o
seu tempo em "ler gazetas" e discutir política com "alfaiates". Após algumas
Vejamos outro exemplo em que ao ato de construir uma identidade aventuras educacionais, o Pai tencionava mandá-lo a Paris para estudar, po-
sucedeu uma zombaria e desqualificação. O Filho da Terra, publicado em 7 rém "toda sua inclinação e vontade era aprender a sapateiro". Logrando em-
de outubro de 1831, e prosseguindo até fevereiro do ano seguinte, teve como barcar o filho, tampouco teve sucesso seu zelo paterno:
resposta o título O Veterano ou o Pai do Filho da Terra. O primeiro propu-
n~a em sua epígrafe o direito à insurreição nos casos de um governo tirano,
~Itando o artigo 35 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: Depois de andar por lá mais de seis anos , e de me gastar mais de
Quando o governo viole os direitos do povo, a insurreição é para o povo, e seis contos de réis em toda a qualidade de extravagâncias, segun-
para cada porção do povo, o mais sagrado dos direitos, e o mais indispensá- do exatamente me foi informado pelo meu correspondente, veio
vel dos deveres". 49 pior ainda do que foi; porque antes de ir era louco por mulheres,
debochado, e extravagante ; mas agora veio com presunções de
O número inicial considera o episódio dos "tiros no teatro", que tinha sábio, tão vaidoso , e açucarado, que me parece um Narciso. Gas-
acabado d~ ocorr~r ~m 28 de setembro. O Filho da Terra responsabiliza o juiz de ta segundo me consta horas e horas ao espelho; perfuma-se com
paz Sat~rmno Oliveira (conhecido na cultura periódica como "Saturnino Oleré") essências de rosas , traz espartilho segundo o costume das mulhe-
pelo cnme de ter atirado contra a multidão, atingindo mulheres e crianças. 50 res , enfim vem um asno quadrado , um perfeito papelão.

48
49
Chegara porém em algo modificado, agora "sua mania é querer ser voga: esta é a tática que tenho seguido desde que me entendo; e
escritor público" . não me tenho dado mal com ela.
-Porém, João, e se ... se ...
Ora, seria essa, na perspectiva zombeteira, a identidade do "Filho da Ter- -A h! ah! ah! ah! ah! Para então já eu tenho feito cálculos; e v. m.
ra" : uma origem obscura, um ignorante de gramática, efeminado, um filho ingrato. verá como hei de ir com vento em popa. Olhe, quando se tratou
Em suma, um desqualificado para a carreira de "escritor público". O Veterano das nomeações de S ... , eu tive inimigos, que votaram a meu fa-
inquietava-se, julgando ocorrer uma vulgarização da produção escrita, mas não de vor: tais foram meus artifícios! Contar-lhe-ei um caso, que vem
qualquer escrita e sim da escrita pública, coletiva, política. Não é ausente de signi- a propósito. Minha mulher, logo depois do nosso casamento,
ficado o fato do jornal ser vendido na livraria "moderada" de Evaristo da Veiga. entrou a parecer desgostosa, por me não ouvir nunca falar em
pais e avós etc. etc.; receando que (pobre inocente!) quem me
não conhecesse a ascendência (é boa asneira!) supuseste não ser
Clube no melhor sentido era a livraria da rua dos Pescadores, eu oriundo das principais famílias do Brasil: porém hoje está
pela qualidade da gente que a freqüentava, pelo tom das conver- tão crente no [sic] meu puritanismo, que fala em farroupilhas, e
sas , pelos assuntos preferidos, pela urbanidade, pelo respeito em gente ordinária, com uma frescura, que faz gosto! Meu ami-
recíproco. [.. .]Dele [de Evaristo] não se aproximariam os rapa- go, esta é a grande vantagem que eu tenho tido nos meus negó-
zes da facção exaltada, adeptos da República e da federação e cios; de maneira que sempre saio com partido em todos eles .5 2
tão xenófobos que lançavam a moda dos chapéus de palha de
taquaraçu, como sinal de repulsa às coisas estrangeiras. 51
Esses temas voltarão a nos acompanhar.

A origem social obscura, a bastardia, a acusação de ser mestiço, a falta


de uma ascendência honrada compõem temas prediletos da ridicularização . Os atributos do cidadão mulato
Outro diálogo em forma de escárnio, em relação à identidade racial de um
notável (escondida pelas reticências) , foi publicado no Martelo:
Nos periódicos, os termos que designavam identidades raciais conti-
nham muito mais que suportes naturais . Acredito que não haveria maior inte-
-João, por que és tu ingrato para com o senhor. .., a quem deves resse em desvendar no signatário do periódico intitulado O Homem de Cor os
os maiores benefícios, pois te elevou aos grandes cargos, que sinais naturais de uma determinada ascendência. Antes, interessa-nos como o
hoje ocupas? termo foi dotado de certa significação, como foi preenchido de valores, atribu-
- O benefício maior que eu tenho recebido desde que vim ao tos, e se tornava o caminho para uma certa ação política. O termo " homem de
mundo , foi de meu pai, que nascendo eu escravo, apresentou-se cor", ou "mulato", foi investido de certa força, em um processo que recriou um
ali na freguesia de Santa Rita, e deu algumas poucas de loiras signo, retirando-o do lugar comum e repetitivo.
pela minha liberdade, na ocasião em que me batizei.
-Mas depois desse benefício, João , que mais te fez teu pai? A epígrafe do jornal era a citação de um artigo constitucional: "Todo
- Mandou-me para Portugal, onde estudei à sua custa. cidadão pode ser admitido aos cargos públicos civis e militares , sem outra
-E depois, João , o pai do senhor. .. não foi quem principiou a dar diferença que não seja a de seus talentos e virtudes".
impulsos a tua carreira, que depois o filho tanto abrilhantou?
- Ora, é boa história: até vai v. m. buscar defuntos para meter O redator procurava combater uma afirmação de Manuel Zeferino dos
na conversa! Meu amigo, o pai , já morreu , e o filho hoje não Santos, então presidente da província de Pernambuco, que continha críticas à

50 51
qualificação dos oficiais da Guarda Nacional, e propunha a separação entre os Lima e Silva, Carlos Miguel de Lima (e irmão do futuro duque de Caxias, Luís
batalhões "segundo os quilates da cor". O mesmo usara expressões curiosas para Alves de Lima e Silva, que desde 1831 ocupava um posto de comando na orga-
retratar as clivagens sociais, opondo "habitantes pacíficos e que têm a perder", nização policial), episódio que ocupou as páginas impressas de vários jornais,
que "fogem de ajuntamentos populares", de um lado, e, de outro, o eufêmico dividindo os partidos de opinião. A Aurora Fluminense procurou retirar o con-
"gente que lisonjeia o povo". Ora, um dos principais interesses defendidos pelo O teúdo político do assassinato, ao afirmar que era do campo da honra familiar,
Homem de Cor era exatamente a participação naquela instituição, e a essas cliva- ferida pelo redator, que teria dado tempos antes um depoimento a uma autorida-
gens e divisões replicava com o seguinte argumento: "o título 2° da Constituição de judicial no qual as irmãs do regente teriam sido caluniadas. A Aurora tentava
marcando os cidadãos brasileiros não distinguiu o roxo do amarelo o vermelho do equilibrar a lei pública e a lei familiar: "Nós não podemos aprovar uma ação que
preto, mas o ditador Zeferino, na pátria dos Agostinhos, e Camões, ousou em me- as leis condenam, mas perguntamos a qualquer pai, esposo, ou irmão 9 que fa-
noscabo da grande Lei cravar agudo punhal em os peitos brasileiros". zia, se acerca do que lhe é mais caro, de pessoas de um sexo que não tem defesa,
um bandido, um insolente usasse da linguagem que usou em público, perante um
O jornal duvidava da possibilidade de se dividir a Guarda em "intitu- juiz, o indivíduo que foi acutilado pelo sr. Carlos Miguel de Lima?!". 58 Ao contrá-
lados brancos", "mulatos" e "pretos", e procurava lamentar a falsa aliança dos rio, O Homem de Cor refutava o conteúdo e a própria existência desses documen-
"moderados": "Quando se há mister dos homens, todos somos patrícios, a ter- tos, e procurava denunciar a impunidade de crime injusto. Mais uma vez procura-
ra é nossa, fingem-se cartas de liberdades, forças no arsenal; quando servidos: va afirmar sua identidade: "Criminoso seria o homem de cor, se na crise mais
mulatos e pretos tomai vosso lugar, sois maioria atrevida, gente de chinelo e arriscada, na ocasião em que os agentes do poder desembainham as espadas dando
cacete". O Homem de Cor declarava ainda a harmonia em que têm vivido os profundos golpes na Constituição, na Liberdade, e em tudo que há de mais sagra-
"exaltados" e os "brancos não moderados". 53 Aqui vemos a comum associação do no enjeitado Brasil, guardasse mudo silêncio, filho da coação, ou do terror". 59
entre a cor e a posição na política. Em termos mais específicos (ou corporati-
vos), a preocupação do Mulato é o desprezo a que estariam submetidos alguns Foram freqüentes tais momentos de violência, sempre envolvendo di-
oficiais, verdadeiros patriotas em seu entender, citados textualmente: o briga- mensões políticas, hierárquicas, identitárias, mostrando que o discurso liberal
deiro Paula, o alferes Bacelar, o capitão Solidônio, Rangel, Pimenta e outros. 54 não era seguido à risca, como a Aurora involuntariamente nos faz perceber. O
O periódico O Evaristo também citava esses nomes, que deveriam ser resguar- Homem de Cor contrapunha à violência a "espada justiceira da opinião públi-
dados em função de sua "honra militar". 55 ca".60 O Evaristo fazia afirmação semelhante: "Pensará o sr. Lima que com a
sua faminta espada, imporá silêncio à Liberdade de Imprensa?"Y
É curioso que o argumento que garantiria a inexistência da divisão dos
cidadãos pelas suas cores não incide sobre o campo racial ou natural, mas sim Em 1833, também foi tema de grande agitação na Corte e na cena
surge do processo liberal, legal. O descarte do argumento racial em benefício periódica a prisão de Maurício José de Lafuente, outro "escritor público". Além
do argumento político está no cerne dos fundamentos teóricos do discurso do de detido na presiganga, foi ainda recrutado para a Marinha: "teve o infeliz
jornal, tornando este uso bastante especial em comparação com a visão pre- homem de cor a sorte de ser marinheiro, depois de ter sido cadete, e depois de
sente da hierarquia da sociedade como naturalmente instituída. ter exposto sua vida em defesa da liberdade". 62

Uma pequena nota procurava esclarecer o lugar que assumiria no tea- No ano anterior, Lafuente já havia sido detido e submetido a processo
tro do jornalismo, como era comum acontecer com um periódico inaugurado: judicial pela acusação de ter se envolvido em um "motim e assuada" no largo
"O Homem de Cor como é livre sairá quando quiser sem licença do branco do Paço, onde se defendia a volta do gabinete de 3 de agosto, mesmo que para
presidente de Pernambuco; salvo se algum Roldão acutilar o redator!". 56 isso fosse necessário ir o "povo às armas", e onde um impresso, contendo a
proclamação, afixado na porta do correio, foi o ponto de referência do movi-
Fazia, com essa advertência, referência ao assassinato do redator do mento. Sob a vista grossa do juiz de paz gritaram-se vivas ao próprio juiz, à
Brasil Aflito, Clemente José de Oliveira,57 pelo filho do regente Francisco de "memória da Câmara dos Deputados" e à "maioria do Senado". Uma das teste-

52 53
munhas afirmou ter o impresso saído da Tipografia do Diário. 63 Essa referên- ça de cor e isto entre os homens livres! A Constituição tantas
cia é importante, pois quando um impresso anónimo tivesse seu teor conside- vezes desflorada pelos moderados, é hoje apenas letras de que
rado subversivo, o tipógrafo é que deveria indicar o autor ou ser responsabili- apreço nenhum fazem os liberais por excelência. Seria melhor
zado pelo "abuso da liberdade de imprensa". que tomassem o conselho do Homem de Cor, que não exaspe-
rassem os mulatos sempre amigos da lei e da ordem, e se deixas-
Segundo O Homem de Cor, Lafuente teria a "pecha de ser mulato" - sem de distinções que em verdade são fatalíssimas, mormente
algumas testemunhas do processo de 1832 também o haviam classificado como quando a nação brasileira se acha dilacerada pelos partidos [... )65
pardo -e este seria, complementando a perseguição que sofreu por comparecer
ao funeral do redator do Brasil Aflito, sendo mesmo demitido de seu cargo no
Arsenal da Marinha, o "único motivo que deu origem à sua prisão, pois foi feita no Expressa-se aí a reação ao projeto de designar, nos censos, a cor
dia em que a Restauração apareceu tratando-o de bode, farroupilha etc.". Nova- dos cidadãos livres. Duas décadas depois, projeto semelhante gerou re-
mente aparecem os insultos: "bode", "farroupilha". Inadmissíveis também por- voltas no Nordeste que adiaram por outras duas décadas o primeiro censo
que, como o redator faz questão de lembrar, Lafuente não só desfrutava do título geral do Império, e dificultaram o registro civil. 66 O Homem de Cor, 0
nobre de cadete, como era um bem-sucedido negociante na cidade. Esses atributos Mulato, são acima de tudo livres. É importante esclarecer que o termo
devem ser vistos em conjunto, pois assim é que aparecem no texto do jornal. escravo não é um dos que irão compor o campo semântico de "mulato" ou
"homem de cor". A escravidão não estava em questão. Mas antes, que no
O governo mantinha-se obstinado em "fazer guerra aos mulatos", e grupo dos livres não houvesse distinções. O homem de cor definia-se a
mesmo tendo "raça misturada" não desistia de "exterminar a gente de cor". partir de oposições. Contrário aos "brancos moderados", mas aliado dos
Resta de alguma forma dar o devido peso a esse extermínio: a exclusão políti- "brancos não-moderados". Não se confundia com "escravos". Defende a
ca, corporificada nas eleições e nos "empregos públicos". sua leitura dos princípios liberais da Constituição. E defende também o
prestígio militar. Envolvendo -se em diferentes disputas, perscrutando pos-
síveis mudanças legais, ofícios, circulares, procurava seu lugar na cena
Nas eleições tivemos o exemplo, não há um representante das política.
nossas cores, nos empregos públicos, e de toda a parte nos exclu-
íram, e vós ó escravos, que mamando na teta de tais feras lhes A questão da participação de indivíduos que não fossem brancos
estais dando força, desenganai-vos pois os moderados não fazem na Guarda Nacional, recorrente em outros periódicos como O Brasileiro
caso de vós por serdes mulatos, deixai de uma vez esse partido Pardo, abordado adiante, parece ser ainda nebulosa. Jeanne Berrance de
infame, e antibrasileiro que vos julga menos que seus escravos, e Castro afirma que, na primeira fase da instituição, que se estenderia até
vinde de novo alistar-vos nas nossas exaltadas fileiras. 64 1850, houve uma "integração racial", e que inexistia qualquer preconceito
de cor. Contrapondo-se a essa análise, os três autores da obra A Guarda
Nacional no Rio de Janeiro afirmam que os libertos foram impedidos de
Este outro trecho levanta novamente a questão da diferença de cor e participar da milícia, bem como o preconceito de cor orientou o alista-
dos princípios jurídicos afirmados na Constituição do Império, agora tratando mento e a qualificação. Esse livro considera que a Guarda Nacional, fun-
da atividade do recenseamento: damentalmente, teve a função de "delimitar a cidadania": participar da
milícia significava ser reconhecido como cidadão, processo complemen-
tar à exclusão de todos aqueles que ficariam sujeitos ao recrutamento for-
Não sabemos o motivo porque os brancos moderados nos hão çado para outros corpos militares. A Guarda Nacional funcionaria como
declarado guerra, há pouco lemos uma circular em que se decla- reafirmação da hierarquização da sociedade. 67 A partir dessa interpreta-
ra que as listas dos cidadãos brasileiros devem conter a diferen- ção, a questão da cor pode ser repensada. Talvez não tenha havido nem só

54 55
"integração" (perspectiva que dilui os conflitos de identidade tão fortes Analisando o pensamento liberal reformista do período que se es-
nesse momento), nem só "preconceito". Ainda que de forma tensa, nesses tende entre 1827 e 1837, Thomas Flory nota a mesma atitude de negação
anos iniciais do período regencial e da Guarda Nacional, encontra-se, como por parte de Evaristo da Veiga a respeito do "descontentamento de grupos
os jornais indicam, a tentativa de participação dos autodesignados "cida- livres de cor". Segundo Flory, os liberais procuravam criar uma visão de
dãos mulatos", incluindo-se a possibilidade de participação dos libertos. 68 coesão social: "Reconhecendo seu ponto mais fraco, a imprensa liberal
fez um débil intento para convencer seus leitores (ou a si mesma) de que
O Meia Cara fez uso do termo mulato para designar o correligionário os grupos racialmente 'impuros' compartilhavam os interesses sociais co-
Maurício Lafuente, e no mesmo gesto indicar que mulato é o oposto de deso- muns de um Brasil basicamente harmonioso". Essa "intriga de cores" era
nesto: "Mas enfim Lafuente é mulato, e esses ladrões que têm roubado a nação também designada como "haitianismo" pelos liberais moderados. Aquele
a maior parte são brancos, e pertencem ao partido dos homens, que não sendo autor, embora não tenha aprofundado a investigação sobre os jornais por
de cacete e punhal, roubam sem piedade". 69 O termo meia-cara, muito comum ele apenas citados, como O Mulato ou O Brasileiro Pardo, chama a aten-
nas comédias de Martins Pena, significava o escravo introduzido através de ção para um "vocabulário simbólico" expresso nestas disputas sobre a raça:
contrabando, sem pagamento dos impostos devidos; neste duplo sentido da "Grande parte destas discussões sobre raça podiam ser vistas mais exata-
ilegalidade e da identidade incompleta atua a ironia do título. Mais uma vez, a mente como parte de um vocabulário simbólico em que se debatia a ques -
escravidão aparece na forma de metáfora política. tão mais geral das classes". 72

A Aurora Fluminense mantinha-se relativamente afastada dos signifi- Acredito que se tratou mesmo de um vocabulário simbólico, mas que
cantes de cor, seja como termos de autodenominação, seja como qualificação teve uma especificidade maior do que Thomas Flory percebeu.
de aliados ou adversários. Talvez procurasse, com esse relativo silêncio, esca-
par àquela linguagem racial, embora isso fosse inevitável, como, por exemplo, Um dentre os vários periódicos com o título Sentinela da Liberdade reba-
quando usava a expressão "periódico do Haiti" 70 para designar o Nova Luz tia as acusações de "rusguentos, fuscos, mal vestidos, homens de faca na manga,
Brasileira (algo que este jornal, tido como dos mais importantes na difusão do anarquistas, farroupilhas" dirigidas aos "patriotas de boa-fé, os que queriam mu-
vocabulário liberal, recusa veementemente: ele não queria se confundir com a danças de coisas, e não só de pessoas, os exaltados enfim". As acusações teriam
"revolução do Haiti!"). De toda forma, há contraste entre uma fala e um silên- sido publicadas na Aurora Fluminense, bem como a de procurarem seus inimigos
cio, atravessando as maneiras diferentes de se entender a nacionalidade. O construir uma "república de tanga e alfanje". 73 Embora a defesa da identidade
silêncio nem por isso deixava de ser estratégico. política dos mulatos persista, o argumento do redator se baseará na concepção de
que não há uma diferença essencial na cor em si. A igualdade entre os cidadãos
baseia-se no fato de que a cor seria um "acidente", ou, textualmente, um "simples
O Babosa prossegue no seu afã de que o espera colher bom re- acidente da cor". O viés da diferença é, portanto, mais uma vez, político.
sultado [... ] Quer ele provar no seu n° 2 que as razões das sau-
dades por d. Pedro, são os erros e crimes do atual governo. E O jornal, após a curiosa notícia de que Evaristo da Veiga, depois do
4
quais são estes erros e crimes?[ ... ] a guerra feita aos homens de atentado que sofrera, teria se filiado a uma ordem religiosa de "mulatos"/
cor, vermelhos, pardos, pretos, e morenos . Muito se cansa o procurando angariar sua simpatia política, mas podendo contar apenas com
Babosa, e todos os colegas da sua crença, para dar corpo a esta "um ou outro mulato tolo"/ 5 arrisca teorias sobre o tema. Para ele, não haveria
miserável intriga, e fazer sublevar contra o governo e contra a grande distinção entre ser ou não mulato, ainda que isso pareça contraditório.
ordem atual de coisas a gente de cor[ ... ]. Parece que a palavra poderia servir para desqualificar quem é "mulato" ou
[... ]felizmente, no Brasil, sempre a tal respeito os prejuízos foram "pardo" - como no caso do redator do Independente, constantemente comba-
muito mais apagados do que no resto da América, e nunca ouvimos tido pelo Sentinela, e que usaria o termo como desqualificativo contra o "ve:
apontar o sr. V. de Cayru, como saindo fora das idéias comuns. 71 nerável ancião Barata" - ou para qualificar uma posição política. O trecho e

56 57
de "estilo emaranhado"/ 6 e apresenta mais uma variação das figuras raciais: "v iu-se pela primeira vez uma promoção de mulatos, para oficiais de linha
cruzador. Nascer mulato seria um triste acidente. [ ... ];nomearam-se presidentes , e secretários mulatos: foram dignitários, ofi-
ciais e cavaleiros da nova ordem do Cruzeiro, e de outras assim o mulato
teve de crer, que já era homem" .79
Eis aqui o alimento da Aurora! O jesuitismo , a hipocrisia e a
intriga ... onde achou ela, que o Sentinela assopra a discórdia? A história posterior teria , entretanto, começado a vetar esse caminho
Em chamar mulato ao redator do Independente? E não somos aos mulatos, sobretudo após o "trinta de julho", em que os antigos "bons sol-
nós também mulato? Na nossa Sentinela n. 4 tivemos de nos dados" passaram a ser considerados "caramurus". 80
admirar, que o redator do Independente sendo pardo insultasse
ao venerando Barata chamando-o cruzador, e se isso é assoprar a O discurso ora define linhas demarcadoras do ser mulato, ora as apa-
discórdia , então queixe-se do seu discípulo filho do cruzador P. A., ga. A Ordem da Conceição e Boa Morte parece não ter gostado das referências
que se cruzador não fora, certamente não angararia [sic] o redator feitas pelo Sentinela (de que seria uma "ordem de mulatos") e com ou sem
do Independente tal qual ele é, isto quer dizer mulato; o que não é intenção planejada achou um advogado no Jornal do Comércio que procurou
dito por irrisão, por nos competir igual sorte, do que se não nos tirar a limpo o que foi considerado ofensa, publicando que um processo seria
pejamos, porque não é uma má qualidade do espírito, e nem fomos aberto. Defende-se o Sentinela recorrendo à ciência (que aliás mesmo em situa-
consultados antes; porquanto então se podia lançar em rosto o não ções menos urgentes era por ele prezada):
termos escolhido melhor cor, e mesmo formosura mais atrativa, com
que mais facilmente simpatizaria a Aurora como donzela loura. 77
Porém para acalmar esta cólera, em que ficaram , é preciso que
esses srs. se convençam, primeiramente (como já dissemos) , que
Dependendo do argumento, portanto, o termo mulato poderia ter ora somos- mulato - , e que isso não é coisa indigna, nem infame; e
um sentido, ora outro, oposto. Se aqui aparece como aciden'te infeliz, se em em segundo lugar, que saibam que a palavra- Mulato - Mullatus -
geral o Sentinela repete o artigo constitucional afirmando a única diferença de de ri vada de mulus tem sido empregada pelos naturalistas para
"talentos e virtudes" entre os cidadãos, o mulato também aparece como perso- designar os indivíduos da espécie humana, gerados de uma raça
nagem vitorioso na história da nova nação. E qual o espaço ocupado por esse branca, ou européia, com outra dos pretos.
personagem? O espaço da atuação militar, inicialmente como soldados do 4°
Batalhão, todo composto por homens de cor. Esse batalhão foi o que defendeu
o imperador, diante da infidelidade possível dos primeiros regimentos. Seriam Afirma ainda que a palavra "pardo" não teria o mesmo efeito escanda-
soldados bravos, fortes, honrados, acima de suspeitas, que "fizeram pois a loso , e que, em compensação, não "tem nenhum sentido, e não designa coisa
guerra da Independência, libertaram sua pátria na esperança que restituídos alguma com precisão". Neste trecho também bastante emaranhado, surge um
aos foros de homens, pudessem pretender mais alguma coisa, que não fosse matiz novo, trigueiro :
mestre alfaiate, carpinteiro ou pedreiro". 78 Após a Independência, podendo ser
nomeados oficiais , a opção da carreira militar parecia ser o caminho de uma
participação ati v a, de um reconhecimento social. A carreira militar, bem como Se se toma que é injúria di zer-se que F. é mulato, por que não
a Igreja e a burocracia civil, era ainda a opção de prestígio em um momento seria igualmente injúria dizer-se que B. é branco? A palavra pardo
que parecia apontar, ao contrário, para os novos princípios liberais. Os lugares não designa senão que se é trigueiro, e pode então acontecer
da tradição eram deslocados , ou eram reocupados . O acesso aos cargos milita- que um branco trigueiro seja pardo , como um mulato alvo seja
res , aos "empregos" (públicos) e a categorias de nobreza associadas, consti- branco sem que com isso ele deixe de ser mulato, assim como o
tuía para o redator o acesso à identidade, e mesmo à humanidade. Após 1822, outro deixe de ser branco, ainda que trigueiro. 81

59
58
Essas afirmações um tanto confusas, emaranhadas, de alguma forma bandeira a ser levantada com obediência. Isto é, o discurso antilusitano dos
advogavam pela incerteza racial, pela mobilidade das definições, pela gradua- moderados era visto como falso e ilusório. Assim escrevia O Brasileiro Pardo:
ção, mais que pela essencialização. O Sentinela, procurando fazer com que a
gente mulata fosse "lembrada" após o 7 de Abril, contestava a afirmação da
Aurora de que haveria representantes dos "homens de cor" no Colégio Eleito- Os tais patriotas, daqueles tempos, gritavam contra os adotivos
ral, no Júri, na Magistratura e no Clero. Não se encontrariam nessas funções em todos os seus discursos, gazetas, conversações; e eu, pobre
senão três nomes textualmente citados. 82 Mais uma vez defende a Constitui- patinho, ia caindo no logro, e à semelhança do carneiro, seguia a
ção: "no Brasil não há brancos, nem mulatos, há cidadãos brasileiros, ingênu- direção dos então pastores : amigo do meu país, extremoso pelos
os ou libertos!! Esta é a frase da Constituição; e é a Constituição de fato que princípios livres, e zeloso por o que eles então chamavam nacio-
quer o Sentinela". 83 A Carta "não trata de cores", e por isso deve ser extinta a nalidade, já aborrecia os adotivos, e ainda que não fosse acostu-
"jerarquia [sic]e aristocracia de cores". Afinal, os mulatos são "cidadãos reco- mado a chamar ninguém por alcunhas, contudo em vendo um ado-
nhecidos", que vivem empenhados em "conservar a boa ordem" entre "ho- ti vo quase que já estava na minha mão o deixar de o chamar -
mens igualmente filhos de Deus, e todos cristãos"Y maroto, marinheiro, chumbo etc. - vieram as garrafadas, e eu fi-
quei doido de todo! O Melo Miranda, o Guerra, o Areias, e outros
Nesse periódico nota-se, enfim, que a noção de mulato passa não só que tais que, segundo a fama, então se distinguiram, se eu os hou-
por um preenchimento, mas por uma série de restrições. O mulato imaginado é vesse pilhado, não sei o que teria feito: os nossos Evaristos grita-
liberal, cristão, amigo da ordem, pode ser militar ou ter uma função pública e, ram-nos em gazetas -sangue pede sangue - o caboclinho Repú-
assim como na concepção do jornal O Homem de Cor, não se confunde com blico berrava - mata chumbo - numa palavra, para encurtarmos
escravos. Por um lado, parece apenas um acidente. Por outro, é personagem da razões, que todos sabem, a tal coisa de chumbo, maroto e mari-
história da liberdade da pátria. A noção retira seu sentido de certo jogo de nheiro, levou as coisas ao ponto de d. Pedro abdicar. 86
declarações sobre si e sobre o outro, e envolve inúmeras variáveis além da
identidade de nascimento. Participar da política do período regencial envolvia
construir essas identidades distintas. A palavra mulato, longe de ser apenas um O jornal zombava da imagem de união nacional e fazia isso ao temati-
atributo natural, tinha uma direção, era uma interpelação. zar o preconceito racial, bem como a relação entre critério social e critério de
cor. O título desse pasquim pode servir a algumas questões. A noção de brasi-
Outra das querelas que atravessou a imprensa consistiu na memória e leiro era noção em construção, que precisava ser defendida. No caso de O
desdobramento do 7 de abril de 1831, adjetivado de "gloriosa revolução", ou Brasileiro Pardo, o primeiro termo não se ligava por exemplo à defesa do
"revolução regeneradora". 85 Entre os exaltados a data era encarada como o Estado-Nação e às noções de território, soberania, unidade, na medida em que
grande malogro a que foram submetidos pelos liberais moderados, em virtude se admitia outras formas de ser brasileiro: "brasileiros adotivos", "brasileiros
da falsa aliança, das falsas promessas de mudança que agora levavam a reivin- natos", "brasileiros brancos". O segundo atributo do título, pardo, talvez seja
dicações específicas como a obtenção dos "empregos nacionais", que a parti- a mais interessante expressão ligada à identidade. Em primeiro lugar, porque é
cipação da Guarda Nacional não operasse distinções entre livres por nasci- indefinível de forma fixa e acabada, do mesmo modo que é impossível tentar
mento e libertos - que além de significar o estatuto simbólico e político de atribuir significados precisos e compartilhados, constantes a termos como ca-
cidadão liberava do recrutamento obrigatório para os outros corpos militares e bra, caboclo, curiboca, mulato. Um dos sentidos que a palavra pardo adquiriu
policiais- e também propostas mais amplas como a federação enquanto prin- décadas mais tarde 87 foi o da união das "três raças", o resultado homogêneo, a
cípio de organização política. Mas nesse mesmo movimento, criticava-se o síntese, o amálgama. Não é esse o sentido do título do pasquim, pois o jornal
discurso liberal moderado sobre a nacionalidade e a identidade. Segundo al- não quer a "união das raças", mas sim uma união explicitamente política entre
g~ns representantes dessa proposta, a "união das raças" para derrotar os "ini- vários brasileiros que permanecem com seus atributos de especificidade (ado-
migos do Brasil" poderia ser matéria de questionamento, mais do que uma ti vos, natos, brancos, pardos) contra as orientações moderadas.

60 61
A abundância das designações, das formas de identificação, compõe aproximar-se dos "homens de cor, enquanto se persuadirem, que dali se possa tirar
uma linguagem racial na apresentação das disputas políticas. Porém, não pare- partido em proveito chimangal", da mesma forma como fizeram no "7 de abril":
cia referir-se a uma pura ou evidente identidade étnica natural. O Cabrito fala-
va em " brasileiros mulatos" , "cabrito vosso patrício" , "malvados chumbeiros";
O Brasileiro Pardo, em "homens de minha classe", " homens de minha cor", [... ] se assim não fora , os moderados da época, ou chimangos ,
"gente da classe média", "nós, os pardos" . Há uma espécie de jogo de xinga- imediatamente depois de 7 de abril , não designariam patriotas
mentos e atribuições de identidades . Tratando de contexto diferente- Salva- de faca , e cacete aqueles mesmos sujeitos, a quem dantes os li-
dor na década anterior-, João José Reis comenta a guerra de símbolos entre berais por excelência, ou liberalões (trata-se dos corifeus, e não
setores da população, e os insultos de "cabras" e "caiados": dos iludidos) convidavam para se unirem às suas fileiras, com o
prazenteiro nome de Irmãos , e cidadãos dignos de tudo, e por
tudo ; dizendo e protestando que marchavam firmemente a fran-
Na troca de insultos , freqüentemente se lançava mão da lingua- quear-lhes a entrada para os primeiros empregos nacionais; e
gem racial como dispositivo de combate. Para os portugueses, por último em ajuste de contas babau ... nunca mais apareceu um
todos os baianos eram cabras 'indignos da Costa da África' , emprego para um crioulo, e nem um crioulo para um emprego .89
conforme queixava-se o ofendido branco baiano Bento de França,
filho do deputado às cortes, senhor de engenho e marechal de
campo Luís Paulino. 'Cabra' significava, no vocabulário racial A controvérsia iniciada por O Crioulinho era bastante comum nos de-
da época, alguém de pele mais escura que um mulato e mais bates impressos. Não foi verificada a existência de O Crioulo, o que indica
clara que um negro. Brancos reais, brancos sem dúvida, só eles uma zombaria dupla, provavelmente procurando atingir um outro título. Atitude
portugueses. Talvez por isso os manifestantes baianos os cha- semelhante, como vimos, foi a resposta ridícula que teve a folha O Filho da
massem de ' caiados ', gente exageradamente branca como a cal. Terra : alguns dias depois de seu lançamento, publicou-se O Veterano, ou o Pai
Ser branco demais virava assim um estigma no discurso patrió- do Filho da Terra, escarnecendo sua identidade, sua origem social e racial, sua
tico popular, e ' caiado' seria, mesmo após a Independência, o descabida pretensão de ser "escritor público". 90
insulto racial predileto de negros contra brancos .88
A mesma articulação entre a obtenção dos cargos ou empregos pú-
blicos e a suposta autêntica identidade que combateria um fingimento é
Disputas em torno do uso autêntico das identidades aparecem no jor- tematizada por O Cabrito . Esse periódico dedicou-se ciosamente a outra
nal O Crioulinho. Este apresentava-se como contestador de uma folha chama- das datas que devem ser memoradas: as noites de meados de março de 1831.
da O Crioulo (provavelmente fictícia), que a princípio teria causado grande
esperança, pois parecia algo contrário aos "escribas brancos, que se dizem
redatores das Auroras, Correios Oficiais, Verdade, e de todos os outros pape- Brasileiros mulatos , um cabrito vosso patrício é quem vos vai
lários e papelicos da moderação jacobina, fazendo ver ao público, que entre falar ; não é um filho de cacheu, que se finge pardo para vos
crioulos há também quem saiba pensar, e ajuizar[ ... ]". iludir; é um cabrito que hoje aind a tem manchas no corpo rece-
bidas nas ruas da Quitanda, Pescadores , Rosário etc. etc .: é um
No entanto, o autor foi tomado de desgosto, vendo no jornal o ataque à cabrito que não é moderado , e que não se unirá a eles enquanto
:'honra e probidade dos beneméritos cidadãos, sem escapar-lhes o nosso jovem forem protetores dos malvados chumbeiros: é um cabrito, que
Imperador". Percebe-se aí que era possível combater o discurso "oficial" e a "mo- ainda conserva em memória as expressões de que se serviram os
deração" sem transcender os limites dos "beneméritos cidadãos" e mantendo-se a insolentes garrafistas de março na sua exposição dos aconteci-
adesão à Monarquia. Segundo O Crioulinho, O Crioulo teria como objetivo apenas mentos de 11 a 15 de março de 1831 , e que vai transcrever nesta

62 63
folha alguns pedaços da mesma exposição, para lembrá-las a os caramurus, que teve, e tem com os exaltados, contem com
alguns que já se ti verem esquecido. 91 eles [ ... ]. Contudo fazei justiça aos verdadeiros exaltados ; ficai
certos , que, quando esse príncipe galego vier às nossas praias,
os exaltados formando um corpo separado, mostrarão que sa-
A construção política da identidade articulada por O Indígena do bem bater-se em defesa da pátria e da liberdade , e preferem
Brasil operava uma articulação entre o combate à restauração, a disputa morrer livres a ser escravo d'um lusitano .
pelos postos militares, a campanha pela destituição de José Bonifácio como
tutor de d. Pedro II e os interesses de comerciantes:
O teor geral dessas palavras é repetido em inúmeras variações na docu-
mentação examinada. Outras implicações da disputa em torno da nacionalidade
Existem já alistados em diversos batalhões 6 a 8 mil papeletas, diziam respeito à lei de naturalização. 93 No trecho abaixo, apresentado como cor-
e fazem parcialmente o manejo e exercício, para se apresenta- respondência de um leitor, o vocábulo "mulatinho" serve a dois usos opostos: um,
rem no dia marcado do rompimento [e] assassinarem os brasi- que se atribui ao senador Alencar, de desqualificação da nacionalidade, ou de uma
leiros liberais, defenderem o comércio e ladroeira dos seus pa- nacionalidade incompleta, mal associada à característica de mulatinha; o outro, de
trícios de meia cara, e rodearem com baionetas estrangeiras o afirmação da nacionalidade, não da própria mulatinha, mas de seu irmão, cunha-
Augusto, e imortal Pedro 1o fundador da imoralidade [ ... ] mui- do, sobrinho etc. A construção da nacionalidade supunha a especificidade em rela-
tos negociantes têm vendido suas mercadorias com o trato de ção ao tratamento legal dado à diferença racial, por oposição ao que acontecia nos
pagar-se-lhes quando d. Pedro reassumir a coroa brasileira. 92 Estados Unidos, onde se excluíam os "mulatinhos" de forma explícita. Mais uma
vez, os princípios liberais dos "talentos e virtudes" são defendidos .

Combater esses males seria o dever dos "exaltados", em nome dos


verdadeiros "brasileiros": Na discussão da Lei de Naturalização de Estrangeiros no Senado,
o sr. Alencar combateu para que ela não fosse avante, servindo-
se para isso de grandes argumentos, entre os quais ela foi que
Os moderados não deixam de nos chamar à união, isto é, que- qualquer estrangeiro casando com uma mulatinha era imedia-
rem que abandonemos nossos princípios, e passemos a ser mo- tamente cidadão brasileiro! Por ventura o mulatinho, irmão da
derados, como remédio para obstar a restauração de um L. .. ao mulatinha, não é cidadão brasileiro pela nossa Constituição? E
trono brasileiro: nós combinaremos na união uma vez que se sendo assim, que dúvida tem S. Mce. que os sobrinhos, e o cu-
acabem os motivos da nossa divisão, isto é, quando os chumbos nhado desse mulatinho também o sejam? Será porque a Consti-
largarem as armas que só pertencem aos brasileiros natos; quan- tuição da República dos Estados Unidos , que aliás tanto se nos
do forem castigados aqueles que insultaram a nação brasileira mete a cara, exclui os mulatinhos dos direitos políticos? Ora
em março de 31; quando os empregos ocupados por caramurus e pois: o ex-imperador era tirano, queria suplantar os direitos do homem
por brasileiros de meia cara forem ocupados pelos patriotas do & & &, e deu-nos essa Constituição, que nenhuma diferença faz senão
dia sete de abril; quando o Conselho Supremo Militar composto dos talentos, e virtudes e o sr. Alencar liberal por excelência, quer que
de sevandijas for composto somente dos militares amigos da li- os mulatinhos nada valham na sociedade, e que até passe o ridículo,
berdade; quando forem processados os infames traidores minis- que S. Mce. lhes aupõe [sic], a quem com eles casarem!!!. ..
tros do sultão Bergantino, e seu Conselho d'Estado, quando não Sou, sr. redator, seu atento venerador.
virmos um Paranaguá, desonra do nome brasileiro, presidindo a Um mulatinho muito amigo da Constituição, que o põe ao nível do sr.
94
Assembléia Geral; quando o governo tiver a mesma energia com Alencar, sem nenhuma outra diferença mais que talentos e virtudeS .

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A defesa dos direitos dos "mulatinhos", porém, parece servir a dois uma mentira nem uma confissão: é uma inflexão". 100 Outros mitos sucederam-
intuitos. De um lado, o trecho traz a defesa dos "talentos e virtudes", e de se, passando a privilegiar, na nacionalidade, as formas de homogeneidade e uni-
outro ironiza a frase do senador, e defende a lei de naturalização. dade, em detrimento da reflexão sobre as diferenças e clivagens sociais.

Associava-se em estilo zombeteiro e difamador figuras públicas à pro-


ximidade com a "negraria" ou com "pretos". O Evaristo o faz em relação ao A platéia mal comportada
jornal Sete de Abril e a Bernardo Pereira de Vasconcelos, um de seus redato-
res: "Avisa-se a todas as quitandeiras e quanta negraria existe, que encontrarão
no '7' de Abril [periódico] um acérrimo defensor, as suas páginas não são só "Todo mulato esfarrapado imaginava que era príncipe, porque a
oferecidas ao José Calabar, mas a algum pretinho da Costa de Guiné, que se seu ver o nobilitava o 'eu sou brasileiro verdadeiro' que pro-
preparem a sustentar a moderação, e o 30 de Julho". 95 Tal proximidade seria nunciava com orgulho ". 101
suspeita. No mesmo número, gozava o redator:

O ponto de vista de um estrangeiro, militar alemão, mercenário, com-


Está doido. Qual doido nem pera doido. Outro dia o sr. Vasconcelos plementa os usos das definições raciais, bem como sua teatralização. Segun-
dando o seu passeio a pé por não ter sege, porque desgraçadamente do a imagem formada por Carl Seidler, os mulatos - termo que aplica de
é um dos homens que entrou pobre para ministro da Fazenda, e saiu forma bastante generosa- tiveram sua emergência política propiciada pela
pobríssimo, e como o sr. Vasconcelos é achacado de moléstia nas abdicação de Pedro I. Parece-nos que para Seidler o termo não serviu apenas
pernas (o que tem causado não pequeno número de lágrimas aos para designar uma característica física negativa, ou um certo grupo social,
homens de bem longe) e anda tropicando, vinha por acaso atrás do mas funciona como uma espécie de conceito, por meio do qual o militar ale-
dito sr. um preto tocando rebeca Moçambique, pois logo o sr. má mão construiu a inteligibilidade dos acontecimentos históricos em que se viu
língua disse que o sr. Vasconcelos vinha da floresta,96 e que todos envolvido. Isso é o que pode explicar a abrangência dos temas que ele clas-
os dias ia a este lugar aprender a dançar a contradança da valsa sifica como próprios de uma identidade mulata. Do ponto de vista de um
tirada da marcha do rei da França com o mestre Lucas. Ah! bom alemão, exterior, era mais fácil interpretar todas aquelas disputas através de
Feijó, que só tu és capaz de acabar com esta corja. 97 uma homogeneização.

Os membros da Câmara dos Deputados apareciam-lhe quase todos


A desqualificação dos membros do governo regencial era correlata, como "mulatos, gente da mais baixa plebe, verdadeiro fermento dum povo
nesse periódico, à defesa da "honrosa classe militar", a única garantia da inde- radicalmente viciado, que por excessos de toda espécie requestavam o aplauso
pendência e verdadeira arma contra os "governos absolutos". 98 de seus patrícios da mesma cor", pois imaginavam-se desprezados pelos bran-
cos. O destino das votações manchava-se com tal aberração da natureza, não
Tal como é definido por Roland Barthes, o conceito mítico é uma "con- havendo meio adequado de atuar na Câmara, pois estes mulatos como "maus
densação informal, instável, nebulosa, cuja unidade e coerência provêm sobre- atores teatrais" apenas gritavam, uma vez que careciam de "espírito". Seidler,
tudo da sua função". 99 Ao operar a aproximação entre tal conceito e os usos que detestava ter sido demitido do seu cargo de militar, após ver dissipado seu
encontrados nas polêmicas da imprensa, não se espera esvaziar seu significado, sonho de uma vida tranqüila na corte de Pedro I, exclamava: "Que mais se
mas sim singularizar formas de representação da política que parecem ter se poderá dizer da nação que se faz representar por semelhante gente?".
perdido com o avançar da década de 1830, e as exclusões no acesso ao título de
cidadão no processo de consolidação do Estado imperial. Barthes afirma ainda: Além da Câmara de Deputados, a decadência alcançaria o teatro,
"O mito não esconde nada e nada ostenta também: deforma; o mito não é nem divertimento prezado por Seidler no tempo do rei, quando havia bailados

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e óperas italianas , companhias contratadas em Paris e representações clás- [... ] desde que o teatro assumira cará ter político, os espectadores
sicas. Como acontecia aos militares estrangeiros, os atores, cantores, dan- não estavam seguros da vida. O povo tinha sacudido os grilhões,
çarinos estavam sendo demitidos e substituídos por "atores nacionais, em como um urso dançarino escapa a seu guia; sofrera fome e sede,
geral mulatos" que "infelizmente colhiam patriótico aplauso". Compunha- pois na sua selvageria domada não sabia alimentar-se por si mes-
se um "drama popular" em que "predominavam completamente os mulatos; mo ; procurava novo senhor, melhor, mas não podia decidir-se na
arranjavam, como melhor podiam, alguns dramas modernos, traduziam hor- escolha. O teatro imperial tornou-se o teatro do novo drama nacio-
rivelmente as novidades estrangeiras, e nunca esqueciam de condimentar nal. Toda gente participava na representação, no palco, atrás dos
exageradamente esse mingau dramático com as mais ridículas alusões aos bastidores, na platéia, nos camarotes, nas galerias ; na tola loucu-
funestos dias de abril, qual pimenta malagueta, tornando o prato totalmente ra do entusiasmo da hora todos se supunham artistas natos. 106
intragável para paladar europeu". 102 Dessa forma, o teatro foi tomado (as-
sim como as ruas) pelos assuntos políticos, e pela própria política.
A representação parece que tinha saído dos limites em que deveria ser
Na sentença de Seidler- "O teatro imperial tornou-se o teatro do contida, perdendo sua marca. A insegurança alcançava um momento delicado
novo drama nacional" -, a oposição entre imperial e nacional é cheia de no episódio conhecido como "tiros no teatro", que ocorreu em 28 de setembro
significados. O "teatro imperial" era para ele (e para outros) não só o nome de 1831 .107 Esse episódio foi cuidadosamente rememorado pela imprensa, tan-
da sala de espetáculos, mas uma certa forma de representar, freqüentada to lamentando os mártires, como atacando o "Saturnino Olerê", ou Saturnino
por um certo público, onde os laços com a Europa seriam rememorados, Oliveira, juiz de paz responsável pela "matança do teatro". Já segundo a Auro-
ou pretensamente vividos. Era o teatro do Império, de uma certa hierar- ra Fluminense, tudo foi tramado pelos "agentes, ou soldados da Nova Luz, e
quia social, de um conjunto de valores, dentre os quais a honra de ter sido do Jurujuba. Estes apenas reúnem qualquer pequena força, saem logo com o
reconhecido como partícipe daquela corte. Com a destruição de sua essên- negro braço assassino". 108 O acontecimento é assim narrado por Seidler:
cia, emergia o "drama nacional", "drama popular" ou mai,s especificamen-
te "drama popular mulato", cuja característica que mais parece desgostar
era o fato de todos terem se tornado atores, todos participarem dele, no Anunciara-se novo drama popular mulato. Isso não me haveria
palco ou nos bastidores. atraído, mas Madem. Ricardina [sic], depois de longa ausência, ia
novamente dançar. Acabara-se o fandango; eu ia sair para tomar ar
Aliás, o próprio nome do estabelecimento foi modificado: o teatro e refrescar meu sangue tumultuante, mas não pude abrir caminho
passou a ser designado como Teatro Constitucional Fluminense. Seria in- no aperto da massa jubilante. Fui forçado a assistir à horrível peça
teressante ter acesso a essas peças representadas então; infelizmente dis- crioula. Confesso com franqueza adormeci docemente e meus pen-
pomos apenas de alguns prováveis títulos como O príncipe amante da li- samentos dançavam o fandango dos sonhos. Súbito desperto aos
berdade ou a independência da Escócia e O chapéu de palha, representa- gritos de : 'Viva a República!' E cem vozes repetiam: ' A Repú-
das por João Caetano nesse e em outros teatros naqueles anos. 103 Especifi- blica! A República!' Era um eco muito significativo, mas que mais
camente no momento da mudança de denominação e de ocupação do Tea- tarde os fatos desmentiram. ' Viva d. Pedro II!' reboava do lado
tro do Largo do Rocio , apresentou-se o drama O dia de júbilo para os esquerdo a resposta dos peralvilhos, os gritos das moçoilas. 'Viva
amantes da liberdade ou a queda do tirano, de Camilo José do Rosário d. Pedro II' era o brado dos camarotes e da platéia.
Guedes . 104 Vilma Sant' Anna Arêas traz informações mais próximas ao cli-
m a da época, afirmando que a mudança de nome foi feita sob a pressão de
grupos "e xaltados" que invadiram e depredaram o teatro. 105 A confusão que já se formava precipitou-se quando o juiz de paz pro-
curou silenciar esses vivas, e um jovem animado respondeu de forma original:
Carl Seidler continua seu relato: "exibiu de suspensórios arriados e indecentemente aquilo que aqui não posso

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exibir e o comentou com breve monólogo". O juiz procurou impedir que as O Brasil é a terra matriz da natureza e do mundo das fadas , terra
pessoas deixassem o recinto, para prender os "desordeiros", no entanto os sol- da fantasia e da insensatez, da anarquia, da especulação , terra
dados, ao chegar às portas, foram alvo de tiros da platéia, "e a multidão furiosa de macacos, frades e mulatos , o Estado imperial de um arlequim
avançou sobre eles como a maré tempestuosa". Segundo Seidler, o juiz de paz, de traje multicor, que com a sua vara de condão transforma ouro
desgastado, ordenou que se atirasse contra a multidão, o que resultou em "mais em papel, pão em pedra, homens em animais, e que na velha
de trinta mortos e feridos". Dentre estes, o único lamentado por Seidler é um pantomina 'Juca, o macaco brasileiro' mostra sua ascendência
negociante suíço "a quem com certeza era sumamente indiferente que o Brasil sobre súditos quadrúpedes. 114
fosse república ou monarquia" e que provavelmente "depois de afinal curado
[ ... ] nunca mais ele foi ao teatro no Rio de Janeiro". 109
Uma disputa de símbolos: a noite das garrafadas
Passava-se, assim, a uma representação confusa, infame, desde a Câ-
mara até o Teatro. O mulato politizado é uma aberração, que só poderia acon-
tecer numa terra como o Brasil. Seidler, usando seu próprio conceito, tinha Os conflitos que tiveram como cenário algumas áreas do centro da
nos "mulatos" seus adversários diretos, como aqueles que iriam substituir as cidade do Rio, entre 11 e 15 de março de 1831, conhecidos como "noite das
tropas estrangeiras por forças militares nacionalizadas. Em contraste, logo após garrafadas", compõem um momento privilegiado para se perceber a relação
a abdicação, vemos, no Nova Luz, o teatro repleto de "patriotas": travada entre disputa política e os mecanismos de construção e atribuição de
identidades. Houve muitas pessoas feridas, mas o episódio não se reduziu a
meras agressões físicas, demonstrações de força e tumultos e desordens, tal
Na representação teatral de sexta-feira esteve tudo ótimo [ ... ] a como foi apresentado pela documentação policial. 11 5 Até porque houve mo-
platéia estava toda cheia de bravos defensores da pátria, e pos- mentos que mais lembravam uma festa : havia bandas de música, movimenta-
suída do mais vivo, e decente entusiasmo. ,Tudo esteve tão óti- ção pelas ruas da cidade, empolgação e fogueiras . Foram utilizadas ou brandi-
mo que até a canalha da cascadura-verde-negra-recamada que das armas mais ou menos perigosas como chuços, pedaços de pau, armas de
aluga os camarotes da ordem chamada nobre , e também os no- fogo, fundos de garrafa; mas talvez o que decidia de fato a briga eram os gritos
turnos camarotes da Gávea, envergonhados , não tiveram ânimo de viva dados ao imperador Pedro I pelos " portugueses" ou à "República", à
de comparecer com sua presença a uma tão brilhante reunião de "Federação" e ao "imperador, enquanto constitucional" pelos "brasileiros".
figurinhas patriotas . 110 Mesclava-se a legalidade à inversão, a ponto de mesmo a polícia confundir-se
sobre os que mereciam ser capturados e de oficiais militares serem os mais
predispostos aos ataques. Antecedendo em algumas semanas a abdicação do
Outros trechos complementam a avaliação de Seidler sobre as caracte- imperador, a 7 de abril, as "garrafadas" foram um êxtase de identidades, em
rísticas da nação naquele contexto, e sua provável desilusão diante das ima- que a nacionalidade de portugueses e brasileiros envolvia fatores mais com-
gens do Brasil como lugar de natureza generosa.'" plexos que o lugar de nascimento, e ali apareceram contingentes sociais exclu-
ídos da participação política no sentido estrito. 116

No Brasil o negro verdadeiramente não é melhor que um irracional Tudo aconteceu por ocasião do retorno à cidade de d . Pedro I, que
e não se deve tratá-lo como homem, por mais que semelhante afir- vinha da província de Minas Gerais, onde, infrutiferamente, fora buscar
mativa pareça inumana. 112 apoio político para seu já combalido governo. Aliás, lá encontrara antes a
memória revoltada do assassinato do jornalista Líbero Badaró no ano an-
Os mulatos já são de nascença apenas obra de remendo da natu- terior. No Rio, alguns grupos de "portugueses" e "brasileiros adotivos"
reza, por isso são peritos remendões. 113 decidiram homenageá-lo, usando a tradicional fogueira, fogos de artifí-

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cio, cantoria e iluminação das casas. Era costume antigo da cultura portu- tropa. Voltou em seguida ao Rocio e achou "dois grupos de povo" a quem
guesa grupos se reunirem em torno da viola e da fogueira; competidores ordenou que se recolhessem "já que não eram horas próprias de andarem à
que conseguissem destruir tanto um como outro enchiam-se de orgulho. 117 rua", mas estes começaram os vivas: também a "Sua Majestade o impera-
Pois bem, aqui uns procuravam destruir fogueiras alheias, enquanto tentavam dor", porém acrescentando um decisivo "constitucional" e vivas à Assem-
gritar mais alto seu próprio viva. bléia Legislativa e aos "deputados liberais" . Queixaram-se ainda que "os
portugueses tinham derramado sangue dos brasileiros e que devia ser vin-
Segundo narra John Armitage, em 11 de março "uma porção de gado [sic]". Uma das testemunhas descreve um dos grupos que gritavam
mancebos pertencentes ao partido exaltado, reunidos a outra de oficiais pela federação como "uma porção de homens quase todos pardos de ja-
militares (pois que a desafeição geral se havia comunicado até ao próprio quetas armados de pau" e com "muito poucos homens brancos" . Nova-
Exército), percorreram as ruas dando vivas à Constituição, à Assembléia mente um "grande bando com músicos" vem pela rua do Ouvidor, dizendo
Geral, ao imperador enquanto constitucional etc.". 11 8 Assim o faziam, exa- que iam "acabar com os republicanos e federalistas", a quem a autoridade
tamente para provocar aqueles que se reuniam em torno das fogueiras. faz retornar, dessa vez com uma escolta de cavalaria e infantaria. Voltan-
Nessa mesma noite, um sapateiro chamado José Antônio, que portava o do ao Rocio, a autoridade foi atingida por uma pedra. A confusão perma-
laço nacional, de cor verde e amarela, distintivo da Independência, e que neceu ainda durante algum tempo. Os grupos se enfrentaram com fundos
estava sendo orgulhosamente portado por muitos na cidade, passava acom- de garrafas e outros objetos. Muitos foram presos (como, por exemplo,
panhado de "duas pardas" pela rua da Quitanda, local de concentração dos "os pretos José Honório, José Bernardes, Antônio José Lopes, Egídio
portugueses e de "gente empregada no comércio", quando estes o interpe- Manuel, Manuel Francisco, e os pardos Elias de Sousa, Bonifácio José,
laram e ofenderam, ordenando-lhe que tirasse o laço e dirigindo ao grupo Alexandrino Antônio, Albino Joaquim da Costa, e o francês Pedro Lior-
vários insultos. de", e um escravo que mentiu dizendo ser forro). A polícia atirou sobre a
multidão, mas provavelmente o que de fato dispersou os rivais tenha sido
Os acontecimentos mais graves aconteceram no dia 13. Acompa- o temporal que se abateu sobre a cidade. Dentre os muitos feridos, um
nhando o relato da autoridade policial, pode-se perceber como em dife- cadete de primeira linha, Luís Carlos Cardoso Cajueiro, natural doMara-
rentes pontos da cidade os conflitos ocorreram, havendo dois "campos" nhão, a quem o coronel Frias prendeu para evitar que morresse das paula-
distintos, um na área próxima à rua da Quitanda e outro no Rocio, rebati- das que recebera, pois, ao observar as luminárias, um grupo de homens se
zado de praça da Constituição, atual praça Tiradentes, onde os " brasilei- aproximou dando vivas ao imperador e ele respondeu o fatídico "constitu-
ros" se concentraram, e que o relato apresenta como "bando formado no cional". Teve a cabeça quebrada por isso .
Rocio de gente de diferentes cores". A autoridade policial relata que en-
controu grande tumulto na citada rua, e para lá enviou o comandante das Consta ainda entre os episódios desses dias, a queixa dada por um
Armas. Seguiu pela rua do Lavradio onde encontrou um homem que dizia homem que havia sido ferido por um sujeito que, além de gritar "federa-
que havia ido com companheiros à Igreja da Lampadoza, vizinha ao Rocio, ção", portava no chapéu "um laço que chamam federação", objeto este
para tocar a rebate (isto é, tocar o sino apressadamente para avisar sobre levado à presença da polícia e acrescentado ao processo.
um perigo). Para lá também enviou um oficial que rondava a Casa da Su-
plicação. Ele ouviu, sem distinguir muito bem, "uns vivas", para o lado da Na noite de 14 de março, a polícia encontrou uma "multidão de
rua do Piolho. Tendo notícia de que mesmo policiais estavam sendo mal- perto de mil homens armados de paus, e outras armas [ ... ]que deram mui-
tratados pelo "bando" do Rocio, decidiu para lá enviar o juiz de paz da tos vivas a Sua Majestade constitucional e à Constituição do Império".
freguesia do Sacramento. Andando em direção contrária pela rua do Ouvi- Dessa vez não se limitavam ao Rocio, mas estavam também no Paço. Um
dor, encontrou um outro grupo gritando "vivas a Sua Majestade" e "morra homem, que acabou preso e remetido ao juiz criminal, gritava ao desem-
aos federalistas e republicanos" que tencionava exatamente ir ao campo bainhar sua espada: "Brasileiros vamos a eles". Outro preso, no dia 15, foi
inimigo . Fez com que esse grupo retornasse e fosse vigiado por alguma Rodrigo Paz de Amaral, comissário da Esquadra Nacional: na rua Direita,

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atual Primeiro de Março, e próxima ao campo "português", ele dava vivas que se autodesignaram "brasileiros" não nasceram necessariamente no Bra-
à Federação direcionados à tropa que ali se encontrava, isto é, aliciava os sil. Muitos dos "cabras" ou "pardos" não eram forçosamente de pele escura.
próprios mantenedores da ordem. Exa ltados de Salvador, na mesma época, defendiam a substituição do impe-
rador por seu filho, afirmando que Pedro II é "cabra como nós"_l2°
Um episódio bastante revelador do sentimento que orientava esses
confrontos envolveu vários oficiais: um capitão do Batalhão de Caçado- Além disso, esses confrontos não colocavam em questão apenas a
res , um tenente do Batalhão do Imperador, e dois alferes, um do Batalhão permanência ou não do monarca. Eles expressavam, ainda que indireta-
de Granadeiros e outro do Batalhão de Caçadores . Presos, estes oficiais, mente, tensões e conflitos sociais latentes , de uma sociedade há pouco
desacatando as autoridades, tentaram aliciar a guarnição, "ofendendo a lib erta do jugo colonial, mas que manteve as estruturas básicas da coloni-
sagrada pessoa do imperador" (lembre-se, de passagem, que a Abdicação zação : a escravidão, a grande propriedade, a economia agroexportadora , a
ainda não aconteceu) . Junto a eles, o "redator do Tribuno" ia também pre- acentuada hierarquização. Escravos participaram das "garrafadas", tendo
so e participando da mesma atitude. Diziam à guarnição do Escaler, onde sido preocupação da polícia investigar, dentre os "pretos e pardos" pre-
se encontravam e que era "composta de pretos e pardos", que "só eles é sos, aqueles que eram dessa condição, para que fossem encaminhados a
que eram sua gente e que todos quantos eram brasileiros adotivos sem seus proprietários . Outrossim, naquele momento, os grupos intermediári-
exceção de um só deviam ser passados à espada". Tais palavras eram pro- os formados por artesãos, boticários, barbeiros, alfaiates, soldados, traba-
va, para a polícia, da "má índole de tais indivíduos e seus péssimos senti- lhadores das oficinas tipográficas etc. vislumbraram a possibilidade tanto
mentos" . de uma participação política como de uma ascensão social, empolgados
com palavras de ordem como "nação", "constituição", "liberdade".
Segundo uma testemunha, gritou-se também vivas à "liberdade de
imprensa". Outro grito de guerra, este sem dúvida bastante repetido, era o A história das percepções raciais parece portanto ser "cinza", 121 na
insultuoso "mata, mata que é cabra", algumas vezes acompanhado de gol- medida em que trabalha usos e variações que se distribuem em um sem
pes de chuços ou garrafas sobre algum "brasileiro" infeliz, a quem em número de situações. Na documentação sobre a noite das garrafadas, por
geral tirava-se também o chapéu que portasse o laço nacional. Contra os exemplo, tanto da polícia quanto da imprensa, a palavra pardo parece uma
"adotivos" replicavam com um "mata chumbo". O insulto de "mata que é espécie de coringa: foi utilizada para um escravo, um livreiro, um sujeito
cabra" foi dirigido também a um livreiro (atividade que não podia ser neu- que era perseguido, e para os heróis da nacionalidade . Nenhum oficial
tra naquele contexto) chamado Si! vi no José de Almeida, com loja na "pra- teve a cor mencionada na documentação policial sobre o episódio. A refe-
ça da Constituição", segundo o próprio fez questão de nomear, à diferença rência à identidade racial é correlata aos momentos em que é silenciada.
de todos os outros depoimentos que usaram ainda o termo da época colo- Compõe-se de vestígios, incertezas, mobilidades, precisões sempre cir-
nial, Rocio . Designado como pardo pela documentação, presenciou, acua- cunstanciadas . Essa é a condição de possibilidade para que aparecessem
do em sua loja fechada, uma confusão e ajuntamento de pessoas. As jane- os periódicos com títulos como O Brasileiro Pardo, O Homem de Cor, O
las foram quebradas e ouviu os gritos de "mata, mata que é cabra". Essa Cabrito, bem como os conteúdos de difamação através da ascendência, ou
mesma loja será, ainda no ano de 1831, ocupada por Francisco de Paula de seu acoplamento a certas posições políticas .
Brito , primo de Si! vi no, e sua Tipografia Fluminense. 119
A história da palavra "pardo" não merece ser reduzida a sinônimo
Todas as expressões que indicam os grupos e a identidade racial de quem não é livre ou escravo. Ou, quando afirmamos um certo conjunto
foram c itadas entre aspas, mantendo-se a preocupação com os discursos co mo composto de "brancos, pretos e pardos" é necessário fazer com que
originais, porque nenhuma delas deve ser entendida sem a aura política que de cada uma dessas definições irradiem matizes , que acabem mesmo , ao
as acompanhava , tratando-se seja do relato policial (que evidentemente não menos como possibilidade , com as próprias definições . Houve situações
é imune ao s valores e tensões da época) , seja das testemunhas . Muitos dos es pecíficas em que cada um desses termos seria - ou não- proferido.

74 75
Um mito se apaga qüilização do restabelecimento da "paz", mas também aproveitando para
lembrar a conveniente "confiança no governo".

Nos primeiros dias de dezembro de 1833, calorosas disputas mais Evidentemente, esses episódios devem ser lidos com cautela, no
uma vez tomavam as ruas, seu palco, tanto quanto a imprensa. Em meio à que diz respeito à ameaça de restauração, uma vez que a pecha de restau-
real ou fictícia ameaça restauradora, o governo regencial teria insuflado rador ou caramuru era lançada pela Aurora a quase todo movimento de
uma "multidão" a atacar a Sociedade Militar, destruir tipografias e, no oposição. A Tipografia do Diário, pioneira tipografia particular desde 1821,
mesmo clima, destituir José Bonifácio do cargo de tutor. Joaquim Manuel que imprimia o Diário do Rio de Janeiro, contava entre seus trabalhos
de Macedo assim descreve os acontecimentos: títulos de variadas correntes políticas, como O Catão, exemplo de libera-
lismo culto e moderado, e O Crioulinho, contrário à "moderação jacobi-
na" e à Aurora Fluminense, reivindicando empregos para os "crioulos",
[... ] ainda na capital do Império, houve novos tumultos, desta mas que não pode ser classificado de restaurador, sendo ao contrário de-
vez provocados pelo partido moderado, que sustentava a Re- fensor do "nosso jovem imperador" . 124 Bem diferente era a Tipografia Pa-
gência: fundara-se no Rio uma Sociedade Militar, à qual se atri- raguaçu, a começar por seu proprietário, Davi da Fonseca Pinto, com quem
buíra o propósito de trabalhar pela reposição de d. Pedro I ao a Aurora manteve acesas contendas. Naquele período, entre outros títulos,
trono do Brasil; a 5 de dezembro o povo assaltou a casa em que havia publicado As obras de Santa Engrácia, O Teatrinho do Sr. Severo,
se reunia esta sociedade, assim como várias tipografias da cida- O Esbarra, O Brasileiro Pardo, O Lafuente, O Torto da Artilharia. No
de, inutilizando os prelos, e ferindo várias pessoas; esse mesmo entanto, a violência contra as tipografias, que pode ter atingido outras além
grupo, açulado pelo governo, cercou a 15 do mesmo mês o paço das duas citadas pela Aurora Fluminense, como a Fluminense de Paula
de S. Cristóvão, prendeu José Bonifácio de Andrada e Silva, Brito, não significava tanto a animosidade contra cada tipografia particu-
tutor de d. Pedro II, e conduziu o jovem imperador para o paço da lar, até porque não há como recompor as tendências políticas exclusivis-
cidade; José Bonifácio, suspenso das funções de tutor, foi obri- tas desses estabelecimentos. Combatia-se antes o conteúdo dos impressos.
gado a residir, fora do centro da capital, na ilha de Paquetá. 122 Destruir as tipografias seria, assim, destruir os meios mais materiais das
palavras. A se confirmar a informação de que a Tipografia Fluminense foi
também atacada, 125 torna-se significativo que o estabelecimento tenha pu-
A julgar pelo relato feito sobre o ataque às tipografias, pela Auro- blicado títulos como O Homem de Cor, O Evaristo, O Meia Cara, O Mes-
ra Fluminense, a interpretação de Macedo sobre o incentivo do governo tre José, O Sentinela da Liberdade, O Brasil Aflito, entre outros.
regencial parece se confirmar. O redator relaciona os "tumultos" a outros
ocorridos em 2 de dezembro, aniversário do pequeno imperador, em torno Ao lado dessa primeira destruição, surgiram paulatinamente formas
da habitual iluminação das casas quando se tratava de comemorar algo. Já de limitar a liberdade de imprensa. Ainda em meados daquele ano havia sido
no dia 5 , o ajuntamento de uma multidão para combater a Sociedade Mili- apresentado à Assembléia Geral um projeto de lei instituindo a obrigatorieda-
tar, sediada no largo de São Francisco, contava com "mais de 1.000 pesso- de de uma fiança de quatrocentos mil réis para publicar um periódico preven-
as, decentemente trajadas"; a excitação acontecia por causa da leitura de do os casos em que, aberta uma acusação, os responsáveis fugissem. Parecia
"infames papéis caramurus". A Aurora diz que especialmente uma folha uma espécie de direito censitário à liberdade de expressão. A quantia aliás
publicada naquele dia suscitara a indignação, mas não explicita seu título. equivalia à exigida aos eleitores da Corte. Outro ponto do projeto seria acabar
Até que "levados do furor do momento, iludindo a vigilância dos juízes de com o anonimato, elemento crucial da guerra das impressões dado o jogo das
paz, partiram sobre as duas tipografias - a do Diário e a Paraguaçu -, atribuições, das injúrias, dos desmentidos, das identidades criadas ou fingi-
aonde fizeram estragos, espalhando os tipos, quebrando as caixas e outros das. O projeto, de autoria de Aureliano de Sousa Oliveira Coutinho, não se
126
utensílios, que eram deitados à rua" . 123 A matéria é concluída com a tran- transformou em lei, mas a tentativa já foi bastante significativa.

76 77
Aureliano Coutinho era o ministro da Justiça em 1833, e em seu as" e "injúrias", e o alarme precisava ser soado pois ''um abismo horro-
relatório defendeu a reformulação dos critérios e práticas para a repressão roso está a um só passo de nós", e apenas o governo poderá "sal v ar 0
à imprensa: Brasil". O ministro da Justiça alertava para os diferentes meios de que 0
escritor dispunha para escapar à responsabilidade. A sua proposta con-
sistia em que as injúrias, calúnias e ameaças, classificadas como crimes
Não é também indiferente para a manutenção da segurança in- policiais, fossem do mesmo modo consideradas quando aparecessem na
terna a repressão legal dos abusos da liberdade de imprensa. forma de impressos. 128
Quando a lei é tão defeituosa, que constantemente é iludida, o
resultado da exasperação pública será o que desgraçadamente Todo esse período de frenesi foi pontuado por processos judiciais
vimos nesta Corte em 5 de dezembro passado. [... ]Além de que contra escritores públicos, muitos movidos pelos próprios pares. O reda-
é sabido, que fora do Império projeta-se lançar mão desta arma, tor do Brasil Aflito, assassinado poucos meses depois, conta que foi acu-
enviando-nos emissários assalariados, e assalariando-se outros sado por um promotor e levado à presença do juiz municipal, bem como
no Brasil, para promoverem a publicação de escritos incendiários. "nosso colega o redator do Par de Tetas" . 129 Pouco antes, o mesmo recla-
Sabe-se bem até que é só promovendo a anarquia, e a guerra mava da parcialidade da Justiça:
civil no país, que este poderá vir a ser dominado pela desunião,
e enfraquecimento dos naturais. 127
Como cabe no possível, que o sr. promotor do Júri tenha julga-
do os periódicos exaltados, com criminalidade, deixando em si-
Antes disso, Diogo Antônio Feijó, ou Jeifó na linguagem pasqui- lêncio e impune a impudente, e intrigante Aurora; o atrevido, e
nesca, ministro da Justiça em 1831, lutava por medidas semelhantes. A lei estúpido Sete de Abril; a mentirosa , e abjeta Verdade; o inepto,
da imprensa vigente seria ainda insuficiente para conter o "abuso de es - e sujo Independente etc. etc. Cujas indignas folhas, constante-
crever", pois dificultava a imputação e a pena: mente têm atacado o Corpo Legislativo, isto é, o Senado; e como
pois o sr. promotor não tem para com estas cumprido com o [pa-
rágrafo] I do art. 37 do Código do Processo? 130
Srs., outra causa não menos fecunda da imoralidade é a licença
de escrever. Povos ainda ignorantes; uma mocidade fogosa, cu-
jos anos vão despontando no horizonte de uma liberdade ainda A parcialidade prevaleceu. Dezembro de 1833 parece ter sido o
mal firmada e pouco esclarecida, abraça com precipitação, e fim de uma época, e da configuração desse mito em torno do brasileiro e
sem o menor exame, tudo quanto pelo prestígio da imprensa se da cidadania política.
ofereça à sua ines perta razão. Qualquer homem sem letras e sem
costumes espalha impunemente princípios falsos, ataca a vida Em 1836 e 1837, alguns acontecimentos marcam de forma ainda
particular e pública do cidadão honesto, inflama as paixões e m~is derradeira esse fim. Leis de limitação à liberdade de imprensa foram
revolve a sociedade. (grifo meu) cnadas. 131 A renúncia de Feijó do cargo de regente, anos após sua decisiva
atuação como ministro da Justiça em 1831, da qual já tivemos uma amos-
tra, era simultânea à formação do regresso conservador. Morria também o
Acrescentava ainda: "Cautelas devem ser tomadas, para que o moderado Evaristo da Veiga . Era o "fim" da imprensa vociferante e o iní-
escritor nem possa iludir a boa-fé dos leitores, ocultando seu nome tal- Cio da época de predomínio mais definido da classe senhorial. Suceder-se-
vez bem desprezível, nem escape ao pronto castigo de sua temeridade". l:m outras formas de gramática da mestiçagem e de participação na gesta-
Afinal, eram indivíduos "sem educação" os que alimentavam as "calúni- Çao da nacionalidade.

78 79
NorAs 10 Nova Luz Brasileira, n° 145,8 de junho de 1831.

II Roger Chartier recuperou os variados usos populares da palavra escrita para o contexto
europeu. As práticas da escrita, in Roger Chartier e Philippe Aries (orgs.), História da vida
Apud Bernardino José de Sousa, Dicionário da terra e da gente do Brasil, "Onomás- privada, v. 3: Da Renascença ao século das Luzes, p. 147.
tica gera l da geografia brasileira", p. 73-74.
12 Processo Lafuente (Autos de sumário ... pelo motim e assuada, ajuntamento ilícito no largo do
2 Max Weber, Relações comunitárias e étnicas. As reflexões do sociólogo alemão desnatura- Paço e lugar do Correio no dia doze de setembro da parte que faz culpa ao réu Maurício
lizam a noção de comunidade étnica, apontando as diversas condições- que se acrescentam José Lafuente. 1832). Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos. (Grifo meu)
e combinam à origem racial- para que se produza o sentimento de comunidade e a crença
na comunidade étnica. !3 Roger Chartier, A ordem dos livros: leitores , autores e bibliotecas na Europa entre os
séculos XIV e XVIII, p. 12.
3 Sobre a ação do inventário como atividade do historiador que evita impor seus próprios
conceitos como eternos, e que por isso preza a historicidade, a descontinuidade reconhe- !4 Liberdade de imprensa- projeto para Constituinte, 1823. Biblioteca Nacional, Seção
cendo as tensões entre passado e presente, ver Paul Veyne, O inventário das diferenças. de Manuscritos.

4 A historiografia produzida na segunda metade do século XIX sobre esse período, que 15 Lei de 20 de setembro de 1830, sobre o abuso da liberdade de imprensa. Coleção das leis
usou depoimentos orais e documentos , representada principalmente por Moreira de do Império do Brasil, 1830, p. 35-49. Arquivo Nacional.
Azevedo, é muito parcial em defesa dos valores de sua própria época política, e do
desenrolar político do processo de formação do Estado, em concepção semelhante à de !6 Moreira de Azevedo, Origem e desenvolvimento da imprensa no Rio de Janeiro, p. 186.
Justiniano José da Rocha: encontram-se pouquíssimas observações sobre os grupos Obra clássica sobre o tema é a de Nelson Werneck Sodré, História da imprensa no Brasil.
sociais ali interessados em fazer política e mesmo sobre seus objetivos e projetos. Os
seguintes artigos são de autoria de Moreira de Azevedo (ver bibliografia): Os tiros no 17 Ver o artigo de Alfredo de Carvalho, Gênese e progresso da imprensa periódica no Brasil.
teatro: motim popular no Rio de Janeiro; Motim político de 3 de abril de 1832 no Rio de O volume da RIHGB publicado em 1908 contém catálogos de periódicos das províncias,
Janeiro; Sedição militar de julho de 1831 ; Motim político de 17 de abril de 1832 no onde se nota, especialmente no caso do Pará, Maranhão e Pernambuco, grande proximidade
Rio de Janeiro; Origem e desenvolvimento da imprensa no Rio de Janeiro; Motim político com o que ocorreu no Rio de Janeiro: a articulação entreatuação política, cultura cômica e
de dezembro de 1833 no Rio de Janeiro. No que concerne ao horizonte teórico em que termos de identidade.
esses movimentos foram enquadrados, bem como a posterior ordem política consoli-
dada, teve papel fundamental o autor Justiniano José da Rocha em seu célebre panfleto 18 Não foi possíve! localizar praticamente nenhuma documentação (como recibos de assinaturas
Ação, reação, transação. Escreve ele: "A anarquia foi comprimida!". ln Raimundo ou pedidos de impressão) produzida pelas tipografias privadas . Sobre a Tipografia Nacional
Magalhães Júnior, Três panfletários do Segundo Reinado , p. 178-180. Sua concepção de (nome que recebe a Impressão Real após 1822) encontram-se alguns ofícios no Arquivo
história, que revela sua representação sobre seu próprio tempo , é analisada por limar Nacional: Ministério do Reino e do Império. Tipografia. Ofícios. 1822-1849.
Rohloff de Mattos, O tempo saquarema, p. 133 e segs.
19 Laurence Hallewell, O livro 110 Brasil (sua história), p. 80-81.
5 A expressão foi utilizada por João José Reis que, referindo-se à guerra da Independência na
Bahia, em 1822 e 1823, explora de forma interessante os insultos de "cabra" e "caiado", 20 Por exemplo Sentinela da Liberdade, no 2, 24 de novembro de 1832: "Triste e bastante
apontando uma "linguagem racial como dispositivo de combate". O jogo duro do Dois de ridículo é o caráter que representa no teatro do jornalismCl um escritor, quando vendido a um
Julho: o 'Partido Negro' na Independência da Bahia, in João José Reis e Eduardo Silva, partido qualquer exprime não a linguagem do homem probo, isto é, a linguagem da convicção:
Negociação e conflito, p. 85. Esse artigo será retomado adiante. ele torna-se o órgão daqueles a cujo soldo está sujeito". A crítica era dirigida ao redator do
Independente.
6 A ortografia dos periódicos foi atualizada, embora tenha sido mantida a pontuação original,
mas não o uso de minúsculas e maiúsculas. Todos os grifos que aparecem são originais; 21 Stanley Stein, A historiografia do Brasil, 1808-1889, p. 100.
nenhum grifo foi acrescentado. Optei por não enfatizar nenhuma citação dos periódicos, pois
diferentes formas de grifo faziam parte da diagramação original desses impressos (itálicos, 22 O Lafuente, n° 1, 16 de novembro de 1833.
negrito, palavras inteiras em maiúsculas e, às vezes, os tipos invertidos de ponta-cabeça).
Procurei ainda, na medida do possível, ser fiel a esses grifos originais. 23 Sete de Abril, no 86, 1833, apud José M. Vaz Pinto Coelho, Cancioneiro popular
brasileiro, p. 111.
7 O Indígena do Brasil, n° 3, 16 de outubro de 1833.
24 D. Pedro /l, no 1, 14 de novembro de 1833.
8 Tribuno do Povo, n° 29, abril 1831.
25 A esse respeito, a lei de 1830 operou uma mudança importante, consolidada em 1837
9 Aurora Fluminense, n° 532, 19 de setembro de 1831. quando um decreto estreitou o cerco aos "abusos de exprimir os pensamentos". As duas

80 81
normas imputavam ainda o tipógrafo, caso o autor não fosse designado por este . Lei de É este o divertimento com que a Sociedade pretende festejar o memorável dia de S. Diogo" .
20 de setembro de 1830, sobre o abuso da liberdade de imprensa, op. cit., p. 35 a 49; e A "Floresta" era o apelido da chácara de um dos membros do governo regencial. o
decreto de 18 de março de 1837, dando instruções sobre o processo e sentenças nos crimes Evaristo , n" 5, 15 de novembro de 183 3.
por abuso de liberdade de imprensa, Coleção das leis do Império do Brasil , 1837 ,
parte II , p. 11-13. Arquivo Nacional. 36 Lafayette Si lva, História do teatro brasileiro , p. 33.

26 Michel Foucault, A ordem do discurso , p. 26-37; Roger Chartier, A aventura do livro: 37 J. Ga lante de Souza, O teatro no Brasil, p. 145.
do leitor ao navegador, p. 23 e 3 1-3 8.
38 Tamina, segundo o Aurélio, origina-se do quimbundo ritamina, "tigela" de ração dos escravos,
27 O Exaltado , n" 1, 4 de agosto de 1831. podendo significar também a própria ração, e a porção de água que em época de seca poderia
ser retirada por cada pessoa das fontes públicas. Nesse caso, não há sentidos figurados, pejora-
28 Traslado do processo a que deu [sic] motivo os tumultos das garrafadas do dia 13, 14 e 15 tivos , indicados pelo dicionário. A palavra mandu vem do tupi e seu uso popular expressa
de março de 1831. Biblioteca Nacional , Seção de Manuscritos. " tolo". O mesmo sentido para a palavra tamina aparece em Antônio Moraes e Silva, op. cit.

29 A expressão é de John Armitage, História do Brasil, p. 219. 39 J. Galante de Souza, op. cit., p. 128.

30 Muitos e diferenciados foram os momentos de conflito no Rio de Janeiro naqueles anos 40 O Teatrinho do Sr. Severo, n" 3, 1833.
de 1831, 1832 e 1833. Ainda antes da Abdicação, as "garrafadas" em março; a sedição
militar de julho do mesmo ano; os "tiros no teatro" ; a rebelião da ilha das Cobras; os 41 Martins Pena, Comédias , p . 54
motins políticos em abri l de 1832; a destruição de tipografias e a invasão da Soc1edade
Militar em dezembro de 1833 são alguns mais conhecidos. Ver os segmntes arugos de 42 Vejamos essa caricatura textual publicada no Evaristo (n" 5, sexta-feira, 15 de novembro de
autoria de Moreira de Azevedo: Os tiros no teatro: motim popular no Rio de Janeiro, 1833): "Ah! sr. Ripanso, venha cá escute, onde vai tão aflito, sem pescoço, com esse coletinho
op . cit.; Motim político de 3 de abril de 1832 no Rio de Janeiro , op. cit.; S~dição militar de três polegadas? V. S. anda de aposta a fazer rir o público, pelo módico preço de meia
de julho de 1831, op. cit.; Motim político de 17 de abril de 1832 no R10 de Jane no, cara?[ ... ] não apareça em público por preço tão módico, mande arranjar no museu um quar-
op. cit.; Motim político de dezembro de 1833 no Rio de Janeiro, op. cit. tinho, encaixe-se lá todas as quintas-feiras, e quem se quiser rir à sua custa, pague dois vin-
téns, a concorrência há de ser fortíssima, não dê o cavaco se lhe disserem alguma coisa porque
31 Aurora Fluminense, n" ilegível, 22 de agosto de 1831. agora não há remédio senão ter paciência, o público tomou-o à sua conta, meu goiaba".

32 Dos números 1 a 6, apenas o n" 5 é datado: 29 de outubro de 1833. A autoria é atribuída 43 Mikhail Bakhtin, A cultura popular na Idade Média e 110 Renascimento: o contexto de
pelo Sete de Abril a João Batista de Queiroz. François Rabelais.

33 Se<>undo Hélio Vianna , esses personagens eram caricaturas de Francisco Lima e Silva, 44 Martins Pena, Folhetins, apud Vilma Sant' Anna Arêas , Na tapera de Santa Cruz: uma
João Bráulio Muniz, Evaristo da Veiga , Aureliano de Sousa e Oliveira, Joaquim José leitura de Martins Pena, p. 43.
Rodrigues Torres e Nicolau P. C. Vergueiro. Hélio Vianna, A pequena imprensa na
Regência Trina Permanente (1831-1835). 45 Georges Balan dier, O poder em cena, p . 30.

34 Os significados aqui citados para certos termos têm como referência o Novo dicionário 46 ibidem , p. 25.
Aurélio, 1• ed., Nova Fronteira, s.d.; Antônio Moraes e Silva , Dicionário da língua
portuguesa recopilado. 47 Simplício Poeta, n" 6, 26 de fevereiro de 1832.

35 Nesse jornal, embora sem haver a opção exclusiva pelo esti lo cômico, aparecem per- 48 D. Pedro II, n" 1, 14 de novembro de 1833.
sona<>ens parecidos: "Teatro particular da Floresta
Terça"feira 12 do corrente por ser dia de S. Diogo haverá o seguinte divertimento dividido da 49 O Filho da Terra, n" 1, 7 de outubro de 1831.
seguinte maneira, depois que a orquestra tiver executado a bem aceita sinfonia intitulada a mo~e
dos grilos , terá lugar um elogio da composição do Mané Mendes Pangaio, no qual aparecera o 50 O episódio do teatro será novamente abordado.
retrato do herói da clúmangada Jeifó, com um coroa de c ... Findo o elogio terá lugar a bem ace1ta
comédia da composição do Pemeira, intitulada a Emigração dos quatrocentos contos, no fim ?o 51 Otávio Tarqüínio de Sousa, História dos fundadores do Império do Brasil , v. 9, P· 143.
primeiro ato, o goiaba da rua dos Pescadores, dançará a caxuxa, [ilegível] o Jeremias cantara a
ária fúnebre da queda do 30 de Julho; o pinto carranca tocará um concerto de bodoque, acompa- 52 O Martelo, n" 4, 22 de setembro de 1832.
nhado de puita pelo cônego 1gnez, e finalizará o divertimento , com o roubo do [ilegível] dos
Orfãos, da composição do mesmo Pemeira, onde se verá boas mágicas arranjadas pelo general 53 O Homem de Cor, n" 1, 14 de setembro de 1833. A partir do n" 3, o título muda para O
fêmea, e o Almirante Genebra executará ao vi vo a parte de um oficial bêbado. Mulato ou o Homem de Cor.

82 83
54 O Mulato ou o Homem de Cor, no 3, 16 de outubro de 1833 .
caramuru", e "Davi da Fonseca Pinto, escriba dos Andradas, chegou a lastimar que Evaristo
tivesse escapado". Nelson Werneck Sodré, História da imprensa no Brasil, p. 142.
55 O Evaristo, no 3, 12 de outubro de 1833.
75 Sentinela da Liberdade, no 7, 15 de dezembro de 1832.
56 O Homem de Cor, no I, 14 de setembro de 1833.
76 A expressão aparece no Aurora Fluminense de 9 de setembro de 1833.
57 A epíg~afe do Brasil Aflito ganhou retrospectivamente um peso sinistro: "Quem passa a
vida, que eu passo I Não pode 11 morte temer; I Pois a morte não assusta I A quem está
77 Sentinela da Liberdade, no 8, 20 de dezembro de 1832.
sempre a morrer. (Por Frei Caneca, mártir em 1824)". No 1, 20 de abnl de 1833.
78 A referência a essas profissões deve ser interpretada com cuidado, pois se numa leitura mais
58 Aurora Fluminense, n° ilegível, 13 de setembro de 1833.
direta pode-se entender que este "mulato" gostaria de alcançar atividades mais vantajosas que as
citadas profissões, por outro lado estes eram termos ligados à maçonaria, e talvez haja aí urna ironia.
59 O Mulato ou o Homem de Cor, n° 4, 23 de outubro de 1833.
79 Sentinela da Liberdade, no 8, 20 de dezembro de 1832 .
60 O Mulato ou o Homem de Cor, no 3, 16 de outubro de 1833 .
80 No dia 30 de julho de 1832 houve uma tentativa de golpe do governo regencial, após a
61 O Evaristo, no I, 26 de setembro de 1833.
derrota no Senado do projeto para a destituição do tutor José Bonifácio. Paulo Pereira de
Castro, A "experiência republicana", 1831-1840.
62 O Mulato ou o Homem de Cor, no 4, 23 de outubro de 1833.
81 Sentinela da Liberdade, n° 8, 20 de dezembro de 1832.
63 Processo Lafuente (Autos de sumário ... pelo motim e assuada, ajuntamento ilícito no largo
do Paço e lugar do Correio no dia doze de setembro da parte que faz culpa ao réu Maurício
82 Sentinela da Liberdade, no 9, 27 de dezembro de 1832.
José Lafuente. 1832). Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos.
83 Sentinela da Liberdade, no 10, 2 de janeiro de 1833.
64 O Mulato ou o Homem de Cor, n° 4, 23 de outubro de 1833.
84 Sentinela da Liberdade, no II, 5 de janeiro de 1833.
65 O Mulato ou o Homem de Cor, n° 5, 4 de novembro de 1833.
85 O Indígena do Brasil, no 3, 16 de outubro de 1833: "Contudo fazei justiça aos verdadeiros
66 Joaquim Norberto de Sousa e Silva, Investigações sobre os recenseamentos da população
exaltados; ficai certos, que, quando esse príncipe galego vier às nossas praias, os exaltados
geral do Império, p. 14-15. O movimento é abordado no segundo capítulo. formando um corpo separado, mostrarão que sabem bater-se em defesa da pátria e da
liberdade, e preferem morrer livres a serem escravos de um lusitano". O redator dava mostras,
67 Jeanne Berrance de Castro, A Guarda Nacional; Edmilson Rodrigues, F. Falcon eM. S.
assim, da ameaça de volta da situação anterior à abdicação.
Neves, A Guarda Nacional no Rio de Janeiro, /831-1918.
86 O Brasileiro Pardo, n° 1, 21 de outubro de 1833.
68 Sobre esse último ponto, ver o prefácio de Sérgio Buarque de Holanda à obra de Jeanne Berrance
de Castro, A milícia cidadã, in Livro dos prefácios, São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
87 Por exemplo em Euclides da Cunha, em Os sertões, que parecia traduzir um sentido compartilhado.
69 O Meia Cara, no 2, 15 de dezembro de 1833.
88 João José Reis, O jogo duro do Dois de Julho: o 'Partido Negro' na Independência da Bahia,
70 Aurora Fluminense, n° 538, 24 de agosto de 1831. A Nova Luz Brasileira utilizava a mesma in João José Reis e Eduardo Silva, Negociação e conflito, op. cit., p. 85.
injúria: "os membros grandes criminosos do gabinete secreto, os homens que estão senhores
dessa manobra haitiana". N° 145, 8 de junho de 1831. 89 O Crioulinho, n° I, 30 de novembro de 1833.

71 Aurora Fluminense, n° 818, 20 de setembro de 1833. 90 O Filho da Terra, no 1, 7 de outubro de 1831; O Veterano ou o Pai do Filho da Terra, no 1,
24 de outubro de I 831.
72 Thomas Flory, El juez de paz y el jurado en el Brasil imperial, p. 49-50.
91 O Cabrito, no I, 7 de novembro de 1833.
73 Sentinela da Liberdade, no 1, 20 de novembro de 1832.
92 O Indígena do Brasil, n° 3, 16 de outubro de 1833.
74 Segundo o jornal, seria uma promessa que Evaristo da Veiga teria feito "se escapasse". Trata-se
provavelmente do atentado que sofrera, em 8 de novembro de 1832: tiros o atingiram quando 93 Gladys Ribeiro teceu uma exaustiva análise sobre a questão da naturalização de estran-
estava na sua livraria. Segundo Nelson Wemeck Sodré, a responsabilidade coube ao "campo
geiros, sobretudo no caso da imigração portuguesa, mapeando os conflitos sociais aí envol-

84
85
vidos. A liberdade em construção: identidade nacional e conflitos antilusitanos no 118 ibidem, p. 217.
Primeiro Reinado.
119 Laurence Halle we ll , o p . cit., p. 83.
94 O Mart elo , n" 3, 14 de setembro de 1832.
120 A expressão é citada por Stuart Schwartz, The formati on of a co lonial identity in Braz il.
95 O Evaristo, n" 2, 3 de o utubro de 1833.
121 A expressão é de Michel Foucault, em artigo onde procura criticar uma concepção de his-
96 Referia-se assim à chácara onde habitava um dos membros do governo regenc ial. tória que acreditaria na pos sibilidade de reconstituir gêneses lineares, origens e continui-
dades: "A genealogia é cinza: ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela trabalha com
97 O Evaristo, n" 2, 3 de outubro de 1833. pergaminhos embaralhados, riscados , várias vezes reescritos ". Nietzsche, a genealogia e a
história, in Microfísica do poder, p. 15 .
98 O Evaristo, n" 4, 29 de outubro de 1833. Em todos os números pesquisados há referências
a militares injustamente perseguidos. 122 Joaquim Manuel de Macedo , Lições de his tória do Brasil, p. 368.

99 Roland Barthes, Mitologias , p. 141. 123 Aurora Fluminense, n" 851, 9 de dezembro de 1833 .

100 ibidem, p. 150. 124 O Crioulinho, n" I , 30 de novembro de 1833.

101 Carl Seidler, Dez anos no Brasil, p. 322 . 125 Thomas Hallewell afirma que Francisco de Paula Brito, proprietário da Tipografia Flumi-
nense, resistiu no dia 2 de dezembro de 1833 a uma multidão que tentava invadir seu esta-
102 ibidem, p. 51-53. belecimento, furiosa com a publicação de O Restaurador. Thomas Hallewell, op. cit. , p. 84.

I 03 Lafayette Silva, op. cit., p. 173. 126 Diário de Anún cios, n" 10, 15 de junho de 1833.

104 J. Galante de Souza, op. cit. , p. 153. 127 Relatório do ministro da Justiça. 1833. Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1834.

I 05 Vil ma Sant' Anna Arêas, op. cit., p. 28. 128 Relatório do ministro da Justiça. 1831. Rio de Janeiro , Tipografia Seignot-Piancher, 1832.

I 06 Carl Seidler, op. cit. , p. 54 . 129 O Brasil Aflito, n" 4, 17 de maio de 1833 .

107 Ver artigo de Moreira de Azevedo, Os tiros no teatro: motim popular no Rio de Janeiro, op. cit. 130 O Brasil Aflito, n" 3, 9 de maio de 1833.

108 Aurora Fluminense , n" 541 , 10 de outubro de 1831. 131 Decreto de 18 de março de 1837, dando instruções sobre o proces so e sentenças nos crimes
por abuso de liberdade de imprensa. Coleção das leis do Império do Brasil de 1837 , parte
109 Carl Seidler, op . cit., p. 54-55. II, p. 11-13. Arquivo Nacional.

li O Nova Luz Brasileira, n" 133 , 22 de abril de 1831.

III Flora Sussekind, O Brasil não é lon ge daqui.

112 Carl Seidler, op. cit., p. 58.

113 ibidem, p. 52-53.

11 4 ibidem, p . 43.

115 Tras lado do processo a que deu motivo os tumultos das garrafadas do dia 13 , 14 e 15 de
março de 1831. Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos .

11 6 Gladys S. Ribeiro , op. cit.

11 7 John Armitage, História do Brasil, p. 249.

86 87
CAPÍTULO 2

Inventário das identidades: os censos e a cor

Bode s.m., fig., mulato, mestiço. "Quanto às minhas belas qua-


lidades físicas, é franqueza, sou moreno na língua d'aqueles que
julgam que não me conheço n'este ponto; na linguagem oficial,
sou pardo; e na minha, sou bode ou cabra; mas fiquem também
sabendo que tenho o sangue vermelho" (Monitor Sul Mineiro,
periódico da Campanha, Minas Gerais, 2 de abril de 1884). [... ]
A metáfora, de procedência portuguesa, funda-se na catinga pró-
pria da raça africana comparada com o bodum dos cabritos. 1

O texto acima manifesta as clivagens entre os gestos de designar e de


designar-se. Do criativo manancial da imprensa a uma forma nova de conceber e
conhecer a população, passa-se a outras finalidades nas atribuições de identidade.
A irônica passagem, meio século após o período regencial, parecia conservar ain-
da aquela intensidade contida no ato de proclamar-se "sou bode". Zombava-se ali
das várias linguagens e códigos subjacentes aos termos moreno, pardo, cabra e
outros, desvendando um jogo de perspectivas. A palavra moreno- que provavel-
mente não era muito comum na década de 18302 - seria lançada, segundo o "Bode",
pelos dissimuladores aos que não se conhecem, aos inconscientes da própria iden-
tidade. A diferença entre moreno e bode consistiria no fato de que o segundo termo
é intencional, é um ato de escolha e não de atenuação. Pardo é a forma como a
linguagem oficial o vê e classifica. E o sangue, vermelho como o de qualquer bode
e qualquer homem. O essencial na fala publicada no periódico mineiro é a trans-
formação da injúria- o bodum, a catinga- em afirmação de identidade. 3

A variação dos designativos raciais e de identidade obedecia a práti-


cas específicas. Da teatral imprensa aos censos populacionais, os termos tive-

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ram usos diferenciados . Palavras como pardo foram usadas nos censos como postos, recrutamento, ou às vezes- quem sabe?- a própria classificação. Pode
categorias de classificação e quantificação, não mais como forma de fazer ser 0 caso revelado no trecho em que o jornal O Homem de Cor combatia o
política. Tratava-se de um saber técnico que pretendia esvaziar o seu próprio desígnio político de fazer, no meio da população livre, uma divisão por cores.
sentido político. Práticas de identificação, os censos procuraram ordenar a Talvez não fosse demais citá-lo novamente:
população em um discurso - ou em alguns discursos , fragmentados ou isola-
dos, que partiram de combinações entre um leque de princípios: a condição, a
naturalidade, o sexo, a idade, a cor. O eixo deste capítulo trata dos termos Não sabemos o motivo porque os brancos moderados nos hão
utilizados nos censos e outros documentos estatísticos sobre a população, no declarado guerra, há pouco lemos uma circular em que se decla-
processo de formação do Estado imperial; investiga como tais termos foram ra que as listas dos cidadãos brasileiros devem conter a diferen-
relacionados enquanto complementares e opostos, formando em cada tabela ça de cor e isto entre os homens livres! A Constituição tantas
ou quadro um sistema de classificação; observa a questão da menção ou não vezes desflorada pelos moderados , é hoje apenas letras de que
da cor, da sua imbricação com a condição social e jurídica, e sua relação com apreço nenhum fazem os liberais por exce lência. Seria melhor
as categorias de classificação . Pode-se dizer, como o desconhecido autor auto- que tomassem o conselho do Homem de Cor que não exasperas-
denominado "bode", que nosso objeto é agora a "linguagem oficial". sem os mulatos sempre amigos da lei e da ordem, e se deixas-
sem de distinções que em verdade são fatalíssimas, mormente
Em meio a variados suportes e instâncias administrativas- desde listas a quando a nação brasileira se acha dilacerada pelos partidos[ ... ].'
serem preparadas pelos inspetores de quarteirão a relatórios ministeriais-, a rela-
ção do Império com as cores de sua população oscilou segundo o olhar do recen-
seador, que foi constrangido por diferentes variáveis e situações, e estava longe de A "guerra" a que se refere o trecho anterior consistiu nas disputas
ser um seguidor fiel de instruções. Organizar o recenseamento era ati vidade que se pela participação na sociedade política, advogando especialmente para que
distribuía entre distintos braços da administração, como párocos, subdelegados, não houvesse distinção de cor entre os cidadãos livres. Já o conjunto de
juízes, presidentes de província. Ao longo do tempo, tais braços mostraram-se esforços do governo para transformar a totalidade de habitantes em uma
inermes. Chefes de família, que teriam a tarefa de preencher as fichas, também população procurava atingir um contingente maior, subdividindo-o em
resistiam a estas, bem como ao olhar do recenseador. Na verdade esse olhar, su- categorias para melhor geri -lo e para restaurar as hierarquias sociais. Não
postamente como olhar central, muito pouco viu, apesar da insistência de minis- se tratava mais, portanto, da definição da sociedade política, uma vez que
tros e outras autoridades, sempre atentos ao que começavam a entender e gerir aproximando-se o final da década de 1830, as animadas disputas foram
como população. Os números difícil e inconstantemente chegavam ao ministro, subjugadas em nome de mecanismos mais restritos desta definição. Estava
deixando de ser enviados pelos presidentes provinciais. Por sua vez, estes não em jogo delimitar subconjuntos no conjunto da população: a sociedade
recebiam as informações solicitadas. Também inconstante foi o envio dos mapas civil, os escravos, outros contingentes suscetíveis de serem aproveitados
de batismo, casamento e óbito, cuja responsabilidade cabia aos párocos. como mão-de-obra, os estrangeiros, os índios. Nessa problemática procu-
raremos acompanhar especificamente a classificação pela cor, em suas vi-
Índios, mulatos , pardos , crioulos, pretos africanos, nacionais, livres, cissitudes e descaminhos, apostando no quanto a própria dinâmica da so-
escravos, brancos são agora peças de tabelas manuscritas e impressas, ou en- ciedade constituiu uma forma de resistência a esta ordenação.
tão objeto de casas reservadas às "observações" onde se procurava dar conta
do que parecia insubmisso à ordenação. A perspectiva mais fértil será entender o Estado não como um apare-
lho forte previamente dado, mas como um poder cuja constituição dependi~
Entre os representantes do governo houve muita resistência ou indolên- desse tipo de prática e representação em torno da ordenação da população. E
cia para preparar tabelas, conferir informações e, sobretudo, fazer com que elas significativo que os esforços para organizar os censos populacionais tenham
fossem dadas, assim como entre os habitantes, que se esquivaram, temendo im- se tornado mais presentes após o contexto de expecta ti v a e incerteza política

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do início do período regencial. No caso da Corte, em 1834 houve uma tentati- A utilidade da estatística
va de contagem do número de habitantes que acabou fracassada. Pouco mais
tarde, em 1838, novo recenseamento de alcance também restrito. De certa for-
ma, o conhecimento da população era virtualmente paralelo ao processo de E_~ 1849, o dr. ~o?er;,o Haddock Lobo tecia suas "Considerações gerais
centralização política e administrativa. limar Rohloff de Mattos situa este co- sobre a utlhdade da estatistica em texto manuscrito que acompanha 0 Recensea-
nhecimento no conjunto mais amplo daquele processo: mento da população do município neutro, dirigido por ele naquele ano. Ali de-
fendia sua concepção acerca dessa ciência e expunha seus princípios e utilid~de.7

Mas a construção do público - que aqui se confunde, em larga A estatística seria uma forma de governo. Sua ausência expressaria
medida, com a constituição de um Poder administrativo- impu- ignorância e barbárie. Seria não simplesmente uma ciência, mas a "verdadeira
nha ainda um esquadrinhamento. Do território e dos homens ciência dos fatos sociais representada por termos numéricos". Haddock Lobo
que ele continha. Mapas, plantas, cartas topográficas e corográ- procurava ainda assim defender sua utilidade, comparando-a à história e à ge-
ficas foram elaboradas, permitindo a delimitação do território, ografia, ciências já reconhecidas, e que seriam mesmo superadas pela estatís-
das circunscrições administrativas, judiciárias e eclesiásticas; tica. Esta trataria não de "fatos exteriores e passados" como a história, mas da
possibilitando um conhecimento mais detalhado das potenciali- "vida íntima e civil", de "elementos misteriosos da economia da sociedade"
dades do território imperial; tornando mais ágil a movimenta- em seu "movimento e situação". Mais que a "descrição dos lugares", da quai
ção dos agentes da centralização e, assim, franqueando os limi - se incumbe a geografia, a estatística "calcula e analisa" e, complementar à
tes da Casa. Informações estatísticas foram levantadas, procu- economia política, seria capaz de orientar "pela razão e certeza todos os pode-
rando-se articular a 'riqueza' de cada uma das províncias às ne- res políticos e administrativos". "A economia política convence pela audácia
cessidades materiais do governo do Estado. 5 com que marcha pelas regiões mais elevadas dos sistemas especulativos; a
estatística demonstra por meio de cifras as necessidades dos povos, seus pro-
gressos diurnos, e todas as particularidades felizes ou infelizes de seus desti-
Michel Foucault relaciona a objetivação da população à gênese de nos" . Acrescentava o autor que a estatística envolve-se tanto com a vida públi-
um saber político que denomina "governo dos homens", ligada à emergên- ca quanto com a vida particular. Esse conhecimento supostamente tão onipre-
cia da "razão do Estado", iniciada em fins do século XVI e começo do sente e altaneiro abrangeria o destino da população, a riqueza, a segurança, a
seguinte. Guardando certa continuidade com esse processo, mas em con- defesa, a comunicação, a salubridade. O "recrutamento que organiza a força
texto marcado pelo liberalismo, o autor investiga o nascimento da "biopo- pública", o estabelecimento dos impostos, o conhecimento sobre a produção
lítica" a partir do século XVIII, acentuado no século seguinte, e que defi - agrícola, industrial, comercial, os "progressos da instrução pública", as "me-
ne como uma forma de racionalizar, em termos de prática governamental, ?idas que regem os estabelecimentos de beneficência ou de repressão para o
os "fenômenos próprios a um conjunto de seres Vivos constituídos como mteresse das classes inferiores" são as preocupações constantes da adminis-
uma população". A saúde, a higiene, a natalidade, a longevidade, as raças tração e onde se torna indispensável o socorro da estatística.
seriam alguns desses fenômenos. 6
. . Segundo Haddock Lobo, o recenseamento da população seria o passo
Pode-se agora considerar o quadro teórico e político, no contexto da mrcial de qualquer conhecimento estatístico mais sólido. Ele lamentava que
formação do Estado no Brasil, onde foi definida a noção de população. As no âmbito do Império sequer tivesse sido realizado até aquele momento. Note-
diferentes práticas orientadas por essa noção construíram uma realidade soci- se que a ausência permanecerá até 1872, ano em que finalmente foi realizado o
al, consistindo em um processo bem mais complexo do que o mero recolhi- Recenseamento geral da população do Império do Brasil. Ao longo deste capí-
mento de informações. Concentrar a atenção nesse quadro teórico e político ~~1?, teremos a oportunidade de acompanhar alguns aspectos dessa longa his-
explicitará as bases da "linguagem oficial" sobre as cores da população. ona que antecede o censo de 1872.

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Dentre as diferentes aplicações da estatística apontadas por Haddock Ao governo cabia pois a tarefa de implementar os meios de uma
Lobo , dava-se atenção especial às estatísticas médicas, criminais e de instru- estadística, forma da "força e grandeza de um país", e para isso solicita v a
ção pública, publicadas, embora sem regularidade, nos relatórios ministeriais. o apoio da Câmara. "Sem ela ou falham , ou dificultam-se todos os cálcu-
los financeiros, e administrativos, e mal podem avaliar-se, e mesmo co-
A preocupação em conhecer numericamente a população não é exclusi- nhecer-se os melhoramentos morais, físicos, científicos e políticos, que se
va do século XIX. Em 1776, a orientação sobre a relação anual dos habitantes da devem fazer na organização social, e nas suas di versas partes, e relações" .to
capitania da Bahia, "dividida nas dez classes insinuadas", procurava cumprir A palavra traduzia, portanto, a intrínseca relação entre aquele tipo de co-
"um ponto de tanta importância como é o de saber Sua Majestade o número de nhecimento e o Estado .
vassalos que habitam nos seus domínios". As dez classes mencionadas seguiam
o critério de idade e sexo, e o número de nascimentos e mortes naquele ano.
Talvez porque se tratasse de "vassalos", não há referência a lugar de nascimento, A população e o território
cor ou condição social (livre ou escravo). 8 Afinal, uma primeira divisão já estava
estabelecida, pois a relação incluiria apenas os vassalos. O exemplo da época co-
lonial contrasta com o tipo de preocupação que orienta o Estado já autónomo no Um dos elementos da gestão da população seria velar pelo seu cres -
século seguinte: a noção de população como algo global - que por isso mesmo cimento, tornando-a correspondente à "grandeza do Império". Fazer com
precisaria ser distinguida com mais profundidade quanto à condição, nacionalida- que a população crescesse dependia de seu controle e direcionamento. O
de e, eventualmente, à cor-, seu comportamento, sua equação com a produção da ministro do Império em 1834, Joaquim Vieira da Silva e Sousa, definia
riqueza, o número de eleitores, os impostos, o recrutamento militar. Enfim, a po- meios "internos" de crescimento da população, que consistiam em ofere-
pulação como algo cujo fluxo e movimento deveriam ser organizados. cer benefícios aos homens casados com renda superior a quatrocentos mil
réis para que obtivessem os "empregos"- leia-se empregos públicos- que
Afinal, o uso da estatística foi paralelo à soberania do Estado imperial garantiriam o sustento de sua família. Mas também as "famílias de campo-
sobre um território e uma população. Tentava-se articular, ainda que burocrati- neses indigentes" teriam seu quinhão, sendo encaminhadas à formação de
camente, a centralização das instituições mais locais (como o pároco e o juiz de "colónias nacionais" em terras devolutas, próximas a estradas e rios nave-
paz). O interessante na história desse processo, é que ele não foi desprovido de gáveis . Os efeitos da gestão da população disseminavam-se: seleciona-
turbulências, descentralizações, descaso, oposições e formas de resistência. vam-se assim os empregados públicos, e a pobreza rural era transformada
em adequada ocupação territorial. 11
Indispensável seria a "estadística", tal como era a palavra usada por
Bernardo Pereira de Vasconcelos ao apresentar o censo da população da Corte As palavras "população" e "colonização" conjugavam-se nos discur-
empreendido em 1838, e que teve resultados bastante limitados. Reconhecia sos ministeriais. 12 No conjunto dos relatórios evidencia-se que gerir a popu-
de toda forma as dificuldades de tão precioso conhecimento : lação seria, entre outras medidas, transformá-la pela via da colonização. Co-
lonos seriam mais que simples habitantes ou unidades da população. Poderi-
am ser nacionais ou estrangeiros - ainda que cada vez mais tendessem a ser
Não quero eu dizer que possamos desde já ter uma estadística preferidos os estrangeiros- e seriam, além de "braços para a lavoura", com
completa, porque é ela obra de muitos anos , de muitos desve- "amor ao trabalho", vetores de uma ordenação na ocupação territorial. Pre-
los , de muitas combinações, e estudos, e exige uma extensão tendia-se que as colónias fossem lugares de ordem, dotadas de indivíduos
enciclopédica de conhecimentos, para o que é necessário o em- honestos, dedicados à agricultura. Ainda que tenham de certa forma fracassa-
prego de muitos talentos, e de muitos materiais : quero sim, que do , considerando os principais eixos da economia do Império (sobretudo a
se principie a corrigir os elementos, que hão de pouco a pouco estrutura fundiária), 13 a atenção constante do governo, expressa nos relatóri-
ir formando o grande volume deste interessante trabalho. 9 os, indica a importância do projeto. Os colonos eram entendidos como "bra-

94 95
ços livres", ao passo que os escravos seriam eternamente escravos, ainda que nos podia vir um imenso número de colonos infatigáveis, que
o tráfico terminasse, e houvesse um aumento do número de alforrias. povoassem a beira-mar, e os sertões do nosso Império. 16

Foram muitos os planos e idéias de transferir a população, de organizar


seu movimento caótico em benefício da ordem, retirando das cidades ou dos Se não temos "colonos infatigáveis", fiquemos mesmo com a "gente
campos seus segmentos "indolentes", moldando-os ao progresso do Império. A preta", esperando benefícios da "mistura de outras castas".
estatística procurava conhecer a população em seu movimento, e parecia não
haver, por parte das autoridades ministeriais, limitações para os projetas de como Ao contrário, o bacharel em direito Henrique Jorge Rebelo, em 1836, enfa-
traçar tais movimentos. Até porque o próprio tráfico, sendo lembrada sua proibi- tiza a opinião que parece começar a se tomar corrente, e que o ministro da Justiça já
ção nos relatórios posteriores a 1831, 14 era uma questão de movimento. Movi- defendera. Para ele, a reforma da população incluía a colonização por "nações civi-
mento populacional inconveniente, ao menos na aparência. Chegou-se a propor lizadas", preferencialmente os alemães, suíços, irlandeses; como complemento, de-
o movimento inverso, de que o Brasil seguisse o exemplo da "Libéria dos ame- veria ser providenciado o retorno dos "desgraçados africanos", "entes sem cultura e
ricanos", e criasse um território para os africanos emancipados que aqui vaga- civilização", à África. Mais do que o desordenado crescimento numérico da popula-
vam, à mercê de ambiciosos exploradores, para quem eram distribuídos, mas ção, Rebelo defendia o aumento do número de "indivíduos cidadãos":
que não cumpriam suas obrigações. O que os tornava, contudo, perigosíssimos
era sua "opinião de livres entre os mais escravos". 15 Tal afirmação ocorria em
um contexto de apreensão, e mais especificamente no início de 1835, mesmo Abandonar o infame contrabando de africanos, porque não é o
ano da revolta dos escravos em Salvador, conhecida como Revolta dos Malês. seu número que fará aumentar a população do Brasil; essa não
nos convém. Deve introduzir as máquinas, sofrer ao princípio
Porém, poucos anos antes, em 1827, a preocupação estatística era dis- algumas privações e incômodos, para depois perceber maior uti-
tinta, sendo o tráfico visto como elemento positivo na ocupação territorial. A lidade. Não é o aumento de indivíduos o que faz a boa popula-
Comissão de Diplomacia e Estatística, condenando a convenção com a Ingla- ção de um país, é o aumento de indivíduos cidadãos. [... ]
terra sobre o prazo para o fim do "comércio" de africanos, elencava os preju-
ízos econômicos que daí adviriam, dentre os quais a dispensa do positivo flu- Sim, vão outra vez habitar as áridas margens do Senegal esses fi-
xo, algo nefasto ao Brasil, na medida em que outras nações possuiriam já uma lhos de incultos campos, esses selvagens dignos da compaixão da
numerosa população. Traduzia-se o tráfico de escravos como "recrutamento humanidade ... Se o Brasil quer aumentar sua população, mande vir
de gente preta". Não antes de um remoto tempo futuro, e ocorrendo uma "mis- colonos alemães, suíços e outros de outras nações civilizadas, que
tura de castas", poderiam surgir daí benefícios maiores para a pátria. os podem dispensar. Desta maneira não sentiremos a falta dos africa-
nos, e nossa civilização se engrandecerá. É preciso porém que oBra-
sil faça adaptar as colônias a lugares próprios à sua manutenção.' 7
É prematura [a convenção com a Inglaterra] por não termos por
ora no Império do Brasil uma massa de população tão forte, que
nos induza a rejeitar um imenso recrutamento de gente preta, que Conhecer a população - entendendo essa ação como criadora de certa
pelo decurso do tempo, e pela mistura de outras castas, chegaria realidade política - seria algo simultâneo à sua regulação e ordenação. No
ao estado de nos dar cidadãos ativos e intrépidos defensores da caso da formação do Estado imperial as políticas para a composição da popu-
nossa pátria. É extemporânea, por ser ajustada em uma época em lação se faziam necessárias, administrando os fluxos internos e externos. A
que a Câmara dos Deputados havia apresentado um projeto para noção de população é subsidiária da economia política, e o instrumento princi-
diminuir gradualmente a importação da escravatura para o Bra- Pal de objetivação desta realidade seria a estatística, trazendo regularidade e
sil; e por não nos pertencerem mais as Ilhas dos Açores, de onde racionalização à ocupação soberana do território.

96 97
Artifícios de classificação gia. Consultando outro conjunto documentaF 0 (as listas originais enviadas ao mi-
nistro) percebemos tal dimensão. Três áreas rurais exemplificam esta variação. Na
Fazenda Nacional de Santa Cruz, o mapa operava as seguintes distinções :
Em 1835, embora sem regularidade, mapas de batismos, óbitos e casa-
mentos passaram a acompanhar os relatórios ministeriais, procurando dar con-
ta do que se conceituava como movimento da população (nascimentos, mor-
Brancos Livres Escravos Total
tes, crescimento etc.). Um artifício de distinção e exclusão estava no cerne
mesmo dessa prática, na medida em que apenas os indivíduos batizados entra- Pardos Pretos Pardos Pretos
riam no conjunto supostamente universal da população. Periodicamente, a au- Nascidos masculinos
toridade central organizaria um mapa tomand por base as listas locais enviadas Nascidos femininos
por cada freguesia. A idéia seria partir dos mapas das freguesias ao mapas Mortos masculinos
municipais, dos mapas municipais aos mapas provinciais, bem como, no tem- Mortos femininos
po, elaborar, a partir dos mapas semestrais, mapas que abrangessem períodos
Casamentos
anuais. Os casamentos, batismos e óbitos seriam distinguidos entre livres e
libertos, de um lado, e escravos, de outro. Ou seja, a estatística ajudava a cons-
truir a realidade da divisão da população segundo o ser ou não escravo.
Esta tabela mesclava de forma curiosa a condição e a cor. Os brancos
Todavia, às vezes faziam-se necessárias algumas curiosas observações, estariam, nesse caso, explicitamente acima da inquirição sobre a condição. Ser
sobre casamentos entre categorias diferentes, que escapariam ao modelo idea- branco já dispensaria dessa classificação. Por outro lado, entre "pardos" e "pre-
lizado: "Houve mais dois casamentos, a saber: um de homem livre com mulher tos" tornava-se importante distinguir quem era livre e quem era escravo, linha que
escrava, e outro de escravo com liberta" . 18 Aliás, praticamente todos os mapas se tornava cada vez mais ténue, à medida que avançava o século e a crise da escra-
sobre a população, tanto manuscritos quanto os modelos impressos, traziam vidão.21 Digno de nota é que a categoria libertos não esteja definida nessa tabela.
uma coluna à direita dedicada às "Observações", onde se procurava adaptar o Essa relativa indefinição, pelo aumento do número de homens livres e pobres, foi
inclassificável, que parecia assim constitutivo, sendo essa a melhor indicação aliás um dos grandes problemas da segurança policial urbana. 22 Acarretou ainda,
de que as divisões operadas não eram perfeitas nem absolutamente regulares. segundo Hebe Mattos, mudanças nas formas de conceber e conquistar a liberdade:

O mapa organizado em 1835, relativo ao município da Corte, pode ser


assim esquematizado: 19 A liberdade era, a princípio, um atributo do 'branco' que potenci-
alizava a inserção social e a propriedade. Durante a segunda me-
tade do século XIX, entretanto, esta representação da liberdade
Casamentos Batismos Óbitos começa a ter suas bases solapadas. O crescimento demográfico
Freguesias Livres e Escravos Livres e Escravos Livres e Escravos de negros e mestiços, livres ou libertos, já não permitia perceber
libertos libertos libertos
os não-brancos livres como exceções controladas.23

Referente à Ilha do Governador, área também rural, em um mapa domes-


Não havia porém regularidade nas questões inquiridas por tais mapas. mo ano, encontramos variável ainda mais rica, pois aparece uma coluna dedicada
Embora o mais comum fosse o esquema acima, consolidado pela distribuição de à categoria índios. É o exemplo que mais regularmente faz uma distinção racial,
formulários impressos, em algumas freguesias, mesmo na Corte, novo arranjo sur- pois as grandes divisões iniciais são "brancos", "índios" e "pretos". Apenas em

98 99
relação ao último grupo distinguiam-se os libertos e os cativos, donde se deduz os designativos empregados, consideremos alguns mapas ou quadros provinci-
também que aí não cabia a possibilidade de ser "livre". Neste caso, não apareceu ais.24 Nas províncias havia também grande variedade nas expressões utilizadas.
a categoria pardos. O mapa manuscrito estipulava a seguinte fórmula:
O "Mapa estatístico da província de Sergipe de E! Rey no ano de 1834"
apresentou uma divisão da população entre brancos, pardos, pretos e índios,
Brancos Índios Pretos organizada, portanto, primordialmente, em função das cores ou raças. Em re-
Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres lação a pardos e pretos fez-se uma distinção entre ingênuos (isto é, aqueles
libertos libertas cativos cativas
que não nasceram escravos), libertos e cativos. Não se explicitou a categoria
de livres, o que indica novamente que esta seria o atributo de brancos.
Batizados
Falecidos Embora isso não pareça fazer parte de uma estratégia declarada, algu-
Casamentos mas listas trataram apenas da população livre. O "Quadro estatístico da popu-
lação livre da província do Rio Grande do Norte organizado segundo os mapas
dos delegados de polícia nos diferentes termos da província", de 1849, classi-
Na freguesia do Engenho Velho dispensou-se a difícil tabela, optando- ficava a população em brancos, pardos e pretos, e cada uma dessas categorias
se por uma simples lista com os batismos, óbitos e casamentos de "livres e em sexo, estado civil e idade.
forros" e de "escravos". Aparecem as seguintes categorias: branco, pardo, cri-
oulo, preto, preto de nação. Notamos a diferenciação entre os três últimos ter- Também não foi abrangida a população escrava em um mapa sobre 14
mos. Quem organizou tal lista, se deparou com uma multiplicidade e preferiu municípios da província da Bahia, de 1848, organizado pela Secretaria de Po-
não reduzi-la às categorias mais gerais: lícia. A divisão se fez entre sexos e as "qualidades" brancos, pardos ou pretos.
Note-se a omissão da "qualidade" índio, que aparece em outras listas das pro-
víncias do Nordeste. Dispomos porém de curiosa observação: "Na cifra dos
Batismos livres e forros: ( ... ) brancos; ( ... ) pardos indivíduos brancos estão compreendidos 676 índios de ambos os sexos, sendo
Dos escravos: (... ) pardos, (... ) crioulos, (... ) pretos 244 do termo de Nazareth, 96 da vila do Conde, e 336 da vila Verde". Os
índios foram aqui incorporados, mas em lugar à parte, na categoria "brancos".
Óbitos dos livres e forros: (... )brancos adultos,( ... ) pardos,( ... )
pretos de nação A palavra mulato aparece em três mapas, todos relativos ao Nordeste
Escravos: ( ... ) crioulos, (... ) pretos de nação (Alagoas, Ceará e Maranhão), mas de um período anterior: final do século XVIII
e início do XIX. No "Mapa dos habitantes que existem na paróquia de Atibaia
Casamentos de livres e forros: (... )brancos, (... ) pardos no ano de 1805", além da idade, as categorias de cor utilizadas foram: brancos
Escravos: (... ) pretos de nação (divididos por estado civil e sexo), pretos (divididos entre livres e cativos, e
apenas em seguida classificados nos mesmos itens dos brancos) e mulatos, divi-
didos da mesma forma que os pretos. Mais uma vez, não foi utilizada a categoria
Ao constituir os mapas que constariam dos relatórios, o ministério pro- libertos. Essas listas demonstram que onde aparecesse a palavra mulato, não
curava criar uma regularidade, vencendo essa variação. Para perceber isso, bas- ocorreria o termo pardo. O segundo termo porém se torna preponderante, nos
ta comparar o primeiro mapa antes citado, e estas listas enviadas pelos párocos. casos em que houve inquirição da cor. São estes também os termos utilizados na
lista do Maranhão, de 1798. No "Mapa da população da capitania do Ceará", de
Ainda para ilustrar certa descentralização (mais de fato do que por princí- 1813, aparecem os mesmos critérios, acrescentados de uma coluna relativa a
pio) na organização dos levantamentos sobre a população, e procurar inventariar índios, que como os brancos não são inquiridos sobre condição cativa ou livre.

100 101
Verifica-se desse variado conjunto de mapas sobre a população algu- Um texto precioso foi escrito em 1870, anexado ao relatório do ministro
mas conclusões. Há uma intrínseca participação da cor e da condição na clas- do Império, Paulino José Soares de Sousa, com o título In vestigações sobre os
sificação; ambas aparecem imbricadas , de forma que certas cores limitam o recenseamentos da população geral do Império e de cada província de per si,
que pode ser inquirido sobre os grupos a que se referem. O grupo "índio", que tentados desde os tempos coloniais até hoje, por Joaquim Norberto de Sousa e
não se define como uma cor, aparece como um grupo distinto de população, Sil va, que além de ser então chefe de seção daquele ministério, era também histo-
um certo lado de fora, que parece incorporado, quando isso acontece, de for- riador, escritor e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Nas pági-
ma marginal. No que toca à terminologia empregada, os seguintes termos fo- nas que se seguem, procuraremos utilizar e analisar as informações compiladas
ram encontrados no conjunto aqui composto: brancos, pretos, pretos de nação, pelo autor, confrontando e complementando seu texto com outros documentos do
pardos, crioulos, mulatos, índios; ressalte-se que não ocorre o termo mestiço e período. As suas reflexões sobre a estatística compõem também o contexto teórico
nem, nos textos que eventualmente acompanham alguns quadros estatísticos, a e político aqui visado, como esta, expressa já na abertura do texto, com uma epí-
expressão mestiçagem. Uma última conclusão se impõe: a oposição entre li- grafe assinada por Forjaz Sampaio sobre a ciência ali tentada: "A estatística é a luz
vres e escravos é a primordial , por ser a única que está sempre presente, mes- do legislador, do ministro de Estado e do diplomata; a prova e comentário de toda
mo no caso de mapas que tenham computado apenas a população livre. A irre- a história, e o único fundamento seguro dos cálculos do porvir" .26
gularidade da distinção da categoria dos libertos deixa transparecer uma ques-
tão política essencial do regime escravista no Brasil monárquico, no que diz Ainda na época da dominação portuguesa, na segunda metade do sé-
respeito aos estatutos de cidadania desse grupo. No capítulo anterior foram culo XVIII, manifestou-se a preocupação da Metrópole em conhecer a Colô-
examinados alguns exemplos de disputa dos "cidadãos de cor" pela participa- nia, em sua riqueza e movimento da população. Mais tarde, a carta régia de 8
ção no funcionalismo público e na Guarda Nacional, o que equivaleria a ter de julho de 1800 incluiu os levantamentos estatísticos entre as incumbências
sua cidadania reconhecida. A ausência de distinção entre os que nasceram li- do vice-rei. O aviso de 16 de março de 1808, por d. Rodrigo de Sousa Couti-
vres e os que, tendo nascido escravos, obtiveram a liberdade foi uma das ques- nho, ordenou o levantamento populacional, solicitando principalmente infor-
tões decisivas que contribuíram para que não tenha existido o que Hebe Mat- mações militares, cujo resultado final avaliou em quatro milhões de indivídu-
tos define como uma "justificativa racializada" da escravidão no Brasil. 25 os a população da Colônia . Antes da emancipação política, houve o estudo do
conselheiro Antônio Rodrigues Veloso de Oliveira, de 1819, A Igreja doBra-
sil, reunindo diferentes materiais, não só da Igreja, mas mapas enviados pelos
Descaminhos: a revolta contra o registro da cor capitães-mores à Intendência da Polícia em 1814, e mapas enviados pelas ou-
vidorias ao Desembargo do Paço em 1809, e entre 1815 e 1818. Nessa obra, o
conselheiro fez cálculos temporais de comparação do número da população, e
A primeira observação que nos interessa sobre os censos, legislações, acrescentou números hipotéticos e estimativas . A população foi apresentada
regulamentos e tentativas de censos durante o século XIX é a irregularidade como dividida entre livres e escravos; não houve informações sobre a cor.
quanto à inclusão do registro da cor. Esses exemplos são interessantes para perceber os procedimentos tentados para
os levantamentos estatísticos iniciais : as fontes de informação, o uso das esti-
Embora só tenha havido um censo geral do Império em 1872 (no mativas e o tipo de preocupação, sobretudo econômica, militar e religiosa.
sentido de uma contagem dos habitantes) , várias tentativas anteriores de-
mon stram a preocupação com essa questão . Na verdade, houve sucessivos Em 1851, o senador Cândido Batista de Oliveira fez um cálculo sobre
fracassos . De toda forma, no âmbito provincial e da Corte, vários arrola- a população do Império tendo como base as eleições de 1834 para a Regência.
mento s da população foram realizados. Comecemos pelo âmbito geral, na Aliás , um dos objetivos dos censos era exatamente estipular as bases da repre-
medida em que este foi o objetivo que orientou os demais, apresentando- sentação política; já em 1821, o censo do Rio de Janeiro havia servido às elei-
se o governo imperial imbuído da necessidade de conhecer a população ções para as Cortes Gerais de Lisboa. Em 1834, segundo o senador, como a lei
por meio desse mecanismo. definia que haveria um eleitor para cada cem fogos (residêncjas), e o levanta-

102 103
mento feito chegou ao número de seis mil eleitores, haveria seiscentos mil A dificuldade da centralização política e territorial expressava-se tam-
fogos e, tendo cada fogo a média de seis pessoas, o Império contaria então bém nesse aspecto.
com 3.600.000 habitantes. O autor lançava mão, em seguida, de extrapolações
sobre o tempo necessário para que houvesse uma duplicação desse número, Em 1850, em consonância com outras decisivas mudanças legais e
comparando o Brasil aos Estados Unidos, onde isto aconteceria no espaço de sociais que aconteceram naquele ano, como o fim do tráfico de africanos e a
20 a 25 anos, e calculou também a proporção da população escrava (um escra- Lei de Terras, a lei no 586 autorizava o governo a fazer os gastos necessários
vo para cada dois habitantes livres), chegando afinal ao número de 5.520.000 para o censo geral. No ano seguinte, foi estabelecido o Regulamento para a
livres e 2.500.000 escravos, perfazendo oito milhões de habitantes. Acrescen- organização do censo geral do Império. Simultaneamente, foi criado o Regula-
temos a observação de que os índios foram excluídos do cálculo. Está aí uma mento para o registro dos nascimentos e óbitos, que só seria implementado em
amostra do que poderíamos chamar uma espécie de "recenseamento de gabi- 1888. Mobilizava-se a estrutura burocrática, criavam-se cargos específicos e
nete", notando porém que tais cálculos nunca eram dispensados mesmo quan- remunerados, no âmbito geral, provincial, municipal e em cada freguesia. O
do houvesse a realização do recenseamento. O estudo foi apresentado no Ins- cronograma, envolvendo desde a distribuição das fichas impressas aos chefes
tituto Histórico e Geográfico Brasileiro, um dos muitos exemplos que indicam de família até os sucessivos e cada vez mais gerais mapas preparados pelos
a preocupação deste centro com essa forma de conhecimento. vários agentes, era também estabelecido. Não estipulava a inclusão da cor na
identificação da população.
Uma série de atos legislativos acompanhou a ausência de um recense-
amento geral até 1872. Em 1823, estipulava-se que aos conselhos provinciais
caberia a organização de estatísticas; em 1826, se procurava criar "tábuas es- Art. 11 As listas deverão conter:
tatísticas por um sistema uniforme"; nesse momento, esperavam-se resultados 1o Os nomes de todas as pessoas da família, menos dos escra-
prontos em maio do ano seguinte, na abertura dos trabalhos da Assembléia vos, dos quais bastará referir o número por sexo;
Geral. O prazo foi pequeno, e nada foi apresentado. Em 1829, instituía-se a 2° O estado (casado, solteiro, ou viúvo);
Comissão de Estatística Geográfica, Natural, Política e Civil, formada por Jo- 3° A idade;
aquim de Oliveira Alvares, José Maria da Silva Bittencourt, José Saturnino da 4° A condição (ingênuo, liberto ou escravo);
Costa Pereira, Conrado Jacob Niemeyer e Raimundo da Cunha Mattos; porém 5° O lugar do nascimento;
a comissão foi extinta cinco anos mais tarde, em 1834, quando foi decretado o 6° Se é estrangeiro, de que nação. Sendo brasileiro se fará de-
ato adicional que transferiu a tarefa às assembléias provinciais, e à Assembléia claração do cidadão naturalizado, e do que o não é. Sendo indí-
e ao Governo Gerais. Joaquim Norberto lamentava, todavia, a extinção da co- gena (caboclo) será feita menção da tribo a que pertence;
missão , pois ela é que velaria pela uniformidade exigida: 7° A profissão ou modo de vida;
go A qualidade que representa na família (cabeça de família, mulher,
filho, parente, agregado, ou outra qualquer qualidade, por que se re-
Assim, debaixo de um plano bem combinado se colheriam si- pute fazer parte da família) : tudo na conformidade do modelo n° J.28
multaneamente, e por toda a parte, os dados, empregando-se toda
a fidelidade e escrúpulo, que requer semelhante matéria, e exa-
minar-se-iam depois em comum, a fim de serem sistematicamente O fracasso acabou sendo inversamente proporcional ao cuidado e à cla-
coordenados . Ter-se-ia assim seguido uma marcha uniforme e reza da proposta, os quais não ficaram intactos diante da realidade política e
fácil , e em vez de um limitado número de trabalhos sem nexo, social que os recebeu. Tanto o regulamento sobre o censo quanto o regulamento
sem a menor harmonia de idéias, ensaiado em períodos irregu- sobre o registro civil foram suspensos já em janeiro de 1852, com um novo
lares, teríamos já excelentes subsídios que servissem de ponto decreto. A lei de 1846 que estipulara que o censo deveria acontecer a cada período
de partida, e de comparação para mais suados trabalhos Y de oito anos ficava também sem cumprimento. A causa da suspensão teriam sido

104 105
revoltas contrárias, não especificamente ao censo, mas ao registro dos nasci- que estivesse circulando exatamente esta idéia, de que os "direitos e garantias
mentos e óbitos, em diferentes localidades do Nordeste. Segundo o relatório do dos povos" estavam sendo ameaçados. O presidente dirigia-se também aos pá-
ministro do Império, as "manifestações criminosas" e "reuniões armadas" foram rocos, dentre os quais alguns pareciam ser indiferentes, no mínimo, a esses mo-
fruto de um "boato arteiramente espalhado [... ]de que o registro só tinha por fim vimentos. A posição dos párocos comporta uma ambigüidade, pois eles próprios
escravizar a gente de cor". Em Pernambuco, tal boato "atraiu maior número de eram funcionários do Estado; por outro lado, como membros da Igreja, talvez
desvairados, que em frenético delírio o apelidaram -lei do cativeiro". 29 resistissem a não mais controlar uma atividade que por séculos lhes coube.

Ora, setores da população revoltaram-se contra o registro civil, asso- A resistência vinda da Igreja se fez presente em outras instâncias. No
ciando-o a uma tentativa de escravização. O episódio exige um exame mais final de 1851, era publicado um pequeno artigo no Diário do Rio de Janeiro
detalhado, pois o registro de nascimentos e óbitos não estipulava que a popu- assinado pela "Tribuna Católica", com o título "Os batismos e o regulamento",
lação livre tivesse sua cor citada; esta era exigida apenas para a população onde se condenava a ordem de que todo padre só poderia batizar as crianças
escrava. Diante disso, é interessante investigar os acontecimentos. O decreto após estas terem sido registradas no registro civil, abrindo-se exceção apenas
no 798, de 18 de junho de 1851, estipulava que em cada distrito o juiz de paz para crianças moribundas. O artigo era concluído com a sentença: "Prossiga o
teria um livro para o registro dos nascimentos e outro para o de óbitos. O governo nas suas investigações estatísticas, e deixe à Igreja a sua liberdade". 31
primeiro deveria ocorrer dez dias depois do nascimento, constando do livro,
caso se tratasse de homem livre, "a hora, dia, mês e ano, e lugar do nascimen- O delegado do termo de Pau d' Alho testemunhou uma "sublevação da
to; o sexo, e nome que tiver, ou que houver de se dar ao recém-nascido; os plebe", fundada na idéia de que "esta lei é para os cativar". O subdelegado da
nomes dos pais, sendo filho legítimo, e não o sendo, o nome da mãe somente, freguesia do Divino Espírito Santo advertiu ao chefe de Polícia que se acredita-
ou também o do pai que o reconhecer". va na iminente impressão de um "papel" cujo conteúdo seria uma "declaração de
escravidão", e que havia grupos que impediriam que este papel fosse tornado
No caso de um recém-nascido que fosse escravo, constariam da lista: público, com a ameaça de que "o leitor do papel morria [morreria]". Nota-se aí
"o nome do senhor, o dia e lugar do nascimento, o sexo, a cor, os nomes dos claramente uma recusa à escrita enquanto representação do poder. Nesse caso o
pais, se estes forem casados, ou somente o da mãe, sendo ela solteira. E se relato traz alguma precisão sobre os envolvidos, referindo-se a um tanoeiro, a
neste ato for conferida liberdade, isso mesmo se declarará, portando o escri- um carpinteiro e a um "Tomás cabrito" como líderes do "sublevado grupo", que
vão por fé a identidade da pessoa do senhor". tocando viola, marcharam armados pelas ruas da localidade, sendo aplaudidos
pelos moradores. Essa autoridade policial classifica o movimento como uma
Portanto, apenas para os escravos se exigiu a cor, não para os livres. O "insurreição", crime definido no Código Criminal. Outro relato, do delegado
mesmo era válido para o registro de óbito. 30 suplente da mesma localidade, aborda também um suposto "edital" e a ameaça
da "gente baixa" de que "quem primeiro morre é o vigário e o escrivão".
Ainda assim, sendo um "boato" que afirmava que esta seria uma "lei
do cativeiro", é de se notar que um boato exige alguma verossimilhança. Atra- O proprietário de um engenho em Lage queixou-se de que os "mora-
vés de diferentes relatos de algumas autoridades de Pernambuco, de finais de dores" estariam sendo insuflados por alguns a atentarem contra sua vida e a de
dezembro de 1851 e primeiros dias de 1852, pode-se distinguir os contingen- sua família, "dizendo-lhes que os filhos destes, de quem ultimamente fui pa-
tes sociais envolvidos. O juiz de paz de Santo Antão falava em "povo mais drinho, estavam lançados no livro do vigário como meus escravos". Nesse caso,
0 próprio vínculo do compadrio, clientelista e paternalista, estaria sendo rom-
miúdo", "pessoas incautas", entre os quais se teriam espalhado "idéias bastan-
te anárquicas" com ameaças claras às autoridades. A resposta a ele dirigida ~ido.32 Esse mesmo proprietário, que era também o diretor-geral dos Índios,
pelo presidente da província considerava a necessidade de se dissolver "os in- Insinuou que aqueles episódios talvez tivessem alguma continuidade com os
fundados preconceitos" contrários ao Regulamento, "que em nada ofende, antes movimentos de 1848 naquela província, pois fala em "revolução" e do tempo
protege os direitos e garantias dos povos". Por essa negação, pode-se suspeitar em que morreram tantos pernambucanos.

106 107
A idéia de que o decreto "tem por objeto escravizar a todos os recém- O primeiro recenseamento geral do Império acabou sendo realizado
nascidos e aqueles pardos que forem batizados com as formalidades prescri- em 1872. Seguindo a tendência que se pode depreender do relato de Joaquim
tas" fez-se presente também em Nazaré, onde apareceram "mais de quarenta Norberto, bem como do exame dos relatórios do ministério do Império do
indivíduos armados para se oporem à fixação do edital", um número muito período que se estende entre as décadas de 1830 e 1870, não houve inquirição
superior ao da força policial com que contava o delegado daquele lugar. 33 sobre a cor da população. Pode-se arriscar a hipótese de que, no âmbito do
discurso imperial mais central, na figura do ministro, não cabia explicitar a
A intensa mobilização , armada, contra o registro de nascimentos diferença da população nesses termos. A partir de acontecimentos como as
indica que a ameaça de escravidão sentida por aquele "povo mais miúdo" revoltas no Nordeste, pode-se suspeitar o porquê dessa opção pelo silêncio.
ligava-se não a uma ignorância, mas a uma forte indisposição com a lin- Esses acontecimentos indicam, também, que havia diferentes motivações para
guagem oficial que os classificaria como pretos, pardos ou cabras. Indica a resistência à estatística e ao que ela representava, não apenas entre os "che-
também a percepção de que a atividade estatística não era neutra, e que de fes de família", mas também entre a "gente baixa".
alguma forma consistia em uma dominação, a qual concretizava-se na es-
crita, no registro- o "edital", "a impressão de um papel" cujo leitor mor-
reria, o "livro do vigário" - , instrumento de poder que pretenderia fixar Raças estranhas habitam a província - Rio de Janeiro
uma situação, exorcizando quaisquer mobilidades. 34 A escrita desempe-
nha aí a função de veículo das decisões da Justiça, representa o poder,
além de ser elemento de seu ritual. O registro de nascimentos só foi reto - Vejamos a história dos censos no âmbito da província do Rio de Janei-
mado novamente após a Abolição da Escravidão, em 1888. ro, continuando a acompanhar o texto de Joaquim Norberto de Sousa e Silva-
tanto fonte de informações como revelador de seus valores e dos valores de
Igualmente infecundo projeto de centralização das informações sobre sua época acerca do tema. Embora em relação à profusão às vezes confusa de
a população surgiu em 1855, com a Sociedade Estatística do Brasil, que aca- leis haja semelhança com as tentativas de recenseamento geral, quanto ao que-
bou dissolvida. As províncias continuaram entregues a medidas improfícuas, e sito cor despontou uma perspectiva diferente na província do Rio de Janeiro.
seus censos "eivados de vícios e inexatidões". O governo geral encontrar-se-
ia, assim, paralisado. Ainda antes da realização do primeiro recenseamento na província
em 1840, sob o governo de Paulino Soares de Sousa, a Assembléia Provin-
As autoridades teciam considerações sobre a necessidade urgente de cial estabeleceu por meio da lei no 11, de 4 de abril de 1835, um "aparato-
realizar tal projeto, sugerindo algumas medidas, como criar cargos específicos so elenco", segundo Joaquim Norberto , que iria nortear o ensaio de uma
para cuidar do censo e "ilustrar" a população para que não sucedessem nova- estatística em um ou mais municípios. O autor critica porém seus critéri-
mente acontecimentos como os do Nordeste. os, afirmando-os ultrapassados. Incluía-se a divisão em cores, bem como
a abordagem da população em "seu caráter, seus hábitos, costumes, vícios
e enfermidades", e em relação aos indígenas, além do levantamento numé-
Se temos tomado parte nos festins da indústria celebrados pelas rico, "seu aproveitamento e razões de sua apatia". 36 A complementaridade
nações de além-mar, porque também não iremos sentar-nos no entre o governo da população, a economia política, e o que poderíamos
congresso estatístico das nações?[ ... ] É vasto o nosso Império e chamar de comportamento moral ou cultural fazia parte da própria gênese
quase tão extenso quanto a Europa. A sua população, notável dessa ciência. Como já discorria Jean-Jacques Rousseau sobre a economia
pela heterogeneidade das raças e condições sociais, que a cons- política: " Governar um Estado significará portanto estabelecer a econo-
tituem, acha-se disseminada pela imensa área de seu território, · mia ao nível geral do Estado, isto é, ter em relação aos habitantes, às ri-
que a não ser assim, seria já mui suficiente para nos dar mais quezas, aos comportamentos individuais e coletivos, uma forma de vigi-
força, e para incutir maior respeito. 35 lância, de controle, tão atenta quanto a do pai de família" Y

108 109
Na Memória e considerações sobre a população do Brasil, texto es- nitiva, havendo antes uma variação entre os termos, de toda forma predomi-
crito em 1836 e republicado pela revista do Instituto Histórico em 1867, Hen- nando o uso da noção de cor no conjunto dos levantamentos. Como será nota-
rique Jorge Rebello demonstrou compartilhar do mesmo olhar sobre a popula- do adiante, a partir de 1872 o conceito "raça" assume importância nos censos.
ção, que deveria, antes de mais nada, ser reformada em sua "corrupção de
costumes", sua "indolência natural ou adquirida", sua cobiça, sua "incontinên- Em 1850, foi criado o Arquivo Estatístico com a incumbência de orga-
cia pública" ou "libertinagem". Tais aspectos fazem parte, ao lado de questões . nizar de quatro em quatro anos o recenseamento da população da província.
como propriedade, impostos, recrutamento, de sua concepção de "estadísti- Seguiriam exatamente as mesmas disposições do Regulamento de 1851 sobre
ca". 38 Joaquim Norberto compartilhava o cuidado com tal dimensão da popu- 0 censo geral do Império que, como já explicitado, não estabeleceu inquirição
lação, assim como os dirigentes imperiais inquietavam-se com o ócio, a vadi- sobre a cor da população. O primeiro dos censos, feito naquele mesmo ano sob
agem, a desordem, a presença indesejada. Mas deveria reconhecer a dificulda- a direção de Ângelo Thomaz do Amaral, é considerado por Joaquim Norberto
de de implementar tais quesitos (inclusive o da cor) em um recenseamento. um dos melhores já realizados no Império. 42 Após apresentar metodicamente
Podemos supor que, para ele, caberiam tais tarefas a outras técnicas de gover- não só o número total da população - que como os outros engloba cálculos,
no mais precisas e imediatas, como a polícia e a medicina pública. Pode-se estimativas, somas hipotéticas -, mas também a proporção entre população
citar, como exemplo, a estatística médica, que incluía entre seus objetivos co- livre e população escrava, articulada ao número de homens e mulheres, o faz
nhecer a população em sua "índole e costumes"Y também para a composição racial, assim justificada por Ângelo do Amaral:
"Não sendo, porém, a nossa população homogênea, mas composta de raças
O presidente da província do Rio de Janeiro apresentava o censo orga- que existem debaixo de condições diversas, convém estudá-las separadamente".
nizado em 1840: "Nesse mapa encontrareis a totalidade da população de cada
freguesia ou curato, de cada município e comarca, e bem assim a da livre e Abre-se um tópico sobre a população livre, seguindo-se o número de bran-
escrava da província, da branca, indígena, parda e preta, com especificação de cos, divididos entre homens e mulheres, com notação sobre a "Relação do número
sexo. Vereis que a totalidade apurada remonta a 407.212 almas". de homens para o das mulheres" e o mesmo para indígenas, pardos e pretos. Acer-
ca da população escrava apresenta os números de pardos e pretos, sempre com a
São acrescentados alguns números e cálculos, como o da população relação entre o número de homens e o de mulheres. As tabelas são comentadas:
da Corte e a estimativa sobre as localidades que não entregaram os mapas
solicitados. O presidente da província não dissimulava as dificuldades encon-
tradas, a falta de preparo dos inspetores de quarteirão e juízes de paz, o temor Os precedentes algarismos entre outros resultados deixam ver: 1o
de "pessoas da família" quanto ao recrutamento e novos impostos, e advertia que a classe livre é inferior em número à escrava; zo que na popu-
que, sendo os censos periódicos elementos utilíssimos para o governo, mesmo lação branca e na escrava tanto parda como preta há mais homens
imperfeitamente eles deveriam ser realizados, pois dessa forma "habituaremos do que mulheres, o que é contraditório ao fato que alguns estatís-
nossa população a não desconfiar de pesquisas". 40 Percebe-se que o que ele ticos dão, como averiguado, de estarem as mulheres em maioria
denomina desconfiança, e que talvez possamos denominar a resistência de gru- por toda a parte; 3° que entre os indígenas, os pardos livres e os
pos sociais às "pesquisas", era algo constante. pretos livres avultam mais as mulheres do que os homens.

Também no censo de 1848 houve a classificação da população da pro-


víncia em "condições, raças, sexos, idades, nacionalidades, estados e ocupa- A questão da superioridade numérica da população escrava em com-
ções". Nesse caso, propunha-se que cada mapa seria dedicado a uma raça, paração com a população livre constituiu um tema polêmico entre os respon-
embora esta sempre fosse referida à condição social: brancos, indígenas, par- sáveis pelas estatísticas, pois colocava em ameaça a segurança, além de gerar
dos livres, pretos livres, pardos escravos, pretos cativos . De uma divisão por um retrato um tanto incômodo sobre a população. 43 O recenseador Ângelo do
cores passamos a uma classificação por raças. 41 Mas a mudança não era defi- Amaral, após indicar essa característica na província do Rio de Janeiro, cuida-

III
IIO
dosamente acrescenta que houve ou há países em que a população escrava A partir dessa amostra dos censos na província do Rio de Janeiro per-
representava ainda maior proporção, chamando a atenção para o problema do cebe-se um maior detalhamento, em comparação seja aos censos que se tentou
recrutamento em um país escravista. realizar, seja às estimativas sobre a população geral do Império. Esse detalha-
menta incluiu a inquirição das cores ou das raças. E confrontar a relação que
O exemplo torna-se ainda mais relevante quanto às práticas de identi- diferentes instâncias do Estado imperial mantiveram com essa inquirição cons-
ficação aqui visadas se confrontado com o relatório ministerial: o ministro titui uma interrogação que parece útil levantar.
suprimiu as informações sobre a composição racial da população, apresentan-
do o número de livres e escravos, divididos entre os sexos. 44 Omitiu os dados,
já apresentados, sobre as "raças". A odiosa classificação por cores: a Corte

A regularidade dos recenseamentos provinciais, estabelecida em dife-


rentes leis, nunca foi cumprida. Em 1852, a cólera era o obstáculo da vez. O Na capital do Império, a seqüência de malogros se repete, embora
censo seguinte, incompleto, realizado em 1856, mas apresentado pelo presiden- tenha sido ligeiramente menor devido, talvez, à função política da cidade.
te da província apenas em 1858, articula de forma múltipla a condição e a cor. A Em 1834, conta-se uma tentativa fracassada 46 que, segundo Mary Karasch,
população livre, 224.946 almas, foi dividida em ingênuos (211.441) e libertos inquiriu a população a partir da cor, da ocupação e da nacionalidade. Se-
(13.505). A distinção entre ingênuos e libertos articulava-se com as fronteiras gundo as categorias apresentadas pela historiadora, a classificação teve
entre a sociedade política e a sociedade civil. Os ingênuos eram considerados os seguintes termos: brasileiros livres (brancos e pardos), negros livres de
desde a Constituição de 1824 como parte dos "cidadãos brasileiros". Quanto aos nações diversas, estrangeiros, escravos. Naquele momento do período re-
libertos, inúmeras restrições se acumulavam, como a sua exclusão da Guarda gencial certamente a expressão "brasileiros livres" tinha um significado
Nacional em 1850. Outra divisão articulada por aquele censo foi entre brancos, especial, merecendo nomear uma das categorias do censo; afinal, se já
indígenas, pardos e pretos, seguindo o padrão anterior; também se indagou so- havia uma categoria de estrangeiros, a notação de brasileiros não era es-
bre o estado civil e a nacionalidade. Já a população escrava, de 184.243 indiví- tritamente necessária. Outro ponto que chama a atenção é que em relação
duos, foi dividida em pardos e pretos; em crioulos e africanos e em estados. As aos escravos a nacionalidade não constituía uma questão. Esse arrolamen-
somas induzidas, porém, faziam chegar a um resultado mais expressivo: to não foi referido por Joaquim Norberto em seu texto, o que indica que
sua análise operou seleções . Em 1838, sob os auspícios do ministro do
Império, Bernardo Pereira de Vasconcelos, e à luz da "estadística", foi
Não andará entretanto errado quem a orçar por mais de 800.000 feito um recenseamento. As principais colunas apresentaram os seguintes
almas, pois, como é sabido, no nosso país ainda se não compre- títulos: "Homens", "Mulheres", "Escravos" (apenas em seguida divididos
endem as vantagens de um recenseamento de seus habitantes, e entre homens e mulheres) e "Estrangeiros". 47 O fato de que as duas tenta-
muitos se furtam a dar os menores esclarecimentos, quer sobre tivas da década de 1830 não tenham definido a categoria dos libertos pode
as pessoas livres de que se compõem suas famílias, quer sobre o ser mais um indicativo das tensões que tal distinção poderia trazer.
número de escravos que possuem; receando, quanto às primei-
ras, que os dados que forneceram se prestam para obrigá-los aos Em 1845, um ofício da Polícia estipulava uma "Instrução para se
serviço do Exército e da Armada, e quanto aos segundos, que regularem os inspetores de quarteirão na confecção do mapa do arrola-
sejam motivos para novas imposiçõesY mento dos habitantes do mesmo município". Embora eu não tenha encon-
trado nenhuma outra referência à realização de um arrolamento naquele
ano, as categorias, formas de classificação e módulos utilizados são ex-
Mais uma vez uma autoridade manifestava sua inquietação diante de pressivas da sua própria ambigüidade. Cada uma das "casas" exigia res-
uma resistência ao recenseador, motivada pelo medo do recrutamento e do fisco. salvas, exceções, explicações, apontando para o que era incluído e exclu-

112 113
ído em cada uma . No item "Pessoas existentes na família " , se esc larecia O recenseamento de 1849, organizado por Haddock Lobo, não teve
que não deveriam ser incluídos escravos ou africanos livres. No grupo dos uestionamento sobre a cor. Haveria na cidade 116.319 livres, 10.732 libertos
"Brasileiros" seriam compreendidas "todas as cores inclusive pretos li- ~ 78.855 escravos, totalizando 205.906 habitantes. A apresentação final dis-
vres (crioulos) nascidos no Brasil" . Sobre os escravos, se deveria inc lui r tinauia a população entre sexo, as condições livre, liberto ou escravo e a naci-
"os de todas as nações ainda mesmo os nascidos no Brasil". Percebem-se on;lidade (nacionais ou estrangeiros). No entanto, as listas a serem feitas por
algumas oposições reveladoras: os escravos não poderiam ser considera- cada inspetor de quarteirão sobre cada residência ou "fogo" trariam mais algu-
dos "Brasileiros". Por outro lado, a própria ressalva de que os "pretos mas informações, como idade, estado e profissão. Muitas dificuldades citadas,
livres" , se aqui nascidos, poderiam entrar na contagem dos "Brasileiros" como por exemplo a numeração irregular das ruas, talvez não tenham sido
indica que esse era um tema de dúvida. Quanto aos "Estrangeiros", a ins - mais difíceis de serem vencidas que a imposta por "chefes de famílias remis-
trução policial advertia que aí seriam computados " todos os que não fo - sos e que não podem ser compelidos a este dever em conseqüência de tal ou
rem brasileiros sejam de que nação forem incluindo mesmo africanos li- qual consideração, que gozam inerente aos lugares que exercem" . No texto
bertos". Uma última observação indica ainda outras dúvidas: "Os africa- que acompanha o manuscrito do recenseamento, o responsável justifica: "aban-
nos vão só englobadamente mencionados na casa respectiva; os seus fi- donamos a classificação por cores" porque, "além de odiosa, deveria sair mui-
lhos porém nascidos no Brasil devem vir na casa 'Pessoas existentes nas to imperfeita pela infidelidade com que cada indivíduo faria de si próprio a
famílias'- com as demais declarações que estas pessoas têm". 48 Esse do- necessária declaração; contudo poder-se-á saber muito aproximadamente qual
cumento é um vestígio rico das tensões do trabalho cotidiano do recense- é a soma da gente de cor, se diminuírem da totalidade todos os indivíduos
ador diante da complexidade da população da cidade. escravos, libertos e mais um terço dos livres. 52

O Ministério do Império, naquele mesmo ano de 1845, encami nhou Embora tenha dado uma fórmula sobre a questão da cor, Haddock Lobo
um pedido para que fosse feita uma relação dos índios existentes na Corte. não apresenta as bases que a sustentariam. Ou seja, além do número dos escra-
Em diferentes anos dos relatórios ministeriais, a preocupação com os índios vos e dos libertos, por que razão um terço dos livres seria parte da população
englobava o conhecimento de seu número. 49 A Câmara Municipal respon- de cor? Mais expressivo é que o próprio poderia ter apresentado tal cálculo,
deu afirmando que o pedido deveria ser encaminhado ao chefe de Polícia.5° porém parece ter realmente procurado se eximir de apresentar o resultado: o
A preocupação com os índios ancorava-se na tentativa declarada de evitar a número de "gente de cor" superaria o dos demais, totalizando 167.133, contra
exploração ilegal da mão-de-obra indígena. Assim o ministro anunciava o apenas 38 .773 brancos.
resultado no tópico "Catequese e civilização dos indígenas":
"Odiosa" seria a atitude de classificar a população em suas "cores".
Infelizmente, Haddock Lobo foi muito discreto em relação à sua opinião, não
O governo tem dado as convenientes providências para melho- acrescentando os valores que o moveram. Mas é interessante examinar sua
rar a sorte dos indígenas, que, por abusos de remota data, se atitude ao desempenhar uma outra função pública. O médico atuou como sub-
acham em muitos lugares quase reduzidos à condição de escra- delegado no Rio e, nessa atividade, não hesitou em falar em "ajuntamento de
vos. Segundo uma relação organizada na repartição da Polícia mais de duzentos pretos" e em "pretos armados", quando narrou um ingrato
desta Corte, no respectivo município existem cinqüenta e dois episódio de repressão a um batuque na freguesia do Engenho Velho. Um dos
de ambos os sexos , e de diferentes idades em casas particulares, escravos de Haddock Lobo, além dos quatro que reforçaram o exíguo número
uns a título de agregados , outros a título de se educarem, ou tros de três policiais de que dispunha na ocasião, acabou ferido e um transeunte
porém mui poucos, vencendo algum salário, mas todos sem ajuste que tentou ajudar a polícia foi morto. Em desvantagem, a força repressiva tev_e
por escrito, e talvez bem poucos com ele mesmo vocal. Aquela no fundo uma surpresa, pois se tratava da chácara de algum cidadão co~~ecl­
relação foi transmitida ao juiz de órfãos, para fazer proceder do , o que impedia os soldados de imaginar tão numerosa e perigosa reumao _de
aos convenientes contratos de locação de serviços .5 1 "pretos". Autoridades superiores organizaram então, cautelosamente, uma m-

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tervenção maior e com investigações prévias. Afinal, conseguiram reprimir os Criava-se toda uma seqüência burocrática (comissão central, distrital,
pretos minas reunidos em volta de orações e rufar de tambores. Na ocasião subcomissões) para driblar os já conhecidos obstáculos . Procurava-se ainda
foram apreendidos escritos indecifráveis que causaram profunda apreensão. 53 regularizar as listas com as informações:

Em relação a esse tipo de prática da polícia, os segmentos sociais vi-


sados como suspeitos, e de toda forma os submetidos ao patrulhamento, eram Art. 9° Cada lista conterá:
específicos. Como se, nesses grupos, não houvesse grande variação. Estabele- I o Os nomes de todas as pessoas que ocuparem habitualmente
cida a classificação por cores no censo, esta seria odiosa na medida em que aquela morada, tanto as que propriamente constituem a família,
poderia criar embaraços em outros segmentos. Sem contar a suspeita de que a como os agregados e escravos;
"gente de cor" seria mais numerosa. zo O sexo, condição, idade, religião, nacionalidade, estado e
profissão de cada uma; [... ].
A segunda razão apresentada por Haddock Lobo para a ausência da
inquirição da cor seria a "infidelidade" em que cada indivíduo incorreria em
sua declaração. O recenseador reconhecia o lapso entre a precisão de sua ciên- Não haveria portanto distinção por cor. Merece comentário a utiliza-
cia e a burla, dada praticamente como certa, quando cada indivíduo devesse ção das categorias centradas na família e na casa: "pessoas da família", "agre-
fazer a declaração sobre si próprio. É como se o silêncio sobre a cor estivesse gados", "escravos", em contraste com as já comuns práticas do "viver sobre
baseado numa vontade comum e considerada inevitável de dissimular a pró- si", ou seja, tanto da moradia separada quanto de certa e limitada "autonomia"
pria identidade. econômica dos escravos de aluguel. 5 6 Enfim, como tal modelo seria preenchi-
do em um cortiço? Os escravos, ainda que morando longe do proprietário,
Durante 21 anos esses foram os números disponíveis sobre a popula- seriam registrados nas fichas preenchidas pelos "cabeças da família"? São
ção da Corte, uma vez que a tentativa de 1856 fracassou por culpa de subdele- questões da tensão entre o recenseador e as vicissitudes da história das últimas
gados de algumas freguesias que ou não fizeram o recenseamento ou o fizeram décadas da escravidão. O modelo distribuído para ser preenchido era o seguinte:
de forma incompleta. Dessa vez, também não houve classificação das cores na
organização do censo. 54 Lista dos moradores da casa n ... da rua ... , quarteirão ... do ... distrito da
paróquia de ... do município da Corte
Em 1870, Paulino Soares de Sousa, então ministro do Império, estipula-
va as instruções para o arrolamento a ser feito em 17 de abril desse mesmo ano:
Nomes Idade Religião Nacionali- Estado Profissão Observações
da de (viúvo,
Sua Majestade o imperador, atendendo à conveniência de proce- solteiro ou
casado)
der-se desde já a um arrolamento da população do município da
Pessoas da família
Corte, com especificação da condição, idade, religião, estado e
profissões dos habitantes, trabalho este que, interessante sob vá- Agregados

rios aspectos para o estudo e apreciação de muitos fatos sociais, é Escravos


imprescindível para regular-se convenientemente a distribuição
do ensino primário garantido pelo art. 179 § 32 da Constituição,
e para efetuar-se uma melhor divisão e organização administrati- Assinado por Jerônimo Martiniano Figueira de Melo e demais mem-
va do mesmo município: há por bem que na execução do referido bros da comissão, o relatório comentou as informações, traçando proporções
trabalho sejam observadas as seguintes instruções [... ]. 55 entre habitantes rurais e urbanos, número de fogos, número de habitantes em

116 117
cada fogo ou edifício, número de escravos e livres, menores e maiores, ho- [ ... ] os habitantes das freguesias do município da Corte conven-
mens e mulheres, estrangeiros e nacionais etc. Procurou-se enfim o "movi- ceram-se de que o censo, que se tratava de organizar, não tinha
mento da população" a partir dos mapas de batismos, óbitos e casamentos, e por fim agravar impostos , ou o serviço militar, mas somente
traçando paralelos com os censos de 1838 e 1856. Curioso é que não tenha conhecer a população real , que até então era um mistério, o qual
sido feito senão uma referência ao censo de 1849, desqualificando sua veraci- cumpria desvendar, pois motivava apreciações e deduções errô-
dade (o que em geral é contestado exatamente para os dois levantamentos cita- neas, de que eram vítimas não somente o governo, mas também
dos, sobretudo o de 1856). Talvez isso se explique porque a comissão defendia os particulares. 59
a tese da diminuição progressiva do número de escravos em 1838, 1856 e 1870.
Os censos poderiam, portanto, servir a uma concepção de direcionamento ou
mesmo evolução da história do país. Um olhar sobre o tempo, a partir da no- A instrução pública, seguindo as recomendações do mm1stro , é
ção de "movimento da população", que em 1870, final da Guerra do Paraguai, apresentada a partir da insuficiência do número de "menores" que estava
véspera da Lei do Ventre Livre, talvez tivesse pouquíssimo interesse em gerar na escola em relação à população total. Aliás, se no campo do recensea-
um retrato da população marcado pela face escrava. O total apresentado é o de mento a estatística enfrentou tantos obstáculos, isso não acontecia em re-
que haveria 235 .381 habitantes, sendo 50.092 escravos e 185.286 livres; não lação à instrução, sobre a qual foram formulados constantes e numerosos
foi feita a distinção dos libertos. Segundo os autores desse relatório, o recen- quadros e mapas, nos diferentes níveis e localidades.
seamento de Haddock Lobo teria superestimado o número de habitantes do
município da Corte. 5 7 Esses recenseamentos populacionais rela ti vos à cidade do Rio de
Janeiro são indícios das disputas e cisões internas ao que apenas aparente-
Tomando por base certos cálculos e estimativas, a comissão pretendia mente seria unitário, o Estado. E de que a linguagem oficial sobre a popu-
mostrar que o censo de 1856 poderia ser validado. E, à diferença do que teria lação também não foi unitária.
acontecido em 1849, dessa vez o censo seria exato:

O Censo Geral do Império de 1872


É verdade que algumas pessoas, levadas por má vontade ou fal-
ta de zelo e amor do bem público, ou mesmo por temores de que
com o serviço do recenseamento se envolvesse alguma medida A primordial forma de classificar a população do Império entre
militar ou do fisco, deixaram de entregar as listas pedidas; mas livres (quase oito milhões e meio) e escravos (um milhão e meio) não só
a comissão pode asseverar que o número dos recalcitrantes não se mantinha intacta neste censo, como se resguardava pela distância de
é elevado, e que sua omissão, aliás prevista e prevenida pelas dois "quadros" distintos para cada um dos grupos. Menos óbvia, e portan-
ditas instruções, foi em geral satisfatoriamente suprida pelos to digna de nota, é a ausência, ao menos no resultado finaJ,6° da categoria
inspetores de quarteirão com as informações que chegaram ao libertos, seguindo a tendência do arrolamento de 1870 do município da
seu alcance, e não lhes era difícil conseguir, uma vez que ti- Corte, apesar do crescente número de alforrias então verificado.
nham em seu poder as listas de família dos seus respectivos quar-
teirões na forma das ordens em vigor. 58 Mas há algo que, mesmo não sendo então absolutamente inédito,
destoava dos censos até então produzidos. Trata-se da categoria "raças", à
qual se dedicou uma tabela específica dentre outras que compõem o "Qua-
O êxito teria dependido sobretudo da postura dos habitantes diante dos dro geral da população livre considerada em relação aos sexos, estados
censos. Embora os recalcitrantes ainda existissem, aquele momento parecia (se- civis, raças, religião, nacionalidades e grau de instrução, com indicação
gundo os recenseadores) estar marcado por uma população mais obediente: dos números de casas e fogos".

118 119
Raças O censo de 1872 indica uma mudança iniciada na forma de conceber e
Dos homens Das mulheres gerir a população, orientada cada vez mais por certo entendimento - ainda que
Brancos Pardos Pretos Caboclos Brancas Pardas Pretas
sempre indefinido - do conceito de raça; o que não significava, evidentemente,
Caboclas
deixar de lado a cor, mas ancorá-la em suporte pretensamente mais rígido. Com a
l;vtunicípio 96.255 22.762 14.198 665 55.544 22.083 14.268 258
neutro crise mais acentuada da escravidão e do regime monárquico, e o conseqüente
IImpério 1.971.772 1.673.971 472.008 200.948 1.815.517 1.650.307 449.142 186.007 empobrecimento dos pilares, tidos como naturais, da distinção social, a cor e a
raça tornavam-se quase obrigatórias. Se, como vimos, os ministros imperiais ope-
ravam certas traduções nos documentos sobre a população enviados por outras
A primeira linha de números refere-se ao município neutro e a segun- instâncias da burocracia, em geral silenciando sobre a cor, outras traduções com
da ao Império. Pela primeira vez, portanto, tal eixo de distinção aparece tão novas tendências ganhavam vez ao aproximar-se o final do século XIX. Em 1889,
explícito em um quadro populacional. Não foi inquirição exclusiva dos habi- Fávilla Nunes impunha conceitos novos ao recenseamento de 1872: segundo seus
tantes livres. O "Quadro geral da população escrava considerada em relação termos a população do Brasil dividia-se em "raça caucasiana" (3.787.289), "raça
aos sexos, estados civis, raças, religião, nacionalidades e grau de instrução" africana" (1.959.452), "raça americana" (386.955) e "mulatos e mestiços"
apresenta também uma tabela de "raças", embora marcada pela ausência dos (3 .801.702). Claro, não apresenta os critérios para tal tradução, uma vez que não a
termos branco e caboclo. apresenta enquanto tal. Mas se fizermos os cálculos, notamos que para "raça cau-
casiana" ele somou o número de "brancos"; o número da "raça africana" soma os
livres e escravos "pretos"; transformou "caboclos" em raça americana; e os par-
Raças dos, tanto livres como escravos, foram transformados em "mulatos e mestiços". 64
Dos homens Das mulheres Nesse momento, não interessavam mais as fronteiras entre livres e escravos.
Pardos Pretos Pardas Pretas
lf"'unicípio 5.275 19.611 5.786 18.267
neutro Falas e silêncios sobre a cor
IImpério 252.824 552.346 224.680 480.956

O silêncio sobre a cor nos discursos ministeriais, a oscilação entre dividir


Os índios foram transformados em caboclos, termos que poderiam ser ou não as cores da população nos censos, ao lado da persistente oposição entre livres
utilizados como sinônimos, ainda que o segundo pudesse ter um sentido mais e escravos, são aspectos que evidentemente não excluíram a existência de uma polí-
abrangente. Na verdade, exatamente essa transformação dos índios, no sentido tica voltada à composição da população e à ordenação de seu movimento. Nos rela-
mais estrito, em caboclos, designando já a "domesticação" pela via dos aldea- tórios dos titulares da Justiça e do Império, os "braços livres" para o progresso da
mentos, ou pelas diferentes vias tentadas, incluindo a força e a guerra mais ou agricultura são os braços vindos de algumas regiões da Europa, e a colonização não
menos explícitas, era importante preocupação do Império quanto à sua popu- serviria para substituir o sistema escravista em si- uma vez que este permanece e é
lação e, nesse caso, sobretudo em relação à questão da terra. 61 Por volta da reafirmado ao longo de sua própria crise-, mas para suplementar o braço escravo.
década de 1870, a Comissão de Demarcação das Terras Públicas utilizava o
argumento da mestiçagem para extinguir os aldeamentos, redistribuindo seus Embora de contexto temporal e político anterior, pode-se citar uma
limites territoriais. Quase sempre, chegavam à conclusão de um grau de mistu- das medidas tentadas pelo marquês de Pombal referente à prática da injúria. O
ra demasiado, e a substituição do termo índio pelo termo caboclo - e, mais alvará de 4 de abril de 1755, que concedeu privilégios aos que no Brasil casas-
tarde, sua inclusão na categoria pardo (como aconteceu na maior parte dos sem com índias naturais, estipulava: "E outrossim proíbo que os ditos meus
censos realizados no século XX 62 ) - sem dúvida fez parte desse projeto de vassalos casados com as índias ou seus descendentes sejam tratados com o
transformação e extinção. 63 nome de caboclos, ou outro semelhante que possa ser injurioso". 65

120 121
Na verdade, a mancha de sangue consistia em um dos procedimentos ex emplo dos " pretos armados" de Haddock Lobo e na cotidiana função da polí-
hierárquicos da sociedade escravista colonial ,66 e o decreto pombalino, dando cia, sequer a questão de enunciar ou não a cor seria colocada.
às avessas prova de sua força, pretendia revogá-la apenas em relação a um
certo grupo, o dos vassalos cas ados com índias e seus filhos . A Constituição de Que os critérios de suspeição e vigilância utilizados pela polícia da Corte
1824, como observa Hebe Mattos, revogou o preconceito de sangue, abran- estivessem baseados na cor, nada mais correspondente ao tipo de instituição poli-
gendo, na qualidade de cidadãos, os homens livres na sociedade civil, operan- cial planejado pela sociedade escravista, em que sobretudo cabia velar pela "ame-
do nesta a distinção dos que participariam, diferenciadamente, da sociedade aça vertical", nos termos de José Luiz Werneck da Silva, constituída pelo incerto
política, a partir do critério da propriedade. 67 conjunto de homens livres e pobres, misturados aos escravos. 69 Os inúmeros ma-
tizes de cor, claro que sempre combinados a outros fatores de identidade, marca-
Poucos anos após a emancipação política e a outorga da Constituição, vam o mundo da suspeição policial. Carlos Eugênio Líbano Soares, em sua inves-
uma discussão parlamentar revelava o tom da linguagem oficial sobre a ques- tigação sobre os capoeiras no Rio de Janeiro, trouxe à luz com precisão essa hete-
tão do enunciado da cor. A sessão da Câmara dos Deputados do dia 4 de agosto rogeneidade. Os livros de matrícula da Casa de Detenção informavam, entre ou-
de 1826 votava projeto relativo ao recrutamento, preferindo retificar não uma tros dados, a origem e a cor, tanto para livres como para escravos, e é curioso
indelicadeza, mas palavras que restringiriam o número de soldados. observar como algumas características tornam supérfluos outros aspectos. Assim
os escravos Manuel , cabinda, ou Tomás, benguela, têm nesses atributos quase o
resumo de sua condição, ao passo que Anastácio, pardo, ou o preto e crioulo Ri-
Passou-se a discutir o projeto de lei sobre o recrutamento, prin- cardo são designados pela cor. Já Bernardino, africano livre, perdeu a denomina-
cipiando-se pelo art. 3°, cujo teor é o seguinte: ção específica da nação, como se agora bastasse para ele a categoria genérica de
Art. 3°. Ficam sujeitos ao recrutamento todos os homens brancos sol- africano, embora ainda assim tenha sido sua prisão registrada no livro dedicado
teiros, e ainda pardos libertos, de idade de 18 a 35 anos, que não aos escravos.70 A considerar esses exemplos, o termo pardo parece por si só indi-
tiverem a seu favor as exceções, de que logo se tratará. Depois da car o nascimento no país, o que não acontecia para o preto, qualificado, a bem de
discussão, procedeu-se à votação, e venceu-se a matéria na conformi- um dado relevante para a segurança pública, também como crioulo.
dade do artigo, ficando suprimidas as palavras -brancos e pardos- e
substituindo-se a palavra- cidadãos brasileiros - à palavra homens 68 Dentre os homens livres que praticavam a capoeiragem, a variedade atra-
vessa um leque ainda mais amplo. Nas palavras de Eugênio Soares: "Imigrantes,
pretos, sertanejos, caboclos, pardos nordestinos, portugueses, eles formavam uma
Não falar sobre a cor, em determinados discursos, não indica não agir, babel de línguas e costumes que coloriu a vida citadina durante muitas décadas". 71 A
em outras instâncias, a partir de uma série de critérios associados à distinção capoeira se manteve e disseminou adquirindo novos adeptos a partir de sua origem
de cor: a condição social, proveniência, as práticas culturais etc. escrava. Mas não se deve entender a convivência de distintas proveniências étnicas
e sociais como pasteurização das diferenças, uma vez que os lugares permaneciam
Se nas estatísticas criminais organizadas pela chefia da Polícia não exis- marcados, e as tensões sempre recriadas através das disputas das maltas. O que não
tem menções à cor, isso não significa que a prática cotidiana da polícia não a havia na capoeira era a dicotomia simples, por exemplo entre escravos e imigrantes.
utilizasse como critério de suspeição, vigilância, punição e, afinal , na identifica- As hierarquias porém pareciam se inverter, sendo os africanos mais velhos- os que
ção dos envolvidos. A diferença é que a estatística, ao criar realidades e não às vezes não representavam senão um fardo para os senhores- os mais respeitados,
apenas desvendar informações, constrói também um retrato da população. A partir os tesouros da tradição. Na perspectiva da polícia a suspeição se complicava:
da documentação aqui anali sada, percebe-se que talvez o problema do olhar do
recenseador não fosse exatamente mascarar uma realidade, mas a dificuldade,
imanente à dinâmica social, de mapear claramente a divisão por cores. Manten- As condições se misturavam na babel de cores, e não se sabia
do , porém, a ressalva de que, nos casos em que a cor fosse evidente, como no mais quem era livre, liberto, fugido, resultando numa inevitável

122 123
dor de cabeça para os mantenedores da ordem. A clareza da cor, menta algo mais elaborada do que a calça de casimira de cor, e a
como indicativo da condição, abria caminho para a suspeição camisa de meia da sua última estadia, em 20 de setembro.1s
generalizada, único meio de coibir o trânsito entre livres e es-
cravos: todos são suspeitos até prova em contrário. 72
A identificação policial, mesmo que sempre necessária, não era
por isso inequívoca.
Claro que a suspeição não ultrapassava os limites das "pessoas no-
toriamente conhecidas e de probidade". 73 E dentre as variegadas cores A cor que não é enunciada será a do cidadão, em todas as tensões
utilizadas no registro policial surge novo termo de imprecisão: Joaquim desse título, ou seja, a cor do cidadão não será questionada. Esse era 0
da Trindade, nascido em Santa Catarina, foi designado como de "cor fula". problema levantado implicitamente pela opção do recenseador de 1849;
Esse termo poderia designar africanos originários da Guiné, "de cabelos contra isso revoltara-se, anteriormente, o jornal O Homem de Cor. Para
encarapinhados e de cor mais ou menos baça", ou ainda, no uso brasileiro, aqueles rebeldes do Nordeste, no final de 1851, registrar em linguagem
o "mestiço de negro e mulato, pardo". 74 oficial a cor poderia significar colocar em xeque sua liberdade. Note-se
sempre que se trata de diferentes motivações para a resistência.
A variação podia se concentrar em um só indivíduo, como no caso
de José Eça da Cunha, detido 15 vezes entre 1876 e 1882 por diversos A experiência das injunções entre a cor e os significados da liberdade
motivos, e que mais parecia um camaleão, tomando-se por base seis fichas foi analisada por Hebe Mattos. A partir de meados do século XIX, nota-se o
recolhidas por Eugênio Soares: desaparecimento da menção à cor. Escreve a historiadora sobre a ausência da
"discriminação da cor dos homens livres nos registras históricos disponíveis.
Processos cíveis e criminais, registras paroquiais de batismo, casamento e
No carnaval de 1881, o catraieiro José Eça, com seus 20 anos, óbito, na maioria dos casos, não fazem menção à cor e mesmo nos registras
morador no largo da Batalha, branco, cabelo à escovinha, com civis, instituídos em 1888, em muitos casos, ela se faz ausente". 76
seu chapéu de lebre, ainda vadiava em busca de ocupação, o
motivo talvez de sua prisão como 'vagabundo'. O fenômeno, conceituado pela autora como silêncio sobre a cor, estaria
Dois meses depois, refletindo a alta rotatividade ocupacional relacionado não à imposição de uma ideologia do branqueamento - desenhando
da sociedade fluminense do final do século XIX, o criado José certa imagem da população-, mas à construção de significados de liberdade ligada
Eça da Cunha é preso por 'ofensas físicas em flagrante', e enviado a uma série de práticas de resistência à escravidão, como a constituição de laços de
pelo 3° delegado para a Casa de Detenção. Para complicar ainda parentesco, a mobilidade social e espacial, as tensas relações sociais entre escravos,
mais a instabilidade dos padrões de cor vigentes na época, e tam- homens livres e pobres e classe senhorial. O crescimento da população de procedên-
bém a insegurança de certos dados da Casa, o 'branco' do dia 20 de cia africana e de mestiços destruía a sinonímia entre ser branco e ser livre; modifica-
fevereiro se tornou 'pardo', e, o que é pior, de cabelo 'carapinho'. va a situação prevalecente até então, em que todas as testemunhas livres da docu-
No dia 20 de setembro, o 'moreno' José Eça da Cunha foi detido mentação judicial eram qualificadas como brancas ou pardas, criando uma situação
na freguesia da Candelária por 'promover desordem armado de semelhante à que foi vista em relação aos censos: excluía-se os negros da questão de
faca', um ato de delinqüência bastante comum para capoeiras. serem ou não livres. Mas, é evidente que esse era um mecanismo discursivo de
Antes, já tinha sido preso por 'ser capoeira' na freguesia de São identificação, não dizendo respeito à cor da pele ou ao grau de mistura ou "pureza",
José, desta vez morando na rua da Misericórdia 86, seu endereço e sim a um jogo de "diferenciação social, variável conforme o caso, na condição
definitivo. Em 27 de março de 1882, o catraieiro branco José Eça mais geral de não-branco". 77 Indivíduos poderiam tomar-se pardos, mais do que nas-
da Cunha volta a visitar as dependências da Detenção, vestindo cal- cer assim, a partir de relações pessoais, comunitárias, e de certos atos. Há casos em que
ça preta, camisa branca, paletó escuro, chapéu de palha, uma vesti- a identificação sofria uma alteração, de acordo com a mudança de condição social.

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A liberdade era, a princípio, um atributo do 'branco' que poten- tituição imperial, a partir de meados dos oitocento s, reflete uma
cializava a inserção social e a propriedade. Durante a segunda transformação social que se apropriava e tornava efetiva aquela
metade do século XIX , entretanto, esta representação da liber- disposição legal. 79
dade começa a ter suas bases solapadas. O crescimento demo-
gráfico de negros e mestiços, livres ou libertos, já não permitia
perceber os não-brancos livres como exceções controladasn A tendência dos censos e outros procedimentos em relação ao emer-
gente conceito de população, marcados pela inconstância da menção à cor,
passa por uma inflexão que começa a ser esboçada na década de 1870, inici-
O qualificativo branco não necessitaria, portanto, de nenhum comple- ando-se então uma mudança sem dúvida relacionada a uma série de transfor-
mento, ao contrário do que acontecia com o termo pardo que exigia a menção mações, como a crise do regime monárquico-escravista, os novos paradio-
à condição social. Isso é o que muda em consonância com outras mudanças mas teóricos cientificistas, a reconstrução da concepção de nacionalidad~,
sociais e económicas, como a estrutura da propriedade escrava e territorial. A entre outras. A razão daquela inconstância não pode deixar de ser referida à
liberdade teria deixado de ser branca mesmo que os termos negro e escravo fragilidade da centralização e às diferentes formas de resistência ao censo,
continuassem intercambiáveis, sendo esse segundo aspecto algo de que os dis- inclusive dentre os que seriam os representantes do Estado. Mas será apenas
cursos ministeriais dão uma mostra ainda mais conseqüente, uma vez que a isso? A estatística pretendia ser um instrumento de conhecimento científico,
política de mão-de-obra não incluía em seus horizontes a possibilidade de que exato, que iluminaria as ações do governo etc. No entanto, o retrato apresen-
os escravos viessem a ser livres. Braços livres deveriam ser os de determina- tado poderia sofrer ajustes, e vimos ministros modificando ou atenuando re-
das regiões da Europa, com determinadas experiências profissionais e com sultados. Seria simplismo exagerado avaliar tais ajustes e silêncios como
uma determinada conduta moral (o amor ao trabalho, a família etc.). Em rela- cintilações de uma ideologia do branqueamento, sobretudo se esta for enten-
ção aos braços não escravos aqui existentes, os "nacionais", predomina tam- dida apenas como ato de esconder certa realidade subjacente. Esses ajustes e
bém um certo silêncio na política de mão-de-obra, afora alguns projetos isola- silêncios compõem estratégias mais complexas em que talvez não falar sobre
dos e raros de colónias de nacionais, que tinham um objetivo mais vinculado à a cor em uma instância mais central seja complementar a uma série de outras
ordenação do espaço urbano e rural do que à produção económica. práticas mais imediatas em que a cor, como um dos elementos constitutivos
da condição social, era algo indelével.
Essas flutuações do critério da cor, sempre embebida em uma iden-
tificação social, variável, estratégica, contrastam com o período do final O argumento de Haddock Lobo, no recenseamento sobre a capital do
do século XIX e início do século XX, marcado pelo fim do regime monár- Império, perguntava: para que referir a cor de cidadãos ou chefes de família?
quico-escravista, em que o conceito de raça ganha uma pretensa firmeza Até porque eles dissimulariam sua cor. Nesse ponto, seria preferível certo si-
ou determinação. Segundo Hebe Mattos, a noção de cor lêncio, certo tabu, resguardando as ambigüidades da sociedade com espaços
multirraciais (se havia dissimulação é porque haveria algo a ser dissimulado).

herdada do período colonial, não designava, preferencialmente, Percebe-se, a partir da linguagem oficial - expressão que não deve
matizes de pigmentação ou níveis diferentes de mestiçagem, mas carregar qualquer razão única, ao contrário-, a estreita imbricação entre cor e
buscava definir lugares sociais, nos quais etnia e condição esta- condição social, sem que haja, porém, uma equação absoluta entre os termos.
vam indissociavelmente ligadas. Desta perspectiva, a cor ine- Essa mobilidade, incerteza, imprecisão, bem como a constante necessidade de
xistente antes de significar apenas branqueamento era um signo anotar as exceções não devem ser desprezadas como simples incapacidade
de cidadania na sociedade imperial, para a qual apenas a liber- burocrática, a ser aperfeiçoada com o decorrer do processo de centralização.
dade era precondição. Que este princípio se efetivasse nas prá- Deve-se atentar para o fato de que a própria dinâmica social impunha essas
ticas judiciárias, para além de sua afirmação genérica na Cons- características à atividade do recenseamento.

126 127
NoTAS 16 O parecer é assinado por Raimundo José da Cunha Mattos, em 9 de junho de 1827, do Paço da
Câmara. Parecer da Comissão de Diplomacia e Estatística sobre a convenção da abolição do
comércio da escravatura, celebrado entre S. M. I. e ... britânica. Tipografia Nacional, 1827.
Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos.
Antônio Joaquim de Macedo Soares, Dicionário brasileiro da língua portuguesa , p. 98 .
17 Henrique Jorge Rebello, Memória e considerações sobre a população do Brasil, op. cit., p. 37 .
2 A única menção que conseguimos registrar desta palavra nos periódicos analisados no pri-
meiro capítulo se deu no Aurora Fluminense, no 818, de 20 de setembro de 1833. 18 Relatório do ministro do Império, ano de 1835, op. cit.

3 A coleção do Monitor Sul Mineiro existente na Biblioteca Nacional tem início apenas em 1892, 19 ibidem. É necessário esclarecer os critérios por mim utilizados na apresentação das tabelas
o vigésimo primeiro ano de publicação daquele jornal. Por isso não foi possível localizar o deste capítulo. Todos os termos utilizados são literais, bem como a sua disposição nos mapas
texto da citação. Porém, a partir dos exemplares consultados, deve ser notado que era um ou quadros originais. Algumas informações foram suprimidas, por não interessarem dire-
periódico diário, de provável significativa difusão na região, contendo diferentes seções, tamente ao objeto em análise. Também os dados numéricos não foram citados, a não ser
desde as informativas até anúncios locais. Outro indicativo da difusão do periódico foi, no final quando lançassem luzes sobre a própria classificação.
do século XIX, uma campanha realizada em benefício da construção da estátua de José
Alencar, encomendada a Rodolfo Bernardelli, ainda hoje exposta no Rio de Janeiro. 20 Mapas das freguesias da província do Rio de Janeiro, 1835. Incluso no documento "Mapas da
população das províncias". 1815-1844. Arquivo Nacional.
4 O Mulato ou o Homem de Cor, n° 5, 4 de novembro de 1833.
21 Sidney Chalhoub, Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte.
5 limar Rohloff de Mattos, O tempo saquarema: a formação do Estado imperial, p. 210-211.
22 As atividades policiais, ao procurar consolidar uma ordem pública, procuravam limitar as
6 Michel Foucault, Sécurité, territoire et population, e Naissance de la biopolitique, in Résumé brechas entre o mundo da escravidão e o mundo livre e pobre, cada vez mais largas, velando
des cours, 1970-1982, p. 101-102 e 109. portanto pela estabilidade do trabalho escravo. Thomas Holloway, Polícia no Rio de Janeiro,
capítulo 2.
7 Recenseamento da população do município neutro organizado no fim do ano de 1849 pelo dr.
Roberto Jorge Haddock Lobo. Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos. 23 Hebe Mattos, Das cores do silêncio, p. 38

8 Mapas da população das províncias. 1815-1844. Ministério do Reino e Império. Caixa 76 1, 24 Mapas da população das províncias . 1815-1844. Arquivo Nacional. Esses mapas não são
pacote 1. Arquivo Nacional. regulares, nem existem para todas as províncias. Essa documentação manuscrita, do fundo do
Ministério do Reino e depois do Império, não constitui um conjunto homogêneo. Contam-se
9 Relatório do ministro do Império sobre o ano de 1837. Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1838. também relações de arraiais, freguesias, vilas e cidades, relações de aulas públicas e particu-
lares, informações sobre colégios e distritos eleitorais, bem como as listas de casamento, nas-
1O ibidem. Outro exemplo da grafia de estadística encontra-se em texto publicado pela primeira cimento e óbito da Corte, citadas anteriormente. A minha lista é, portanto, também uma lista
vez em 1836, de Henrique Jorge Rebello, Memória e considerações sobre a população do possível, para examinar as categorias utilizadas no levantamento sobre a população.
Brasil, RIHGB , tomo 30, 1867.
25 Hebe Mattos, Escravidão e cidadania no Brasil monárquico, p. 23 e 35-54.
11 Relatório do ministro do Império, ano 1834. Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1835.
26 Joaquim Norberto de Sousa e Silva, Investigações sobre os recenseamentos da população
12 No relatório do ministro do Império, ano 1835, o dirigente comentava a "afinidade" destas duas do Império.
rubricas, tratando delas em um só tópico. Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1836.
27 ibidem, p. 11-12.
13 Cf. limar Rohloff de Mattos, op. cit., p. 220; e também o prefácio de Sérgio Buarque de Holanda
a Memórias de um colono no Brasil, 1850, de Thomas Davatz, in Livro dos Prefácios, 28 Decreto no 797, de 18 de junho de 1851, que manda executar o Regulamento para a organi-
especialmente p. 11 e 18. zação do censo geral do Império. Coleção das leis do Império do Brasil , 1851, p. 161 e segs.

14 A cada ano dedicava-se, no relatório do ministro da Justiça, um tópico ao "Contrabando 29 Relatório do ministro do Império. 1851. Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1852, p. 16-17.
de africanos" .
30 Decreto no 798, de 18 de junho de 1851 , que manda executar o Regulamento do regis-
15 Relatório do ministro da Justiça, ano 1834, op. cit. Alguns anos mais tarde, a proposta ainda era tro dos nascimentos e óbitos. Coleção das leis do Império do Brasil, 1851, op. Clt., P·
válida, a ouvir O Filantropo. "O Brasil deve quanto antes tratar de fazer a aquisição de uma pe- 168 e segs.
quena porção de terreno nas costas da África; deve para aí enviar os libertos e proporcionar-lhes
todos os meios de moral e de religião." O Filantropo, ano I, no 3, sexta-feira, 20 de abril de 1849. 31 Diário do Rio de Janeiro, no 8.875, sábado, 20 de dezembro de 1851.

128 129
32 Richard Graham faz breve referência às revoltas , situando-as numa incerteza, quanto aos 48 Ofícios diversos. Secretaria de Polícia da Corte, 1845. Instrução para se regularem os ins-
laços cl ientelistas, sentida pelos homens pobres: "O protesto era provável sobretudo se petores de quarteirão na confecção do mapa do arrolamento dos habitantes do mesmo mu-
os de cima transgredissem as regras de comportamento consideradas corretas. Os pobres nicípio [mês de novembro]. Arquivo Nacional.
de cor, por exemplo, não hesitavam em recorrer às armas quando se sentiam ameaçados
pela escravidão" . Richard Graham, Clientelismo e política 110 Brasil do século XIX, p. 59. 49 Relatório do Ministério do Império, 1849. Rio de Janeiro, Tipografia Imperial, 1850.

33 Ofícios dos presidentes da província de Pernambuco para ministro da Justiça. 1851-1852. 50 "A Câmara Mun. desta cidade, tendo recebido a portaria da Secretaria de Estado de Negócios
Arquivo Nacional- IJI-824. do Império de lO do corrente mês, em que se lhe determinava que organizasse uma relação dos
indígenas existentes no município, exigindo dos inspetores de quarteirão os necessários
34 Rocrer Chartier analisa uma hostilidade coletiva contra o controle e domínio da escrita esclarecimentos, vem respeitosamente ponderar a V. Exa. a impossibilidade em que se acha de
en;uanto instrumento de poder. Esse "ódio social" à escrita teria três motivações: como poder, como desejaria, cumprir esta determinação, por não se achar atualmente em conta to com
veículo da justiça, como fixação das obrigações econômicas dos mais pobres e como tendo os inspetores de quarteirão [... ] estando inteiramente subordinados ao chefe de Polícia, por cuja
uma cer ta força mágica e maléfica. Roger Chartier, As práticas da escrita, p. 123-125. repartição mais facilmente se poderia organizar a mencionada relação". Câmara Municipal da
Corte. Ofícios. 24 de outubro de 1845. Arquivo Nacional.
35 Joaquim Norberto de Sousa e Silva, op. cit. , p. 17.
51 Relatório do Ministério do Império, 1845. Rio de Janeiro, Tipografia Imperial, 1846.
36 ibidem, p. 87.
52 Recenseamento da população do município neutro organizado no fim do ano de 1849 pelo dr.
37 Apud Michel Foucault, A governamentalidade , in Microfísica do poder, p. 281. Roberto Jorge Haddock Lobo. Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos. O número final foi
de 266.466 habitantes, sendo 155 .864 li vres e libertos e 110.602 escravos.
38 Henrique Jorge Rebello, Memória e considerações sobre a população do Brasil, op.
cit., p. 8 e segs. 53 Thomas Holloway, op. cit., p. 204-205 .

39 Saturnino Soares de Meireles, Estatística médica, p. 18. 54 Joaquim Norberto de Sousa e Silva, op. cit., p. 86 e 105.

40 Relatório de I o de março de 1840, de Paulino Soares de Souza, apud Joaquim Norberto de 55 Relatório apresentado ao ministro e secretário dos Negócios do Império pela comissão
Sousa e Silva, op. cit. , p. 87-88. encarregada da direção dos trabalhos do arrolamento da população do município da Corte a
que se procedeu em abril de 1870. Rio de Janeiro, Tipografia Perseverança, 1871, p. 3.
41 Relatório de 1° de abril de 1848, de Aureliano de Souza Coutinho, apud Joaquim Norberto Biblioteca Nacional.
de Sousa e Silva, op. cit., p. 89.
56 Sidney Chalhoub, op. cit., p. 235: "escravos vivendo 'sobre si ' contribuíam para a descons-
42 Ofício do chefe do Arquivo Estatístico, de 15 de abril de 1851 , apud Joaquim Norberto de trução de significados essenciais à continuidade da instituição da escravidão".
Sousa e Silva, op. cit., p. 91-94.
57 Relatório apresentado ... pela comissão encarregada da direção dos trabalhos do arrolamento
43 limar Rohloff de Mattos (op. cit., p. 226-228) indica como o fim do tráfico em 1850 rela- da população do município da Corte ... , op. cit., p. 49.
cionou-se a uma decisão pela defesa da soberania nacional, pondo fim à extraterritorialidade
da mão-de-obra, fonte tanto de temores das revoltas escravas como de uma subordinação 58 ibidem, p. 35.
dos proprietários de terra e de escravos diante dos traficantes. Sidney Chalhoub (op. cit., p. 186
e segs .) destaca também a preocupação com a segurança interna que motivou o ministro da 59 idem.
Justiça em 1850, Eusébio de Queiroz, a assinar a lei.
60 Recenseamento geral da população do Império do Brasil a que se procedeu no dia I o de
44 Relatório do ministro do Império, I850. Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1851. agosto de 1872. Biblioteca Nacional, Seção de Obras Raras. Não foi possível localizar as listas
ou mapas a partir dos quais foi organizado o resultado final, e que talvez trouxessem outras
45 Relatóri o de ! 0 de agosto de 1858, de Antônio Nicolau Tolentino, apud Joaquim Norberto de informações. Não foi encontrado nenhum texto introdutório ao censo. A única cópia dispo-
Sousa e Silva, op . cit. , p. 94-95. nível para consulta na Biblioteca Nacional é a microfilmada, que está incompleta (contém
apenas os dados gerais e os da província do Rio de Janeiro, incluindo a Corte).
46 De acordo com a justificativa dada por Eusébio de Queiroz, as constantes dificuldades em
realizar os censos deviam-se ao receio das taxas incidentes sobre os escravos e do recruta- 61 Sobre a relação entre política de mão-de-obra e política de terras, ver limar Rohloff de Mattos,
mento. Mary Karasch, Slave l(fe in Rio de Janeiro, p. 63-64. op. cit., p. 218-251. Segundo Manuela Carneiro da Cunha (Política indigenista no
século XIX, in M. C. da Cunha (org.) , História dos índios no Brasil, p. 133 e segs.) , a
47 Mapa da população do município da Corte. 1838. Mapas da população das províncias. Minis- desapropriação das terras dos índios foi o principal resultado da política indigenista
tério do Reino e Império. Arquivo Nacional. imperial.

130 131
62 Jorge Enrique Mendoza Posada, A cor segundo os censos demográficos. CAPÍTULO 3
63 As terras dos aldeamentos passaram a ser demarcadas pelas comissões, a partir de rela-
tórios dos engenheiros sobre os mesmos: "Como o diagnóstico era invariavelmente o de
total 'mistura' da população aldeada com os 'nacionais', os aldeamentos eram consi-
derados extintos [... ]. No caso Pankararu, isto significou a repartição de suas terras no
que eles chamam de 'linhas', a expulsão de um grande número de famílias indígenas e a
entrega dos melhores lotes para a clientela do chefe político local e para um número
indefinido de famílias de ex-escravos que acabavam de se emancipar". José Maurício Entre o tu pi e a "geringonça luso-africana",
Andion Arruti , A emergência dos ' remanescentes': notas para o diálogo entre indígenas
e quilombolas, Mana, p. 16. eis a língua brasileira
64 J. P. Fávilla Nunes, A população, território e representação nacional do Brasil, compara-
da com a de diversos países do mundo, p. 13.

65 Apud Antônio Macedo Soares, Dicionário brasileiro da língua portuguesa, p. 120-121.

66 Stuart Schwartz, Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, cap. 9;


Charles Boxer, Relações raciais 110 Império colonial português, 1415-1825.
A história do nascimento de Antônio de Gonçalves Dias pode ser lida
67 Hebe Mattos, Escravidão e cidadania 110 Brasil monárquico, p. 20; sobre a participação como uma espécie de metáfora da própria formação da nacionalidade. Seu pai
diferenciada na sociedade política ver limar Rohloff de Mattos, op. cit., p. 83 e 115. era um português, que foi perseguido pelo sentimento antilusitano pouco após a
68 Diário Fluminense, no 32, 8 de agosto de 1826. Independência, quando estava já unido a uma mulher cuja origem nunca se clas-
sificou com precisão: seria ela índia, cafusa, ou cabocla? O mesmo homem que
69 José Luiz Werneck da Silva e outros, A Polícia na Corte e no Distrito Federal, Rio de fugia dos partidários da emancipação política é o que se refugiava junto a uma
Janeiro, Série Estudos, no 3, PUC-Rio, 1981; Thomas Holloway, op. cit., p. 62.
mulher cuja proveniência seria eleita símbolo da nacionalidade. Passada a tor-
70 Carlos Eugênio Líbano Soares, A negregada instituição: os capoeiras no Rio de Janeiro, p. 103. menta, abandonou-a, junto com a vida no interior da província do Maranhão, em
troca de casamento com uma reconhecida senhora em São Luís. Daquela primei-
71 ibidem, p. 106.
ra união nasceu Antônio Gonçalves Dias, em 1823. Surgia um dos principais
72 ibidem, p. 110. construtores da nacionalidade literária na então cidade de Aldeias Altas, atual
Caxias, um dos últimos redutos da resistência à emancipação política no Brasil.
73 Thomas Holloway, op. cit., p. 47-48.
Após um cerco que se estendeu durante dois meses, a cidade rendeu-se em 1o de
74 Novo dicionário Aurélio, p. 660. agosto de 1823; Dias veio ao mundo em 10 desse mesmo mês. 1
75 Carlos Eugênio Líbano Soares, op. cit., p. 124.
Mais do que um elemento autobiográfico, esse pode ter sido o destino
76 Hebe Mattos, Das cores do silêncio, p. 19. metafórico da autoproclamada "geração que nasceu em 1825", ano de nasci-
mento de d. Pedro II. Não uma geração pela simples coincidência de nasci-
77 ibidem, p. 34.
mento, mas pela participação deliberada no movimento de dar à literatura o
78 ibidem, p. 38. "cunho de nacionalidade", acreditando que, assim, contribuiria para tornar o
Brasil uma nação. 2
79 ibidem, p. 109.

Naquele momento, o conceito de literatura era bastante amplo, englo-


bando as ciências, letras e artes. A abrangência do que se entendia como lite-
ratura está expressa neste editorial da Revista Brasileira, de 1857:

132 133
Além das ciências puramente especulativas, ou de produções as proporções, também o pai de dom Pedro II foi alvo de exaltados brasileiros
literárias de mero gosto, farão regularmente objeto da Revista que preferiam ver no trono o imperador menino, "cabra como nós".6
Brasileira quaisquer conhecimentos de utilidade prática: com-
preendendo-se especialmente nesta categoria o estudo compa- Naquele momento de meados do século já não se faziam urgentes tan-
rativo de importantes fatos históricos de qualquer ordem, naci- tos adjetivos para precisar o sentido da palavra "brasileiro", como nos anos
onais e estrangeiros; e das matérias econômicas, industriais e iniciais da Regência. Houve mesmo certa depuração nesses adjetivos, pois agora
financeiras, com particular aplicação ao Brasil. 3 seria uma discrepância alguém se definir politicamente como um "brasileiro
mulato" ou correlato. O sentido da palavra parecia, assim, estar já circunscrito
a certo círculo social, dado pelo próprio movimento de definir quem faria (e
A urdidura entre esses elementos componentes do conceito de literatura não faria) parte da sociedade civil. Isto é, brasileiros eram os habitantes livres
era o próprio projeto nacional, isto é, tudo o que testemunhasse a favor do pro- e nascidos no território nacional. Ainda não se tratava, portanto, de um atribu-
gresso da nação. Segundo Marcel Mauss, a idéia de nação havia passado por uma to automaticamente ligado ao nascimento. Ao contrário do que acontecia aos
inflexão no século XIX, abandonando seu teor revolucionário da segunda metade escravos, que já nessa condição nasciam, sendo esse fato entendido como na-
do século XVIII, e sendo então muito mais associada à noção de Estado, ou mes- turalmente inscrito na ordem das coisas.
mo confundida com este. Mauss, em sua apreensão histórica, específica, do con-
ceito de nação, apresentou como suas características essenciais a integração, a Dado esse passo, marcado por certa pacificação, "brasileiro" tornava-
estabilidade, a centralização e a consciência de uma unidade moral e cultural entre se adjetivo ou, mais definidamente, uma qualidade em busca de substantivos:
os habitantes. Um conjunto de crenças fu"ndamentais seria atributo da nação: a a literatura brasileira, a língua brasileira, a nação brasileira. O cenário da bata-
crença em sua raça, em sua língua, em sua literatura e, enfim, em sua civilização, lha agora será outro. Se antes, no cenário impresso, repercutiam as batalhas
seus costumes, suas artes industriais, seu progresso técnico e científico, suas be- nas ruas, na Câmara, nas tipografias e livrarias, quartéis, teatros, e quem sabe
las-artes.4 Acrescente-se, no caso brasileiro, uma crença especial em sua natureza. outros mais, agora as páginas de uma revista patrocinada por Pedro II como a
Guanabara, bem como os não tão restritos mas ainda seletos folhetins, pareci-
A revista Guanabara, publicada entre 1849 e 1856, fez parte ativa am o lugar por excelência dessas disputas razoáveis.
desse ambicioso projeto de literatura. Constituem um perfeito manifesto as
páginas que abrem o primeiro número: Alguns aspectos das práticas em torno do escrito acompanharam es-
sas transformações. A leitura provavelmente já não era a leitura coletiva e
animada, entrecortada por clamores evidentes à ação política, muitas vezes
Tudo é grande e prodigioso neste Brasil; tudo se apresenta de- feita nos quartéis e praças. Uma leitura quieta, individual ou familiar, no
baixo das formas mais belas e mais colossais, - exceto o ho- gabinete ou no boudoir. Quando pública, reverberava pelos institutos e so-
mem! Àqueles que atingiram a baliza posterior- Almezzo de! ciedades literárias. Claro que animadas eram também as leituras nas repúbli-
camin di nostra vi ta,- já não pertence a hora do fervor, os dias cas estudantis, mas sem o conteúdo revolucionário que as práticas do início
de trabalho e das esperanças de glória: à nova geração é que da década de 1830 pretenderam possuir.
cabe todo esse brilhante futuro, que é de triunfar quando a ge-
ração que nasceu em 1825 tomar posse da alta administração, O recurso ao anonimato nos anos próximos a 1831, que pode ser ca-
e o soberano governar com os homens de sua idade. 5 (grifo meu) racterizado como uma tentativa de instaurar o próprio anonimato na política,
tornando-a assunto de muitos, contrasta com o período de meados do século.
O anonimato ainda era praticado, geralmente sob a forma correlata de pseudô-
Os "pais" dessa geração envolveram-se em disputas acirradas em tor- nimos. Ig., que enigmaticamente pretendia evocar Iguaçu, foi o pseudônimo
no das variações políticas do tornar-se brasileiro ou ser português. Guardadas adotado por José de Alencar, nas suas Cartas sobre a Confederação dos Ta-

134 135
moias (1856), quando ainda jovem e pouco conhecido- antes de escrever O terário? E se por ventura a difusão da instrução pública for para
guarani- polemizava com a espécie de instituição, mais do que mero poeta, o futuro mais favorecida e mais cientificamente dirigida, não
Gonçalves de Magalhães. 7 Também anônimo permaneceu por alguns anos o poderemos esperar que daqui a mais vinte anos corramos o pá-
Memorial orgânico, conjunto de preceitos e medidas apresentado por Varnha- reo com as nações mais civilizadas do antigo continente?•
gem, em 1849, em que esclarecia o sentido pragmático da formação da nação,
propondo a escravidão do índio e medidas que diminuíssem a presença do
escravo nas cidades com mais de dez mil habitantes. 8 Essa "imprensa livre", representada pela Guanabara, pela Revista do
Instituto Histórico, pela Revista Brasileira, entre outros títulos, manifesta não
A grande diferença, em relação ao anonimato, deve-se à noção de au- qualquer liberdade, mas sim uma liberdade com conteúdo preciso: uma "liber-
tor, que agora parece já estar definida, em contraste com aqueles autores mais dade regrada". O projeto da literatura apoiava-se no Estado; este era um apoio
coletivos e por isso anônimos dos pasquins. Enfim, a noção de autor parecia financeiro, mas, de forma mais ampla, um apoio político. A Revista Brasileira,
estar já consolidada, e o anonimato, embora continuasse sendo uma arma, já proclamada sucessora da Guanabara, afirmava ser um jornal "publicado por
não se referia a batalhas tão agressivas e sangrentas. Conforme abordada no ordem e a expensas de Sua Majestade o Imperador". Porém, talvez mais im-
primeiro capítulo deste livro, a legislação que regulamentou a liberdade de portante que a ajuda financeira, era a postura assumida pela direção da publi-
imprensa encarregou-se dessa transformação, coibindo o anonimato e criando cação, ciosa em lembrar que iria
cada vez mais, definidamente, a responsabilidade penal do autor.

Se tomarmos como exemplo a revista Guanabara, e focalizarmos a corresponder dignamente aos desejos benévolos DAQUELE, que
discussão literária sobre a nação, os leitores (ou auditores) também já não no fastígio do poder somente anela a prosperidade do Brasil,
são tão anônimos ou "desordenados". A lista dos assinantes honrados fazia amparando com generosa proteção e promovendo desveladamen-
desfilar viscondes e senadores. A revista tinha patrocinadores, que também te a ilustração nacional, o mais seguro abono da ordem e da li-
aparecem nas suas próprias páginas, em um rol encabeçado por S. M. o Im- berdade regrada, que faz hoje a nossa felicidade, e fará também
perador e S. M. a Imperatriz. no futuro a dos nossos filhos. 10 (grifo meu)

É válido considerar o estado da imprensa, mais uma forma de compara-


ção com o período regencial. O trecho a seguir, de 1846, indica que a própria Nada mais significativo do que, em 1849, quando o primeiro número
imprensa livre teria seu começo apenas um pouco antes ao da "geração de 1825": da Guanabara saiu do prelo, no dia 2 de dezembro- aniversário do imperador
-, os três diretores, Gonçalves Dias, Joaquim Manuel de Macedo e Araújo
Porto Alegre, terem ido em comissão para pessoalmente ofertarem tão ilustra-
Assim pois com vinte e quatro anos de independência, e vinte e do presente ao monarca. 11
seis do gozo da liberdade de imprensa, o Brasil, em vez de duas
únicas e mesquinhas gazetas que tinha no começo da sua carrei- Entre os anos próximos à abdicação de d. Pedro I, em 7 de abril de
ra política, possui atualmente perto de 80 publicações periódi- 1831, e aqueles próximos às duas decisivas leis de 1850 12 - a Lei de Extin-
cas, muitas de grandiosas proporções, e outras científicas elite- ção do Tráfico de Escravos e a Lei de Terras, houve não só um percurso no
rárias , das quais algumas redigidas com gosto e talento; e todas processo de construção do Estado, no sentido de certa domesticação dos
enfim disseminando por toda a superfície do Império mais de movimentos sociais e dos interesses privados, da centralização política e
oito milhões de folhas proporcionadas aos gostos e instrução administrativa e da consolidação da hierarquia da sociedade escravista. Mas
dos seus leitores . Não provará isto que nestes 24 anos havemos também um percurso, entrelaçado àquele, em que se deslocou o significado
percorrido um dilatado campo no desenvolvimento do gosto li- da expressão brasileiro, naquele primeiro momento mais ligado às disputas

136 137
sobre o conceito de cidadão e agora - um campo de lutas mais abstrato e de uma única concepção de nação) e a heterogênea realidade social e cultural
simbólico - articulado à imagem de nação. do Brasil imperial em meados do século XIX. Como tais construções sobre a
nação fizeram face à situação de desigualdade? Como a história e a permanên-
Entre o brasileiro-cidadão e a nação-brasileira interpõe-se a constru- cia da escravidão foram pensadas? Como resolveram ou elidiram a questão de
ção de um Estado que parece tomar a si a tarefa de conceber a identidade tornar- do ponto de vista simbólico- um conglomerado disperso em algo que
nacional. Em torno do brasileiro-cidadão formou-se uma arena, ou um teatro se pudesse imaginar como nação?
político, pontuado por lutas concretas e imediatas: da participação na direção
política à obtenção de postos na Guarda Nacional ou no serviço público, entre Criar um sentido para o que se concebia como "nós" foi um gesto
outros projetos. Por volta de meados do século, diferentemente- e isto é o que acompanhado das formulações sobre os sentidos atribuídos a "eles", aos "ou-
aquelas duas leis expressam, com a concentração da propriedade escrava e a tros". A divisão nós/eles consistiu em uma operação recorrente nessas refle-
restrição ao acesso à propriedade da terra-, o predomínio da classe senhorial xões sobre a nação. 15 Mas também, eventualmente, a desconfiança acerca da
encontrava-se consolidado, o que tem relação com o fato de que em torno da certeza dessa separação, como nestes versos de Gonçalves Dias, de Os timbi-
nação-brasileira o número dos participantes ativos na contenda tenha sido ras: "Desejo, inquietação, também lá moram: I Que sobra pois em nós, que
radicalmente reduzido. Mas essa redução não se deve a um processo de exclu- falta neles?".
são, apenas. Ao contrário, a difusão de um "espírito de associação", contribu-
indo para o que limar Rohloff de Mattos define como as ações do governo do A alteridade poderia estar baseada em uma distância geográfica, em
Estado na direção exercida sobre a Casa, atuaria de modo mais eficaz e dura- um limite de fronteiras geopolíticas, mas também, ao contrário, exatamente no
douro, na medida em que procuraria construir um consenso 13 em torno da su- caso de uma proximidade, poderia exigir um processo de distanciamento. A
posta unidade moral, cultural, histórica da nação. A literatura e a língua ajuda- relação com o estrangeiro (incluindo aí seja os que serão vistos como guias ou
ram a construir essa unidade. modelos- caso da França-, coadjuvantes, ou prisioneiros da barbárie, como
as chamadas repúblicas latino-americanas) e a relação com os de dentro, para
Concomitante ao processo de produção da identidade nacional, fez-se recortar no interior deste conjunto os componentes e não-componentes da na-
a definição da alteridade. Além disso, é mais adequado pensarmos em alterida- ção, talvez não sejam aspectos dissociados. Talvez seja possível recuperar o
des, pois, conforme bem discerniu Manuel Salgado Guimarães em estudo so- ponto em que se encontraram.
bre a historiografia nacional do período imperial, o outro desta nação não era,
indistintamente, tudo o que fosse estrangeiro e pertencesse a outras fronteiras A polêmica sobre a "língua brasileira", como parte do romantismo no
nacionais. 14 Ou seja, considerar algo como outro não significava atribuir sem- Brasil, foi especialmente marcada por esses sintomas. Sintomas no sentido de
pre o mesmo peso e o mesmo valor. Uma primeira distinção é que, além dos que a tarefa de conceber a nação trazia em si mesma as contradições da reali-
outros "externos", imaginar a nação implicou o discernimento dos outros "in- dade social. A proposta deste capítulo é debruçar-se sobre essa polêmica, a
ternos", interiores à fronteira nacional. E para cada uma dessas direções, no- partir de escritos sobre a "língua brasileira" e sobre a língua falada no Brasil,
vas distinções se faziam. de um movimento, ainda inicial, de documentação da língua falada no Brasil
através de dicionários e vocabulários e, no campo da ficção, analisar algumas
Longe se estava, portanto, da idéia de nação, enquanto nova forma de obras que permitem dar vida ao exame da encruzilhada formada pela vontade
concepção da vida social, ser entendida como englobando a totalidade dos de conceber uma nação e pela diversidade e hierarquia marcantes da socieda-
habitantes, em uma perspectiva de assimilação incondicional: a nação retrata- de no Brasil imperial. Para esse último ponto, dois escritores românticos terão
da pelo romantismo histórico e literário irá operar escolhas, criar certos sím- destaque, por suas atuações na produção de imagens e representações sobre a
bolos, e consolidar certos tabus de silêncio. A questão que pretendo colocar ao nação, de impacto na sua época (como ainda hoje), e por terem também se
projeto da literatura consiste em tentar mostrar a articulação possível entre as envolvido ativamente no debate sobre a língua brasileira: Gonçalves Dias e
construções em torno da idéia de nação (seria simplismo considerar a hipótese José de Alencar.

138 139
O romantismo não se limitou a um movimento intelectual e artístico. sentiu-se premido a responder a um artigo de Nunes de Sousa, publicado nas
Por ocasião da comemoração do centenário da obra de Gonçalves de Maga- páginas da revista Guanabara. 18 As tensões entre pensar a nação e gerir a po-
lhães , Suspiros poéticos e saudades, em 1936, Sérgio Buarque de Holanda pu lação, entre a unidade e as divisões moveram a resposta do cônego à "Geo-
escrevia sobre a existência de "uma política, uma sociedade, um clero obedi- grafia histórica, física e política do Brasil" , onde Nunes de Sousa refaz cálcu-
entes à mesma inspiração que animou aquela escola de poetas". 16 Pode-se ten- los sobre a população, contestando números aceitos, inclusive os apresentados
tar seguir essa pista. Neste capítulo, tentei ainda perscrutar uma dúvida latente por Haddock Lobo e Ângelo Thomaz do Amaral, sobre a cidade e a província
sobre aquele momento da história, acerca do sentimento sobre as raças. Daí a do Rio de Janeiro, respectivamente. O sentido geral de seu argumento aponta
visita a determinadas obras literárias, por onde se pode entrever os sentimen- para um número maior da população global e sobretudo para uma maior pro-
tos que acompanham a hierarquização da sociedade, a escravidão, a diferença porção de escravos. Na província do Rio de Janeiro, Nunes de Sousa afirmava
nas origens dos povos, sendo estes alvos ao mesmo tempo de um projeto de que haveria não 460 mil habitantes livres e 440 mil escravos (soma dos resul-
nação e de um processo de inclusões e exclusões. O foco sobre aqueles dois tados apresentados pelos dois recenseadores citados acima), mas quinhentos
escritores justifica-se por mais um argumento: sua obra ficcional ligava-se in- mil livres e- para o pasmo e terror das autoridades- um milhão de escravos.
trinsecamente a uma reflexão sobre a história e a formação da nação. De fato, havia uma forte tendência dos proprietários em não declarar o número
exato de escravos, com o fim de fugir aos impostos devidos. 19 Nunes de Sousa
associa-se à opinião não exatamente abolicionista, mas contrária aos escravos
Descompassos entre a população e a nação e mais precisamente ao tráfico internacional, que em 1851, já decretada a Lei
Eusébio de Queiroz, ainda precisava se fazer ouvir. 20 Segundo o autor do arti-
go, o quadro trágico retratado pela estatística mostrava, no conjunto do país,
No cultivo das letras brasileiras refletia-se sobre a nação. De que for- que haveria para cada homem branco, dois "de cor". O desequilíbrio situaria o
ma se conciliavam essa reflexão e a preocupação com a população, elemento orgulhoso Império do Brasil em posição de inferioridade em relação aos ou-
de soberania, envolvido com a consolidação da unidade territorial e com a tros países da América, e o motivo seria agravado exatamente pela diversidade
centralização política? Não custa lembrar que às vezes essas questões obceca- racial da população.
vam o mesmo indivíduo, ora em algum papel administrativo, ora enquanto
artesão literário. 17 Mas nem por isso deve-se imaginar uma conciliação fácil, A preocupação ali expressa tinha alguns pontos em comum com as
ao contrário. Muita distância havia entre gerir a população e pensar a nação. O questões levantadas por Varnhagen no seu Memorial orgânico, onde propu-
primeiro ato, transformado em prática nos diversos recenseamentos e mapas nha, em seus próprios termos, que o Brasil deixasse de ser uma colônia para
sobre o movimento da população, pressupunha divisões, categorias, esquadri- tornar-se uma nação. Além da divisão territorial, incluindo a mudança da capi-
nhamentos que operavam inclusões e exclusões: livres e escravos, brasileiros tal para o centro geográfico do Império, dos limites espaciais detalhados, Var-
e estrangeiros, homens e mulheres, brancos e pretos. Definiam-se certos luga- nhagen preocupava-se com a população, cujo problema para ele não era tanto
res sociais: a sociedade política, a sociedade civil, os escravos, os estrangei- o pequeno número, mas justamente a heterogeneidade. 21
ros . O segundo ato lidava de outra forma com as divisões, procurando antes
construir uma unidade na formação da nacionalidade. No entanto, a marca No número seguinte da Guanabara, o cônego Pinheiro escreveu "Uma
comum às muitas contribuições ao nacionalismo literário parece ter sido o fato resposta" a Nunes de Sousa, procurando afastar a idéia de que "marchamos na
de ter sempre fracassado em falar da unidade a partir de um substrato irreme- retaguarda das repúblicas da jovem América". Longe disso, o destino de gran-
diavelmente dividido e, por outro lado, silenciado . Assim, na produção literá- deza do Brasil contrastaria com "as repúblicas da raça espanhola". E, quanto
ria, fala e silêncio formavam um par. às divisões e desequilíbrios entre livres e escravos, brancos e pretos, fazia
também uma afirmação que nãci deixa de ser, à sua maneira, uma projeçã~: no
Editor da segunda fase da revista, o cônego Joaquim Caetano Fernan- Brasil encontram-se "ligadas as suas diversas partes pela comunidade de mte-
des Pinheiro, aliás nascido no Rio de Janeiro naquele mesmo ano de 1825, res ses , de língua, de religião".

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Unidade existe, segundo o cônego, dada pelos "interesses" (que, Nos seus resultados a escravidão dos índios , como a dos ne-
por ser algo do plano da imaginação, o autor não explicita de forma mais gros a certos respeitos , sem enriquecer-nos, corrompia e bar-
direta), pela religião, que sabemos ser a oficial do Império, e pela língua. barizava a nossa raça. Sem nos determos em longos pormeno-
Essas são as urdiduras que fazem das "diversas partes" do Brasil uma na- res para prová-lo, baste um só fato, mas capital e decisivo. Em
ção. O caráter vago e indefinido dos "interesses" é correlato à mesma di- 1755 estava a língua portuguesa de tal modo estragada, ou an -
ficuldade de se definir o que era a nação. Antonio Candido comentou esta tes banida, que em São Luís e Belém só a túpica se falava, até
característica do nacionalismo literário: entre os contemporâneos, "nin- mesmos dos púlpitos . 26
guém saberia dizer com absoluta precisão" em que consistia a literatura
nacional. 22 Não se trata de apontar ali um defeito ou falta no argumento do
cônego Pinheiro, mas sim algo imanente às comunidades imaginadas: tra- A data referida por Lisboa não é casual. A referência à época do
tava-se de um certo sentimento, uma determinada tradição, um comporta- governo do marquês de Pombal liga-se exatamente, a esta altura do processo
mento singular, de fato indefiníveis .23 de colonização, a um primeiro esforço para inverter uma situação que mar-
cou os séculos iniciais da presença portuguesa: a língua de comunicação sendo
Se a língua aparece, na posição de Pinheiro, como elemento de a língua geral, de base tupi. As medidas pombalinas tentaram reprimir o uso
unidade, este autor não está preocupado, ao contrário de outros, em anco- da língua geral e de outras línguas indígenas no Pará e MaranhãoY
rar essa unidade também em uma diferenciação em relação a Portugal.
A difusão da língua fazia parte do projeto educacional do Estado im-
Assim como durante o período de consolidação da emancipação perial. Com a educação, esperava-se formar uma vontade coletiva, e poder
política (1822-1831 ), as disputas e conciliações com Portugal estão pre- vislumbrar uma unidade em meio a tantas resistências, atrasos, barbáries. II-
sentes na definição da literatura e da língua brasileiras, construída em mar Rohloff de Mattos destaca a importância da difusão da língua nacional e
meados do século XIX. Trata va-se de proclamar uma nova independên- sua gramática como parte das propostas e medidas relativas à instrução:
cia;24 no entanto, outros eram os campos de batalha, e a marca já não é a
do exaltado antilusitanismo.
[... ] não se tratava mais de apenas ensinar a 'ler, escrever e
O mais importante, para o cônego, era que a língua, a religião e os contar', como acontecera nas escolas da Colônia. Tratava-se
"interesses" faziam do Brasil uma nação. de difundir o mais amplamente possível a 'língua nacional',
sua gramática incluída, de modo a superar as limitações de toda
Pode ser das tarefas mais difíceis desnaturalizar uma urdidura tão natureza impostas pelas falas regionais, e assim reproduzindo
solidamente forjada como aquela que une uma nação a uma língua. 25 Nem em escala mínima e individual o esforço gigantesco que, em
por isso devemos esquecer que, longe da língua portuguesa ser àquela al- escala ampliada, era desenvolvido pelos escritores românticos,
tura utilizada universalmente no Brasil, houve uma série de medidas, de Alencar à frente. 28
cunho fortemente político, para impor tanto aquele uso como, tão impor-
tante quanto, a crença de que esta seria a atitude correta e adequada.
A imposição de uma uniformidade da língua foi um problema na for-
Por isso é significativo que João Francisco Lisboa, publicista e mação dos Estados nacionais no século XIX. 29 Apesar das muitas especifici-
político maranhense, se inquietasse com o problema da diversidade lin- dades, um elemento comum parece ter sido o desprezo por qualquer variação
güística ao examinar a história colonial e a formação da nacionalidade, e regional ou social. Como afirma Jonathan Steinberg, a "caneta" foi tão ou
desse como principal argumento dos males da escravidão o uso do tupi e mais decisiva do que a "espada" no estabelecimento de comunidades políti-
não da língua portuguesa: cas. E acrescenta :

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Os nacionalistas do século XIX partilhavam com os escritores do cações sobre os fatores que levaram à existência de um vocabulário brasileiro
século XVIII uma mesma atitude com relação à fala das pessoas co- _ pois afinal seu objetivo é eminentemente prático -, alguns pressupostos do
muns . Se para os esclarecidos gramáticos do século XVIII o dialeto autor podem ser depreendidos de seu prólogo e da seleção dos verbetes.
não era um erro, mas apenas um impedimento à agradável unifor-
midade que a razão ditava, a existência de dialetos no século XIX ame- O autor serviu-se de "memórias, e outros escritos, que tratam das nos-
açou a estrutura do Estado. A questione de/la lingua tomou-se um pro- sas coisas, assim como de muitas notícias particulares". Segundo Rubim, mui-
blema de imposição da uniformidade da fala para transformar o que tos vocábulos são reconhecidos por terem passado "da linguagem dos indíge-
havia sido uma miscelânea de povos em uma comunidade nacionaJ.3o nas da América e da África para o uso comum" . O autor eximiu-se porém de
apresentar a origem de cada um desses vocábulos, provavelmente pela dificul-
dade da tarefa para seus recursos e época. Além da origem africana ou ameri-
No caso do Brasil não se tratava apenas de variações regionais ou so- cana, considerou também usos específicos, como por exemplo os vocábulos
ciais em relação a um padrão considerado correto. Havia ainda a existência de "armar", que "nos engenhos de açúcar, é arrumar a lenha na fornalha", ou "vo-
diferentes línguas indígenas e africanas. Os contemporâneos estiveram atentos ador" , no sentido de "moeda de cobre falso, que girou em certo tempo".
a esse fato, e suas respostas variaram diante dele, como veremos a seguir.
Em termos quantitativos, a grande maioria dos verbetes diz respeito a
nomes de nações indígenas, em geral indicando sua existência no passado e
Dicionários e língua brasileira referida à sua localidade (afirmando, por exemplo, que certa nação "dominava
a região de Pernambuco") . Mas são também numerosas as referências a frutos,
plantas, animais, (por exemplo, "camundongo"), de procedência americana ou
Na busca do nacionalismo lingüístico, uma atitude inicial foi consa- africana, como sabemos hoje ou como o autor não quis ou não pôde referir.
grar a expressão "língua brasileira". Uma ressalva, porém, era necessária para
esclarecer que não se tratava do sentido corriqueiro emprestado à expressão, As designações de identidade racial ou de nascimento aparecem na
de língua usada por índios. Luís Maria da Silva Pinto, natural de Goiás, publi- obra : cafusa, carioca. Compreende ainda apelidos dos grupos políticos: cara-
cou em Ouro Preto, em 1832, um modesto Dicionário da língua brasileira. muru, cascudos, guabirus, saquaremas, chimangos e de acontecimentos como
Havia feito uma subscrição dois anos antes, e explicava a demora em atender a Sabinada: "nome de uma revolta na província da Bahia, à testa da qual figu-
aos que financiaram a publicação, pela dificuldade do projeto. Afinal "cumpria rou um facínora por nome Sabino". São apresentadas palavras diretamente li-
consultar todos os vocabulários ao alcance, para com efeito dar o da língua bra- gadas ao fenômeno da escravidão: zungu ("muitas habitações juntas, à manei-
sileira; isto é, compreensivo das palavras, e frases entre nós geralmente adota- ra de cortiço") , quilombola, ou meia-cara ("escravo importado por contraban-
das, e não somente daquelas que proferiam os índios, como se presumira"Y do"). Termos culinários como matapá ou vatapá e quitute são mencionados.
Os vocábulos caçula e bunda, ambos no sentido atual em que ainda são empre-
A dificuldade em ter acesso a dicionários como o de Antônio de Morais gados, foram incorporados por Brás da Costa Rubim.
e Silva foi o principal motivo apontado por Silva Pinto na busca de apoio finan-
ceiro à sua obra, que considerava um "auxiliante da gramática e da ortografia". Certas formas singulares de tratamento como nhonhô, sinhá, iaiá e ioiô,
sinhazinha, sinhozinho, têm ali o sentido explicado.
Sem chegar a considerar a existência de uma língua própria, Brás da
Costa Rubim organizou o Vocabulário brasileiro para servir de complemento Esse esforço de documentação rendeu outras obras e teve continuida-
aos dicionários da língua portuguesa, de 1853. 32 Entende portanto seu traba- de nas décadas seguintes . Talvez o Dicionário brasileiro da língua portugue-
lho como o de coleção de vocábulos usados no Brasil e que não são citados sa, de Macedo Soares, de 1888, seja dos mais importantes frutos dessa tendên-
nos "dicionários da nossa língua". Embora não se dedique a desvendar expli- cia, ainda que tenha permanecido inconcluso. 33 Ainda em 1852, sem referência

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a autor, época ou região em que foi compilado, foi publicado um Vocabu lário A estreita relação entre língua e nacionalismo no século XIX é comenta-
da língua bugre, organizado a partir de termos e expressões em português da por Benedict Anderson. Aquela foi uma "idade do ouro para os lexicógrafos,
para os quais se oferecia a tradução nesta incógnita "língua bugre". 34 Flor~ gramáticos, filologistas e literatos das línguas vulgares". A "língua impressa na-
Sussekind cita outros exemplos, embora de caráter mais restrito que o das duas cional" foi um dos fatores que mais cotidianamente contribuiu para a formação
obras aqui selecionadas, como o Glossaria linguarum brasiliensium, com vo- do sentimento de comunidade nacional, de nation-ness. E acrescenta que essas
cábulos de diferentes línguas indígenas recolhidos por Spix e Martius e outros atividades foram essenciais na "moldagem dos nacionalismos europeus" do sé-
viajantes, impresso em 1867, e a "Coleção de vocábulos e frases usadas na culo XIX, à diferença, segundo o autor, do que aconteceu na América. Anderson
província de S. Pedro do Rio Grande do Sul", de Pereira Coruja, publicada na acredita que, sendo o inglês e o espanhol (cita apenas esses dois idiomas, omi-
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1852. 35 tindo o português) elementos comuns com a Europa, os nacionalismos america-
nos não se preocuparam com tal dimensãoY O caso brasileiro nos mostra porém
Este último trabalho, significativamente intitulado "coleção", é prece- algo diferente, uma vez que o português será submetido a um certo tratamento
dido por uma interessante apresentação do autor, em que seu primeiro cuidado é brasileiro, e a atividade de documentação, embora ainda incipiente, o demonstra.
negar que houvesse, na província em foco, a mácula da "língua portuguesa" por
"vícios" ou por um "sotaque". Ele procura justificar a existência de certa singu- Vale uma pequena ressalva sobre a expressão 'língua brasileira', que é
laridade com bastante cautela para não ferir a obediência ao padrão lingüístico aqui empregada para sintetizar um debate intelectual que acompanhou o pro-
nacional. Nesse cuidado, talvez se encontrem os ecos de um passado bastante jeto de fundar a literatura independente. Nem todos os autores a empregaram,
próximo: os anos de guerra da Revolução Farroupilha, há pouco controlado pelo e nem sempre lhe atribuíram o mesmo conteúdo.
poder central. A singularidade seria o resultado de uma "indústria peculiar", do
"caráter particular" dos habitantes, do convívio com os habitantes dos estados Deve ficar claro ainda, conforme salientou Celso Cunha, 38 que em mea-
vizinhos que falam o castelhano, além de outro fator, que ele insiste em localizar dos do século XIX a concepção de língua é bastante diferente daquela criada
no passado, a "sua antiga comunicação com diferentes tribos indígenas". Esses pela lingüística de Ferdinand de Saussure, e que não se deve projetar sobre aquele
seriam os motivos que "têm feito que seus habitantes para exprimirem certas momento as mesmas conseqüências que haveria em falar, após o estruturalismo,
idéias e comunicarem certos pensamentos tenham adaptado alguns vocábulos e que a língua do Brasil é diferente da língua portuguesa, o que equivaleria a negar
frases que não têm equivalentes nem no uso comum nem nos dicionários da o fato de que o sistema de oposições é o mesmo. A expressão que os lingüistas
língua". A sua preocupação em equilibrar o interesse de seu trabalho, que se aplicam é a de língua portuguesa no Brasil, como por exemplo Edith Pimentel
justifica pela peculiaridade, e a língua nacional leva-o a uma distinção social no Pinto. Esta autora expõe por que seria impróprio falar em dialeto (desvio em
interior da província, entre os "menos civilizados", sujeitos ao "sotaque", e os relação à forma padrão, no plano geográfico ou social), visto que a norma brasi-
"de trato mais civil", que falariam como na antiga metrópole: leira é considerada paritária em relação à norma portuguesa. No entanto, é pos-
sível aplicar a expressão língua brasileira ou idioma brasileiro para referir-se ao
uso brasileiro do português, sem precisar com isso supor a autonomia lingüísti-
Se nos países que passam por cultos acontece, que em muitas provín- ca. Quanto ao movimento romântico, outro peso ganhou a expressão:
cias, por motivos que me não é agora dado expor, se acha a língua
nacional alterada por dialetos diferentes, não admiraria que nesta
província o mesmo tivesse lugar à vista de sua posição geográfica e Em certos momentos do passado, porém, a expressão devia ser tomada
de tantos elementos, que poderiam desconcertar sua linguagem: as- literalmente: o sentimento nacionalista mais de uma vez levou à reivin-
sim porém não acontece, e apenas os homens menos civilizados da dicação de uma língua própria. Arrolava-se, então, como prova de sua
campanha têm uma pronúncia, que se ressente do sotaque castelha- existência, um extenso vocabulário específico do Brasil; apontavam-se
no, ao mesmo tempo em que os rio-grandenses de trato mais civil certos hábitos fonéticos peculiares e alguns torneios sintáticos e estilísti-
39
passam nas outras províncias por naturais de Lisboa. 36 (grifos meus) cos preferenciais dos brasileiros e ignorados ou desusados em Portugal.

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Nos próximos parágrafos, o foco sobre algumas posições acerca do Ao refletir sobre a nacionalidade brasileira, o autor olhava para "todas
tema indica as conseqüências do que se podia inserir como elemento singula- as raças de que é composto" o povo brasileiro, e admirava uma comum dispo-
rizante dessa língua própria e o que não deveria aparecer como tal. Da mesma sição poética e musical. Em contraste, os editores não pretendiam lançar 0
forma, a relação com Portugal estava aí sempre presente. Começam a aparecer olhar de forma tão abrangente. Originalmente, o artigo foi publicado na Espa-
as tensões entre a língua falada e a língua literária, em uma série de ambigüi- nha, na Revista Espanhola d'Ambos os Mundos, o que ajuda a entender a pró-
dades entre aproximações e distanciamentos. pria abrangência do seu olhar, que destoava do modo como se entendia aqui o
nacionalismo, e o fato de sua opinião sobre a prática lingüística no Brasil ter
sido atenuada pelos editores.
A língua brasileira: o digno e o indigno
Segundo esse autor, e procurando responder a uma questão já levanta-
da por Gonçalves de Magalhães, 42 entre os índios haveria uma disposição na-
Se o que se tem nos dicionários e vocabulários parece caminhar no tural para a música e para poesia, ainda mais acentuada pela estratégia da ca-
sentido da abrangência da língua praticada- falada ou escrita- e de uma certa tequese jesuítica que teria explorado tal disposição natural como meio de do-
tendência à incorporação e documentação (mesmo operando seleções inevitá- brá-los a seus objetivos. Da mesma disposição dariam mostra os negros que,
veis), no caso da língua brasileira pensada literariamente a seleção sobressai, enquanto trabalham, cantam "a monótona música e os rudes versos". Valera
e parece não estar em questão nenhuma tendência a uma incorporação univer- afirma ainda que nas ruas do Rio não se passearia sem ouvir música, cantada
sal. Trata-se das tensões entre língua literária e língua falada. pelas senhoras, e as modinhas e "lunduns", assim como não se iria a um batiza-
do ou encontro social onde poesias não fossem recitadas pelos moços.
O movimento romântico, preocupado em cunhar a expressão literária
própria, invalidando as constantes censuras e críticas portuguesas, teve uma Estas não eram preocupações isoladas ou simplesmente momentâneas
relação ambígua com a oralidade. De um lado, visitou-a como prova dos ru- do escritor. Antonio Candido a ele se refere como um dos militantes em defesa
mos diferenciados do português no Brasil. De outro, nunca tomou essa visita das literaturas nacionais, e mostra seu cuidado em livrar a língua espanhola,
como devendo absorver indistintamente e em estado bruto tudo o que era en- "de este lado y dei otro del Atlántico", de certa influência exagerada e nociva
contrado. (As reflexões de José de Alencar a esse respeito são bastante ricas e do francês. Uma vez que reconhecia as trocas como elemento dos povos civi-
serão examinadas adiante). Outras vezes, admitia-se uma diferenciação da fala lizados, não pregava o isolamento, mas sim que se evitasse uma incorporação
no léxico e na prosódia, mas preservava-se a tradicional unidade da língua desordenada. 43
escrita. 40 Esse foi o caso de F. A. Varnhagen, cuja posição será retomada adiante.
Ao lado da poesia brasileira, Valera reconhecia a preocupação em cu-
O escritor espanhol Juan Valera, que viveu entre 1824 e 1905, e como nhar uma língua própria, "a que chamam nacional para não denominá-la portu-
diplomata chegou a morar no Rio de Janeiro, 41 abraçou a causa da nacionaliza- guesa", bem como o uso de palavras "tomadas nos dialetos americanos, e ain-
ção da literatura. Foi publicado nas páginas da Guanabara um artigo de sua da atrevo-me a afirmar que têm adicionado também palavras das línguas afri-
autoria, intitulado "Poesia brasileira", onde associava a poesia à língua. Acom- canas, v. g. da língua buda [sic] da costa do Congo, que é uma das mais perfei-
panhar seu artigo permite trazer à luz uma tensão entre diferentes formas de tas, que falam os negros".
conceber a nacionalidade, pois sua avaliação, predisposta à abrangência, foi
de certa forma "corrigida" pelos editores, por meio de uma estratégica nota de Embora não tenha sido possível examinar a edição espanhola do arti-
pé de página. Vamos considerar a avaliação de Valera acerca dos motivos da go, não deve passar despercebida a inexatidão tipográfica do termo bunda.
singularidade brasileira e a nota que aponta uma exclusão e valoriza a seleção Segundo o dicionário Aurélio, a palavra é uma variação de bundo, "indivíduo
não só na linguagem literária, mas genericamente na linguagem das pessoas, dos bundas, indígenas bantos de Angola", expressando ainda "a língua dos
especialmente as "pessoas gradas" da sociedade. bundos; bunda, ambundo , quimbundo". Por extensão, bunda seria também

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"qualquer língua de negros" ou uma "maneira incorreta de exprimir-se; lingua- Curioso é que mesmo reconhecendo múltiplas causas para tais "víci-
gem estropiada; bunda". 44 A inexatidão tipográfica provavelmente trai, anteci - os", para Lopes Gama a principal era o contato com os africanos no próprio
pando-a, a posição dos editores da revista, que exatamente nesse ponto abri- lar, o que se aprenderia com as amas e demais escravos. Ora, essa seria uma
ram uma nota de rodapé com a seguinte advertência: "Parece-nos sumamente inversão sem par, os "primeiros mestres" sendo exatamente os escravos e afri-
injusto o que diz o ilustre viajante; porque se algumas palavras dos dialetos canos, grave exatamente porque aconteceria entre as pessoas "da classe grada
africanos se acham introduzidas entre nós, não são elas jamais empregadas por da sociedade". A posição de Lopes Gama não era simplesmente individual,
pessoas instruídas e bem educadas". mas refletia os valores moralistas da sociedade pernambucana, que ele acredi-
tava ser urgente reformar, mas não revolucionar. 46
Se tais palavras são utilizadas, nunca o seriam por pessoas educadas.
Escrevê-las seria algo, para os editores, ainda mais impensado, uma vez que Retornando à posição de Valera, a sua experiência na cidade do Rio de
esta é uma atividade de pessoas educadas. Janeiro certamente marcou sua percepção daquilo que reconheceu como uma
poesia dos negros. A língua portuguesa funcionaria como uma certa nacionaliza-
A linguagem não podia deixar de ser mais um elemento de diferen- ção, pois aqueles "cedo se esquecem dos seus pátrios dialetos", passando a com-
ciação naquela sociedade com linhas de hierarquia ao mesmo tempo cla- por copias "em mau português". Nesse ponto, sua posição coincide com a do
ras e tensas. Um dos que lutaram, com sua pena, contra atitudes de inter- cônego Pinheiro, que acreditava na língua como princípio de unidade, apesar
penetração lingüística foi o padre Lopes Gama, que escrevia em 1842 no das divisões e conflitos da escravidão. Considera a questão do surgimento de
seu Carapuceiro: uma literatura negra no Brasil, tal qual a formada no Haiti e a que possivelmente
surgirá na "nascente república da Libéria". Mesmo respondendo negativamente,
uma vez que os escravos aqui não eram alfabetizados, apenas a consideração da
É verdadeiramente lastimosa a linguagem ou gerigonça luso - questão é digna de nota, e coroada por um elogio que desta vez, certamente, não
africana de muita gente nossa, e não só do mençalho, como até poderia ser retificado por uma nova nota de rodapé: "se não os negros, os pardos
de hierarquia elevada. Já não tratarei da prosódia ou acentuação ao menos, são os melhores poetas do Brasil: o que prova, ao meu ver, que a raça
da voz, pela qual estendem tudo que deve ser breve, e formam negra é tão boa como a nossa, salvo a diferença da cor e da civilização"Y
desta arte uma linguagem tão morosa que enfastia e quase dá
sono. Vemos muitas vezes uma menina galante, viva e espiritu- O alvo central do artigo de Juan Valera- e o que certamente fez com
osa. Mas em falando é uma miséria; e o mais é que, se alguém que fosse traduzido e publicado na revista- era a valorização da independên-
lhe diz que se corrija de falar tão descansada e preguiçosamen- cia da literatura nacional em relação aos temas e à terra portuguesa, bem-vinda
te, arrebita o nariz, chofra-se e responde desdenhosa: 'Eu nasci após séculos de submissão, e historiada por ele inicialmente com comentários
no Brasil, e não sei falar língua de marinheiro' Y (grifo meu) sobre poemas do século XVIII, como O Uraguai e Caramuru, e afinal sobre Y-
Juca-Pirama, de Gonçalves Dias, momento de feliz inspiração indianista do
poeta, que havia sido publicado em 1851 como um dos Últimos cantos. É de se
Sem a intenção, Lopes Gama revela que a língua falada em Recife, notar, ainda, que sua afirmação sobre o uso de palavras emprestadas dos "diale-
onde escreve, incorporara essa "gerigonça" - isto é, gíria ou calão- africana tos americanos" não foi objeto de ressalvas pelos organizadores da publicação.
(observe-se que entre seus exemplos encontram-se palavras que não são de
origem africana, mas indígena, como a última citada adiante). Trata-se de vá- Uma negação estava na base do movimento de cunhar a expressão 'lín-
rios "vícios" de vocabulário: "Que coisa mais geral entre nós do que os vocá- gua brasileira'. Tratava-se exatamente de evitar chamar de língua portuguesa a
bulos bunda, caxerenguengue, quicé, e outros muitos de origem africana?". E forma como se falava e escrevia no Brasil. Disso já dera mostras Valera, que
vícios também de pronúncia: "Muitos declaram guerra ao r finais, e dizem dizia chamarem-na "nacional para não denominá-la portuguesa". A partirdes-
sempre mandá, buscá, comê, dormi, singulá etc.". se passo inicial é que se procurava a história, as marcas dessa singularidade. O

150 151
historiador Joaquim Norberto envolveu-se nessa polêmica, ao publicar, já em Joaquim Norberto apresenta as idéias de José Silvestre Ribeiro, portu-
1855, o artigo "Língua brasileira" nas páginas da mesma revista Guanabara, guês, sobre as modificações da língua portuguesa no Brasil:
onde apresentou certo balanço geral das posições presentes e passadas sobre 0
tema. Polêmica, pois se tratava mesmo de uma arena em que se alternavam
certa agressividade e alguns reconhecimentos de filiação. Daí, o tom reativo O sr. José Silvestre Ribeiro diz que não se pode deixar de fazer
com que o autor abria seu texto: "Já alguém nos lançou no rosto, que não sentir a diferença que o clima, o caráter dos povos, e outras
temos literatura nacional, porque não temos língua [ ... ]". 48 muitas circunstâncias devem ter produzido sobre o idioma por-
tuguês no Brasil. Que é incontestável que a língua portuguesa
Mais de quinze anos depois, José de Alencar ainda reclamava de "uns tem continuado a ser comum aos habitantes dos dois mundos,
gênios em Portugal" que "decretaram que não temos, e nem podemos ter, lite- como permanecendo essencialmente a mesma; mas que também
ratura brasileira". 49 Reação que não só reconhecia, mas também- invertendo a se não pode duvidar de que transportada ao Brasil, modificou
situação- reclamava um "direito de herança" da língua aprendida "dos lábios algum tanto a sua índole, por efeito da poderosa influência do
de nossas mães". clima, do caráter dos naturais, da mistura de raças etc. etc. Que
além dessa diferença, que abrange a generalidade do idioma, há
Entre o diferente e o mesmo, Joaquim Norberto decretava o senti- também a considerar a introdução de um grande número de vo-
do da expressão língua brasileira, naquela mesma direção em que já havia cábulos e costumes dos indígenas ou mesmo dos colonos do ul-
atuado o dicionarista Luís da Si! v a Pinto, em 1832. Não mais seria a "lín- tramar, que sucessivamente foram passando ao Brasil.
gua dos antigos dominadores do Brasil", pois essa deveria ser a partir de
então designada como "língua guaranina" ou "língua geral". Afinal "ao
menos cá de mim para mim tenho, que quando disser língua portuguesa, Não devemos sobreestimar o peso desses argumentos deterministas
entenderão por tal o idioma de que se usa na velha metrópole, e quando como mistura de raças e influência climática na concepção de língua de Joa-
disser língua brasileira, tomarão por tal a que falamos, que é quase aquela quim Norberto. Esses elementos parecem circunstanciais, e não mereceram
mesma, mas com muitas mudanças". 5° maior dedicação do autor. Não porque não fosse a "época" do determinismo,
ou porque esses princípios "ainda" não estavam disseminados no Brasil (uma
Ou nessa outra passagem ainda mais eloqüente: explicação que seria puramente retrospectiva, e baseada numa concepção line-
ar da história cultural das idéias). Mas sim, com maior consistência, porque o
romantismo se posicionava de forma contrária ao determinismo natural. O pró-
Ora, não há dúvida que nós trazemos no peito a cruz de Afonso prio Gonçalves de Magalhães, em uma memória de 1860, afirmava: "Confesso
Henriques, e temos nos lábios a língua de Camões, como tão porém que na dificuldade em que se acha a etnografia de demonstrar a unidade
poeticamente disse o meu Porto Alegre, e que bem traduzido e ou a pluralidade da raça humana, prefiro como mais plausível a tradição bíbli-
em termos de prosa quer dizer que somos cristãos e falamos ca". A religião ocupa aí o papel do traço de união da raça humana. 52
português. Porém será essa língua tal e qual a que se usa na
antiga mãe pátria? 51 A idéia de natureza, quadro em que devemos interpretar a referência
de Joaquim Norberto à mistura de raças e ao clima, é subsidiária do romantis-
mo, e não do determinismo . É acima de tudo a natureza americana a garantido-
A língua portuguesa e a religião cristã: eis os elementos da conci- ra da nossa filiação, que nos distinguiria da Europa.
liação, o passaporte para a civilização e a história. Vamos lembrar que
língua e religião já haviam aparecido emparelhadas nas afirmações do O segundo argumento lembrado por Joaquim Norberto é o da introdução
cônego Fernandes Pinheiro. de "vocábulos e costumes" de indígenas e de colonos. O silêncio sobre uma influ-

152 153
ência africana é significativo. Outro elemento que é recorrente no texto é a oscilação a um objetivo eminentemente prático e substancialmente político: a con-
entre tratar-se da mesma língua e de uma língua diferente em relação a Portugal. quista das terras entregues à selvageria, em nome da civilização do Impé-
rio . Conhecer as línguas era a condição para a catequese dos índios, polí-
Além de reativo, o tom era também de zombaria. É interessante como tica retomada pelo Estado imperial. 55 Varnhagen utiliza o pluraJ5 6 - lín-
este autor de textos graves e sérios, como a "Memória histórica e documentada guas - o que parece significativo do processo de expansão e unificação
das aldeias de índios da província do Rio de Janeiro", laureada em sessão territorial durante o século XIX, em que as línguas de outros troncos que
magna do Instituto Histórico com o prêmio imperial em 1852, e publicada em não o tupi-guarani precisariam ser conhecidas.
1854 na Revista do IHGB, adota aqui o estilo irónico, também adotado déca-
das antes pelos periódicos ao defender o cidadão brasileiro dos "malvados No Florilégio, também não se trata de afirmar uma presença tupi
chumbeiros". E eram ambas ironias bem-humoradas, cómicas. na língua brasileira. Na verdade, essa questão parece não se colocar para
Varnhagen, que está antes preocupado com as diferenças do falar no Bra-
Ironiza, por exemplo, Varnhagen, incluído entre as várias autoridades sil, cujas causas profundas ele atribui ao espanhol: as vogais abertas, as
a que recorre. O texto parece ter isso como regra: ao mesmo tempo em que várias pronúncias. Segundo esse historiador, o português no Brasil "desde
evoca nomes clássicos (como Camões) ou inegavelmente influentes (como 0 princípio se acastelhanou muito". Acrescenta que o léxico formado na
Almeida Garrett, escritor português tido como incentivador do nacionalismo terra seria tão válido quanto aquele trazido pelo colono. O grande proble-
literário brasileiro), que escreveram ou atuaram no sentido do reconhecimento ma detectado por Varnhagen dizia respeito à pretensa censura portuguesa
da língua nacional, os transforma em matéria de riso. sobre a poesia brasileira: "a poesia brasileira tem que declarar-se inde-
pendente da mãe-pátria; pois, desgraçado do poeta que ao chegar-lhe a
inspiração, tivesse que mandar consultar um de seus filhos, que nunca ti-
Citarei também o sr. Varnhagen, que diz que o estudo da língua vesse ido à América (pois a estes acostuma o ouvido como é natural), se
guarani é digna, à par da grega, de ser cultivada como língua tal palavra lhe promove o riso, como jacarandá ao censor"Y
sábia e necessária, não só por dar esclarecimentos na etnografia
e na botânica, como nos diferentes ramos da zoologia; e certo A postura geral não é de ruptura, mas de reconhecimento da vali-
ninguém o negará, porque o sr. Varnhagen nos fala de cadeira dade dos critérios clássicos e da gramática portuguesa tradicional; Var-
sobre estas coisas, a menos que se não trate de florilégios de nhagen parece limitar-se assim à defesa de vocábulos novos e pronúnci-
poesias brasileiras, porque então ... Chiton, que já uma vez saiu- as singulares. Sua concepção acerca da língua acompanha sua concep-
se do sério por lhe ter sublinhado certa frase, como se eu lhe ção de história nacional no reconhecimento de uma herança européia. 58
não quisesse bem pelos seus trabalhos históricos! Essa postura do historiador não é isolada. Antonio Candido, avaliando a
literatura brasileira e latino-americana, já chamava a atenção para essa
vontade de libertação sempre inconclusa diante dos modelos civilizacio-
Alguns anos antes, em 1847, Varnhagen havia publicado seu Florilégio da nais estrangeiros. 59
poesia brasileira,53 onde fazia já referência ao sentimento de ridículo, em Portugal,
inspirado por palavras como jacarandá, que tem quatro letras "a". Notamos assim E tal limitação seria comum a todo o espectro político daquele tem-
que não só se ria de Portugal, mas se ria porque Portugal ria-se de nós. Lembre-se po. Se o conservador Varnhagen pensava assim, também o liberal João
que Varnhagen posiciona-se contra as tendências separatistas, afirmando a unidade Francisco Lisboa, em polémica com o autor da História geral do Brasil,
da língua escrita e o conseqüente respeito incondicional das normas gramaticais. reconhecia no adversário o acerto sobre a predominância da herança por-
tuguesa na formação da nacionalidade . E o argumento era exatamente a
Em um texto anterior, a "Memória sobre a necessidade do estudo e questão da língua. Escrevia ele que alguém, percorrendo o Brasil, e que se
ensino das línguas indígenas no Brasil" ,54 a atenção de Varnhagen obedece dirigisse a uma família, estaria na seguinte situação:

154 155
Falai-lhes na língua geral ou no guarani, e ninguém vos enten- velha! E agora que uma nova edição de novos titulares esgotou
derá. Pronunciai ao acaso uma ou outra palavra africana, e ape- o dicionário da língua guarani! Saiba pois o sr. Varnhagen que o
nas alguns dos escravos menos ladinos vos prestará tal qual aten- guarani fornecerá também esclarecimentos na genealogia brasi-
ção . Mas falai o português, e todos vos compreenderão e res - leira; a arte do brasão fará ampla colheita nas nossas coisas , e
ponderão. Trazem todos os nomes de um santo do calendário: e representará no escudo do sr. barão de Paraguaçu ou um rio
a língua, os apelidos , os costumes , a religião , e as leis, tudo grande, ou a mulher do Caramuru; no escudo do sr. conde de
indica a nossa origem européia.60 Ca eté um mato firme; no escudo do visconde de Imboaba um
homem calçado, peludo, e no do sr. marquês de Jacarandá uma
árvore ou alguns toros ou couçoeiras do pau santo!
A língua portuguesa, aqui associada à religião, aos "costumes" e às
"leis", é elemento de nacionalidade, é a união entre as partes, na concepção de
João Francisco Lisboa. Mas além desses aspectos irânicos, em que a peculiaridade lingüística
se ancorava no uso de palavras da " língua guarani", o projeto da língua brasi-
Voltemos ao texto de Joaquim Norberto. Retomando a estratégia de rir leira procurou fincar raízes profundas. E a ambígua relaçã~ com a o~alidade
dos que riram, ele cita o redator de um jornal publicado em Lisboa, que em aflorava nas posições dos escritores. Em estado bruto, a orahdade trana apre-
1846 ainda comentava a obra O Caramuru, e que chamava de ridículos os sença de uma realidade caótica demais que, em contrapartida, poderia ser or-
nomes brasileiros que teriam vogais excessivas. denada por uma apropriação seletiva da literatura.

O trecho abaixo é bastante representativo desse viés cômico nas rela- Flora Sussekind reconhece que em obras literárias do século XVIII já
ções entre Brasil e Portugal no que diz respeito à língua: se encontram marcas da paisagem local e termos indígenas. O que aconteceu
no século seguinte foi diferente porque carregou um projeto consciente de uma
escrita inovadora:
Eis-me outra vez perdido de meu trilho, que a pena vai a brincar
deveras com tanta derrogação, apegar-me-ei a alguma Santa! Oh !
Cá está o nosso Santa Rita Durão, que como tal me saberá guiar No século XIX é que grande parte dos escritores brasileiros pas-
melhor que ninguém. O seu belo poema foi friamente recebido sou a se formar no próprio país . E a bus·car conscientemente
pelos portugueses . Durão o previra quando disse que eles havi - uma forma brasileira de escrita. Com vocábulos e expressões
am de estranhar os nomes de alguns de seus heróis, mas que os locais, com ritmo e prosódia peculiares. Sendo que, quanto à
nomes dos alemães e dos ingleses não eram menos bárbaros. A pronúncia, o ' acento do Brasil' - reconhecido, no que se referia
isto lhe responderam os portugueses que os nomes brasileiros à língua falada, até mesmo por alguém tão zeloso da filiação
abundavam de vogais, que faziam parte de uma língua harmoni- lusitana do idioma quanto Varnhagen - passou a ser usado es-
osa e doce, que não eram bárbaros, mas que eram RIDÍCULOS!. .. trategicamente nessa escrita com marcas de oralidade proposi-
61
Ridículos , e que faziam rir; ridículos como Paraguaçu, Caeté, tais, como forma de afirmação da variante brasileira.
lmboaba e Jacarandá! Ora por esta amostra do pano já vêem os
brasileiros que hilaridade não deve haver em Lisboa quando nas
salas da fidalguia genuína do reino se anunciar a chegada de Havia todo um cuidado em discernir o que poderia ser alçado da ora-
titulares brasileiros de nomes ridículos como esses! Digam lá lidade para a língua literária, o que era considerado digno - como vimos, a~­
barão de Paraguaçu , conde de Caeté, visconde de lmboaba, e guns vocábulos indígenas da zoologia, botânica, topografi.a, d~ntre os quais
marquês ou marquesa de Jacarandá , para ver se não há risada alguns apropriados pela titulação de nobres -e o que podena ate ser reconhe-

156 157
cido como parte da língua falada, mas delimitado como próprio de pessoas Independente da botânica, geografia e zoologia (o que todavia
não instruídas, mal educadas, ou que não se portavam como seria adequado à não é mau contingente) temos uma imensa quantidade de ter-
sua posição social, e portanto indigno de compor a língua literária. mos indígenas ou sejam africanos, que até nos dicionários se
introduziram, mas que na maior parte só aparecem na conversa-
Gonçalves Dias foi um dos escritores que mais se destacou na utilização de ção- nomes de comidas, termos de pesca, de lavoura etc., que
palavras indígenas na escrita literária. A prática tornou-se moda, chegando ao exage- não são clássicos, mas indispensáveis. (grifo meu)
ro e desmedida, conforme salientaram por exemplo Macedo Soares e, um pouco
mais tarde, Machado deAssis. 62 O primeiro lembrava que muitas vezes tais palavras,
longe de expressarem uma literatura nacional, não eram entendidas pelo "povo": Com este último argumento, afloram as tensões entre língua falada
e língua literária. A língua literária não pode simplesmente cegar-se diante
da língua falada, ficando apenas submetida aos clássicos. A constante re-
Puseram em moda o dicionário dos dialetos indígenas, e em vez ferência aos clássicos faz da posição de Dias uma posição curiosa, pois
de apoderarem-se das idéias, estudaram primeiro os vocábulos ele considerava que o estudo de tais obras e autores era essencial a um
que deviam exprimi-las. Nasceu daí uma poesia que o povo não escritor. Mas não seria tudo. No caso do Brasil, haveria modos de vida
entendia, nem era possível entender, tão bárbara e alheia a seus específicos, em certas regiões, que o "romance brasileiro" não pode ser
ou vi dos, tão estrangeira como se fosse escrita em chinês ou sâns - impedido de tocar:
crito: e quando o povo não entende, a poesia não é nacional. 63

Acontece também que em distâncias tão consideráveis como são


Mas a posição de Dias é interessante, pois se ancora na própria oralida- as do Brasil, o teor da vida muda: e os homens que adotam esta
de, isto é, no seu uso pela "multidão". Escreve o autor em texto de 1857 a "Carta ou aquela maneira de viver, formaram uma linguagem própria
ao dr. Pedro Nunes Leal", espécie de manifesto pela independência literária, e sua, mais expressiva e variada.
contra a censura portuguesa às modificações inevitáveis da "língua pátria": Os vaqueiros, os mineiros, os pescadores -os homens da nave-
gação fluvial estão neste caso. Pois o romance brasileiro não há
de poder desenhar nenhum destes tipos, porque lhe faltam os
Bom ou mau grado, a língua tu pi lançou profundíssimas raízes no termos próprios no português clássico?
português que falamos e não podemos, nem devemos, atirá-las Pelo contrário, escrevam tudo, tudo que é bom- e quando vier
para um canto a pretexto de que a outros parecem bárbaras e mal outro Morais tudo isso ficará clássico. 64
soantes. Contra isso protestaria a nossa flora, a nossa botânica, a
nossa topografia. Clássico ou não clássico - Pernambuco é Per-
nambuco, cajá, paca e outros semelhantes, não têm outro nome. Ancorando-se portanto em uma oralidade peculiar, embora com ores-
Se isto desagrada a Portugal, é grande pena, mas não tem remédio. peito moderado pelos clássicos (a "riqueza que herdamos"), Gonçalves Dias
dava sua versão acerca da língua brasileira, o que é exemplo do quanto essa
discussão mobilizava a imagem de nação que se queria construir e defender.
Gonçalves Dias considera, portanto, que a língua usada no Brasil, na
"conversação", independente de sua expressão literária, estaria já indelevel- Nas páginas que se seguem, José de Alencar será enfocado a partir
mente marcada pela introdução de vocábulos de origens diversas do português. tanto de suas reflexões sobre a língua quanto dos pontos em que estas se
E isso seria válido para palavras tanto indígenas como africanas. O escritor cruzaram com sua concepção da nação, especialmente suas imagens indi-
testemunha ainda sua inclusão em dicionários: anistas. Como já deve estar claro, a reflexão sobre a língua imbricava-se

158 159
em questões mais amplas, como a imagem da nação e o tratamento da com- E prometia arrevesadamente o que no fundo gostaria de fazer:
plexidade dos homens e mulheres sobre os quais se impunham os limites
do território e da soberania nacionais.
[ ... ] se algum dia fosse poeta, e quisesse cantar a minha terra e
as suas belezas, se quisesse compor um poema nacional, pediria
Índios e língua nacional em José de Alencar a Deus que me fizesse esquecer por um momento as minhas idéias
de homem civilizado.
Filho da natureza embrenhar-me-ia no seu mar de ouro, a lua a
"A descrição do Brasil inspira-me mais deslizar-se no azul do céu; ouviria o murmúrio das ondas e o
entusiasmo do que o Brasil da descrição" eco profundo e solene das florestas .
José de Alencar

Tratava-se mesmo de duas imagens acerca do índio que iriam se opor,


subsidiárias de épocas distintas, embora cronologicamente coincidentes. A ima-
Já no primeiro tomo da revista Guanabara, que data de 1849-1850, era gem de Gonçalves de Magalhães é ainda clássica, retratando um índio um tanto
anunciada quase passo a passo a composição do poema A Confederação dos urbano, civilizado. 66 O reconhecido escritor português Alexandre Herculano,
Tamoios. Criava-se, antes ainda do poema estar concluído, uma expectativa, bem instado pelo próprio d. Pedro II a expressar sua opinião, censurou o poema de
como uma certa aprovação prévia da obra de Gonçalves de Magalhães. Magalhães exatamente nesse ponto, defendendo que a poesia da "nossa época"
era a lírica e a dramática, expressando as amarguras, as paixões, a luta das idéias,
Em 1856, ao finalmente ser lançada a obra, José de Alencar, ainda o ceticismo. Ao contrário, as "gerações virgens" contariam com um "crer pro-
pouco conhecido, publicou anonimamente no Diário do Rio de Janei ro , fundo", uma certeza, já inatingíveis atualmente. "A nossa geração não é épica",
jornal por ele dirigido, as Cartas sobre a Confederação dos Tamoios. Fa- sentenciava o escritor português sobre o poema A Confederação dos Tamoios. 67
zia ali críticas estéticas, rela ti v as ao estilo, à metrificação, à língua. Com-
parava a obra a Homero, Virgílio, Camões. Afinal, tratava-se de fato de Não se conclua da posição de Herculano que ele aprovaria automati-
uma epopéia e era a partir do critério de como seria um bom poema épico camente os pressupostos da futura obra de José de Alencar, pois nega qualquer
que Alencar fazia seus comentários. unidade entre as tradições indígenas e os atuais brasileiros: "O Brasil é um
império novo; mas os brasileiros são apenas europeus na América". No entan-
Lançava mão de um recurso usual, mas ainda assim corajoso, pois era to, o escritor português apoiaria o caminho trilhado por Alencar na direção
um jovem desconhecido ousando comentar e criticar o "poeta-instituição" na- não do épico, mas do lírico e do romântico, pelo privilégio do tema dos "con-
cional. Grande polêmica tem início, e o jovem teve que enfrentar o "coro dos trastes e afinidades", das lutas da "civilização contra a barbárie", dos "misté-
contentes", o "grupo de elogios mútuos", 65 uníssono contra sua pretensão, in- rios" e segredos da natureza americana. O poeta brasileiro admirado aberta-
cluindo o próprio d. Pedro II, amante das letras nacionais. mente por Herculano era, porém, Gonçalves Dias, que havia publicado seus
Primeiros cantos aproximadamente dez anos antes.
Alencar adotou o pseudônimo Ig- referência à heroína do poema, Igua-
çu - explicando tal atitude pelo fato de seu nome ser "obscuro", e por isso O romance de estréia de Alencar não tardou a chegar, pelas mesmas pági-
considerar necessário lançar a atenção não para si, mas para o próprio teor de nas do Diário do Rio de Janeiro , a partir de 1o de janeiro de 1857. O autor realiza-
suas palavras. José Aderaldo Castelo vê nestas Cartas (cuja importância para va seu desejo por intermédio da sua própria criatura, Peri, o Poeta Primitivo: "Sua
o autor pode ser medida pelo fato de que meses depois as reuniu em um livro) palavra é a que Deus escreveu com as letras que formam o livro da criação; é a
c "d"68
uma espécie de prefácio que Alencar apresentou à sua própria obra literária. fl or, o céu, a luz, a cor, o ar, o sol; sublimes coisas que a natureza tez sornn o ·

161
160
Por intermédio de Peri, fa lava a natureza. Sua palavra é a de Deus. ticularidades de sua vida. É nessa fonte que deve beber o poeta
Diferentemente do índio revestido com os atributos da cidade, a idéia era que brasileiro; é dela que há de sair o verdadeiro poema nacional,
a cidade, simbolicamente, fizesse essa viagem em direção à natureza. tal como eu o imagino. 70

Após a polêmica travada pelas Cartas, com O guarani Alencar coroa-


va sua intenção de mostrar que não bastava ter o índio como tema ou assunto Nacionalizar a literatura tinha como requisito o conhecimento da "lín-
literário para fundar a literatura nacional. Para tanto, uma forte transmutação gua indígena". Com a expressão no singular, José de Alencar reduzia a multipli-
deveria revolver o íntimo do poeta. cidade- algumas centenas de línguas diferentes- a uma língua eleita. Mas cer-
tamente ele apenas acompanha uma tendência mais ampla, de singularizar o que
Alencar desaprovava outras produções indianistas, que não transpira- era plural. O conceito de singular coletivo, aplicado por R. Koselleck ao surgi-
vam o espírito nacional, porque usariam de forma desordenada e exagerada os mento da idéia de uma História que unificava as várias histórias particulares, 71
termos indígenas. Os estudos que vinha desenvolvendo levavam-no a prezar a ajuda a pensar essa eleição de uma "língua" na fundação da literatura nacional.
harmonia e a clareza do texto. Por outro lado, julgava importante "certa rudez É como se este singular tivesse o poder de representar e sintetizar aquela plura-
ingênua de pensamento e expressão", que não poderia ser sufocada por um esti- lidade. O mesmo procedimento subjaz ao retrato de Peri, que é "um índio". No
lo elaborado em demasia, com imagens belas mas inverossímeis. Conforme bem entanto, não devemos entender o fato de Varnhagen falar em "línguas indígenas"
chama a atenção Cavalcanti Proença, não se tratava de defender um sentido cor- como algo teoricamente oposto à posição de Alencar; ali, o historiador estava
riqueiro de verossimilhança, ao contrário disso, o autor possuía uma visão origi- muito mais preocupado com um sentido estratégico (e não simbólico) na cons-
nal em que fatos extraordinários- mas sempre explicados, esclarecidos quanto trução da nação. Conhecer as "línguas" era condição para uma melhor domina-
ao possível- serviam para manter o leitor em expectativa. Em Senhora, pergun- ção sobre os indígenas. Trata-se de atitudes complementares, portanto.
tava afirmando: "Que há de mais inverossímil que a verdade?". 69
Em 1858, o editor alemão a quem Gonçalves Dias havia encomendado a
Embora considerasse Gonçalves Dias "o poeta nacional por excelên- edição reunindo os Cantos, tendo notícia de que ele teria um dicionário de tupi
cia" e louvasse seu douto conhecimento "da natureza brasileira e dos costumes já pronto, insta para publicá-lo. O Dicionário da língua tupi, chamada língua
selvagens", a linguagem que empresta aos índios foi também desaprovada por geral dos indígenas do Brasil, seria como um relicário, composto de restos guarda-
Alencar: "Os selvagens de seu poema falam uma linguagem clássica" e "expri- dos por seu preciosismo. Assim o incansável estudioso justificava o dicionário:
mem idéias próprias do homem civilizado, e que não é verossímil tivessem no
estado da natureza".
Cabia-me tratar dos caracteres intelectuais e morais dessas tribos;
esse trabalho porém não podia ser feito senão com o estudo prévio da
Sem dúvida que o poeta brasileiro tem de traduzir em sua língua as língua que elas falavam, da qual tantos vestígios se encontram, que
idéias, embora rudes e grosseiras, dos índios; mas nessa tradução não é de presumir que eles tenham em algum tempo de desaparecer
está a grande dificuldade; é preciso que a língua civilizada se mol- completamente da nossa linguagem vulgar, nem mesmo científica. 72
de quanto possa à singeleza primitiva da língua bárbara; e não re-
presente as imagens e pensamentos indígenas senão por termos e
frases que ao leitor pareçam naturais na boca do selvagem. José de Alencar sem dúvida pensa no tu pi como a língua indígena. Foi
O conhecimento da língua indígena é o melhor critério para a a língua da colonização, chamada de "geral". Ao escrever O guarani não dis-
nacionalidade da literatura. Ele nos dá não só o verdadeiro esti- põe portanto de nenhum dicionário, e nesse sentido todo o seu trabalho foi
lo, como as imagens poéticas do selvagem, os modos de seu também pioneiro. Apaixonado pela "fantasia etimológica" em torno da origem
pensamento, as tendências de seu espírito, e até as menores par- das palavras, tarefa que exigia além da erudição, a imaginação acesa, Alencar

162 163
encantou-se com a musicalidade e a característica aglutinante da língua tupi, tabelece-se como uma modificação da própria "língua civilizada", que se
como na explicação para o nome do fruto dos amores culpados de Iracema e moldaria à "língua bárbara" .
Martim Afonso, Moacir, o primeiro brasileiro: "Filho do sofrimento, de moacy
-dor, e ira, desinência que significa saído de". 73 As marcas que a língua bárbara imprimiu na literatura constituem-se de
imagens e pensamentos indígenas, são formas de sentimento, o seu próprio espí-
A língua não aparece porém como um mero instrumento. Trata-se de rito, os pequenos detalhes de sua vida. As próprias palavras e expressões consti-
uma espécie de chave capaz de fazer entrar na vida selvagem. E essa, por sua tuem imagens literárias ricas. O uso feito pelo autor postula um paralelismo
vez, comporta a revelação da natureza brasileira. Sobre Peri, que instintiva- entre língua e pensamento, por isso as palavras não podem simplesmente ser
mente fazia poesia, falava o romancista: traduzidas, pois sua presença ali é um ponto de lembrança da história das "raças
inimigas". Àqueles que criticavam a "poesia inçada de termos indígenas", Alen-
car afirmava que também condenava seu abuso, mas que há um uso digno do
Não é isso a poesia? O homem que nasceu, embalou-se e cres- bom gosto literário, desde que reconhecedor da poesia e tradições indígenas.
ceu nesse berço perfumado; no meio de cenas tão di versas, en-
tre o eterno contraste do sorriso e da lágrima, da flor e do espi- O interesse de José de Alencar pela língua tupi é compartilhado com
nho, do mel e do veneno, não é um poeta? todo um interesse romântico, voltado para as línguas antigas ou para os esta-
Poeta primitivo, canta a natureza na mesma linguagem da natu- dos de língua antigos. A inserção do tupi no texto literário concebia esta língua
reza; ignorante do que se passa nele, vai procurar nas imagens como elemento do passado, bem como os povos que foram seus criadores.
que tem diante dos olhos, a expressão do sentimento vago e con-
fuso que lhe agita a alma. Esse gosto romântico pelo estudo das línguas manifestava-se nas pes-
Sua palavra é a que Deus escreveu com as letras que form am o quisas de Schlegel sobre a Índia, levando-o a conclusões sobre o sânscrito,
livro da criação; é a flor, o céu, a luz, a cor, o ar, o sol; sublimes cujo conhecimento revolucionou as considerações sobre as correspondências
coisas que a natureza fez sorrindo. entre as línguas. Essa revolução cristalizou-se na categoria indo-europeu.
A sua frase corre como o regato que serpeja, ou salta como o rio que
se despenha da cascata; às vezes se eleva ao cimo da montanha, ou-
tras desce e rasteja como o inseto, sutil, delicada e mimosa.J• Com o romantismo, o interesse geral voltara-se para o passado:
origem dos povos e pré-história. Os estados de língua antigos e
os documentos do passado foram objeto de investigações siste-
Diante do tupi, os outros seriam bárbaros, como os aimorés, que máticas. A lingüística tornou-se um meio de conhecer a pré-his-
usam uma língua que Peri não entende, e que são qualificados pela neg a- tória dos povos e as culturas antigas. 75
ção: não têm pátria, nem religião. Inimigos da família de d. Antônio de
Mariz, têm o rosto humano- dádiva que afasta a bestialidade- disforme ;
quase não são humanos os aimorés. A lingüística histórica procurava a regularidade das correspondências
entre as línguas, incorporando o problema da transformação, destacando-se a
A língua usada pelo poeta não será diretamente a "língua indígena", atenção de Jacob Grimm sobre o tema. 76 Esse autor, aliás, é citado por Alencar
mas a sua própria; para esta deveria traduzir, fazer passar as idéias "rud~s e no prefácio a Sonhos d'ouro.
grosseiras". Fazer passar a natureza, da qual a língua civilizada se distanciOU-
O nacionalismo literário de Alencar levou-o às reflexões sobre a
Não haveria entre o português e o tupi simplesmente uma mudança língua como corpo em transformação, marcado indelevelmente pela histó-
de código, não seriam simplesmente signos intercambiáveis; a relação es- ria. Na América, a língua portuguesa teria uma história própria. A nature-

164 165
za americana foi a grande responsável não só por essa transformação, ma s -Quem te ensinou, guerreiro branco , a linguagem dos meus ir-
por um enriquecimento. O ambiente americano livrou-a de uma extinção mãos? Donde vieste a estas matas, que nunca viram outro guer-
certa, e ainda fez com que dela brotasse um "novo idioma sonoro, exube- reiro como tu?
rante e vigoroso". 77 Essa "natureza tão opulenta" foi uma dádiva ao portu- - Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que
guês, atribuindo-lhe uma nova e gloriosa tarefa, que seria "servir de ra iz a teus irmãos já possuíram , e hoje têm os meus. 80
uma das mais belas e opulentas entre as línguas que dominarão na Améri-
ca, antes de um século". 78
Não só a língua foi adotada por Martim Soares Moreno; mas seus usos
Havia assim uma profecia sobre o porvir de uma das línguas futu- e costumes, tendo inclusive despido as vestes européias e feito pintar seu cor-
ras da América; sua "raiz" seria o português, mas já não exatamente a sua po. O personagem masculino se transformava diante da natureza-mulher. No
forma original. primeiro romance, Peri havia consentido no que sabia ser o seu fim: a conver-
são para o cristianismo. Abandonara sua família para servir à senhora escolhi-
Contudo, a concepção alencariana deixa entrever também a influ- da. Agora, o branco é que se deixava transformar.
ência naturalista e evolucionista. August Schleicher lançou a base de dis-
cussões em torno do caráter inelutável das leis fonéticas, ao aprox imar a O autor defenderá com afinco (mas sempre com a irânica e certeira alti-
lingüística das recentes teorias de Darwin, em obra de 1863. A língua pas- vez) a obra cujo cenário é sua terra natal, Ceará, ou "terra do canto dajandaia".
sava a ser concebida como um ser vivo, do nascimento e crescimento à Vale notar que na bela "Canção do exílio", com que abre seus Primeiros cantos,
morte. 79 Provavelmente, Alencar não insistiu em conceber tão rigorosa- de 1846, Gonçalves Dias elegera o sabiá como símbolo de sua saudade.
mente as leis fonéticas formuladas pelos neogramáticos, dispensando-se
de procurar as transformações e correspondências necessárias entre situa- A leitura de Iracema é uma espécie de aula, pois ressaltam os cuida-
ções semelhantes. dos pedagógicos com o tu pi, incrustado na língua de que se serve o poeta como
pedras vistosas, ou preciosidades. Junto com o significado das palavras siste-
A tarefa a que se propôs era chamada ofensivamente de "mania de maticamente ensinado nas notas do autor, os supostos costumes e principal-
tornar o brasileiro uma língua diferente do velho português". Para is so , o mente um código moral (também elementos do passado) são trazidos aos leito-
recurso ao tupi, selecionado como o grande representante das línguas in- res e leitoras. A respeito do código moral, elemento constituinte da literatura
dígenas, e à natureza exuberante e prodigiosa. No fundo não eram enten- folhetinesca, 81 é curioso como Alencar buscava impressionar as damas da cor-
didos como dois elementos de transformação, mas como um só, o tupi sen- te, entregues ao divertimento, ao teatro, aos bailes e nada interessadas em ama-
do entendido como a língua da natureza. Mantinha-se para o escritor a mentar, mostrando Iracema que, impossibilitada de alimentar seu filho, ofere-
distinção entre uma língua bárbara e uma língua civilizada; e entre a lín- cia seus seios a cachorrinhos para assim fazer jorrar o leite.
gua do povo e a língua tal qual a traz à luz o escritor.
Em um "Pós-escrito", acrescentado à segunda edição de Iracema e
O autor do poema em prosa Iracema, publicado em 1865, foi alvo datado de 1870, o escritor procurou responder aos "defeitos" apontados em
de muitas condenações: ter um estilo descuidado, ter seu livro crivado de seu livro, sustentando a legitimidade de uma expressão literária propriamente
"insubordinações gramaticais", não atentar para a forma. Logo, a Irace - brasileira. Inicia-o tratando do duplo problema dos erros tipográficos e das
ma, obra por outro lado muito elogiada, eram dirigidas críticas desse teor. incertezas rela ti vas à ortografia. Nesse sentido, Alencar não só se justifica,
Muito mais do que em O guarani, Alencar nesse romance-poema preten- mas, dado o momento em que escreve, é agente da formação de convenções
dia envolver sua narrativa na língua e no espírito tupis. A própria língua gramaticais. Procurando, portanto, esclarecer sua posição à revelia dos erros
da ficção é o tupi, o que aprendemos no primeiro encontro entre a dona de composição gráfica, enumera minuciosamente as suas opções conscientes,
dos lábios de mel e o guerreiro português: dando para cada uma delas uma extensa e profunda justificativa desde a cita-

166 167
ção de lingüistas, de referências etimológicas, até mesmo as interpretações A gramática, ou a filosofia da palavra, é incontestavelmente uma
dos clássicos. Essa postura explica-se por entender a gramática não como um ciência. Como todas as ciências, ela deve ter em cada raça e em
estoque de regras estáticas, mas antes como uma filosofia e uma ciência. Pará- cada povo um período rudimentário; ainda mesmo depois de largo
grafos são dedicados a suas escolhas entre ão e am, em um momento em que a desenvolvimento, existirá algum ramo de conhecimento humano
convenção baseada na fonética não era ainda de fato uma convenção. Outros que não esteja imbuído de falsas noções e até de erros crassos?
pontos de tensão como a crase no a, a colocação de pronomes pessoais, o uso O mesmo sucede com a gramática: saída da infância do povo, rude
de artigos definidos, são trabalhados com igual rigor. Promete mesmo um li- e incoerente, são os escritores que a vão corrigindo e limando 83
vro em que se dedicaria inteiramente às suas "opiniões gramaticais", forma de
se contrapor às "insubordinações gramaticais", crime que o escritor português
Pinheiro Chagas o acusava de cometer. Quanto à "mania" referida por Pinheiro Chagas, Alencar afirmava:

Toda a segunda parte do "Pós-escrito" é dedicada a rebater as críticas


vindas de Pinheiro Chagas, para quem a gramática era um padrão inalterável e Que a tendência, não para a formação de uma nova língua, mas
que condenava a "mania de tornar o brasileiro uma língua diferente da do ve- para a transformação profunda do idioma de Portugal, existe no
lho português". Pinheiro Chagas toma como argumento de autoridade o mes- Brasil, é fato incontestável. Mas, em vez de atribuir-nos a nós
mo Max Müller em que Alencar se apóia para defender sua posição. Ambos escritores essa revolução filológica, devia o sr. Pinheiro Cha-
assumem que as leis invariáveis da filologia mostrariam que só o povo poderia gas, para ser coerente com sua teoria, buscar o germe dela e seu
modificar uma língua. Para Pinheiro Chagas, porém, os escritores estariam fomento no espírito popular, no falar do povo, esse 'ignorante
fadados a não serem mais do que "mecânicos", manuseando a língua como sublime' como lhe chamou.
uma ferramenta sem alma. Alencar afirma que mesmo o "corpo" da língua não A revolução é irresistível e fatal, como a que transformou o per-
sendo modificado senão pelo "povo", os escritores a aperfeiçoariam: "eles ta- sa em grego e céltico, o etrusco em latim, e o romano em fran-
lham e pulem o grosseiro dialeto do vulgo, como o escultor cinzela o rude cês, italiano etc.; há de ser larga e profunda, como a imensidade
troço de mármore e dele extrai o fino lavor". 82 dos mares que separa os dois mundos a que pertencemos. 84

Isso, no que toca à parte física ou fonética da língua. Exatamente a


fonética seria o grande ponto de diferenciação entre a língua portuguesa e Comparação semelhante sobre a relação entre o poeta e o póvo na
a língua brasileira apresentado no prefácio a Sonhos d'ouro. A mudança formação da nacionalidade da língua, era feita no prefácio a Sonhos d'ouro:
fonética se deveria a uma modificação nos próprios órgãos da fala (um
dos argumentos naturalistas utilizados por Alencar), causada, no Brasil,
pela deglutição das frutas tropicais! É sempre significativo (mesmo que Sobretudo compreendam os críticos a missão dos poetas, escrito-
não seja esse o argumento explícito do autor) que os nomes destas frutas res e artistas, nesse período especial e ambíguo daformação de
capazes de modificar os modos de falar não sejam de origem européia: "O uma nacionalidade. São estes os operários incumbidos de polir o
povo, que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba, pode falar talhe e as feições da individualidade que se vai esboçando no vi-
uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o ver do povo. Palavra que inventa a multidão, inovação que adota
figo, a pêra, o damasco e a nêspera?" . o uso, caprichos que surgem no espírito do idiota inspirado; tudo
isto lança o poeta no seu cadinho, para escoimá-lo das fezes que
Mas no que toca ao "espírito" da língua, isto é, sua gramática, aí o porventura lhe ficaram do chão onde esteve, e apurar o ouro fino.
escritor apenas tem o poder de modificação; afinal não caberia ao vulgo inter- E de quanta valia não é o modesto serviço de desbastar o idioma
ferir em uma ciência, a própria filosofia da palavra. novo das impurezas que lhe ficaram na refusão do idioma velho

169
168
com outras línguas? Ele prepara a matéria, bronze ou mármore, A piedade e o medo
para os grandes escultores da palavra que erigem os monumen-
tos literários da pátria. 85 (grifo meu)
Um apanhado sobre as duas principais obras indianistas de José de
Alencar ajuda-nos a pensar a questão do sentimento sobre as raças, uma vez
Alencar relaciona em sua concepção raças e línguas, afirmando que nossa intenção é discutir o tratamento que as formulações sobre a naciona-
que quando raças de uma estirpe comum se distanciam, suas línguas en- lidade deram à diversidade racial. O próprio romantismo é que elegeu os sen-
tram também em um processo de diferenciação , bem como seus pensa- timentos como perspectiva de conhecimento do mundo, e já Roger Bastide
mentos e costumes. Por outro lado, as raças podem constituir um "amálga- chamou a atenção para a sensibilidade romântica sobre a escravidão na poesia
ma" de sangue, tradições e línguas, desde que contem com um "solo exu- de Castro Alves e outros poetas. 88 Mais uma vez vale lembrar Alexandre Her-
berante" que garanta a nacionalidade. Esse argumento é a base da existên- culano que definia a poesia de sua época como antes de tudo lírica e dramáti-
cia de uma forma lingüística própria no Brasil, em que haveria um trata- ca, e afirmava que amarguras, contentamentos, lutas "inspiram cantos que o
mento especial do que é estrangeiro: poeta sente e que a sociedade compreende". 89 O elo entre o poeta e a socieda-
de seria portanto os sentimentos. No prólogo a O guarani, publicado apenas,
ainda no formato de folhetim, no Diário do Rio de Janeiro e na primeira edi-
Cumpre não esquecer que o filho do Novo Mundo recebe as ção, o autor, supostamente dirigindo-se a uma prima, afirmava que "o coração
tradições das raças indígenas e vive ao contato de quase todas é que fala" e que "o coração é sempre verdadeiro, não diz senão o que sentiu;
as raças civilizadas que aportam a suas plagas trazidas pela e o sentimento, qualquer que ele seja, tem a sua beleza". 90
emigração.
Em Portugal o estrangeiro perdido no meio de uma população José Aderaldo Castello considera que em seus romances indianistas, a
condensada pouca influência exerce sobre os costumes do povo: intenção de Alencar era "traduzir, sob o ponto de vista da mestiçagem, o con-
no Brasil, ao contrário, o estrangeiro é um veículo de novas idéi- tato inicial das duas raças e as suas relações sentimentais". 91 Tentemos seguir
as e um elemento da civilização nacional. essa pista. O que torna impossíveis os amores entre Ceci e Peri, e entre Irace-
Os operários da transformação de nossas línguas são esses re- ma e o guerreiro branco é a própria inimizade entre as raças. O pertencimento
presentantes de tantas raças, desde a saxônia até a africana, que a raças inimigas constituía a barreira entre os apaixonados . O amor precisaria
fazem neste solo exuberante amálgama do sangue, das tradições vencer o inimigo extremo, de fato invencível, pois a história da nação tinha, aí,
e das línguas .86 seu início. Direções opostas pareciam envolver o leitor: de um lado, torcer
para que o amor se realizasse, para que as extremidades se unissem; de outro,
o desenlace, infeliz no romance, o tranqüilizava ao expressar a vitória da civi-
O que modificou o português, o inglês, o espanhol na América foi lização e a ratificação da ordem hierárquica presente. Ainda que tristes, reco-
a natureza . Enfaticamente, essa é a razão apontada para a diferença do nhecer essa vitória propiciava aos leitores obliterar os conflitos presentes e
português no Brasil, invertendo a crítica em uma constatação e defesa da visíveis, as divisões da nação . Peri, o herói quase onipresente e onipotente,
especificidade. "O velho estilo clássico destoa no meio destas florestas pertencia ao passado.
seculares, destas catadupas formidáveis , destes prodígios de natureza vir-
gem [ .. . ]"_87 Sobre essa natureza, "as musas gentis do Tejo e do Mondego" O herói tem que se dividir entre essas decisões opostas que exercem
ficariam insensíveis e mudas . Alencar detalhadamente expõe seus pontos sobre ele a mesma atração. Iracema obedeceria à lei familiar e tribal (no caso,
de vista e longe está de defender uma inovação (como mera apologia ao equivalia à sua "cidade" , à sua lei pública) e recusaria o amor do guerreiro,
novo) ou uma diferença puramente reativa. Por isso seu arrazoado baseia- por ser ele inimigo dos tabajaras, pois era aliado dos tradicionais inimigos
se na gramática. pitiguaras? Não; embora essa fosse uma traição, aumentada pelo fato de ser

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ela
. .
a virgem, filha do pajé, que tinha o poder de beber a jurema e decifrar os edição no formato de folhetim de O guarani , em que apareceram já as notas do
sma1s ora.culares sobre a guerra, Iracema se entrega à lei do seu coração. Mes- autor, algumas relativas a explicações lingüísticas de palavras do tupi e outras
mo que VIrtuosa, Iracema não podia escapar ao fado. rela ti vas à história. Muitas vezes Alencar preocupou-se em esclarecer que cer-
tos personagens existiram de fato, afirmando que eram "históricos". Citava
Pela mão do poeta, porém, estava aí iniciada a nação. O filho dos dois documentos, referia-se aos autores consultados, como Baltazar da Silva Lis-
o fruto do amor que transpassava o pesado obstáculo do combate entre as ra~ boa e Aires do Casal. 95 Lembre-se, porém, que essa aproximação não deve ser
ças inimigas, foi o primeiro brasileiro. entendida pela via do realismo, mas pela própria idéia romântica, de valoriza-
ção do passado como elemento singular, nacional. Nessa apropriação moral da
Esse foi o destino trágico da história da nação contada por Alencar história, vamos dar destaque aos sentimentos acerca da diversidade das raças .
através de seus romances. De uma forma bastante especial, José de Alencar foi
um pouco historiador. Isto é, a história como lugar da formação da nacionali- Acompanhando Iracema, o público via-se envolvido em emoções como
dade. No tempo de estudante de direito, embora matriculado na Faculdade de a piedade e o medo, sentimentos aparentemente opostos, mas que deveriam
São Paulo, passou uma temporada em Olinda visitando os "papéis velhos" do brotar alternadamente entre os leitores cultos e livres num passeio pelas ruas
92
mosteiro. Mais tarde, consumiu as obras dos cronistas coloniais cuja publi- da corte, sentimentos, portanto, muito adequados à dura hierarquia social e
cação estava em curso, empreendida pelos membros do Instituto Histórico que eram ali trazidos à tona.
bem como os relatos de viajantes. 93 Mas a história da nação não aparecia e~
seus romances apenas como conhecimento dos tempos passados (embora este Em O guarani, o valor atribuído a Isabel, fruto do encontro entre as
aspecto estivesse presente). Tratava-se, ao lado disso, de certa apropriação raças inimigas, será bem diferente do valor primordial de que se reveste Moacir,
moral dessa história. Já na polêmica com Gonçalves de Magalhães, Alencar filho de Iracema e Martim Soares Moreno. Isabel representa, mais cruamente, a
defendeu um programa para o "historiador do passado e profeta do futuro": associação comum entre mestiçagem e bastardia, herdada do período colonial. 96
Vivia como "sobrinha", mas era filha ilegítima de d. Antônio de Mariz e uma
mulher que não chega a ter nome ou ser individualizada no romance; carregava
Mas quando o homem, em vez de uma idéia, escreve um poema; a mágoa de sua situação, ainda mais pesada pelo fato de amar Álvaro, um cava-
quando da vida do indivíduo se eleva à vida de um povo, quando lheiro branco (outro amor impossível), a quem dizia: "Sabeis o que sou; uma
ele, ao mesmo tempo historiador do passado e profeta do futuro, pobre órfã que perdeu sua mãe muito cedo, e não conheceu seu pai. Tenho vivi-
reconstrói sobre o nada uma geração que desapareceu da face da do da compaixão alheia; não me queixo, mas sofro. Filha de duas raças inimigas
terra para mostrá-Ia à posteridade, é preciso que tenha bastante devia amar a ambas; entretanto minha mãe desgraçada fez-me odiar a uma, o
confiança, não só no seu gênio e na sua imaginação, como na desdém com que me tratam fez-me desprezar a outra". 97
palavra que deve fazer surgir esse mundo novo e desconhecido.
Então já não é o poeta que fala ; é uma época inteira que exprime Compaixão e desdém misturam-se na forma como Isabel é tratada, le-
pela sua voz as tradições, os fatos e os costumes; é a história, vando-a ao ódio pela raça da mãe, e ao desprezo pela raça do pai. O ódio
mas a história viva, animada, brilhante como o drama, grande e explicava-se pois aquela raça "a rebaixava a seus próprios olhos" ,98 era o es-
majestosa como tudo que nos aparece através do dúplice véu do pelho da identidade que queria esquecer.
tempo e da morte.94
Isabel representa também a sensualidade transbordante que terminou
por confundir o coração de Álvaro, que amava Cecília. O leal amigo acaba
O poeta teria portanto uma tarefa de "reconstruir" uma geração, uma apaixonando-se diante de beleza tão irresistível, oposta à de Cecília, e que
época, uma história. Uma história com o toque romântico do drama, e não o sintetizava o "tipo brasileiro". A consciência da transformação no sentimento
épico tentado por Gonçalves de Magalhães. Esse interesse expressou-se na de Álvaro foi lenta, mas a atração irresistível exercida pela moça foi certeira.

172 173
O rapaz também teve piedade da sina da moça que vivia entre o ódio e odes- Um índio e os índios
prezo. A piedade, sentimento cristão, ajudava a aparar as arestas. Acabaram
ambos morrendo juntos, em uma cena surreal, consumindo seu amor na morte
ele, ferido pelos aimorés , e ela tendo montado uma espécie de paraíso artifici~ Assim como o tupi representa a língua indígena, Peri encarna "um
ai com perfumes embriagadores da floresta tropical. índio", de características definidas . Na seguinte nota de rodapé, que acompa-
nha a primeira aparição do personagem na trama, já no capítulo IV, Alencar
Ceci e Isabel complementavam-se e opunham-se. "Loura e Morena". deduz das variações das descrições físicas dos antigos escritores e cronistas
A primeira é branca, tem olhos azuis como a (Nossa) Senhora que encantou uma falha ou desconhecimento , desprezando a possibilidade de haver índios
Peri. Já Isabel diferentes. A unidade impera em seu pensamento. Seguindo a pista de Reinhart
Koselleck, talvez possamos ver também neste índio um singular coletivo, re-
presentante e suposta síntese dos índios plurais. José de Alencar elege Gabriel
Era um tipo inteiramente diferente do de Cecília; era o tipo bra- Soares de Sousa, pela antiguidade de seu relato, como o mais autorizado e o
sileiro em toda a sua graça e formosura, com o encantador con- que teria visto o índio em uma condição original:
traste de languidez e malícia, de indolência e vivacidade.
Os olhos grandes e negros , o rosto moreno e rosado , cabelos
pretos , lábios desdenhosos , sorriso provocador, davam a este Um índio: O tipo que descrevemos é inteiramente copiado das
rosto um poder de sedução irresistível. 99 observações que se encontram em todos os cronistas. Em um
ponto porém variam os escritores; uns dão aos nossos selvagens
uma estatura abaixo da regular; outros uma estatura alta. Neste
A sensualidade do personagem, encarnando um "tipo brasileiro", seria ponto preferi guiar-me por Gabriel Soares que escreveu em 1580,
já um dos estereótipos comuns nesse início da segunda metade do século XIX? e que nesse tempo devia conhecer a raça indígena em todo o seu
A definição de um "tipo brasileiro" talvez não fosse tão comum. Mais recorrente vigor, e não degenerada como se tornou depois. 101
era a sensualidade de personagens índias ou mestiças, literários como a Iracema
ou a Marabá de Gonçalves Dias, ou pictóricos, como a "Moema" de Vítor Mei-
reles, de 1865 . Provavelmente, Alencar era agente da construção deste tipo. Esse índio não vive nu, veste uma túnica alva; sua pele brilha como o
cobre, o rosto é harmônico, tinha "a beleza inculta da graça, da força e da inteli-
Além da memória amarga sobre a mãe, Isabel despreza Peri. Em conversa gência". A perfeição de Peri, sua força e destreza, sua coragem que nunca vacila,
com a "prima", que reclamava sua injustiça em relação ao fiel Peri, replicava: sua lisa honestidade, sintetizam a idealização do índio característica do india-
"como queres que trate um selvagem que tem a pele escura e o sangue vermelho? nismo romântico . Mas esse não é o único índio que Alencar traz para sua versão
Tua mãe não diz que um índio é um animal como um cavalo ou um cão?". do poema nacional. Existem, de forma um tanto sub-reptícia, índios que podería-
mos considerar mais "reais". Sua presença porém é sempre dada pelo negativo
Mas logo explicava sua atitude à dona de piedoso coração: "Sei que tu (fotográfico)- revelam-se como o fundo, por não serem como o herói . Seria por-
não pensas assim, Cecília; e que o teu bom coração não olha a cor do rosto tanto insuficiente afirmar que o índio que aparece nos romances é imaginário, é
para conhecer a alma. Mas os outros? ... Cuidas que não percebo o desdém com uma idealização distante. Os índios "reais", presentes, deixaram ali sua marca. O
que me tratam?". 100 que há de mais real e presente, do ponto de vista do processo de formação do
Estado imperial, no que diz respeito aos índios, são as guerras e os conflitos, so-
Isabel era diferente do filho de Iracema, por ambos representarem bretudo quando a questão era a expansão da fronteira territorial efetivamente sub-
motivações opostas. Um é resultado de amores nobres, a outra, de encontros metida à soberania do Estado. Manuela Carneiro da Cunha sugere que havia duas
escusas : sua mãe era cativa de seu pai . categorias na percepção e tratamento dos índios durante o período imperial :

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Há, primeiro, os tupis e os guaranis, já então virtualmente extintos Uma índia aimoré foi casualmente atingida pela arma de d. Diogo,
ou supostamente assimilados, que figuram por excelência na auto- filho de d. Antônio de Mariz. Peri, onipresente como sempre- invariavelmen-
imagem que o Brasil faz de si mesmo. É o índio que aparece como te encontra-se no lugar onde algo essencial acontece -, vê tudo. Seguindo o
emblema da nova nação em todos os monumentos, alegorias e cari- cãozinho que acompanhava a moça e que após sua morte vai até sua família,
caturas. É o caboclo nacionalista da Bahia, é o índio do romantismo entende a conseqüência inevitável: a vingança dos aimorés dá a partida à trama.
na literatura e na pintura. É o índio bom e, convenientemente, é 0
índio morto. A segunda categoria é o genericamente chamado boto-
cudo. Esse não só é um índio vivo, mas é aquele contra quem se Ora, o índio [Peri] conhecia a ferocidade desse povo sem pátria e
guerreia por excelência nas primeiras décadas do século: sua repu- sem religião , que se alimentava de carne humana e vivia como
tação é de indomável ferocidade. Coincidência ou não, os botocu- feras, no chão e pelas grutas e cavernas; estremecia só com a idéia
dos são tapuias, contraponto e inimigos dos tupis na história do de que pudesse vir assaltar a casa de d. Antônio de Mariz. 104
início da Colônia e sobretudo na literatura indianista". 102

D. Antônio de Mariz e sua família moravam em uma casa que ficava


Na análise dessas imagens literárias acerca da nação é preciso fi- incrustada em um rochedo, e onde, mesclados o engenho humano e o natural, o
car atento não só para as falas principais, mas para as falas subterrâneas, e resultado era não uma habitação simples, mas uma espécie de fortaleza. Defendia-
mesmo para os silêncios, se o que se pretende é, no conjunto assim forma- se assim do ataque dos selvagens. A casa que fazia as vezes de "castelo feudal" era
do, entrever o contexto histórico por meio da literatura. necessária "por causa das tribos selvagens, que, embora se retirassem sempre das
vizinhanças dos lugares habitados pelos colonos, e se entranhassem pelas flores-
A forma como Alencar construiu o personagem coletivo dos aimorés tas, costumavam contudo fazer correrias e atacar os brancos à traição". 105
nada tem de idealista, embora tudo tenha de miopia etnocêntrica, de posição
evolucionista, que não deixam de ser idealizações à sua maneira. O singular cole- A guerra com os índios é elemento também da própria caracterização
tivo submete os conteúdos específicos, subtraindo-os a uma existência própria. de d. Antônio: "Homem de valor, experimentado na guerra, ativo, afeito a com-
bater os índios" . Sua fidelidade ao sangue português era tamanha que, com o
Já se notou anteriormente que um dos elementos que, segundo Alen- domínio espanhol estabelecido sobre o império luso em 1580, resolve refugiar-
car, define os aimorés é não utilizarem o tupi. Sua língua não é nomeada se na sesmaria no interior onde podia afirmar: "Aqui sou português![ ... ] Nesta
ou individualizada, é simplesmente "desconhecida". Deles diz que são terra que me foi dada pelo meu rei, e conquistada pelo meu braço, nesta terra
canibais (e os tupis, não praticavam também a antropofagia? Mas sobre livre, tu reinarás, Portugal, como viverás na alma de teus filhos". 106
essa prática Alencar silencia) e viveriam como feras.
Aquele "torrão brasileiro" era um "fragmento de Portugal livre". Ao
Uma nota existente na edição no Diário do Rio de Janeiro, que foi narrar esse episódio da história nacional, Alencar reconhecia a herança portu-
suprimida das edições mais atuais do romance, era um instrumento por guesa. Era-se aí mais português do que em Portugal.
meio do qual o autor tranqüilizava a "prima" a que havia feito referência
no prólogo: "O manuscrito que estou copiando, tem a data de 1758; por A força militar com que contava era a dos aventureiros, espécie de mesti-
isso não se admire que o autor fale no presente. Hoje já não existem aimo- ços, "reunindo ao mesmo tempo aos recursos do homem civilizado a astúcia e agili-
rés, minha prima". 103 (grifo meu) dade do índio", eram "soldados e selvagens", controlados pelo senhor e protetor.

O pertencimento ao passado é tranqüilizador diante do medo suscita- Sobre os aimorés inventados por Alencar, essa suposta descrição os apon-
do pela leitura. ta como menos que humanos . Já que em geral se considera o índio-herói de

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Alencar, vale a pena ler algumas linhas sobre esses índios "reais". (Na medida XIX, o medo inspirado pela desigualdade social. Meyer afirma que uma das
em que o medo era real, presente). Vale ainda pensar na tragédia como possibi- principais chaves do folhetim, tanto na suas origens francesas como nos frutos
lidade de elaboração do sentimento de piedade e, aqui muito claro, do medo: brasileiros, era o medo do binômio classes laboriosas-classes perigosas.1o9 A
generalização do medo talvez não seja muito adequada para o caso brasileiro.
Em José de Alencar, o medo existe, mas não de forma isolada, sendo funda-
[... ] um prazer feroz animava todas essas fisionomias sinistras, mental interpretá-lo em conjunto com a outra face do sentimento sobre as ra-
nas quais a braveza, a ignorância e os instintos carniceiros ti- ças, a piedade. O desfecho de O guarani restaurou, ao menos no plano da
nham quase de todo apagado o cunho da raça humana. leitura, a tranqüilidade. Apesar da destruição da casa-fortaleza de d. Antônio
Os cabelos arruivados caíam-lhe sobre a fronte e ocultavam in- Mariz e de quase toda a família, Peri e Ceci salvam-se dos bravos aimorés. Se
teiramente a parte mais nobre do rosto, criada por Deus para a o amor impossível entre a moça branca e o herói nativo se concretizou ou não,
sede da inteligência, e para o trono donde o pensamento deve o autor preferiu deixar à imaginação dos leitores a tarefa de responder.
reinar sobre a matéria.
Os lábios decompostos, arregaçados por uma contração dos mús- Os conflitos que o próprio autor designa como as lutas entre as
culos faciais, tinham perdido a expressão suave e doce que impri- raças marcam um início mítico da nação nesses dois romances indianistas.
mem o sorriso e a palavra; de lábios de homem se haviam trans- Aproximam-se estes portanto da tragédia, que opunha a lei geral à lei par-
formado em mandíbulas de fera afeitas ao grito e ao bramido. ticular, o Estado (ou a cidade, a civilização) ao círculo familiar. 110 Desse
Os dentes agudos como a presa do jaguar, já não tinham o es- embate, embora triste, embora revolvendo os duros sentimentos de medo
malte que a natureza lhes dera; armas ao mesmo tempo em que e piedade, a vitória coube à nação e à civilização.
instrumento da alimentação, o sangue os tingira da cor amare-
lenta que têm os dentes dos animais carniceiros .
As grandes unhas negras e retorcidas que cresciam nos dedos, a Conflito e morte na história da nação: Gonçalves Dias
pele áspera e calosa, faziam de suas mãos, antes garras temí-
veis, do que a parte destinada a servir ao homem e dar ao aspec-
to a nobreza do gesto. "Desejo, inquietação também lá moram:
Grandes peles de animais cobriam o corpo agigantado desses Que sobra pois em nós, que falta neles?"
filhos das brenhas, que a não ser o porte ereto se julgaria algu- Gonçalves Dias , Os timbiras
ma raça de quadrúmanos indígenas do novo mundo .107

A "História pátria": um manifesto teórico


O lugar do índio não é só o do herói; são vários os índios e os senti-
mentos em relação ao índio encenados em O guarani, com escolhas e valoriza- A literatura romântica voltou-se para a história em busca de um
ções do melhor índio e do melhor sentimento. Aparecem os índios (plural) passado que singularizasse a nação . No entanto, houve formas distintas de
como animais ou bravos e o índio (singular, individual) que é reconhecido se olhar para a história, podendo-se questionar até que ponto ela foi senti-
como pessoa. Ainda segundo Manuela Carneiro da Cunha, fora da literatura, da como palco de conflitos e até que ponto foi tratada como elemento de
era comum a expressão da idéia de bestialidade, fereza e animalidade dos índi- pacificação do presente. 111 No caso do indianismo, talvez essa questão seja
os, embora oficialmente fosse afirmada sua humanidade. 108 mais fecunda do que indagar se era ideal ou real o índio visto pelo roman-
tismo brasileiro, ou se tal ou qual autor se " aproximou" mais do "real";
A imagem desses índios com os quais se está em guerra evoca o medo. afinal, o indianismo produziu imagens, dessemelhantes, a que se empres-
Segundo Marlyse Meyer, esse era um elemento comum aos folhetins do século tou a identidade "índio".

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Gonçalves Dias pode ser tomado como um historiador. Não só por seus estu- O historiador político escreverá o livro do povo, um como aque-
dos publicados na revista do Instituto Histórico, ou pela sua atuação na localização de les fragmentos da sibila, que os romanos consultavam nas gran-
documentos e livros raros em diversas bibliotecas e arquivos. Mas, mesmo, por suas des tempestades da sua República. O poeta historiador escreve-
poesias, por meio das quais pesquisou e deu a conhecer a história. A história que conta rá o livro do homem e de todos os homens, do povo e de todos
é triste, fala do fim, da morte. Nada de exaltação e ufanismo. Nada de chamar "pro- os povos - o evangelho da humanidade. 11 3
gresso" um movimento que carrega em sua origem o "extermínio secular":

Berredo não se encaixaria em nenhuma dessas atitudes. Seria um


[... ] Chame-lhe progresso si mples cronista, enumerando os fatos, e tendo como principal defeito olhar
Quem do extermínio secular se ufana ; apenas as conquistas vantajosas para o reino de Portugal. O comentário de
Eu, modesto cantor do povo extinto Dias vale como uma espécie de manifesto teórico sobre como entendia a
Chorarei nos vastíssimos sepulcros, história e a formação da nacionalidade. Condena Berredo que afirmava
Que vão do mar ao Andes, e do Prata que tudo "o que é de índios é selvático, e irracional", tudo o que fosse
Ao largo e doce mar das Amazonas. 112 estrangeiro seria vil e infame. O poeta procura então reconstituir a histó-
ria dos índios no Maranhão: tupis, tupinambás, tupiniquins, tamoios, goi-
tacazes, aimorés e outros. Oferece a tradução dos nomes dos povos e mos -
Ele próprio tentava criar uma categoria onde se encaixar: o historiador tra sua distribuição pelo território, como migraram e para onde com ache-
poeta. Diferiria este do historiador político, pela sua sensibilidade maior com gada dos portugueses. Segundo ele, os tapuias seriam povos tupis, antigos
as nações do que com "a" nação. Mesmo sendo em parte de uma origem mes- tamoios ou tamuyas, que se alteraram com o isolamento.
tiça, Gonçalves Dias transformou-se em alguém a quem era impossível calar
essa feição. Quando foi reimpressa a obra Anais históricos do Maranhão, de Em um plano mais profundo, Dias procurava conciliar dois coletivos,
Bernardo Pereira de Berredo, do início do século XVIII, Dias aproveitou a a nação e a humanidade, procurando definir o lugar dos índios no segundo,
ocasião para escrever uma longa crítica à visão do autor português nas páginas como forma de criticar sua exclusão de um projeto nacional. Nesse sentido,
da revista Guanabara, significativamente intitulada "História pátria". Definiu não é a história aí entendida como puro conhecimento cronológico do passa-
duas atitudes legítimas diante da história: a do poeta e a do político. do, mas sim como moldura da formação da nacionalidade. A idéia de formação
pode também ser entendida como um singular coletivo que é buscado, e que
abrangeria tanto a história como a língua nacionais.
Quem quer que for bom historiador deve ter uma destas coisas:
ser político ou poeta: não poeta no sentido em que fala Filinto Nesse texto, da mesma forma que o fez em sua obra poética, o autor
Elísio- homem que vive de medir linhas curtas e compridas - , baseou-se em autores jesuítas coloniais, como Simão de Vasconcelos e Antô-
mas poeta de alma e sentimento; escreva prosa ou verso; chame- nio Vieira. Nem por isso perdia sua posição crítica diante do projeto missioná-
se Schiller ou Chateaubriand, Homero ou Platão. rio, explicando em que consistia a conversão, como nesta passagem sobre os
O historiador político resume todos os indivíduos em um só indiví- nheengaybas, que se refugiaram em Marajó e outros lugares e resistiram aos
duo cole ti vo, generaliza as idéias e os interesses de todos, conhece os portugueses durante algum tempo. Ao final, porém,
erros do passado e as esperanças do futuro, e tem por fim a nação.
O historiador poeta resume as nações em uma só nação, simpa-
tiza com todas as suas grandezas, execra todas as suas turpitu- Todos foram vencidos, desbaratados, escravizados: quando o não
des, e generalizando todos os sentimentos, todas as aspirações podiam com as armas , mandavam-lhes um padre da Companhia com
do coração humano, tem por fim a humanidade. um crucifixo e palavras de paz, que os traziam sujeitos e cativos

181
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para definhar e morrer nas nossas plantações; quando faltavam es- A composição foi iniciada na primeira estada de Gonçalves Dias no
cravos, levantavam bandeiras, juntavam homens e iam ao que cha- Rio de Janeiro, quando se retirou em férias numa chácara em Macacos, na
mavam resgate, em escárnio de todas as leis divinas e humanas.'l4 Gávea. Em carta a Henrique Leal, ele anuncia seu projeto:

Dois milhões de mortos dos primeiros habitantes do Maranhão após a Saberás que estive coisa de cinqüenta dias em uma chácara do
chegada dos portugueses, e o início da longa série de atos pérfidos e cobiçosos Serra, em Macacos, e durante todo aquele santo ócio, como
dos colonos que apresavam mesmo os índios de tribos aliadas. Lembrar esses diria Virgílio, nada mais fiz do que fumar, caçar e imaginar.
acontecimentos consistia na tarefa primeira segundo Gonçalves Dias, defen- Imaginei um poema ... como nunca ouviste falar de outro : ma-
dendo uma pauta para o historiador: "Era isto o que deveríamos estudar, por- gotes de tigres, de quatis , de cascavéis; imaginei mangueiras e
que, nós o repetimos, a história e a poesia do Brasil está nos índios". 115 jaboticabeiras copadas, jequitibás e ipês arrogantes, sapucaei-
ras e jambeiros, de palmeiras nem falemos; guerreiros diabóli-
A escravidão fazia parte de suas inquietações com essa mesma nação. cos, mulheres feiticeiras, sapos e jacarés sem conta: enfim, um
Criticou-a pela relação de mando e obediência que instaurava. Em Meditação , gênese americano, uma Ilíada brasileira, uma criação recria-
falava de uma terra bem-aventurada, habitada por um povo infeliz: "E sobre da. Passa-se a ação no Maranhão e vai terminar no Amazonas
essa terra mimosa, por baixo dessas árvores colossais, vejo milhares de ho- com a dispersã(} dos timbiras; guerras entre eles e depois com
mens de fisionomias discordes, de cor vária e de caracteres diferentes". os portugueses. 118

Algumas das reflexões desse texto serão retomadas adiante.


As g~erras intertribais entre os timbiras e os gamelas constituem o
tema dos quatro primeiros cantos. A inquietação sentida pelo autor nasce exa-
Nações e nação tamente dess<J.S guerras, que fizeram com que todos os primeiros habitantes, no
final, perdessem para o invasor português. Itajuba, chefe dos timbiras, foi de-
safiado pelo rei das selvas, chefe dos gamelas. A descrença nas palavras do
Historiado poeta ou "modesto cantor de povo extinto", Gonçalves Dias piaga (o líder espiritual, ou xamã) decifrando os sinais oníricas dos guerreiros
compôs, embora o deixando inacabado, um poema épico, Os timbiras. O pro- -descrença que por si já é indício de um futuro nefasto- os leva a uma guerra
jeto era bastante ambicioso: seriam dezesseis cantos que o autor pretendia que inútil. Perigo maior, mas para o qual permanecem surdos e cegos, era contado
equivalessem a uma "Ilíada brasileira", a obra definitiva da poesia nacional, o por Orapacém, "tupinambá famoso", trazido numa igara:
"gênese americano". Talvez exatamente por causa dessa expectativa de gran-
diosidade, é que tenham sido publicados apenas os quatro cantos iniciais (se-
gundo seu amigo Henrique Leal, doze cantos foram compostos), e que não Conta prodígios duma raça estranha,
conste como das mais felizes criações de Gonçalves Dias. 116 A obra também Tão alva como o dia, quando nasce,
não foi sucesso de público, ao contrário do volume Cantos (que reunia os li- Ou como a areia cândida e luzente,
vros anteriores), publicados ambos em 1857. Que as águas dum regato sempre lavam.
Raça, a quem os raios prontos servem,
Os timbiras habitavam em Alcântara e, derrotados no início do século E o trovão e o relâmpago acompanham.
XVII pelos gamelas, migraram para a Amazônia. O autor pretendia narrar, além Já de Orapacém os mais guerreiros
desses conflitos, o confronto com os portugueses, a catequese, e os passos que Mordem o pó, e as tabas feitas cinza
os levaram à extinção. 117 Clamam vingança em vão contra os estranhos . 119

182 183
A destruição disseminada pelos estranhos, pela "Raça, a quem os rai- Uma breve passagem indica que o contexto histórico é posterior à in-
os prontos servem", e que contrastava com sua alvura, semelhante ao nascer vasão portuguesa. Após ter conhecido apenas que o filho havia sido prisionei-
do dia, fazia-se ali noticiada pelos sertões. A coragem extrema, a destreza dos ro, o pai lhe pergunta:"- Dos índios?". 124 Ou seja, o filho poderia ter sido
guerreiros, acabou sendo a fonte de sua própria ruína. A guerra contra os por- capturado por outros que não índios. Uma oposição que foi forjada pelo pró-
tugueses não chegou a ser tratada diretamente no poema. Mesmo sem o desfe- prio processo de colonização, assim como a categoria "índios" é essencial-
cho, tudo sugere que a guerra levaria à própria destruição. O duplo tema das mente uma categoria européia em sua origem.
divisões entre os oprimidos e da ruína cultural dos "primeiros" habitantes da
América, que tanto inquietou o autor, não parece ter animado o público. A
edição, feita na Alemanha e custeada pelo autor, acabou encalhada. Vale a Marabá e os valores incomuns da mestiçagem
pena contrastar com o sucesso dos Cantos, em ·e dição rapidamente esgota-
da, 120 como também, naquele mesmo ano de 1857, com a obra de outro autor,
que alcançou grande sucesso de público, e que foi o folhetim O guarani. Pelas palavras tristes de Marabá- "Eu vivo sozinha; ninguém me pro-
cura!"-, Gonçalves Dias falava do desprezo lançado àquela que lamentava a
Os timbiras também são incorporados como personagens do poema cor verde dos próprios olhos, pedindo "uns olhos bem pretos, luzentes", "Bem
considerado obra-prima do indianismo, 1-Juca-Pirama. Esse título é esclare- pretos, retintos, não cor d'anajá". Gonçalves Dias parece propor uma inversão
cido em nota pelo autor: "O título desta poesia, traduzido literalmente da lín- da atitude corriqueira atribuída pela hierarquia social escravista aos mestiços,
gua tupi, vale tanto como se em português disséssemos 'o que há de ser morto, que seriam julgados conforme parecessem mais ou menos brancos. Quanto
o que é digno de ser morto'". 121 mais clara sua pele, mais fácil seria sua aceitação e reconhecimento.

O guerreiro tupi, feito prisioneiro dos timbiras, dividiu-se entre a bravu- Com Marabá acontecia algo diferente: ela pedia aparência de ín-
ra diante da morte- prova da honra de sua tribo- e o cuidado com o pai, velho dia, uma vez que vivia entre os índios. Era loura, de cabelos anelados. O
e cego, que ficara sozinho na floresta. Diante de seu aparente temor, os próprios guerreiro, namorado inexistente, exigia cabelos lisos, corridos, compri-
timbiras desprezam sacrificá-lo no ritual antropofágico, e o soltam. No entanto, dos. Esse poema é anotado por Gonçalves Dias, explicando tratar-se do
ao encontrar o velho, este descobre, tateando o corpo do filho, os preparativos desprezo registrado na Crônica da Companhia de Jesus, do século XVII,
do sacrifício e despreza-o também ("Tu, covarde, meu filho não és" 122 ). Gonçal- de autoria de Simão de Vasconcelos, ao rebento designado como marabá,
ves Dias constrói sua imagem acerca do índio introduzindo um dilema moral: a que significaria "mistura".
alternativa impossível entre o amor filial e a honra e identidade do grupo.
Nesse amor impossível de uma mestiça que, vivendo entre os índios,
Em 1-Juca-Pirama aparecem referências aos aimorés, sempre qualifica- aspira outra aparência, o autor faz uma inversão. A ordem colonial era ame-
dos como "vis aimorés", e que ocupam a função de contraste com os tupis e açada e questionada pela alternativa de mestiços e portugueses de viverem
mesmo com os timbiras. Para o pai, a sua própria honra, indiscernível do brio e como índios. 125
da fama da sua tribo, seriam realçadas com o sacrifício do filho. Outro seria o
destino caso este fosse presa dos "vis aimorés", e esta é a maldição lançada pelo pai: Muito se fala da poesia indianista como trazendo certa "tranqüili-
dade de consciência" a um público que testemunhava uma violência pre-
sente em vários conflitos entre o poder imperial e as populações indíge-
Possas tu, descendente maldito nas. No entanto, um desabafo de Gonçalves Dias em carta a um seu amigo
De uma tribo de nobres guerreiros, indica que ele estava longe de entender a poesia como produtora de tran-
Implorando cruéis forasteiros, qüilidade. Afirmava, aos 20 anos, que "não impunemente nos metemos
Seres presa de vis aimorés. 123 nesta vida de literatura" . 126

184 185
Certamente o dom de uma consciência tranqüila não é o intuito de O mesmo tema foi retomado por José de Alencar em O guarani. Peri
Gonçalves Dias. Sua poesia americana não traz tranqüilidade, não purga nada. amou Cecília desde que a viu, pois tinha sido marcado, quando presenciou o in-
Ao contrário, ressuma a consciência de um passado de conflitos. cêndio que destruiu a vila de Vitória, atacada por sua tribo, por uma imagem de
Nossa Senhora. Sonhou com esta "senhora dos brancos", sentenciando a ele: "Peri,
Jean de Léry, Hans Staden, Simão de Vasconcelos, Roloux Baro, Laet guerreiro livre, tu és meu escravo; tu me seguirás por toda a parte, como a estrela
e certamente tudo o que conseguisse em suas viagens no Brasil e Europa, deci- grande acompanha o dia". Ao ver Cecília, a viu como sua "senhora", e passou a ser
frador voraz de arquivos e bibliotecas- dominava suas principais línguas-, seu "escravo".128 No romance, isso consistia tanto em atender a seus pequenos capri-
foram suas fontes. chos de moça mimada, como em proteger infalível e incondicionalmente sua vida.

A atração do índio pela mulher branca foi tema trabalhado já nos Primei- O mesmo poema- "O canto do índio" -devia estar na mente de Alen-
ros cantos, na parte especialmente elogiada por Alexandre Herculano, das "Poesi- car quando este escreveu a cena do banho de Ceci, em que Peri a protege sem
as americanas". "O canto do índio", poema publicado dez anos antes de O guara- no entanto ver sua nudez: ela dispunha de seu "vestuário de banho" . 129 Segun-
ni, mostrava um índio que confundia, como se tivesse sido enfeitiçado, a imagem do a imagem do poeta maranhense, em contraste, a nudez não só é vista como
da mulher branca com a imagem da Virgem, embora uma imagem erotizada: constitui o próprio elemento de sedução.

Sobre a areia, já mais tarde, Nação e escravidão


Ela surgiu, toda nua;
Onde há, ó Virgem, na terra
Formosura .como a tua? A infelicidade do destino da América ("América infeliz!") foi tratada por
Gonçalves Dias a partir de um fragmento em prosa intitulado Meditação. Destino
ligado à escravidão, vista aí mais pelo viés das relações pessoais. Pode-se tomar
o índio (personagem) no fundo nutria um sentimento contraditório entre essa visão como interior, por contraposição à opinião contrária ao tráfico de escra-
sua própria vida, imerso .. ~m sua verdade, e o amor da Virgem e da mulher vos, cada vez mais em voga ao aproximar-se o ano de 1850, que combatia não a
branca, que o levaria à morte da liberdade original: relação de dominação em si- como Dias parece fazer em sua Meditação-, mas a
presença doravante considerada indevida do escravo próximo à família, do escra-
vo nas ruas da cidade, enfim do escravo visível demais. 130 Seu lugar apropriado
Ah! Que não queiras tu vir ser rainha seria a lavoura, sinônimo de riqueza do país, em uma ideologia adequada à políti-
Aqui dos meus irmãos, qual sou rei deles! ca de "poupar" a escravidão, atendendo aos interesses da produção cafeeira. 131
Escuta, ó Virgem dos cristãos formosa. Essa posição é encontrada no jornal O Filantropo, cuja publicação teve início em
Odeio tanto aos teus, como te adoro; 1849 e foi o órgão da Sociedade Contra o Tráfico, e Promotora da Colonização, e
Mas queiras tu ser minha, que eu prometo Civilização dos Indígenas. A argumentação de Gonçalves Dias diferencia-se tam-
Vencer por teu amor meu ódio antigo, bém do que José Murilode Carvalho define como o abolicionismo luso-brasileiro,
Trocar a maça do poder por ferros em que uma "razão nacional" seria mais importante que a preocupação com a
E ser, por te gozar, escravo deles . 127 defesa da liberdade individual, em contraste com o abolicionismo europeu e nor-
te-americano. A "razão nacional" analisada por Carvalho obscureceria o valor da
liberdade. No argumento de Gonçalves Dias a: liberdade é central, embora não
Ódio e adoração, poder e ferros, liberdade e escravidão são os pólos pareça adequado simplesmente enquadrar sua concepção de liberdade a partir da
132
em que oscilavam o índio apaixonado pela mulher branca. noção de liberdade individual ou da correlata noção de sociedade liberal.

186 187
O escritor advoga o fim da escravidão, enquanto fim da própria domi- E sobre essa terra mimosa, por baixo dessas árvores colossais,
nação senhorial : as "maneiras submissas e respeitosas" diante das "maneiras vejo milhares de homens de fisionomias discordes, de cor vária
senhoris e arrogantes"; é como se a própria escravidão fosse por ele condena- e de caracteres diferentes .
da, e não a condenação da presença africana na nação e o medo da "africaniza- E esses homens formam círculos concêntricos, como os que for-
ção" do Império. 133 Outro elemento central na hierarquia social condenado por ma a pedra, caindo no meio das águas plácidas de um lago.
Dias era que houvesse uma divisão não pela variedade de opiniões, mas pela E os que formam os círculos externos têm maneiras submissas e
variedade das cores; e que afinal a cor fosse o critério de uma divisão. respeitosas, e são de cor preta; os outros, que são como um pu-
nhado de homens, formando o centro de todos os círculos, têm
Publicado no primeiro tomo da Guanabara (1849-1851), em passa- maneiras senhoris e arrogantes, e são de cor branca.
gens descontínuas, uma parte desse texto foi escrita em Caxias, a antiga Aldei- E os homens de cor preta têm as mãos presas em longas corren-
as Altas, lugar em que nasceu o escritor, e outra em São Luís. Isso ocorreu em tes de ferro, cujos anéis vão de uns a outros, eternos, como a
1846, quando ele havia voltado dos estudos feitos em Coimbra. Nessa época, maldição que passa de pais a filhos. 136
talvez mais pela irreverência de maneiras do que pela aparência física, ou os
dois fatores mesclados, era visto não como o bacharel culto, alguns meses
depois nomeado sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, profes- Cada uma das faixas circulares teria uma cor própria, sendo a cor pre-
sor de história do Brasil do Imperial Colégio Pedro II, condecorado com a ta a mais exterior. Nesta, seus membros eram ligados por cadeias, inexpugná-
ordem da Rosa, mas como o "caboclinho da pobre Vicência", o "filho natural veis aos movimentos de resistência que eram executados apesar de ferirem os
de João Manuel", como sensivelmente observa Manuel Bandeira. 134 pulsos dos homens que as portavam.

Uma terra onde a natureza é belíssima, árvores, relva, flores, céu, es- Angel Rama, utilizando metáfora semelhante à dos círculos concêntri-
trelas ... tudo perfeito, mas onde o mal vem dos homens, discordes. A metáfora cos, analisa as diferenças lingüísticas da sociedade latino-americana, forjadas
utilizada para expressar a dominação foi a de círculos concêntricos formados na época colonial e mantidas após a emancipação. Diferenças lingüísticas que
pela queda de uma pedra nas águas plácidas de um lago. traduziriam diferenças sociais e relações de poder, manifestadas em "anéis,
lingüística e socialmente inimigos". O núcleo seria o da cidade letrada e escri-
A água muitas vezes está presente nas imagens produzidas por intelec- turária, obediente às normas tradicionais da escrita. Este seria circundado por
tuais (e também em alguns mitos) sobre as diferenças de cores. Pensar em uma imensa "plebe formada por crioulos, ibéricos desclassificados, estrangei-
transformações veiculadas pela água, quem sabe, possibilita que se considere ros, libertos, mulatos, zambos, mestiços e todas as variadas castas de cruza-
antes uma diferença de cor do que uma diferença de raça, dada como uma mentos étnicos", formando um anel urbano, responsável, segundo o autor, pela
situação imutável. A água associa-se à transformação (em geral, do preto em formação do espanhol americano, apesar da resistência dos letrados. Haveria
direção ao branco), à fusão . ainda um anel bem maior, correspondente ao uso das línguas indígenas e afri-
canas, ocupando os subúrbios, as periferias, as áreas rurais, as aldeias e qui-
K. von Martius, na memória "Como se deve escrever a história do lombos. Rama conceitua esse fenômeno como diglossia. 137
Brasil", cunhou a imagem do rio caudaloso, português, que poderia absorver
os confluentes índio e africano: "O sangue português, em um poderoso rio Voltemos ao outro elemento da imagem de Gonçalves Dias, a água. Esta,
deverá absorver os pequenos confluentes das raças índia e etiópica". 135 Na como meio de transmutação, aparece em uma "história" contada a Francisco de
Meditação de Gonçalves Dias, diferentemente, a água não é elemento de fu- Paula Ferreira de Rezende por uma sua escrava, chamada "preta Margarida".
são, trata-se de círculos concêntricos, afastados, que jamais se encontrarão. Segundo esta história, quando foram criados por Deus, todos os homens eram de
Círculos que expressariam, em linguagem atual, a pirâmide social - a hierar- cor preta. Mais tarde, já bastante povoada a terra, por arrependimento di~ino ou
quia, a maioria excluída e a minoria que está no centro, ou no topo. porque a cor branca era julgada mais bonita, o criador, por um pacto firmado

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com as criaturas, ofereceu uma espécie de desafio, concedendo às águas de um Os homens de cor preta devem servir, porque eles estão acostuma-
rio o poder de embranquecer, mas à custa de arriscar-se o candidato ao frio e à dos à servidão de tempos mui remotos, e o costume é também lei .
morte. Dos corajosos, deslumbrados com a promessa de tanta beleza, alguns E os filósofos disseram: os homens de cor preta devem servir,
sobreviveram saindo na outra margem. Os pretos, friorentos e rotineiros, fica- porque são os mais fracos, e é lei da natureza que o mais fraco
ram com a segurança e, apesar da inveja pelos que avistavam do outro lado, sirva ao mais forte.
apenas as palmas das mãos e as solas dos pés tornaram-se brancas quando toca- E os proprietários disseram: os homens de cor preta devem ser-
ram as águas encantadas - o suficiente para constatar a sua frieza extrema. 138 vir, porque são o melhor das nossas fortunas, e nós não have-
mos de as desbaratar.
Câmara Cascudo cita algumas outras versões, de diferentes partes do Então alevantou-se um acalorado rumorejar de vozes, e todos
mundo, junto ao conto "Por que o negro é preto", 139 em Contos tradicionais do concordaram em que a voz dos filósofos e dos proprietários era
Brasil. Em uma delas, recolhida por Medeiros e Albuquerque, o motivo da cor a voz da razão e da justiça e devia ser escutada.
preta original do homem seria o próprio barro, escuro, de que Deus se serviu E os homens de cor branca também se levantaram e disseram:
na criação de Adão. Deus, no entanto, criou também o remédio para esse mal, "Nós constituímos a maioria da nação e somos de entre todos
isto é, um lago de águas claras . Havia contudo um limite, pois tais águas não os mais ricos .
seriam suficientes para banhar toda a humanidade. A diferença em relação à Fomos nós os autores da regeneração política, e a inteligência é
história de Margarida está não apenas na ausência de perigo neste caso (com- o nosso apanágio .
pensada pelo caráter finito do remédio), mas na notação dos que se banharam Ora, é lei da natureza que a alma governe o corpo, e que a sabe-
após os primeiros e antes dos últimos, que encontrando a água já um tanto doria governe a ignorância.
saturada, ficaram com a cor pardacenta, entre o branco e o preto. Nós então ficaremos com o poder, porque somos os mais ricos e
os mais inteligentes".
Décadas mais tarde, Mário de Andrade introduziu essa lenda nas peri- E os homens da mesma classe disseram que tinham bem fala~
pécias de Macunaíma, em versão parecida, embora o pequeno lago seja, aí, não do seus irmãos, e que a sua pretensão era justa e devia ser
criação do Deus cristão, mas a pegada de Sumé, em referência a outra provável atendida. 141
lenda sobre a passagem de São Tomé pela América muito antes dos portugueses.
O esperto Macunaíma foi o primeiro a chegar, claro. Venceu o frio, lavando-se
ali. E ocorreu o "milagre": "Quando o herói saiu do banho estava branco louro e A legitimação da escravidão pelo costume, pela antigüidade, pela
de olhos azuizinhos, a água lavara o pretume dele". Jiguê, seu irmão, só "conse- "lei da natureza", pela diferença de força, pela inteligência superior dos
guiu ficar da cor do bronze novo". Maanape toca com as mãos e os pés a água brancos, pela riqueza, pela política- todos esses (pretensos) argumentos
santa. Ficaram assim os três irmãos, "um louro um vermelho outro negro". 140 são condenados pelo autor.

O olhar de Gonçalves Dias é bem outro, assim como sua época. O Para comentar o lugar do índio nessa história, Dias reporta-se a
poder transformador da água, que acabaria mostrando tanto uma origem co- um começo idealizado, em que "quadros belíssimos de poesia e lições de
mum do homem, como a possibilidade da mudança ao contrário da situação moral sublime" eram compartilhados por uma "geração numerosa e não
estática, contrasta com a consciência de que a escravidão seria um obstáculo corrompida", numa vida maravilhosa. Até que apartaram os navios imun-
para a nação. Por isso chama a atenção para a di visão perigosa, procurando dos, repleto de homens "sordidamente cobiçosos", "pregando a religião
desconstruir os argumentos da escravidão: de Cristo com armas ensangüentadas" . O resultado foi que a escravidão
dos próprios índios e a escravidão africana atuariam, ao pensar no futuro
E os homens que costumam a raciocinar sobre as coisas como da nação, desqualificando os primeiros habitantes, que acabavam se en-
são , e não como devem ser, levantaram-se e disseram: tregando à indolência e à ociosidade.

190 191
O texto Meditação pode ser considerado expressão (embora um NoTAS
tanto precoce em relação ao momento em que o tema torna-se quase obri-
gatório, principalmente por volta de 1871, ano da Lei do Ventre Livre) da
sensibilidade romântica diante da escravidão. O interesse em relação à "Nasceu Antônio Gonçalves Dias (1823-1864) em uma fazenda dos arredores de Caxias
(Maranhão), na qual se refugiara com a amante, brasileira de origem ainda não indis-
singularidade cultural do escravo de procedência africana sequer se colo- cutivelmente apurada (índia ou cafusa?), seu pai, português, que ali buscara asilo contra
cava como questão . O que parecia urgir nessa nova forma de sentimento as perseguições da parte de nacionalistas exaltados". Manuel Bandeira, Noções de história
era mostrar, pela poesia, que o escravo era também gente, tinha uma alma, das literaturas, p. 341; Gonçalves Dias, Obras póstumas, precedidas de uma notícia da
sua vida e obras pelo dr. Antônio Henriques Leal , p. xxiv; Manuel Bandeira, Gonçalves
coração, sentimentos. Roger Bastide escreve: Dias: esboço biográfico.

2 Essa autodenominada "geração de 1825" pode ser Inserida em uma geração mais extensa,
a que nasceu entre 1800-1833, seguinte à dos fundadores do Império, e composta tanto
Com o século XIX, vai produzir-se uma transformação radical por homens que desempenharam os principais cargos políticos do Estado imperial, como
nas relações entre os poetas e os africanos. Não é mais o ele- parlamentares , presidentes de província, ministros (como Paulino Soares de Sousa, Eusébio
mento guerreiro, a violência e o ardor na luta que serão postos de Queiroz, Rodrigues Torres, Nabuco de Araújo, o visconde de Rio Branco entre outros),
quanto por intelectuais, escritores, jornalistas, artistas plásticos, historiadores, como Gonçalves
em evidência, mas a doçura, a resignação e o sofrimento. [... ] de Magalhães, Gonçalves Dias, José de Alencar, Varnhagen, João Francisco Lisboa, Vítor
É esse reconhecimento da doçura, da ternura africana numa lite- Meireles. limar Rohloff de Mattos apresenta-a, comentando seu desempenho: "Fundar o
ratura que então ainda é meio lamartiniana, por conseguinte in- Império do Brasil , conso lidar a instituição monárquica e conservar os mundos distintos
que compunham a sociedade faziam parte do longo e tortuoso processo no qual os setores
teiramente levada à efusão sentimental, à simpatia e ao amor, que dominantes e detentores de monopólios construíam a sua identidade enquanto uma classe
vai ajudar a nascer uma poesia do escravo. Tanto mais quanto a social". O tempo saquarema, p. 125-126.
Independência está consumada; mas não basta criar uma pátria, é
3 Revista Brasileira -Jornal de Ciências, Letras e Artes. Dirigido por Cândido Batista de Oliveira.
preciso também solidificá-la pela fusão de todos os seus filhos. 142 Publicação trimensal. Tomo I. Rio de Janeiro , Tipografia Universa l de Laemmert, 1857.

4 Marcel Mauss, La nation , especialmente p. 576-577 e 599.

No entanto, mesmo que consideremos essa preocupação de Gonçalves 5 Guanabara - Revista Mensal Artística, Cielllifica e Literária, tomo I, Tipografia Dois de
Dias com a escravidão -lembrando que o texto de 1846 permanece isolado, se Dezembro de Paula Brito, Impressor da Casa Imperial, 1851, p. 2.
comparado às opiniões antiescravistas formadas no contexto posterior ao fim do
6 Nas lutas pela abdicação do primeiro imperador, em Santo Amaro, na Bahia, pedia-se a
tráfico de escravos, em 1850- e os obstáculos que representa para seu projeto ascensão de dom Pedro II, que era "cabra como nós ". Stuart Schwartz, The formation of
de nação (liberta da dominação), a imagem de índio ressumada por sua obra a colonial identity in Brazil.
nada tem de semelhante com a resignação ou o sofrimento. Ao contrário, o vi-
7 Sergio Buarque de Holanda vê não exatamente um poeta em Gonçalves de Magalhães ; ele
gor, a honra, e a superioridade moral despontam como seus atributos, afinal era mesmo um tipo de instituição nacional, que fornecia o passaporte para a entrada na
extintos pela história da colonização. Essa é a nódoa na formação da nação. sociedade literária ou, de forma mais ampla, nos labirintos administrativos. Livro dos prefá-
cios, p. 368. (Originalmente publicado em D. J. G. de Magalhães , Obras completas, Rio
de Janeiro, Ministério da Educação, 1939). Antonio Candido reforça a influência que o
Esses foram alguns aspectos que marcaram a formação da nacionali- depois nomeado visconde deAraguaia desfrutava: "Durante pelo menos dez anos ele foi
dade na língua e na literatura. Os agentes dessa formação, englobados na esfe- a literatura brasileira". Formação da literatura brasileira, p. 55.
ra geral da formação do Estado, acentuaram a vigência daquela "liberdade
8 Francisco A. Varnhagen, Memorial orgânico: plano de limites e divisão do território do
regrada" e, acreditando na existência de um consenso e de uma unidade, pro- Brasil e situação de sua nova capital. 1849-1850. Essa é a primeira edição, sem referên-
curaram colocar em marcha um espírito de associação. Por outro lado, a naci- cia ao autor, lugar de publicação e editora. O texto foi republicado no primeiro tomo da
onalidade e a alteridade foram complementares. Imaginar a nação gerou dife- revista Guanabara, ocasião em que Varnhagen explicou o anonimato anterior pela
"simples razão de julgar eu mais conveniente apresentar-me em campo de viseira calada,
rentes formas de se definir o outro, o externo e o interno. As divisões internas para que as minhas idéias chegassem a ser ajuizadas seg undo sua valia [ ... )". Guanabara
evidenciaram-se, embora nem por isso tenham recebido o mesmo tratamento. -Revista Mensal Artística, Cientifica e Literária, tomo I, 1851, p. 357.

192 193
9 Francisco de Sousa Martins, O progresso do jornalismo no Brasil, RIHGB, tomo 8, 20 Esta foi a linha de atuação de O Filantropo, que arrolava os malefícios de uma africa-
1846. Kraus Reprint, 1973 . ni zação da nação, combatendo o tráfico internacional de escravos. A posição não é de defesa
da liberdade dos escravos, mas de evitar a prese nça escrava no seio da "família branca".
10 Revista Brasileira- Jomal de Ciências, Letras e Artes , op. cit. O Filantropo. Periódico Humanitário, científico e literário, 1849.

11 Manuel Bandeira, Gonçalves Dias: esboço biográfico , op. cit., p. 86. 21 Francisco A. Varnhagen, Memorial orgânico, op. cit.

12 limar Rohloff de Mattos, op. cit., p. 240: "a articulação entre a política de mão-de-obra 22 Antonio Candido, O nacionalismo literário, inFormação da literatura brasileira, op. cit., p. 10.
[ ... ]e a política de terras tinha como objetivo tanto poupar imediatamente o consumo de
mão-de-obra escrava quanto sujeitar os novos e futuros ocupantes do mundo do trabalho, 23 Sobre o conceito de comunidades imaginadas, ver Benedict Anderson, Nação e consciência nacional.
fossem eles ex-escravos , elementos nacionais ou imigrantes, como decorrência de uma trans-
formação que era vista e apresentada como inevitável fruto do progresso e da civilização". 24 Antonio Candido, Formação da literatura brasileira, op. cit.

13 ibidem, p. 157: ·:quando dizemos- estar no_govemo do E_stado ,-.estamos nos r~fe~_indo 25 A declaração de Johann Gottfried von Herder, no final do século XVIII, de que "todo povo
também à capac1dade de exercer uma d1reçao: uma d1reçao poht1ca, uma d1reçao mte- é povo; ele possui sua formação nacional como possui sua língua" é comentada por
lectual e moral' [ ... ].Estamos tentando ir além das concepções prevalecentes, sobretudo Benedict Anderson: "Essa concepção notavelmente eng-européia da nation-ness como algo
nos estudos referentes à ordem imperial, que apenas consideram no Estado os aspectos vinculado a uma língua própria e exclusiva teve ampla influência na Europa do século XIX
referentes à dominação e aos aparelhos de coerção que a tornam possível, como a polícia, e, mais limitadamente, nas teorias subseqüentes sobre a natureza do nacionalismo".
a burocracia, os tribunais". A expressão "espírito de associação", citada pelo autor, é do Benedict Anderson, Nação e consciência nacional, op. cit., p. 76-77.
visconde de Mauá; Bernardo Pereira de Vasconcelos falava em "difundir as luzes".
26 João Francisco Lisboa, A escravidão e Vamhagen , p. 135 .
14 Manoel L. Salcrado Guimarães, Nação e civilização nos trópicos: o IHGB e o projeto de
uma história n:cional, p. 7: "é no mesmo movimento de definição da nação brasileira que 27 Edith Pimentel Pinto , O português no Brasil: época colonial, p. 519.
se está definindo também o 'outro' em relação a ela. Movimento de dupla face, tanto para
dentro quanto para fora". 28 limar Rohloff de Mattos, O tempo saquarema, op. cit., p. 263.

15 Sobre a crítica dessa oposição, quase naturalizada, na antropologia, ver o artigo de Mareio 29 Marcel Mauss (op. cit., p. 596) incluiu a questão lingüística em sua reflexão sobre a idéia de
Goldman e Tânia Stolze Lima, Como se faz um grande divisor?, in Mareio Goldman, nação, apontando para o caráter inédito do conservantismo, proselitismo e fanatismo, bem como
Alguma antropologia, p. 83-92. da intervenção do Estado, nesse momento de definição das " línguas nacionais" no século XIX.

16 Sérgio Buarque de Holanda, Livro dos prefácios , op. cit., p. 353. 30 Jonathan Steinberg, O historiador e a questione della língua, in Peter Burke e Roy Porter
(orgs .), História social da linguagem, p. 242.
17 Um exemplo significativo foi Joaquim Norberto de Sousa e Silva, de c~jo e?volvi~ento
com os censos tivemos prova no capítulo anterior deste trabalho. Podemos Citar amda Cand1do 31 Luís Maria da Silva Pinto, Prólogo, in Dicionário da língua brasileira, Biblioteca Nacional,
Batista de Oliveira, que tem um reconhecido cálculo sobre a população do Império em 1851 ' Seção de Obras Raras.
lido em sessão do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, e que foi diretor da Rev1sta
Brasileira- Jomal de Ciências, Letras e Artes (1857-1859; Biblioteca Nacional), que 32 Brás da Costa Rubim, Vocabulário brasileiro para servir de complemento aos dicionários
declarava-se continuação da Guanabara, fundador do Instituto Histórico, senador, mm1stro da língua portuguesa. Biblioteca Nacional , Seção de Obras Raras .
da Fazenda e dos Estrangeiros.
33 Essa obra não é aqui analisada por não se enquadrar nos limites cronológicos deste trabalho.
18 A revista foi publicada entre 1849 e 1856. Tanto os exemplares da Biblioteca :<aciona~ Antônio Joaquim de Macedo Soares, Dicionário brasileiro da língua portuguesa: elu-
quanto os do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro estão reun_1dos_ en; do1s, tomos. cidário etimológico-crítico das palavras e frases que , originárias do Brasil, ou aqui
o primeiro, datado de 1851, e o terceiro [sic], _datad_o de 1855. A Fag1~açao ~ conunua em populares, se não encontram nos dicionários da língua portuguesa, ou neles vêm com
cada um dos tomos. Na época em que a pesqu1sa f01 realizada, nao f01 poss1vel recuperar forma ou significação diferentes. 1875-1888 .
a dimensão dos volumes originais (seu início e fim), nem, conseqüentemente, as datas espe-
cíficas de publicação dos artigos. Remetemos apenas, portanto, para um dos tomos. Poste: 34 Vocabulário da língua bugre, RIHGB, tomo 15, 1852, p . 60-75.
riormente, consultando os originais da série completa na biblioteca da Casa de Rm
Barbosa, verifiquei que a publicação estendeu-se a 1856. 35 Flora Sussekind, O escritor como genealogista: a função da literatura e a língua literária
no romantismo brasileiro, v. 2, p. 461.
19 Mary Karasch, Slave life in Rio de Janeiro, 1808-1850, p. 63-64, comenta o !racasso dos
censos de 1834 e 1838, ambos subestimando o número de escravos. A questao f01 discu- 36 Antônio Alvares Pereira Coruja, Coleção de vocábulos e frases usadas na província de S.
tida no segundo capítulo de ste trabalho. Pedro do Rio Grande do Sul.

195
194
37 Benedict Anderson, Nação e consciência nacional , op. cit., p. 81. 58 Manoel Salgado Guimarães escreve: "É Francisco Adolfo Varnhagen quem [ ... ) expli-
citaria os fundamentos definidores da identidade nacional brasileira enquanto herança
38 Celso Cunha, Língua portuguesa e realidade brasileira. da colonização européia" . Nação e civilização nos trópicos: o IHGB e o projeto de uma
história nàcional , p. 6.
39 Edith Pimentel Pinto, A língua escrita no Brasil, p. 8-9.
59 Antonio Candido, A educação pela noite e outros ensaios, op. cit., (especialmente os artioos
40 Edith Pimentel Pinto, O português do Brasil: textos críticos e teóricos , I - 1820-1920, "Literatura e subdesenvolvimento" e "Literatura de dois gumes" ). "'
fontes para a teoria e a história, p. xvi. Na introdução, a autora procura apresentar as
reflexões sobre a natureza da língua do Brasil desenvolvidas no período. Sobre o pensa- 60 João Francisco Lisboa, A escravidão e Vamhagen, op. cit., p. 153 .
mento romântico, elabora a distinção entre os " dialetistas" e os "separatistas".
61 Flora Sussekind, O escritor como genealogista: a função da literatura e a língua literária
41 Manuel Bandeira, Noções de história das literaturas, op. cit., p. 163. no romantismo brasileiro, op. cit., p . 459.

42 No seu "Ensaio sobre a história da literatura no Brasil", publicado na revista Niterói em 62 Machado de Assis, Instinto de nacionalidade, in Obra completa, p. 802-809. Publicado
1836 e considerado o primeiro manifesto do romantismo brasileiro, Gonçalves de Magalhães originalmente em Novo Mundo, 24 março de 1873.
lançava as questões: "Pode o Brasil inspirar a imaginação dos poetas? E os seus indíg~nas culti-
varam a poesia?". Apud Manuel Bandeira, Noções de história das literaturas, op. c1t., p. 338. 63 Antônio Joaquim Macedo Soares, Bittencourt Sampaio. Publicado originalmente em
Flores silvestres, ! 0 vol., Rio de Janeiro, Garnier, 1860. Transcrito por Edith P. Pinto, O
43 Antonio Candido, A educação pela noite e outros ensaios, p. 151. português do Brasil: textos críticos e teóricos, I - 1820-1920, fontes para a teoria e a
história, op. cit., p. 43.
44 Novo Dicionário Aurélio, p. 233.
64 Gonçalves Dias, Carta ao dr. Pedro Nunes Leal. Transcrito por Edith P. Pinto, O português
45 Lopes Gama, O carapuceiro, p. 421. do Brasil, op. cit., p. 33-38.

46 Sobre a trajetória de Lopes Gama e o conteúdo de sua atividade como jornalista político 65 A expressão foi utilizada por Ômega, possivelmente Pinheiro Guimarães, que entrou na
e social, ver a cuidadosa introdução de Evaldo Cabral de Melo em O carapuceiro. polêmica não exatamente para defender Alencar, mas para denunciar a "confraria lite-
rária". José Aderaldo Castello, A polémica sobre a "Confederação dos tamoios" .
47 Juan Valera, A poesia brasileira, Guanabara. Revista Mensal Artística, Científica e
Literária, tomo III, 1855, p. 197-199. 66 Um "árcade retardatário": assim Gonçalves de Magalhães foi apontado enfaticamente por
José Veríssimo, em sua obra publicada pela primeira vez em 1916, História da literatura
48 Joaquim Norberto de Sousa e Silva, A língua brasileira, Guanabara. Revista Mensal brasileira: de Bento Teixeira, 1601 , a Machado de Assis, 1908, p. 151.
Artística, Científica e Literária, tomo III, 1855, p. 99.
67 Carta de Alexandre Herculano a d. Pedro II , datada de Lisboa, 6 de dezembro de 1856, apud
49 José de Alencar, Bênção paterna, [prefácio a] Sonhos d'ouro- romance brasileiro, p. 9. Heitor Lyra , A história de d. Pedro 11, p. 203-207.

50 Joaquim Norberto de Sousa e Silva, A língua brasileira, op. cit., p. 100. 68 José de Alencar, O guarani , p. 117.

51 ibidem, p. 101. 69 Cavalcanti Proença, José de Alencar na literatura brasileira, v. 1, p. 69.

52 Gonçalves de Magalhães, Os indígenas do Brasil perante a história, p. 10. 70 José de Alencar, Carta ao dr. Jaguaribe, in Iracema, edição do centenário, p. 226-227.

53 Extratos do prólogo dessa obra são citados por Edgard Sanches, A língua brasileira. 71 Segundo R. Koselleck, aproximadamente em meados do século XVIII inicia-se uma trans-
formação sobre a concepção de história . A palavra Geschichte, até então em geral uti-
54 F. A. Varnhagen, Memória sobre a necessidade do estudo e ensino das línguas indígenas lizada no plural, passa a ser empregada cada vez mais no singular, comportando uma idéia
no Brasil, p. 53-63. de unidade , de generalidade antes ausente. R. Koselleck, Le futur passé: contribution à
la sémantiq ue des temps historiques, p. 46.
55 Manuela Carneiro da Cunha, Política indigenista no século XIX, in História dos índios 110 Brasil.
72 Gonçalves Dias, Dicionário da língua tupi chamada língua geral dos indígenas do
56 Em José de Alencar, diferentemente, a referência é sempre à " língua indígena", no Brasil, p. v-vi.
singular, como se só uma de fato existisse.
73 José de Alencar, Ira cema, Paz e Terra, p. 115 . Chamando a atenção para as pesquis_as etimo-
57 Francisco A.Vamhagen, Prólogo, in Florilégio da poesia brasileira, apud Edgar Sanches, op. cit., P· 9. lógicas efetuadas por Alencar, Cavalcanti Proença esclarece este caráter aglutmante do

197
196
tupi, com vocábulos com múltiplos semantemas, que o distingue das línguas de flexão "cujo 95 Ver por exemplo as edições do Diário do Rio de Janeiro de I 0 , 2, 5, li, 18, 23 e 30 de janeiro de I 857.
afixos são elementos significantes mas não conceituais" . Cf. Cavalcanti Proença, José d s
Alencar na literatura brasileira , v.!, p. 57. e 96 Stuart Schwartz, The formation of a colonial identity in Brazil.

74 José de Alencar, O guarani , p. 117. 97 José de Alencar, O guarani , p. I46.

75 Bertil Malmberg, As novas tendências da lingüística , p. 25. 98 ibidem, p. 260

76 Além da obra citada, outro texto sobre o estudo lingüístico no século XIX é o de Leonard 99 ibidem, p. 33.
Bloomfield, The study of language.
IOO ibidem, p . 35.
77 Apud Celso Cunha, Língua portuguesa e realidade brasileira, p. 42 .
IOI ibidem, p. 27.
78 Apud idem.
I 02 Manuela Carneiro da Cunha, Política indigenista no século XIX, in História dos índios
79 Bertil Malmberg, op. cit. , p. 31 e segs. no Brasil, p. I36.

80 José de Alencar, Iracema, p. I I. I 03 Diário do Rio de Janeiro , 17 de janeiro de 1857. A nota acompanha o capítulo XIV
"Uma índia". Não consta da edição que utilizei para consulta. Não foi possível con~
8I Marlyse Meyer, Folhetim : uma história. sultar a primeira edição da obra.

82 José de Alencar, Iracema, pós-escrito à segunda edição, edição do centenário, p. 242. I04 José de Alencar, O guarani, p. 76.

83 idem. I 05 ibidem, p. 20.

84 ibidem, p. 243. 106 ibidem, p. I9.

85 José de Alencar, Bênção paterna, [prefácio a] Sonhos d'ouro, p. I I-I2 . I07 ibidem, p. 2I8-2I9.

86 José de Alencar, Iracema, pós-escrito à segunda edição, edição do centenário, p. 244. I08 Manuela Carneiro da Cunha, Política indigenista no século XIX, op. cit., p. I34.

87 idem. I 09 Marlyse Meyer, Um fenômeno poliédric o: o romance-folhetim francês do século XIX.


Neste artigo , a autora considera a leitura de folhetins como reveladora de medos e hor-
88 Roger Bastide, A incorporação da poesia africana à poesia brasileira, in Poetas do Brasil. rores , uma certa angústia social suscitada pelos personagens folhetinescos das classes
laboriosas I classes perigosas: "A angústi a que suscitam todas aquelas 'vítimas' que
89 Carta de Alexandre Herculano a d. Pedro II, datada de Lisboa, 6 de dezembro de I856, apud fomos encontrando no conjunto dos fo lhetins, todas as vítimas de uma sociedade onde
Heitor Lyra, A história de d. Pedro II , op. cit., p. 204. reina a lei do mais forte" (p. 43).

90 Diário do Rio de Janeiro, 1° de janeiro de I857. I I O Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil , p. I OI- I 02 .

9I José Aderaldo Castello, A polémica sobre a "Confederação dos tamoios ", p. xxiv. li I Um exemplo do tratamento da história como lugar de certa pacificação é o próprio épico
de Gonçalves de Magalhães. Jagoanharo, um dos chefes tamoio, em luta contra os
92 Cavalcanti Proença explora essa faceta de pesquisador do autor de vários romances histó- portugueses, tem um sonho, no qual vo a com São Sebastião e este lhe prediz vários
ricos. Cf. José de Alencar na literatura brasileira, op. cit. fatos da história do Brasil, da funda ção de Niterói até a chegada de d. João VI e a
maioridade de d. Pedro II. Depois da narrativa surge uma cruz no céu. Jagoanharo,
93 Um levantamento feito por Flora Sussekind sobre os autores mais citados nas notas de Alencar arrependido , pede então sua "salvação". Pela predição de São Sebastião, sugeria-se
em seus romances indianistas indica que suas principais fontes de pesquisa foram que o destino da nação estaria mesmo ligado aos portugueses e ao cristianismo. Magalhães
Gabriel Soares de Sousa, Jean de Léry, Ha ns Staden , Simão de Vasconcelos, Fernão concilia a dominação portuguesa com a idéia da liberdade da pátria , da luta contra o
Cardim, Ives d ' Evreux e Thevet. Flora Sussekind, O Brasil não é longe daqui: o nar- estrangeiro, explorada no poema. Apud José Aderaldo Castello, op . cit., p. xliii.
rador, a viagem, p.I9I-I92 .
112 Gonçalves Dias, Os timbiras. Edição uti lizada para as citações: I-Juca-Pirama seguido
94 José de Alencar, Cartas sobre a Confederação dos tamoios , in Obra completa, p. 89I. de Os timbiras , Porto Alegre, L&PM, 19917, p. 62. Foi utilizada também na pesquisa a

I99
198
edição Poesia completa e prosa escolhida, Rio de Janeiro, Aguilar, 1959. No entanto, 133 O jornal foi fundado em 1849, e no ano seguinte organizou a Sociedade contra o Tráfico
na edição de bolso, encontram-se notas do punho do autor que não constam da edição e Promotora da Co loni zação, e Civilização do Indígena; seu objetivo era "combater a
da editor a Aguillar. escravidão dom és tica entre nós , e demonstrar seus negros males, e apresentar os mai s
seguros meios de extinguir, e prevenir seus funestos resultados". O Filantropo. Periódico
113 Gonçalves Dias , História pátria. Reflexões sobre os Anais históricos do Maranhão por Humanitári o, cientifico e literário. 1849. Biblioteca Nacional.
Bernado Pereira de Berredo. Guanabara. Revista mensal, artística, cient(fica e literária,
tomo I, Tip. Dois de Dezembro , 1851, p. 25 e segs. 134 Manuel Bandeira , A vida e a obra do poeta , in Gonçalves Dias, Poe sia completa e
prosa escolhida , p. 20.
114 ibidem, p. 60.
135 K. Martius, Como se deve escrever a história do Brasil, p. 383.
115 ibidem, p. 63.
136 Gonçalves Dias , Meditação, Guanabara, tomo I , p. 102-103.
116 Antonio Candido lamenta que a obra não possua uma organização do todo e maior
clareza em seus propósitos, indispensáveis a um épico. Formação da literatura brasi- 137 Angel Rama , A cidade das letras , p. 54-75 .
leira, p. 93-94.
138 Francisco de Paula Ferreira de Resende , Minhas recordações, p. 115 .
117 ibidem, p. 93.
139 Luís da Câmara Cascudo, Contos tradicionais do Brasil, p. 257-259.
118 Apud Manuel Bandeira, Gonçalves Dias: esboço biográfico, p. 81.
140 Mário de Andrade, Macunaíma- o herói sem nenhum caráter, p. 28-29.
119 Gonçalves Dias, 1-Juca-Pirama seguido de Os timbiras, p. 52.
141 Gonçalves Dias , Meditação, op . cit., p. 176.
120 Manuel Bandeira, Gonçalves Dias: esboço biográfico, p. 137.
142 Roger Bastide, Poetas do Brasil, p. 23-24.
121 Gonçalves Dias, 1-Juca-Pirama seguido de Os timbiras , p. 7.

122 ibidem , p. 24.

123 ibidem, p. 23.

124 ibidem, p. 20.

125 Stuart Schwartz, Brazilian ethnogenesis: mestiços, mamelucos, and pardos. Especifica-
mente sobre os mestiços que viviam culturalmente como índios, o autor escreve na p. 18:
"ln some ways mestiços who made a cultural choice to be indians were a frightening
prospect to colonial society. The rejection of ' civility' and the acceptance of barbarism
placed into question the very foundation of European society and the theo1ogica1 jus-
tification for conquest and colonization".

126 Gonçalves Dias , Correspondência, in Poesia completa e prosa escolhida, p. 287.

127 Gonçalves Dias , O canto do índio , in Poesia completa e prosa escolhida, p. 11 O.

128 José de Alencar, O guarani, p. 96.

129 ibidem, p. 59-63.

130 Ver Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos.

131 limar Rohloff de Mattos, op. cit., p . 240.

132 José Murilo de Carvalho, Escravidão e razão nacional, p . 287-308.

200 201
CoNCLUSÃo

"Pertencimentos, identidade. Seus documentos! Sobre seu passa-


porte ou carteira de identidade estão expostos, sob seu retrato, ini-
mitável, seu sobrenome, nome, sexo e nacionalidade ... pois você 'per-
tence' a uma certa família, a um gênero, a um país, não a outros.
É claro que essas marcas não esgotam suas características sin-
gulares, mas são suficientes para os outros o reconhecerem e
para a polícia o encontrar.
[ ... ]Eu imagino então um passaporte variável que pareceria uma
cartografia instantânea de suas atitudes cambiantes. Certamen-
te, ele o distinguiria de todos os outros, uma vez que descreve-
ria o perfil evolutivo de sua identidade singular, mas sobretudo
veríamos misturar-se nele mil coletivos correspondentes a seus
aprendizados e a sua experiência.
Texturado e brilhante, manchado, variado, este manto de Arle-
quim tão rugoso quanto a pele e variável quanto às feições, sor-
risos, piscar de olhos e prantos, se assemelharia à velha impres-
são do seu polegar ou ao melhor de seus retratos."

Michel Serres

Partindo de um tema de interrogação, a mestiçagem, este trabalho pro-


curou ser um combate pela história. História no sentido do que aponta para o
que não é essencial, imutável, natural. Do que se inquieta com o que é tomado
como evidente ou fruto de uma geração espontânea, e se arrisca a tentar uma
pesquisa sobre as raízes, o conjunto de forças e situações que sustentam tal
evidência. É um trabalho de desconfiança sobre a identidade, tendo porém
consciência do papel que desempenha em uma sociedade hierarquizante e de-
sigual e do poder que exerce.

Lucien Febvre, considerando, após a Segunda Guerra Mundial, a histó-


ria dos homens e o ofício do historiador, atentava para as "variações alternadas
das distâncias entre raças, entre povos", distâncias materiais e sobretudo as dis-
1
tâncias morais, e percebia, apreensivo, a "digestão mútua de civilizações" ·

203
É nesse sentido que falar em interesse pela mestiçagem não deve perspectiva, a palavra crioulo, no título de uma folha política e a mesma pala-
levar a pensar apenas em "contato", ou " encontro" entre raças e povos, vra em uma lista de população, ou em um registro policial, assumiu conteúdos
mas em distâncias variáveis, construídas, em "digestões" e destruições. e desempenhou forças diversas . A visão da sociedade no Brasil do século XIX
Roger Bastide, procurando evitar tanto o organicismo (a fixidez dos tipos como racialmente estratificada entre brancos e não-brancos é por demais sim-
sociais, análoga a modelos biológicos) quanto a busca das origens das for- plificadora, em prejuízo das tensões existentes, além de acabar tomando como
mas culturais, para a qual a aculturação constituiria um empobrecimento, única realidade possível, categorias de um ideal hierárquico, princípios de
apontava para a impossibilidade de isolar, como certas divisões acadêmi- uma sociedade ordenada. À ordem buscada contrapuseram-se contínuas movi-
cas, de um lado a perspectiva do grupo e de outro a perspectiva do conta- mentações entre fronteiras sociais . Levar em conta a profusão das designações
to, do confronto, do sincretismo. Daí sua noção de interpenetração de significou apontar muito mais para o múltiplo do que para o dual. Ainda que a
civilizações como fenômeno próprio da história; a própria matéria da his- dicotomia tenha atuado na contínua reconstrução das hierarquias sociais, a
tória seriam as interpenetrações de civilizações, seriam fusões, conquis- miríade de gradações, os múltiplos caminhos da dinâmica social, merecem ser
tas, guerras, trocas: "a história da humanidade toda é a história do conta- trazidos à luz. Como, por exemplo, traduzir uma expressão como "cabra" por
to, das lutas, das migrações e das fusões culturais". 2 "não-branco", "população de cor" ou "negro", se com isso perder-se-iam de
vista muitos outros sentidos (o cabra como dissidente político, ou a animalida-
No Brasil, como em outros países americanos como México e Cuba, de evocada na expressão?).
a mestiçagem é um tema clássico. No entanto, as ricas variações desse tema,
no período do século XIX até aproximadamente a década de 1860, se mos - A aura política que envolveu as representações raciais e identitári-
travam ainda merecedoras de um exame mais detalhado, sobretudo no senti- as, em um momento bastante singular que foi o início do período regenci -
do de buscar a especificidade desse período, ofuscada talvez pela ênfase na al, constitui a principal conclusão do capítulo inicial deste livro. A singu-
adoção das teorias deterministas com a qual comumente se caracteriza o laridade daquele momento, no que diz respeito à construção das identida-
momento que se abre a partir da década de 1870. Mais do que restaurar uma des sociais, ancorou-se exatamente numa linguagem racial da política, que
suposta continuidade ou evolução que teria desencadeado os paradigmas parece depois se apagar. Enfatizar uma linguagem, um conjunto de símbo-
raciais, baseados no determinismo biológico, aqui se empreendeu a tarefa los, não implica supor que quaisquer outros símbolos ou outros temas po -
de perceber o período que se estende entre as décadas de 1830 e 1860 em deriam se encaixar naquelas disputas em torno da formação da sociedade
sua singularidade. Na passagem entre os séculos XIX e XX, encontra-se política. Isto é, não são símbolos arbitrários, ao contrário. São ressonân -
claramente uma "questão racial"- envolvendo a política de mão-de-obra, a cias da própria diversidade daquela formação social; estão enraizados na
ordenação jurídica e médica, além das representações sobre a identidade história daquela sociedade. Um dos aspectos que torna único esse momen-
nacional - nas reflexões e práticas sobre o destino do Brasil, de sua "solu- to da história é exatamente essa profusão de adjetivos da palavra "brasi-
ção" dependendo a possibilidade de inserção do país no concerto da civili- leiro", da palavra "cidadão" e da linguagem racial. Progressivamente, es-
zação e do progresso. Por isso a tão forte recorrência do conceito de mesti- ses temas e experiências desapareceram da cena política. A polifonia, a
çagem, embora este nunca tenha adquirido um sentido muito fechado, ao pluralidade de vozes falando dos rumos políticos e do que entendiam tor-
contrário, sendo preenchido por conteúdos cambiantes . 3 O momento que nar-se brasileiro cedeu lugar a uma série de restrições para que alguém
antecede não pode ser reduzido a mero antecessor cronológico, sob o risco fosse, efetivamente, cidadão. Da mesma forma , passou a ser privilégio de
de não se ver como ele foi atravessado por valores e tensões diversas . poucos definir o conteúdo do que consistia ser brasileiro.

Debruçando-se sobre os significados cambiantes, em transformação, Os debates na imprensa do Rio de Janeiro entre 1831 e 1833, entre ou-
procurando esclarecer a amplitude histórica do campo semântico de termos tras disputas e polêmicas (e acompanhando-as), foram marcados por uma tensão
como "brancos", "pretos", "índios", "cabras" e "pardos", este trabalho anali- entre falar e silenciar a cor dos cidadãos. São representativos de cada uma des-
sou diferentes campos produtores de representações raciais e identitárias. Nessa sas posições, os jornais O Homem de Cor, por exemplo, e a Aurora Fluminense.

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Deslocando o foco de análise para os documentos estatísticos criados em Falas e silêncios também nas imagens sobre a nação formuladas em
torno do conceito, então relativamente novo, de população, percebeu-se também meados do século? De certa forma , mais uma vez , sim. No último capítulo
uma certa polarização entre uma fala e um silêncio. As diferentes análises estatísti- passamos a tratar da nação, após ter considerado as discussões sobre a forma-
cas, mais do que simples ou bruta reprodução de uma realidade, constituíram um ção da sociedade política nos anos iniciais da década de 1830, e em seguida o
discurso sobre a população. Ligadas ao processo de centralização do Estado imperi- investimento sobre a população. As imagens sobre a nação foram focalizadas
al, as estatísticas procuravam transformar um conglomerado de habitantes em uma com base em discussões sobre a "língua brasileira". A reflexão sobre a língua
população, isto é, forjar uma certa racionalidade política, ligada à tributação, ao foi privilegiada, pois a busca da especificidade do nacional voltou-se para aquilo
recrutamento, à criminalidade, à instrução, às estratégias de utilização da mão-de-obra que era diferente da herança portuguesa (mantendo com esta uma relação con-
tanto livre como escrava, à composição e movimentos desse conglomerado, que fosse flituosa de filiação) , e para a oralidade, selecionando o digno e o indigno de
mais adequada à ordem e à segurança. O objetivo era circunscrever, no conjunto da ser incluído como marca da língua nacional. A heterogeneidade dos grupos
população, certos subconjuntos: a sociedade civil, os escravos, outros contingentes sociais e culturais atravessou a polêmica em torno da língua brasileira. A defe-
suscetíveis de serem aproveitados como mão-de-obra, os estrangeiros, os índios. sa da língua nacional, bem como a circulação da literatura romântica, foi uma
forma de difundir um "espírito de associação" , de criação de uma suposta uni-
Nesse discurso classificatório, essa pesquisa privilegiou a questão da dade nacional entre as "partes". A idéia de nação, enquanto nova forma de
cor da população. Quantos descaminhos foram encontrados, contrastando com concepção da vida social, não foi entendida necessariamente como abrangen-
a vontade de racionalidade que a estatística, "luz do governo", pretendeu pos- do a totalidade dos habitantes, que operasse uma assimilação incondicional: a
suir. Esses descaminhos não foram, porém, apenas fruto de uma suposta inca- nação, tal como desponta do romantismo histórico e literário, foi resultado de
pacidade dos burocratas e demais agentes do Estado, como inspetores de quar- escolhas, seleções, inclusões e exclusões; criou certos símbolos, construiu de
teirão, juízes de paz etc. Eles revelam algo muito mais rico para o historiador, forma múltipla as alteridades. Mais uma vez a opção de desconfiar das evidên-
que consiste na resistência à própria classificação e ordenação. Os dilemas cias fez-se presente, pois o pressuposto da interrogação consistiu exatamente
quanto ao estatuto político dos libertos, por exemplo, puderam ser entrevistos em desnaturalizar a idéia de que cada nação teria correspondência em uma
na variação das formas de agrupar e opor os grupos da população. A imbrica- língua, e a partir daí, perceber o momento como o de um conjunto de esforços
ção entre cor e condição social expressou-se também nas listas, mapas e tabe- para que essa equação se tornasse realidade.
las, embora, por outro lado, sempre houvesse casos, "observações", ressalvas,
que escapavam às linhas e colunas coordenadas das mesmas. A formação da nacionalidade foi interrogada, ainda, a partir da
análise de algumas obras literárias de José de Alencar e Gonçalves Dias,
A cor da população interessava diferentemente aos diversos níveis do acerca do sentimento sobre as raças. O foco nesses sentimentos, perspec-
Estado. Se para a polícia a cor foi um dos critérios básicos de sua atuação na tiva constitutiva do romantismo, foi um passo na investigação da especifi-
vigilância da ordem pública, da mesma forma que um presidente de província cidade desse momento histórico e um espelho para as próprias dificulda-
poderia incluir sua menção, em benefício de um conhecimento mais detalhado des da idéia de nação, onde se refletiram, mesmo que nem sempre fosse
das riquezas e ameaças de sua região, os ministros de Estado, com a incumbên- essa a intenção dos escritores, as desigualdades e os vestígios das muitas
cia de organizar os cômputos gerais sobre a população, preferiram muitas vezes nações existentes no projeto de unidade.
calar sobre o tema, mesmo quando houvesse "dados" disponíveis e já recolhidos.
Desconfiar da identidade não significa, portanto, desprezar sua im-
Para os homens livres não proprietários a menção da cor poderia se tornar portância. Mas tomá-la pela dupla condição, de parecer necessária mas ser
um problema. Poderia significar a perda de um espaço de ambigüidade que para tais contingente, fruto de relações de força, e de carregar seu revés insepar~vel, a
grupos, que não eram senhores nem escravos, era fundamental. As revoltas em pro- alteridade. Michel Serres procura distinguir pertencimentos (nacionahdade,
víncias do Nordeste em 1851 e, mesmo antes, outras manifestações mais cotidianas raça, sexo) da identidade, campo da riqueza e variedade da experiência, cam-
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