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DUO VII – Dialogue Under Occupation

Anais: Textos Completos - 2016

28 a 30 de outubro de 2015
Auditório do Prédio 32 – PUCRS

Porto Alegre/RS – Brasil


ISBN: 978-85-397-0799-7

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul


Faculdade de Letras
Programa de Pós-Graduação em Letras

Anais: Textos Completos


DUO VII – Dialogue Under Occupation

28 a 30 de outubro de 2015
PUCRS, Porto Alegre/RS – Brasil

Organizadores:
Maria da Glória Corrêa di Fanti
Pedro Theobald
Bernardo Kolling Limberger
Tamiris Machado Gonçalves
Vanessa Fonseca Barbosa

EDIPUCRS
Porto Alegre/RS

2016
Anais dos textos completos do DUO VII – Dialogue Under Occupation

Realização: Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio


Grande do Sul
Financiamento: CNPq, CAPES e FAPERGS

Os textos e as imagens são de responsabilidade de seus autores.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

D536d Dialogue Under Occupation (7. : 2016 : Porto Alegre, RS)


DUO VII : Dialogue Under Occupation [recurso eletrônico] / org.
Maria da Glória Corrêa di Fanti [et al.]. – Dados eletrônicos. – Porto
Alegre : EDIPUCRS, 2016.
713 p.

Evento realizado de 28 a 30 de outubro de 2015, na PUCRS.


Modo de acesso: <http://www.pucrs.br/edipucrs>
ISBN: 978-85-397-0799-7

1. Diálogo – Análise. 2. Linguística. 3. Comunicação Intercultural.


4.Linguagem. 5. Multidisciplinaridade. I. Di Fanti, Maria da Glória
Corrêa. II. Título.

CDD 418.2

Ficha Catalográfica elaborada pelo


Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS
Reitoria
Reitor
Ir. Joaquim Clotet
Vice-Reitor
Ir. Evilázio Teixeira
Pró-Reitora de Pesquisa, Inovação e Desenvolvimento
Profª. Drª. Carla Denise Bonan
Pró-Reitora Acadêmica
Profª. Drª. Mágda Rodrigues da Cunha
Pró-Reitor de Administração e Finanças
Eng. Milton Sperry Winckler Junior
Pró-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários
Prof. Dr. Sérgio Luiz Lessa de Gusmão

Faculdade de Letras
Diretora da Faculdade de Letras
Profª. Drª. Regina Kohlrausch
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras
Profª. Drª. Maria da Glória Corrêa di Fanti
Coordenadora do Departamento de Estudos Linguísticos
Profª. Drª. Lilian Cristine Hübner
Coordenador do Departamento de Estudos Literários
Prof. Dr. Paulo Ricardo Kralik Angelini
Coordenadora do Departamento de Letras Estrangeiras
Profª. Drª. Heloísa Orsi Koch Delgado

COMISSÃO ORGANIZADORA DO DUO VII


Coordenação geral
Maria da Glória Corrêa di Fanti (Presidente - PUCRS)
Ana Maria Lisboa de Mello (PUCRS)
Lawrence N. Berlin (Northeastern Illinois University, EUA)
Lilian Cristine Hübner (PUCRS)
Marie-Hélène Paret Passos (PUCRS)
Paulo Ricardo Kralik Angelini (PUCRS)
Pedro Theobald (PUCRS)

Comitê executivo
Bernardo Kolling Limberger (Doutorando/CNPq)
Cécile Sidery (Doutoranda/Université Bordeaux 3)
Kelli da Rosa Ribeiro (Doutoranda/CNPq)
Milena Hoffmann Kunrath (Doutoranda/CAPES)
Patrick Holloway (Doutorando/CAPES)
Stéphane Rodrigues Dias (Doutoranda/CNPq)
Tamiris Machado Gonçalves (Doutoranda/CNPq)
Vanessa Fonseca Barbosa (Doutoranda/CNPq)
Apoio e realização

COMITÊ CIENTÍFICO
Adail Sobral (UCPEL)
Biagio D’Angelo (UnB)
Bruno Deusdará (UERJ)
Del Carmen Daher (UFF)
Diógenes Buenos Aires de Carvalho (UESPI)
Elise Seip Tønnesen (Universitetet i Agder, Noruega)
Fabiane Verardi Burlamaque (UPF)
Fátima Pessoa (UFPA)
Grenissa Stafuzza (UFG-CAC)
Jacqueline Penjon (Université de la Sorbonne Nouvelle, Paris 3)
Lawrence N. Berlin (Northeastern Illinois University, EUA)
Luciane de Paula (UNESP-Assis)
Maria Cleci Venturini (Unicentro)
Maria da Graça Lisboa Castro Pinto (Universidade do Porto)
Maria José Finatto (UFRGS)
Marilene Weinhardt (UFPR)
Marília Ferreira (UFPA)
Marília Rodrigues (Unifran)
Mauro Nicola Póvoas (FURG)
Rejane Pivetta de Oliveira (UniRitter)
Rosângela Hammes Rodrigues (UFSC)
Vania Pinheiro Chaves (Universidade de Lisboa)
Vera Lúcia de Albuquerque Sant’Anna (UERJ)
Zilá Bernd (Unilasalle/UFRGS)

COMITÊ CIENTÍFICO – PPGL/PUCRS


Ana Maria Lisboa de Mello
Ana Maria Tramunt Ibaños
Antonio Carlos Hohlfeldt
Augusto Buchweitz
Carlos Alexandre Baumgarten
Carlos Gerbase
Charles Kiefer
Charles Monteiro
Cláudia Regina Brescancini
Cláudio Primo Delanoy
Cristina Becker Lopes Perna
Eneida de Goes Leal
Jorge Campos da Costa
Karina Veronica Molsing
Leci Borges Barbisan
Leda Bisol
Lilian Cristine Hübner
Luiz Antonio de Assis Brasil
Maria da Glória Corrêa di Fanti
Maria Eunice Moreira
Maria Tereza Amodeo
Marie-Hélène Ginette Paret Passos
Noelci Fagundes da Rocha
Norman Roland Madarasz
Paulo Ricardo Kralik Angelini
Pedro Theobald
Regina Kohlrausch
Ricardo Araujo Barberena
Ricardo Timm de Souza
Vera Wannmacher Pereira

PROGRAMAÇÃO GERAL

28 de outubro (quarta-feira)
Manhã:
8h30min-9h30min – Credenciamento
Auditório Térreo do Prédio 32
9h30min-10h – Abertura Oficial
10h-12h - Conferência Inaugural:
“Discurso político antirracista no Brasil”
Teun A. van Dijk (Universitat Pompeu Fabra, Espanha)
Debatedora: Diana Luz Pessoa de Barros (UPM/USP)

Tarde:
13h30min-15h30min
MESA DE EGRESSOS: 45 ANOS DO PPGL
“A sociolinguística variacionista no Brasil: uma proposta que deu certo”
Dermeval da Hora (UFPB)
“A escrita criativa e a universidade”
Luiz Antonio de Assis Brasil (PUCRS)
“O homem nasce na cultura: de uma antropologia da enunciação”
Valdir do Nascimento Flores (UFRGS)
“Minha formação: 44 anos de PPGL”
Vera Teixeira de Aguiar
Moderadora: Rejane Pivetta de Oliveira (UniRitter)
15h30min-16h30min – Lançamento de Livros
16h30min-18h30min - Mesa-Redonda:
EXPRESSÃO DE CONFLITOS: ABORDAGEM DISCURSIVA, LITERÁRIA E FILOSÓFICA
"Positioning the voices of conflict: language manipulation in the Diálogos de Paz"
Lawrence N. Berlin (Northeastern Illinois University, EUA)
"'Eu sofro', é melhor que: ‘Esta paisagem é feia'? A literatura diante do trauma"
Marcio Seligmann-Silva (Unicamp)
“Filosofia e violência”
Ricardo Timm de Souza (PUCRS)
Moderadora: Cristina Perna (PUCRS)

29 de outubro (quinta-feira)
Manhã:
8h-10h15min - Sessões de Comunicação
10h15min–10h30min - Intervalo
10h30min-12h30min – Painel:
DILEMAS INTERCULTURAIS: ALTERIDADE, MEMÓRIA E PRODUÇÃO DE SENTIDOS
“Le choc des cultures: la femme migrante dans le roman contemporain”
Janet Paterson (University of Toronto, Canadá)
“Compartilhar as Américas: ressignificando a Americanidade em uma perspectiva relacional”
Zilá Bernd (Unilasalle/UFRGS)
Debatedor: Patrick Imbert (Université d'Ottawa, Canadá)

Tarde:
14h-16h – Mesa-Redonda:
EXPRESSÃO DE CONFLITOS: IMPASSE, INTOLERÂNCIA E RESISTÊNCIA
“O olhar enviesado do outro: a falência da ajuda externa ao desenvolvimento”
Ricardo Seitenfus (UFSM)
“Estudos discursivos da intolerância na perspectiva semiótica: algumas reflexões sobre discursos políticos e
discursos na internet”
Diana Luz Pessoa de Barros (UPM/USP)
“Resistência ao Islã no poder: o (o)caso da Irmandade Muçulmana”
Silvia Ferabolli (UniRitter)
Moderador: Charles Monteiro (PUCRS)
16h-16h30min – Intervalo
16h30min-18h30min - Mesa-Redonda:
DIÁLOGO EM PERSPECTIVA: TRABALHO, LINGUAGEM E FORMAÇÃO
“Abordagem ergológica e necessidade de interfaces pluridisciplinares”
Yves Schwartz (Aix-Marseille Université, França)
“Práticas discursivas contemporâneas: o que se modifica no trabalho?”
Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva (PUC-SP)
“Educação e ergologia: diálogos pertinentes”
Maria Clara Bueno Fischer (UFRGS/Faced)
Moderadora: Maria da Glória Corrêa di Fanti (PUCRS)
20h – Jantar por adesão

30 de outubro (sexta-feira)
Manhã:
8h-9h45min - Sessões de Comunicação
9h45min–10h - Intervalo
10h-12h – Painel:
DILEMAS INTERCULTURAIS: REPRESENTAÇÃO SOCIAL, DIVERSIDADE E IDENTIDADE
“Las narrativas de resistencia”
Irene Vasilachis de Gialdino (CEIL-CONICET, Argentina)
“Reflexiones sobre los diálogos culturales en el contexto de las perspectivas culturales y a-culturales de la
modernidad”
Patrick Imbert (Université d'Ottawa, Canadá)
Debatedor: Antonio Hohlfeldt (PUCRS)

Tarde:
13h-16h - Sessões de Comunicação
16h10min-16h50min – Conferência: Memória e Linguagem
Jociane de Carvalho Myskiw (PUCRS/InsCer)
Debatedora: Lilian Cristine Hübner (PUCRS)
16h50min-17h30min – Deslocamento para a Feira do Livro
17h30min-19h30min
Painel de Encerramento na Feira do Livro de Porto Alegre
Local: Santander Cultural – Sala Leste
DIÁLOGO EM PERSPECTIVA: A LINGUAGEM NA ARTE E NA VIDA
“A linguagem é a vida da arte e a arte é linguagem da vida”
Adail Sobral (UCPEL)
“Experiência e linguagem”
Milton Hatoum (escritor, São Paulo)
Debatedor: Luiz Antonio de Assis Brasil (PUCRS)

SUMÁRIO
A prática do diálogo 11-18
Maria da Glória di Fanti, Pedro Theobald
Vestígios de cultura em testemunhos dos povos ameríndios 19-32
Adélia Maria Evangelista Azevedo
A ausência que seremos, de Héctor Abad: uma escrita para não esquecer 33-41
Amanda Oliveira
Caracterização acústica das fricativas sibilantes em português brasileiro: uma interface entre a Linguística e a Engenharia 42-48
Ana Paula Correa da Silva Biasibetti
Sentidos em conflito no discurso sobre o massacre de Curitiba 49-57
Antonia Zago, Gabriela da Silva Zago
Linguística e Neurociência em diálogo: o processamento de múltiplas línguas no cérebro 58-67
Bernardo Kolling Limberger
Interpretações do Supremo Tribunal Federal: a atividade responsiva e o ato responsável na decisão sobre o racismo 68-78
Bruna de Carvalho Chaves Peixoto
Relação entre produção discursiva, nível de escolaridade e declínio cognitivo 79-90
Bruna Tessaro, Ellen C. Gerner Siqueira, Fernanda Soares Loureiro, Lilian Cristine Hübner
Seres estranhos: personagens em desencontros em romances de Dulce Maria Cardoso 91-98
Bruno Mazolini de Barros
Literatura: uma performance inaugural 99-106
Camila Alexandrini
História, trauma e literatura: a posição do narrador em Os anéis de saturno, de W. G. Sebald 107-114
Carla Lavorati
Fenomenologia do imaginário e literatura: uma leitura de A desumanização, de Valter Hugo Mãe 115-124
Cássia Gianni de Lima, Regina Kohlrausch
O escopo da violência em Moçambique colonial retratado em Xefina, de Juvenal Bucuane 125-133
Chimica Francisco
Discursos de instituições financeiras: a cenografia e ethos nas manifestações da identidade e da cultura organizacional 134-147
Eliana Davila dos Santos
Benefícios de um inglês jurídico com mais clareza e simplicidade 148-162
Elisa Corrêa dos Santos Townsend, Christiane Heemann
A consciência metalinguística em crianças bilíngues 163-175
Ellen Cristina Gerner Siqueira, Talita dos Santos Gonçalves
Criativo ou padronizado: o fazer literário contemporâneo 176-188
Emir Rossoni
Espaços e formas de presença do outro na ficção de Dalton Trevisan 189-201
Eneida A. Mader
Maciste no inferno: o cinema na obra de Valêncio Xavier 202-208
Fernanda Borges
Produção discursiva na afasia bilíngue: enfoque nos padrões de recuperação das línguas 209-218
Fernanda Schneider
Maus – um roer pós-moderno do Holocausto 219-231
Gabriel Felipe Pautz Munsberg
O conflito e o trauma: memórias de uma realidade dolorosa em K. Relato de uma busca de Bernardo Kucinski 232-238
Gabriela de Oliveira Guedes
A consciência textual no processamento da compreensão leitora: fundamentos teóricos e instrumentos de aplicação 239-251
Gabriela Fontana Abs da Cruz, Gabrielle Perotto de Souza da Rosa, Leandro Lemes do Prado
Paul Auster, entre outros: interfaces interartísticas e convergências 252-262
Gabriela Semensato Ferreira
Bilinguismo na infância através do método Learning Fun 263-269
Gislaine Müller de Castro, Claus Dieter Stobäus
Gestão dos usos de si na atividade laboral: tensões evidenciadas nos discursos em editoriais de um jornal de empresa 270-280
Gislene Feiten Haubrich
Bóris e Dóris: algumas notas sobre o diálogo 281-287
Guilherme Azambuja Castro
Henry Lawson em português: dilemas interculturais em tradução de literatura 288-294
Gustavo Arthur Matte
Reflexões sobre modulação pedagógica no processo ensino/aprendizagem: um estudo de caso 295-308
Gustavo Giusti, Adail Sobral
Ausência da cultura: retratos da Linguística Aplicada brasileira 309-320
Hilário I. Bohn, Luiza Machado da Silva
Livros High Tech: reflexões sobre a nova experiência literária-tecnológica 321-331
Iuli Gerbase
Psique humana como expediente literário na primeira versão de Quincas Borba 332-340
Janaína Tatim
Um diálogo entre literatura e filosofia: a representação do Mal no romance O Morro dos Ventos Uivantes 341-354
João Pedro Rodrigues Santos
A metapragmática em foco: uma proposta de estruturação de protocolo para o estudo da consciência pragmática 355-369
Jonas Rodrigues Saraiva, Patrícia Martins Valente
Valoração do trabalho doméstico não-remunerado: diálogos filosóficos entre Hannah Arendt e Yves Schwartz 370-378
Joseane Laurentino de Brito Lira
Infância roubada nas vozes que se calam: uma leitura do conto de fadas Pele de Asno contrapondo ao miniconto Cicatriz 379-388
Juliane Della Méa, Luana Teixeira Porto
Reverberações épicas no contemporâneo: o diálogo entre Gonçalo Tavares e a epopeia camoniana 389-398
Kim Amaral Bueno
Cuidado! Não rotule! Siga adiante! Uma pedagogia cultural de autoajuda em fan pages do Facebook 399-408
Lauren Escoto Moreira, Angela Dillmann Nunes Bicca
The best of young Brazilian novelists: apoio à internacionalização da literatura brasileira 409-418
Lilia Baranski Feres, Valéria Silveira Brisolara
Efeitos colaterais do progresso: desenraizamento e exclusão social em O livro das impossibilidades, de Luiz Ruffato 419-430
Luciane Figueiredo Pokulat
Linguagem e cognição: a interface do processamento sintático através de um experimento de produção de sentenças do PB 431-445
Mariana Terra Teixeira
Contribuições da teoria dos blocos semânticos para o ensino da escrita acadêmica 446-454
Maristela Schleicher Silveira
Medianeras: Buenos Aires em tempos de globalização 455-459
Michele Neitzke
Alfred Andersch: reflexões sobre o conflito não resolvido entre biografia e obra à luz da estética da recepção 460-466
Milena Kunrath
Desafios na anotação automática morfossintática de corpus de língua falada 467-478
Mônica Rigo Ayres
A pulsão da escrita feminina: ensaio passos para a narrativa autoficcional 479-485
Olívia Scarpari Bressan
A consciência textual em diálogo com o ensino de uma compreensão leitora eficaz 486-494
Patricia de Andrade Neves, Danielle Baretta, Fernanda Schneider
Mães e filhos na Literatura Hispanoamericana: conflitos e (não) diálogos entre gerações 495-505
Pedro Afonso Barth, Rafaelly Andressa Schallemberger
Compreensão do sentido de discursos em tiras com base numa interface entre as concepções dialógica e argumentativa de 506-513
linguagem
Rafael S. Timmermann, Telisa Furlanetto Graeff
Projeto Balbúrdia: Escrita Criativa no espaço de fronteira 514-522
Renata Silveira da Silva, Sandro Martins Costa Mendes
A categoria de pessoa, o testemunho e a (im)possibilidade do diálogo entre culturas 523-536
Renata Trindade Severo
Sobre o que fazemos: diálogo de Bernardo Carvalho com Ramón Nieto sobre o processo de criação ficcional 537-550
Rodrigo Alfonso Figueira
A cultura e o comportamento linguageiro do líder como um discurso da identidade de marca 551-563
Rosana Vaz Silveira, Ernani Cesar de Freitas
A nostalgia do encontro: memória e fragmentação na obra Mamma, son tanto felice, de Luiz Ruffato 564-575
Roseli Bodnar
O estudo do humornonsense: das metarregras de coerência aos blocos semânticos 576-585
Roseméri Lorenz
Compreensão leitora e auditiva na afasia: uma revisão sistemática 586-599
Sabrine Amaral Martins
Diálogo literatura e cinema: o personagem Dorival, de Tabajara Ruas 600-609
Sandro Martins Costa Mendes
Insane Lucy: mental health in Charlotte Brontë’s Villette 610-620
Sophia Celina Diesel
Reasoning via dialogue: an illustrative analysis of deliberation 621-632
Stéphane Dias, Jane Rita Caetano da Silveira
Charges polêmicas: vozes sociais em tensão 633-642
Tamiris Machado Gonçalves
O papel da linguagem na fundação da singularidade do ser e da ação: diálogos filosóficos entre M. Bakhtin e H.Arendt 643-649
Thaís de Andrade Lima
Choque de culturas em Quarenta Dias 650-657
Tiago Dantas Germano, Laila Ribeiro Silva
A atividade de trabalho do revisor de textos: um fazer dialógico 658-673
Vanessa Fonseca Barbosa
História, Teoria e Ficção e a impossibilidade de narrar a história na obra Uma Viagem à Índia, de Gonçalo M. Tavares 674-683
Vanessa Hack Gatteli
Livro eletrônico em duplo formato: diálogo entre Psicolinguística, Pragmática, Educação e Computação 684-695
Vera Wannmacher Pereira, Thaís Vargas dos Santos
O sujeito pós-moderno e a impossibilidade da comunicação: uma análise de Reprodução, de Bernardo Carvalho 696-702
Virgínea Novack Santos da Rocha
A vida como ela é, segundo O olhar de Silviano Santiago 703-713
Wilson Ferreira Barbosa
Anais do DUO VII - 2016
Dialogue Under Occupation
Porto Alegre, RS, outubro de 2015
Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL)
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

A PRÁTICA DO DIÁLOGO

Maria da Glória Corrêa di Fanti1


Pedro Theobald2

Para comemorar os 45 anos de atividade, o Programa de Pós-Graduação em


Letras (PPGL) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)
acolheu, entre os dias 28 e 30 de outubro de 2015, o DUO VII, Dialogue Under Occupation,
evento internacional, interdisciplinar e itinerante.
O Dialogue Under Occupation (DUO) teve sua origem em um Grupo de Pesquisa,
composto por pesquisadores de universidades ocidentais, médio-orientais e orientais.
A proposta do evento, de modo geral, tem sido discutir com a comunidade acadêmica
dois conceitos-chave: diálogo e ocupação. A sede de referência do DUO é
a Northeastern Illinois University, tendo em vista que lá se encontra o fundador do
Grupo, o professor Lawrence N. Berlin.
O primeiro DUO aconteceu em 2006, em Chicago, na própria Northeastern
Illinois University. Em 2007, o evento foi para Abu Dis, em Jerusalém Oriental. Em
2009, o congresso foi sediado na Pontificia Universidad Javeriana, em Bogotá
(Colômbia). Em 2010, o evento retornou aos Estados Unidos, sendo realizado em
Washington DC, com a cooperação da American University e da George Mason
University. Em 2011, o congresso foi para a parte oriental do globo, sendo
sediado pela Okinawa International University, em Okinawa (Japão). Em 2012, o
encontro aconteceu no Oriente Médio, sendo acolhido pela Lebanese American
University, em Beirute (Líbano).
Em 2015, em sua sétima edição, o evento se propôs a reunir especialistas do
Brasil e do exterior para refletirem sobre estudos relativos ao diálogo em diferentes
configurações, delineadas a partir de três grandes eixos temáticos: Diálogo em
Perspectiva, Dilemas Interculturais e Expressão de Conflitos. Além de concentrar-se
nas especificidades do evento em sua origem, foram consideradas particularidades do
PPGL/PUCRS, que sediou o DUO VII. Tendo em vista as áreas de concentração do
Programa – Linguística, Teoria da Literatura e Escrita Criativa – e as interfaces com
diferentes campos do conhecimento, como Filosofia, Sociologia, Comunicação,
Educação, Psicologia etc., o DUO VII voltou-se, a partir de variados enfoques, a

1
Doutora pela PUC/SP, professora da PUCRS. E-mail: gloria.difanti@pucrs.br
2
Doutor pela UFRGS, professor da PUCRS. E-mail: perth@pucrs.br

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aprofundar teorias e metodologias que pudessem iluminar estudos sobre os eixos


temáticos focalizados no evento.
No eixo Diálogo em Perspectiva, foram contempladas pesquisas que tratam do
tema diálogo em diferentes abordagens e/ou colocam em diálogo diferentes objetos
de investigação. Desse modo, diferentes pesquisas referentes ao diálogo, advindas da
produção acadêmica das variadas áreas do conhecimento, foram bem-vindas. Dentre
elas, destacamos: identidade, alteridade, interação entre discursos, interação entre
sujeitos sócio-históricos, interação face a face, diálogos intersemióticos, interfaces
entre áreas.
O eixo Dilemas Interculturais propôs discussões a respeito do panorama
complexo de problemas enfrentados no mundo intercultural contemporâneo,
aprofundando o debate sobre aspectos discursivos, culturais e sociais envolvidos nesse
panorama de conflitos. Nesse eixo temático, foram contempladas considerações
teóricas e práticas acerca dos diferentes universos simbólicos e discursivos que
envolvem os tensos contatos entre culturas, levando-se em conta os choques de
valores sociais, ideológicos e políticos que se impõem. Na agenda dos estudos sobre
dilemas interculturais, foram incluídas investigações que versam sobre os seguintes
temas: multiculturalismo e transculturalismo, multilinguismo, hibridismo cultural,
choque de culturas, gerações, crenças e valores, relativismo e universalismo cultural,
orientalismo e ocidentalismo, apelos midiáticos, materialismo e humanismo,
modernidade e pós-modernidade, individualismo e coletividade, dentre outros.
Em Expressão de Conflitos, foram enfocados possíveis caminhos teóricos e
práticos no sentido de problematizar diferentes situações de interação social de
confronto, desacordo ou frustração, presentes em estudos de campos diversos.
Partindo da ideia de que o conflito abre espaços para variadas investigações e
possibilita o diálogo nas suas diversas dimensões e expressões de linguagem, foram
contempladas, nesse eixo temático, pesquisas sobre distintos contextos culturais de
convivência em que haja conflitos, impasses e relações tensas, em diferentes esferas
de atividade humana, tais como: laboral, artística, educativa, política, midiática, clínica,
hospitalar, ambiental, econômica e assim por diante.
Considerando o exposto, o principal objetivo do DUO VII foi criar um espaço
privilegiado de discussão entre estudiosos e pesquisadores brasileiros e estrangeiros
das áreas de Linguística, Literatura, Escrita Criativa e áreas afins para intercâmbio de
experiências sobre estudos atuais relativos ao diálogo, contemplando os três eixos
temáticos: Diálogo em Perspectiva, Dilemas Interculturais e Expressão de Conflitos.
Também buscou promover o encontro entre pesquisadores seniores e juniores para o
desenvolvimento de trabalhos e estudos nas áreas focalizadas; divulgar pesquisas

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realizadas no País e no exterior sobre os temas do evento; e estimular o interesse por


questões que envolvem a relação entre diálogo e ocupação.
Contando com o apoio de CNPq, CAPES, FAPERGS e PUCRS, o evento reuniu
convidados e participantes do Brasil e exterior e foi organizado em conferências,
painéis, mesas-redondas e sessões de comunicação (individual e coordenada). Quanto
às conferências, foram proferidas duas conferências individuais, seguidas de debate. A
conferência inaugural, “Discurso político anti-racista no Brasil”, esteve a cargo de Teun
A. van Dijk, da Universitat Pompeu Fabra, de Barcelona (Espanha), e teve como
debatedora Diana Luz Pessoa de Barros (UPM/USP). A outra conferência, “Memória e
linguagem”, foi proferida por Jociane de Carvalho Myskiw (PUCRS/InsCer) e teve como
debatedora Lilian Cristine Hübner (PUCRS).
Os três painéis que integraram a programação do DUO VII foram organizados
com duas conferências, seguidas de debate. O painel “Dilemas interculturais:
alteridade, memória e produção de sentidos” teve como conferencistas Janet Paterson
(University of Toronto, Canadá) e Zilá Bernd (Unilasalle/UFRGS), e como debatedor
Patrick Imbert (Université d'Ottawa, Canadá). Outro painel, “Dilemas interculturais:
representação social, diversidade e identidade”, contou com as conferências de Irene
Vasilachis de Gialdino (CEIL-CONICET, Argentina) e Patrick Imbert (Université d'Ottawa,
Canadá) e o debate de Antonio Hohlfeldt (PUCRS). O painel de encerramento, que
ocorreu na 61ª Feira do Livro de Porto Alegre, teve a participação de Adail Sobral
(UCPEL) e Milton Hatoum (escritor, São Paulo), com a moderação de Luiz Antonio de
Assis Brasil (PUCRS).
Foram organizadas quatro mesas-redondas. A primeira delas, “Mesa de
egressos: 45 anos do PPGL”, teve a participação de Dermeval da Hora (UFPB), Luiz
Antonio de Assis Brasil (PUCRS), Valdir do Nascimento Flores (UFRGS) e Vera Teixeira de
Aguiar, com moderação de Rejane Pivetta de Oliveira (UniRitter). Da segunda mesa,
“Expressão de conflitos: abordagem discursiva, literária e filosófica”, participaram como
palestrantes Lawrence N. Berlin (Northeastern Illinois University, EUA), Marcio
Seligmann-Silva (Unicamp) e Ricardo Timm de Souza (PUCRS), tendo como moderadora
Cristina Perna (PUCRS). A mesa “Expressão de conflitos: impasse, intolerância e
resistência” teve a participação de Ricardo Seitenfus (UFSM), Diana Luz Pessoa de
Barros (UPM/USP) e Silvia Ferabolli (UniRitter), com a moderação de Charles Monteiro
(PUCRS). A quarta mesa, “Diálogo em perspectiva: trabalho, linguagem e formação”,
contou com as palestras de Yves Schwartz (Aix-Marseille Université, França), Maria
Cecília Pérez de Souza-e-Silva (PUC-SP) e Maria Clara Bueno Fischer (UFRGS/FACED),
com a moderação de Maria da Glória Corrêa di Fanti (PUCRS).
As sessões de comunicação foram organizadas a partir dos trabalhos aceitos

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Dialogue Under Occupation
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Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

pela Comissão Científica do DUO VII, atendendo às orientações de participação no


evento. Participaram pesquisadores de diferentes níveis de formação (mestrandos,
mestres, doutorandos e doutores) de vários Estados do Brasil e do exterior, distribuídos
em 27 sessões de comunicações individuais e 17 de comunicações coordenadas.
Receber a sétima edição do DUO no ano em que o PPGL completou 45 anos de
atividade e a Faculdade de Letras, 75 anos, foi um marco para a história do PPGL, não
só pela oportunidade de colocar em debate temas atuais, que tocam grande parte das
pesquisas em Ciências Humanas e Sociais, mas também por proporcionar o encontro
de diferentes pesquisadores, dentre eles os egressos do Programa, engajados no tema
maior do evento: o diálogo. Em seu histórico, consta que o Programa foi autorizado em
1969 e começou as atividades em 1970, com mestrado em Linguística Aplicada (hoje
Linguística) e, em 1972, em Teoria Literária (hoje Teoria da Literatura). A partir de 1978,
introduziu o doutorado nas duas áreas. Em 2012, após comprovada experiência, inovou
ao criar uma nova área – Escrita Criativa – com origem na Teoria da Literatura. Desde
então as áreas se organizam da seguinte forma: a Linguística com duas linhas de
pesquisa (Teoria e Análise Linguística e Teorias e Uso da Linguagem), a Teoria da
Literatura com duas linhas (Teorias Críticas da Literatura e Literatura, História e
Memória) e a Escrita Criativa com uma linha (Leitura, Criação e Sistema Literário). As
áreas têm em comum uma linha de pesquisa: Fundamentos Linguístico-Literários da
Linguagem.3
O PPGL, tendo formado 988 mestres e 434 doutores até dezembro de 2015,
passou por variadas etapas até chegar ao momento atual. Na fase inicial, entre 1970 e
1977, houve uma integração mais regional, com ênfase no acolhimento de alunos de
diferentes Instituições do Ensino Superior do Rio Grande do Sul, ainda que os
professores viessem de outros espaços culturais. Foi nessa fase que a Revista Letras de
Hoje (criada em 1967) vinculou-se ao PPGL. Na fase seguinte, de 1978 a 2004, houve
uma expansão do Programa, notadamente com a contratação de professores
estrangeiros e o acolhimento de alunos das cinco regiões brasileiras, o que contribuiu
para o crescimento da pós-graduação nacional. Em 1985, a Oficina de Criação Literária,
ministrada pelo escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, veio a público para incentivar a
produção artística de novos autores.
Na fase atual, iniciada em 2005, tendo como marco a gestão do Reitor Joaquim
Clotet, o PPGL registrou um avanço na produção de conhecimento, tanto em nível
docente quanto discente, notadamente na produção científica de qualidade, na

3
Para maiores informações, consulte o site do Programa: http://www.pucrs.br/fale/ppgl/
apresentacao/. Acesso em 27 abr. 2016.

Dialogue Under Occupation 14


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qualificação de pós-doutorado e de estágio-sanduíche e na internacionalização. De


2006 a 2011, a área de Teoria da Literatura passou a destinar três vagas de mestrado
para alunos que quisessem elaborar trabalho criativo. O diferencial do trabalho de
conclusão consistia na elaboração de uma criação literária, além de um ensaio sobre o
processo criativo. Em 2011, com 12 mestrados e 1 doutorado concluídos com trabalho
criativo, o PPGL propôs a área de Escrita Criativa, aprovada pela Câmara de Pós-
Graduação, que iniciou em 2012, com disciplinas teóricas de reflexão sobre o processo
criativo. Além da criação literária, a nova área acolhe a produção de documentários,
roteiros de websérie e narrativas híbridas. Com inspiração interdisciplinar, a nova área
credenciou docentes da Comunicação, Filosofia e História da PUCRS.
Com a reestruturação do Programa, foram fortalecidos os intercâmbios com
pesquisadores do Brasil e do exterior; cresceu o número de doutorandos em estágio-
sanduíche no exterior (média de 09 por ano), com apoio do CNPq, CAPES, DAAD e
Fulbright, e o número de pós-doutorados dos docentes no exterior (73% dos
professores têm pós-doutorado), com o apoio do CNPq, CAPES e Fundação Carolina;
intensificaram-se relações internacionais com reciprocidade na realização de eventos,
publicações, intercâmbio de docentes, coorientação e cotutela de teses. Além das
parcerias nacionais com instituições como UFRGS, UFSC, FURG, UFPR, UnB, UFRN,
PUCSP, UERJ, UFF, USP, UFPA, UNISINOS, UPF, UNISC, UCPEL, o PPGL da PUCRS possui
parceria com importantes instituições do exterior, como Universidade de Lisboa,
Université de la Sorbonne Nouvelle – Paris 3, Freie Universität Berlin, Universidade de
Coimbra, University of Ottawa, ITEM – Institut de Textes et Manuscrits Modernes,
Université Michel de Montaigne, Universidad de Barcelona, École des Hautes Études en
Sciences Sociales de Paris, Université d’Aix-Marseille, Université de Montréal, City
University of New York (Cuny), Universidade do Porto, Vrije Universiteit Amsterdam,
Université de La Sorbonne – Paris 4, Universidade de Santiago do Chile, Brock
University e University of Toronto.
Ao longo dos anos, o PPGL ampliou e fortaleceu, dentre outras, as parcerias
nacionais e internacionais, a liderança em grupos de pesquisa certificados pelo CNPq,
as pesquisas desenvolvidas, a participação nos Grupos de Trabalho na ANPOLL, a
organização de eventos e a participação em eventos importantes da área, as
orientações de mestrado, doutorado e pós-doutorado, e a publicação qualificada em
livros e revistas. Na última avaliação trienal da CAPES, algumas considerações apontam
para o reconhecimento do Programa em termos de relevância “na área da pós-
graduação no país, formando professores e pesquisadores que atuam em outras
instituições”. A avaliação também destaca:

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[…] Sua inserção [...] local, regional e nacional, estendendo-se para o


cenário internacional, por meio de intercâmbios, convênios,
pesquisas conjuntas, co-tutelas, entre outros. O trabalho em equipe
favorece a produção de relevo que pode ser verificada na formação
do acervo de escritores, nos livros e periódicos de responsabilidade
dos docentes e dos discentes. Trata-se assim de um programa
consolidado, com experiência de liderança e contribuição efetiva para
a construção do conhecimento no país, com impacto nos diversos
níveis de ensino […].4

O ano de 2015, duplamente histórico, para o PPGL e a Faculdade de Letras,


constituiu, pois, uma ocasião mais do que justificada para, em associação com outras
instituições, realizar a celebração de um grande evento. Reconhecendo a importância
do DUO VII para o fortalecimento de parcerias de pesquisa entre os participantes do
evento e para a divulgação dos trabalhos desenvolvidos em distintos centros de
investigação, foram propostas três publicações. Foi organizado um número especial
(suplementar) da Revista Letras de Hoje, publicado em 2015, com o tema “PPGL em
Diálogo – 45 anos”. Será publicado, em 2016, um número especial da Revista
Letrônica, cuja temática é “Diálogos”, contendo artigos de participantes do evento. Por
fim, e não menos importante, vêm a público os Anais do evento, contendo os textos
completos dos trabalhos apresentados no DUO VII.
Tendo em vista esse cenário, temos muito a agradecer àqueles que
colaboraram para a realização do evento. Sem esgotar os colaboradores que merecem
reconhecimento, em nome da comissão organizadora do DUO VII (professores Ana
Maria Lisboa de Mello, Lawrence N. Berlin, Lilian Cristine Hübner, Maria da Glória
Corrêa di Fanti, Marie-Hélène Paret Passos, Paulo Ricardo Kralik Angelini e Pedro
Theobald), não podemos deixar de registrar os seguintes agradecimentos:

- aos convidados – brasileiros e estrangeiros – que participaram das


conferências, dos painéis e das mesas-redondas, pelas brilhantes contribuições
durante os três dias do encontro;

4
Sobre a avaliação trienal de 2013 (2010-2012) do PPGL/PUCRS, consultar o site:
http://conteudoweb.capes.gov.br/conteudoweb/ProjetoRelacaoCursosServlet?acao=detalham
entoIes&codigoPrograma=42005019009P1&descricaoGrandeArea=LING%DC%CDSTICA%2C+LE
TRAS+E+ARTES+++++++++++++++++++++++++++++++++&descricaoAreaConhecimento=LING%
DC%CDSTICA Acesso em: 10 out. 2015.

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- ao professor Lawrence N. Berlin, fundador do Dialogue Under Occupation, e à


Northeastern Illinois University, pela oportunidade da parceria na realização da
sétima edição do DUO;
- ao comitê executivo, constituído por doutorandos do PPGL/PUCRS (Bernardo
Kolling Limberger, Kelli da Rosa Ribeiro, Milena Kunrath, Patrick Holloway,
Stéphane Dias, Tamiris Machado Gonçalves, Vanessa Fonseca Barbosa) e pela
doutoranda Cécile Sidery da Université Bordeaux (em cotutela de tese com
dupla titulação), pela qualificada contribuição antes, durante e depois da
realização do evento;
- ao Comitê científico, formado por professores de diversas instituições
brasileiras e estrangeiras, pela importante colaboração na avaliação dos
trabalhos para apresentação e para publicação nos Anais;
- aos órgãos de fomento – CNPq, CAPES e FAPERGS – pelo incentivo financeiro
para a realização do evento; e
- aos setores da PUCRS que apoiaram a realização do DUO VII: Coordenadoria de
Pesquisa Interdisciplinar, Assessoria para Assuntos Internacionais e
Interinstitucionais, Programa de Pós-Graduação em Letras, Faculdade de
Letras, Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários, Pró-Reitoria
Acadêmica e Pró-Reitoria de Pesquisa, Inovação e Desenvolvimento.

Por fim, agradecemos aos participantes do DUO VII, representados pelos


autores que publicam nestes Anais, pela apresentação dos trabalhos, participação dos
debates e presença nas variadas atividades do evento. Foram três dias intensos de
reflexão e discussão, em que foi possível vislumbrar A prática do diálogo, em seus
eixos temáticos: Diálogo em Perspectiva, Dilemas Interculturais e Expressão de
Conflitos.

Referências

[Avaliação Trienal 2013 do PPGL, CAPES]. Disponível em:


http://conteudoweb.capes.gov.br/conteudoweb/ProjetoRelacaoCursosServlet?acao=d
etalhamentoIes&codigoPrograma=42005019009P1&descricaoGrandeArea=LING%
DC%CDSTICA%2C+LETRAS+E+ARTES+++++++++++++++++++++++++++++++++&desc
ricaoAreaConhecimento=LING%DC%CDSTICA. Acesso em 10 out. 2015.
LETRAS DE HOJE, PPGL em Diálogo – 45 Anos, Porto Alegre, EDIPUCRS, v.50, n. esp.
(supl.), dez., 2015. Disponível em:
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/issue/view/1018

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LETRÔNICA, Diálogos, Porto Alegre, EDIPUCRS, 2016 (no prelo). Disponível em:
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/letronica
[Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS]. Disponível em:
http://www.pucrs.br/fale/ppgl/apresentacao/ Acesso em 27 abr. 2016.

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VESTÍGIOS DE CULTURA EM TESTEMUNHOS DOS POVOS AMERÍNDIOS

Adélia Maria Evangelista Azevedo1

A opção pela Linguística de Benveniste e as aproximações com a Antropologia: em


busca de vestígios

No primeiro dia de aula chegou um professor chamado Mario ele era


estranho para nós tínhamos medo deles mas o cacique Juarez sabia
falar muito bem a língua portuguesa então ele nos explicou que o
professor iria nos ensinar a falar outras língua, ele nos ensinou a
sermos educados e como falara o português corretamente. (RED 050)

[...] mas o que ela [criança] aprende, na verdade, não é o exercício de


uma faculdade “natural”, é o mundo do homem. (BENVENISTE, 2006,
p. 20-21)

Apresentamos duas epígrafes que se implicam em torno da reflexão dos


“Vestígios2 de cultura em testemunhos3 dos povos ameríndios”. A primeira é
considerada por nós, no bojo da análise enunciativa, um testemunho que foi retirado
da produção textual RED4 050. A segunda, diz respeito ao princípio epistemológico de

1
Doutora em Letras pelo PPGL – UFRGS. Docente efetiva da Universidade Estadual de Mato Grosso do
Sul. E-mail: adeliaevan@hotmail.com
2
O termo vestígio é utilizado por Benveniste, no estudo de 1956, por ocasião da reflexão do
procedimento metodológico do psicanalista quando da escuta do testemunho do paciente pelo analista.
Aqui, vestígio segue o direcionamento linguístico-enunciativo visto que interpreta o dado como
acontecimento empírico no e pelo discurso, sem o qual não há dimensão constitutiva nem para o
trabalho investigativo do analista, nem mesmo para a realidade do testemunho do sujeito.
3
O conceito de testemunho(s) é compreendido a partir do princípio enunciativo de Émile Benveniste,
mais propriamente, em parte do trabalho de 1970, O aparelho formal da Enunciação visto que primeiro
o termo é tomado pela realização individual de língua pelo sujeito. O segundo direcionamento para o
termo segue interpretações do filósofo italiano Giorgio Agamben (2008), com dois outros
desdobramentos: o primeiro no campo da subjetivação enquanto ato do acontecimento da palavra no
discurso. O segundo tem compreensão na dimensão filosófica de dessubjetivação enquanto
esvaziamento do indivíduo real “eu” para constituição do “eu” que se dá no discurso. Em síntese, o
testemunho é o ato do discurso que pressupõe a passagem de locutor a sujeito pela apropriação da
língua no discurso.
4
A sigla compreende o uso da palavra “redação” e faz parte do corpus de pesquisa disponibilizado pela
Comissão Permanente de Seleção – COPERSE. O material coletado deu origem aos dados que compõem
as análises e discussões na tese de doutorado: A experiência na e pela língua(gem) em testemunhos de

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Émile Benveniste, o qual elucida a respeito da apropriação da língua como sendo a


passagem do sujeito ao mundo do homem.
As pistas iniciais têm por objetivo apresentar ao leitor o nosso interesse pelo
ato de verbalização, no caso a enunciação escrita em língua portuguesa, produzida por
indígenas. Percorremos leituras epistemológicas de Émile Benveniste com diálogos
herdeiros desses princípios enunciativos em Laplantine (2013), Teixeira (2012), Flores
(2013), a Filosofia com Agamben (2005; 2006) e a Antropologia com Castro (2011) e
demais linguistas. Eis que tais escolhas teóricas revelam parte do percurso
metodológico, no caso, nosso batismo, na Teoria da Enunciação, quando da seleção
dos textos do linguista sírio, sob a orientação de Flores (2008; 2012) durante o
doutorado no PPG - Letras∕UFRGS, na linha de pesquisa da Teoria do Texto e do
Discurso.
Além dessa orientação, incluímos a experiência de linguagem de mais de vinte
anos com a leitura dos textos produzidos por índios da etnia Terena, de MS; e da
vivência no processo de formação de professores índios e não-índios, no Curso de
Letras da UEMS. São trilhas que se encontram, em prol dos sentidos e na busca de
vestígios de cultura, em testemunhos produzidos pelos povos ameríndios. Em síntese,
desejamos, continuamente, conhecer mais sobre questões enunciativas de sujeitos
que se apropriam da língua viva na sociedade.
Para essa situação de comunicação, elaboramos questionamentos em torno da
temática escolhida: de que forma os simbolismos dos povos ameríndios manifestam-se
em vestígios nos testemunhos escritos, em língua portuguesa, durante o processo
interlocutivo da Prova de Vestibular para Estudantes Indígenas da UFRGS∕2012? Em
busca de respostas ao questionamento, organizamos a presente reflexão em itens que
se dispõem em torno das relações entre a Linguística e as demais áreas das ciências
humanas que se voltam ao estudo de questões que envolvem língua(gem), homem e
cultura. Incluímos nessa discussão as análises dos vestígios no e pelo discurso
produzido pelo sujeito, com vistas às leituras dos sentidos na enunciação escrita dos
povos ameríndios e tecemos algumas considerações finais a respeito da temática.
Antecipamos que a enunciação é o ato de realização da língua em discurso; ela é
responsável pela singularidade de uso da língua e de relatos das experiências de
linguagem pelo sujeito na cultura.

povos ameríndios: a instauração de lugares enunciativos. A pesquisa é de nossa autoria e foi defendida
em 2014, no PPGL∕UFRGS, na área de Teorias do Texto e do Discurso, por meio do Programa Dinter
Letras – Novas Fronteiras, convênio celebrado entre a UFRGS e a UEMS, com reconhecimento da CAPES.

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A Linguística e os diálogos possíveis com a Filosofia e a Antropologia para a


compreensão simbólica dos povos ameríndios

Consideramos, aqui, duas entradas; a primeira está no percurso de leitura


realizada pelas escolhas de leituras centradas em estudos retirados da obra Problemas
de Linguística Geral – PLG, volumes I e II, e das reflexões filosóficas de Agamben (2005;
2006) ao utilizarmos da palavra testemunho. Com Castro (2011), recuperamos as
interpretações antropológicas a respeito do perspectivismo dos povos ameríndios, por
causa da visão simbólica e distinta dos indígenas. Também passamos pelo estudo da
categoria de pessoa (eu-tu) e não-pessoa, a terceira, conforme os estudos de
Benveniste, e por diálogos com as demais áreas do conhecimento humano.
Em Castro (2011, p. 351), encontramos o conceito de perpectivismo dos povos
ameríndios que consiste na visão distinta em ver os seres que habitam o mundo. Essa
visão compreende o homem, o animal e, até mesmo, o espiritual. Desses três, o único
que ainda conserva o traço de humanidade é o homem, visto que ainda não evoluiu
totalmente em relação aos demais. Por isso, nem todos os homens têm poderes
suficientes para a metamorfose, ou seja, usam “roupas” para dialogarem com os
diferentes seres que transitam entre lugares.
O centro do modo de pensar dos povos ameríndios está na personitude, ou
perspectividade, que se relaciona à questão de ocupar um ponto de vista com o
mesmo corpo, fazendo uso da metamorfose. A diferença é que os animais, ou mesmo
os espíritos, são gente; por isso, eles se vêem nas pessoas. Essa distinção está no fato
de eles dialogarem com pessoas para enganá-las ou para conduzi-las para mundos
distintos. Para isso, usam roupas ou transformam-se em pessoas. No entanto, há,
entre os homens, alguns que herdam esse dom ou a capacidade de usar “roupas” ou
“peles” que permitem transitarem entre mundos com a missão de recuperar o que
está perdido. No caso do simbolismo dos povos ameríndios, isso se personifica na
figura do xamã ou pajé que usa disfarces com a intenção de ocupar lugares, uma vez
que só alguns têm o poder de dialogar entre mundos distintos.
Aqui, acrescentamos a analogia do sujeito bilíngue nas comunidades indígenas
ou mesmo a figura do professor indígena, ou do líder da comunidade, ou de qualquer
outro sujeito que viva experiências de linguagem com capacidades de se transmutar
entre mundos por meio do diálogo e da apropriação de língua(s). Para isso, fazem uso
da metamorfose. Assim, usam “peles” ou, ainda, línguas para assumirem diferentes
pontos de vistas e, ainda, voltarem ao que eram antes. O sujeito bilíngue é o que
transita entre dois mundos, a sociedade indígena e a sociedade não-indígena,
dominando línguas e vivendo experiências; por isso, dá testemunho de si e daqueles

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que não podem falar. Também auxiliam, no processo de comunicação, as demais


testemunhas que não falam a língua portuguesa. As inter-relações entre as ciências, as
Teorias da Enunciação e a Antropologia são fundamentais para se conhecer mais a
respeito da enunciação escrita, em língua portuguesa, a partir da categoria
pronominal. As aproximações são concedidas por Benveniste (1995; 2006), que é um
dos linguistas que realiza diálogos com áreas inéditas para a Linguística, em inúmeros
trabalhos publicados nas décadas de 60 e 70 na Europa, para públicos distintos.
Além dessas, inserimos aqui as reflexões de Laplantine5 (2013), uma vez que a
linguista francesa realiza um levantamento de títulos e obras lidas e citadas por
Benveniste, na Etnologia e na Antropologia, na Europa e na América, nos estudos
publicados no PLG tomo I e II. Além disso, o linguista sírio, naturalizado francês,
elabora problematizações sobre língua e linguagem, com vistas a ampliar fundamentos
epistemológicos em torno da Ciência Geral do Homem.
Guiamo-nos, também, pelas reflexões de Teixeira (2012), visto que foi tal
linguista brasileira quem nos apresentou a dimensão do campo enunciativo
redimensionando o alcance dos princípios enunciativos e das férteis discussões nas
Ciências Humanas, sob o viés antropológico da Enunciação. Em Flores (2013),
encontramos direcionamentos a respeito da Teoria da Enunciação e as orientações de
pesquisas e leituras, sob o viés antropológico6 dos estudos benvenistianos, que são
motivadas pela complexidade epistemológica empreendida pelos princípios
enunciativos. Assim, concebemos, a partir de Benveniste (1985∕2006), o ato de
comunicar como algo que é tomado num primeiro momento como acontecimento
único e irrepetível, inscrito na enunciação. Interessamo-nos, também, pela dimensão
trinitária dos princípios enunciativos quando dos processos interlocutivos e das
relações do homem na língua.
Eis que apresentamos a segunda entrada que ocorre pelo discurso. Afinal, é no
e pelo discurso que os processos interlocutivos estabelecidos pelos povos ameríndios
mantêm-se nas relações entre homem e homens ou homens e animais e são
ampliadas porque consideram homens e espíritos, ou outros seres que usam “roupas”

5
Artigo de Chloé Laplantine disponível em: http:∕∕hiphilanggsci.net∕2013∕10∕02∕emile-benveniste-et-les-
langes-amerindiennes-4 (acesso em 10∕02∕2013).
6
Para Flores (2013, p. 190), a vasta produção científica de Benveniste pautada pela tríade epistêmica
favorece diálogos com outras áreas. Isso garante a profundidade teórica e a dimensão antropológica,
porque mantém o diálogo interdisciplinar e a renovação das reflexões. Outros importantes herdeiros,
entre eles Meschonnic (2009), Dessons (2006) e outros, compartilham dessa visão. No Brasil,
importantes teses surgem sob tal discussão antropológica, entre elas Silva (2013), Azevedo (2014) e
outras.

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ou “peles” para transitarem entre mundos distintos assumindo diferentes pontos de


vistas com o mesmo corpo.
Dessa forma, o objetivo desta reflexão é compreender, a partir da leitura de
testemunhos produzidos em língua portuguesa, os simbolismos próprios e específicos
decorrentes do processo interlocutivo da enunciação escrita que emergem da
comunicação especificada proposta da Prova de Redação. O interesse está em
apresentar a singularidade da enunciação escrita nos testemunhos dos sujeitos. A
Teoria da Enunciação em diálogo com a Antropologia permite compreender parte
desses vestígios que estão no e pelo discurso.

Em busca de vestígio no e pelo discurso7

Benveniste (1995), em Observações sobre a função da linguagem na descoberta


freudiana, no PLG I, envereda a questão da interpretação do dado pelo acontecimento
empírico no e pelo discurso, sem o qual não há a dimensão constitutiva nem para o
trabalho investigativo do analista, nem mesmo para o testemunho do paciente.
Recortamos a seguinte passagem do estudo de 1963:

Em primeiro lugar, porque o analista não pode conhecê-lo sem a


ajuda do paciente, que é o único a saber “o que lhe aconteceu”.
Mesmo que o pudesse, não saberia que valor atribuir ao fato.
Suponhamos mesmo que, num universo utópico, o analista possa
reconhecer, em testemunhos objetivos, o vestígio de todos os
acontecimentos que compõem a biografia do paciente: conseguiria
ainda pouca coisa e não, salvo um acidente feliz, o essencial. De fato,
se ele precisa de que o paciente lhe conte tudo – mesmo que se
expresse ao acaso e sem propósito definido – não é para reconhecer
um fato empírico que não haja sido registrado em parte nenhuma a
não ser na memória do paciente: é porque os acontecimentos
empíricos não têm realidade para o analista a não ser no – e pelo –
“discurso” (BENVENISTE, 1995, p. 83). (itálico do autor) – (grifos
nossos)

No estudo de 1956, a passagem de língua ao discurso impõe a presença de


vestígio; esse é tomado por acontecimentos empíricos inscritos no dizer; ou seja,
Benveniste compreende que aquilo que está obscuro ou escondido está na
verbalização de quem fala e nas rupturas produzidas no e pelo discurso individual.
7
O termo discurso nos estudos benvenistianos, no PLG I e II, tem alcances complexos e heterogêneos
próprios das inúmeras teias epistemológicas forjadas a partir de problematizações distintas. Para tal
discussão, sugerimos a leitura do artigo, A noção de discurso na teoria enunciativa de Émile Benveniste,
de Flores & Endruweit (2012).

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Lembramos que o trabalho de compreensão da presença de um determinado termo,


ou palavra, no estudo de Benveniste, no caso, vestígio, exige do leitor muita atenção.
Essa orientação está em Ono (2014, p. 257), quando da leitura dos estudos publicados
e das recentes fontes manuscritas do linguista francês, que “mostra que, para ler e
para entender bem seu texto [estudos de Benveniste], é preciso também tentar
encontrar os vestígios dessas notas por trás de seu texto final, como se faz em um
trabalho de escavação; e isso pode ser feito mesmo na falta do manuscrito do artigo
em questão [...]”. Acreditamos nessa advertência8, por isso, resgatamo-na como algo
muito importante para a compreensão do homem na língua.
Benveniste posiciona-se em torno do pensamento de Lacan, por conta do
método analítico, visto que esse caminho interessa tanto à Linguística quanto à
Psicanálise: “além do simbolismo inerente à linguagem, perceberá um simbolismo
específico que se constituirá, sem o conhecimento do sujeito, tanto a partir do que
omite como a partir do que enuncia.” (BENVENISTE 1995, p. 84) (grifos nossos). Por
pensar assim, o sujeito, no estudo de 1956, é compreendido por meio do discurso,
uma vez que é nele que se tem a ação e construção de todo o simbolismo inerente à
linguagem. Em síntese, é no e pelo discurso que o sujeito revela os acontecimentos
que estão no passado, ocultos, em outros sentidos construídos.
Desejamos considerar para esta reflexão a questão de vestígios em
testemunhos escritos e, por isso, preocupamo-nos com a significação e investigamos
os simbolismos na passagem da língua ao discurso. Além desse direcionamento do
estudo de 1956, escolhemos seguir pelos princípios enunciativos de Benveniste no
artigo O aparelho formal da enunciação, de 1970. É um procedimento teórico natural
incluir aqui o estudo de 1970, porque o estudo contém o ápice da noção e de
princípios fundantes. Sem contar que o trabalho não só se abre para a noção de
enunciação como também inclui a noção de referência, que é concebida como “parte
central da enunciação” (BENVENISTE, 2006). Isso não significa que excluímos os demais
estudos benvenistianos; ao contrário, ligamo-os ao estudo de 1956, tendo esse recorte
de leitura justificativa nas proximidades transversais entre noções de vestígio,
enunciação, discurso e referência.
Para o conceito complexo de enunciação, reportamo-nos à seguinte passagem
do linguista francês:

8
A compreensão de leitura dos estudos de Benveniste proposta por Ono (2014) encanta-nos pela
questão de que é uma prática, na qual o pesquisador∕leitor faz escavações, ou melhor, busca ler nas
profundidades, seguem por vestígios e orienta-se pela compreensão de sentidos. Vemos como
orientação de leitura para os testemunhos dos povos ameríndios.

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A enunciação é este colocar em funcionamento a língua por um ato


individual de utilização. O discurso, dir-se-á, que é produzido cada vez
que se fala, esta manifestação da enunciação, não é simplesmente a
fala? – É preciso ter cuidado com a condição específica da enunciação:
é o ato mesmo de produzir um enunciado, e não o texto do enunciado,
que é o nosso objeto. Este ato é o fato do locutor que mobiliza a língua
por sua conta. A relação do locutor com a língua determina os
caracteres linguísticos da enunciação. Deve-se considerá-la como o
fato do locutor, que toma a língua por instrumento, e nos caracteres
linguísticos que marcam a relação (BENVENISTE, 2006, p. 82) (grifos
nossos).

Enumeramos alguns fundamentos responsáveis pelas noções para enunciação a


partir da passagem acima: 1) “[...] é o colocar em funcionamento a língua [...]”; 2) “[...]
por um ato individual de utilização”; 3) não se confunde com a fala; 4) “[...] ato mesmo
de produzir um enunciado [...]”; 5) “[...] não se confunde com o texto [...]”; 6) “[...] ato
de fato do locutor que mobiliza a língua por sua conta”; 7) “[...] relação do locutor com
a língua determina os caracteres linguísticos da enunciação”. Assim, a rede de fios que
compõe a trama da noção de enunciação é complexa, dada a natureza constitutiva
centrada no ato, na apropriação individual da língua e nas relações empreendidas em
instaurar a presença do locutor por meio do colocar em funcionamento a língua. Esse
colocar tem relações com o emprego da língua enquanto ato único e individual de
utilização da língua, o que remete à subjetividade na linguagem.
Não há outro caminho para compreender a enunciação a não ser pelo ato.
Benveniste repete três vezes, apenas na passagem supracitada, o termo “ato” e em
cada uma delas há alcances constitutivos da própria noção de enunciação: “ato
individual de mobilizar a língua”, “ato mesmo de produzir um enunciado” e “ato de
fato do locutor”. O ato de realização é sempre individual, como o é a capacidade do
locutor em mobilizar a língua por sua conta. Além disso, a enunciação implica “as
situações em que ele se realiza” e “os instrumentos de sua realização.” (BENVENISTE,
2006, p. 83). Dessa forma, o ato, a situação em que se ela realiza e os instrumentos são
princípios essenciais para o linguista quando se volta à enunciação, seja ela falada ou
escrita.
Encontramos em Barthes (1984, p.151) o reconhecimento do teor dado ao
conceito de enunciação. O crítico considera a conceituação do termo como sendo um
trabalho de vanguarda de Benveniste, visto que o linguista francês apresenta à
academia a ciência da fala. O centro está em apresentar a enunciação como “o ato
individual pelo qual se utiliza da língua introduz em primeiro lugar o locutor como
parâmetro nas condições necessárias da enunciação”. No Dicionário de Linguística da

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Enunciação (FLORES et al., 2009, p. 197), o conceito para o termo referência volta-se à
“significação singular e irrepetível da língua cuja interpretação realiza-se a cada
instância de discurso contendo um locutor”. Essa noção é oriunda da característica do
uso do pronome “eu”, palavra que por excelência “expressa a fala instantânea e
efêmera do locutor.” Significa, assim, a própria enunciação.
Em Benveniste, o termo referência abrange muitas interpretações. Nesse
sentido, reconhecemos, novamente, o importante trabalho de Aresi (2012) ao realizar
todo um levantamento de variação epistemológica para o termo referência, nos
diferentes trabalhos publicados por Benveniste, no PLG I e II. Como contribuição à
ampliação do termo referência, acrescentamos, aqui, o interessante trabalho, A frase
nominal, de 1950, publicado para o Bulletin de la Société de Linguistique de Paris, XLVI.
A justificativa está em constatarmos que o termo nasce de discussões empreendidas
pelo experiente linguista A. Meillet, e pela necessidade em rediscutir o tema da frase
nominal no indo-europeu pelo caminho das línguas e da sintaxe quando os linguistas o
faziam pela morfologia, Benveniste surpreende a todos com o estudo de 1950
seguindo por outro percurso, e mesmo, projetando para um leque de outros caminhos
a serem problematizados pela Linguística.
Assim, entendemos que o termo referência é discutido por longos anos e sobre
diferentes ângulos até ser compreendido como parte do processo de simbolização e
de significação que se dá no e pelo uso que o locutor faz da língua(gem). A nossa
compreensão de referência é construída quando da passagem de locutor a sujeito, por
meio de experiências descritas, no interior da prática social, ou melhor, em
testemunhos de experiência de língua(gem), no sentido de projeção do sentido que
está na enunciação. Reportamo-nos à passagem do trabalho de Benveniste Níveis da
análise linguística, de 1964, em que o linguista francês conceitua a frase e com ela a
questão do sentido e da referência:

A frase é a unidade, na medida em que é um segmento de discurso, e


não na medida em que poderia ser distintiva com relação a outras
unidades do mesmo nível – o que ela não é, como vimos. É porém,
uma unidade completa, que traz ao mesmo tempo sentido e
referência: sentido porque é enformada de significação, e referência
porque se refere a uma determinada situação, sem a qual a
comunicação como tal não se opera, sendo inteligível o “sentido”
mas permanecendo desconhecida a “referência” (BENVENISTE, 1995,
p. 140).

Na frase, a unidade, ou segmento do discurso, não é mais compreendida pela


relação distintiva, porque em todos os níveis (fonético, morfológico, sintático e

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semântico) há a questão do sentido e da referência. Benveniste (1964) compreende


sentido como enformada de significação e, ao mesmo tempo, de referência porque se
relaciona diretamente à situação, sem a qual a comunicação não opera. Os problemas
linguísticos devem ser estudados por meio das relações inter-humanas com vistas a
compreender os processos de subjetividade na linguagem. Interessamo-nos pela
questão que transcende o mero estudo dos pronomes como categorias verbais, pois
elas passam a designar a (inter)subjetividade na língua(gem), fato importante para os
vestígios de cultura em testemunhos dos povos ameríndios.

Leituras possíveis de vestígios em testemunhos dos povos ameríndios

A entrada do analista no discurso tem um pouco desse trabalho de ouvir, ou


seja, de escutar as oralidades e as significâncias remontadas nos testemunhos dos
povos ameríndios, com orientações de leituras epistemológicas e de vivências. A
sensibilidade adquirida pela vivência e pela dedicação aos princípios enunciativos
apresentados à academia por Benveniste, exceção francesa, é quem nos ensina a
respeito das problemáticas linguísticas e as formas de entrada no discurso pelo
caminho do sujeito. Antes, apresentamos as relações interlocutivas instauradas no
discurso.
Orientamo-nos em princípios enunciativos de Benveniste (1995) e nas leituras
de Castro (2011) para a leitura de testemunhos recortados da RED 050, como segue:

B) No primeiro dia de aula chegou um professor chamado Mario ele


era estranho para nós tinhamos medo dele mas o cacique Juarez
sabia falar muito bem a lingua portuguesa então ele nos explicou que
o professor iria nos ensinar a falar outras lingua, ele nos ensinou a
sermos educados e como falar o português corretamente.
Digamos que o português era fascinante para nós principalmente
para mim, porque eu não queria estuda e muito menos falar outra
língua. (RED 050)

Lemos os testemunhos, nos quais o sujeito mobiliza a 3ª pessoa do singular e


depois a 1ª p.s. “eu”. Isso se dá por vestígios oriundos dos processos de interlocução
entre quem fala e quem ouve, quanto dos simbolismos subjetivos do “eu” para a
cultura (BENVENISTE, 1995, p.83). O direcionamento dado pelo linguista francês está
no fato de que na alocução o “eu” fala de si por meio da linguagem. Cumpre, assim, na
palavra a historização, seja essa “incompleta e falsa”.
O importante é que o vestígio acontece por conta da regra, quase geral, de que
o processo de interlocução para os povos ameríndios, entre seres é, na maioria das

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vezes, perigoso, ou seja, é interpretado como algo que inspire perigo sentimentos de
insegurança, ou mesmo, dúvidas em relação à representação do outro que fala ao
“eu”. Em B, a terceira pessoa do singular “ele”, professor, é simbolizado pela relação
de medo e desconfiança: “[...] chegou um professor chamado Mario ele era estranho
para nós tínhamos medo [...]”. O diálogo é marcado por desconfianças. Castro (2011,
p. 397) é quem descreve a respeito desse perigo latente instaurado pelas aparências e,
elas são mais comuns do que se imagina, principalmente, entre humanos. Dessa
forma, acreditamos que as escolhas realizadas pelo sujeito por meio da apropriação da
língua: “nós tinhamos medo dele” – primeira pessoa do plural, indique a presença
marcante do “eu” que amplia pela junção de objetos, “eu+não-eu (eles∕não subjetivo).
Reafirmando por meio da língua o medo das relações interlocutivas como algo
recorrente na alocução.
A reversibilidade entre as pessoas no simbolismo é sempre motivo de grave
desconfiança para os povos ameríndios. Na maioria das vezes, é preciso convocar a
presença do “ele”, não-pessoa do discurso, ou a pessoa presentificada pela relação de
poder. O “ele”, na cultura dos povos ameríndios, é ocupado pelo papel do xamã, ou
outra figura detém poderes capazes de dialogar com seres oriundos de diferentes
lugares. Este é quem salva o “eu” enfeitiçado, porque é o único que tem o
conhecimento necessário para transitar entre mundos distintos fazendo acordos e
resgatando o “eu”, enfeitiçado pelo “tu”, por meio do uso da palavra. Esse vestígio,
inscrito na capacidade de simbolizar pela língua, é recuperado no testemunho das
experiências de língua(gem) em B.
Na escola, por exemplo, quem cumpre o papel de mediador entre o aluno e o
professor, em alguns momentos, é o cacique de quem se tem a seguinte referência:
“[...] mas o cacique Juarez sabia falar muito bem a lingua portuguesa então ele nos
explicou [falou na língua materna sobre a importância do professor e do ensino de L2,
língua portuguesa] que o professor iria nos ensinar a falar outras línguas”.
A ausência re-presentada para a terceira pessoa “ele”∕cacique é fundamental
para amenizar a situação de desconfiança entre relação “eu” aluno e o “tu” (professor
não-indígena) na enunciação falada. O cacique, a exemplo, do xamã, no testemunho
tem poderes, porque domina a língua materna (L1) e a língua portuguesa (L2). Por isso,
o “ele”, 3ª pessoa do singular, no testemunho, é quem colabora com o coletivo
quando salva em situações de perigo, porque transita entre dois mundos, salvando, ou
resgatando ao fazer uso de língua(s). A língua, nesse caso, é mais do que instrumento é
forma de significação no processo de interlocução, detém os simbolismos próprios do
sujeito na cultura.

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Outras realidades são referenciadas pelo sujeito para o professor, 3ª p.s., elas
estão relacionadas às realidades da prática do professor em sala de aula: “bons
modos” e a “[falar] o português corretamente”, isso denuncia o fato de que a
aprendizagem em sala de aula tem um peso maior em regras e normas da aquisição do
semiótico da enunciação escrita da língua. Para o locutor, a aquisição da língua
portuguesa, oportuniza revelar o simbolismo que é constituído de vivências
historicizadas entre o locutor e o alocutário, em dois momentos, a sala de aula e o
ambiente externo, fora da sala de aula, por conta do ato de enunciar, em sociedade,
de modo particular, inclui a passagem da fala a escrita.
A alocução é intermediada pela presença da 3ª p.s. “ele”, em casos, especiais,
alguém que possa transitar entre dois mundos, no testemunho B1, o cacique. Como
consequência, o “eu” está em alerta aos processos de interlocução com o “tu”,
principalmente, quando do uso da língua portuguesa, no caso, porque ela é a “outra
língua”.
Na enunciação, tem-se o uso de categorias pronominais que se alternam entre
o “nós”, ampliado e coletivo, e o “eu”, individual e singular: “Digamos que o português
era fascinante para nós principalmente para mim, porque eu não queria estuda e
muito menos falar outra língua.”. A alternância, entre o uso da 1ª p.p., nós, e a 1ª p.s.,
“eu”, revela a dialética da subjetividade na e pela linguagem, visto que o sujeito que dá
testemunho do não-homem quando instaura o “outro”. Ao fazer isso, mobiliza no ato,
o emprego da língua, e compartilha os sentidos com o “outro” (alocutário), por conta
da realidade distinta da aprendizagem da língua portuguesa, em sala de aula, marcada
pelas primeiras experiências de aquisição que estão na negação da língua do outro,
centrada na escrita.
As simbolizações realizadas pelo locutor em língua materna são mais fortes e
causam a recusa da aprendizagem da L2, ou seja, o não desejo em aprender a língua
portuguesa. Outro aspecto importante está na oscilação entre a necessidade de
adquirir a língua portuguesa e o fato de rejeitá-la por receio em perder-se. Para essa
situação, tem-se a interpretância de que se possa deixar de ser quem se é, no caso,
índio, ou esquecer a língua materna a ponto de não mais conseguir transitar entre os
dois mundos.
A representação simbólica do “medo”, ou da “desconfiança” de perder é algo
importante para a construção da significação na língua. Isso marca as diferenças e
inclui as especificidade inerentes às experiências de língua(gem), em sociedade. Os
simbolismos de desconfianças estão nos processos interlocutivos, entre as categorias
de pessoa. Eles são transportados para o ambiente de sala de aula, tendo em vista as
representações construídas pela interpretância que o sujeito faz de si e do outro. Essas

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representações são transportadas para o jogo comunicativo da sala de aula e em


demais situações fora da sala, quando dos processos de aquisição da L2, língua
portuguesa.
A função mediadora da língua(gem), em L2, é capaz de propor pelo emprego
em ação da língua, não só o funcionamento da língua, ou do aparelho, mas por
considerar a criação da significação própria e singular, na enunciação escrita, em língua
portuguesa, necessária aos dois planos previstos. Em Benveniste (2006, p. 90), a
enunciação escrita é compreendida pelo seguinte fundamento: “[...] o que escreve se
enuncia ao escrever e, no interior de sua escrita, ele faz os indivíduos se enunciarem.”.
Nessa passagem, encontramos a dimensão na qual se dá o ato de realização da
passagem da língua a discurso. Nesse ato, o sujeito não só se instaura, mas se
constitui. O sujeito faz ecoar outras vozes, enunciações de outros indivíduos que falam
quando da sua enunciação escrita. Para o locutor, isso é traduzido pela complexidade
que implica pensar na língua materna, considerando que as primeiras simbolizações
são construídas ocorrem em L1 e na cultura, num segundo ato de passagem, aqui,
incluímos o fenômeno da semantização, ou seja, para que o sujeito possa enunciar é
preciso que o faça pelo ato da escrita. Para essa situação, o locutor apropria-se de
outra língua, no caso, a L2 e é com essa língua que o sujeito emerge ao semantizar.
Não se pode passar de um sistema a outro, visto que não há entre língua a tradução
entre semióticos distintos.
Assim, a função mediadora da língua portuguesa está em semantizar a respeito
das simbolizações que ocorrem em L1. Eis a complexidade da experiência de
linguagem vivida pelos povos ameríndios quando da apropriação da língua para
comunicar.

Considerações finais

As leituras em Benveniste e as reflexões antropológicas a respeito do


perspectivismo dos povos ameríndios de Castro (2006; 2011) auxiliam-nos a
compreender a respeito dos simbolismos nas enunciações escritas, em língua
portuguesa, na Prova de Redação, processo específico para estudantes indígenas,
elaborada pela COPERSE∕2012∕UFRGS. Somos favoráveis a propostas distintas para a
Prova de Redação do Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM, por considerar a
diversidade linguística e cultural das comunidades indígenas. As análises enunciativas
apontam para simbolismos específicos e próprios que se sustentam em torno da
singularidade de uso da língua.

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A língua utilizada pelos sujeitos carrega vestígios de cultura na enunciação


escrita. Por isso, cabe à Teoria da Enunciação de base benvenistiana contribuir para a
discussão em torno das experiências de linguagem dos povos ameríndios, ao lado de
outras abordagens linguísticas. Cabe também a ela ampliar e consolidar as reflexões
em torno da heterogeneidade e do respeito aos simbolismos específicos.
O percurso enunciativo aponta para uma ampliação dos processos
interlocutivos no e pelo discurso que faz a constituição do sujeito, cuja origem é
distinta dos povos ocidentais. É no ato de realização que o sujeito faz ecoar vozes.
Emergem testemunhos daqueles que falam a respeito das experiências de linguagem,
porque ocupam diferentes lugares. Além disso, emergem testemunhos dos demais
sujeitos que são impossibilitados, porque não dominam a língua do outro. Assim,
lembramos que a Linguística proposta por Benveniste permite continuamente
conhecermos sobre os mistérios da língua e dos processos interlocutivos em culturas
distintas.

Referências

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Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2005.
_____. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Tradução
Selvino J. Assumann. São Paulo: Boitempo, 2008.
ARESI, Fábio. Síntese, organização e abertura do pensamento enunciativo de Émile
Benveniste: uma exegese de O Aparelho Formal da Enunciação. Dissertação
(Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.
AZEVEDO, Adélia Maria Evangelista. A experiência na e pela língua(gem) em
testemunho de povos ameríndios: a instauração de lugares enunciativos. Tese
(Doutorado) Porto Alegre: UFRGS, 2014.
BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral I. Tradução Maria da Glória Novak;
Maria Luisa Neri; Rev. Prof. Isaac Nicolau Salum. 4ªed. Campinas, São Paulo:
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_____. Problemas de Linguística Geral II. Trad. Eduardo Guimarães et al., 2. ed.
Campinas, São Paulo: Pontes Editores, 2006.
CASTRO, Eduardo Viveiros de. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo
ameríndio. 1996. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0104-93131996000200005 Acesso em 20 de março de
2012.
DESSONS, Gerard. Émile Benveniste: l’invension du discours. Paris. Limoges, 2006.

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FLORES, Valdir do Nascimento; BARBISAN, Leci Borges; FINATO, Maria José Bocorny;
TEIXEIRA, Marlene. Dicionário de Linguística da Enunciação. São Paulo: Contexto,
2009.
FLORES, Valdir do Nascimento. Introdução à Teoria Enunciativa de Benveniste. São
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LAPLANTINE, Chloé. ‘Emile Benveniste et les langues amérindiennes’. History and
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de fevereiro de 2013.
ONO, Aya; SILVA, Carmem Luci da Costa; MILANO, Luiza. Sobre as relações entre a
linguagem e o homem: caminhos de leitura em Émile Benveniste. Tradução de
Daniel Costa Silva. São Leopoldo: Calidoscópio, v. 12, n. 2, p. 255-260.
SILVA, Silvana. O homem na língua: uma visão antropológica da enunciação escrita
para o ensino da escrita. Porto Alegre: UFRGS, 2013. (Tese de Doutorado)
TEIXEIRA, Marlene. O estudo dos pronomes em Benveniste e o projeto de uma ciência
geral do homem. Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade de Passo Fundo, v. 2, n. 1, p. 71-83, jan∕jun. 2012.

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A AUSÊNCIA QUE SEREMOS, DE HÉCTOR ABAD: UMA ESCRITA PARA NÃO ESQUECER

Amanda Oliveira1

Aquele que foi já não pode mais não ter sido: doravante, esse fato
misterioso, profundamente obscuro de ter sido é o seu viático para a
eternidade. (Vladimir Jankelevich)

O que eu buscava era isto: que minhas memórias mais profundas


despertassem. E se minhas lembranças entrarem em harmonia com
alguns de vocês, e se o que eu senti (e deixarei de sentir) for
compreensível e identificável com algo que vocês também sentem ou
sentiram, então este esquecimento, esta ausência que seremos
poderá ser adiada por mais um instante, no fugaz reverberar dos seus
neurônios, graças aos olhos, poucos ou muitos, que alguma vez se
demorarem nestas letras. (ABAD, 2011, p. 317)

A memória, por vezes, parece um movimento cíclico: num vai-e-vem, ela


estabelece os padrões de nossas vidas pela lembrança do que fomos, somos e
seremos. É por isso que inicio este texto com uma referência indicada por Héctor Abad
nas últimas páginas de A ausência que seremos. Se os fins possam justificar os meios,
aqui, para os autores envolvidos – tanto da obra, quanto dessas reflexões (da obra) –,
também justificam seu início.
A ausência que seremos é um texto de memória, de história e de
esquecimento, parafraseando a célebre obra de Paul Ricoeur2. De memória, porque é
a representação gráfica de uma história que se quer garantir eternidade, apesar da
impossibilidade, como o próprio autor indica. De história, porque faz parte da
formação identitária da Colômbia do século XX, em que a injustiça social era marcada
pela pobreza e pela falta de condições sanitárias mínimas para a sobrevivência de
todos. E de esquecimento porque, invariavelmente, a obra, segundo o autor, tem
validade finita.

1
Graduada em Letras Português/Espanhol pela Universidade Feevale, Especialista em Literatura
Brasileira pela UFRGS e Mestre em Teoria da Literatura pela PUCRS. Atualmente é doutoranda em
Teoria da Literatura pela PUCRS, bolsista integral CAPES.
E-mail: amanda.oliveira.002@acad.pucrs.br
2
O presente texto é uma breve resenha da obra de Héctor Abad, que está sendo estudada a partir do
pensamento de Paul Ricoeur, para futura publicação.

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Para Abad, é justamente essa a justificativa da escrita: como um evitar do


apagamento da memória, a palavra é o recurso do não esquecer:

Todos somos condenados ao pó e ao esquecimento, e as pessoas que


evoquei neste livro ou já estão mortas, ou estão a ponto de morrer,
ou no máximo morrerão - ou melhor, morreremos - depois que
alguns anos que não podem ser contados em séculos, e sim em
decênios. [...] Depois de mortos, ainda sobrevivemos por alguns
frágeis anos na memória de outros, mas também essa memória
pessoal, a cada instante que passa, está sempre mais perto de
desaparecer. Os livros são um simulacro de lembrança, uma prótese
para recordar, uma desesperada tentativa de tornar um pouco mais
perdurável o que é irremediavelmente finito. (p. 315)

Sendo os livros esse simulacro de lembrança, a obra representa também a


formação da identidade de quem, vendo-se como parte do outro, reconhece-se a si
mesmo. A identidade cultural e política de um médico sanitarista colombiano é o tema
central da obra de Héctor Abad. Publicado no Brasil em 2011, o texto biográfico narra
a história do pai do autor: a vivência do filho com o pensamento libertário,
confusamente confundido com o comunismo; a experiência de fazer da medicina a
forma de melhoria de vida de muitas pessoas; o papel do professor como mestre de
aprendizagens para a vida; a confusa criação de um pai ateu e uma mãe fervorosa – e
pragmaticamente – católica. Abad nos apresenta a seu pai, e suas histórias, de pai e de
filho, se mesclam num discurso carregado de emotividade, carinho, saudade e amor.
As partes do livro vão revelando a intencionalidade do autor que, ao contar a
história do pai, também conta a sua própria. Em A ausência que seremos, de um verso
atribuído a um poema de Borges, passamos a identificar não só a vida de Abad pai,
nem só a de Abad filho, mas o quanto a escrita identifica as marcas identitárias de uma
América Latina negligenciada e injusta à maioria da população.
Na primeira parte, intitulada Um menino pela mão do pai, o narrador Abad
indica a sua formação familiar, quase como divina e sagrada:

Em casa moravam dez mulheres, um menino e um senhor. As


mulheres eram Tatá, que fora babá de minha avó, tinha quase cem
anos e estava meio surda e meio cega; duas empregadas – Emma e
Teresa –; minhas cinco irmãs – Maryluz, Clara, Eva, Marta, Sol –;
minha mãe e uma freira. O menino, eu, amava o senhor, seu pai,
sobre todas as coisas. Amava-o mais que a Deus. Um dia tive que
escolher entre Deus e meu pai, e escolhi meu pai. Foi a primeira
discussão teológica da minha vida [...]. (p. 11)

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O menino Abad, sendo o único filho homem, era o preferido do pai. Descobriu
desde pequeno que, na falta de habilidade das irmãs na oratória, deveria recorrer à
escrita para ser ouvido: “acho que tive que aprender a escrever para poder me
comunicar de vez em quando, e desde muito pequeno mandava cartas a meu pai, que
as festejava como se fossem epístolas de Sêneca ou obras-primas da literatura” (p. 22).
Ao refletir sobre essa experiência vivida, através da memória, e sua condição atual de
escritor, complementa:

Quando vejo como meu talento para escrever é limitado (raras vezes
consigo que as palavras no papel soem tão claras quanto as ideias no
pensamento; o resultado me parece um balbucio pobre e canhestro
perto do que minhas irmãs poderiam ter dito), recordo a confiança
que meu pai tinha em mim. Então levanto a cabeça e sigo em frente.
Se ele gostava até das minhas linhas de garatujas, que importa se o
que escrevo não me satisfaz por completo? Acho que o único motivo
que, nesses anos todos, me levou a continuar escrevendo e a publicar
meus escritos foi a certeza de que meu pai, mais do que ninguém,
teria gostado muito de ler essas páginas que ele não pôde ler. Que
nunca lerá. Esse é um dos paradoxos mais tristes da minha vida:
quase tudo o que tenho escrito, foi escrito para alguém que não me
pode ler, e mesmo este livro não passa de uma carta para uma
sombra. (p. 22)

Mesmo que o desejoso destinatário dos escritos não atinja seus feitos, o livro-
carta de Abad corresponde, aqui, mais um elemento importante da produção literária:
o escrever para ser lido. O fazer literário do autor está sempre sendo questionado –
seu objetivo, seu resultado, seu fim –, assim como sua própria independência como
indivíduo (“aos vinte e oito anos, quando mataram meu pai, de vez em quando eu
ainda recebia ajuda dele ou da minha mãe” (p. 32)). No entanto, a angústia pelo
escrever é maior que as necessidades econômicas; talvez a maior das necessidades. É
ela que define o pertencimento identitário do autor.
A organização social latino-americana sempre foi pautada pela discussão acerca
de sua identidade. Através de uma formação cultural de combates, contrastes e
rupturas entre nativos e/ou estrangeiros, a mescla da nova cidade interage num
cenário plural e heterogêneo. Essa pluralidade essencial do ser latino-americano
resulta em dois aspectos: em primeiro, na questão cultural de uma imposição
dominadora espanhola/portuguesa; em segundo, na língua importada que agora
devem se utilizar para significar. São essas relações do eu-outro-(novo)mundo que a
história latino-americana possui, em que o espírito de luta revolucionária passa a ser a
exigência máxima para a aquisição de uma justa identidade.

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A arbitrariedade identitária do latino-americano fica na possibilidade do


progresso pelas mãos e espadas europeias. A formação da cidade latino-americana,
como definiu Ángel Rama, é a noção de que essa cidade corresponde ao que não é
palpável nem observável diretamente, mas vivida por todos seus cidadãos através das
leis internas que regem a cultura (RAMA, 1984). Como servidores intelectuais do
poder, os letrados estabeleciam o ponto de conexão entre o poder político e o povo e,
nesse sentido, tinha em sua organização a afirmação do poder através da defesa da
palavra escrita – fator que diferenciava os civilizados dos bárbaros. Através da
valorização da letra, a imposição cultural da nova organização política também passou
a ser a imposição linguística de uma nova forma de comunicar, de propriedade do
dominante europeu, defendida pela fortaleza letrada.
A supremacia da cidade letrada, restritiva e forçosamente urbana, marca uma
segunda doutrinação de fé religiosa pela palavra escrita, que é o idioma das leis que
agora regem e fazem organizar as cidades. A cidade e a linguagem – uma e várias,
porque a necessidade do apagamento também reforça o controle pela manutenção –
atuam, unidas, no campo das significações e nas autonomias dos sistemas, e ambas –
sejam físicas e/ou simbólicas – marcam-se pelas mensagens persuasivas a vastos
públicos.
A Colômbia era um dos centros de poder virreinal durante o período da colônia,
organizada a partir da massa indígena trabalhadora, “donde había encontrado sus
formas plenas la concepción de la ciudad letrada” (p. 122). Rama diz, no capítulo
intitulado La ciudad revolucionada, que no ano de 1911 “se inició en América Latina la
era de las revoluciones que habría de modelar ese siglo XX que entonces se iniciaba”
(p. 103). O autor indica que compartilha com a opinião de Abelardo Villegas,
“poniendo el acento en el componente cambio social profundo, más que en el de
ruptura violenta, habla de ‘las dos revoluciones latinoamericanas de este siglo: la
mexicana y la uruguaya’ (p. 103). Para Rama, “ambas revoluciones, aun habido cuenta
de sus diferencias, depararán regímenes cuyos rasgos podrán reencontrarse en otros
contextos y en otras dosis, en sucesivos movimientos transformadores que en
adelante vivirá en continente” (p. 103), localizando, entre outros países, a Colômbia e
seu “’nuevo liberalismo’ juvenil de Alfonso Lopez” (p. 103). Isso é definidor do que o
autor chama de “órbita modernizadora del ‘cesarismo democrático’” (p. 104) e afirma:

En estas décadas transcorridas del XX, nuestras interpretaciones


letradas han abandonado las categorías biológicas, telúricas y
restrictamente políticas, para descansar con más firmeza en
categorías sociales y económicas, pero sin embargo en esas mismas
décadas nada identifica mejor las transformaciones habidas, con

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sucesivas irrupciones de grupos sociales, que los nombres de sus


caudillos respectivos. Incluso la duración del fenómeno se mide en
ocasiones por el tiempo de su acción dirigente. (p. 104)

No século XX, Rama enfatiza que a literatura foi um espaço prolífico para a
formação dos discursos de denúncia e revolta sociais: “no hubo caudillo revolucionario
que no fuera acompanhado de consejeros intelectuales [...]”. (p. 123). Para o autor,
“fueron ellos, como únicos ejercitantes de la escritura, quienes nos han llegado
nutridos y ácidos testimonios sobre la tormenta revolucionaria” (p. 123).
A ausência que seremos pode ser considerado, nesses termos de Rama, como
uma obra revolucionária. Na parte intitulada Um médico contra a dor e o fanatismo,
Abad relembra uma passagem sobre a desigualdade vivida em Medellín, apesar de
essa realidade estar tão distante de sua casa:

Meu primeiro contato com o sofrimento não foi com o meu próprio,
nem com o da minha família, mas com o dos outros. Isso porque meu
pai fazia questão de que nós, seus filhos, soubéssemos que nem todo
mundo era tão feliz e favorecido pela sorte, mostrando-nos, desde
pequenos, a penúria de muitos colombianos, quase sempre causada
por calamidades e doenças ligadas à pobreza. Alguns fins de semana,
como não havia aulas na universidade, ele os dedicava ao trabalho
social nos bairros pobres de Medellín. (2011, p. 45)

A preocupação com a realidade que se mostrava fora da casa correspondia a


um comportamento do pai que, no entanto, era claramente repudiado: “muitos
médicos o detestavam por defender essas ideias contrárias a seus grandes projetos de
clínicas particulares, laboratórios, altas técnicas de diagnóstico e exames
especializados” (p. 54). Mas seu problema não era só na área médica, pois “em geral,
sua maneira de trabalhar não era bem-vista na cidade” (p. 54). De um lado, “os mais
ricos acham que, com sua mania de igualdade e de consciência social, ele estava
organizando os pobres para fazerem a revolução” (p. 54); de outro, na própria
universidade de medicina, onde “vivia se esquivando das rasteiras de quem queria vê-
lo pelas costas” (p. 55). A postura do médico, no entanto, parecia não incomodá-lo;
seu objetivo de poder possibilitar aos menos assistidos uma vida melhor era superado
pelas adversidades que o sistema tentava lhe oprimir:

No fim de seus dias, costumava dizer que sua ideologia era um


híbrido: cristão em religião, pela figura amável de Jesus e sua
evidente preferência pelos mais fracos; marxista em economia,
porque detestava a exploração econômica e os infames abusos dos

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capitalistas; e liberal em política, porque não suportava a falta de


liberdade e as ditaduras, nem mesmo a do proletariado, pois os
pobres no poder, ao deixarem de ser pobres, não eram menos
tirânicos e desumanos que os ricos. (p. 54-55)

A questão da religiosidade é outro elemento bastante perturbador para o


escritor. Entre o pragmatismo cristão da mãe e o pai ateu, a formação da fé do menino
Abad está mais relacionada às aprendizagens e benfeitorias do pai aos mais
necessitados do que a fé divina em Deus, simbolizado pelas crenças, ritos e rotinas da
casa, mas nada mais que isso. A formação identitária inicial é pautada por essa dupla
referência parental:

Meu pai e minha mãe eram um oposto de outro em matéria de


crenças e comportamento, mas na vida cotidiana eram
complementares e muito amorosos. Havia entre os dois um contraste
tão claro de atitude, caráter e formação, que para o menino que eu
era essa diferença radical entre meus modelos de vida se impunha
como o mais difícil dos enigmas. Ele era agnóstico; ela, quase mística.
Ele odiava o dinheiro; ela, a pobreza. Ele era materialista no plano
ultraterreno e espiritual no plano material, ela deixava o espiritual
para o além e no aquém perseguia os bens materiais. A contradição,
porém, não parecia afastá-los, e sim atraí-los mutuamente, talvez
porque, antes de mais nada, compartilhavam um núcleo de ética
humana no qual se identificavam. Meu pai consultava minha mãe em
tudo, ao passo que minha mãe via o mundo pelos olhos dele,
demonstrando um amor profundo, incondicional, à prova não só de
contratempos mas de qualquer discrepância radical e de qualquer
informação perniciosa ou maligna que alguma “alma caridosa” lhe
desse sobre ele. (p. 129)

A perda da irmã, vítima de leucemia, no entanto, faz com que a fé do autor seja
questionada, e a identidade, definida:

Até que, depois desse parêntese de felicidade quase perfeita que


durou alguns anos, o céu invejoso se lembrou de nossa família, e
aquele Deus furibundo no qual meus antepassados acreditavam
sobrecarregou o raio de sua ira sobre nós, que, talvez sem perceber,
éramos uma família feliz, e até muito feliz. Costuma ser assim
mesmo: quando mais vivemos a felicidade é quando menos nos
damos conta de que somos felizes, e talvez as alturas nos mandem
uma boa dose de dor para que aprendamos a ser bem-agradecidos.
Essa na verdade é uma explicação da minha mãe, que nada explica, e
embora eu não a assuma nem endosse, mesmo assim a transcrevo,

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porque, de fato, enquanto a felicidade nos parece sempre uma coisa


natural e merecida, as tragédias nos parecem enviadas de fora, como
uma vingança ou um castigo decretado por potências malignas por
causa de culpas obscuras, ou por deuses justiceiros, ou anhos que
executam sentenças inelutáveis. (p. 165)

Caracterizando a figura de Deus como um punidor, os questionamentos do


autor indicam a própria relação de mundo que os latino-americanos viveram, desde
seu processo de colonização. Ao serem obrigados a negar seus deuses e invocações
místicas em prol do cristianismo do Deus único dos espanhóis, não só a fé lhes foi
arrancada, como também a possibilidade de se identificar como parte dessa
religiosidade. Se antes a própria cultura lhes era apagada, junto com seus dialetos, em
valoração imposta pelo idioma estrangeiro, o próprio idioma foi o que direcionou
centenas de milhares de latino-americanos a pensar e conversar com um deus que não
conheciam, não se familiarizavam, que os punia e os ameaçava.
A escrita, no entanto, é alheia a qualquer crença. Ela é a forma de expor, de
negar o que não se crê ou que não pode ser possível, de refletir sobre o que se nos
coloca, ou de tornar validado e eterno, pela letra, o que a memória oculta, nega ou
esquece. "Não é a morte que dissolve o amor, é a vida que dissolve o amor" (p. 197),
disse o pai Abad como agradecimento aos médicos da filha, mesmo na impossibilidade
da cura. E parece ser o amor o único tributo ofertado pelo filho, em forma de palavras,
para também homenagear o pai.
Em outra parte do livro, intitulada Anos de luta, Abad indica que as dores da
perda são mediadas pelas noções de realidade que temos. Numa passagem, ele
escreve:

Não sei em que momento a sede de justiça ultrapassa essa perigosa


fronteira em que se transforma numa tentação de martírio. Um
sentimento moral muito elevado sempre corre o risco de se
exacerbar e cair na exaltação da militância frenética. Uma fé otimista
muito forte na bondade intrínseca dos seres humanos, quando não
atenuada pelo ceticismo de quem conhece mais profundamente as
inevitáveis mesquinharias ocultas na natureza humana, leva a pensar
que é possível construir o paraíso na terra, com a "boa vontade" da
maioria. [...]
Tenho certeza de que meu pai não sofreu a tentação do martírio
antes da morte da Marta, mas depois dessa tragédia familiar
qualquer inconveniente parecia menor, e qualquer preço já não
parecia tão alto como antes. (p. 205)

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Na dor sofrida pela perda da filha, o pai faz da militância pela justiça a todos
uma forma de tentar expurgar sua impotência frente à doença dela, mesmo sendo
médico, e com todos os recursos possíveis, inviáveis para curá-la. Nesse sentido, o
escritor, na sua posição de registrar as histórias alheias através das palavras tomadas a
esmo, na tentativa de significar, completa:

A compaixão é, em boa medida, uma qualidade da imaginação:


consiste na capacidade de pôr-se no lugar do outro, de imaginar o
que sentiríamos se sofrêssemos uma situação análoga. Sempre achei
que os impiedosos carecem de imaginação literária - essa capacidade
que os grandes romances nos dão de nos pôr na pele dos outros -, e
são incapazes de ver que a vida dá muitas voltas, e que o lugar do
outro uma hora pode ser ocupado por nós: em dor, pobreza,
opressão, injustiça, tortura. (p. 206)

As palavras remetem à recordação e, para o autor, "se recordar é passar outra


vez pelo coração, eu sempre o recordei" (p. 294). A demora para escrever reflete na
própria forma como encara o processo criativo literário, que não consegue passar
imune à lembrança emotiva: "não escrevi em todos esses anos por um motivo simples:
sua recordação me comovia demais para poder escrevê-la" (p. 294). O desejo de não
correr o risco de algum "excesso de sentimentalismo" (p. 294) transforma os vinte
anos de dor entre o dia da perda e o processo de escrita: "a ferida continua aqui, no
lugar por onde passam as recordações, porém mais que uma ferida já é uma cicatriz"
(p. 294). E completa: "O caso dele não é único, e talvez não seja o mais triste. Há
milhares e milhares de pais assassinados neste país tão fértil para a morte. Mas é um
caso especial, sem dúvida; e para mim, o mais triste. Além disso, reúne e resume
muitíssimas das mortes injustas que temos padecido aqui" (p. 294).
Assim, a identidade latino-americana é plural, marcada pela mescla de culturas
e de linguagens, organizações políticas e sociais. Na ânsia por defini-la, identificamos o
que a configura, e é justamente essa multiplicidade que nos faz interpretarmos como
latino-americanos. Mais que uma dominação política e territorial, o que contrasta na
América Latina é o desejo de identidade libertária igualitária a todos, por mais utópico
que isso possa parecer.
Em A ausência que seremos, a morte de Héctor Abad, em função dos seus
ideais de igualdade para toda a população de Medellin é mais uma morte injusta pelas
mãos daqueles que viam na América Latina um espaço de poucos, fosse a elite
intelectual, como mostrada por Rama, fosse pela elite política, opressora e violenta,
das ditaduras e/ou falsas democracias. O poema de Borges encontrado no bolso,
rabiscado num pedaço de papel, parecia anunciar a única necessidade do doutor Abad

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Gómez: ser lembrado, mesmo após a morte, pelo que acreditava, e na tentativa de
uma mudança social justa a seu país. Muito se tem mudado na América Latina, e isso
se deve sobretudo na literatura. Talvez como afirmava José Marmol, argentino exilado
no Rio de Janeiro dos anos 1845, a independência e o espírito progressista da América
só pode ocorrer por conta da juventude progressista, em que a pena e o papel sejam
as armas de militância. Se depender da obra de Héctor Abad, ainda podemos seguir
nesse valor da literatura: a mudança. Porque se as palavras não podem confessar tudo,
elas ainda podem ser a única forma de tentar eternizar.

Há uma corrente familiar que não se rompeu. Os assassinos não


conseguiram nos exterminar e nunca vão consegui-lo, porque aqui há
entre nós um vínculo de força e de alegria, de amor à terra e à vida
que os assassinos não puderam vencer. Além disso, aprendi uma
coisa do meu pai que os assassinos não sabem fazer: pôr a verdade
em palavras, para que ela dure mais que sua mentira. (ABAD, 2011,
p. 298)

Referências

ABAD, Héctor. A ausência que seremos. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
RAMA, Ángel. A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1984.

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CARACTERIZAÇÃO ACÚSTICA DAS FRICATIVAS SIBILANTES EM PORTUGUÊS BRASILEIRO:


UMA INTERFACE ENTRE A LINGUÍSTICA E A ENGENHARIA

Ana Paula Correa da Silva Biasibetti1

Este estudo-piloto tem por objetivo caracterizar acusticamente as fricativas


sibilantes surdas que ocorrem em coda silábica nas variedades faladas em Porto
Alegre/RS e Florianópolis/SC, a saber, os sons consonantais [s] e [ʃ].
Pesquisas sobre a fonologia do português brasileiro revelam que, na
subjacência, um arquifonema /S/ ocorre em coda silábica, sendo subespecificado
quanto ao ponto de articulação (alveolar ou palato-alveolar) e ao vozeamento (sonora
ou surda). Isso significa que a sibilante em coda pode realizar-se foneticamente como
[s], [z], [ʃ] ou [ʒ]. O vozeamento é sensível ao contexto seguinte, ou seja, a sibilante é
realizada como sonora se o segmento seguinte for sonoro e como surda se o segmento
seguinte for surdo ou, ainda, se houver pausa. Quanto ao ponto de articulação, as
formas variantes são marcadores dialetais, isto é, algumas regiões optam pelas
sibilantes alveolares em detrimento das palato-alveolares enquanto que outras regiões
preferem as palato-alveolares às alveolares. Além disso, a frequência de uso das
variantes pode oscilar em função de variáveis linguísticas (contexto seguinte, por
exemplo) e sociais (sexo, escolaridade, idade, etc.) (CALLOU; MORAES, 1996).
Em posição de coda silábica, há o predomínio da variante alveolar em Porto
Alegre (doravante POA) e da variante palato-alveolar em Florianópolis (doravante
FLO). A investigação acústica que conduzimos no estudo-piloto aqui apresentado
revelou, todavia, que algumas das ocorrências coletadas em POA e identificadas de
oitiva como sibilantes alveolares apresentaram a distribuição espectral de uma
sibilante palato-alveolar. Em contrapartida, alguns dos dados coletados em FLO e
identificados por oitiva como palato-alveolares apresentaram a distribuição espectral
de uma alveolar.
Poder-se-ia levantar a hipótese de que essa gradiência fonética é significativa
no sentido de que as formas acusticamente identificadas como variantes poderiam
indexicar alguma informação social. Possíveis correlações entre formas variantes e
conteúdos indexicais nas variedades faladas em POA e em FLO serão verificadas
através da aplicação de testes de percepção de categorias linguísticas e de categorias

1
Doutoranda em Linguística na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bolsista CNPq.
E-mail: biasibetti.ana@gmail.com

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sociais em etapas futuras deste estudo. Por ora, o objetivo é apresentar a metodologia
aplicada à caracterização acústica das sibilantes em dados de POA e FLO. Tal tarefa,
para tanto, demanda conhecimentos e instrumental teórico-metodológico que
extrapolam o campo da Linguística. Assim sendo, torna-se imprescindível tecer uma
interface entre a Linguística e a Engenharia de modo a apropriar-se de conhecimentos
e práticas específicos da área de Acústica.

Fricativas sibilantes

Os sons consonantais utilizados na produção de fala apresentam diferentes


modos de articulação, tais como o oclusivo, o fricativo, o nasal, entre outros. Os sons
fricativos são produzidos através da passagem da corrente de ar proveniente dos
pulmões por uma constrição em algum ponto do trato oral, gerando ruído ou fricção.
Entenda-se por constrição um estreitamento causado pela aproximação de dois
articuladores, tais como a língua, dentes, alvéolos, palato, entre outros.
As fricativas são, portanto, os sons resultantes da turbulência de ar que ocorre
na constrição em si ou no choque da corrente de ar em alta velocidade contra algum
obstáculo após o ponto de constrição (LADEFOGED; MADDIESON, 1995, p. 138).
São consoantes fricativas em português brasileiro os sons [f, v, s, z, ʃ, ʒ, x, ɣ, h,
ɦ]. As fricativas alveolares [s, z] e palato-alveolares [ʃ, ʒ] diferem-se acusticamente das
demais fricativas por apresentarem sibilância. Sibilância é uma propriedade acústica
definida pela concentração de energia em frequências altas (acima de 3kHz): [s], por
exemplo, ocorre em frequências acima de 3kHz e alguns picos são visualizados entre
4kHz e 7kHz; a energia de [f], por outro lado, concentra-se abaixo de 1kHz e não há
picos pronunciados (BAART, 2010, p. 71).

Fundamentação teórica

O presente estudo fundamenta-se nas premissas teórico-metodológicas da


Sociofonética (FOULKES; DOCHERTY, 2006; DIPAOLO; YAEGER-DROR, 2010; THOMAS,
2011), a qual contempla a variação fonética que ocorre tanto em nível dialetal quanto
em grupos sociais específicos. A Sociofonética tem por aporte teórico as premissas da
Sociolinguística Quantitativa (LABOV, 1972) e faz uso do instrumental técnico
desenvolvido pela Fonética Acústica (LADEFOGED; MADDIESON, 1995; STEVENS, 2000;
KENT; READ, 2002) que se beneficia, por sua vez, de estudos e achados da área de
Engenharia.

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Metodologia

Foram utilizados dados de entrevistas realizadas com 4 informantes adultos de


Porto Alegre/RS e de Florianópolis/SC, sendo 1 homem e 1 mulher de cada localidade.
Essas entrevistas pertencem à amostra Brescancini & Valle, a qual está depositada
junto ao banco de dados VARSUL (Variação Linguística Urbana no Sul do Brasil). Os
áudios das referidas entrevistas foram capturados por gravadores digitais com taxa de
amostragem de 44,1kHz e consistem em entrevistas de experiência pessoal realizadas
de acordo com a metodologia de coleta de dados proposta por Labov (1972).
Consideraram-se apenas os 30 minutos iniciais de cada gravação e as
ocorrências cuja sibilante em coda não fosse a desinência nominal indicativa de plural.
Assim, levantaram-se 32 ocorrências de sibilantes surdas em posição de coda silábica.
Os segmentos sibilantes foram segmentados e etiquetados através do
programa Praat (BOERSMA; WEENINK, 2015) e, na sequência, submetidos a um script
de extração de momentos espectrais baseado no método Time Averaging. O referido
método extrai os quatro momentos espectrais, a saber, o centro de gravidade, o
desvio padrão, a assimetria e a curtose. Os momentos espectrais são ponderações
estatísticas que visam representar a distribuição de energia do sinal acústico analisado.
Tais ponderações refletem dados articulatórios que, no caso das fricativas, informam
sobre a sibilância e o ponto de articulação dos segmentos. Reproduzimos abaixo uma
ilustração do método Time Averaging:

Figura 1 – Procedimento Time Averaging

Fonte: Adaptado de Jesus & Shadle (2002, p. 444)

Observa-se na Figura 1 acima que um segmento /s/ é fracionado em n janelas


ao longo de seu eixo temporal. Uma Transformada Discreta de Fourier (Discrete
Fourier Transform) é aplicada a cada janela e, ao final do processo, obtém-se a média
das transformadas. É dessa média que se extraem os momentos espectrais. Isso
significa que a DFT média é o estimador espectral da metodologia Time Averaging.

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A referida metodologia fundamenta-se no pressuposto de que ainda que o sinal


acústico verificado nas fricativas seja um processo estocástico, cada uma das porções
que compõem o segmento fricativo pode ser entendida como estática. Dessa forma,
ao extraírem-se transformadas de cada um desses trechos e, após, a média das
transformadas, neutralizar-se-iam as mudanças que ocorrem ao longo da duração do
segmento.
Cada uma das ocorrências levantadas em POA e em FLO foi fracionada em 6
janelas de 15ms cada. O valor médio obtido pelas 6 transformadas foi utilizado para a
mensuração de apenas dois momentos espectrais, a saber, o centro de gravidade e a
assimetria haja vista que a literatura sobre fricativas aponta que os demais momentos
espectrais nada informam em termos de diferenciação de sibilantes por ponto de
articulação (FORREST et al, 1988; JONGMAN et al., 2000).
O centro de gravidade (ou primeiro momento espectral) é o ponto onde ocorre
a maior concentração de energia gerada pela constrição. A assimetria (ou terceiro
momento espectral) calcula o formato da distribuição de energia abaixo e acima do
centro de gravidade: valores positivos são indicativos de que a constrição se localiza
mais posteriormente no trato oral, enquanto que valores negativos estão associados à
anterioridade da constrição (OLIVEIRA, 2011).

Resultados

Considerando-se as 32 ocorrências analisadas, há 7 casos em que uma fricativa


identificada de oitiva como alveolar apresenta a distribuição espectral de uma fricativa
palato-alveolar, assim como há casos em que uma fricativa identificada como palato-
alveolar apresenta a distribuição de uma alveolar. Reproduzimos a seguir os resultados
obtidos em relação aos segmentos divergentes:

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Quadro 1 - Assimetria da sibilante em coda

LOCALIDADE SEGMENTO ASSIMETRIA

co/S/tura 1.25

PORTO ALEGRE/RS di/S/cutiu 1.45

ba/S/tante 2.26

go/S/tava 1.55

LOCALIDADE SEGMENTO ASSIMETRIA

su/S/ -2.40
FLORIANÓPOLIS/SC
ve/S/ -0.30

e/S/tá -0.64

Observa-se no Quadro 1 acima que as sibilantes em coda das palavras costura,


discutiu, bastante e gostava coletadas em Porto Alegre são articuladas em um ponto
mais posterior do trato, teoricamente aproximando-se da variante palato-alveolar
produzida em Florianópolis. As sibilantes em coda coletadas em Florianópolis nas
palavras SUS, vez e está, por sua vez, são articuladas mais anteriormente,
aproximando-se da variante alveolar produzida em Porto Alegre.

Discussão dos resultados

A caracterização divergente encontrada para a sibilante nas duas localidades


decorre, por hipótese, de uma configuração articulatória diferenciada que pode ter
motivação fisiológica, linguística e/ou social. Em outras palavras, essa diferença
articulatória detectada através da análise acústica pode ser consequência de aspectos
relacionados ao trato vocal dos informantes, a fatores linguísticos ou a fatores sociais.
No entanto, os resultados apresentados no Quadro 1 baseiam-se em dados
produzidos por um número muito reduzido de informantes. Logo, as hipóteses
propostas não podem ser testadas nesse corpus. Essas e outras hipóteses deverão ser
testadas em uma amostra ampla que contemple um grande número de informantes,

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os quais deverão ser tratados estatisticamente como uma variável aleatória. Prevê-se,
portanto, a utilização de um modelo de efeitos mistos a fim de que variáveis preditivas
e aleatórias sejam conjuntamente ponderadas em relação aos seus efeitos em relação
à variável dependente.
Anterior a esse tratamento estatístico, todavia, será necessário verificar as
estimativas espectrais dos segmentos sibilantes através de um método que ofereça
uma probabilidade de erro ainda menor que aquela oferecida pelo método Time
Averaging, pois, nas palavras de Menezes (2014, p. 71), “ (...) a aplicação das janelas no
domínio do tempo reduz a quantidade de informação do sinal, elevando, por sua vez, a
variância do estimador”.
Nesse sentido, Blacklock (2004) e Shadle (2006) sugerem a metodologia
Multitaper como a mais indicada para a análise das fricativas, uma vez que seu
estimador apresenta uma variância bastante reduzida em relação a outros métodos
comumente utilizados na análise acústica da fala:

With this method, a single short signal segment is used, but it is


multiplied by many different windows – called tapers – before
computing and averaging their DFTs. The particular shape of the
tapers satisfies the requirement for statistical independence of the
signals being averaged (SHADLE, 2006, p. 449).

Próximas etapas

Serão realizadas 80 entrevistas (40 em cada localidade) com informantes


adultos de diferentes perfis sociais. Para tanto, as seguintes variáveis sociais serão
controladas: sexo, orientação sexual, classe social e escolaridade.
A caracterização acústica será realizada através do método Multitaper. Esse
procedimento garantirá uma análise espectral ainda mais acurada, o que é crucial para
a investigação e validação de possíveis padrões sociofonéticos correlacionados à
produção variável da sibilante em coda nas variedades estudadas.
O estudo-piloto aqui apresentado tem um viés interdisciplinar entre a
Linguística e a Engenharia e, a partir de seu objetivo principal, a saber, a caracterização
acústica das sibilantes, tem por objetivo secundário a identificação de possíveis
padrões sociofonéticos e aplicações nas áreas de síntese de fala e de comparação
forense de locutor.

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Referências
BAART, Joan. A field manual of acoustic phonetics. Dallas: SIL International, 2010.
BOERSMA, P. WEENINK, D. Praat: doing phonetics by computer [Computer program].
Versão 5.4.10, 2015. Disponível em http://www.praat.org/. Acessado em 27 jun.
2015.
BLACKLOCK, O. S. Characteristics of variation in production of normal and disordered
fricatives using reduced-variance spectral methods. Unpublished doctoral
dissertation. University of Southampton, England, 2004.
CALLOU, D.; MORAES, J. A. de. A norma de pronúncia do S e R pós-vocálicos:
distribuição por áreas regionais. In: CARDOSO, S. A. M. (Org.). Diversidade
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SENTIDOS EM CONFLITO NO DISCURSO SOBRE O MASSACRE DE CURITIBA

Antonia Zago1
Gabriela da Silva Zago2

Introdução

No dia 29 de abril de 2015, professores estaduais do Paraná entraram em um


confronto com a polícia. Eles estavam protestando contra um projeto de lei proposto
pelo governador Beto Richa. Entretanto, o ato saiu do controle e, com a intervenção da
polícia, resultou em cerca de 200 feridos (LIMA, 2015).
Devido à dimensão do episódio, ele passou a ser retratado de diferentes
formas. Ainda que na imprensa tradicional tenham predominado referências ao caso
como um mero “conflito” (PINTO, 2015) ou “confronto” entre policiais e manifestantes
(CARAZZAI, 2015; JUSTI, 2015), usuários nos sites de redes sociais passaram a se referir
ao evento de outras formas, em especial usando o termo “massacre”.
Com base nesse contexto, o trabalho procura abordar o discurso em torno do
episódio ocorrido em Curitiba no confronto entre professores, governador e polícia. A
partir de um corpus de tweets contendo os termos “massacre” e “Curitiba”,
identificamos as principais formações discursivas observadas sobre o tema.
O artigo está organizado da seguinte forma: em um primeiro momento,
aborda-se o conceito de formação discursiva. Na sequência, o foco recai sobre o
episódio ocorrido e sua relação com as redes sociais na internet. Após, os
procedimentos metodológicos são apresentados, seguidos de resultados e discussão.

Formação discursiva

Para Charaudeau & Maingueneau (2004), o conceito de formação discursiva


(FD) tem dupla origem, tendo resultado dos estudos de Pêcheux e de Foucault. No
entanto, é com Pêcheuax que essa noção é acolhida na Análise do Discurso. Para
Foucault (1986), uma FD é tida como um conjunto de enunciados (e não apenas

1
Mestre em Letras pela UCPel. Professora da Faculdade IDEAU – Bagé.
E-mail: antoniazago@gmail.com
2
Doutora em Comunicação e Informação pela UFRGS.
E-mail: gabrielaz@gmail.com

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objetos linguísticos), na medida em que é preciso considerar, para a sua compreensão,


as condições históricas para o aparecimento desses objetos discursivos.
Em A arqueologia do saber, Foucault (1986) desenvolve a noção de Formação
Discursiva, apresentando-a como um dispositivo metodológico para a análise
arqueológica dos discursos, daí a sua definição:

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de


enunciados, semelhante sistema de dispersão e, no caso em que entre
os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas
se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e
funcionamentos, transformações) diremos, por convenção, que se
trata de uma formação discursiva [...] (FOUCAULT, 1986, p. 43).

Para o autor, o discurso vai além do enunciado e abrange também o conjunto


ideológico em que as formações discursivas se inserem. Nesse sentido, mais do que
observar os enunciados, busca-se também observar as regularidades do discurso, para
o que os estudos acerca da filosofia do autor colaboram.
Assim, Foucault (1986, p. 43) compreende o discurso como “um conjunto de
enunciados na medida em que eles provêm da mesma formação discursiva”. Para o
autor, o discurso que se apoia em uma FD não possui apenas um sentido ou uma
verdade, ele possui acima de tudo uma história. Esses discursos refletem o
funcionamento da sociedade, o modo como as instituições e seus processos
econômicos e sociais dão lugar a tipos definidos de discursos. Conforme já
mencionado, para o autor, é necessário, pois, considerar as condições históricas para o
aparecimento de um objeto discursivo.
Desse modo, estão no centro das reflexões de Foucault o exercício da função
enunciativa bem como suas condições, suas regras de controle e o campo em que esta
se realiza. Para o autor, entre o enunciado e o que ele enuncia não existe apenas uma
relação gramatical: há uma relação que envolve sujeitos, perpassa a história e abarca a
própria materialidade do enunciado. É a partir desse ponto de vista que o autor
afirma: “Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que mais fazem é mais
que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à
língua e ao ato de fala. É esse “mais” que é preciso fazer aparecer e que é preciso
descrever” (FOUCAULT, 1986, p. 56).
Nesse sentido, Orlandi (2005) também defende que “os sentidos não estão nas
palavras elas mesmas”. Os sentidos são derivados da formação discursiva em que se
apoiam, posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que as
palavras são produzidas. Para a autora, as palavras tanto tiram seu sentido dessas

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posições ideológicas em que se inscrevem, quanto mudam de sentido de acordo com


as posições daqueles que as empregam.
Para Orlandi (2005), “A noção de FD, ainda que polêmica, é básica na AD, pois
permite compreender o processo de produção dos sentidos, a sua relação com a
ideologia e também dá ao analista a possibilidade de estabelecer regularidades no
funcionamento do discurso”. Para a autora, disso decorre a compreensão de dois
pontos. O primeiro ponto diz que “O discurso se constitui em seus sentidos porque
aquilo que o sujeito diz se inscreve em sua formação discursiva e não outra para ter
um sentido e não outro”. Pelo segundo ponto, tem-se que “É pela referência à
formação discursiva que podemos compreender, no funcionamento discursivo, os
diferentes sentidos” (ORLANDI, 2005, p.43-44).
A partir de Foucault (1994; 1995), Gregolin (2006a) afirma que há discursos
midiáticos que produzem uma rede simbólica que forja identidades a partir de uma
“estética de si”. Essas práticas discursivas levam à formação de identidades e de
subjetividades com singularidades históricas.
Assim, compreender o discurso envolve também compreender os sentidos por
trás dos mesmos, representados pelas formações discursivas nas quais os discursos se
inserem. O primeiro passo para entender o discurso para além da materialidade
linguística envolve compreender o contexto sócio-histórico no qual os discursos se
inserem. Assim, a seguir, apresenta-se o caso que serve como base para o presente
estudo, para, na sequência, proceder-se à análise das sequências discursivas.

O “massacre” de Curitiba

Um discurso que se insere em uma FD não possui apenas um sentido ou uma


verdade; ele possui, acima de tudo, uma história. Desse modo, o papel do arqueólogo
do discurso é revelar como as instituições e os processos sociais dão lugar a tipos
definidos de discurso. Assim, é preciso levar em conta as condições históricas para o
aparecimento de um objetivo discursivo para poder compreendê-lo dentro de sua
formação discursiva.
Nesse sentido, o objeto discursivo aqui analisado deriva de um episódio
ocorrido no dia 29 de abril de 2015 na cidade de Curitiba, no Paraná. Um conflito entre
professores estaduais e policiais militares deixou mais de 200 feridos. O ato,
organizado pelas redes sociais, buscava protestar contra a aprovação de um projeto de
lei do governador Beto Richa (PSDB), que altera as regras de pagamento de
aposentadorias dos servidores estaduais (ZERO HORA, 2015). Após o ocorrido, o

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evento passou a ser chamado com expressões como “massacre do dia 29 de abril”,
“massacre de Curitiba”, e outros.
Sites de redes sociais como o Twitter foram utilizados para narrar e criticar o
episódio. Assim, os usuários da internet se valeram do potencial de espalhamento da
rede (JENKINS; FORD; GREEN, 2013) para dar visibilidade a seus posicionamentos sobre
o ocorrido. Mais do que manifestar opinião sobre o ocorrido, os sites de redes sociais
propiciam a fácil reprodução de conteúdos com os quais o usuário se identifica,
potencializando a circulação das informações (ZAGO, 2014).
No espaço das redes, ocorre uma disputa por visibilidade (RECUERO, 2009),
com diferentes atores sociais buscando dar destaque a seus pontos de vista sobre os
acontecimentos. Essa disputa por visibilidade guarda relação com uma economia do
retweet. Para Recuero e Zago (2012), ao reproduzir um conteúdo no Twitter (através
do botão de retweet), está-se aderindo a um determinado posicionamento e
contribuindo para dar visibilidade àquela versão do fato. Como há uma limitação de
espaço de até 140 caracteres em cada mensagem, escolher quem retuitar é uma
questão econômica – quando mais de um usuário ou entidade posta a mesma coisa, é
preciso selecionar aquelas às quais se dará visibilidade através do retweet. Assim,
mesmo o ato de retweet envolve uma escolha (quem retuitar / quem referenciar como
autor original da mensagem reproduzida), que traz implicações para os sentidos de um
determinado discurso.

Procedimentos metodológicos

Para operacionalização do estudo, compusemos um corpus de tweets contendo


os termos “massacre” e “Curitba”. Os dados foram coletados no dia 06 de maio de
2015, utilizando o software NodeXL, e abrange um período de uma semana,
capturando tweets a partir do dia 29 de abril, data em que ocorreu o primeiro
confronto entre manifestantes e polícia. Ao todo foram obtidas 2993 unidades
textuais. O recorte utilizado para este trabalho compreende apenas os tweets dos dias
29 e 30 de abril de 2015. Como o corpus inclui tweets e retweets, muitos enunciados
são repetidos, na forma de retweets.
Após a coleta de dados, partimos para uma leitura flutuante, através da qual
foram identificadas as regularidades do discurso. Cada tweet é tomado como uma
unidade textual composta por uma, duas, ou mais sequências discursivas, e, a partir
dessas SDs, identificamos as principais formações discursivas.

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No exemplo abaixo, a primeira parte da mensagem “Canalhas do PSDB”


representa a SD 240A, ao passo que a segunda parte, “Pres da Comissão de Direitos
Humanos vai a Curitiba pedir fim do massacre”, compõe a SD 240B.

RT @midiacrucis: Canalhas do PSDB / Pres da Comissão de Direitos


Humanos vai a Curitiba pedir fim do massacre

Os trechos foram considerados SDs diferentes na medida em que a SD 240B


apenas reproduz uma mensagem postada originalmente por outro usuário, ao passo
que a SD 240A representa uma manifestação de opinião sobre o caso.
A análise das FDs permitiu identificar algumas recorrências no discurso, como
no caso de identificar quem são os atores responsáveis pelo ocorrido e o conteúdo das
mensagens. A partir da observação desses discursos, percebe-se que evidenciam a
construção de discursos de identidade desses grupos. Com isso, deixam de ser meros
signos e passam a ser vistos como práticas que formam sistematicamente os objetos
de que falam.
Segundo Foucault (apud GREGOLIN, 2006b, p.7), “desde sua raiz, o enunciado
se delineia em um campo enunciativo onde tem lugar e status, que lhe apresenta
relações possíveis com o passado e que lhe abre um futuro eventual, isto é, que o
insere na rede da História e, ao mesmo tempo, o constitui e o determina”.

Resultados e discussão

Assim, no contexto do conflito discursivo analisado, identificamos quem são os


atores responsáveis pelo massacre e os conteúdos postos em circulação. Em alguns
casos, a autoria é atribuída ao governador (“massacre de Beto Richa em Curitiba”) ou
ao governo (“Governo tucano promove massacre”), em outros, o massacre não possui
autoria (“Praça é palco de massacre”), e, ainda, há casos em que a culpa é atribuída à
PM (“PM cumpriu seu papel”), ou à presidente (“culpa da Dilma”). Em termos de
conteúdo, há situações em que a própria nomenclatura do episódio é discutida
(confronto ou massacre). A partir da identificação das principais formações discursivas,
foi possível perceber os diferentes sentidos atribuídos ao episódio por diferentes
atores, tanto indivíduos quanto a mídia, que utilizaram os termos “massacre” e
“Curitiba” para descrever o evento em seus tweets.
A autoria do massacre é atribuída a diferentes atores. A maior parte dos tweets
atribui esse papel ao governador do PR, Beto Richa, como na SD 96:

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RT @enioverri13: Mais de 100 feridos no massacre autorizado por


Beto Richa no Centro Cívico de Curitiba.

O segundo autor mais frequente é o “governo tucano”, como pode ser visto na
SD 471:

RT @JornaldoBrasil: Paraná: governo tucano promove massacre de


professores
Pelo menos 200 pessoas ficaram feridas http://t.co/n0OX0Xxz6t

Mas há também tweets que atribuem a autoria do massacre aos policiais que
entraram em confronto direto com os professores, aos próprios professores (como na
SD 129, abaixo), e até mesmo a Dilma (SD 742) ou a um governo federal omisso.

SD 129: Os caras querem partir p cima da polícia e ñ querem reação.


Aliás, querem e conseguem derramamento d sangue. Aí falam em
"massacre de Curitiba"

SD 742: Vejam o que dizem jornais internacionais sobre o massacre


de Curitiba: culpa da Dilma. O que diz a Dilma? Nada.
http://t.co/f1YZIwvRqZ

Ainda que várias mensagens discutam quem seriam os culpados pelo


confronto, a grande maioria dos tweets não discute a autoria, e sim outros aspectos
relacionados ao episódio.
Assim, é possível observar, por exemplo, inúmeros tweets que discutem a
própria nomenclatura do episódio, dizendo que deveria ser “massacre”, e não
“confronto”, como até então a mídia tradicional vinha reportando.

SD 627: RT @edufeuerh: O que acontece no Centro Cívico de Curitiba


não é confronto, é tentativa de massacre

SD 149A e SD 149B: “@g1: Confronto entre PM e professores deixa


mais de 100 feridos em Curitiba http://t.co/N8tKOQJg68 #G1
http://t.co/eKbnWWy4sX” MASSACRE!!!

SD 154: RT @palmeriodoria: Só a Folha pra chamar o massacre dos


professores em Curitiba de "confronto" com a PM, observa Miguel do
Rosário.

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Há ainda tweets que comparam o episódio com casos ocorridos na ditadura, e


até com o nazismo, em expressões como “governo nazitucano” ou “Beto Ritler”.

SD 234: RT @turquim5: Comissão de Direitos humanos vai a Curitiba


pedir fim do massacre tucano de #BetoRitler!!!
http://t.co/AscaeZxozi

SD 423: Governo Nazitucano promove massacre de professores e


estudantes em Curitiba #opiniao http://t.co/3Hk8nVTQkZ via
@JornaldoBrasil

SD 331: http://t.co/7itlzBGC6N Houve um massacre em Curitiba hoje.


Me fez lembrar 1968 nas ruas de Belo Horizonte em plena ditadura.
Que horror!

Ainda que diferentes olhares tenham sido lançados sobre o evento, dentre
aqueles que tuitaram usando os termos “massacre” e “Curitiba” há um certo consenso
no sentido de que os professores foram “vítimas” de um “massacre” promovido por
“Beto Richa”. Esse resultado está diretamente ligado com as palavras-chave usadas
para fazer a coleta de dados (“massacre” e “Curitiba”).

Considerações finais

A partir de um corpus composto por tweets contendo os termos “massacre” e


“Curitiba”, o artigo procurou discutir os sentidos em conflito acerca do episódio
ocorrido em Curitiba no confronto entre professores e polícia diante da Assembleia
Legislativa do Paraná no dia 29 de abril de 2015.
Para identificar esses sentidos em conflito, foram identificadas as principais
formações discursivas acerca do tema. A partir da discussão desses sentidos em
conflito, observaram-se os usos que se dão em condições diferentes de produção, que
podem ser referidos a diferentes FDs.
Especificamente no caso abordado, foi possível perceber os diferentes atores
identificados como responsáveis pelo ato, bem como o conteúdo das mensagens. Não
apenas professores e policiais são apontados como atores, como também – e
principalmente – o próprio governador do estado do Paraná, Beto Richa. Em relação
ao conteúdo, comparações são feitas com regimes extremistas (nazismo, fascismo,
ditadura), ao mesmo tempo que o episódio é narrado e criticado. A própria
nomenclatura do evento também é discutida.

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É preciso considerar as condições históricas para o aparecimento de um objeto


discursivo, uma vez que os sentidos dependem das relações constituídas nas / pelas
FDs. A partir da observação desses trajetos temáticos, percebe-se a construção de
discursos de identidade desses grupos.

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<http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2015/04/professores-entram-em-
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LIMA, Julio Cesar. “Confronto entre PM e professores no PR deixa cerca de 200
feridos”, Estadão, 29 abr. 2015. Disponível em:
<http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,confronto-entre-pm-e-
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ZAGO, Gabriela. Circulação e recirculação de narrativas do acontecimento no


jornalismo em rede: a copa de 2014 no Twitter. Tese (Doutorado em Comunicação
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professores em Curitiba. Zero Hora, 29 abr. 2015. Disponível em:
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apos-acao-da-pm-em-manifestacao-de-professores-em-curitiba-4750212.html>.
Acesso em: 06 nov. 2015.

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LINGUÍSTICA E NEUROCIÊNCIA EM DIÁLOGO:


O PROCESSAMENTO DE MÚLTIPLAS LÍNGUAS NO CÉREBRO

Bernardo Kolling Limberger1

Introdução

O multilinguismo é cada vez mais frequente em países como o Brasil, onde são
faladas 216 línguas, segundo informações coletadas no Ethnologue: languages of the
world (LEWIS et al., 2015). Cada vez mais, fala-se que o multilinguismo (bem como o
bilinguismo) está se tornando a regra, não sendo mais a exceção (BIALYSTOK et al.,
2009; GROSJEAN, 2010). Sendo assim, é imprescindível estudar o fenômeno a partir de
várias perspectivas, de modo que os interessados na sua manutenção possam se
pautar nesse conhecimento. Para tanto, é preciso ultrapassar as fronteiras da
Linguística, rumo à interdisciplinaridade (MACKEY, 1972).
Neste trabalho, considera-se o multilinguismo de acordo com a Linguística e a
Neurociência Cognitiva. Os trabalhos que se situam nessa interface, com relação a
multilinguismo, se concentram, muitas vezes, em responder parcialmente às seguintes
perguntas: Como o cérebro se adapta à fascinante habilidade de processar duas, três
ou mais línguas? Há diferentes redes neurais para o processamento de cada língua? Há
diferenças entre o processamento de segunda língua (L2) em bilíngues e o
processamento de terceira língua (L3) em multilíngues? Essas questões estão entre as
mais desafiadoras da Neurociência e da (Neuro)linguística contemporâneas (ANDREWS
et al., 2013). Essa interface é, portanto, bastante prolífera e requer, ainda, muitas
investigações.
Este trabalho se concentra na pergunta sobre as redes de processamento de
múltiplas línguas. O seu objetivo é apresentar um panorama de estudos sobre o
processamento de múltiplas línguas no cérebro. Para tanto, discutem-se alguns
pressupostos da Linguística e, então, da Neurociência Cognitiva, com relação ao
processamento multilíngue. Trata-se, portanto, de uma pesquisa bibliográfica. Saliento

1
Mestre e doutorando em Letras (área de concentração: Linguística) pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq).
E-mail: bernardo.limberger@acad.pucrs.br

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que esta pesquisa é de caráter preliminar, devido à limitação de espaço e de tempo,


pois ela se relaciona a uma tese de doutorado em andamento.

1 Multilinguismo na Linguística

O estudo sobre o multilinguismo, mais recente que o estudo sobre o


bilinguismo, teve sua terminologia emprestada e adaptada principalmente da área da
Aquisição de Segunda Língua (Second Language Acquisition). Por se tratar de uma área
recente, o uso da terminologia na pesquisa é problemático (JESSNER, 2008) e
inconsistente (DE ANGELIS, 2007). Os termos ‘segunda língua’ (L2), ‘língua estrangeira’
(LE) e ‘língua adicional’ são, muitas vezes, usados indistintamente para fazer menção a
uma língua que não é a materna (ELLIS, 1994). No entanto, sobre o uso desses termos
há muito debate na literatura2. O multilinguismo envolve, necessariamente, mais de
duas línguas; por isso, é preciso debater também sobre uma terceira língua (L3).
Jessner (2008) discute o uso dos termos especificamente na área do
multilinguismo. A autora postula que na pesquisa sobre aprendizagem de L2, por
exemplo, o termo L1 é usado para fazer menção à língua dominante do falante, mas é
de difícil aplicação ao contexto de aprendizagem multilíngue. A dominância não
corresponde necessariamente à ordem cronológica da aprendizagem ou à idade
aquisição e é sujeita à mudança. Conforme De Angelis (2007), uma terceira língua ou
língua adicional é frequentemente referida como uma L3, independentemente se for a
terceira, a quarta ou a sexta língua. De Bot e Jaensch (2013) consideram a L3, mas
enumeram as outras línguas de acordo com a idade de aquisição – L1, L2, L3, Ln (DE
BOT; JAENSCH, 2013). Todavia, Grosjean (2010) não diferencia multilíngues de
bilíngues. Desse modo, os trilíngues e multilíngues estão incluídos na sua definição de
bilinguismo, uma vez que bilíngues são “aqueles que usam duas ou mais línguas (ou
dialetos) nas suas vidas cotidianas” (GROSJEAN, 2010, p. 22).
Os multilíngues, conforme Cenoz e Jessner (2000), possuem algumas
peculiaridades, principalmente no que se refere à aprendizagem da L3. Entretanto,
muitas características são comuns ao bilinguismo e à aprendizagem de uma L2.
Conforme Jessner (2008), no estudo do multilinguismo há uma ponte entre a
aprendizagem de L2 (processo) e o bilinguismo (produto). Desse modo, o falante
multilíngue dispõe de ferramentas que podem ser usadas para estudar sistemas de
aprendizagem e também de sistemas já estabilizados. Segundo Cenoz (2013), as duas
abordagens são indispensáveis e se complementam.

2
Por exemplo, Ellis (1994), Rampton (1990) e Menezes (2014) discutem a terminologia pertencente à
Second Language Acquisition.

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Além de fatores individuais e sociais que afetam a aprendizagem das línguas, o


processo de aprendizagem e o produto (bilinguismo) podem influenciar
potencialmente a aprendizagem de uma terceira. Segundo Cenoz (2013), aprendizes
de uma L3 têm mais experiência linguística que aprendizes de uma L2, dispõem de
mais estratégias de aprendizagem/uso de línguas e níveis mais altos de consciência
metalinguística. Desse modo, se considerarmos as duas línguas que o multilíngue
normalmente já possui, ele tem um repertório linguístico maior que pode ser usado
como base para melhorar a aprendizagem de outras línguas. No multilinguismo, as
sequências de aprendizagem/aquisição das línguas podem possuir padrões diversos,
pelo menos quatro, segundo Jessner (2008): (1) as três línguas são aprendidas
consecutivamente (L1 → L2 → L3); (2) as três línguas são aprendidas simultaneamente
(Lx/Ly/Lz); (3) L1 e L2 são aprendidas simultaneamente antes da aprendizagem da L3
(Lx/Ly → L3) e (4) L2 e L3 são aprendidas simultaneamente depois da aquisição da L1
(L1 → Lx/Ly).
O multilinguismo não é, então, uma mera extensão do bilinguismo. Os
multilíngues não devem ser estudados e descritos considerando que eles são bilíngues
que falam línguas adicionais. Essa visão vem ao encontro da visão holística do
bilinguismo, defendida por Grosjean (2010). Essa definição é produtiva também para o
estudo do multilinguismo. Segundo De Bot e Jaensch (2013), talvez a definição de
Grosjean seja o modo mais apropriado de definir o estado atual do sistema linguístico
do multilíngue, por considerar o uso das línguas e não o nível de proficiência.
Portanto, as várias concepções do multilinguismo e os modos de descrevê-los
mostram fenômenos complexos e multifacetados, pois envolvem muitos fatores que
podem influenciar a experiência linguística e cognitiva (BIALYSTOK et al., 2009). Esses
fenômenos podem ser analisados de acordo com diferentes aspectos. Neste trabalho,
consideram-se os aspectos cognitivos, foco de investigação bastante recente dos
estudos do multilinguismo e até mesmo do bilinguismo (ZIMMER; FINGER; SCHERER,
2008; KROLL; BIALYSTOK, 2013).

2 Multilinguismo na Neurociência: método da busca pelos artigos

Estudos neurolinguísticos com multilíngues têm sido pouco frequentes, o que


reflete a variabilidade dessa população e a imaturidade da área de estudos, conforme
mencionado na seção anterior. Da busca em bases de dados3, com os indexadores
“multilingualism”, “brain” e “fMRI”, resultaram somente oito artigos que abordam o
processamento das línguas em falantes de mais de duas línguas. A ideia inicial era
3
As pesquisas foram realizadas nas seguintes bases de dados: PubMed, Science Direct, SciELO, APA
PsycNET e Web of Science. Os estudos foram selecionados depois da leitura do resumo.

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priorizar a leitura (foco da minha pesquisa de doutorado, em andamento); porém,


após os resultados iniciais da pesquisa nas bases de dados, o indexador “leitura” foi
excluído, restando, então, estudos sobre o processamento multilíngue nas diferentes
modalidades. Foram excluídos artigos com estudos (1) que contemplam estímulos não
linguísticos, (2) que investigam populações clínicas, (3) que contam somente com
tarefas comportamentais e (4) que abordam o controle executivo. Foram priorizados
estudos com ressonância magnética funcional (RMF), ferramenta utilizada para
estudar mudanças no cérebro enquanto os participantes fazem alguma tarefa. Como
explicam Huettel, Song e McCarthy (2004), a RMF utiliza fortes campos magnéticos
para criar imagens do tecido biológico, isto é, da organização da atividade funcional do
cérebro com uma resolução espacial muito boa.
Dentre os artigos selecionados, o primeiro publicado em 1996 (YETKIN et al.,
1996), o único publicado nessa década. Outros três artigos selecionados foram
publicados na década dos anos 2000 (BLOCH et al., 2009; BRIELLMANN et al., 2004;
VINGERHOETS et al., 2003). A maioria dos artigos foi publicada nos últimos anos
(ABUTALEBI et al., 2013; ANDREWS et al., 2013; KAISER et al., 2015; VIDESOTT et al.,
2010). O panorama dos estudos apresentado a seguir mostra, efetivamente, que a
área é incipiente e está, ainda, em desenvolvimento.

3 O processamento de múltiplas línguas no cérebro

A população anteriormente descrita, isto é, falantes de mais de duas línguas,


não tem sido alvo muito frequente de investigação – talvez devido à complexidade e
peculiaridades acima descritas. Sob a égide da Neurociência do bilinguismo, segundo
Perani e Abutalebi (2005), os estudos se limitaram principalmente à modulação de
processos neurais de acordo com a proficiência e idade de aquisição. Além disso, os
estudos com neuroimagem têm investigado as representações da L1 em comparação à
L2, adquirida precoce ou tardiamente, e têm estudado se a L1 e as outras línguas
compartilham os mesmos substratos neurais (VIDESOTT, 2009). A idade de aquisição e
o nível de proficiência têm sido as variáveis mais investigadas nessa área. No entanto,
esse panorama do processamento das línguas é observado principalmente em
bilíngues, falantes de duas línguas, com características diversificadas.
Em alguns estudos, foram investigadas as redes neurais do processamento das
línguas (L1, L2 e L3). O seu principal objetivo era verificar se os participantes
processavam as três ou mais línguas utilizando as mesmas áreas do cérebro em tarefas
de geração de palavras (YETKIN et al., 1996), de fluência verbal fonológica, nomeação
de figuras e leitura de narrativas (VINGERHOETS et al., 2003), de geração de verbos
com base em substantivos (BRIELLMANN et al., 2004) e de nomeação de figuras

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(VIDESOTT et al., 2010). Todos esses estudos foram consistentes no sentido de que
encontraram redes de ativação semelhantes para as três línguas. Houve ativação
principal na rede clássica da linguagem (PRICE, 2010), que abrange áreas do córtex
frontal (principalmente a região de Broca, ou giro frontal inferior esquerdo) e do
córtex temporoparietal do córtex (sobretudo a região de Wernicke, ou giro temporal
superior posterior). No entanto, como os estudos investigaram o processamento de
múltiplas línguas, essa rede não foi suficiente para descrever todo o mecanismo de
substratos neurais que estão relacionados a esse complexo processamento. Em alguns
estudos com multilíngues, foram encontrados também redes adicionais, no hemisfério
direito, especialmente nas regiões frontais do cérebro (VINGERHOETS et al., 2003;
ANDREWS et al., 2013) e, especificamente, pré-frontais (VIDESOTT et al., 2010).
Essa ativação homóloga à região de Broca pode ser interpretada no sentido de
processos cognitivos adicionais e necessários para o processamento da língua menos
proficiente; este engajamento também pode ser correlacionado com índices de
desempenho e velocidade de processamento (por exemplo, quanto mais acurado e
fluente a leitura, maior o engajamento de áreas pré-frontais). À medida em que o nível
de proficiência aumenta, a dependência da tradução da L1 pode diminuir; as redes que
subjazem o processamento da L2 convergem para as redes que subjazem o uso da
língua por falantes nativos. Pode haver, portanto, uma consequente convergência
entre representações semânticas encontradas, inclusive, na convergência de processos
neurais, hipótese já formulada por Green (2003) para bilíngues.
Além das regiões corticais envolvidas no processamento das línguas (sobretudo
a região de Broca e de Wernicke), Abutalebi et al. (2013) encontraram diferenças entre
multilíngues e monolíngues na ativação e no volume das estruturas subcorticais do
putâmen esquerdo. Os multilíngues teriam essa região mais desenvolvida e, também,
mais ativada. O putâmen é uma região do cérebro envolvida em processos
articulatórios na língua com menor nível de proficiência, ele faz parte dos gânglios
basais do cérebro e, em bilinguismo, está associado com o aprendizado de regras e
faria parte de um centro, ou hub, em inglês, controlador dos processos a serem
executados. Para o multilíngue, este controle sobre as diferentes línguas precisa estar
desenvolvido (BUCHWEITZ; PRAT, 2013). No multilinguismo, há um repertório
articulatório complexo, que desenvolve estruturas articulatórios como o putâmen.
Outra variável investigada nos estudos com multilíngues é a idade de aquisição,
assim como nos estudos com bilíngues, que demonstram, com frequência, que uma
língua adquirida tardiamente, em geral pode estar associada, em geral, com a ativação
de processos cognitivos adicionais àqueles da L1, mas com o desenvolvimento da
proficiência, mesmo em idade tardia, há um processo de convergência entre os

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substratos neurais – principalmente aqueles associados a processos semânticos


(PERANI; ABUTALEBI, 2005; INDEFREY, 2006).
Um estudo com multilíngues demonstrou que os níveis de ativação não são
necessariamente dependentes da idade na qual cada língua é aprendida (BRIELLMANN
et al., 2004), mas isso dependeria do nível de proficiência, justamente porque a idade
de aquisição não determina, necessariamente, o nível de proficiência em cada uma das
línguas (JESSNER, 2008). No entanto, nesse estudo, foram aplicados testes de
proficiência limitados, como teste de escrita de palavras e produção oral de história
com base numa história em quadrinhos. Seriam necessários testes nas outras
habilidades para determinar o nível de proficiência em cada uma das línguas, de modo
a não confundir idade de aquisição com nível de proficiência.
Por outro lado, Bloch et al. (2009) investigaram diferentes grupos (multilíngues
simultâneos, sequenciais e tardios) numa tarefa de narração silenciosa. Como
resultado, os multilíngues com exposição precoce demonstram menor variabilidade
nos níveis de ativação (Broca e Wernicke) nas três línguas do que os multilíngues
tardios. Isso indica que a exposição precoce a mais de uma língua daria origem a uma
rede que é ativada de forma mais homogênea no processamento das múltiplas línguas.
Outras diferenças entre multilíngues precoces e tardios foram encontradas por Kaiser
et al. (2015), que investigaram a diferença entre os dois grupos no que tange ao
volume da substância cinzenta das regiões da linguagem. Os multilíngues tardios
tiveram maior volume em várias áreas associadas à linguagem – essa aprendizagem
aumentaria o volume das áreas corticais associadas à linguagem, porque elas precisam
ser mais exercitadas (o processamento da L2 e da L3 não é automático, como no caso
dos multilíngues precoces). No cérebro dos adultos que aprenderam as línguas na
infância, a aprendizagem não teve tanto impacto no volume.
Os estudos com multilíngues não são consensuais quanto ao papel da idade de
aquisição no processamento das línguas. Dentre os poucos estudos já realizados,
parece haver uma influência dessa variável no desempenho dos participantes no
processamento das três ou quatro línguas (BLOCH et al., 2009; KAISER et al., 2015). Em
ambos estudos, foram utilizadas auto-avaliações e testes de duas a três horas, o que
pode resultar na distinção clara entre idade de aquisição e nível de proficiência. Testes
de tanta duração não foram aplicados no estudo de Briellmann et al. (2004). Estes
autores postulam que somente a proficiência é um fator que influencia o
processamento das línguas. Se a idade de aquisição tivesse sido mais bem controlada,
talvez os resultados teriam sido diferentes.

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Conclusão, diálogos e possibilidades

O panorama da pesquisa demonstra que as variáveis mais estudadas no


multilinguismo são proficiência (níveis diversos) e idade de aquisição. Apesar de
algumas generalizações serem possíveis, elas são extremamente frágeis, porque os
estudos variam muito no que concerne aos experimentos (produção no nível da
palavra e da sentença, leitura de palavras e pequenos textos, escuta passiva de
narrativas), aos grupos linguísticos (falantes de línguas muito diferentes foram
agrupados) e às comparações nas análises da RMF (em alguns estudos, o
processamento das línguas foi comparado ao processamento de caracteres sem
sentido; em outros, foi comparado ao processamento auditivo). Logo, é imprescindível
interpretar os resultados dos estudos com muita cautela e correlacioná-los com os
experimentos e os processos psicológicos investigados por cada estudo.
Os estudos conduzidos com as ferramentas neurocientíficas colocam em
diálogo Linguística e Neurociência, pois não seriam possíveis sem a utilização do
arcabouço teórico da Linguística, tanto com relação ao nível linguístico investigado
(fonético, fonológico, morfológico, lexical, sintático ou discursivo), quanto ao grupo
linguístico investigado, como no caso dos multilíngues. Além disso, Linguística e
Neurociência compartilham, como explicam Andrews et al. (2013), o foco no uso das
línguas e na aquisição, e também tem um design de pesquisa que é sensível a avanços
importantes do campo da Linguística em geral, como paradigmas da Psicolinguística e
a Sociolinguística. Os dados robustos sobre a proficiência em cada língua, contribuição
fundamental da Linguística, são um componente fundamental para a interpretação
dos resultados que surgem da RMF. É necessário, então, basear-se em toda a pesquisa
da Linguística, de modo a desenvolver experimentos ecologicamente válidos4, ou seja,
relacionados ao uso normal de cada língua.
Diante dos estudos acima apresentados, há uma gama de possibilidades de
pesquisas, necessárias para alcançar dados mais convergentes. Primeiramente, países
menos desenvolvidos, como o Brasil, podem contribuir com a pesquisa nessa interface,
devido à abundância de línguas que aqui são faladas, inclusive as minoritárias (línguas
indígenas e de imigração). Ainda, podem ser conduzidos estudos longitudinais como o
de Andrews et al. (2013), com experimentos nos níveis mais complexos das línguas

4
A expressão se refere à preocupação com a cientificidade dos métodos de pesquisa. Segundo
Bonfenbrenner (1979), uma investigação é considerada ecologicamente válida se é realizada em
configurações naturais e envolve objetos e atividades da vida cotidiana. Dependendo da investigação,
contudo, o laboratório pode ser um local totalmente apropriado para uma investigação, mas outros
ambientes da vida real podem ser inapropriados.

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(como o discursivo), que são mais ecologicamente válidos. Desse modo, segundo esses
autores, os resultados poderiam ser mais robustos.
As lacunas na literatura nos fornecem demandas e hipóteses para pesquisas
futuras. Não há consenso quanto à ativação bilateral no processamento da L2 ou da L3,
que não foi encontrada por todos os pesquisadores. Categorias linguísticas como a
exposição às línguas, o status das línguas e a consistência ortográfica, no caso de
tarefas de leitura, podem ser mais investigadas e controladas nos estudos. Seria
interessante incluir grupos maiores e mais homogêneos nas pesquisas, como no
estudo de Videsott et al. (2010), que contemplou falantes de uma comunidade do Tirol
do Sul, falantes da língua ladina; entretanto, essa tarefa é de difícil execução, pois a
variabilidade dos falantes multilíngues é grande: uma miríade de fatores faz essa
experiência profundamente heterogênea e potencialmente altera as suas
consequências (BIALYSTOK et al., 2009). É necessário, ainda, mensurar
adequadamente o nível de proficiência em todas as línguas, de modo que o nível de
proficiência e a idade de aquisição não sejam confundidos. De um lado, estamos diante
desses enormes desafios (tanto no nível técnico quanto prático), de outro estamos
diante da demanda, uma vez que tais estudos podem fornecer, futuramente, um
melhor entendimento da interação entre as línguas no cérebro e subsídios para
práticas de ensino de línguas estrangeiras. Ademais, como afirma Videsott (2010), o
entendimento entre os estudos linguísticos e a neurobiologia da linguagem permite
avançar o conhecimento sobre processos de aprendizagem, como esses se dão, e
sobre processos de compreensão e produção, como esses interagem e convergem
entre as línguas.

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INTERPRETAÇÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:


A ATIVIDADE RESPONSIVA E O ATO RESPONSÁVEL NA DECISÃO SOBRE O RACISMO

Bruna de Carvalho Chaves Peixoto1

Introdução

Primeiramente, cumpre elucidar que a atividade exercida pelo Supremo


Tribunal Federal - STF, como a mais alta instância do Poder Judiciário, consiste –
consoante a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – na interpretação
última dessa. A mencionada atividade se materializa através de suas decisões, em cujo
processo há a interferência de diferentes vozes sociais, compondo o cenário sócio-
histórico-ideológico que as fundamenta, bem como, consequentemente, as legitima.
Ao final, após a análise da decisão sobre a qual se debruçará este trabalho, bem como
a partir do dialogismo bakhtiniano, dos conceitos de ato ético, ato responsável e
atividade responsiva, verificaremos se a Suprema Corte realiza sua atividade
responsiva pautada nos conceitos mencionados, como consequência da interferência
dos fatores extralinguísticos e das diversas possibilidades de sentido da norma jurídica.
Destarte, no exercício de sua função, o STF, ao se deparar com questões
deveras polêmicas, deve se posicionar, realizando uma atividade responsiva, diante do
caso concreto que se lhe apresenta, considerando fatores extralinguísticos, isto é - o
contexto histórico, social, cultural, além dos valores considerados essenciais pela
sociedade. Nesse sentido, a Suprema Corte, em 2003, decidiu denegar a ordem
de habeas corpus ao livreiro Siegfried Ellwanger, acusado de racismo em virtude de
suas publicações contra os judeus. Neste caso, o Supremo teve que cotejar alguns
direitos, como a liberdade de expressão, que considerou não ser absoluta, com o
racismo, considerado, em entendimento que se tornou consolidado, vedação
constitucional de discriminação por qualquer motivo de raça, cor, religião,
etnia, origem nacional. Ao final, posicionou-se frente aos discursos antagônicos e
proferiu o Acórdão2 em tela, quando fez-se necessário, diante da unicidade do caso
1
Mestranda em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco.
E-mail: brunadccpeixoto@gmail.com
2
Trata-se o acórdão de uma decisão de um órgão colegiado ou de um tribunal, prolatado seja por
desembargadores seja por ministros de tribunais superiores.

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concreto, realizar uma interpretação extensiva do que seria racismo, crime


constitucionalmente previsto, para abarcar a conduta discriminatória do supra
mencionado livreiro.
A decisão final dependia do que seria definido como racismo e quais práticas
discriminatórias seriam abrangidas pelo conceito. Caso contrário, seria considerado
fato não tipificado penalmente e o réu seria absolvido, ou seria mero preconceito,
sobre o qual incidiria outra lei, mais benéfica ao editor-réu. A defesa do réu aduzia a
liberdade de expressão e a restrição do conceito de racismo, para tornar inexistente o
crime, uma vez que preconceito e discriminação contra judeu não seriam racismo, e
sim mero preconceito. O STF considerou que a realidade de fato vivida era compatível
com o conceito de racismo, condenando o réu por crime imprescritível.

Da interpretação do Supremo Tribunal Federal

No caso ora exposto, o qual será analisado à luz do dialogismo bakhtiniano, na


perspectiva da atividade responsiva e do ato responsável, abordaremos o dinamismo
interpretativo dos conceitos jurídicos pelos ministros – intérpretes – do STF, em
relação a um acontecimento do ser: a questão se a publicação de livros de conteúdo
antissemita se adequaria ao conceito de crime de racismo. Nesse sentido, serão
analisadas: as vozes sociais materializadas nos discursos/votos dos ministros da
Suprema Corte inseridas no contexto histórico-cultural e ideológico no qual está
inserida a decisão, a maneira pela qual o STF age responsivamente frente às demandas
que chegam até ele e sua decisão final. Não é suficiente, pois, verificar se o
acontecimento do ser, único, enquadra-se nos moldes do texto de uma norma
genérica e abstrata. Faz-se necessário um trabalho interpretativo, ético, de cuidado
com a repercussão da decisão na sociedade, considerando seus valores essenciais e
respondendo a eles através da decisão.
Nesse sentido, relativamente à atividade responsiva do STF, esta consiste na
elaboração da decisão a partir da interação-reação dos atores discursivos e na
interpretação ativa-responsiva, considerando fatores extralinguísticos que
condicionam o discurso. Destarte, analisaremos o processo discursivo do STF, cuja
base é a lei – produto teórico – que, através do ato responsável dos ministros diante
da realidade de fato vivida – o caso concreto –, constroem uma nova realidade,
operando uma mudança social, em um processo dialógico. Este estudo, portanto, tem
por objetivo demonstrar a legitimidade da decisão a partir
do dinamismo interpretativo, decorrente da irrupção do conceito teórico pela

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singularidade do caso concreto, evitando um preconceito e encontrando a pravda32: a


verdade como justiça.
Para alcançar o objetivo deste estudo, partimos do pressuposto de que, como
todo enunciado, as decisões no âmbito do Direito não são neutras: ao contrário, trata-
se de uma enunciação carregada de vozes transcendentes àquela materialmente
produzida, sendo imperiosa uma análise dialógica. A percepção dessas vozes sociais
indica que o discurso não é uma construção individualista; para Bakhtin, pois, eu sou
um eu participativo, em um conjunto de outras vozes veladas naquela proferida.
No entanto, para se chegar a essa conclusão e proceder às análises, em um
primeiro momento, é importante reconhecer que o Direito é linguagem, é discurso, de
modo que o dialogismo, a filosofia da linguagem, bem com os
conceitos de responsividade, ato ético, ato responsável são fundamentais para
compreender os posicionamentos do STF e, no caso em análise, a decisão do
racismo. As normas jurídicas, pois, dialogam entre si, integrando um sistema que deve
ser harmônico. Por isso, é de suma importância a atividade interpretativa do STF para
viabilizar a aplicação do Direito, respeitando todo o ordenamento, prevenindo
contradições, e ainda de acordo com a realidade de fato vivida. A atividade
interpretativa e o dinamismo do Direito, portanto, é que permite sua vigência, sua
justeza, sua segurança e a respeitabilidade da norma pela sociedade.
Nesse sentido, Bakhtin (1998) tem como centro de seus estudos o enunciado,
que, para ele, está intrinsecamente ligado ao sujeito que o profere, considerando o
meio sócio-histórico-cultural e ideológico, bem assim a realidade de fato vivida.
Ademais, impende frisar que, quando da enunciação de qualquer discurso, nesse caso
o jurídico, e da compreensão deste, os intérpretes exercem suas influências
ideológicas, daí a possibilidade de várias interpretações e manipulações, pois as
normas escritas constituem apenas as orações, conceito teórico, isto é – o ponto de
partida da construção do sentido. Desta feita, o processo de construção e segurança
desses direitos é dinâmico, mutável e não estanque, mesmo porque existe uma
interação do social e do sujeito intérprete, no caso o STF, quando do processo de
significação.
Outrossim, além dos fatores sociológicos, os interlocutores igualmente
condicionam o discurso, pois o outro é levado em consideração no ato da enunciação,
visto que – nessa interação – ocorre uma atividade responsiva, sendo a sociedade, no
caso das decisões do STF, o alfa do ômega do processo discursivo.

3
O conceito de pravda em Bakhtin está relacionado à ideia de verdade como justiça.

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O enunciado, portanto, é elaborado a partir da previsível reação-resposta do


outro. Sendo assim, quem profere o enunciado considera o contexto no qual está
inserido e no qual interage, sendo impossível separar o enunciado de seu contexto de
produção, sob pena de não se compreender seu sentido.
Destarte, ao se proferir um discurso, além de ele já ser uma atividade
responsiva, diante de outro discurso e do contexto sócio histórico cultural ideológico -
pois ninguém é o primeiro agente discursivo - o enunciador já pressupõe a
compreensão ativamente responsiva do outro. Consoante explica Bakhtin4:

O próprio falante está determinado precisamente a essa


compreensão ativamente responsiva: ele não espera uma
compreensão passiva, por assim dizer, que apenas duble o seu
pensamento em voz alheia, mas uma resposta, uma concordância,
uma participação, uma objeção, uma execução, etc.

Nesse sentido, é que se considera a sociedade o alfa e o ômega da


interpretação do discurso, uma vez que a produção de sentido é determinada pelos
anseios, necessidades e valores considerados essenciais pela sociedade. A
manifestação discursiva do Supremo Tribunal Federal, pois, deve ser considerada no
contexto, não só em consonância com o que a literalidade da norma permite, como
também com fatos passados e ainda – sobretudo –, levando em conta o contexto
presente, pois, como sujeito ativo, que é no ato interpretativo (responsável), o STF, por
seus ministros, através de sua atividade responsiva, consubstanciada no
discurso/enunciado, são capazes de modificar a realidade das estruturas sociais
preexistentes.
No caso concreto sob análise, o julgamento do habeas corpus do livreiro, além
de o STF ter realizado uma atividade responsiva diante dos discursos que atravessaram
o Acórdão, realizou, sobretudo, o que o filósofo russo chama de ato responsável, pois,
segundo a defesa do réu, não haveria que se falar em crime de racismo, tendo em vista
que a lei não discrimina expressamente o crime contra judeu. Ademais, a defesa fala
ainda que, não existindo raça humana, não existiria o crime, pois este seria impossível.
No entanto, embora não estivesse compreendido no conceito estrito de racismo,
nenhum conteúdo, por mais autossignificativo que seja, pode ser tão categórico e
peremptório, a ponto de excluir do âmbito de proteção, da normal, a flagrante
discriminação preconceituosa.

4
Trata-se o acórdão de uma decisão de um órgão colegiado ou de um tribunal, prolatado seja por
desembargadores seja por ministros de tribunais superiores.

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No caso concreto sob análise, o julgamento do habeas corpus do livreiro, além


de o STF ter realizado uma atividade responsiva humana, não existiria o crime, pois
esse seria impossível. No entanto, embora não estivesse compreendido no conceito
estrito de racismo, nenhum conteúdo, por mais autossignificativo que seja, pode ser
tão categórico e peremptório, a ponto de excluir do âmbito de proteção, da normal, a
flagrante discriminação preconceituosa.
Relativamente ao ato responsável, para Bakhtin, em Hacia una teoria del acto
ético (1998), existe a responsabilidade especializada e responsabilidade moral, como
dois aspectos que devem estar presentes no ato, compondo de forma unitária a
bilateralidade do ato ético. Aplicando os mencionados conceitos do filósofo russo ao
presente trabalho, verifica-se a responsabilidade especializada através das leis,
enquanto que a responsabilidade moral coincide com a proteção que se dá aos direitos
fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro, por meio, sobretudo, da atividade
exercida pelos intérpretes do Direito.
Existe, pois, uma responsabilidade moral, ética, de proteger o Direito, em sua
essência, no dever ser. Se assim não fosse, se não existisse essa responsabilidade, o
STF poderia ter aceitado a tese da defesa, de cunho formalista, que alegava que,
porque não existe raça no sentido genético, o crime seria impossível de se consumar, o
que seria apenas uma responsabilidade especializada, destituída de ética, senão, eis o
que explica Bakhtin (1998, p.8)5:

Para poder proyectarse hacia ambos aspectos – en su sentido y en su


ser -, el acto debe encontrar un plano unitario, adquiriendo la unidad
de la responsabilidad bilateral tanto em su contenido
(responsabilidad especializada) como en su ser (responsabilidad
moral), de modo que la responsabilidad especializada debe aparecer
como momento adjunto de la responsabilidad moral única e unitária.
Es la única manera como podria ser superada la incompatibilidad y la
impermeabilidad recíproca viciosa entre la cultura y la vida.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal acima do formalismo com que se defendia o


réu, busca a justiça. Se a Suprema Corte julgasse apenas com base na cognição teórica,
ou seja, no que está escrito na lei restritivamente, estaria excluída realidade de fato
vivida, restando endossada pelo Supremo - órgão da justiça - uma gritante injustiça.
Consoante Bakhtin (1998), o dever ser tem natureza ética, e não meramente teórica,
afirmando ainda que o ato responsável não pode ser encontrado no conteúdo teórico
e, consequentemente, em relação ao presente trabalho, na lei, porque, nesse caso, ela
5
BAKHTIN, Mikhail. Hacia uma filosofia del acto ético. Espanha: Anthropos Research & Publication,
1998, p. 8.

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é uma abstração, e não um fato vivido. A lei não consegue dar conta de todas as
situações, devendo o intérprete verificar se determinado caso particular corresponde
ao dever ser objetivado pela lei.
Segundo sugere Bakhtin (1998), em Hacia una filosofia del acto ético, o objeto
do conhecimento teórico, que, no presente trabalho é representado pela lei, não
pode pretender ser suficiente em todas as situações, uma vez que é geral e abstrata,
pretendendo ser unificada e total. Contudo, em diversas situações, como esta do HC
82424 RS, a lei é irrompida pela singularidade. Sendo assim, diante dos fatores
extralinguísticos mencionados e das vozes sociais sobre preconceito, foi necessário se
distanciar da técnica e do formalismo, para julgar como realmente o fato da
publicação dos livros se deu, em sua particularidade realmente vivida e se esse fato,
de acordo com o contexto social, histórico e ideológico do momento julgamento,
estaria em consonância com o dever ser pretendido pela norma.
O ato de julgamento do STF é, pois, também, responsivo, uma vez que
considera as vozes sociais a respeito dos valores essenciais da sociedade, estando o
julgado, consequentemente, permeado por elas, opondo-se igualmente a outras vozes
formalistas, e é também um ato responsável, pois, para afastar o formalismo do
mundo teórico abstrato e geral, teve que considerar a singularidade do fato realmente
vivido, com o fito de se encontrar o que Bakhtin (1998) chama de pravda.
Eis o que afirma Bakhtin (1998, p. 51), em Hacia una filosofia del acto ético6:

El aspecto del sentido abstracto, sin correspondencia con la unicidad


inexorablemente real, tiene capacidad de proyectarse; se trata de
una especie de borrador de un hacer posible, documento sin firma
que no es obligatorio para nada ni nadie.

O HC 82424

Feita uma breve análise das teorias que embasarão o estudo, segue um resumo
do caso concreto, da realidade de fato vivida, que foi objeto da decisão do Supremo, a
fim de explicar melhor o que fora dito acima.
O Supremo Tribunal Federal, em 2003, no Habeas Corpus 82424 RS, deparou-se
com a polêmica do racismo em uma de suas manifestações, até aquele momento não
discutida. O presente caso, consoante verifica-se a partir da ementa do processo

6
BAKHTIN, op. cit, p. 51.

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disponível também no próprio sítio eletrônico do STF, trata do caso em que um


escritor e editor, Siegfried Ellwanger, publicava livros de conteúdo antissemitas.
O editor foi acusado pela prática do crime de racismo, em virtude da edição e
venda de livros fazendo apologia a ideias preconceituosas e discriminatórias. No
entanto, a defesa, na fundamentação do pedido de habeas corpus questionou o
conceito de racismo, afirmando que judeu não seria raça; e, portanto, o crime de
racismo – neste caso – seria impossível. Destarte, através de argumentos meramente
formais sobre a abrangência do conceito do termo, em sua literalidade, a defesa
buscava a concessão da ordem. Para a defesa, a prática do réu não tinha conotação
racial, pretendendo afastar a imprescritibilidade do crime, uma vez que, na CF/88, só
existem dois crimes imprescritíveis e um deles é o racismo.
Em breve síntese, para explicar o que é imprescritibilidade e o porquê de a
defesa querer afastá-la, pode-se dizer que é a característica excepcional de um crime
deveras grave, que jamais poderá ser esquecido pela sociedade, sendo permanente o
interesse do Estado em puni-lo, não se apagando pelo decurso do tempo.
Sendo assim, se a defesa conseguisse a desclassificação do crime de racismo
para outro crime, estaria afastada a imprescritibilidade, para que, até o final do
julgamento do HC em tela, fosse possível a suspensão da execução da sentença,
reconhecendo-se, finalmente, a extinção da punibilidade pela prescrição (decurso do
tempo que apagaria a pretensão executória do Estado).
Percebe-se, portanto, que a defesa do réu baseava-se apenas em meros
formalismos para, ao final, extinguir a punibilidade, e não o crime. A fundamentação
não se baseou em negar a existência do crime, ou da falta de dolo (intenção) de
praticar o racismo. Procurava-se apenas afastar o poder punitivo do Estado, por
questões processuais, ou seja, a extinção da punibilidade, à qual se chegaria através da
restrição do conceito de racismo, de raça, e, consequentemente, afastando esse crime
e classificando outro, que estaria prescrito ao final do processo.
O paciente do mencionado Habeas Corpus vendeu, publicou e editou obras de
sua autoria, como Holocausto Judeu ou Alemão? – Nos bastidores da mentira do século
e de autoria de outras pessoas tanto nacionais quanto estrangeiros, como Hitler –
Culpado ou Inocente?. Nestes livros, embora a defesa tentasse restringir o conceito de
racismo, o STF entendeu que os livros publicados defendiam ideias discriminatórias e
racistas, disseminando o ódio, o desprezo e o preconceito contra o povo de origem
judaica, em contraposição à defesa que, conforme já foi dito, alegou questões apenas
formais.
Para a definição do crime de racismo, o ponto oito da ementa do Acórdão
proferido pelo STF define bem as bases que influenciaram o alcance da norma,

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demonstrando a influência de fatores extralinguísticos, bem como a interferência de


diversas vozes sociais no discurso de cada ministro, quando de seus votos, e,
consequentemente, no discurso do próprio STF materializado no Acórdão.
Para o Ministro Marco Aurélio, o livreiro não teria cometido o crime de
racismo, defendeu ainda, em contraposição ao crime, a liberdade de expressão, direito
fundamental previsto na CF/88, afirmando que a Carta Magna não se referia ao povo
judeu quando cuidou da prática do crime de racismo, e sim dos negros.
Para esse ministro, a publicação desses livros é manifestação da liberdade de se
expressar, expondo suas ideias, seu ponto de vista, e que teria se configurado o crime
de racismo se ele, ao invés disso, tivesse ido para as ruas disseminar ideias de morte
aos judeus, ou expulsão dos judeus do país.
A questão do HC 82424 RS é verificar se a realidade de fato vivida levada à
discussão no STF está inserida no conceito teórico do crime de racismo, isto é, se a
publicação de livros de conteúdo preconceituoso e antissemita é racismo, crime
imprescritível, por ser considerado deveras grave.
Finalmente, os ministros entenderam que a prática de racismo abrange a
discriminação contra os judeus.
Importante mencionar que a questão semântica foi expressamente
mencionada pelos ministros, quando da aferição da abrangência do conceito de raça.
Afastaram o conceito tradicional de raça e afirmaram que essa classificação dos seres
humanos decorre de um processo político social, senão veja-se o ponto oito da ementa
do Acórdão7:

8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos


etmológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos,
de modo a construir a definição jurídico-constitucional do termo.
Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal,
conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que
regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e
o alcance da norma.

Percebe-se claramente o tratamento do Direito como linguagem, a importância


da interpretação, da influência de fatores extralinguísticos na definição da norma,
diante das variadas formas de interpretação.
Destarte, a partir da mencionada decisão, uma das mais importantes do STF,
analisaremos o ato responsável dos ministros e a questão do conceito teórico que não

7
http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=79052&tipo=AC&descricao=Inteiro%20Teor
%20HC%20/%2082424 acesso em: 27 de outubro de 2015, p. 524.

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é capaz de abranger a totalidade das realidades de fato vividas. Outrossim, será


importante neste trabalho a consideração do ato ético, o dever ser do caso particular.
A defesa, pois, ao tentar descaracterizar o crime de racismo e enquadrar a
prática do editor em outro crime com tratamento mais brando, pretendia afastar a
imprescritibilidade, ao afirmar que, se o Constituinte8 quisesse que o sentido de
racismo fosse tão abrangente, a norma constitucional não teria se referido apenas a
racismo, mas teria falado em qualquer prática discriminatória.
O Supremo, no entanto, demonstrou que a intenção do Constituinte era
realmente que o conceito fosse aberto, o que seria mesmo que não fosse sua vontade,
pois a abertura conceitual é característica dos conceitos teóricos, que não existem em
um vácuo, exilados da realidade de fato vivida. Ainda, comprovando a vontade de que
o conceito seja mais flexível, do que pretende a defesa ao tentar engessá-lo, eis o texto
in verbis da norma: “a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível,
sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.” (grifado).
E, com a transcrição acima, o STF afirma que não era intenção do Constituinte
fechar o conceito, tornando-o imutável e estanque, tendo, ao contrário, deixado que o
legislador definisse o conceito, que abrange não só preconceito referente à cor, como
também, à religião, à etnia ou origem nacional.
Isto porque, fechando o conceito, seria impossível a lei se sustentar diante da
pluralidade e complexidade das relações jurídicas, da realidade de fato vivida, uma vez
que o conceito teórico não é suficiente diante do dinamismo da vida. Dessa forma, a
melhor alternativa para permitir a integração da norma é pela interpretação de forma
coerente com o contexto histórico, social, cultural e ideológico. Segundo afirma
Bakhtin9 (1998, p. 14), é impossível separar o ato ético do momento histórico, do
momento vivido, senão veja-se:

Una vez separado el aspecto de contenido semántico de la


congnición de lacto histórico de su realización, sólo mediante un
salto podemos salir de ahí hacia el deber ser; de modo que buscar el
acto ético real de conocimiento em un contenido semántico
separado es lo mismo que levantarse a si mismo por el cabelo.

Segundo o Ministro relator, Moreira Alves, o problema discutido em sede de


habeas corpus é a abrangência do sentido do conceito jurídico do racismo. E,
considerando o conceito em seu sentido mais estrito, o ministro respondeu

8
Constituinte é expressão que equivale a Poder Constituinte, que é o responsável pela elaboração da
Constituição.
9
BAKHTIN, op. cit, p. 14.

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negativamente sobre os judeus serem ou não pertencentes uma raça judaica.


Afirmou que, não sendo raça, deve-se qualificar o crime do livreiro como
discriminação, e não como racismo, sendo prescritível a pretensão punitiva do Estado
neste caso.
O então Presidente o STF, o Sr. Maurício Corrêa, através de um longo relato
sobre a história dos judeus, desde o início até a Segunda Guerra Mundial, relacionando
esses fatos com a prática criminosa do réu, demonstrando que, embora não sejam
raça, os judeus são um povo deveras sofrido devido à estigmatização por que
passaram. Diante disso, ele questiona se a Carta Magna, ao estabelecer o crime de
racismo, pretendeu excluir da proteção constitucional outros segmentos do povo
brasileiro, protegendo só os negros.
Para ilustrar como a consciência histórica influenciou o voto do ministro 10, eis
uma passagem de sua fundamentação, na página 551, do processo em questão:

Se formos catalogar todo o sofrimento dos judeus desde a época em


que Abraão de Ur até hoje, presenciaremos repetidos fatos –
amargos e terríveis – que denegriram a história, humilhando e
martirizando não uma raça, salvo as tresloucadas concepções de
Hitler e de seus asseclas-, mas um povo. E a mais dura quadra, a mais
triste, a mais cruel, aquela que nos deixou marcados para o resto da
vida foi a da Segunda Guerra Mundial, em que mais de seis milhões
de judeus foram mortos, exterminados nos campos de concentração
de Auschwitz, de Dachau e em tantos outros. Antes, porém,
experiências sem nenhum sentido científico utilizaram esses seres
humanos como cobaias vivas, legando a alguns sobreviventes, a seus
amigos e familiares, e à humanidade como um todo lúgubres
memórias e marcas indeléveis de dor e aflição.
Há de perguntar-se qual a relação disso tudo com o presente
julgamento?
Sei que a loucura de Hitler nada tem a ver com o caso em si – e não
falo isso para situar-se nesse terreno. Estou apenas dizendo que o
povo judeu foi estigmatizado. Nas casas e passaportes judaicos havia
um J como sinal indesejado, do proscrito. Veja-se o que esse povo
sofreu e vem sofrendo até hoje...

Além destas discussões sobre a abrangência do conceito e o acontecimento do


ser concreto, os ministros ainda realizaram uma ponderação entre a proteção
constitucional contra o racismo e outros direitos fundamentais, como a liberdade de
expressão e, ainda assim, prevaleceu o entendimento de que o preconceito contra os
judeus é racismo, negando-se a ordem de habeas corpus.
10
CORRÊA, Maurício. Ex-ministro do STF. HC 82424, Rio Grande do Sul, 2003, p. 551.

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Conclusão

Finalmente, visto que a questão central que definiria o julgamento foi a colisão
entre o conceito teórico e a realidade particular do caso concreto, o dialogismo
bakhtiniano e os conceitos de atividade responsiva e ato responsável são
imprescindíveis para a interpretação da norma e construção de um Direito justo e
legítimo, com força normativa perante a sociedade. Não existe, pois, um conceito tão
definitivo e categórico que, para o alcance do significado, seja suficiente a mera leitura
e sua aplicação à realidade de maneira meramente formalista.
Dessa forma, a decisão, uma vez que o problema central seria a abrangência do
conceito teórico – a lei –, só poderia se dar se fosse elaborada dentro de seu contexto
social, histórico e ideológico, agindo o STF responsivamente em relação aos valores
que a sociedade considera essenciais, respeitando não só a responsabilidade formal (a
lei), ou seja, o produto cultural, como também a responsabilidade moral, adimplindo o
compromisso de garantir que o sentimento da norma seja respeitada, que o direito
dos judeus seja protegido.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Hacia uma filosofia del acto ético. Espanha: Anthropos Research &
Publication, 1998.
______. Estética da criação verbal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.
http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=79052&tipo=AC&descricao
=Inteiro%20Teor%20HC%20/%2082424 acesso em: 27 de junho de 2015.

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RELAÇÃO ENTRE PRODUÇÃO DISCURSIVA, NÍVEL DE ESCOLARIDADE E DECLÍNIO COGNITIVO

Bruna Tessaro1
Ellen C. Gerner Siqueira2
Fernanda Soares Loureiro3
Lilian Cristine Hübner4

Introdução

O aumento da expectativa de vida da população mundial traz consigo um maior


número de casos de demência. De acordo com o Relatório Mundial de Alzheimer
(World Alzheimer Report) (PRINCE, 2015), estima-se que 46,8 milhões de pessoas
vivem com demência no mundo, e a tendência é que este número dobre a cada vinte
anos. Em países da América Latina, como o Brasil, a falta de assistência para pessoas
demenciadas e seus cuidadores é visível e estratégias emergentes são cada vez mais
necessárias. Além disso, a pesquisa em demência ainda é deficitária se comparada às
pesquisas feitas nos países de primeiro mundo. Diante desse cenário, é cada vez mais
importante que os pesquisadores direcionem seus esforços para entender melhor o
processo demencial, visando diagnosticá-lo precocemente e até mesmo retardá-lo. A
Doença de Alzheimer (DA) é uma das formas de demência mais comuns e caracteriza-
se por uma degeneração cerebral. De acordo com os critérios mundialmente aceitos e
usados por profissionais da área médica, o National Institute of Neurological
Communicative Disorders and Stroke/Alzheimer’s Disease and Related Disorders
Association (NINCDS/ADRDA) (MCKHANN et al., 2011), para um diagnóstico acurado
de DA, o paciente deverá apresentar déficits de memória e alterações em, no mínimo,
um dos seguintes domínios cognitivos: linguagem, atenção, funções executivas,
1
Mestranda em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul. Bolsista CNPq.
E-mail: btessaro@icloud.com
2
Graduanda de Licenciatura em Língua Portuguesa e respectivas Literaturas. Bolsista de Iniciação
Científica BPA da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
E-mail: ecgsiqueira@gmail.com
3
Doutora em Ciências da Saúde pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
E-mail: fernanda0801@gmail.com
4
Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação em Letras e da Faculdade de Letras da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
E-mail: lilian.c.hubner@gmail.com

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habilidades visuoespaciais e habilidades psicomotoras. O Comprometimento Cognitivo


Leve (CCL) tem sido apontado como uma possível fase inicial da DA, tendo uma forte
associação com a demência. Um dos fatores de maior risco para a evolução para
estágios demenciais é a idade (GARCIA, REILLY, 2015), ou seja, quanto mais idade,
maior a propensão para a DA, porém outro fator também pode impactar a cognição: a
escolaridade. No entanto, pouco se sabe sobre sua relação com a linguagem no
declínio cognitivo. No que concerne aos estudos de linguagem na DA, a maior parte
dos estudos concentra-se no nível lexical, como em testes de nomeação e associação
semântica, demonstrando um acometimento principalmente em categorias de itens
animados (GARRARD, et al., 2005; REILLY et al., 2011). No entanto, poucos são os
estudos no nível do discurso, principalmente entre as populações de baixa
escolaridade.
Neste trabalho, são discutidas as produções de dois gêneros discursivos
diferentes, a produção de uma notícia atual e a produção de uma história
autobiográfica engraçada. Embora as duas produções envolvam a representação
linguística de um evento por meio de uma narração, a notícia depende mais da
memória de eventos recentes, enquanto que a produção da história engraçada
envolve a memória autobiográfica, portanto, de longo prazo. Segundo Soares, Brandão
e Lacerda (2012), o prejuízo no discurso é um dos maiores problemas comunicacionais
enfrentados pelas pessoas com DA. Em tarefas conversacionais, por exemplo,
pacientes com DA apresentam mudanças abruptas de tema e dificuldade de
manutenção do tópico. No envelhecimento saudável, Salles e Brandão (2013) apontam
para casos de um comportamento verborrágico, característico de um discurso mais
incoerente, com inclusão de informações irrelevantes. De acordo com as autoras, duas
hipóteses podem explicar esse discurso. A primeira é a hipótese do déficit de inibição,
caracterizada pela falta de objetividade discursiva originada na dificuldade em inibir as
informações irrelevantes. A segunda hipótese sinaliza para um déficit de cunho
pragmático, em que se valoriza a intenção comunicativa do falante, associada ao seu
contexto social. Em uma revisão sistemática, Jerônimo e Hübner (2014, p. 13) listam as
principais dificuldades discursivas em pessoas com DA encontradas na literatura:

dificuldade em encontrar palavras, repetições lexicais, problemas


com coerência global, uso de proposições incompletas e repetidas,
uso de proposições pouco informativas, necessidade de maior tempo
na resolução da atividade e menor acurácia linguística, falta de
marcadores temporais e referenciais, pouca coerência global, falta de
um padrão discursivo, dificuldade na microestrutura e no modelo
situacional da narrativa, utilização de frases curtas e fragmentadas,

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pouca complexidade sintática, falta de manutenção do tema, baixa


acurácia do conteúdo e um discurso pouco informativo, assim como
prejuízos de escrita. (JERÔNIMO, HÜBNER, 2014, p. 13)

Um dos maiores desafios ao estudar linguagem em populações com declínio


cognitivo é a complexidade da interação linguagem e memória (GARCIA, REILLY, 2015).
Os dois processos estão intrinsecamente conectados, de forma que déficits nas tarefas
de discurso podem ser atribuídas a ambos os processos cognitivos.
Além da avaliação da produção oral discursiva de pessoas com DA e CCL, foi
avaliada a mesma produção de idosos saudáveis de acordo com seus níveis de
escolaridade (alto e baixo). Busca-se saber se o nível de escolaridade estará associado
ao desempenho das tarefas realizadas, uma vez que os anos de educação formal, os
hábitos de leitura e escrita, o tipo de profissão, dentre outros fatores, têm sido
reportados na literatura como relacionados às reservas cognitivas, que por sua vez
estão conectadas a uma proteção diante do declínio cognitivo (STERN, 2012).

Método

Foram avaliadas, no total, 73 transcrições de produções discursivas dos quatro


grupos que participaram deste estudo. As produções foram coletadas na PUCRS e no
Hospital São Lucas, a partir de uma parceria com pesquisadores do Programa de
Envelhecimento Cerebral (PENCE). O programa atende a moradores dos bairros
próximos à universidade. O diagnóstico de DA e CCL foi dado pelo neurologista do
programa, segundo critérios do NINCDS/ADRDA (MCKHANN et al., 2011; ALBERT et al.,
2011). As transcrições seguem as Normas Urbanas Cultas5.

Participantes

Participaram do estudo 37 pessoas, divididas em quatro grupos. O grupo


diagnosticado com DA é composto por 7 participantes, com idade entre 60 e 80 anos
(média de 71,3); o grupo CCL é composto por 7 participantes com idade entre 64 e 80
(média de 72); ambos os grupos com declínio cognitivo (CCL ou DA) são de baixa
escolaridade e terão como grupo de controle o de saudáveis de baixa escolaridade; o
grupo de saudáveis foi dividido em dois grupos de acordo com a escolaridade: o grupo

5
Normas Urbanas Cultas: NURC/SP nº 338 EF, 331 D2 e 153 D2

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de saudáveis de alta (SA) escolaridade tem 18 participantes com idade entre 60 e 73


anos (média de 66,9) e mais de 8 anos de escolaridade; o grupo de saudáveis de baixa
(SB) escolaridade é composto por 5 participantes com idade entre 64 e 76 anos (média
de 70,03 anos) e com 2 a 8 anos de escolaridade. Todos os participantes deram seu
consentimento formal para participação na pesquisa, protocolada no Comitê de Ética
em Pesquisa da PUCRS sob registro de número 21006913.0.0000.5336, resolução
466/12.

Instrumentos e procedimentos para a coleta

O Mini Exame do Estado Mental (FOLSTEIN, FOLSTEIN, MCHUGH, 1975) foi


aplicado em todos os participantes a fim de verificar o estado cognitivo, e os pontos de
cortes foram baseados no estudo adaptado para a população brasileira de Laks et al
(2003).
O Geriatric Depression Scale (SHEIKH, YESAVAGE, 1986) validado para a
população brasileira (ALMEIDA, ALMEIDA, 1999) foi administrado para avaliar estados
de depressão dos participantes, sendo que os diagnosticados como depressivos foram
excluídos do estudo.
Dois instrumentos foram aplicados, com a instrução dada oralmente pelo
examinador ao participante:

I. Produção de uma notícia: Por favor, agora me conte uma notícia ou fato
recente que tenha ouvido no rádio, assistido na TV ou lido no jornal.
II. Produção de uma narrativa: Gostaria que o(a) senhor(a) me contasse uma
história engraçada que aconteceu com o(a) senhor(a), ou que o(a) senhor(a)
presenciou, ou que lhe contaram.
As coletas foram feitas em sessões individuais em ambiente silencioso. As
produções dos participantes foram gravadas em áudio e transcritas posteriormente.

Análise dos dados

Os textos produzidos pelos participantes foram analisados de forma quantitativa


e qualitativa, tendo como base os seguintes critérios: dificuldade de compreensão da
instrução, necessidade de encorajamento para começar, relato exclusivo do tópico,
troca de tópico, perseveração (repetição contínua e persistente na exposição de uma
ideia), verborragia (uso excessivo de palavras para explicar algo não relacionado ao
tópico), confabulação (ideia fantasiosa acerca de algo, fruto da imaginação), anomias

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(ausência de palavras), parafasias (troca de palavras), solicitação de auxílio, recusa a


falar. A pontuação de cada critério deu-se da seguinte forma: 0 para sim (presença), 1
para parcialmente e 2 para não (ausência). Desta forma, quanto maior a pontuação,
melhor era a produção discursiva. Na análise quantitativa, realizada pelo software SPSS
(versão 17), considerou-se a soma da pontuação de todos os critérios para se chegar
ao escore total de cada produção, com máximo de 24 pontos para a narrativa e 30
para a notícia. Na tarefa da narração da história engraçada, analisou-se também a
hierarquia dos acontecimentos, ou seja, a narrativa deveria apresentar um começo,
um meio e um fim, com classificação baseada na superestrutura da narrativa de Adam
(1987). Na tarefa de produção de uma notícia, analisou-se a presença dos elementos
mais importantes na narração de um fato, segundo paradigmas do jornalismo
moderno: quem, o quê, onde e quando (LAGE, 2006). Durante a análise dos dados,
sentiu-se a necessidade de contabilizar os julgamentos pessoais feitos pelos
participantes com relação à notícia, uma vez que, segundo Lage (2006), a notícia não
deve ser avaliada por seu conteúdo moral, ético ou político. Portanto, comentários
como “a gente vê tanta notícia ruim por aí” não foram contabilizados no escore total,
mas foram analisados qualitativamente em separado, como “avaliação pessoal”.

Resultados

Não houve diferença estatisticamente significante entre as idades dos


participantes dos grupos (p>0,05), com exceção dos grupos saudáveis, em que os SA
são mais jovens do que os SB (p=0,007). Em relação ao MMSE, o grupo SA obteve
escores mais altos (<0,001). Porém, os grupos de saudáveis não se distinguiram
estatisticamente em nenhum quesito na comparação entre as duas produções
(p>0,05). A Tab. 1 resume os resultados, incluindo dados sociodemográficos e das
tarefas.

Tabela 1 – Características dos grupos e resultados dos teste t.


Grupos
DA CCL SB SA
n 7 7 5 18
Idade 71,3 ± 9,5a 72 ± 8,4a 70,3 ± 6,3a 66,9 ± 6,3b
MMSE 16,2 ± 4,5a 20,8 ± 4,6b 25,7 ± 3,7c 28,2 ± 1,9d
GDS 2,8 ± 3,4a,b 3,7 ± 1,8a 1,9 ± 1,6a,b,c 2,5 ± 2,7c
Notícia 12,3 ± 10,9a 12,9 ± 12,3a 24,8 ± 4,1b,c 23,6 ± 6,7c
Narrativa 11,3 ± 10,7a,b 13,3 ± 9,4a 22 ± 2,6b,c 18,3 ± 7,1c
Fonte: As autoras.

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Notas: Em cada teste, os valores assinalados com a mesma letra não tiveram diferença estatisticamente
significante (p<0,05) entre eles. DA: Doença de Alzheimer; CCL: Comprometimento Cognitivo Leve; SB:
Saudáveis de baixa escolaridade; SA: Saudáveis de alta escolaridade. MMSE: Mini-Exame do Estado
Mental; GDS: Geriatric Depression Scale.

O grupo DA, na comparação com SB, obteve escores significativamente mais


baixos no MMSE (p<0,001), na produção da notícia (p=0,024) e na história engraçada
foi marginalmente significativo (p=0,051), tendo também escores inferiores ao seu
grupo controle. O grupo CCL obteve desempenho significativo mais baixo no MMSE
(p<0,001), no GDS (p=0,012), na notícia (p=0,045) e na história engraçada (p= 0,039),
na comparação com SB. As comparações entre os grupos DA e CCL mostraram que eles
diferem somente no MMSE (p=0,002). Alguns participantes recusaram-se a produzir as
histórias. A história engraçada não foi produzida por um participante com DA, três com
CCL e dois SA. A notícia não foi produzida por três participantes do grupo DA, três do
CCL e um do SA.
A análise qualitativa da produção da narrativa mostrou que os grupos clínicos DA
e CCL tiveram dificuldades em compreender a instrução, fazendo com que o
examinador tivesse que explicar com outras palavras o que deveria ser feito. O grupo
DA necessitou muito mais encorajamento do examinador para iniciar a sua produção.
Nessas situações, o examinador deu ideias ou fez perguntas para encorajar o
participante a falar. O relato exclusivo do tópico não foi feito de forma significativa por
esses participantes. O grupo DA apresentou muita dificuldade em manter-se no tópico,
mudando de assunto bastante frequentemente. O grupo CCL demonstrou
perseveração, enquanto que os outros grupos, de saudáveis, tiveram desempenhos
semelhantes. Todos os grupos apresentaram comportamentos verborrágicos. Nenhum
grupo apresentou confabulações ou solicitou auxílio ao entrevistador durante a tarefa.
O grupo de SA apresentou algumas anomias, interessantemente, pois se esperava que
os grupos DA e CCL apresentassem anomias. O grupo DA produziu histórias mais
incompletas que os outros grupos, e isso se revelou na análise da sequência
cronológica dos acontecimentos.
Já na produção da notícia, o grupo CCL demonstrou mais dificuldades na
compreensão da instrução na comparação com os demais grupos. Todos os grupos
necessitaram encorajamento para a produção da notícia, sendo que o grupo DA foi o
que mais precisou. O relato exclusivo do tópico também foi feito por grande parte dos
participantes. Troca de tópico, perseveração e confabulação não foram problemas
para nenhum dos grupos nesta tarefa. De todos os grupos, apenas dois participantes
do grupo CCL, um do SA e um do SB, foram verborrágicos na sua produção. Nenhum
dos participantes solicitou auxílio para completar a tarefa. Quanto aos elementos da

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notícia, o QUEM e O QUÊ foram os mais mencionados pelos participantes, enquanto


que ONDE e QUANDO foram menos. Em relação à comparação dos grupos, o grupo DA
foi o que apresentou menos elementos da notícia, seguido pelos grupos CCL, SB e SA,
evidenciando uma produção reduzida de elementos feita pelo grupo DA.

Discussão

De uma forma geral, as tarefas linguísticas se mostraram sensíveis na


diferenciação dos grupos clínicos dos saudáveis, porém não entre os grupos DA e CCL,
e entre SA e SB. A diferença de idade e escolaridade entre os grupos SA e SB pareceu
não influenciar o desempenho dos grupos nas tarefas, uma vez que eles não
apresentaram diferenças significativas nas produções. A familiaridade com as
produções discursivas dos grupos pode ter ajudado nisso, uma vez que, para grupos
sem declínio cognitivo (SA e SB), falar sobre um acontecimento pessoal e sobre uma
notícia recente pode ser algo rotineiro e fácil. Uma análise mais detalhada dessas
produções talvez pudesse encontrar diferenças significativas entre os grupos
saudáveis. Embora os grupos não tenham se diferenciado estatisticamente, a média
geral do grupo SA (18,3 ± 7,1) foi menor que a do grupo SB (22 ± 2,6), e isso esteve
relacionado ao fato de que mais pessoas do grupo SA recusaram-se a falar, enquanto
que nenhuma pessoa do SB recusou-se. Além disso, o grupo SA apresentou mais
anomias que todos os outros grupos, interessantemente. As produções dos grupos de
saudáveis, e principalmente do grupo de alta escolaridade, foram muito mais ricas em
conteúdo na comparação com as produções dos grupos CCL e DA, que se mostraram
mais sucintas. Essa produção mais complexa pode ter dado margem às anomias
apresentadas pelo grupo SA. Além disso, sabemos que a sensação de palavra na ponta
da língua aumenta com a idade (NICHOLAS et al., 1997; BURKE, SHAFTO, 2004). O
estudo de Connor et al. (2004) aponta que a habilidade de nomear coisas decai
também no envelhecimento saudável. Portanto, o fato de termos encontrado anomias
na produção de saudáveis não é surpreendente. Porém, anomia é um dos sintomas
mais comuns do declínio cognitivo (ADLAM et al., 2006) e ainda assim não
encontramos na análise dos grupos DA e CCL. Argumentamos que a produção desses
grupos foi tão reduzida que déficits de anomia não puderam ser detectados nesses
participantes. Esta produção mais sucinta se reflete na necessidade de encorajamento
do grupo DA e na falta de elementos tanto da história engraçada como da notícia.
Os escores de MMSE diferentes nos três grupos são esperados conforme os
pontos de corte adaptados para a população brasileira, de acordo com declínio
cognitivo e escolaridade. Embora tenha havido diferenças significativas entre os

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escores da escala de depressão, nenhum dos participantes foi considerado depressivo


de acordo com os pontos de corte.
Em relação aos grupos com declínio cognitivo, uma visão geral da análise
qualitativa dos textos nos leva a crer que a produção discursiva dos participantes com
DA e CCL pode estar prejudicada e isso se reflete principalmente na necessidade de
encorajamento, nas trocas de tópico e na falta de sequência dos acontecimentos da
história e elementos da notícia. Os resultados também parecem permitir inferir que,
como a memória autobiográfica de longo prazo, envolvida na história engraçada,
encontra-se mais preservada na DA do que a memória de evento recente envolvida na
notícia, a produção da notícia mostrou-se mais prejudicada na DA. Sabemos que a
memória episódica é um dos primeiros domínios cognitivos, junto à linguagem, a
mostrar deterioramento em função do declínio cognitivo (ALBERT, et al., 2011).
Portanto, como a notícia é mais dependente deste tipo de memória, espera-se que os
grupos com declínio tenham um desempenho inferior. Além disso, deve-se olhar para
as diferentes naturezas das produções discursivas. A narração da história engraçada,
em geral, envolveu uma memória autobiográfica, por isso ela tornou-se mais fácil para
o participante, uma vez que ele vivenciou o que está contando. Trata-se de uma
narração mais familiar a ele. Por outro lado, a notícia é proveniente de ambientes mais
formais, como jornais, programas de televisão ou de rádio, logo, uma linguagem com a
qual o participante está acostumado somente a ouvir, mas nem tanto a reproduzir,
principalmente em um ambiente de testagem. Com base nessa diferença, decidimos
não comparar as duas produções, dados os motivos óbvios de que se trata de
produções de natureza diversa e a produção da história engraçada sairia em vantagem.
A fim de exemplificar alguns resultados da análise qualitativa, listamos no Quad.
1 um exemplo de cada produção para cada grupo.

Quadro 1. Exemplos de produções para cada tarefa de acordo com os grupos.


Notícia História
SA P: eu não queria dar uma coisa P: na verdade aconteceu::... no
trágica mas infelizmente é uma Rio de Janeiro e::... aonde eu
coisa que me marcou um morava e::... e nós estávamos
monte... a história do se/ do do saindo pra praia eu e a minha
da morte do menino do irmã e::... quando no caminho
Bernardo... atravessamos o o o o... o ali o
E: e como é que foi essa parque pra chegar na praia e de
história... repente nós vimos um
P: ah tem que contar?... tá... é::... caranguejo... e era de verdade
primeiro eu vi a notícia na pegamos o caranguejo... com a
televisão... e achei que não mão mesmo... o bicho tava vivo

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poderia ser... e depois no dia botamos dentro da sacola...


seguinte eu leio a notícia no pra::... pra levar o caranguejo e
jornal que uma criança tava botar na praia quando nós
desaparecida e que no::... e chegássemos só que o
foram procurar a criança e caranguejo quando nos demos
quando acharam a criança tava conta tava saindo pela... pela...
morta e que... na verdade na pelo buraco da bolsa então foi
verdade foi a madrasta... uma gritaria por causa da
auxiliada por uma outra amiga história do caranguejo...
que mataram a criança e o pai
me parece que tá... tá envolvido
na história...
SB Esse negócio do... esse acidente O que aconteceu comigo é que...
do Luciano Huck... aí com toda eu sempre pego o ônibus glória
família... porque encheu o saco no centro... e o cobrador já me
de tanto que falaram disso... e conhece... e quando nós
agora desse... desse presidente chegamos aqui na carlos
da fifa que foi reeleito aí... e... o barbosa... ele faz a curva aqui
mundo acho... não tá gostando pra entrar na niterói... eu já
da reeleição dele... tá todo levanto antes da parada... e o
mundo contra...no acidente do cobrador olhou pra mim e disse:
Luciano Huck caiu o avião... ele vó, te segura! cuidado que vem a
tava com toda a família e mais curva... aí eu achei muito
duas babás... só ele machucou e engraçado... mas eu agradeci... e
ela também... e um dos filhos só disse pra ele muito obrigado por
teve um arranhão no rosto, mas me cuidar
nada grave.. perguntaram pro
presidente da fifa se ele não
tinha medo de ser preso... e ele
perguntou por quê?... isso aí me
chamou atenção... ele disse que
não temia isso

CCL P: o avião que caiu... com... o... P: ma daí se eu for conta daí é
me esqueci o nome dele coisas feia né que eu vo
também... contaram pra mim daí não da pra
ACOMPANHANTE: Eduardo mim fala coisa feia
Campos... E: não magina...uma coisa
P: é... também... foi triste... achei engraçada....um fato uma
triste... situação engraçada...
E: sim... e a senhora sabe o que P: não que a minha irmã::
aconteceu?... poderia me contar quando eu vo lá a minha irmã
assim como é que... caiu... onde conto pra mim quando ela era
caiu... mais nova né...e ela foi corre
P: não sei... acho que o piloto ( atrás duma duma ambulista
)... ambulista é uns bichinho assim
E: e onde é que caiu... e onde é sabe...dai ela queria pega aquela
que caiu o avião... ambulista porque ambulista se
P: aonde?... lá em... São Paulo... se comia né o pai dizia que se
ou Pernambuco... eu não me comia né...e ela disse pra mim

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lembro... só sei que ele nasceu que foi foi atrá da ambulista a
parece Pernambuco né... ambulista a ambulista era só
E: sim... e quem morreu nesse faixa ela correu e não conseguia
acidente?... pega a tar de ambulista pego foi
P: o... como é o nome mesmo?... lá e deu correu correu a
A: Eduardo Campos... ambulista fugiu dela e ela não
P: Eduardo Campos... conseguiu pega ela
E: e ele era o que?...
P: ( ) candidato... ele era...
presidente da República...

DA E: o que está acontecendo em P: ah pra contar isso... me


nosso país? (eleições) divertia... brigava com a
P: as eleições gurizada... porque eles não
E: e quem é que está queriam trabalhar certo... eu
concorrendo? dizia que eu entregar pro patrão
P: não sei... a dilma e não sei qual e ali eu fazia...
outro. E: e teve algum evento em
E: e o que aconteceu com um dos especial que marcou a senhora?
candidatos? que um deles sofreu P: não... eu marco que lá eu
um acidente. pude criar meus filhos...
P: eu não sabia que tinha dado trabalhando... a pensão era
acidente. pouca do marido... trabalhando
eu criei quatro filhos... graças a
deus estão todos casados... tudo
bem. foi uma coisa muito boa
que eu fiz na vida... mas com
todo sacrifício.

Fonte: As autoras.

Considerações finais

Buscamos traçar um perfil do discurso de idosos saudáveis de dois níveis de


escolaridade diferentes e de dois grupos com declínio cognitivo. Apesar das amostras
reduzidas, os resultados sugerem que ambas as tarefas discursivas (notícia e história
engraçada), em especial a notícia, diferenciam grupos clínicos de saudáveis, podendo
ser adotadas como instrumentos complementares na avaliação de declínio cognitivo
em populações de baixa escolaridade. Consideramos que uma análise linguística mais
aprofundada, como feita por Vargas (2015), que investigou a questão da referenciação
na demência e na variação de escolaridade, pode elucidar mais detalhadamente
questões acerca da linguagem na população com declínio cognitivo, bem como nas
saudáveis com diferentes níveis de escolaridade.

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Referências

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SERES ESTRANHOS:
PERSONAGENS EM DESENCONTROS EM ROMANCES DE DULCE MARIA CARDOSO

Bruno Mazolini de Barros1

Dulce Maria Cardoso integra, neste século, o grupo de escritoras portuguesas


contemporâneas que, principalmente desde o século XX, são responsáveis por
significativas composições literárias, como Augustina Bessa-Luís, Teolinda Gersão e
Lídia Jorge. Elas não são meras escritoras; são, na verdade, arqueólogas criativas:
arqueólogas do ser humano.
Para Italo Calvino, no ensaio O olhar do arqueólogo,

Em sua escavação, o arqueólogo torna a descobrir utensílios cujo


destino ignora, cacos de cerâmica que não se encaixam, jazidas de
eras distintas daquela que ele esperava encontrar ali: sua tarefa é
descrever peça por peça também e sobretudo aquilo que não
consegue sistematizar numa história ou numa utilização, reconstruir
numa continuidade ou num todo (2006, p. 314).

Assim é o trabalho de Dulce Maria Cardoso: ela ficcionaliza peças soltas. Seu
descrever não é um simples relato de características: é colocar sobre a tensão
romanesca todos os cacos de o que poderia, como um todo, ser denominado como
realidade, existências, seres complexos e sofridos.
Seus romances demonstram a força de sua inventividade e a ousadia de suas
escolhas criativas, seja pela forma como narra, seja pelas personagens que desenvolve.
Escreve de dentro das personagens, revelando seus mundos internos em conflito com
a realidade externa que as desafiam e tratando de temas como identidade, família,
traição, luto — todos eles subordinados à implacável ação do tempo.
No final da década de 1920, Virginia Woolf faz uma perspectiva de o que as
mulheres passarão a escrever:

Seus romances tratarão das mazelas sociais e soluções para elas.


Seus homens e mulheres não serão totalmente observados nas
relação emocional que mantenham uns com os outros, mas sim por

1
Doutorando em Teoria da Literatura, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS,
bolsista CNPq. E-mail: brunomazolini@gmail.com

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se juntarem e entrarem em conflito, como grupos e classes e raças.


[...] Para além das relações pessoais e políticas, elas [as escritoras] se
voltarão para as questões mais amplas que o poeta tenta resolver –
as de nosso destino e dos sentido da vida (2014, p. 281).

Com isso, não busca se dizer aqui que a escrita de Dulce Maria Cardoso seja uma
escrita “feminina” simplesmente. Cada um de seus romances são construídos com
linguagens e estruturas narrativas bem distintas, e todos realizam o que a romancista
inglesa colocou em questão: eles tratam dos destinos e sentidos que a vida pode ter.
Em contato com sua escrita de ruínas – ela cria ruinas de ser, de
relacionamentos, de famílias ou de um país —, tem-se acesso a seres que são, cada um
a sua maneira, desajustados no mundo em que vivem. São peças soltas de si mesmas
ou de um grupo que os percebe como estranhos de alguma maneira. No entanto, não
é somente a eleição de seres peculiares o mérito do romance de Dulce Maria Cardoso,
já que, o centro desta arte, como analisa Orham Pamuk, em O romancista sentimental
e o ingênuo, “não é a personalidade ou o caráter dos protagonistas, mas a maneira
como veem o universo dentro da história” (2011, p. 53).
Isso é perceptível desde o seu primeiro romance, Campo de sangue, de 2002.2
Nele, um inominado mentiroso, preguiçoso, fóbico a insetos, sustentado pela ex-
esposa e com “unhas de cão” leva quatro mulheres a uma sala de espera para
deporem devido a um assassinato. Esse homem que obtém conforto em cheiro de
inseticida e que rouba sem necessidade vive de mentiras, satisfaz-se com seu mundo
irreal:

Mas o que fez ficar, além da eficácia com que a senhoria exterminava
os insectos, foi o que tinha inventado ser. Tinha construído uma vida
que lhe agradava, cumpria um horário de trabalho, levantava-se
sempre à mesma hora, quando regressava contava histórias da
empresa (2005, p. 63).

A única personagem nomeada no romance é Eva, a ex-mulher desse homem, e


quem ela sustenta financeiramente. Este nome próprio é umas entre outras
referências bíblicas que a narrativa possui: ela está atravessada por epígrafes retiradas
de diferentes livros da Bíblia e o próprio título também o é. “Campo de Sangue”, como
aparece em uma das epígrafes do romance, é a tradução de “Hakeldamá”, o terreno
comprado por Judas Iscariotes.
Ao final desse livro, a autora agradece a Dulce María Loynaz “a definição de ilha”.

2
As datas correspondem à primeira edição de cada uma das obras em Portugal.

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Que ilha é essa? Quem estaria ilhado? O inominado com unhas de cão ou cada uma
das mulheres que testemunham cada uma das vidas que ele construiu? Sejam abrindo
as obras de Dulce Maria Cardoso como epígrafes ou aparecendo como citações
finalizando-os, os quatro romances trazem menções a escrituras de Loynaz, escritora
cubana.
Já em Os meus sentimentos, de 2005, uma “mostrenga” — como se
autodenomina a personagem Violeta, obesa, vendedora de cera em tempos de
depilação a laser, que pratica sexo casual com caminhoneiros — percebe que existe da
seguinte maneira:

sou uma obesa indecisa entre o tipo I e o tipo II, da tabela que os
profissionais da saúde tiveram o cuidado de elaborar, não fosse essa
tabela e o mais certo era andar perdida nesta vista, assim, ainda que
oscile entre o tipo I e o tipo II, sei a que tabela pertenço e em relação
a que categorias hesito (2012b, p. 33-34).

Suas histórias de desajuste vem à tona em um acidente de carro. De cabeça para


baixo, suspensa pelo cinto de segurança, Violeta revê o dia que resultou nesse
acidente. Fixada numa gota de água suspensa, retoma seu passado e projeta um
futuro que lhe escapa, sofrendo e até se alegrando com coisas que ainda não
aconteceram ou talvez nem chegarão a acontecer.
Seu terceiro romance, lançado em 2009, O chão dos pardais traz uma miríade de
personagens que estão sob o estilhaçamento que é a própria vida de cada um deles.
Seja um professor de história, uma prostituta de luxo ou uma refugiada ucraniana, seja
por meio de um bate papo pela internet ou por um amor não correspondido, todas
elas estão em decadência em diferentes níveis e emaranhadas na tensão romanesca
da iminência de um assassinato na festa de aniversário do milionário Afonso. De certa
maneira, a ociosa Alice, esposa de Afonso, capta como as relações podem ser
capciosas:

Alice percebeu imediatamente que seria através do projecto que


conseguiria que Gustavo aceitasse o que lhe propunha. A ideia de
projecto era a maior vulnerabilidade da espécie humana. Não tivesse
a capacidade de se projectar no futuro e de acreditar que nele era
possível realizar o que o presente negava, a espécie humana seria
indubitavelmente menos subornável (CARDOSO, 2009, p. 94).

Independentemente da vida que têm, as personagens desse romance são como


pardais mesmo: comuns, de certa maneira, e podem até ser perniciosos, uma praga.

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No entanto, estão todos unidos por essa busca de um futuro, nessa execução de
projetos que os tornam tão humanos e que, buscando a realização disto, submetem-se
a diferentes situações que poderiam ser entendidas como subornos em diferentes
níveis, com o uso de diferentes moedas.
Já em O retorno, de 2012, Dulce Maria Cardoso apresenta Rui, nascido em
Angola e que, em Portugal, descobre um novo local para sua vida, com o peso da
responsabilidade de ser o homem da família. Se nos três primeiros romances há
momentos de volta à infância e adolescência de algumas das personagens — os
conflitos e perdas, e as ligações e desconexões improváveis que eles desencadearam
—, em O retorno, temos a adolescência em si, na voz potente do jovem Rui. Nessa
obra, temas já abordados pela autora estão entremeados à derrocada portuguesa em
Angola e à vida dos retornados, portugueses e seus descendentes que precisaram
voltar a Portugal, ou ir pela primeira vez, na famosa ponte aérea de 1975.
O monólogo interior que revela angústias e descobertas do adolescente, que
sente a necessidade de assumir uma posição da qual acredita não dar conta. Além
disso, em Portugal, descobre que é alguém diferente: “Explicaram-nos, IARN quer dizer
Instituto de Apoio ao Retorno dos Nacionais. Agora somos retornados. Não sabemos
bem o que é ser retornado mas nós somos isso. Nós e todos os que estão a chegar de
lá” (2012a, p. 77).
Sua nova situação é estranha a ele mesmo, mas também o é para os outros: Rui
faz parte de um grupo que os portugueses locais descriminam. A maioria dos
retornados não possuíam o mínimo para assegurar uma noção digna de pertencimento
à Portugal: uma casa no país. Alojados em hotéis, eram comunidades ilhadas. Além
disso, para os angolanos da Angola independente, Rui é português. Para os
portugueses, Rui é africano.
Particulares como são, suas personagens acabam muitas vezes não se
entendendo, sejam consigo mesmas ou com as outras. Curiosamente, a poética de
Dulce Maria Cardoso parece explicitar-se na fala de uma de suas personagens. Alice, a
entediada milionária de O chão dos pardais, declara o seguinte: “O conhecimento é
uma extravagância em qualquer relacionamento e o entendimento uma extravagância
ainda maior” (2009, p. 72). As personagens desses romances, muitas vezes, não
reconhecem ou entendem umas as outras ou acabam entrando em conflito, já que
possuem expectativas frustradas em relação ao outro.
As dores das relações, dos conflitos, das perdas são tratadas habilmente, não
tornam o leitor um expectador sádico, visto que há uma proposta de reflexão em seus
romances, como a própria romancista afirma:

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Senão, fica-se muito parecido com aquelas pessoas que param o


carro para ver os acidentes. Só se expõe o sofrimento, há mais nada.
Eu andei à procura de uma proposta de reflexão que me servisse. A
ideia é de perda, é de estar a deriva. É a perspectiva de o futuro ser
negro (MARQUES, 2015, p. 329).

Em Campo de sangue, o inominado de meia idade inventa diferentes vidas para


cada uma das mulheres com que se relaciona, e, à medida que sua obsessão por uma
desconhecida aumenta e resulta em um crime, esses mundos falíveis revelam-se, mas
não para que eles simplesmente se explicitem ao leitor, mas para que as relações se
revelem mais capciosas ainda. Há conflitos de realidades: elas irão depor sobre o
mesmo homem, mas cada uma delas têm um determinado conhecimento dele.
Essas relações perturbadas também é perceptível em Os meus sentimentos, em
que Violeta não se entende com a sua mãe, assim como também não se entende com
o pai, com o irmão bastardo e com a filha. Violeta, por não ser a criança, e depois a
jovem, que a mãe esperava ter, ouve constantemente: “a vergonha que tenho de ti”
(2012b, p. 34) ou “a vergonha que o teu pai tem de ti, Violeta” (idem, p. 35). As
personagens não se entendem, como se não falassem a mesma língua.
Sobre Rui, de O retorno, Dulce Maria Cardoso declara:

Há nele uma questão de linguagem: a linguagem de lá, a linguagem


de cá, as diferentes palavras, o facto de mesmo os negros de lá não
se entenderem. É muito engraçado como a linguagem nos define
tanto e nos incapacita tanto. Ao mesmo tempo que também nos
torna muito poderosos (MARQUES, 2015, p. 331).

Há também o conflito que pode emergir pela diferença de experiências prévias


das personagens, que não podem ser explicadas, muito menos quando não se domina
a língua portuguesa. Em O chão dos pardais, a imigrante do leste europeu pensa o
seguinte em relação a filha da patroa:

Em que raio de mundo vivia aquela mulher para pensar que Elisaveta
podia confiar nela. [...] Elisaveta sabia que não podia confiar em
ninguém, muito menos em quem soubesse o que a fome e o frio
faziam. Aquela mulher não sabia que a fome acorda o corpo e que o
frio o atordoa e que era só por isso que ela tinha sobrevivido (2019,
p. 99).

No entanto, esse conhecimento e entendimento limitados vai além das relações

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interpessoais, entre relações entre classes sociais diferentes ou nacionalidades. Há


também o conflito entre a história pessoal e a coletiva. Seja a Revolução dos Cravos
em Os meus sentimentos, a independência de Angola em O retorno ou a morte da
princesa Diana em O chão dos pardais, esse fatos não passam desapercebidos em suas
vidas, despertam sentimentos que vão desde a curiosidade mórbida até a revolta. Isso
fica bem explícito, por exemplo, na irritação de Rui com o bombardeamento de ideias
sobre os retornados e sobre a decadência portuguesa:

Nem todos os homens têm fumos. O João comunista não tem,


aquelas terras não nos pertenciam, é justo que tornem aos que
foram roubados, e na televisão um dos revolucionários, o império
está a chegar ao fim, hoje podemos dizer que temos orgulho de
Portugal, viva Portugal.
Eu não tenho fumo, não sei o que é justo, não tenho orgulho, não
tenho vergonha, e nem sei do que falam. A única coisa que sei é que
mataram o pai (2012a, p. 154).

As situações históricas principalmente nos três últimos romances são mais do


que pano de fundo nas narrativas, são o que Milan Kundera denomina “uma situação
existencial em desenvolvimento” (2009, p. 42). Elas estão afetando as personagens
ativamente, não são um mero cenário, são cruciais para forma como as personagens
estão no mundo.
Em O retorno, especialmente, o evento histórico é muito relevante, é um dos
dispositivo que move a narrativa. Para José Saramago, há duas atitudes no uso da
história na ficção, e esse romance parece se encaixar no segundo tipo:

Duas serão as atitudes possíveis do romancista que escolheu, para a


sua ficção, os caminhos da História: uma, discreta e respeitosa,
consistirá em reproduzir ponto por ponto os fatos conhecidos, sendo
a ficção mera servidora duma fidelidade que se quer inatacável; a
outra, ousada, levá-lo-á a entretecer dados históricos não mais que
suficientes num tecido ficcional que se manterá predominante.
Porém, estes dois vastos mundos, o mundo das verdades históricas e
o mundo das verdades ficcionais, à primeira vista inconciliáveis,
podem vir a ser harmonizados na instância narradora (2001, p. 502-
503).

Essa miríade de desajustados em diferentes conflitos parece refletir o próprio


Portugal desajustado, deslocado, que nos últimos 40 anos ocupa um entre lugar. Como
Boaventura de Souza Santos explicita em Portugal: ensaio contra a autoflagelação, os

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portugueses estão deslocados identitariamente do continente europeu, porque são


órfãos da queda do Império Ultramar e contemporâneos de um projeto de Europa que
não se realizou completamente. Assim também o são as personagens de Dulce Maria
Cardoso.
Além disso, percebe-se um Portugal pequeno, uma Lisboa pequena. As
personagens de O chão dos pardais, e suas vidas, cruzam-se, quer eles tenham
consciência disso ou não. No entanto, outras, mesmo sendo de diferentes romances,
acabam por esbarrar-se também, além de devotar certo tempo analisando o outro,
tentando entender o que acontece e ouvir a sua conversa. Existem juntos, mesmo que
por momentos, em Lisboa.
Enquanto Dora, filha de Violeta, de Os meus sentimentos, está em um café de
Lisboa, ela repara em um homem que aguarda impacientemente e, mais tarde, na
mulher que entra e que senta à mesa dele:

a mulher que chegou tem um casaco cinzento [...] e cheira a perfume


caro. [...] Dora detém-se nas mãos da mulher, umas mãos muito
magras, quase de cera [...] repara nos lábios da mulher que são da
cor das bagas de romã, nunca tinha visto ninguém com lábios da cor
das bagas de romã (CARDOSO, 2012, p. 340-341).

Essa mulher que Dora observa e de quem ouve parte da conversa é Eva, de O
campo de sangue, que “Cheirava a perfume caro e tabaco. [...] As mãos de Eva
estavam iguais, mãos magras de cera [...]. Eva finalmente falou, os lábios de romã”
(CARDOSO, 2005, p. 158-159). Em um jogo semelhante, a sequência do acidente de
carro sofrido por Violeta, de Os meus sentimentos, parece revelar-se no romance
seguinte, O chão dos pardais:

Faltavam duas estações para o destino deles, quando uma mulher


muito gorda, com cabelo molhado, apesar de estar um dia bonito de
fim de verão. Cheirava a tabaco e a cerveja e carregava dois sacos.
Sofia espreitou para os sacos, com a mania de olhar para dentro de
tudo, e viu várias amostras de ceras de depilatórias. Sofia calou-se.
Não queria que a mulher os ouvisse. Apesar do calor a mulher vestia
collants e Sofia reparou que tinham uma malha caída. A mulher
atenta ao olhar de Sofia disse, Foi por um acidente. Sofia virou a cara.
Não estava interessada em saber nada (CARDOSO, 2009, p. 84).

De qualquer maneira, frente ao que experienciam, os seres estranhos que


povoam Campo de sangue, Os meus sentimentos, O chão dos pardais e O retorno

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adotam as mais variadas estratégias para encarar, negar, ludibriar ou recriar a


realidade e assim, dentro dos textos, outras narrativas menores, as das personagens,
desenrolam-se. Essas histórias, que contam para si mesmos ou para os outros — um
panteão de memórias e projeções do futuro, movidos pela esperança e pelo medo —,
são um exemplo da perspicácia da autora não só em relação à complexidade da
existência de suas personagens, mas também em relação à complexidade de o que
denominamos vida.

Referências

CALVINO, Italo. O olhar do arqueólogo. In: Assunto encerrado: discursos sobre


literatura e sociedade. In: São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.312-315.
CARDOSO, Dulce. Campo de sangue. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
______. O chão dos pardais. Alfragide, Portugal: ASA, 2009.
______. O retorno. Rio de Janeiro: Tinta-da-china do Brasil: Rio de Janeiro, 2012ª.
______. Os meus sentimentos. Rio de Janeiro: Tinta-da-china do Brasil: Rio de Janeiro,
2012b.
KUNDERA, Milan. A arte do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
MARQUES, Carlos Vaz Marques. As palavras não se afogam ao atravessar o Atlântico.
Rio de Janeiro: Tinta-da-China Brasil, 2015.
PAMUK, Ohram. O romancista ingênuo e o sentimental. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Portugal: ensaio contra a autoflagelação. São Paulo:
Cortez, 2011.
SARAMAGO, José. História e Ficção. In: REIS, Carlos. O conhecimento da literatura:
introdução aos estudos literários. Coimbra: Almedina, 2001.
WOOLF, Virgínia. Mulheres e ficção. In: O valor do riso e outros ensaios: Virginia Woolf.
São Paulo: Cosac Naify, 2014. p. 270-283.

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LITERATURA: UMA PERFORMANCE INAUGURAL

Camila Alexandrini1

Não há como negar os encontros interartes ou ainda os debates sobre os


limiares da literatura e os saberes que são produzidos e disseminados a partir dela no
estudo de muitos pesquisadores do campo dos estudos literários; entretanto, não há
como negar igualmente a resistência dos estudos literários quando a teoria literária
depara-se com outros objetos de análise.
Em busca de uma rota que repense os objetos de análise da literatura, será
apresentado uma proposta de percurso teórico-crítico que se direciona à performance
– na literatura e na teoria da literatura – ou à palavra-performance, noção em
desenvolvimento no projeto de doutoramento atual. De acordo com Zumthor (2007,
p.27), pensar a performance nos estudos literários provoca um problema de método e
de compreensão crítica do objeto literário. Para ele, “de saída é necessário, com
efeito, entreabrir conceitos exageradamente voltados sobre eles mesmos em nossa
tradição, permitindo assim a ampliação de seu campo de referência”.
A noção de palavra-performance se direciona à reelaboração de princípios e
práticas da performance para se constituir enquanto teoria literária e, desse modo,
compreender percursos outros tomados pela literatura e pelo leitor que se constitui a
partir dela na contemporaneidade. Nesse artigo, encontram-se: (1) apontamentos
iniciais da pesquisa, (2) um pontual discernimento de performance e (3) uma proposta
de compreensão desse termo em relação à literatura, feita por Jacques Derrida.
Dizer o que é ou o que pode ser performance tem se demonstrado para mim
ser muito diferente de dizer ou se perguntar o que é literatura. Tentar responder a
essa pergunta – “O que é literatura?” ou, pior, “O que é a literatura?” – me esgota, me
enreda em um discurso tautológico sem fim de professores e pesquisadores
universitários desprovidos de inovação didática e/ou metodológica. Mas não os culpo
de todo modo, pois eu me encontro diante de um pulsar que se vê, muitas vezes,
diante da dúvida do que pode ser literatura principalmente na contemporaneidade.
Vendo-me assim, durante o Mestrado, entreguei-me à dispersão de Maurice Blanchot

1
Doutoranda em Teoria da Literatura (PUCRS).
E-mail: camilalexandrini@msn.com

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e almejei encontrar os não-lugares da literatura. Busquei, como diz o filósofo,


apaixonadamente descobrir o não da literatura, a não-literatura.
Ao iniciar o projeto de tese atual, intitulado Palavra-Performance, serrei livros.
Alexandre Pandolfo e eu serramos livros2, talvez com propósitos diferentes, mas
serramos. Eu, antes de tudo, buscava uma violência que sempre me foi necessária ao
pensamento teórico. Quis ver o músculo rígido do braço direito, para tentar escrever
tão rigidamente quanto a força que empregava na hora do corte, torto, mas certeiro.
Além disso, me lancei à criação de alguns trabalhos artísticos para poder compreender
questionamentos decorrentes da pesquisa. Os processos construídos por mim, na
elaboração de uma pesquisa teórica, bem como de sua escritura, a fim de lidar com as
inquietações, são fortemente marcados por uma subjetividade. Não nego, nem nunca
neguei a presença do self na teoria, ao contrário, faço dele subjétil e projétil de outros
eus que há em mim. Negar o substrato sempre presente do eu na teoria é trair a
possibilidade de outras vozes. Mesmo que eu, branca, classe média, universitária, não
configure exatamente uma outra voz, diferente da que sempre prevaleceu na
academia, não posso me abster de mim. E isso já é uma performance.
Não se trata de uma metáfora, tampouco de uma profanação. A performance
direciona-se a tudo. Richard Schechner, um dos principais teóricos dos estudos da
performance na atualidade, em Performance Studies: an introduction (2013), dirá que
(praticamente) tudo pode ser entendido como performance3. É recorrente o medo de
palavras que remetam a totalidades. Em um mundo em que se deva prevalecer o
direito às diferenças, dizer tudo sempre será um perigo. No entanto, esse tudo em
relação à performance me concede, assim como concedeu a diversos teóricos, a
liberdade que sempre é necessária no exercício teórico.
“O termo inglês “performance” significa “atuação”, “desempenho”,
“rendimento”, mas começou a assumir significados mais específicos nas artes e nas
ciências humanas a partir dos anos 1950 como ideia capaz de superar a dicotomia
arte/vida” (KLINGER, 2008, p.19). Os estudos da performance, entendidos como
disciplina, iniciam-se em 1970 na New York University (NYU) e na Northwestern
University (NU), em Chicago. O primeiro grupo, voltado à performance por meio da

2
Observações sobre essa ação artística podem ser encontradas na publicação Rastros, julho/agosto,
2013. Disponível em: <http://culturaebarbarie.org/rastros/n7.html> Acesso em 12 de novembro de
2015.
3
O teórico constrói uma diferença entre “é performance” e “como performance”. Segundo Schechner
(2013, p.38): “There are limits to what “is” performance. But just about anything can be studied “as”
performance. Something “is” performance when historical and social context, convention, usage, and
tradition say it is.”

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perspectiva do ritual; o segundo, pelo viés da comunicação, da retórica e do discurso.


Após quarenta anos, os estudos da performance se constituem hoje como um dos
mais plurais campos de análise das ciências que não são só as humanas. Schechner
(2013, p.31), também professor da NYU, por exemplo, apontará oito tipos de
performances: a cotidiana, nas artes, nos esportes ou outro entretenimento popular,
nos negócios, na tecnologia, no sexo, em rituais sagrados, e em ações 4. Em uma rápida
pesquisa na internet, podemos observar a ampla abrangência do termo performance:
Performance Fitness, Performance em Vendas, Alta Performance Tecnológica,
Coaching para Performance – sem contar as variantes possíveis quando acompanhada
da palavra arte. Segundo Regina Melim, em Performance nas artes visuais (2008):

O termo performance é tão genérico quanto as situações nas quais é


utilizado. Na vida, bem como em distintas áreas do conhecimento, a
palavra transita em muitos discursos. Talvez por isso, por resistir
tanto a uma única classificação, torna-se tão instigante para o campo
de arte (MELIM, 2008, p.1).

Marvin Carlson, em Performance: uma introdução crítica (2009), analisa a


performance com base na antropologia, na etnografia, na sociologia, na psicologia, na
linguística, nos estudos culturais e na arte da performance. É possível atualmente
encontrar, inclusive, pesquisadores de áreas diversas a essas, que se utilizam da
performance como metáfora, ferramenta analítica, apropriação teórica. Ainda assim,
se, no exterior, a performance tem sido amplamente estudada, em nosso país, ela vem
se estabelecendo, sobretudo nas duas últimas décadas, em grupos de pesquisa
voltados principalmente às artes. “Se de um ponto de vista prático muito se realizou
no Brasil, em termos de performance, de 1982 para cá, o mesmo não aconteceu de um
ponto de vista conceitual, sendo raras as formulações teóricas sobre esta expressão”
(COHEN, 2011, p.25). Quando a intersecção esperada é com a literatura, no sentido
posto pelos estudos literários, pouco podemos encontrar5.
4
No original “Play”. A escolha por “ação” segue a tradução utilizada por outros pesquisadores. Play é
uma das principais manifestações da performance, sobre a qual Schechner se dedica longamente no
quarto capítulo de Performance Studies: an introduction (2013). Segundo o teórico, embora não seja
simples separar a ação física do universo dos games, “play” se direciona não somente a jogos
(esportivos, de crianças e adultos), mas também a diversas ações estruturadas, sejam elas no teatro, no
trabalho, no estudo acadêmico, na vida cotidiana etc.
5
Constam no Diretório dos Grupos de Pesquisa (CNPq) 318 grupos de pesquisa que possuem como uma
das palavras-chave a performance. Desses, apenas 16 são localizáveis, segundo os critérios da
plataforma, na área de Letras. Ao restringir a busca pelas palavras-chave “performance” e “literatura”,
encontramos apenas 6 grupos de pesquisa, sendo 3 da área de Letras (Núcleo de Estudos em Letras e
Artes Performáticas [NELAP – UFMG], Núcleo de Estudos em Literatura, Artes e Saberes [NELAS –

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Em outra via, a performance também pode, como costumeiramente é, ser


entendida como arte da performance. Considera-se, segundo Roselee Goldberg (2006),
que a história da arte da performance tem seu início no primeiro manifesto futurista
do poeta Filippo Tommaso Marinetti, em 1909, publicado em grande circulação pelo
jornal francês Le Figaro, além de ter contado com representantes nas demais
vanguardas europeias, passando pelo Dadaísmo, Surrealismo, Construtivismo e a
Escola Bauhaus. Naquele momento, a performance representava aos seus praticantes
“a liberdade de ser, ao mesmo tempo, “criadores” no desenvolvimento de uma nova
forma teatral, e “objetos de arte”, porque não faziam nenhuma separação entre sua
arte como poetas, como pintores ou performers” (GOLDBERG, 2003, p.4). Jorge
Glusberg (2003, p.11-12) apontará, entretanto, um início tripartido à performance, o
qual pode estar em Yves Klein (Salto no Vazio, 1962), Alfred Jarry (Ubu Rei, 1896), ou
ainda, na força motriz do ritual – presente em toda a história de nossa sociedade –
essa última semelhante à abordagem de Cohen (2011, p.41), o qual remonta a
performance a uma corrente ancestral.
Na década de 1960, o termo performance foi utilizado para se referir a
intervenções em que os artistas faziam uso de seus corpos para realizar ações
ensaiadas, repetidas e apresentadas em diferentes lugares – em distinção aos
happenings de Allan Kaprow. Fluxus, grupo híbrido de artistas, tais como John Cage,
Robert Filliou e Joseph Beuys, queria que o cotidiano fosse incorporado à arte e ao
corpo encarnado. A arte conhecida como experimental ecoava ensinamentos vividos
na Black Mountain College, instituição fundada em 1933, em Asheville (EUA), tendo
em vista as propostas pedagógicas de John Dewey. No fim dos anos 60, o termo arte
da performance já era reconhecido por seus participantes e intrigava o público das
grandes cidades.
Bem-humorada e clandestina, a performance estende suas fronteiras e delineia
espaços cada vez mais largos para si. Entretanto, de acordo com Cohen (2011, p.28),
“apesar de sua característica anárquica e de, na sua própria razão de ser, procurar
escapar de rótulos e definições, a performance é antes de tudo uma expressão
cênica”. A partir dessa compreensão, a performance também revelou ao teatro outras
formas de criação da cena, de entendimento da ação do ator, de transformação dos
elementos e dos espaços. Há também, nessa expressão cênica, a tentativa de
abandono do teatro-literário ou ainda do domínio do texto sobre a cena. É, pois, nesse
sentido, que a compreensão de texto na performance amplia-se por completo. “A

UFVJM] e Estudos da Palavra Cantada [UFRJ]), os demais configuram-se no campo das Artes. Disponível
em: <http://lattes.cnpq.br/web/dgp> Acesso em 27 de julho de 2015.

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palavra “texto” deve ser entendida no seu sentido semiológico, isto é, como um
conjunto de signos que podem ser simbólicos (verbais), icônicos (imagéticos) ou
mesmo indiciais (sombras, ruídos, fumaças, figuras delineadas por luzes etc)” (COHEN,
2011, p.29).
Com a explosão da cultura pop, os anos 80 foram marcados por uma série de
performances que iam dos shows de rock a manifestações em praça pública. Os
acontecimentos políticos do período, bem como a veiculação rápida de informação
através das novas tecnologias, impeliram artistas à discussão a respeito da
globalização, dos regimes de colonização, da sociedade do consumo. Por ser uma arte
jovem, embora de memória antiga, a performance permite se reinventar, sua tradição
é marcada em um tempo histórico altamente volátil e instável e seus participantes
interessados demais na contestação de seus princípios. Nesse sentido, performance e
literatura possuem um distanciamento profundo. Mesmo que possamos perceber o
empenho de certos escritores na inauguração de uma outra instituição literária, a
teoria ainda se debate para também renovar seu conjunto de noções. A renovação
da/na teoria literária é da ordem do urgente, e isso só me parece possível se ela estiver
disponível a abandonar-se, a repensar os objetos de análise da tradição literária, a
almejar não só o contato interartes, mas também a sua contaminação. Nesse sentido,
a performance aqui se insere primeiramente como um investimento à disponibilização
de outros espaços ao que chamamos de literatura e, desse modo, possibilitar que ela
seja entendida, lida e desenvolvida também de outras maneiras teóricas. Vejamos um
exemplo de como isso pode ser operado na teoria da literatura.
No ano passado, mulheres corriam nuas pela cidade de Porto Alegre. Gosto
muito dessa imagem e gostaria que vocês a imaginassem6. (a) Sob o ponto de vista das
leis que regem a nossa sociedade, tal ato poderia ter sido considerado inapropriado,
sob pena de detenção. (b) Já a partir do olhar que percebe essas mulheres
interrompendo a ordem cotidiana, ver uma mulher nua passar pela janela do ônibus
pode ser uma mais ou menos agradável surpresa. Diante dessas mulheres, que sem
pudores, exibem o corpo nu, (c) poderíamos cogitar também uma manifestação
artística. Até mesmo, (d) o discurso psiquiátrico, principalmente aquele que indica
estatutos de normalidade, foi uma das ferramentas de assimilação do
incompreensível. Eu as vi como palavras em fuga e – novamente, isso não é uma
metáfora.
6
Mais uma mulher é fotografada correndo nua em Porto Alegre, notícia publicada no Jornal Zero Hora,
em 09/11/14. Disponível em: <http://zh.clicrbs.com.br/rs/porto-alegre/noticia/2014/11/mais-uma-
mulher-e-fotografada-correndo-nua-em-porto-alegre-4639030.html> Acesso em 12 de novembro de
2015.

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A performance está em todas essas esferas: na política, na antropologia, na


sociologia, na sexualidade, na literatura e em tantos outros campos das ciências – não
apenas as humanas. Observem que me refiro agora à performance, não à arte da
performance, tampouco ao performático ou performativo7. Pois bem, é cada vez mais
plural o uso desse termo, performance, na abordagem de teóricos, profissionais,
especialistas e outros cidadãos que não se encaixam nessas anteriores denominações
para indicar um “conjunto de ações/comportamentos”, as quais movem
conhecimentos de áreas comunicáveis, mas de algum modo ainda distantes. Explico-
me.
Um corpo corre. Essa não é uma ação, mas ações. Se percebo a mulher
correndo sob o ponto de vista da interrupção cotidiana, há várias ações que ali são
desempenhadas ou dadas. O corpo que se movimenta, o olho que a vê, a cidade que
para, a fotografia que circula pelas redes sociais, eu que penso sobre esse corpo... Em
outras palavras, no momento em que percebo uma ação, posso vê-la isoladamente,
sem agenciar outros discursos, ou posso entendê-la como agenciamento provocador
de outros discursos. Nosso pensamento na contemporaneidade é invariavelmente em
rede, isolar o objeto, distanciar-se dele, é aniquilar o pensamento, ou pior, é pensar
sabendo onde quer e onde vai chegar. É correr como todos correm.
E eu não quero correr como todos correm. Na verdade, idealista como sou,
ainda acredito que todos nós desejamos uma porção de inaugural na nossa vida
individual, social, cultural, sexual etc. A primeira porção de inaugural que gostaria de
comentar com vocês, já que meu texto se intitula Literatura: uma performance
inaugural, é a do desconhecido. Dizemos inaugural ao que não foi visto antes; ou, uma
vez visto, se esquece de que aquilo já existiu antes. A performance lida com o
inaugural, pois mexe com aquilo que não conhecemos ou não entendemos
diretamente. É muito comum, nesse sentido, por exemplo, chamar de performance
ações artísticas que movem muitas práticas, muitos suportes, muitas ações que
somadas produzem um sem-nome. Em nossa organização scriptocêntrica, não há lugar

7
Mostra-se relevante informar, inclusive, que a aproximação dos campos da literatura e da performance
poderia ser pensada a partir do ponto de vista da linguagem, o qual, segundo Carlson (2009), emerge
com a teoria linguística de Chomsky, passa pelo dialogismo de Bakhtin, pela intertextualidade de
Kristeva, até tocar os fundamentos dos atos de fala de Austin, em How to do things with words (1975).
“Austin chamou a atenção para um tipo especial de fala, que ele denominou de “performativa”. Ao
emitir um “performativo”, simplesmente não se faz uma afirmação (o foco tradicional de análise
linguística que Austin rotula de “constativo”), mas performa-se uma ação como, por exemplo, quando
alguém batiza um navio ou realiza um casamento” (CARLSON, 2009, p.73).

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para o sem-nome, desse modo, chamamos o incompreensível, muitas vezes, de


performance. “Ao andar pelo arroio dilúvio, vi pessoas nuas dançarem.” Ou
denominamos a ação por algum verbo correspondente, ou chamamos a ação artística
do grupo Falos & Stercus de performance8.
A segunda porção de inaugural que gostaria de brevemente apresentar diz
respeito à literatura. Jacques Derrida, em uma recente tradução ao português da
entrevista intitulada Essa estranha instituição chamada literatura (2014), irá retomar
uma vez mais essa nebulosa instituição na qual tantos procuram o encaminhamento
de seus questionamentos. De modo confuso, diz ele, a literatura é essa instituição em
que se permite dizer tudo, ou onde tudo está por dizer.
A literatura, por ser mais potência do que essência, se estebelece a partir de
intencionalidades e experiências, e, segundo Derrida, de semelhante maneira, a lei que
produz é nela mesma contestada. Sendo assim, o traço paradoxal da literatura
suspende a ingenuidade da leitura transcendente, promovendo antes o acesso à sua
fenomenologia. Para Derrida (2014, p.116), “cada obra é única e uma nova
instituição”, cujo leitor é por ela inventado. Na literatura, desse modo, haveria sempre
uma performance inaugural, nas palavras do filósofo.
Aprecio muito o termo utilizado por Derrida, o de performance inaugural, mas
gostaria antes de ressaltar que há de haver um tempo em que não existam obras, que
tampouco se deixe a obra para ir ao texto, mas que, na teoria literária, se analisem
nadas e tudos, sem-nomes, não-lugares, performances – sem necessariamente
retomar o texto (o livro) como ponto de encontro intransponível da análise literária.
Sendo eu leitora formadora de outras competências de leitura, todos nós podemos ser
se quisermos, me torno contrassignatária (termo de Derrida), ou seja, se eu estiver
disposta a contra-assinar, a reinventar os paradigmas dessa instituição fictícia e
instituída, que é a literatura, invento outros modos de ler o mundo e lhe proponho
ações (performances) que podem ser entendidas como literatura.
Diante disso, não consigo mais ver a literatura presa ao objeto-livro, quero
antes o livro-objeto; não consigo mais me deparar com análises estruturais da
literatura, prefiro antes compreender o corpo que corre como uma escrita sem rastros
no espaço urbano, que também tem suas histórias; não sei se consigo mais ensinar
sobre literatura sem apontar para o além da literatura strito sensu. Aliás, não há
expressão a meu ver mais antiquada que stritu sensu, almejo antes o non-sense. E,

8
Intervenção do grupo intitulada Ilha dos Amores - Um Diálogo Sensual com a Cidade, parte do 20º
Porto Alegre Em Cena, 2013. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=FAqCXNXG-JM >
Acesso em 12 de novembro de 2015.

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alguns podem dizer, como já me disseram, e onde foi parar a disponibilidade em se


fazer entender, isto é, compartilhar da mesma dicção para não soar estranha no coro?
Respondo que o entendimento mútuo e compartilhado não seria um entrave se a
educação à e pela sensibilidade fosse a principal competência a ser continuamente
desenvolvida em quaisquer campos de atuação humana.
A performance, então, depara-se com a literatura com três principais objetivos
em minha pesquisa: (1) reunir perspectivas de performance para a proposição de uma
rota à renovação do aporte teórico da teoria literária, (2) agenciar um campo de
pesquisa da literatura que não tema a pluralidade de seu objeto e (3) valorizar relações
que promovam a literatura, a partir de outras práticas – práticas que não temam a
liberdade. Identificando a performance como uma noção que não só amplifica, mas
também atualiza compreensões da escrita literária, sobretudo na contemporaneidade,
encontro um objeto de análise amorfo. Por mais que a literatura possa ainda ser
entendida como um estranho que a habita, as teorias da literatura devem também se
debruçar efetivamente aos interstícios de outras linguagens, já que à literatura tudo
interessa, sem produzir necessariamente um retorno tautológico – comum em nossas
práticas.

Referências

BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2009.
COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2011.
DERRIDA, Jacques. Essa estranha instituição chamada literatura. Minas Gerais: UFMG,
2014.
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2003.
GOLDBERG, Roselee. A arte da performance – Do Futurismo ao Presente. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
KLINGER, Diana. A escrita de si como performance. In: Revista Brasileira de Literatura
Comparada, v. 12, p. 11-30, 2008.
MELIM, Regina. Performance nas Artes Visuais [Ebook Kobo Edition]. Rio de Janeiro:
Zahar Editor, 2008.
SCHECHNER, Richard. Performance Studies: an introduction. 3. ed. New York & London:
Routledge, 2013.
ZUMTHOR, Paul. Recepção, performance, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

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HISTÓRIA, TRAUMA E LITERATURA:


A POSIÇÃO DO NARRADOR EM OS ANÉIS DE SATURNO, DE W. G. SEBALD

Carla Lavorati1

O narrador de Anéis de Saturno é um andarilho. Viajante solitário que, a passos


lentos, observa, pesquisa, conversa, faz anotações para construir sua narrativa
conforme se movimenta pelas paisagens naturais e espaços urbanos da costa leste da
Inglaterra. Em sua caminhada encontra ruínas e fragmentos do passado, que podem
estar associados a objetos, à arquitetura, a histórias pessoais (reais ou fictícias), que de
alguma forma se relacionam com a experiência de destruição proporcionada pela
segunda guerra mundial e pelo holocausto.
A narrativa inicia com o narrador internado em um quarto de hospital, abatido
pela imobilidade que acomete seu corpo após o encontro com o excesso de traços de
destruição pelo caminho. Essa paralisia diante do olhar consciente dos traços de
destruição deixados pelo passado no presente se relaciona à postura melancólica do
narrador e à própria problemática da incomunicabilidade da experiência vivida nos
encontros recorrentes com a destruição. Assim, a imobilidade está relacionada às
marcas de destruição encontradas a cada passo, o que reforça a desilusão e o
comportamento melancólico do narrador, que tem consciência que “Basta uma fração
de segundo [...] e toda uma era passa.” (SEBALD, 2010, p. 41). É possível associar a
postura melancólica à angústia do passar do tempo, à sensação de que não estamos
caminhando no rumo certo, à consciência de que somos e seremos sempre
incompletos, e que, inevitavelmente, o obscuro, o intangível faz parte de nossa
complexa e efêmera existência. “E como a pedra mais pesada da melancolia é a
angústia do fim inelutável de nossa natureza, Browne procura entre aquilo que
escapou à aniquilação os vestígios da misteriosa capacidade de transmigração que
observou tantas vezes em lagartas e mariposas” (SEBALD, 2010, p. 35).
O narrador de Os Anéis de Saturno se coloca em movimento, anda e relaciona
sua memória pessoal, a memória histórica e coletiva, constituindo-se como agente de

1
Doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. Bolsista
Capes/CNPq: início em março de 2014. E integrante do grupo de pesquisa Literatura e Autoritarismo,
coordenado pela professora Dra. Rosani Ketzer Umbach.
E-mail: ca_lavorati@yahoo.com.br

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ação e do discurso2. Certo que está que esquecer representa um risco. Assim, assume
a tarefa de comunicar o que a tempestade do progresso apaga, e que impele os
indivíduos para o futuro, mesmo com toda crescente ruína do passado. O narrador de
Os Anéis de Saturno vence a força que o impele para futuro, e no olhar melancólico
que dirige ao passado, consegue, escapar do “vento” progresso, para voltar,
lentamente juntando os cacos da história da Europa pós-guerra. Nesse movimento,
revela o lado obscuro do “projeto” racionalismo humanista, que não conseguiu evitar a
banalização do mal. E nesse sentido, é possível nos referirmos a todos os personagens
que compõem as obras de W. G. Sebald de experiências incomunicáveis, advindas das
relações que mantém com os processos de destruição de massa. Na maioria, são
personagens que representam gerações posteriores a experiências diretas de trauma
(não são testemunhas oculares), mas estão ligados a experiências de
incomunicabilidade. O narrador de Sebald conta essa história sem ser testemunha
ocular dos fatos, mas sim no entrecuzamento de histórias que, de alguma forma,
sentiram as consequências, materiais e psicológicas, dos horrores das guerras.
No texto Posição do narrador no romance contemporâneo, Adorno (2003)
refere-se ao romance como um gênero que exige narração, num mundo onde a
capacidade de narrar está em decadência, tanto pelo declínio da experiência, que fica
prejudicado pelas relações traumáticas de esvaziamento de sentido - na incapacidade
da linguagem comunicar o incomunicável dos horrores da destruição em massa - como
também pelo próprio declínio da memória histórico-coletiva, em um mundo
capitalista, envolvido nas engrenagens do consumo intermitente, e, portanto,
sufocado pelo cotidiano alienante, pois “Contar algo significa ter algo especial a dizer,
e justamente isso é impedido pelo mundo administrado, pela estandardização e pela
mesmice” (ADORNO, 2003, p 56).
2
Hanna Arendt, na obra A condição humana (2005), fala sobre a relação entre discurso e ação, onde
observar-se a revelação do agente da ação. A ação, para existir, precisa estar inserida na sociedade dos
homens, pois depende da existência dos outros. Apenas nós, seres humanos, relacionados por aspectos
de igualdade e diferença podemos comunicar nossa subjetividade, nossa própria pluralidade e distinção.
Nesse sentido, na prática do discurso, o sujeito se mostra, pois é no discurso que ficam registradas as
marcas da ação. Portanto, o fundamental para existir narrativa é a presença de um agente que
impulsione a ação. Nesse sentido, o romance é uma categoria do gênero de ação, mais especificamente
da ação do homem em sociedade. A representação do indivíduo moderno, isolado, angustiado e de um
mundo sem deuses que muito bem se adequou a forma do romance. A literatura pode ser considerada,
desse modo, como uma expressão privilegiada do homem em sua relação com o mundo, com a
alteridade e consigo mesmo. No romance Os Anéis de Saturno, o narrador empreende a ação de juntar
os cacos do passado e contar a história a contrapelo. Portanto, além de uma postura de ação é também
uma postura ética, um trabalho em prol da recuperação da memória e da história dos vencidos. O que,
por sua vez, liga-se à própria consciência crítica do autor. Essa perspectiva relacional entre narrador e
autor será trabalhada, de modo mais específico, no desenvolvimento do artigo.

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Nesse sentido, o romance para Adorno (2003) se transforma pela própria


relação que sua forma estética mantém em com a sociedade. Sociedade que caminha,
cada vez mais, para o isolamento, alienação e petrificação das relações humanas. Para
estabelecer paralelos, o autor recupera aspectos no narrador nos romances do século
XIX e relaciona-os às mudanças de perspectiva do narrador contemporâneo. Já no
século XX, como observa Adorno (2003), o narrador irá apresentar aspectos diferentes
sobre a narrativa. Não sendo mais “possível” – principalmente após os eventos
traumáticos de destruição em massa – construir, sem soar anacrônico, um narrador
que se posicione como um observador onisciente e que organize a narrativa de modo
pretensamente objetivo, pretendendo uma representação que mantenha a ilusão da
verdade.
Portanto, é interessante observar que a própria sociedade burguesa que
ofereceu as condições para a consolidação do romance, o que vai levá-lo – num
contexto onde o capital e o consumo atingem situações “extremas” de alienação – a
novas configurações, que o tornarão mais subjetivo e fragmentado, pois o indivíduo –
inserido num contexto de insegurança e de desconfianças em relação às narrativas
totalizantes – não consegue empreender um sentido seguro para a realidade
circundante, o que impulsiona o mal-estar e mesmo a crise existencial que segue
períodos traumáticos. Isso seria, portanto, um paradoxo enfrentado pelo narrador do
romance contemporâneo. Dessa forma, torna-se comum a construção de narradores,
que afetados pela desconfiança da linguagem e do próprio limite de conhecimento de
si mesmo e das coisas, reforçam aspectos de subjetividade e consciência dos limites da
representação, o que coloca este tipo de narrador numa posição ideológica
contraposta a do narrador onisciente, comum ao romance realista do século XIX, que
se limita a descrever e não comentar, evitando a subjetividade na composição do
romance.
A tendência de subjetivação do narrador pode ser observada, de modo mais
expressivo, na técnica do fluxo de consciência que muitos romances passam a utilizar,
acrescentando características psicológicas à narração, a exemplo de Virginia Wolf,
Marcel Proust, James Joyce. Segundo Adorno (2003), isso tem relação com o contexto
social do século XX, pois “o que se desintegrou foi a identidade da experiência, a vida
articulada e em si mesma contínua, que só a postura do narrador permite” (ADORNO,
2003, p. 56), por isso, a narração que se apresentasse como uma forma segura e
verdadeira de representação da realidade soaria como anacrônica, e nas palavras de
Adorno, são recebidas “[...] com impaciência e ceticismo” (p. 56). O autor chama
atenção, ainda, para a relação entre as novas formas do romance e a sociedade da

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informação, da indústria cultural, em que o grande desafio é superar a linguagem


objetiva e explicativa do relato, que domina os textos midiáticos, e reduz as
possibilidades de interpretações do leitor. Nessas narrativas, assim que a informação é
consumida, é também descartada; fica logo envelhecida, pois nela não encontramos o
trabalho estético de potencialização dos sentidos da linguagem, como faz a ficção de
qualidade.
E nesse sentido, Adorno (2003) julga o romance, como poucas outras formas de
arte, como um dos modos de expressão mais qualificados, para representar a própria
coisificação das relações humanas, num questionamento da relação alienante que o
indivíduo mantém, mesmo que muitas vezes de modo inconsciente, com a própria
“maquinaria” do sistema capitalista. Nesse caso, a própria alienação torna-se uma
possibilidade estética para o romance, “Pois quanto mais se alienam uns dos outros os
homens, os indivíduos e as coletividades, tanto mais enigmáticos eles se tornam uns
para os outros” (ADORNO, 2003, p. 59). Portanto, o romance caminha rumo à tentativa
de decifrar o enigma da vida exterior, a busca por uma certa essência, que fica
obscurecida pelo próprio contexto de “estranhamento” das convenções sociais, pois “o
momento anti-realista do romance moderno, sua dimensão metafísica, amadurece em
si mesmo pelo seu objeto real, uma sociedade em que os homens estão apartados uns
dos outros e de si mesmos” (ADORNO, 2003, p. 58). E, por isso, torna-se comum nos
romances do século XX, a recorrência de expressões subjetivas do narrador, que coloca
a própria narração nos limites da esfera psicológica, negando qualquer forma de
verdade essencial, num questionamento dos próprios limites do conhecimento.
Desse modo, o narrador de Os Anéis de Saturno é um peregrino
contemporâneo, um desenraizado, que em suas andanças dirige o olhar para os
destroços que ficaram pelo caminho como resto do projeto civilizatório e como marcas
das lutas de poder. É, pois, um narrador em primeira pessoa, que narra inserindo os
limites de sua subjetividade. E, justamente, pela consciência das dificuldades de
trabalhar de modo ético com assuntos relacionados a esse tema, mantém a
preocupação de não subscrever os relatos da guerra. O narrador deixa evidente em
determinadas passagens do romance os próprios limites e (im)possibilidade do
narrador e da própria narrativa. Por isso, os narradores dos romances de W. G. Sebald
são todos conscientes das próprias limitações da linguagem para descrever a
realidade, mas, mesmo assim, não se eximem da tarefa necessária de lembrar e refletir
sobre as consequências e rumos da história da humanidade, dos horrores que a
compõem, das destruições das guerras, dos absurdos do holocausto, e, mesmo de

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modo mais geral, do nosso racionalismo e burocracia aplicados ao extremo, num


projeto de progresso, que na visão do narrador mostra provas de seus fracassos.
Portanto, o romance seria um gênero que representa a profunda perplexidade
de quem vive. Nesse sentido, consideramos Os Anéis de Saturno nas fronteiras do
romance3, pelo próprio caráter de busca de sentido, de um homem solitário e
desenraizado, em relação à história mundial e à própria vida. No caminho oposto aos
gêneros trágicos, onde é comum a existência de uma tensão trágica para a posterior
recuperação do ponto de equilíbrio, no romance, a própria vida é trágica, não se tem
um ponto de equilíbrio. E, em Os Anéis de Saturno, essa vida é mais trágica ainda
porque está submersa num período pós-catástrofes.
Apesar de Adorno (2003) referir-se à relação dos traumas e das catástrofes com
a impossibilidade de narração, observa-se em romances como de W. G. Sebald uma
amostra que refuta essa constatação, pois o que o narrador empreende é justamente
a narração do inenarrável. No trecho abaixo, podemos notar um pouco da
perplexidade do narrador em relação aos silêncios que encobrem os eventos
relacionados às catástrofes.

Seja como for, desde então tentei descobrir tudo que estivesse ligado
à guerra aérea. No inicio dos anos 50, quando estive em Lüneburg
com o exercito de ocupação, cheguei até aprender um pouco de
alemão, a fim de poder ler o que os próprios alemães, imaginei,
haviam escrito sobre a guerra [...] para minha surpresa, porém, logo
verifiquei que a busca por tais relatos nunca dava em nada. Ninguém
parece ter escrito a respeito na época nem se lembrar do fato mais
tarde. E mesmo se eu perguntasse diretamente às pessoas, era como
se tudo estivesse sido apagado de suas cabeças (SEBALD, 2010, p.
49).

Para Benjamin, as formas épicas da antiguidade já continham dentro de si


formas do romance4, mas foi com o fortalecimento da burguesia que alcançou a

3
O autor W. G. Sebald não denominava seus livros de romances, mas sim de prosa ficcional. No entanto,
justamente pelo romance ser um gênero que vem sofrendo constantes modificações, acreditamos ser
pertinente a referência ao gênero romance, não no sentido de estancar a obra dentro de uma categoria
(até porque nos parece que isso é o menos importante), mas para tornar possíveis as aproximações
observadas na composição de Anéis de Saturno em relação à forma de expressão individual e à função
catártica que o romance apresenta como “prosa do mundo”.
4
É interessante observar que os teóricos divergem quanto à gênese do romance. Bakhthin diz que tem
romance desde a antiguidade, Lukács diz que surge com a burguesia, Aurebach como subgêneros da
novela. Adorno (2003) e Benjamin (1983) relacionam o aparecimento do romance e a “decadência” dos
outros gêneros com o início da era burguesa.

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condição necessária para seu florescimento. Portanto, quando o romance torna-se


independente da epopeia, ocorrem consequentemente mudanças na sua estrutura, na
concepção de herói e nas relações entre memória, eternidade e tempo mítico. O
romance transforma tempo em forma, não narrando mais os fatos num tempo
imemorial. Já as formas arcaicas de narrativa, tais como as lendas, as fábulas, os mitos,
tinham um papel regulador e conservador da sociedade. O narrador, nesses textos,
estaria na categoria dos sábios, dos professores, daquele que dá conselhos. Portanto,
o leitor clássico encontrava nas narrativas da antiguidade a moral exemplar, enquanto
os leitores do romance buscam sentido para a vida, pois o sentido geral da narrativa se
desfez.
Nesse caso, o narrador, de certo modo, lembra o narrador arcaico pautado na
tradição oral e na vivência de experiências referido por Benjamin (1983), posto que
empreende, numa narrativa lenta e digressiva, a representação ficcional do que vê e
do que ouve, das histórias pessoais (reais e fictícias), dos objetos, no decorrer de sua
longa caminhada, adquirindo uma espécie de autoridade para narrá-las, posto que as
vive enquanto experiência concreta e/ou imaginária. Os Anéis de Saturno, de certa
forma, escreve - tal qual sugerido em textos de Benjamin5 - uma história a contrapelo,
que dê conta de “retirar” do silêncio os mortos e esquecidos. No entanto, ao contrário
do narrador onisciente, o narrador do romance analisado compõe sua trama nos
limites do conhecimento e da perspectiva sempre limitada da percepção individual. É,
portanto, um narrador oposto à onisciência do romance moderno do século XIX e mais
próximo ao narrador subjetivo dos romances contemporâneos, pois traz para o texto
marcas da consciência, da subjetividade e, mesmo, marcas de dúvidas e incertezas
quanto as suas próprias impressões e sentimentos.
A estrutura de Os Anéis de Saturno6 difere dos romances tradicionais, não
apresentando nem enredo, nem narrador ao estilo estritamente tradicional, o que, por
sua vez, faz-nos pensar que a própria forma da narrativa mantém relações com o
contexto histórico do século XXI, época que sofre o perigo de cair numa amnésia
profunda, que corre o risco - na sufocante alienação do modo capitalista e da mesmice
cotidiana - de “estagnar” o pensamento, impossibilitar a reflexão e repetir os mesmos
erros do passado. E, nesse sentido, o narrador alicerça sua narrativa nos processos de
rememoração, num movimento contrário ao desmemorialismo e alienação comum ao
contexto social da era da velocidade, da tecnologia e das informações compactadas
5
Ver: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política - ensaios sobre literatura e história da cultura.
Obras escolhidas, volume I, 2ª edição, São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

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que encolheram as frases e o próprio potencial do pensamento. O narrador criado por


Sebald é avesso à velocidade e ao progresso. Suas caminhadas são reflexivas e sua
narrativa é composta por frases longas, muitas descrições, associações e digressões
apoiadas no conhecimento, na memória e na imaginação criadora do narrador. Na
passagem abaixo, observamos a crítica do narrador à superficialidade dos relatos
jornalísticos, o que possibilita o paralelo com os próprios desdobramentos da indústria
cultural na atualidade.

Embora eu soubesse de tudo isso, não estava preparado para o


desconsolo que logo se apoderou de mim em Lowestoft, pois uma
coisa é ler nos jornais reportagens sobre unemploymentblackspots, e
outra é caminhar numa tarde sombria pelas fileiras de casas com
suas fachadas deterioradas e seus grotescos jardinzinhos de frente, e,
tendo finalmente chegado ao centro, não encontrar outra coisa além
de salões de jogo, casas de bingo, betting shops, lojas de vídeos,
bares que exalam um cheiro de cerveja azeda de suas escuras portas
entreabertas, mercados de segunda e duvidosos estabelecimentos de
bed e breakfast com nomes como OceanDawn, Beachcomber,
Balmoral, Albion e LaylaLorraine (SEBALD, 2010, p. 51).

É um romance que se alicerçava no esforço de juntar os pedaços do passado,


numa luta contra o esquecimento, escrevendo a sombra do trauma do coletivo
holocausto. Mas o narrador não nega que talvez seja uma luta vã, mas necessária, em
busca de um possível compreensão do incompreensível.
E nesse sentido, talvez, a narrativa de Os Anéis de Saturno ofereça respostas às
(im)possibilidades narrativas após auschwitz, pois se posiciona de modo ético diante
da memória histórica dos fatos, sem, no entanto, subscrever os discursos do
holocausto. Ao mesmo tempo que sua estrutura formal se constrói no movimento
contrário ao indivíduo desmemoriado, imediatista e eufórico do XXI. Mesmo com essa
postura crítica e esse tom consciente, e talvez justamente por isso, o narrador reflete
também sobre os limites do conhecimento, sobre o inapreensível, que mesmo com
todo o avanço da ciência e da técnica não deixou de “assombrar-nos”, posto que
desvela nossa própria incompletude e fragilidade enquanto ser.

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Referências

ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. Trad. Jorge de


Almeida. In: _____. Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades, 2003.
ARENDT, Hannah. Ação. Trad. Roberto Raposo. In: _____. A condição humana. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2005.
BENJAMIN, Walter. O narrador. Observações acerca da obra de Nicolau Leskow. In:
_____. BENJAMIN et al. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
SEBALD, W. G. Os anéis de saturno: uma peregrinação inglesa. Trad. José Marcos
Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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FENOMENOLOGIA DO IMAGINÁRIO E LITERATURA:


UMA LEITURA DE A DESUMANIZAÇÃO, DE VALTER HUGO MÃE

Cássia Gianni de Lima1


Regina Kohlrausch2

Diz-me qual é o teu infinito e saberei o sentido do teu universo:


é o infinito do mar ou do céu,
o infinito da terra profunda ou o da fogueira?
Gaston Bachelard

O contato com a realidade pode suscitar muito mais do que uma experiência
imediata e passageira, muito mais do que uma busca, própria do ser humano, de
explicar objetivamente o visível. Há, em muitos casos, a necessidade de ultrapassar as
visões provocadas pelas primeiras impressões na relação com a matéria. A realidade é,
para o sonhador, uma porta de entrada para um universo complexo, subjetivo,
imaginado, sentido; provoca uma ação circunscrita para além da superfície, transcende
o visível. O homem que imagina é, usando as palavras de Bachelard (1994), antes um
pensativo que um pensador, embora os limites da distinção sejam difíceis de traçar.
A fenomenologia do imaginário desenvolveu-se como o campo de estudo que
pretende dar conta dessa imaginação, individual ou coletiva, nas diferentes maneiras
em que se manifesta. A literatura apresenta-se, nesse sentido, um campo fértil para a
interpretação das relações profundas entre o homem e o universo que o circunda.
Certos textos literários dão vida ao imaginário, contêm o que está para além das
imagens simbólicas da linguagem, para além do espaço, para além da estabilidade das
certezas.
É o que parece acontecer em A desumanização, último romance publicado pelo
escritor português Valter Hugo Mãe, que apresenta como narrador a personagem
Halldora, uma criança de onze anos que, após perder a irmã gêmea, conta sua árdua

1
Mestranda em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS),
com bolsa de incentivo CNPq.
E-mail: cassia.gianni@acad.pucrs.br
2
Professora titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
E-mail: regina.kohlrausch@pucrs.br

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tarefa de buscar sentido à existência, refletindo sobre o amor, o ódio, a esperança, seu
crescimento, deus e, principalmente, sobre a morte e a solidão. Como todos os
enredos propostos por Valter Hugo, A desumanização, por tratar sobretudo do
humano, parece poder pertencer a qualquer lugar. Entretanto, não é por acaso que
tem como pano de fundo os fiordes islandeses. A protagonista vive em uma ilha
composta de vulcões, montanhas, rochas, mar e muita neve, onde é muito difícil
chegar e ainda mais improvável permanecer. É através das imagens da Islândia que as
personagens pensam sua condição e seus sentimentos. O espaço é o responsável por
dar vida à sua imaginação e aos seus sonhos.
Gaston Bachelard, que elabora sua fenomenologia do imaginário a partir da
compreensão dos devaneios materiais surgidos pelo contato com elementos da
natureza – fogo, água, ar e terra –, oferece interpretações que parecem permitir a
compreensão, também, dos devaneios de Halldora, suscitados por sua relação com o
ambiente terrível que a rodeia e pela necessidade de responder às questões de seu eu.
Procura-se fazer, neste trabalho, portanto, um diálogo entre a fenomenologia
proposta pelo teórico e a obra de Valter Hugo Mãe, interseccionando perspectivas e
possibilitando novo olhar sobre o texto.
A Islândia pensa. Em A desumanização, os fiordes islandeses funcionam como
um personagem que age constantemente, com gestos majoritariamente opressivos e
destruidores. O mar, os vulcões, as nuvens, as montanhas, o vento e as rochas,
agressivos e exuberantes, definem a vida das pessoas que circundam. Halldora ou
Halla, como é chamada a protagonista, tem uma relação profunda com o pai, que é
quem lhe ensina o seu lugar na imensidão confinadora dos fiordes. Sendo poeta,
parece ser capaz de compreender bem as armadilhas conjeturadas pela terra onde
vivem e, orientando as crianças sobre os perigos da Islândia, é o primeiro a fazer do
espaço alguém:

Não te aproximes demasiado das águas, podem ter braços que te


puxem para que morras afogada. Não subas demasiado alto, podem
vir pés no vento que te queiram fazer cair. Não cobices demasiado o
sol de verão, pode haver fogo na luz que te queime os olhos. Não te
enganes com toda a neve, podem ser ursos deitados à espera de
comer. Tudo na Islândia pensa. Sem pensar, nada tem provimento
aqui. Milagres e mais milagres, falava assim. E tudo pensa o pior.
(MÃE, 2014, p.30)

A solidão, que configura quase uma tese em A desumanização, é o que permite


que as personagens imaginem. O sonho vem porque as pessoas sentem-se sós em um

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lugar onde é impossível estar sozinho. A solidão faz com que os homens percebam que
existe alguém em tudo que os rodeia. Halldora, a partir do momento em que perde a
irmã, ainda criança, passa a ter um contato profundo com o abandono e o isolamento,
não é capaz de encontrar-se nem consigo mesma, porque tem uma parte na morte,
pertence àquele óbito inteiramente, é a “menos morta” das duas meninas.
Sigridur, enterrada no alto de uma montanha, passa a ser visitada
constantemente pela irmã gêmea, que espera que, do túmulo, brote nova vida, nasça
uma árvore de folhas e unhas, que germine “a criança plantada”. Halla quer reviver e,
por isso, passa a ter uma relação de dependência com a terra. Na terra, está sua outra
metade, sufocada, com frio e sozinha. Nos momentos de pânico, cobre-se de terra e
de folhas até que se sinta capaz de resistir mais uma vez. A terra passa a ser o
elemento que a reconecta à irmã, fazendo com que se sinta completa novamente.
Gaston Bachelard afirma que, para o imaginário, enterrar os mortos é como
impedi-los de morrer completamente. Os enterrados ainda estão presentes, podem
ser visitados, permanecem perto. Sigridur é, para a irmã, ainda uma esperança, como
uma semente que é soterrada para tornar-se vida nova.

Poderia ser que brotasse dali uma rara árvore para o nosso canto
abandonado dos fiordes. Poderia ser que desse flor. Que desse fruto.
[...] Achei que minha irmã podia brotar numa árvore de músculos,
com ramos de ossos a deitar flores de unhas. (MÃE, 2014, p.9)

A árvore, segundo Bachelard (2001, p.207), é importante, principalmente, por


ser uma imagem verticalizante. Segundo ele, é uma força evidente que leva uma vida
terrestre em direção ao céu: “seja como eu, diz a árvore ao sonhador caído, levanta-
te”. Há, na árvore, um movimento de ascensão, como há também no imaginário da
morte. Além disso, de acordo com Bachelard, a árvore configura, na natureza, o único
elemento vertical como o homem. Para Halldora, nascer árvore é uma possibilidade
confortante como destino para a irmã (que indiretamente também é o seu), que
poderia, assim, colocar-se novamente próxima à condição humana e caminhar em
direção ao paraíso.
Criança de duas almas, Halldora sente-se leve, como se fosse feita de ar e tem
sonhos de voo, que lhe permitiriam “enxergar os fiordes inteiros e sua intermitência”.
Há, na protagonista, o que Bachelard (2001, p.29) chama de leveza substancial, que
assombra o sonhador, mas permite o voo como uma libertação. Sonhar que está
voando torna possível que Halla migre em direção a um lugar melhor para fazer sua
vida, que fuja da vida triste dos fiordes.

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Mas a felicidade dura pouco nos sonhos dos habitantes da Islândia. Em muitos
momentos, é a queda a principal intérprete da imaginação. Cair parece condizer mais,
como porvir, para os que ali vivem. Nesse sentido, durante toda a narrativa, há
associação da morte, vivida ou imaginada, com a queda. Os fiordes islandeses são uma
terra repleta de montanhas rochosas que, entre si, produzem espaços enormes,
escuros e vazios. A boca de deus, como são chamados os precipícios, representam o
desconhecido, a queda infinita, a morte constante. Einar, personagem com quem
Halldora vive sua sexualidade, tem o pai assassinado com um empurrão de cima de
uma montanha e o filho depositado na mesma imensidão, depois de nascer morto.
Além disso, a protagonista imagina-se, muitas vezes, como sendo uma queda
constante, uma lágrima que cai incapaz de secar, “chorava por si só. Significava a
tristeza com seu corpo inteiro” (MÃE, 2014, p.85) e vê, no suicídio, que fica como
ambiguidade ao final da narrativa, um desejo, como aqueles que são feitos às estrelas
cadentes.
A imaginação material do ar, para Bachelard, tem essa dualidade de leveza
(voo) e peso (queda). Segundo ele, “a queda e o escuro preparam dramas fáceis para a
imaginação inconsciente” (BACHELARD, 2001, p.91). O que é mais interessante é que,
para ele, deve-se estudar a queda como sendo uma “espécie de doença da imaginação
da subida, como a nostalgia inexplicável da altura” (BACHELARD, 2001, p.95). As
muitas quedas no romance de Valter Hugo Mãe são mesmo uma impossibilidade, o
lado negro e infeliz da morte, a negação da subida.
As nuvens também são uma imagem aérea recorrente em A desumanização e,
para as personagens representam ora a leveza, ora o peso da morte. Para Halldora, as
nuvens são almas que cruzam o ar e são capazes de refletir a vida:

Contei as nuvens. As que pareciam raposas, cães ou gatos. As que


pareciam rostos zangados. As que pareciam coisas de vestir. As que
pareciam, simplesmente, montanhas. As almas das montanhas
mortas que, por serem grandes, vagavam ainda pelo céu. [...] Pensei
que, se a minha alma passasse no ar, não seria vista de tão pequena
e, se fosse de ver, teria a forma de duas meninas a dormir [...]. (MÃE,
2014, p.53)

Einar, que passa a viver com Halldora após a gravidez e a perda do filho, torna-
se a personagem com quem a protagonista compartilha seus sonhos. Diferentemente
de Halla, ele sente ímpetos de destruir as nuvens, porque tem rostos e falam. Para
Einar, as nuvens são seus medos que “ficam a cobrir o céu e a fazer invernos e
tempestades” (MÃE, 2012, p.53).

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Segundo Gaston Bachelard, a nuvem é a imagem que ajuda a sonhar a


transformação. As nuvens podem assumir o que o sonhador deseja que assumam. As
nuvens são como um devir, à espera de quem as caracterize, dê-lhes a forma da
imaginação. Por isso talvez tenham designações tão particulares. Bachelard afirma que

Nesse amontoado globuloso, tudo rola ao nosso gosto, montanhas


deslizam, avalanches desmoronam e depois se acomodam, os
monstros inflam e depois se devoram um ao outro, todo o universo
se regula segundo a vontade e a imaginação do sonhador.
(BACHELARD, 2001, p.190)

As nuvens são, portanto, um sonho em aberto, um elemento que espera uma


forma, que não é senão aquilo que o sentimento implica.
A relação de Halldora com a morte perpassa todo o romance. A protagonista
sente-se sozinha, mas é acompanhada durante todo o tempo pela sombra do fim. Vai
perdendo, pouco a pouco, seus afetos, mas morre principalmente por dentro. Halla é
uma morte constante, dolorosa e violenta. É na fúria do desgosto que, em A
desumanização, relacionam-se as imagens do fogo. A associação da morte com o fogo
parece ser coletiva na Islândia, faz parte da imaginação de todos.

Contava-se que deus se sentara pelos fiordes e, de rabo tão pesado, a


rocha cedera, como se fosse um monte de areia. Outras pessoas
achavam que aquilo era o diabo, descansando de andar a acender
caldeiras, regurgitando a as almas dos infelizes para dentro das
crateras fundas dos vulcões, enchendo os vulcões do estranho ódio
que o fogo continha. Jurava o meu pai: é um estranho ódio que o
fogo contém. Deve vir do mal dos mortos. Os zangados. (MÃE, 2014,
p.31)

O fogo é, portanto, a manifestação de morte das almas iradas. Diferentemente


da leveza da nuvem ou do peso da queda, o fogo mostra-se, no romance, vinculado à
fúria, à agressividade. São os zangados que ardem nos vulcões. O fogo é o símbolo do
ódio e da culpa, da inconformidade e da violência.
Quando Halla engravida de Einar, ainda criança, e passa a sofrer por esperar um
filho, compara o feto a um peixe dourado que vive no aquário de Steindór, uma
espécie de prior que orienta espiritualmente os habitantes dos fiordes. Halla tem a
sensação de que seu filho queima o seu corpo, é como um peixe em fogo resistindo à
vida trágica que espera por ele.

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Eu era um círculo fechado de água, habitada por uma labareda.


Insistia: sinto que arde. [...] Talvez o meu filho mordesse na pequena
poça de água da barriga. Teria vidências do futuro. Escutaria a
tristeza dos nossos dias. Recusava-se a nascer para aquilo. Para ser o
que éramos nós. (MÃE, 2014, p.75)

Bachelard (1994, p. 55) reconhece o caráter violento do fogo. Considera que “o


fogo é o fenômeno objetivo de uma raiva íntima, de uma mão que se enerva”. Para
ele, tudo que recebe o fogo, arde e, portanto, corrói. O fogo é o elemento da
destruição, da revolta, do mal que nasce no homem.
Há momentos, na narrativa, em que o fogo é também comparado à falta, à
transgressão. Os vulcões da Islândia são vistos como dragões cumprindo uma pena
pela gula de devorar o mundo todo. É esse ímpeto, a vontade incontrolável de alguma
coisa que aparece ligada à imaginação do fogo.
Outro ponto interessante de se observar é o fato de que o romance termina
com um incêndio. Halla decide finalmente fugir dos fiordes, não se sabe de que jeito, e
deixa para trás tudo que lhe causou tristeza até então. Responsável pelo cuidado das
chaves da igreja onde morava de favor com Einar, tranca todas as portas, despeja óleo
pelo chão e vai embora assistindo à destruição dos que ficaram para trás – dentre eles
os adultos que tomavam conta dela. O fim da narrativa é a libertação necessária
buscada pela protagonista desde sempre. Halldora queima, aniquila a vida que levou
até então.

Eis o espetáculo de um imenso incêndio. [...] O amor, a morte e o


fogo são unidos num mesmo instante. Por seu sacrifício no coração
das chamas, a falena nos dá uma ligação de eternidade. A morte total
e sem vestígios é a garantia de que partimos plenamente para o
além. Tudo perder para tudo ganhar. (BACHELARD, 1994, p.27)

Halldora perde e ganha tudo em um mesmo instante, ao incendiar a igreja. É a


destruição violenta e necessária da realidade. E ela sabe que será perdoada. “Quem
não sabe perdoar, só sabe coisas pequenas” (MÃE, 2014, p.151). É o fogo o
responsável pela morte completa, que não deixa rastros, que permite desvencilhar-se
de ser o que se era. De todos os elementos, talvez o fogo seja o maior transformador.
As chamas representam a morte mais significativa dentre as muitas que acontecem no
romance, que é a morte do passado, da tristeza, da resistência, da prostração, de tudo
pelo qual se sofre durante a obra. “Pelo fogo tudo muda. Quando se quer que tudo
mude, chama-se o fogo” (BACHELARD, 1994, p.86).

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Em oposição clara à imaginação do fogo no romance, mas igualmente


significativos, estão os sonhos da água. Os fiordes são banhados pelo mar e possuem
inúmeros pequenos lagos que se formam nas montanhas. A água é, para a pequena
Halldora, sinônimo de esperança. Mesmo que os adultos a alertem sobre os perigos do
mar, que parece querer afogar todos com suas ondas violentas, seus monstros
aquáticos e suas viagens sem volta, para ela, a água vincula-se sempre à limpeza, ao
conforto e à fé.
Se o diabo está ligado às coisas do fogo, quem permite que as águas não
sequem é deus. Haver água nos fiordes é um sinônimo de que deus existe, mesmo que
esse deus seja desatento ou desconheça os pobres dali. Além disso, para Halldora, a
água contém toda a humanidade que falta ao fogo, a água é a matéria das lágrimas.
Halla identifica-se com os lagos, porque eles são fruto da tristeza, do pranto de alguém
que sofre tanto quanto ela.

As águas todas eram lágrimas. Eu gritava e meu pai pedia que ficasse
calma. Perguntava-lhe: pai, quem chorou o mar. Foram as baleias,
pai. Quem choraria tanta agua. E quem chorou dentro de mim. (MÃE,
2014, p.79-80)

Mais do que compreensão e empatia, a água parece, desde sempre, para a


protagonista, uma chance de ser salva. Quando ainda junto da irmã, depositavam
bilhetes em garrafas para que as ondas levassem aos mais corajosos heróis, que viriam
buscá-las para salvá-las dos fiordes e oferecer-lhes casamento. O homem que vem do
mar, em sua imaginação, é o mais corajoso dos homens, é o único capaz de salvá-la
dos tamanhos perigos da vida nos fiordes. Bachelard afirma que o navegador é sempre
um homem destemido, que vence tudo, inclusive a morte.

Parece que a utilidade de navegar não é bastante clara para


determinar o homem pré-histórico a escavar uma canoa. Nenhuma
utilidade pode legitimar o risco imenso de partir sobre as ondas. Para
enfrentar a navegação, é preciso que haja interesses poderosos. [...]
O primeiro marujo é o primeiro homem vivo que foi tão corajoso
quando um morto. (BACHELARD, 2013, P.76)

O oceano é, portanto, a morada dos heróis, dos salvadores, dos bravos. Para
Halla, eles são uma possibilidade, um caminho em retirada.
O mar representa, também, a generosidade que tanto falta à natureza nos
fiordes. O mar dispersa as coisas pelas águas, leva embora o sofrimento, apaga o
sangue que jorra das ovelhas sacrificadas, do corpo da mãe que se corta, o mar, assim

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como a chuva, limpa o sofrimento. Essa purificação que a água oferece é, segundo
Bachelard (2013, p.148), ao mesmo tempo ativa e substancial e o que garante a
participação do sonhador de uma força fecunda, renovadora. O sonho de limpeza e
purificação surge, também, para Halla, da capacidade que a água tem de
movimentação.

As águas, um dia, acordadas de raiva, haveriam de se levantar,


verticais e furiosas, para fustigar tudo. As quentes e as frias.
Espanando os icebergs, os glaciares inteiros, libertando todas as
coisas como a fazer com que viessem flutuar à procura de um novo
tempo para parar. (MÃE, 2014, p.38)

Há, ainda, no romance, a ideia de água maternal, defendida por Bachelard


(2013, p.136). De acordo com ele, “dos quatro elementos, somente a água pode
embalar. Dos quatro elementos, ela é a única que pode embalar como uma mãe. [...] A
água leva-nos. A água embala-nos. A água adormece-nos. A água devolve-nos à nossa
mãe.”. Mergulhar nos tanques de água quente formados nas montanhas, para
Halldora, como um abraço, uma sensação de agrado e proteção. “Gostava dos
tanques. O modo como ficavam de varanda para o mar. Gostava do conforto materno
das águas quentes” (MÃE, 2014, p.34). A água, para a protagonista, é, dessa forma,
fonte de calmaria e otimismo, de ventos de mudança, de sonhos bons.
Faz-se interessante analisar, como último elemento, os sonhos relacionados
aos rochedos, à atividade das pedras, porque eles são recorrentes durante toda a
narrativa tanto pelas imagens do gelo, da neve, quando pelas imagens das montanhas.
Kjarval, o maior dos pintores islandeses, é citado muitas vezes na narrativa por retratar
pedras que conspiram, que magicam maneiras de viver. Seus quadros são um mistério
fascinante da energia das pedras para as personagens. A igreja, nos fiordes, é
enfeitada pelas suas imagens e parece fazer sempre muito sentido para quem as
observa. “O Kjarval não se ilude com a aparente simplicidade da paisagem e não vê o
vazio. As pedras do Kjarval são como bichos aninhados à espera” (MÃE, 2014, p.44).
O fato é que não é somente o pintor que não se ilude com o ambiente, Halldora
também sabe que as pedras vivem. Para ela, o rochedo gesticula, é responsável por
movimentos e não por inércias. (As pedras) “ferravam-me muito. Podiam bem ter-me
engravidado, vingando-se. Aquela pedra vingou-se de mim, mãe. Ferrou-me só para se
vingar de eu estar a brincar e ela não” (MÃE, 2014, p.61). Parece, ainda, para Halla,
que as pedras têm mais juízo que as pessoas, mais intenções: “Poderia ter nascido
pedra e rolar naquele instante por pensar melhor do que andavam a pensar os
homens” (MÃE, 2014, p.136). A pedra tem a rigidez e o estímulo, ao mesmo tempo, e

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transforma isso em poder de ação, de resistência, de energia e, por isso, inspira os


homens.
É interessante como, para Bachelard, as pedras (o rochedo) também não têm
nada de inatividade, são inteiramente ativos, movimentados. O sonho da pedra é um
sonho de atividade, não de paralisação:

Em vão a razão diz que o rochedo é imóvel. Em vão a percepção


confirma que a pedra está sempre no mesmo lugar. Em vão a
percepção confirma que a pedra está sempre no mesmo lugar. Em
vão a experiência nos ensina que a pedra monstruosa é uma forma
plácida. (BACHELARD, 2001, p. 152)

As pedras representam, para os fiordes, a força e a luta. Assim como na


fenomenologia de Bachelard (2001, p.163), em A desumanização “os rochedos
ensinam a linguagem da dureza”.
Por fim, e em relação ao conjunto do imaginário na obra, percebe-se como
esses sonhos todos são decisivos. É pelo imaginário de Halldora e das “suas pessoas”
que se reflete sobre a condição da existência e sobre muitas questões que se
apresentam cotidianamente a qualquer um, habitante dos fiordes ou de outro lugar do
mundo, porque trata majoritariamente da humanidade. Entretanto, acima da razão, é
pelas imagens da obra que a literatura cumpre seu papel mais nobre, que é o de fazer
sentir.

Até então, e avisada pelo meu pai, esperei sempre os meus


predadores criados pela decisão da Islândia. Os temperamentos da
Islândia. Fossem as águas ou os fogos, fossem os ventos ou a pedra
que se abrisse sob os meus pés. Fossem os bichos de um elemento
ou de outro. Os bichos da Islândia. O monstro que o medo criava, por
um lado, chegava de dentro. Sabia de coração cada gesto e
pensamento meu. Sabia como me devorar. Parecia de uma página de
texto. De um poema. Algo mal distinto entre a realidade e a fantasia,
como todos os dizeres de todas as pessoas, escritos ou não. (MÃE,
2014, p.72)

Analisar A desumanização com o olhar sobre o espaço, enfocando o imaginário,


faz perceber que existem leituras que nunca se encerram. Os exemplos aqui elencados
são apenas alguns dentre os tantos cuidadosamente desenvolvidos na obra e
permitem, indubitavelmente, interpretações outras e igualmente importantes. Este
trabalho apresenta-se como uma possibilidade e está aberto para novas ideias e
discussões, que enriqueçam e valorizem a literatura.

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Referências

BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. São Paulo: M. Fontes, 1994.


______. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: M.
Fontes, 2013.
______. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. 2. ed. São Paulo:
M. Fontes, 2001.
_______. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças. 2.
ed. São Paulo: M. Fontes, 2001.
MÃE, Valter Hugo. A desumanização. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

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O ESCOPO DA VIOLÊNCIA EM MOÇAMBIQUE COLONIAL RETRATADO EM


XEFINA, DE JUVENAL BUCUANE

Chimica Francisco1

Introdução

O presente artigo pretende trazer um breve estudo sobre a situação de


violência que se verificou no período de dominação colonial portuguesa em
Moçambique, identificando e explicando as suas manifestações. Tomou-se como base
a obra Xefina (1989), de Juvenal Bucuane, que retrata a situação que se viveu nessa
época em que o colonialismo português, na pessoa do homem branco, subjugava o
homem negro através de trabalhos desumanos, violência física, privação de liberdade
entre outros males.2
A partir do conceito de violência, sobretudo, uma violência de âmbito político e
social apresentados fundamentalmente por Arendt (1985) e Ginzburg (2013), é
possível perceber como em Xefina, naquele espaço reclusão, os negros e mulatos
passaram por sevícias e maus tratos nas mãos dos portugueses durante a dominação
colonial. Será adotada uma metodologia analítica e descritiva que se baseará na leitura
e apreciação da obra em estudo, passando antes por uma teorização que servirá como
suporte de evidências de violência constantes da obra.
Como resultados pode-se afirmar que a obra Xefina apresenta marcas
evidentes de violência do regime colonial português contra a integridade física e até
psicológica dos moçambicanos negros e mulatos. A questão da cor da pele foi um
estigma muito doloroso e que levou a comportamentos selvagens no que se refere ao
tratamento entre os homens.

Conceito de violência

O conceito de Violência e as suas variadas nuances vão merecer um tratamento


preferencial neste artigo. Assim, numa perspectiva mais simplista entende-se que
1
Doutorando em Letras (Estudos Literários) na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Bolsista do
PEC-PG CAPES.
E-mail: chimicafrancisco@yahoo.com.br
2
O presente trabalho foi realizado com apoio do Programa Estudantes-Convênio de Pós-Graduação –
PEC-PG, da CAPES/CNPq – Brasil.

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Violência seja toda a forma que resultaria no mal-estar por parte da pessoa que a
sofreria a partir de outra pessoa que a exerceria.
Assim, importa sobremaneira a violência de âmbito político-social e psicológico
que se verifica em Xefina (1989) e que será o foco de interesse deste artigo.
Robbio, Mattencci e Pasquino (2008, p. 1291-1292) têm como conceito de
Violência o seguinte:

Por Violência entende-se a intervenção física de um indivíduo ou


grupo contra outro indivíduo ou grupo (ou também contra si
mesmo). Para que haja Violência é preciso que a intervenção física
seja voluntária (...). Além disso, a intervenção física, na qual a
Violência consiste, tem por finalidade destruir, ofender e coagir. É
Violência a intervenção do torturador que mutila sua vítima; (...).
Exerce Violência quem tortura, fere ou mata; quem, não obstante a
resistência, imobiliza ou manipula o corpo de outro; quem impede
materialmente outro de cumprir determinada ação. Geralmente a
Violência é exercida contra a vontade da vítima.

Os mesmos autores afirmam que a Violência pode ser direta ou indireta. “É


direta quando atinge de maneira imediata o corpo de quem a sofre. É indireta quando
opera através de uma alteração do ambiente físico no qual a vítima se encontra (por
exemplo, o fechamento de todas as saídas de um determinado espaço)” (Idem, 2008,
p. 1292).
A violência que incide na intervenção física ou mais concretamente no “corpo
de quem a sofre” está marcadamente presente na obra Xefina (1989), do
moçambicano Juvenal Bucuane. É, pois, notável nessa obra as desmedidas e violentas
ameaças, as molestações corporais até a privação de liberdade que tanto os soldados
quanto os prisioneiros sofrem, quando o sagaz e autoritário comandante da ilha da
Xefina Grande lhe apetece, demonstrando, desse modo, o seu “poder” sobre todos
seus subordinados. Trata-se de uma violência na ordem de mau uso de poder que é
exercido por uma pessoa investida de uma autoridade colonial como se pode notar:
“... o recurso à Violência é um traço característico do poder político ou do poder do
Governo” (ROBBIO, MATTENCCI e PASQUINO, 2008, p. 1293). Os autores lembram que
violência não é poder como se pode constatar na citação a seguir:

A Violência é a alteração danosa do estado físico de indivíduos ou


grupos. O poder muda a vontade do outro; a Violência, o estado do
corpo ou de suas possibilidades ambientais e instrumentais.
Naturalmente as intervenções físicas podem ser empregadas como
um meio para exercer o poder ou para aumentar o próprio poder no

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futuro. (...). Isto, porém, não muda o fato de que, por si só,
independentemente dos seus efeitos mediatos, a intervenção física é
Violência e não poder (ROBBIO, MATTENCCI e PASQUINO, 2008, p.
1292).

Na obra Da Violência, o poder segundo Voltaire, citado por Arendt (1985, p.


20), “consiste em fazer com que os outros ajam como eu quero”, ora, se o ‘outro’ tem
que agir de acordo com os interesses de quem pode, está-se claramente diante do
“poder” exercido na ordem da violência. O mesmo pode ser aludido quanto às
palavras de Sartre que lembram sobre a violência: “um homem sente-se mais homem
quando se impõe e faz dos demais instrumentos de sua vontade” (ARENDT, 1985, p.
20). A submissão do outro para que, contra sua vontade, realize alguma atividade, por
ínfima que pareça, carateriza a violência ainda que da ação não resulte ou não
signifique uma agressão física ou uma lesão no corpo da vítima.
Como lembra Ginzburg (2013, p. 35), a violência é construída no tempo e no
espaço e suas configurações estéticas estão articuladas com processos históricos.
Adiante Ginzburg (2013) chama atenção para a necessidade de examinar quais os
discursos hegemônicos prevalecentes no período em torno das condições de produção
de uma obra. Considera esse autor discursos hegemônicos aqueles que “incluem
produções institucionais da política, da economia, do sistema jurídico, do militarismo,
da imprensa, entre outros que são responsáveis por formação de opinião pública”
(GINZBURG, 2013, p. 35-36).
No prosseguimento com este conceito de violência, Velho (1994, p. 34), no seu
artigo intitulado Autoritarismo e Violência no Brasil Contemporâneo, tem a violência
como algo que em torno do qual não existe consenso, considera a instituição da
escravatura de uma violência de proporções extraordinárias, apesar de ter sido vista,
durante séculos, como uma coisa natural. E acrescenta ainda que “A violência no
regime escravocrata é uma violência marcante, inesquecível, e que marca
indelevelmente essa sociedade” (VELHO, 1994, p. 35). Dando seguimento à linha de
pensamento de Velho (1994), a violência do regime escravocrata tal como a guerra
civil que ocorreu em Moçambique, outra forma de violência, deixou marcas negativas
em quase todas as povoações, comunidades e famílias. A memória coletiva dessas
sociedades lembra que não houve nenhuma família que não tenha tido um dos seus
membros violentamente levado para a escravatura, igualmente que, durante a guerra
civil, não há uma única família sequer que não tenha perdido um dos seus membros
mais próximo.

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É do conhecimento comum que a relação que se manteve entre branco e


negro, no período colonial, em Moçambique, foi na sua essência violenta; uma
violência física que criou muitas vezes sentimentos de revolta do negro contra o
branco.
Efetivamente é interesse do presente trabalho realizar uma busca dessas
marcas de violência na obra em questão.

Violência em Xefina, de Juvenal Bucuane

No que se refere à violência na obra Xefina, importa salientar que ela é


marcadamente de âmbito político. A personagem principal da narrativa, o comandante
Vossemecê, é a figura sobre a qual vai gravitar todo o tipo de violência patente na
obra, seja ela física, seja ela psicológica. A autoridade do comandante Vossemecê, na
sua qualidade de “dono” da ilha da Xefina Grande com todas as pessoas que nela
habitam, torna essa personagem (comandante Vossemecê) um tirano, um indivíduo
que pode, por motivos infundados e até certo ponto fúteis, matar uma pessoa (recluso
ou militar), chicotear, ou encarcerar por um período indeterminado. Tudo isso
caracteriza violência nos mais variados níveis, aliás, lembra Galle (2012, p. 90) que,
“em um ato de violência sempre estão envolvidas duas pessoas: quem exerce a
violência e quem a sofre, perpetrador e vítima”; por isso, pode se identificar que o
comandante Vossemecê, por um lado, é o que exerce a violência e, por outro lado, a
pessoa coletiva de todos os outros habitantes da ilha da Xefina Grande, como vítima,
que sofre a violência. Para o comandante Vossemecê, a violência era sinônima de
poder, contrariamente ao que afirma Arendt (1985, p. 28): “o poder não precisa de
justificativas, sendo inerente à própria existência das comunidades políticas; mas
precisa, isto sim, de legitimidade. A percepção dessas duas palavras como sinônimas
não é menos enganosa do que a atual equação de obediência e apoio”.
Muitas vezes com justificativas assentes em ideários colonialistas de dominação
e subjugação do homem negro africano a autoridade e a violência eram exercidas com
pretexto de manutenção de disciplina e ordem perante uma população julgada de
“selvagem” e de difícil civilização, como a seguir se pode ver:

Sabem, nossos furriel, é que os preto não aguenta civilização dos


branco, não quer saber nada, mas roubar, aí sim, até mãe deles pode
roubar. Quando eu estava em Angola a fazer comissão, tinha um
amigo que era doutor, tinha um moleque velho, preto, que deu até
casa de alvenaria, com água e luz, casa de banho, tudo, para ele ficar
com mulher dele, com os filho. Sabem quê que ele fez? (...):

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Construiu palhotas no quintal. De dia ficava com família dele na casa


que meu amigo doutor deu neles, mas a noite ia tudo nas palhotas
dormir, dizia que é para os antepassados não zangar e dar azar. Já
viram isto, nossos furriel? Onde que se pode civilizar preto desta
maneira? (BUCUANE, 1989, p. 40).

Este exemplo, por mais pacífico que pareça e pelo seu caráter sócio-político
com fim civilizacional, e com perspectiva de melhoramento da condição de vida do
“moleque velho”, pode constituir uma violência simbólica ao se pretender que o
moleque e sua família deixem seus hábitos e costumes, aquilo que lhes caracteriza,
que é sua essência que é habitar em palhotas para passar a habitar numa casa de
alvenaria. Assim se caracterizou o sistema colonial português que, de forma violenta se
impôs nas colônias, violentando os hábitos e costumes das populações, profanando os
mais sagrados ritos, tradições e modus vivendi de todo um povo, tudo em nome da
civilização.
O excerto acima transcrito também pode ilustrar bem a capacidade que o
colonialismo português teve de, a partir de alfabetização de alguns nativos, poder
através destes subjugar seus semelhantes em benefício de sua política administrativa
colonial. De forma indireta, o comandante Vossemecê pretendia dar a entender que só
se torna civilizado aquele que aceita as novas regras de jogo, regras por si impostas,
por exemplo, quem aceita viver na casa de alvenaria, como os furriéis militares, seus
subordinados. Uma boa estratégia de cativar ou alienar as mentes, segundo ilustra a
passagem seguinte dita pelo próprio comandante Vossemecê: “Mas eu não estou dizer
isto para os nossos furriel que estão aqui no meu gabinete, vossemecês são civilizados,
até estudaram até ser furriel (...) estou falar daqueles pé-descalço que anda aí, esses
restera que nem vale nada” (BUCUANE, 1989, p. 40). A palavra “restera” vem reforçar
ainda mais a ideia de subalternidade, daquilo que se encontra em nível mais baixo, na
superfície, que pode ser pisado porque “nem vale nada”.
Pode-se depreender que a alfabetização, a civilização equivaleria a uma posição
de superioridade, a do branco, enquanto o contrário, “restera”, corresponderia à
permanente selvajaria, indigenização, a falta de cultura na perspectiva do colonizador
branco.
Com efeito, a violência, que consiste em isolar o indivíduo do seu convívio com
os demais através de encarceramento no vulgo e sempre lembrado sete-e-meio, era
uma das preferências do comandante Vossemecê, cujas vítimas saíam do cativeiro
assim que ele se lembrasse de tirá-las ou quando cumprida a pena, sobrevivendo
durante os sete dias e meio que simbolizavam a designação “sete-e-meio”, à base de

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pão e água. O exemplo a seguir confirma o que foi aludido: “até comandante meaça
mais, diz que se não tem cuidado ainda pode meter no sete-e-meio” (BUCUANE, 1989,
p. 30). Uma ameaça vinda da pessoa do comandante Vossemecê, com todo o
autoritarismo que emana da sua personalidade, torna-se violência contribuindo para
que os seus subordinados, entre o medo e a coragem que um e outro podiam ter,
procurem, de algum modo, vingar-se desse comportamento desumano.
No conto A Estória do Furriel Amadeu (BUCUANE, 1989, p. 25-33), narra-se a
história de um furriel Amadeu, mulato, conotado como um sujeito malandro, um
pervertido sexual pelo seu envolvimento amoroso com quase todas as mulheres da
ilha da Xefina Grande, até mesmo com as prostitutas, sem as pagar como se pode
constatar na citação: “- Diz que era malandro esse furriel Madeu, nenhuma que
escapava, até aquelas puta lá nas palhota, nenhuma se salvou, nem pagava nelas nada,
enganava elas dizer que lhes amava, que não se compra amor, é só dar e receber”
(BUCUANE, 1989, p. 28). Neste seu percurso de “amor sensível”, envolvera-se
intimamente com a filha do comandante Vossemecê, desonrando-a, segundo
testemunha, como se observa na seguinte passagem de um pequeno diálogo entre as
duas personagens-contadores (Alfredo e Jôta), confidentes da obra:

- Pôça, esse gajo não brincava! (...)


- Mas engatou nela, e depois? (...)
- Quê que fez, pá? – (...).
- Lhe fez coisa de ajineira muito grande!...
- Quê que foi, antão?
- Lhe cavalou e tirou as tribeira! (BUCUANE, 1989, p. 28).

O comportamento do furriel Amadeu, que é eticamente condenável e até certo


ponto considerado violento que consistiu na desonra ou estupro da filha do
comandante Vossemecê, uma jovem branca, foi tomado como uma vingança de toda
comunidade da ilha da Xefina Grande, uma comunidade que se sentia oprimida e
reprimida, sem meios para poder se defender dos maus tratos impingidos pelo
comandante. O furriel Amadeu tornou-se, por assim dizer, num herói que conseguiu
ferir no mais profundo o orgulho do soberano, do autoritário e violento comandante
Vossemecê: “dessa vez Vossemecê saldara parte das suas contas. Amadeu
envergonhara-lhe e vingara todos os que até ali haviam sido alvos dos desmandos do
comandante” (BUCUANE, 1989, p. 32).
Ato contínuo o furriel Amadeu temendo as consequências da sua imensurável
imprudência meteu-se ilha adentro receando ser morto pelo comandante Vossemecê,
salvaguardando, assim, a sua vida, pois, “Madeu sabia, lhe contaram, que uma vez

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Vossemecê despachou com um tiro na cabeça um preso que descobriu e começou a


bufar os segredos do velho. O preso foi deitado, depois, lá no outro lado onde as ondas
parece quer engolir a ilha toda” (BUCUANE, 1989, p. 30). Relembrando Arendt (1985,
p. 20) quando sublinha na sua obra Da Violência, que “... não existe então nenhum
poder maior do que aquele que provém do cano de uma arma,...”, no seu mais
sanguíneo estado a decisão imediata tomada pelo comandante Vossemecê, face aos
acontecimentos, foi empunhar em sua arma (pistola), como se pode ler: “- Vossemecê
quando descobriu na filha que foi o furriel Madeu, não era búfalo que tinha ferida
aquilo! Pegou na sua perna-de-galinha3...” (BUCUANE, 1989, p. 30). Para ajudar na
efetivação do seu intento de pôr a mão no foragido furriel Amadeu, mandou seus
soldados realizarem uma busca pelas matas da ilha da Xefina Grande, o que resultou
num insucesso como documenta a seguinte passagem: “Pegou na pistola e toca de
vasculhar tudo, ver se panha Madeu, mas Madeu parecia que era nome de uma coisa
que não existe, enquanto é nome de uma pessoa! Ninguém que panhou nele, nem
Vossemecê que parecia que era côboi, nem os soldado que ele mandou...” (BUCUANE,
1989, p. 31). A expressão “Vossemecê que parecia que era côboi” acentua cada vez
mais a sua posição de um sujeito determinado e de seu estado de agressão e de
violência.
O insucesso por parte dos soldados na busca do furriel Amadeu pode estar
associado ao desinteresse desses pela captura de seu colega, soldado e furriel, uma
vez que o ato por ele cometido havia sido, como se disse anteriormente, uma vingança
de todos sobre a pessoa do comandante Vossemecê, por um lado, e, por outro lado,
eles (os soldados) na sua maioria mulatos e negros, todos eles moçambicanos, sabiam
que a captura do furriel Amadeu significava sua morte certa.
Nessas cenas de violência, o narrador assume uma posição que se pode
considerar quase que realista pela forma como relata os acontecimentos ocorridos.
Ginzburg (2013, p. 33) chama atenção para as possíveis implicações para com esse tipo
de narrador: “Trata-se de uma concepção formal pautada pelo cartesianismo, por uma
caracterização do conhecimento que tem a expectativa de objetividade. Entre a
realidade representada e a matéria ficcional, existiriam semelhanças suficientes para
permitir um reconhecimento” (GINZBURG, 2013, p. 33). Prosseguindo, Ginzburg (2013)
afirma que, para que se possa viabilizar a chance de um reconhecimento da realidade,
precisa-se assumir as seguintes condições: “a realidade deve ser previamente
entendida; as relações de analogia e os pontos de vínculo entre as duas materialidades

3
Perna-de-galinha refere-se, nesse contexto, a uma arma de tipo pistola.

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concretas, realidade e literatura, devem ser devidamente estabelecidas” (GINZBURG,


2013, p. 33).
Xefina circula com uma vontade entre a realidade e a ficção, segundo se pode
constatar a partir da nota do autor:

Como facilmente se pode depreender, o golpe de estado de 25 de


Abril em Portugal eclodiu quando eu me achava na Xefina. Vivi o
antes e o pós 25 de Abril na ilha reclusão, em que bebi as vivências
das personagens desse tempo, militares e reclusos, mairitariamente
militares a cumprirem penas de prisão, pelos mais diferentes crimes
praticados, de índole militar.
Conheci, em carne e osso, o lendário capitão, com o qual tive alguns
conflitos por insubordinação às suas macabras exigências (BUCUANE,
Nota do autor).

O recurso à arma, como Arendt (1985) afirma, e os exemplos extraídos da obra


Xefina, corpus deste trabalho, reportam a uma violência ao extremo, pois uma arma,
quando usada, elimina fisicamente o outro, não havendo, por isso, a passibilidade de
negociação ou de comutação de uma medida por outra. O uso de uma arma de fogo
ou mesmo de uma arma branca (faca ou catana) revela-se como sendo a incapacidade
do detentor da arma resolver suas divergências ou diferenças usando outros
mecanismos menos coercivos e agressivos. Igualmente essa atitude lembra o
comportamento dos capatazes portugueses que, no período colonial, empunhavam
espingardas (armas de fogo) ou chicotes (cavalo-marinho) para controlar simples
trabalhadores indefesos nos campos agrícolas de cultivo de milho, algodão, chã, sisal,
entre outras culturas. A arma de fogo é tida como a segurança daquele que está ou se
sente sempre inseguro.

Referências

ARENDT, Hannah. Da violência. Trad. Maria Claudia Drummond. Brasília: Editora


Universidade de Brasília, 1985.
BUCUANE, Juvenal. Xefina, Maputo: Tempográfica – INLD, 1989.
GINZBURG, Jaime. Literatura, violência e melancolia. São Paulo: Autores Associados,
2013.
ROBBIO, Norberto; MATTENCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política.
13. ed. Brasília: Editora UnB, Vol. 1, 2008

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VELHO, Gilberto. Autoritarismo e violência no Brasil contemporâneo. In SCHWARTZ,


Jorge; SOSNOWSKI, Saul (Orgs.). Brasil: o trânsito da memória. São Paulo: Edusp,
1994. p. 31-40.

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DISCURSOS DE INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS: A CENOGRAFIA E ETHOS NAS MANIFESTAÇÕES DA


IDENTIDADE E DA CULTURA ORGANIZACIONAL

Eliane Davila dos Santos1

Introdução

Definir o que é identidade e o que é cultura não é uma tarefa fácil. A realidade
remete às representações identitárias e ao próprio caráter transversal da cultura, que
perpassa diferentes campos da vida cotidiana. O dinamismo cultural revela que todas
as formas de manifestação da cultura têm vínculos com contextos sócio-históricos,
tendo recíprocas relações com as sociedades de que participam. Não há como pensar
em cultura sem ser levado à análise da forma como a linguagem é produzida e
interpretada em contextos da comunicação midiática corporativa. Essa prática
discursiva revela que a linguagem carrega em si valores e crenças dos ambientes
sociais e corporativos. Este estudo dá ênfase às manifestações culturais
organizacionais e é delimitado à análise do discurso corporativo por meio da
cenografia e do ethos – como imagem de si – apresentados nos sites de duas
instituições bancárias Citibank e Itaú Unibanco.
As manifestações culturais estão repletas de conteúdo e de significado que
instigam à reflexão e ao entendimento dos sentidos que ordenam as pessoas, tanto no
convívio social como no empresarial. Nessa linha de pensamento, é possível atender
ao objetivo do presente estudo, que visa compreender e mostrar como as
manifestações culturais e a identidade corporativa são reveladas no discurso
empresarial e apresentadas em documentos de circulação externa de instituições
financeiras, por meio de cenografias construídas no contexto da comunicação
organizacional.
A questão norteadora desta pesquisa é o fato de o discurso institucional
relacionado às políticas de gestão e perfil de pessoas revelar traços da cultura
organizacional e da identidade corporativa de instituições bancárias, que são
representados mediante cenografias das quais emergem imagens de si – o ethos
discursivo. Desse modo, este trabalho contribui para o entendimento dos princípios

1
Mestranda em Processos e Manifestações Culturais, Universidade Feevale.
E-mail: elianedavila@yahoo.com

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que norteiam a construção da imagem de si, o ethos discursivo dos bancos Citibank e o
Itaú Unibanco. O objetivo é analisar os discursos desses agentes, em contextos
comunicacionais, que contribuem para a compreensão da cenografia e do ethos
discursivo corporativo, correlacionando a cultura organizacional e a construção da
identidade corporativa, no que diz respeito ao perfil profissional idealizado por essas
empresas.
Para compor os estudos, utilizam-se os ensinamentos de Geertz (2008), Morgan
(1996), Freitas (1991) e Schein (2009). O marco teórico principal de análise do discurso
é o da escola francesa, em especial de Dominique Maingueneau (1997, 2008) e Patrick
Charaudeau (2008, 2009). A metodologia utilizada é de uma pesquisa exploratória,
com abordagem qualitativa, mediante estudo de casos múltiplos. A análise das
informações direciona a resultados parciais da pesquisa: o ethos discursivo, como
imagem de si, é apoiado em cenografias enunciativas que auxiliam na compreensão de
discursos organizacionais, os quais revelam aspectos da identidade corporativa e o
perfil ideal de funcionários para trabalhar nas instituições analisada
As seções estão assim dispostas: primeiramente, um espaço dedicado às
questões de cultura organizacional e identidade. Na seção seguinte, apresentam-se
reflexões sobre o ato de linguagem. Na próxima seção abordam-se questões sobre a
cenografia e o ethos corporativo. Segue-se com as questões metodológicas e a seção
de resultados de cada caso em cada categoria selecionada; ao final, faz-se uma seção
de síntese das análises das duas instituições objetos de análise deste estudo.

A cultura e a identidade nas organizações

A análise das manifestações culturais contribui para o gerenciamento de


mudanças nas organizações. Esse raciocínio vai ao encontro da ideia de que a
globalização pode provocar mudanças também nas identidades culturais e
corporativas (HALL, 2006). Todas as culturas têm o mesmo valor e poderiam conviver
de uma forma pacífica e harmoniosa. No entanto, Hall (2006) alerta que a
interdependência global está levando a um colapso de todas as identidades culturais
fortes, gerando a fragmentação dos códigos culturais e a multiplicidade de estilos que
resultam no pluralismo cultural. Geertz (2008) traz à antropologia um conceito de
cultura como um sistema simbólico, sendo característica fundamental e comum da
humanidade atribuir, de forma sistemática, significados e sentidos a todas as coisas do
mundo.
Conforme Morgan (1996), a cultura vem sendo utilizada para afirmar que
diferentes grupos de pessoas têm diferentes estilos de vida. Trazer o estudo da cultura

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para o ambiente organizacional desperta o interesse de muitos teóricos em virtude de


sua complexidade. Essa atenção à cultura organizacional é justificada como uma das
“formas de entender como as organizações trabalham e como é, de fato, a vida que
pulsa dentro delas” (MARCHIORI, 2011, p. 75). Uma das definições mais conhecidas de
cultura organizacional é a de Schein (200 , p. 11) “o con unto de pressupostos b sicos
que um grupo inventou, descobriu ou desenvolveu ao aprender como lidar com os
problemas de adaptaç o e terna e integraç o interna”. Seguindo o propósito de
Freitas (1991, p. 79), a área de recursos humanos tem um papel importante para a
aceitação, consolidação, manutenção de mudanças culturais. O autor, ao tematizar o
perfil profissional e o trabalho nas organizações, destaca a área de recursos humanos
como fonte de conhecimento da cultura corporativa, por meio de estratégias da
empresa. Destaca-se que o estudo tem o enfoque direcionado para o entendimento de
qual é a identidade, a imagem de si, das empresas analisadas, assim como o perfil de
profissionais que valorizam para dar continuidade à história de cada uma delas,
fazendo propagar suas culturas. Nesse sentido, Hall (2003) defende que, para a
construção e estruturação das identidades, a linguagem e o discurso são basilares e
representações, nas organizações, são relevantes para o entendimento dessas
questões. Sendo fundamental o discurso organizacional para evidenciar a cultura nas
empresas, elege-se a análise do discurso como meio de compreensão do ethos
discursivo.

Ato de linguagem nas organizações

Acredita-se que as organizações mostram-se inseridas em um mundo


permeado de símbolos, artefatos e criações subjetivas. Essa abordagem leva a
compreender a dinamicidade e a complexidade que envolvem o contexto
organizacional. O dialogismo, conceito emprestado de Bakhtin (2000), refere-se às
relações que todo o enunciado mantém com os enunciados produzidos anteriormente,
bem como com os enunciados futuros que poderão os destinatários produzir. O termo
é “carregado de uma pluralidade de sentidos, muitas vezes, embaraçantes [...]”
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2012, p. 160). A noção de dialogismo perpassa as
construções metodológicas deste estudo, principalmente porque permite
aproximações entre o outro-eu-outro, ou seja, o princípio do dialogismo está ligado à
própria concepção da língua como interação verbal. Afinal, não existe enunciado
concreto sem interlocutores. As associações do dialogismo de Bakhtin (2002) e do ato
de linguagem compõem uma reflexão que nasce de um sujeito que é, ao mesmo
tempo, externo e interno à linguagem e esse dueto de posições se concretiza por meio

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de um jogo de simulações ou encenações. As escolhas linguísticas que se percebe na


encenação discursiva (mise-en-scène) construída pelos sujeitos do ato de linguagem
(CHARAUDEAU, 2009) levam à construção da imagem de si – ethos discursivo por meio
de cenografias (MAINGUENEAU, 2008).
Pela perspectiva da análise do discurso, o contrato de comunicação pode ser
visto como um conceito da produção discursiva, o que depende da situação de
comunicação. Cabe afirmar que a ideia central de Charaudeau (2008) constitui-se na
assimetria da comunicação, que é composta por quatro sujeitos: sujeito comunicante
(EUc) e o sujeito interpretante (TUi) seres sociais; o enunciador (EUe) e o destinatário
(TUd), seres de fala. No circuito do ato de linguagem, o EUc tem como objetivo passar
uma mensagem para um TUi. Para se constituir esse circuito do ato de linguagem,
percebe-se que existem dois círculos de produção do saber: 1) o circuito da fala
configurada, ou seja, um espaço interno que acomoda os seres de fala, que são
percebidos como imagens de um sujeito enunciador EUe, e um sujeito destinatário
TUd, proveniente “de um saber intimamente ligado às representações linguageiras das
pr ticas sociais” (CHARAUDEAU, 2008, p. 53); 2) o círculo e terno à fala configurada,
ou seja, um espaço externo onde se acomodam o sujeito comunicante EUc e de um
su eito interpretante TUi, “conforme um saber ligado ao conhecimento da organizaç o
do “real” (psicossocial) que sobredetermina estes su eitos”. (CHARAUDEAU, 2008, p.
53, grifo do autor). Dessa forma, é possível depreender que o mundo falado, conforme
nomeia Charaudeau (2008), impõe aos sujeitos uma dupla representação, ou seja, de
acordo com o ambiente em que se situam “quando esse mundo é considerado no
circuito de fala, corresponderá a uma representação discursiva; se ele for considerado
no circuito externo, como testemunha do real, corresponderá a uma representação da
situaç o de comunicaç o” (CHARAUDEAU, 2008, p. 53).

Cenografia e ethos discursivo no âmbito corporativo

Em seus postulados, Maingueneau (2011) propõe o entendimento do discurso


por meio da integração de seus planos. Esta pesquisa não pretende ser um estudo
puramente linguístico, mas, sim, discursivo-comunicacional, que abarca o modo de
enunciação, a maneira de dizer, a partir da inserção dos sujeitos linguageiros (eu e tu) e
da dêixis enunciativa (o aqui e o agora), ou seja, tempo e espaço discursivos. Assim,
evidenciam-se os planos da cenografia, do ethos e seus desdobramentos. O estatuto
do enunciador e do destinat rio compreende que, “em termos de discurso, tanto o
enunciador quanto o destinatário dispõem de um lugar e, nesse espaço, o enunciador
pro eta uma imagem de si no discurso a partir da qual o legitima” (FREITAS; FACIN,

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2011, p. 5).
Para melhor entendimento, esclarece-se que a cena de enunciação é composta
por três cenas: englobante, genérica e a cenografia. A cena englobante atribui ao
discurso um estatuto pragmático. A cena genérica é a do contrato associado a um
gênero, como editorial, sermão, guia turís co, consulta médica etc. (MAIN UENEAU,
2013). ode-se dizer que “a cenogra a, com o ethos da qual ela par cipa, implica um
processo de enlaçamento desde sua emerg ncia, a fala é carregada de certo ethos,
que, de fato, se valida progressivamente por meio da pr pria enunciaç o […] ela
legitima o discurso” (MAIN UENEAU, 2008, p. 71). A constituiç o do ethos, segundo
Maingueneau (2011), relata um ponto de vista pré-discursivo desse mesmo ethos, que
trabalha como uma âncora do discurso. Articular o ethos à enunciação permite
diferenciar o ethos dito do ethos mostrado. O ethos é resultante de diversas
articulações entre os elementos do ethos pré-discursivo, do ethos discursivo, do ethos
dito, do ethos mostrado. Maingueneau (2011) acrescenta que, nesse espaço subjetivo,
encarnado, o “fiador” do discurso é construído a partir do processo de incorporaç o. O
“mundo ético” regula as representações socioculturais e a instância sub etiva n o é
percebida apenas como um estatuto, mas como uma “voz” associada a um “corpo
enunciador”.
O enunciador aciona os estereótipos, valores, princípios, um imaginário que
pode ser coletivo ou social, elevando o percentual de possibilidade de aderência do
enunciatário. Considera-se, a partir disso, que esses valores, princípios e o imaginário
est o relacionados à cultura organizacional, pois “a construç o discursiva de uma
imagem de si é suscetível de conferir ao orador sua autoridade, isto é, o poder de
influir nas opiniões e modelar atitudes” (AMOSSY, 2008, p. 142). O ethos permite
entrar em contato com a imagem do fiador que, por meio de seu dizer, legitima a si
próprio uma identidade equivalente ao mundo que está construindo em seu
enunciado. Nesse particular, este estudo, considerando a identidade corporativa,
possibilita a reflexão sobre qual tipo de perfil funcional os agentes financeiros
idealizam e selecionam para suas instituições. A seguir é abordada a questão
metodológica deste trabalho.

Metodologia

A metodologia segue as recomendações de Prodanov e Freitas (2013), sendo


utilizada a pesquisa exploratória com abordagem qualitativa, mediante estudo de casos
múltiplos. Este trabalho não pretende ser um estudo puramente linguístico. Como se
trata de uma investigação discursiva, são utilizados alguns conceitos teóricos de análise

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do discurso da escola francesa, em especial, de Patrick Charaudeau (2008, 2009) e


Dominique Maingueneau (1997, 2008). Os critérios para escolha dos objetos empíricos
deram-se em razão da disponibilidade das informações e acesso ao site de cada
instituição. As informações disponíveis permitem acessar dados sobre as estratégias
sobre gestão de pessoas, especificamente em relação ao perfil profissional e aos
elementos culturais das instituições, e políticas utilizadas nas organizações. Ao analisar
os anúncios dos bancos e suas diretrizes, é possível compreender, com mais
profundidade, as manifestações da cultura nas organizações e a correlação com a
identidade corporativa das empresas, o ethos organizacional. Optou-se pelos bancos
Citibank e Itaú Unibanco devido à possibilidade de haver contrastes em função da
origem cultural dos bancos analisados, visto que o banco Citibank é americano e o Itaú
Unibanco é brasileiro.
O estudo foi organizado da seguinte forma: primeiramente apresentam-se as
informações comunicacionais. Na sequência, apresentam-se as análises a partir das
três categorias teóricas selecionadas: cultura e identidade, ato de linguagem e
cenografia e ethos de cada banco. Por último, elabora-se uma síntese comparativa que
contempla as duas instituições analisadas.

Resultados e análise

Informações comunicacionais sobre os bancos Citibank e Itaú Unibanco

Apresenta-se, neste momento, a comunicação do Citibank e do Itaú Unibanco


que são corpora desse estudo.

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Figura 1 – Comunicação do Citibank

Fonte: site do banco Citibank (2015)

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Figura 2 – Comunicação do Itaú-Unibanco

Fonte: site do Banco Itaú Unibanco (2015)

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Análise da comunicação do banco Citibank

As análises da comunicação da instituição financeira Citibank, a partir das três


categorias, apresentam os seguintes resultados:
a) Categoria Cultura e Identidade as pistas discursivas, em “uma marca global
com uma rede inigual vel para atender a clientes em qualquer lugar do mundo”,
colaboram para demonstrar o pluralismo cultural existente no mundo globalizado.
Cada empresa, por meio de sistemas simbólicos (GEERTZ, 2008), tenta legitimar sua
capacidade de atuar em ambientes globalizados onde cada organização vai adaptando
a identidade corporativa para se diferenciar no mercado capitalista. As marcas
discursivas, em “que desempenha um papel central no desenvolvimento e
financiamento da economia mundial”, promovem uma reflexão sobre a identidade
(HALL, 2006) que cada empresa quer enfatizar na linguagem que utiliza nos seus
discursos comunicacionais. O enunciado “o Citi tem mais de 200 anos, o que reafirma a
solidez” apresenta a cultura (MORGAN, 1996) como forma de afirmação da identidade
em que o banco Citibank se destaca pela solidez empresarial. Embora seja considerada
uma empresa global e com fins lucrativos, tenta valorizar os aspectos sociais e
humanos.
b) Categoria Ato de Linguagem: participam os seres reais e os seres de fala.
Pode-se conceber que o EUc (banco Citibank S.A – ser social) por meio de um (EUe)
tem como objetivo revelar a cultura organizacional da instituição a um (TUd) que
aciona um TUi (leitor ou e possível funcionário – ser sociais) que se interesse e mostre
adesão aos propósitos comunicativos do banco. Percebe-se que o banco Citibank
elabora seus enunciados tendo em vista o princípio do dialogismo apresentado por
Bakhtin (2002). A comunicação, na perspectiva de Charaudeau (2008), identifica um
espaço de produção de saberes onde se situa o contrato de comunicação entre os
sujeitos, o que depende também da situação de comunicação. Pode-se dizer que,
nesse circuito do ato de linguagem, o sujeito no espaço de fala corresponde às
representações discursivas e o espaço externo corresponde à situação de comunicação
(CHARAUDEAU, 2008).
c) Cenografia e Ethos: as cenografias procuram trazer a evidência de ser um
banco sólido, global e que se preocupa com seus clientes, funcionários e stakeholders.
O funcionário idealizado do banco deve ter perfil de liderança e criatividade,
procurando fazer uma carreira profissional na instituição. O Ethos dito: apresenta-se
como um banco sólido, tradicional, com excelência no mercado global e ainda apoia a
diversidade cultural e a inclusão social. O ethos mostrado: organização líder no

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segmento, que está repleta de oportunidades para aqueles que querem fazer parte de
um banco global e sólido. A comunicação interpela o coenunciador a uma visão de
banco em que todos gostariam de trabalhar. Percebe-se, conforme Maingueneau
(2008), que o aspecto relativo ao ethos do banco Citibank permite aos enunciatários
entrar em contato com a imagem do fiador, que por meio do seu dizer, legitima a
identidade da instituição financeira.

Análise da comunicação do banco Itaú Unibanco

a) Categoria Cultura e Identidade as pistas discursivas “nosso eito de fazer”


revelam os mecanismos simbólicos (MORGAN, 1996) em que as empresas estão
inseridas nesse mundo contemporâneo. Pode-se perceber que as estratégias
sintetizadas em “nosso eito de fazer” retratam como a instituiç o trabalha
(MARCHIORI, 2011) e identifica pressupostos básicos e aspectos culturais
organizacionais corporativos (SCHEIN, 2009). As marcas discursivas “liderança ética
responsável; foco na inovação com foco; ágil e descomplicado; brilho nos olhos;
carteirada não vale; sonho grande; paixão pela performance; craques jogam em time e
processos servindo pessoas” manifestam a importância da área de recursos humanos
na aceitação, consolidação e manutenção da cultura corporativa (FREITAS, 1991). A
identidade corporativa identificada nos enunciados declara a importância que o banco
Itaú Unibanco confere às pessoas que trabalham na instituição, assim como a seus
clientes externos.
b) Categoria Ato de Linguagem: O banco Itaú Unibanco, ou a equipe de
publicidade que representa a instituição (EUc), por meio do ser de fala (EUe), acionado
pelo (EUc), o destinatário ideal da fala (TUd), que faz parte da enunciação e que aciona
um (TUi), ou seja, os leitores ou possíveis funcionários e atuais empregados do banco à
adesão do discurso. Na perspectiva dialógica de Bakthin (2002), a comunicação da
instituição financeira Itaú Unibanco revela os jogos de simulação e encenação feitos
pelos sujeitos que, ao mesmo tempo, são internos e externos à linguagem
(CHARAUDEAU, 2008). Identifica-se a assimetria da comunicação em que os quatro
sujeitos da linguagem (EUc, EUe, TUd e TUi) se relacionam (CHARAUDEAU, 2008).
c) Cenografia e Ethos: a partir das marcas discursivas “nosso jeito de fazer,
brilho nos olhos, todos pelo cliente, processos servindo pessoas”, as cenografias
evidenciam um ambiente de respeito ao projetar uma empresa agradável de se
trabalhar, com uma equipe unida e uma cultura organizacional bastante sólida. O
funcionário idealizado tem um perfil interessado, inventivo, imprevisível, gosta de

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pessoas, gosta de trabalhar em time e tem uma postura consultiva. O ethos dito
apresenta-se mediante a ênfase nas pessoas e no ambiente organizacional agradável
para se trabalhar. O ethos mostrado revela uma organização global, com mais de 105
mil funcionários que possui expertise para atender clientes externos e internos com
uma cultura sólida. A comunicação interpela o coenunciador a uma visão de banco em
que todos gostariam de trabalhar. Acredita-se que o ethos (MAINGUENEUAU, 2008) do
banco Itaú Unibanco, a partir das marcas discursivas evidenciadas, seja construído a
partir das representações culturais coletivas e individuais que legitimam o fiador na
enunciação e permitem a possibilidade de aderência do enunciatário ao discurso.

Síntese comparativa dos resultados do Citibank e do Itaú Unibanco

Depreende-se, em síntese, que as análises dos discursos nos sites das duas
instituições apresentam as informações constantes no Quadro 1, mediante os recortes
discursivos de textos selecionados nesse estudo.
.
Quadro 1- Síntese dos resultados do banco Citibank e Itaú Unibanco
CITIBANK ITAÚ UNIBANCO
RESUMO
Manutenção da cultura organizacional a partir de
Empresa com marca global e fins lucrativos,
dez atributos do nosso jeito de fazer.
CULTURA E mas que serve à sociedade e às nações.
Principal ativo do banco na comunicação
IDENTIDADE Valorização de aspectos da solidez empresarial.
institucional são as pessoas.

Identificação dos espaços sociais e de fala. Identificação dos espaços sociais e de fala.
EUc banco Citibank; EUe representação EUc banco Itaú Unibanco; EUe representação
ATO DE
discursiva do banco – ser de fala; TUd ser de discursiva do banco – ser de fala; TUd ser de fala
LINGUAGEM
fala idealizado – ser de fala; TUi, leitores ou idealizado – ser de fala; TUi, leitores ou possíveis
possíveis funcionários do banco. funcionários do banco.
Empresa agradável de se trabalhar, com uma
Banco sólido, global preocupado com seus
equipe unida e uma cultura organizacional
clientes, funcionários e stakeholders.
bastante sólida.
Ethos dito: banco sólido, tradicional, com
Ethos dito: apresenta-se mediante a ênfase nas
excelência no mercado global e ainda apoia a
pessoas e no ambiente organizacional agradável
diversidade cultural e a inclusão social.
CENOGRAFIA para se trabalhar.
Ethos mostrado: organização líder no
E ETHOS Ethos mostrado: organização global, com mais de
segmento que está repleta de oportunidades
105 mil funcionários que possui expertise para
para aqueles que querem fazer parte de um
atender clientes externos e internos com uma
banco global e sólido.
cultura sólida.
Visão de banco em que todos gostariam de
Visão de banco em que todos gostariam de
trabalhar.
trabalhar
O funcionário idealizado do banco deve ter O funcionário idealizado tem um perfil interessado,
PERFIL perfil de liderança e criatividade, procurando inventivo, imprevisível, gosta de pessoas, gosta de
FUNCIONAL DOS fazer uma carreira profissional na instituição trabalhar em time e tem uma postura consultiva.
BANCOS

Fonte: Elaborado pela pesquisadora (2015)

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As duas instituições, conforme Quadro 1, evidenciam em seus comunicados


marcas textuais discursivas da cultura organizacional e da identidade corporativa, pois
os fiadores do discurso, ou seja, as próprias instituições, são quem legitimam os
discursos divulgados ao público pelos sites corporativos. A cenografia e ethos em
discursos de organizações financeiras revelam o mundo competitivo de “disputa” de
talentos na pós-modernidade, quando os bancos precisam agir com rapidez na busca
de profissionais qualificados para que não percam espaço no mercado financeiro em
que atuam. A cenografia instituída nas duas análises delimita o perfil de funcionário
ideal que integra a cultura organizacional de cada uma das instituições, assumindo
quem faz parte e integra suas ações. Essa cenografia é amparada na constituição de
estereótipos manifestados por um ethos discursivo corporativo que projeta uma
imagem de si construída no discurso, o que constitui a imagem organizacional. As
cenas discursivas analisadas dos dois bancos estão materializas em textos aqui
denominados “comunicados institucionais”, cu a divulgaç o é feita no site de cada
empresa. A imagem de si, revelada por cada instituição analisada, mostra a
representação de um ethos corporativo que leva à ideia de que são bancos que
valorizam seus funcionários e clientes. A identidade corporativa dessas instituições
sinaliza para empresas que são ideais para se trabalhar.

Considerações finais

Este estudo tematizou as manifestações culturais organizacionais verificadas no


discurso corporativo, por meio da cenografia e do ethos – como imagem de si –
apresentados nos sites de duas instituições bancárias: Citibank e Itaú Unibanco.
As análises dos discursos desses agentes financeiros, em contextos
comunicacionais, permitem a compreensão da cenografia e do ethos corporativo,
correlacionando a cultura organizacional para a construção da identidade corporativa e
o perfil de funcionários selecionados. A pesquisa revelou que as instituições
denunciam um ethos corporativo que converge à ideia de que são bancos que
valorizam seus funcionários e sinalizam uma identidade de empresas ideais para se
trabalhar. Os elementos discursivos colaboraram para a construção das identidades
corporativas, revelando a manifestação da cultura organizacional e da identidade.
Identificar o perfil dos funcionários de cada uma das empresas denota muito de como
cada banco constr i a imagem do “colaborador ideal”. Acredita-se na relevância de
promover estudos sobre a compreensão da cultura organizacional, tendo como base a
análise do discurso e discutindo sobre o processo de comunicação que há entre a

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sociedade e as organizações. Em suma, com a premissa de que toda produção de


linguagem é discurso, o jogo de imagens de si manifesta o modo com que cada
empresa, para construir seu discurso, elabora sua própria identidade, especialmente
na maneira que utiliza para identificar o perfil profissional que deseja contratar.

Referências

AMOSSY, Ruth. Da noção retórica de ethos à análise do discurso. In: AMOSSY, Ruth
(org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto,
2008.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução: Maria Ermantina Galvão;
revisão da tradução Marina Appenzeller. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
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CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso: modos de organização. 2. ed. São Paulo,
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3. ed. São Paulo: Editora Contexto, 2012.
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FREITAS, Ernani Cesar. FACIN, Débora. Semân ca global e os planos constitutivos do
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p. 198-218, jul./dez. 2011.
FREITAS, Maria Ester. Cultura Organizacional: formação, tipologias e impacto. São
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GEERTZ, C. . Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos,
2008.
HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. da
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MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise de discurso. 3. ed.
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Acesso em: 15.out. 2015.
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BENEFÍCIOS DE UM INGLÊS JURÍDICO COM MAIS CLAREZA E SIMPLICIDADE

Elisa Corrêa dos Santos Townsend1


Christiane Heemann2

Introdução

O estudo do “Legal English” (Inglês Jurídico) como parte do ensino de ESP


(“English for Specific Purposes”) parece ter crescido em importância no Brasil na
medida em que crescem certos fatores, tais como o número de firmas de advocacia
cujos clientes são internacionais.
Nos dias de hoje, a vida de pessoas de variadas origens culturais tende a ser
permeada pela presença de documentos que necessitam ser lidos antes de assinar.
Assim, sugere-se que quem cria, atualiza, ou revisa um documento legal ou de
negócios, seja em papel, seja online, na tentativa de maximizar a compreensão de seu
texto e de promover maior inclusão social no consumo dos bens e serviços subjacentes
a estes contratos e documentos, procure primar, dentre outros elementos possíveis na
otimização de seu teor, pela implementação de uma linguagem dotada de clareza,
simplicidade e precisão.
Nos últimos anos, alguns governos (brasileiro, americano e outros) parecem ter
dado especial atenção, em suas leis e Políticas Públicas, à inclusão de todos os
cidadãos em face à tendência a determinar que o texto de documentos destinados ao
público tenha uma redação fácil de compreender.
Nesse sentido, esperar-se-ia que uma linguagem clara, precisa e simples, que
acomodasse as necessidades da maioria dos leitores – diferente da linguagem
acadêmica que ora utilizamos, tendo em vista o público a que se destina – propiciasse
uma experiência geralmente tranquila, acolhendo um maior e mais variado público
possível e com mais “usabilidade” e “legibilidade” que se possa conceber, evitando, o
máximo possível, dar margem a potenciais omissões, dúvidas, questionamentos e
interpretações dúbias.

1
Mestranda em Letras-UNISC e Advogada Pós Graduada-UFRGS. Country Representative for “Clarity
International”. Tradutora jurídica e Professora de ESL. UNISC-Bolsista Capes.
E-mail: elisacorrea@mx2.unisc.br
2
PhD em Letras-UCPel e Doutorado Sanduíche Univ. De Bath-UK. Professora da UNIVALI.
E-mail: cheemann@univali.br

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Ademais, ao possibilitar que um maior número de pessoas possa ler e


compreender os documentos do dia a dia, uma linguagem mais clara, simples e precisa
tende a gerar um menor número de interpretações errôneas de seu conteúdo e, por
conseguinte, no Brasil, um menor número de ações judiciais, por exemplo, envolvendo
contratos protegidos pelo Código do Consumidor. Logo, tenderá a diminuir o acúmulo
de tarefas não atendidas pelos provedores de serviços e produtos, porque se espera
que o consumidor que compreende o que lê use menos o telefone, e-mails e visitas
presenciais a estabelecimentos para, dentre outros, sanar dúvidas, o que
potencialmente aumentaria a eficiência na oferta dos serviços e produtos.

Benefícios da “Clarity in Legal English” (Clareza no Inglês Jurídico)

Consoante Tiersma (1999, p. 204)3, o problema seria a comunicação com o


público. O que é corriqueiro ao jurista pode ser uma incógnita ao leigo. Diz o autor –
linguista ele próprio – que linguistas, em geral, não precisam explicar a representação
fonêmica ou gramática ao público leitor de um texto. Em contraste, as pessoas têm o
direito de saber o significado dos textos jurídicos, dos contratos que assinam e por
cujas obrigações responderão. Explicando, se provado que alguém foi obrigado a
assinar contrato sem ter tido a chance de lê-lo e entendê-lo, esse contrato tem a
possibilidade de vir a ser juridicamente anulável porque violou o princípio da
autonomia da vontade de contratar.
Para Butt & Castle (2006), quando o sujeito tem o dever e/ou direito de
compreender documentos legais, estes devem ser despidos de termos técnicos e
jargões o tanto quanto possível. Quando um termo técnico for inevitável, ele deve,
pelo menos, ser explicado em linguagem simples4.
No entanto, o contrato de consumo em massa não é uma negociação
tipicamente bilateral, porque há uma emissão unilateral do negociante para o
consumidor, o qual não opina na redação do contrato. No mais das vezes recebe-o
pronto. “É pegar ou largar”, e é, pois, chamado de “contrato de adesão” (TIERSMA,
1999, p.205). Justo por isso parece importante a clareza de linguagem. Além disso,
esse tipo de contrato, no Brasil, é protegido pelo Código do Consumidor (MARQUES,
2002, Cap. 1).
Concentramos a presente pesquisa na linguagem jurídica da língua inglesa, ou
seja, o inglês jurídico (“legal English”), devido à tendência ao crescimento do uso do
3
Livre tradução, adaptada à realidade brasileira.
4
Neste ponto, no mesmo sentido de Tiersma (Op. Cit. p. 204), o ensinamento de Butt & Castle (2006, p.
127 e ss.).

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inglês como língua franca, às necessidades de empresas internacionais que usam o


inglês em seu dia a dia no território brasileiro e fora deste (e cujo número parece se
expandir constantemente) e, por conseguinte, às necessidades dos profissionais das
firmas de advocacia que atendem a essas empresas e que, por isso, demonstram
necessitar compreender o jargão jurídico que, além de ser em outro idioma, é regido
por outro sistema legal, o sistema da “Common Law”, cujos conceitos e pressupostos
não correspondem aos nossos (brasileiros).
Nos doze anos em que trabalhamos em uma empresa, nos comunicamos com
empresários dos EUA e da Câmara do Comércio5. Lá, a economia é dita mais liberalista6
e menos intervencionista do que no Brasil e, por isso, muitos pareciam não entender
algumas de nossas leis que são, para eles, deveras protetivas ao trabalhador e ao
consumidor7, a exemplo do que ocorria nas reuniões semanais de “debriefing” dos
casos legais com seus advogados do Brasil. Estes contavam com nossa ajuda para
explicar a diferença entre os dois sistemas jurídicos no tocante ao instituto jurídico sob
exame para, apenas então, conseguir explicar o andamento do processo do cliente
norteamericano no Brasil8.
Não é incomum conhecer quem tenha passado por situação em que leu
documento ou formulário que não entendeu, que não sabia preencher com confiança,
ocasião em que, quiçá, tenha titubeado antes de assiná-lo receoso/a de seu conteúdo.
Isso se dá porque, de acordo com Lindsey (1990, n. 2)9, “os textos jurídicos constituem-
se no mais vasto corpo de textos mal escritos pela raça humana”.

5
Da Nashville Hispanic Chamber of Commerce, a autora Elisa recebeu o troféu “President’s Champion of
Excellence Award” pelos trabalhos de tradução realizados entre inglês e português e inglês e espanhol
com relação aos contratos e reuniões jurídicas das empresas membros da Câmara do Comércio (legal
English) para quem ela prestava serviços.
6
Fato notório em revistas como The Economist, jornais como The New York Times, Washington Post etc.
7
Nos EUA – e falamos das mais de trinta Fortune 500 às quais prestamos serviços – não há licença
o
maternidade: o tempo que a mãe falta ao trabalho não recebe. Não há 13 salário, nem FGTS, nem
indenização. Não há férias de 30 dias (salvo raras exceções, após senioridade na empresa). A proteção
ao consumidor não é tão tuitiva (protetiva) como no Brasil. Entre outras coisas. Isso, dizem os
economistas, é o que alavanca a economia deles.
8
Outra razão para a clareza no inglês jurídico, enfrentamos frequentemente entre 2014 e 2015.
Advogados norteamericanos atendem a seus clientes com filial no Brasil da mesma forma como estão
acostumados (i.e., de acordo com o FRCP – Federal Rules of Civil Procedure). Por exemplo, enviam uma
carta ao advogado brasileiro da parte contrária, no Brasil, para “citá-la”, por carta simples. Ainda que
válido nos EUA, esse procedimento é nulo no Brasil. Vale dizer, nos EUA qualquer um pode proceder ao
“Summons” (Chamamento ao Processo), mais especificamente, à citação (“process serving”). No Brasil
isso é ato privativo do Oficial de Justiça, funcionário público concursado. A respeito, escrevemos o artigo
“Summons in Brazil 101 for American Lawyers” no website de “networking” Linkedin.
9
Livre tradução, com comentários, da frase (…) “Law books are the largest body of poorly written
literature ever created by the human race” (LINDSEY, 1990, at 2).

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Há obra de linguistas que mencionam a clareza do discurso em uma variedade


de gêneros, inclusive jurídico. Em Bakhtin (1986, pp. 62-63)10, o estudo da natureza de
um enunciado e da diversidade das formas genéricas que tomam os enunciados em
vários ramos da atividade humana é imensamente importante para quase todas as
áreas da linguística de da filologia. Isso ocorre porque qualquer pesquisa que tenha por
objeto a linguagem concreta, a história de um idioma, a gramática normativa, a
compilação de qualquer tipo de dicionário, a estilística da linguagem e assim por
diante, inevitavelmente labora com enunciados concretos (escritos e orais)
pertencentes a várias esferas da atividade humana e da comunicação: crônicas,
contratos, textos de lei, textos religiosos e outros documentos, vários gêneros
literários, científicos e comentários, cartas formais ou pessoais, respostas no diálogo
diário (em todas as suas subcategorias) etc.
Nesse ponto os acadêmicos podem encontrar informações linguísticas que lhes
podem ser úteis. Pensamos ser necessária uma ideia clara da natureza do enunciado
(primário e secundário), isto é, de vários gêneros discursivos para se pesquisar em
qualquer área específica11.
Ideia correlata encontra-se em Bazerman (2004, p. 309 e ss) quando aduz que a
linguagem deve ser adequada às atividades nas quais elas se insere. Ademais, há teoria
possivelmente relevante ao assunto – ideia a ser investigada mais a fundo – na obra de
Wenger (2002), para quem o mero fato de fazer parte de uma “comunidade de
prática”, realizando suas atividades sociais rotineiras, gera necessidade de adequação
de linguagem.12
10
Bakhtin usa os vocábulos “texto legal” e “leis” (1986, pp. 62-63). Aduz, falando em clareza, que: “A
clear idea of the nature of the utterance in general and of the peculiarities of the various types of
utterances (primary and secondary), that is, of various speech genres, is necessary, we think, for
research in any special area”.
11
Tradução livre e comentada de Bakhtin (1986, pp. 62-63). O original, em inglês, é: “A study of the
nature of the utterance and of the diversity of generic forms of utterances in various spheres of human
activity is immensely important to almost all areas of linguistics and philology. This is because any
research whose material is concrete language-the history of a language, normative grammar, the
compilation of any kind of dictionary, the stylistics of language, and so forth-inevitably deals with
concrete utterances (written and oral) belonging to various spheres of human activity and
communication: chronicles, contracts, texts of laws, clerical and other documents, various literary,
scientific, and commentarial genres, official and personal letters, rejoinders in everyday dialogue (in all
of their diverse subcategories), and so on. And it is here that scholars find the language data they need.
A clear idea of the nature of the utterance in general and of the peculiarities of the various types of
utterances (primary and secondary), that is, of various speech genres, is necessary, we think, for
research in any special area”.
12
O termo CoP (Communities of Practice) ou “comunidades de prática” foi cunhado por Lave & Wenger
em 1991, embora há quem diga que no mesmo ano Brown & Duguit (2001, p 198-213) já empregavam o
termo, usado como NoP (Network of Practice), isto é, “rede de prática”.

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Clareza e precisão de linguagem: definições e tendências

Conforme as obras jurídicas dos últimos vinte ou trinta anos, a tendência antes
prevalente do uso do “legalese” arcaico parece sofrer limitações na atualidade em
termos de redação jurídica13, visto não ser inclusiva, para que todos possam ler,
entender e livremente contratar.
Consoante Kimble14 (1994-1995, p. 52)15, ao contrário do que dizem os que são
contra a “clareza da linguagem jurídica”, linguagem simples não significa linguagem
“anti literária, anti intelectual, não sofisticada, simplória, feia, infantil ou vulgar”. A
razão de ser da linguagem simples tem relação, nada mais nada menos, com a
comunicação clara e eficaz. E, por isso, requer adotar uma nova atitude e uma
mudança fundamental que quebra com as práticas do passado16. Kimble possui
inúmeras publicações, as quais tornaram “Clarity International” uma organização
conhecida mundialmente17.
O movimento pela clareza e simplicidade da linguagem aparenta difundir-se
proporcionalmente ao número de organizações e autores que trabalham com o tema e
que parece multiplicar-se diariamente tais como o “Center for Plain Language”, a
“PLAIN - Plain Language Association International”, a “Plain Language”, do governo
norte americano, a Plain Language Network18, entre outras.
13
De acordo com a ideia, Freedman (2007), Dickerson (1980, 1986, 1986b), Garner (2013), Gémar
(2005) e Hathaway (2015). Também no mesmo sentido, Jenkins (2006), Kimble (2000, 2006 e 2014),
Joseph (2015), Mellinkoff (1963), Wydick (2005) e Martineau (1996). Alguns destes são linguistas e
juristas.
14
Dr. Joseph Kimble é Professor Emeritus da Cooley Law School da Western Michigan University, autor
de várias obras sobre o tema. Um dos maiores ícones defensores da Clarity na atualidade, é aclamado e
premiado pela Bar Association (Ordem dos Advogados) e outras entidades dos EUA e do mundo.
Membro, ex-presidente e fundador da organização “Clarity International”, membro da PLAIN e outras
ONGs (Organizações Não Governamentais) do ramo, que se reúnem em congressos mundiais
periodicamente.
15
Esta obra de Kimble (1994-1995, p.52.) também foi publicada online pela “PLAIN – Plain Language
Association International”. Disponível em: www.plainlanguagenetwork.org/kimble/critics.html.
16
Tradução livre de: (...) “Plain language is not anti literary, anti intellectual, unsophisticated, drab, ugly,
babyish, or base” (...) “Plain language has to do with clear and effective communication -- nothing more
or less. (...) It does, though, signify a new attitude and a fundamental change from past practices (...)”
(Op. Cit p. 52).
17
Joh Kirby, da Austrália, é a atual Presidente Mundial da Clarity International. Enquanto Kimble
(supramencionado) é ex-presidente e atual tesoureiro. Entidade encontrável em: www.clarity-
international.net.
18
Encontráveis, respectivamente, em www.CenterForPlainLanguage.org, www.PLAIN2015.ie,
www.PlainLanguage.gov, www.plainlanguagenetwork.org etc.

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O linguista e jurista David Mellinkoff é visto por parte dos profissionais da área
como o “pai” da Linguagem Clara (“Clarity”) e, antes disto, da Linguagem Jurídica nos
EUA. Para quem não prescinde de uma definição formal de clareza no inglês jurídico, é
nele que encontrarão uma das primeiras definições publicadas do que é e do que não
é. Mellinkoff (2004, p. 24) rejeita a linguagem arcaica – que considera sem clareza –
atribuindo-lhe as características de “wordy” (prolixa, com palavras em excesso), “não
clara”, “pomposa” e “aborrecedora”.
Vejamos o verbete da definição de Mellinkoff (1992, p.83) para “Clarity”
(clareza):

Clear. Clearly. Clearly, this adjective and adverb lack clarity. <‘I want
to make that perfectly clear.’> In a Micawberish hope that something
clearer will turn up, the law often teams them with other criteria,
e.g., clear and concise, clear and conspicuous, clearly and manifestly.
Yet lack of clarity, once recognized, need not be fatal. Where
flexibility is called for, clear and clearly have a legal role. (…)
1. (...) Clear nudges in the direction of clarity, as do its substitutes
intelligible, [lain, simple, understandable. <‘Written in a clear and
coherent manner using words with common and everyday
meanings’- NY Plain Language Law.> The essential in clarifying clear
and clearly, as well as their lack of independent clarity, is the
question ‘Clear to whom?’ <This instruction may have been clear to
lawyers, but it certainly wasn’t clear to the jury.>
2. Having a high degree of certainty (but not too high). a. Related to
evidence and proof - clear and compelling, clear and convincing:
weightier than the ordinary preponderance, though not necessarily
persuasive beyond reasonable doubt.” (…)19

19
Livre tradução do verbete e subverbetes do dicionário de Mellinkoff (falecido no fim do século XX),
sob análise: "Claro. Claramente. Claramente, este adjetivo e advérbio carecem de clareza. <'Eu quero
deixar isto perfeitamente claro."> Em uma esperança estilo Micawber (personagem de Charles Dickens
que foi acusado, mas era inocente) de que algo mais claro aparecerá, a lei muitas vezes se utiliza de
critérios adicionais, e.g., claro e conciso, claro e visível, clara e manifestamente. No entanto, a falta de
clareza, uma vez reconhecida, não necessita ser fatal. Onde for necessário flexibilidade, 'claro' e
'claramente' desempenham um papel jurídico. (...)
1. (...) 'Claro' se aproxima de 'clareza', assim como seus substitutos 'inteligível', 'descomplicado',
'simples', 'compreensível'. <(clareza é o que está) 'Escrito de forma clara e coerente usando palavras
com significados comuns e cotidianos.' - Lei da Linguagem Simples de Nova Iorque.> O essencial no
esclarecimento de 'claro' e 'claramente', bem como a sua falta de clareza independente, é fazer a
pergunta 'Claro para quem?' (Em relação às instruções dadas ao júri antes de decidir:) <Esta instrução
pode ter sido clara para advogados, mas certamente não o foi claro para o júri.>.
2. dotado de um grau de certeza bem alto (mas não demasiado alto). a. com relação a provas
processuais - claro e persuasivo, claro e convincente: mais forte do que a média preponderante, embora
não necessariamente convincente para além de qualquer dúvida razoável"(...) (sinais e caracteres
alfanuméricos originais mantidos).

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Dentre os benefícios do uso da linguagem clara e simplificada, está a


diminuição das dúvidas, das perguntas e dos problemas ao preencher formulários e
contratos, físicos ou digitais (eletrônicos), com a consequente diminuição da
necessidade de alocar tempo dos funcionários das organizações para auxiliar a resolver
dúvidas e problemas.
Para Mills & Duckworth (1996), o Direito teve (e tem) sua parcela de bons
redatores. No entanto, a esmagadora maioria é de redatores de “legalese” 20.
Projetando como possivelmente poderá ser o futuro, o processo de assimilação
das mudanças, o tempo que levará para que os redatores desses documentos
desenvolvam a técnica de escrever com clareza, para que se acostumem a esse novo
modo de redigir que, ainda que seja mais fácil, os fará pensar até automatizar o
processo, há que se considerar o prognóstico de Kimble (1994-1995, p.53) quando
propõe que “requererá (adquirir) destreza e (prática no) trabalho, além de
considerável tempo”21 para conseguir redigir um texto até que atinja sua redação ideal
final.

Estudo de casos e resultados práticos da aplicação das regras de clareza

Há um artigo de título curioso que parece bem esclarecedor a respeito da


clareza na linguagem contratual. Foi publicado por David Daly (1999, p. 1155) e se
chama Domando a cláusula contratual do Inferno: um estudo de caso 22. Nele, o autor
dá uma boa ideia de como a linguagem jurídica, às vezes, pode ser difícil, hermética,
restrita a uns poucos iniciados. Ele trabalhou muitos dias para conseguir desenrolar e
reescrever um contrato cujas cláusulas, antes da mudança, pareciam ilegíveis, como
segue:

Caso 1 - Antes 23:


20
É o que ensinam Mills & Duckworth (1996, VII, VIII, 67-68). Tradução livre de: “Of course, the law has
had its share of fine stylists, but it has been overwhelmed by legalese. And the costs must be
enormous”. Legalese significa termo pejorativo que designa inglês jurídico pomposo e difícil de
entender, conforme os autores.
21
Tradução livre de: “It takes skill and work and fair time to compose” (KIMBLE, Op. Cit., p. 53).
22
Livre tradução do título da obra, assim como, mais adiante, do ‘Caso 1-Antes’ e do ‘Caso 1-Depois’, de
Daly.
23
No original, em inglês: "8. Indemnification: (c) Promptly after receipt by an indemnified party under
the Section 1(g), 8(a) or 8(b) hereof of notice of the commencement of any action, such indemnified
party shall, if a claim in respect thereto is to be made against an indemnifying party under such Section,
give notice to the indemnifying party of the commencement thereof, but the failure so to notify the
indemnifying party shall not relieve it of any liability that it may have to any indemnified party, except to

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“8. Indenização: (c) Prontamente após recebimento, pela parte indenizada, sob a égide
da Seção 1(g), 8(a) ou 8(b) em epígrafe, de notificação de propositura de qualquer
ação judicial, tal parte indenizada deverá24, se uma demanda a respeito do retro
mencionado for ser proposta contra uma parte indenizante sob a tutela da referida
seção, dar notificação à parte indenizadora quanto à propositura desta, mas a falta de
tal notificação à parte indenizadora não deverá isentá-la de qualquer responsabilidade
que possa porventura ter, de indenizar a qualquer parte indenizada, exceto até ao
limite de que a parte indenizadora possa provar que a defesa quanto à referida ação
tenha sido, destarte, prejudicada (...)”25.

No estudo do primeiro caso, aplicaram-se regras de clareza tais como editar


sentenças demasiado longas, alterar enunciados que não começavam com a cláusula
principal, retirar vocábulos dispensáveis para remover excesso de palavras nas frases,
subdividir o texto que se apresentava como um todo – um só bloco – em subpartes
mais bem dispostas e com mais espaços “brancos” a fim de facilitar a leitura, entre
outras melhorias. O efeito final, com a cláusula contatual reescrita, resultou como
segue.

Caso 1 - Depois 26:

the extent the indemnifying party demonstrates that the defense of such action is prejudiced thereby. If
any (...)"
24
Note-se as palavras que costumam apresentar problemas de compreensão e que, por isto, são
normalmente editadas. O vocábulo “deverá”, no original, é “shall”. Ressalte-se que no português usa-se
a palavra “deve” para designar tanto o termo “shall” (dotado de uma conotação mais cogente) como
para o termo “should” (cuja conotação é de mera faculdade, possibilidade), embora este último, em
português, normalmente apareça no pretérito imperfeito: “deveria”. Nota de Daly, op. cit.
25
Na exposição dos textos dos estudos de casos, ‘antes’ e ‘depois’ da aplicação das regras de clareza,
estaremos, excepcionalmente, e apenas quando necessário, quebrando as regras de formatação
prescritas pelas normas do presente trabalho acadêmico a fim de evidenciar o contraste entre o ‘antes’
e o ‘depois’ tal qual demonstrado no exemplo original. Dentre as regras de clareza o uso do espaço em
branco é crucial para uma melhor visualização, leitura e compreensão, conforme se constata lendo as
obras referidas.
26
No original, em inglês: “8.3 Legal Action Against Indemnified Party.
(A) Notice of the Action
A party that seeks indemnity under paragraph 1.7, 8.1 or 8.2 must promptly give the other
party notice of any legal action. But a delay in notice does not relieve an indemnifying party of
any liability to an indemnified party, except to the extent that the indemnifying party shows
that the delay prejudiced the defense of the action.
(B) Participating in or Assuming the Defense (...) ".

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“8. Indenização
8.3 Ação Legal Contra a Parte Indenizada.
(A) Notificação (de Início da) Ação: A parte que buscar indenização sob o parágrafo
1.7, 8.1 ou 8.2 deve prontamente dar à outra parte notificação sobre qualquer ação
jurídica. Mas o atraso na notificação não libera a parte indenizante de qualquer
responsabilidade para com a parte indenizada, salvo se a parte indenizante provar
que tal demora prejudicou a possibilidade de defesa contra a ação.

(B) Participação na Defesa (ou Assumir a Defesa): (...)”.

Sem dúvida, o “depois” é mais agradável de ler, fácil de entender. Após ler o
‘antes’, evidencia-se por que Daly chamou tal cláusula de “infernal”. Ele passou horas
editando-a. Vejamos outros exemplos que, por limitação de espaço, serão mais
breves27:

Caso 2 - Antes (do ‘U.S. Department of Health and Human Services’):


“The Dietary Guidelines for Americans recommends a half hour or more of moderate
physical activity on most days, preferably every day. The activity can include brisk
walking, calisthenics, home care, gardening, moderate sports exercise, and dancing.”

Caso 2 - Depois (do “U.S. Department of Health and Human Services”):


“Do at least 30 minutes of exercise, like brisk walking, most days of the week.”

Caso 3 - Antes (do “U.S. Government Fishing Directive”):


“After notification of NMFS, this final rule requires all CA/OR DGN vessel operators to
have attended one Skipper Education Workshop after all workshops have been
convened by NMFS in September.”

Caso 3 - Depois (do “U.S. Government Fishing Directive”):


“Vessel operators must attend a skipper education workshop before commencing
fishing.”

27
Os dois exemplos abaixo encontram-se no www.plainlaguage.gov, sendo o primeiro do Departamento
de Saúde e Serviços Humanos e o segundo da Diretiva para a Pesca do Governo Americano. Alguns são
também encontrados no material disponível no sítio da American Society of Legal Writers.

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Dentre os meios de simplificação da linguagem jurídica adotados pelos autores


em epígrafe, citam-se ainda alguns exemplos da coleção de Tiersma (1999, p. 205 e
206):
a) Ao invés de “no person shall obstruct this passageway”28, diga-se “do not obstruct
this passageway” (em livre tradução, “não obstrua esta passagem”).
b) No lugar de “it is your duty to”, “it is required that”, “it is necessary” [em livre
tradução, “é seu dever”, “é requerido que”, “é necessário (que)”, deve-se usar “you
must…” (i.e., “você deve”, com sentido cogente, por isto, mais adequada seria a
tradução: “é obrigatório”).
Aparentemente, após editados pelos autores, os textos, especialmente o de
David Daly, tornaram-se mais diretos, específicos, curtos e fáceis de visualizar e
entender.

Legislação e clareza da linguagem

Um dos objetivos pelos quais as leis são publicadas é para dar conhecimento ao
público a respeito de ato considerado como proibido pela lei (TIERSMA, 1999, p. 205).
Por isto a linguagem legal deve ser acessível ao público, especialmente se
considerarmos a tendência nacional e as políticas públicas pela ampla inclusão social.
Os contratos de massa fazem consumidores novos todos os dias. Esses, às
vezes, nem sabem que acabam de contratar um serviço por clicar no botão errado de
mensagem estilo “pop-up”29 em seu telefone celular, computador, tablete, nos
serviços de televisão, internet, entre outros. Desde a receita federal, em cujo sítio 30 há
ferramentas para fazer declaração de imposto de renda, passando por websites de
educação31, saúde32, notícias33, Correios34 e muitos outros serviços e produtos
oferecidos por empresas privadas ou públicas, do governo35 ou não36, ONGs37, e.g.,
28
Em livre tradução, “nenhuma pessoa deve obstruir esta via de passagem”.
29
Mensagens que aparecem espontaneamente nos telefones celulares e demais aparelhos sem o cliente
haver solicitado.
30
Disponível em www.receita.fazenda.gov.br/PessoaFisica/IRPF/2015/declaracao/download-
programas.htm. Acessado em 15 jul, 2015.
31
Por exemplo, UAB – Universidade Aberta do Brasil – disponível online em:
uab.capes.gov.br/index.php/cursos-274841/cursos-ofertados. Acessado em Abril de 2015.
32
Exemplificação: www.saude.gov.br.
33
Como os sites da BBC, Globo, Terra, Folha de São Paulo, Estadão etc.
34
Que se encontram em www.correios.com.br .
35
Exemplo: Governo Eletrônico: www.governoeletronico.gov.br.
36
Exemplo: CEEE: www.ceee.com.br/ .
37
Exemplo de ONG (Organização Não Governamental): Instituto Sócio Ambiental, em
www.socioambiental.org.

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com informações sobre direitos do consumidor, ou para a mulher vítima de violência e


até sítios de redes sociais, genealogia, sites de compras, de namoro online etc.
Em face ao grande número de pessoas que pode atingir e que pode não
conhecer linguagem jurídica, nos EUA há uma lei chamada “The Plain Writing Act” (A
Lei da Escrita Simples) de 2010, que entrou em vigor em 2011. Ela determina que toda
a agência governamental use linguagem clara em seus documentos online ou
impressos.
Após haver entrado em vigor em 2011 nos EUA, a ideia de clareza e
simplicidade parece ter se espalhado de forma tal que não nos surpreenderá quando
disserem que se espalhou pelo mundo. A inclusão social tende a abarcar vários
âmbitos da sociedade. O Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão do Brasil
disponibiliza em seu site a minuta do anteprojeto de Lei Orgânica da Administração
Pública Federal e Entes de Colaboração de 200938, o qual tramita no legislativo:

Art. 53. Os órgãos e as entidades estatais devem, anualmente, até 31


de março, fazer publicar, em meio eletrônico, em linguagem acessível
ao cidadão, seu relatório de atividades, indicando as metas e os
resultados institucionais alcançados e circunstanciando os obstáculos
encontrados.

O dispositivo retro determina que seja tornado público, por meio eletrônico,
anualmente, em linguagem acessível ao cidadão um relatório das atividades dos
órgãos públicos, incluindo metas, resultados e óbices à sua obtenção.
Além disto, o Manual de Redação da Presidência da República de 2002 afirma:
“A clareza deve ser a qualidade básica de todo texto oficial39. Texto similar é
encontrado em outras websites e instrumentos legislativos, como o do Manual de
Padronização de Atos Administrativos Normativos, do Senado Federal40. De acordo
com o exposto, parece haver vários estudos, leis e projetos de lei surgindo sobre a
“clarity” (clareza) ou “plain language” (linguagem simples) nos textos de documentos,
jurídicos ou não, físicos ou eletrônicos, expandindo a tendência à previsão legal da
proteção à inclusão social.

38
Disponível para baixar em www.direitodoestado.com.br/leiorganica/anteprojeto.pdf e para visualizar
em ww.planalto.gov.br. Acessado e baixado em 20 de julho de 2015.
39
MENDES, Gilmar Ferreira e FORSTER, Jr., Nestor José. Manual de redação da Presidência da República.
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/manual/manual.htm . Acesso em 20/09/2015.
40
Manual de Padronização de Atos Administrativos Normativos. Diretoria Geral do Senado Federal.
Brasília: Ed. Preliminar, 2012. Disponível em:
www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496338/000960587.pdf?sequence=1. Acesso em:
10/09/2015.

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Nos livros dos autores supra parece predominar a prática de constante e


repetida “revisão” dos textos que estejam despidos de clareza. Essa parece ser a
ferramenta primordial tanto antes (enquanto se elabora), como depois da elaboração
de um texto41.

Considerações finais

Tradicionalmente, a linguagem jurídica tendia a uma constante busca pela


precisão e luta contra a ambiguidade. Quase como uma obsessão, conforme Kimble
(Op. Cit. 1994-1995). No entanto, ao que parece, a linguagem legal tende a ser
compreendida apenas pelo especialista, mantendo os leigos a distância.
A busca de clareza e simplicidade na redação de documentos para o público
dos contratos de massa e demais documentos legais parece haver crescido em
relevância diretamente proporcional às organizações internacionais que se preocupam
com o assunto. Isso se dá com vistas a propiciar maior inclusão social e democratização
da informação, maior igualdade de acesso do cidadão aos direitos, serviços e produtos,
obedecendo, assim, às Políticas Públicas. O inglês como língua franca é usado não
apenas em países que interagem com empresas anglo-americanas, mas também em
países com outros idiomas que negociam entre si: Coreia com a China, Índia com o
Brasil etc. E uma parcela desses países assina contratos e documentos legais em inglês.
Beveridge (2000, p. 10) considera o ensino do inglês jurídico como a melhor solução
para começar a resolver muitos dos problemas aqui tratados.
Considerando a aparentemente incessante criação das ONGs
supramencionadas, bem como das normas legais defendendo a clareza da linguagem
jurídica, no Brasil e no exterior, pode-se dizer que um provável futuro poderia bem ser
o crescimento do estudo da clareza no inglês jurídico até que atinja sua meta. E, após
isso, possivelmente tendesse a continuar como um controle de qualidade dos textos
legais para que o público em geral tivesse acesso a entender melhor aquilo que assina.

41
Para que não se omita o tema, vale comentar uma vantagem do ciberespaço em relação ao texto
impresso: aquele pode ser editado com mais facilidade e prontidão do que este. Nesse sentido, ver
Morkes & Nielsen (1998).

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A CONSCIÊNCIA METALINGUÍSTICA EM CRIANÇAS BILÍNGUES

Ellen Cristina Gerner Siqueira1


Talita dos Santos Gonçalves2

Introdução

Este estudo encontra-se no espaço de interação entre estudos da Psicologia


Cognitiva e da Psicolinguística, no que diz respeito ao bilinguismo infantil e à
consciência metalinguística, inserindo-se no inventário de estudos que investigam
possíveis vantagens advindas da experiência bilíngue.
O bilinguismo é uma realidade do mundo, seja originado pelos movimentos
migratórios, configurações familiares, negócios, necessidade acadêmica, interesse
pessoal ou relações históricas, geográficas e políticas, entre tantos outros motivos que
fazem com que uma pessoa ou comunidade viva uma experiência com duas ou mais
línguas. Por envolver muitos aspectos, como idade de aquisição, status das línguas,
nível de proficiência, contexto de aprendizagem das línguas, por exemplo, o
bilinguismo é conceituado e classificado a partir de muitas perspectivas, gerando
muitas discussões.
Neste trabalho, entende-se por bilinguismo a capacidade que um indivíduo
possui para funcionar em duas línguas ou dialetos de acordo com suas necessidades
diárias (GROSJEAN, 2010). Nesse sentido, muitas pessoas se encaixam nessa
perspectiva de bilinguismo, fazendo com que a população bilíngue e as circunstâncias
do bilinguismo gerem muitos aspectos a serem investigados, como, por exemplo, as
possíveis vantagens metalinguísticas no bilinguismo infantil.
A consciência metalinguística refere-se à habilidade de segmentar e manipular
a língua reflexivamente em seus diferentes níveis (GOMBERT, 1990; MALUF, 2003). Por
volta dos dois anos de idade, a criança já apresenta comportamentos reflexivos sobre
aspectos fonológicos (BARRERA; MALUF, 2003). Posteriormente, outros aspectos da

1
Licenciada em Comunicação Social, bolsista BPA (PUCRS).
E-mail: ecgsiqueira@gmail.com
2
Doutoranda em Letras, bolsista CAPES (PUCRS).
E-mail: talita.goncalves@acad.pucrs.br

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língua serão objeto do pensamento, como a morfologia, a sintaxe, a semântica, a


pragmática e o texto. O objetivo deste estudo foi discutir evidências de vantagens no
desenvolvimento metalinguístico de crianças bilíngues em comparação com crianças
monolíngues.
Este artigo é uma revisão bibliográfica e está estruturado em seções.
Apresentam-se considerações sobre consciência metalinguística e bilinguismo infantil
na parte teórica. Na sequência, expõe-se o método adotado para esta investigação e,
posteriormente, os resultados e as discussões. Ao final, são levantadas algumas
reflexões sobre esta investigação.

1 Consciência metalinguística e bilinguismo infantil

Para Bialystok e Barac (2012), a consciência metalinguística refere-se ao


conhecimento explícito da estrutura linguística e à capacidade de acessar esse
conhecimento intencionalmente. Esse conhecimento é crucial no desenvolvimento das
crianças para os usos complexos da linguagem e da alfabetização. Assim, a consciência
metalinguística permite que as crianças separem a estrutura subjacente da língua do
significado e possam fazer julgamentos semânticos, sintáticos, fonológicos e aspectos
morfológicos da língua. Com essa habilidade, as crianças analisam representações
linguísticas para extrair regras gerais da gramática e torná-las explícitas para
diferenciar aspectos das sentenças ou palavras.
A habilidade fonológica refere-se à capacidade de identificar e manipular os
fonemas das unidades linguísticas (GOMBERT, 1992), enquanto que a habilidade
morfológica consiste na capacidade de reflexão sobre os morfemas das unidades
linguísticas (SPINILLO et al., 2010). No nível sintático, essa consciência corresponde à
habilidade de reflexão consciente sobre os aspectos sintáticos da linguagem e o
controle do uso das regras gramaticais. Já a consciência semântica é atribuída tanto à
capacidade de reconhecer o sistema linguístico como um código arbitrário e
convencional quanto à habilidade de manipular, automaticamente, as palavras sem
que seus significados sejam afetados (GOMBERT, 1992). A consciência pragmática
revela-se na capacidade do indivíduo de refletir sobre os aspectos contextuais que
determinam o uso da língua, bem como de manipular informações advindas dessa
relação. Por fim, a consciência textual diz respeito à capacidade de pensar sobre a
estrutura do texto, suas partes, convenções e marcadores linguísticos que constituem
o texto como uma unidade.

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A criança é capaz de usar a língua como instrumento para comunicar-se, antes


mesmo da alfabetização, pois durante a interação social vai adquirindo os mecanismos
que lhe permitem expressar seu pensamento ao mundo. Além disso, antes de
qualquer instrução formal, a criança é capaz de analisar deliberadamente os aspectos
formais da língua. Em geral, a criança é capaz de usar tanto o conhecimento sobre
línguas como usar a língua.
Estudos do início da década de 60 lançaram a hipótese da vantagem bilíngue
ancorada na conclusão de Peal e Lambert (1962) de que crianças bilíngues teriam uma
flexibilidade cognitiva superior em relação a seus pares monolíngues. Essa conclusão
foi explicada através da alternância entre os dois códigos linguísticos que o bilíngue
utiliza durante suas interações verbais. Após essa investigação de Peal e Lambert, as
pesquisas sobre bilinguismo focaram no desempenho linguístico e metalinguístico,
evidenciando um desenvolvimento metalinguístico mais precoce em crianças bilíngues
(BIALYSTOK, 2001).
Galambos e Hakuta (1988) indicam que as primeiras evidências do efeito
benéfico do bilinguismo surgiram de estudos da consciência metalinguística de
crianças. A vantagem metalinguística de bilíngues manifesta-se, principalmente, no
desempenho de tarefas de funções executivas3 que incluem conflitos e requerem
controle (BIALYSTOK, 1986), apontado para uma capacidade cognitiva mais
especializada em bilíngues. Piantá (2011) aponta que crianças bilíngues possuem
habilidade de refletir sobre a natureza e as funções da linguagem diferentemente das
crianças monolíngues.
A explicação mais comum é de que as duas línguas estão sempre ativas nos
bilíngues, fazendo com que as funções executivas atuem sobre o processamento
linguístico, focando atenção em uma dessas línguas. Dessa maneira, o bilinguismo
“treina” as funções executivas através da seleção constante de um dos idiomas,
tornando-as mais desenvolvidas. Ou seja, a vantagem metalinguística dos bilíngues
residiria muito mais na sua capacidade cognitiva do que no processamento linguístico
em si (BIALYSTOK, 2015). A partir disso, vale ressaltar o que se entende por bilinguismo
infantil.
Do ponto de vista da aquisição da linguagem, o bilinguismo infantil apresenta
duas formas de classificação: o simultâneo e o sucessivo. Segundo Yip (2013), a linha

3
Conforme Diamond (2013), essas funções são responsáveis pelo jogo mental que o indivíduo realiza
com suas ideias, tornando possível o pensamento antes da ação, o enfrentamento de desafios
imprevistos, a resistência a tentações e a conservação do foco. Para a autora, dentre as principais
funções executivas encontram-se a inibição, a memória de trabalho e a flexibilidade cognitiva.

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que divide os dois tipos de bilinguismo é arbitrária, uma vez que diferentes estudiosos
do tema discordam sobre a idade que definiria se a aquisição das línguas é simultânea
ou sucessiva. Baseada em Grosjean (2008), a autora define o bilinguismo simultâneo
como aquele em que a criança está exposta às duas línguas desde o nascimento,
fazendo uso de ambas regularmente durante a primeira infância, antes mesmo de
ingressar na pré-escola. Assim, a autora exclui da definição de bilinguismo simultâneo
as crianças expostas a duas línguas, mas que produzem apenas em uma delas.
Em termos de nomenclatura, os teóricos também divergem sobre as
classificações das línguas. Uma vez simultâneas, não poderiam ser definidas,
tradicionalmente, como L1 e L2, ou língua materna e segunda língua. Assim, tem-se
utilizado terminologia como Língua A e Língua B ou, ainda, Língua A e Língua α.
Já o conceito de bilinguismo sucessivo está presente nas teorias de aquisição de
linguagem relacionada a diversas idades, não somente à infância. Segundo Li (2013),
enquanto os termos “primeira língua” (L1) e “segunda língua” (L2) não são bem aceitos
no bilinguismo simultâneo, dada sua natureza sincrônica, nos estudos sobre
bilinguismo sucessivo os impasses surgem em relação à aquisição da segunda língua,
principalmente no que diz respeito à idade de aquisição e no impacto que isso traz à
produção do falante. No bilinguismo infantil sucessivo, segundo Wei (2000), o período
sensível para aquisição da segunda língua gira em torno dos cinco anos de idade.
O estudo da consciência metalinguística relacionada ao bilinguismo infantil é de
grande relevância, pois a literatura indica que processos metalinguísticos parecem
desenvolver-se precocemente em crianças bilíngues (BIALYSTOK, 1986, 1993). Essa
hipótese poderia ser explicada pelo uso de dois códigos linguísticos. A criança bilíngue
teria uma noção antecipada sobre a arbitrariedade da língua, porque entenderia que
um objeto do mundo teria uma representação em cada língua. Após essas
considerações breves sobre o tema, apresenta-se o método e, logo após, os resultados
e discussões.

2 Método

Este trabalho apresenta uma discussão sobre o desenvolvimento


metalinguístico no bilinguismo a partir de uma revisão bibliográfica e abrangeu
publicações indexadas nas bases de dados eletrônicas: Apa Psycnet, Directory of Open
Access Journals, ProQuest Central New Platform, EBSCOhost Academic Search Premier,
Elsevier ScienceDirect Journals, PUBMED e Scielo. Os artigos foram publicados em
inglês, entre os anos de 2000 e 2015. Os indexadores empregados foram “children
AND metalinguistic awareness AND bilingualism” e “crianças AND consciência

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metalinguística AND bilinguismo”. Além desses indexadores, foram utilizadas as


combinações “children AND metalinguistic awareness” e “crianças AND consciência
metalinguística”. Foram selecionados artigos experimentais, revisados por pares.
Os artigos identificados pela estratégia de busca inicial foram avaliados
conforme os seguintes critérios de inclusão: (1) os participantes das pesquisas foram
crianças bilíngues, (2) foram revisados por pares, (3) foram escritos em inglês,
português ou espanhol, (4) foram disponibilizados na íntegra, (5) avaliam ao menos
uma habilidade metalinguística (6) os participantes apresentam processamento típico;
e (7) os participantes fazem parte do contexto formal de ensino. Os artigos de revisão
ou aqueles que não atenderam aos critérios estipulados foram excluídos.

3 Resultados e discussão

Foram encontrados na primeira estratégia de busca (children AND


metalinguistic awareness AND bilingualism) nove artigos, todos em inglês e revisados
por pares. Na segunda estratégia (crianças AND consciência metalinguística AND
bilinguismo), nenhum artigo foi encontrado. Na terceira estratégia, retornaram 81
resultados, 26 deles revisados por pares. Na última estratégia, apenas um artigo em
língua portuguesa foi encontrado, mas já havia aparecido na busca anterior. Outros
dois artigos apareceram entre a primeira e a terceira busca. Excluindo-se esses artigos
repetidos, a revisão bibliográfica organizou-se, então, em torno dos 33 artigos
revisados por pares.
Após a leitura do resumo, 24 artigos foram excluídos – alguns eram de revisão
bibliográfica, outros tiveram adultos jovens como participantes, e ainda outros não
avaliaram nenhuma habilidade metalinguística ou investigaram crianças monolíngues,
como foi o caso do único artigo publicado em língua portuguesa. Ao final, nove artigos
atenderam aos critérios propostos. O Quadro 1 apresenta as principais informações
dos artigos selecionados.

Quadro 1 – Informações dos artigos selecionados


Autor/ano Idade/n Línguas Tarefas Tipo de
consciência
Laurent; 8-10 anos/N = 110 Francês Apagamento de sílaba e de fonema
Martinot (2010) Francês/Provençal Permuta de sílabas e fonemas Fonológica
Inteligência verbal
Cheung et al. 5-9 anos/ N=141 Chinês /Inglês Memória de curta duração verbal Morfológica
(2010) Leitura de palavras Fonológica
Produção e apagamento de rima
Apagamento de fonema; Vocabulário
Percepção da fala

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Quadro 1 (continuação) – Informações dos artigos selecionados


Autor/ano Idade/n Línguas Tarefas Tipo de
consciência
Tarefa de edição e correção
Francis (2002) 7-13 anos/ N=45 Espanhol/Náuatle Análise de categorias; Correção Considera as
ortográfica ao nível da palavra habilidades
Morfossintaxe/semântica ao nível da como uma
sentença; Narrativa oral; Reconto unidade.
Leitura; Escrita; Efetividade de
correção/edição
Serratrice et al. 6-10 anos/N=167 Inglês/Italiano Julgamento gramatical de sentenças Sintática
(2009) Italiano/Espanhol
Correspondência de fonema inicial
Kang (2010) 5-6 anos/ N=126 Inglês/Coreano Correspondência de rima PAL-RW Fonológica
Teste de rima estranha
Teste de sílaba estranha
Peabody Picture VocabularyTasks-III
Identificação de palavras
Partes A e B do PAL
Bateria de leitura e escrita (PAL-RW)
Bialystok; Peabody Picture Vocabulary Tasks
Mcbride-Chang; 5-6 anos /N= 200 Inglês Apagamento de sílaba Fonológica
Luk; Inglês/Cantonês Apagamento de sílaba onset
(2005) Contagem de fonema
Decodificação de palavra
Bialystok; Barac E1 8 anos /N=100 E1 – Inglês/Hebreu Tarefas de conhecimento linguístico -
(2011) E2 7-10 anos /N=80 E2 – Inglês/Francês Questionário sobre o uso de cada Morfológica
língua
Peabody Picture Vocabulary Test
KBIT-2; Tarefas metalinguísticas -
Wug task e Julgamento gramatical
Davidson; E1 5-6 anos/ N=20 Inglês Urdu/Inglês Peabody Picture Vocabulary Test
Raschke; Pervez E2 3- 6 anos/N=72 Julgamento sintático Sintática
(2010)
E1- Julgamento de rima e onset
Chen et al. E1 8-12 anos/N= 337 Mandarim E2-Teste de QI - Raven’s Standard Fonológica
(2012) E2 7-8 anos/N=62 Dialetos Minnan,
Progressive Matrices, Julgamento de
E3 6-8 anos/N=90 Puxian e Mindong
rima e onset
E3 -Teste de consciência de sílaba e
tom
E – Experimento; KBIT-2 - The Kaufman Brief Intelligence Test, Second Edition; PAL - Process Assessment
of the Learner; RW- Reading and Writing

Através do Quadro 1, observou-se que a maioria dos artigos investiga a


consciência fonológica, há dois que pesquisam a consciência morfológica e outros dois
a consciência sintática. Entre os artigos, encontrou-se um que avalia a consciência
metalinguística como uma habilidade única. As habilidades investigadas,
principalmente a habilidade fonológica, são desenvolvidas e requisitadas
principalmente na infância, durante a alfabetização. Os participantes têm idade entre
três e treze anos de idade e foram recrutados em ambientes formais de ensino.

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Entre as línguas estudadas, o inglês é a língua predominante, principalmente


em relação a alguma língua asiática. O francês e o chinês parecem em duas
investigações cada. Uma das pesquisas estuda o bilinguismo provocado pelo uso do
mandarim e dialetos regionais chineses. Além desses dialetos chineses, algumas
línguas minoritárias são investigadas, como o náuatle, o cantonês e o provençal.
Dentre os estudos, quatro envolvem alguma língua de origem latina, mas nenhum a
língua portuguesa.
O estudo de Laurent e Martinot (2010) buscou determinar se a experiência
bilíngue aumenta o desenvolvimento da consciência fonológica em leitores bilíngues
iniciantes (de escolas bilíngues) comparados a seus pares monolíngues (de escolas
monolíngues). Os resultados da pesquisa sugerem que os alunos de escola bilíngue
apresentam uma consciência fonológica mais desenvolvida que seus pares
monolíngues.
Cheung et al. (2010) examinaram as correlações entre a percepção da fala, a
consciência metalinguística (fonológica e morfológica), a leitura de palavras e o
vocabulário em uma primeira língua (L1) e uma segunda língua (L2). Os resultados
dessa investigação indicam que, primeiro, a percepção da fala foi mais preditiva da
leitura e do vocabulário na L1 do que L2. Segundo, enquanto a consciência morfológica
foi preditiva da leitura e do vocabulário em ambas as línguas, a consciência fonológica
desempenhou um papel depois que a consciência morfológica foi controlada na L2
(inglês). A percepção da fala em L1 e a consciência metalinguística predisseram a
leitura de palavras em L2, mas não o vocabulário. Por fim, as diferenças de
desempenho nas tarefas são atribuídas às variações nas propriedades e aos contextos
de aprendizagem de cada língua.
O trabalho de Francis (2002) examinou a relação entre fatores envolvidos na
proficiência bilíngue, na alfabetização e no desenvolvimento da consciência
metalinguística. A investigação teve três objetivos: (1) descrever as tendências que
emergem de um inventário de correções e revisões de amostras de uma primeira
produção escrita de crianças de séries iniciais; (2) comparar essas tendências com
descobertas de estudos anteriores em que as amostras foram tomadas a partir de
reflexões metalinguísticas de participantes focados em aspectos do conhecimento de
suas duas línguas; e (3) propor um quadro para pesquisas futuras na relação entre o
bilinguismo e a consciência metalinguística. Em geral, Francis observou que a
capacidade de mudança nos textos aumentou da segunda para a sexta série, crianças
mais velhas são mais propensas a focar sua atenção sobre os níveis de processamento
da linguagem para além do nível mais local de correções ortográficas. O

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desenvolvimento da proficiência linguística bilíngue implica em uma capacidade de


começar a refletir conscientemente sobre padrões que envolvem sequências de textos
mais longos sucessivamente.
Serratrice et al. (2009) investigaram se a capacidade de julgar a gramaticalidade
de uma sentença em uma língua é afetada pelo conhecimento da construção
correspondente na outra língua. Embora o desempenho em inglês tenha sido em geral
pobre, não houve diferenças significativas entre os bilíngues inglês/italiano e seus
pares monolíngues. Em contrapartida, verificou-se que o conhecimento de inglês
afetou a capacidade dos bilíngues de discriminação entre as sentenças gramaticais e
agramaticais em italiano. Os bilíngues inglês/italiano foram significativamente menos
precisos que os monolíngues e os bilíngues espanhol-italiano. A língua da comunidade
e a idade também desempenharam um papel significativo na acurácia das crianças.
A investigação de Kang (2010) examinou se há vantagens bilíngues em termos
de consciência fonológica em crianças que estão adquirindo duas línguas alfabéticas
diferentes fonológica e ortograficamente, além de investigar fatores da alfabetização
que explicam as variâncias na consciência fonológica, em comparação com crianças
monolíngues. Os resultados indicam que crianças bilíngues tiveram vantagens em
tarefas de consciência fonológica tanto na L1 como na L2, existiu transferência
linguística no processamento da consciência fonológica da L1 e da L2 e a consciência
fonológica dos dois grupos foi explicada por diferentes fatores. Esses resultados são
discutidos de acordo com as características específicas da L1 e os efeitos das
diferenças de instrução na língua.
Bialystok, McBride-Chang e Luk (2005) examinaram o efeito do bilinguismo na
aprendizagem de leitura em duas línguas que não compartilham o mesmo sistema de
escrita. Os autores apontaram para a importância de avaliar as características de cada
língua e o contexto de instrução em que as crianças tornam-se alfabetizadas, pois o
bilinguismo exerce efeito sobre a alfabetização.
O objetivo da investigação de Bialystok e Barac (2011) foi examinar crianças
que estavam em processo de tornarem-se bilíngues, avaliando o nível de proficiência e
o tempo no programa de imersão. Segundo os autores (2011), os resultados avançam
a compreensão da relação entre o bilinguismo e o desempenho metalinguístico. Ao
contrário do controle executivo, as vantagens metalinguísticas foram relatadas em
níveis modestos de bilinguismo, mostrando que o que fez as crianças progredirem no
desenvolvimento metalinguístico não foi o bilinguismo, mas a proficiência linguística.
Davidson, Raschke e Pervez (2010) compararam o desempenho de crianças
bilíngues e monolíngues em tarefas de julgamento gramatical. Nos dois experimentos

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apresentados, observou-se que bilíngues de 5 e 6 anos de idade superam seus pares


monolíngues em tarefas que avaliam a consciência sintática. Além disso, a investigação
mostra que crianças bilíngues superam monolíngues em pelo menos algumas medidas
de capacidade metalinguística.
O estudo de Chen et al. (2013) investigou o efeito da experiência com os
dialetos min na consciência fonológica do mandarim de crianças chinesas. Os
resultados indicam que a experiência dialetal interfere na consciência fonológica do
mandarim de crianças chinesas de 1ª e 2ª série, mas o efeito desaparece quando as
crianças avançam as séries. Essa experiência com dois dialetos afeta de maneira mais
efetiva a consciência fonológica do mandarim, mas de uma forma semelhante à
experiência com um dialeto.
Entre os nove estudos apresentados, seis apresentam alguma vantagem
metalinguística de crianças bilíngues sobre seus pares monolíngues (LAURENT,
MARTINOT, 2010; FRANCIS, 2002; SERRATRICE et al., 2009; KANG, 2010; BIALYSTOK,
MCBRIDE-CHANG, LUK, 2005; DAVIDSON, RASCHKE, PERVEZ, 2010). A vantagem
refere-se ao desenvolvimento e ao progresso da consciência fonológica e sintática, que
parecem ser mais ampliadas em crianças bilíngues. Essas habilidades são evidenciadas,
geralmente, nas duas línguas da criança e melhoram durante a alfabetização.
Além disso, essa revisão bibliográfica mostra que o conhecimento
metalinguístico de uma língua, no caso o inglês, impacta na capacidade de julgamento
gramatical na outra língua (italiano) (SERRATRICE et al., 2009) e implica na reflexão
deliberada sobre padrões sintáticos (FRANCIS, 2002). Em geral, os estudos
apresentados mostram que crianças bilíngues superam monolíngues em algumas
medidas de capacidade metalinguística e que o bilinguismo exerce efeito positivo na
alfabetização.
Quatro artigos apontaram para a importância da análise das especificidades das
línguas dos bilíngues, pois suas características exercem papel fundamental no
desempenho linguístico das crianças. Além disso, alguns artigos mencionam o contexto
de aprendizagem dessas línguas, incluindo a idade e o tipo de instrução recebida pela
criança, como fatores significativos para a performance das crianças bilíngues.
Dois artigos apontam para uma influência menos significativa do bilinguismo
em relação à consciência metalinguística. Por exemplo, no estudo de Serratrice el al.
(2009), os bilíngues inglês/italiano apresentaram uma acurácia menor que os
monolíngues e os bilíngues espanhol-italiano em tarefas de julgamento gramatical.
Talvez o segundo grupo de bilíngues tenha sido favorecido pela proximidade entre as
línguas. Já no estudo de Bialystok e Barac (2011), o progresso no desenvolvimento

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metalinguístico sofreu maior impacto da proficiência linguística do que do bilinguismo


em si.
A partir desses resultados, observa-se que a vantagem bilíngue em tarefas
metalinguísticas surge na maioria dos estudos elencados, porém seria inapropriado
afirmar categoricamente que essa vantagem é uma característica do bilinguismo, já
que alguns estudos indicam a inexistência de diferenças de desempenho entre crianças
mono e bilíngues. Após a apresentação e discussão dos dados encontrados, passa-se às
palavras finais.

Considerações finais

A consciência metalinguística tem sido extensivamente estudada em


populações bilíngues. Segundo Bialystok (2001), as pesquisas com tarefas
metalinguísticas direcionam-se para a hipótese de que o bilinguismo melhora o
desempenho do sistema de funções executivas tanto em processamento verbal
quanto não verbal. Essas investigações citadas pela autora e aquelas apresentadas
neste trabalho mostram que a experiência de falar duas línguas diariamente provoca
algumas consequências na maneira como os processos cognitivos operam, resultando
em um desenvolvimento na capacidade de inibição e atenção. Contudo, nem todos os
estudos apontam para uma superioridade bilíngue em relação aos monolíngues em
tarefas de metalinguagem.
Dentre as diferentes habilidades metalinguísticas, a consciência fonológica tem
recebido maior destaque, pois é um dos componentes-chave para o progresso da
alfabetização, assim como as habilidades morfológica e sintática. Essas duas
habilidades também são importantes para a aprendizagem da leitura e da escrita, por
isso são recorrentes nos estudos com crianças bilíngues, ao contrário do que ocorre
com as habilidades semântica, pragmática e textual, que são menos estudadas.
Nesta revisão, verificou-se que alguns estudos que avaliaram a consciência
fonológica evidenciaram que a similaridade entre as línguas e a regularidade da
estrutura fonética pode facilitar o acesso à consciência fonológica de uma língua para a
outra. Além disso, em relação à consciência sintática, crianças bilíngues superam seus
pares monolíngues quando julgam a gramaticalidade de sentenças que contêm erros
semânticos, assim elas têm uma demanda adicional para ignorar o significado, porém
o desempenho entre bilíngues e monolíngues não difere quando a sentença é
semanticamente adequada. Essa vantagem também é evidenciada no desempenho de
tarefas que avaliam a consciência morfológica (DAVIDSON et al., 2010).

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Através deste estudo, percebeu-se que não há artigos revisados por pares que
investiguem bilíngues falantes de português brasileiro ou línguas nativas do Brasil,
embora haja estudos desse tema, principalmente no sul do país. Tampouco se
verificaram investigações sul-americanas, sugerindo uma lacuna a ser preenchida por
estudos futuros com as diferentes línguas dessa região e as habilidades
metalinguísticas menos destacadas.
Estudos sobre metalinguagem, sob a perspectiva psicolinguística, são
necessários para identificar as habilidades que são afetadas pelo bilinguismo, pois isso
tem importante implicação na compreensão teórica da estrutura cognitiva e em uma
melhor aplicação prática das duas línguas do bilíngue em programas educacionais. A
partir desta revisão de estudos, espera-se contribuir com a discussão sobre a cognição
bilíngue na infância, com ênfase na questão da existência ou não da vantagem bilíngue
em termos da metalinguagem.

Referências

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CRIATIVO OU PADRONIZADO: O FAZER LITERÁRIO CONTEMPORÂNEO

Emir Rossoni1

O artista, e aqui vamos nos ater a artistas escritores, está inteiramente ligado
ao objeto a que se dedica através de duas pontas. A primeira é o estímulo. A segunda é
o resultado. Muitos buscam esse estímulo através das mais variadas formas. Isso para
se chegar a um resultado mais próximo possível do esperado. Outros apenas seguem o
estímulo, o impulso criador. O resultado é a pura consequência.
Este texto não pretende canonizar uma maneira correta ou encontrar a melhor
forma de se alcançar um fazer literário. Mas servirá como reflexão do que se fez e do
que se vem fazendo nessa área tão fascinante e ao mesmo tempo tão sombria.
Barthes, em O grão da voz, apresenta dez razões para escrever, que cito abaixo:

1. Por necessidade de prazer, que como se sabe, não deixa de ter


alguma relação com o encantamento erótico;
2. Porque a escrita descentra a fala, o indivíduo, a pessoa, realiza
um trabalho cuja origem é indiscernível;
3. Para pôr um “dom”, satisfazer uma atividade instintiva, marcar
uma diferença;
4. Para ser reconhecido, gratificado, amado, contestado,
constatado;
5. Para cumprir tarefas ideológicas ou contra-ideológicas;
6. Para obedecer às injunções de uma tipologia secreta, de uma
distribuição guerreira, de uma avaliação permanente;
7. Para satisfazer amigos, irritar inimigos;
8. Para contribuir para fissurar o sistema simbólico de nossa
sociedade;
9. Para produzir sentidos novos, ou seja, forças novas, apoderar-
me das coisas de um modo novo, abalar e modificar a subjugação dos
sentidos;
10. Finalmente, como resultado da multiplicidade e da contradição
deliberadas dessas razões, para burlar a ideia, o ídolo, o fetiche da
Determinação Única, da Causa (causalidade e “boa causa”) e
credenciar assim o valor superior de uma atividade pluralista, sem
causalidade, finalidade nem generalidade, como o é o próprio texto.2

1
Mestrando em Escrita Criativa, PUCRS, bolsista CAPES.
E-mail: emir.rossoni@acad.pucrs.br
2
BARTHES, Roland. O grão da voz. Lisboa: Edições 70, 1982.

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Pretendo discutir o fazer literário. O fazer no sentido mais sujo. Mais operário.
Mais servil. Entre esse fazer, um aspecto que surge com muita significância, gerando
debates, formulando conceitos e incitando opiniões que vão do desconhecimento
sobre o tema a teses como é o caso do livro de José Hidelbrando Dacanal, Oficinas
literárias: fraude ou negócio sério?, estão exatamente as oficinas literárias. Um
estímulo à criação? Um fomento à leitura? Elas têm surgido com extremo vigor,
principalmente na cidade de Porto Alegre, e vêm se ramificando pelo Brasil.
Retomando Barthes, que, em suas dez razões, afirma que escrever não é uma
atividade normativa nem científica. E complementa: “não somos obrigados a imaginar
a escrita de amanhã... isso é revolucionário porque não está ligado a outro regime
político, porém a ‘uma outra maneira de sentir, uma outra maneira de pensar’.”
Mas por não sermos obrigados a imaginar a escrita de amanhã não significa que
não o façamos. Podemos imaginar como ela será produzida. E como chegará à outra
ponta. Ao leitor.
No artigo Criação literária na idade digital, Carlos Reis nos diz o seguinte:

Produzido em termos industriais e, por isso, progressivamente


democratizado, o livro, barato e acessível graças à energia do vapor,
origina uma transformação decisiva, que Eça de Queirós bem
percebeu: “A ideia de leitura hoje – escreveu Eça – lembra apenas
uma turba folheando páginas à pressa, no rumor de uma praça”.3

Carlos Reis prossegue em seu artigo fazendo uma análise do objeto livro.
Analisa seu formato e, é claro, a dimensão econômica que isso começa a projetar.

O fato literário passou a ser uma mercadoria e o seu autor, para além
da responsabilidade estético-cultural que lhe era inerente, reclamou
para si um direito de propriedade, compartilhada ou discutida com
outros agentes: editor, livreiro, distribuidor, etc.4

Mas se este texto pretende discutir a forma como escreve, por que motivo
estaria eu agora falando de negócio do livro, da era digital e do jeito como as pessoas
leem, ou do jeito que não leem, que também vem ao caso.
Trago essa discussão, porque na forma como se produz literatura estão as
oficinas literárias. E elas estão no centro de uma discussão que envolve o negócio e o

3
REIS, Carlos. A oficina do escritor e a construção da memória: problemas éticos e responsabilidade
cultural. Cadernos do Centro de Pesquisas Literárias da PUCRS, Porto Alegre, v.4, n.1, p. 10-16, 1998.
4
Idem.

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criar. Desse modo, acho interessantíssima a reflexão de Carlos Reis, no mesmo artigo,
que transcrevo abaixo:

Assim se gerou uma lógica de produção literária que, incluindo a


criação propriamente dita mas não se restringindo a ela, se
apresentava bem distinta do que até então era dominante, também
porque escrever, do ponto de vista material, foi sendo cada vez mais
fácil e mais barato. Imaginando, por oposição, um rápido exercício,
pode dizer-se que Camões ou Cervantes, sem editor à vista, lidando
com técnicas e compositivas inerentes a esses condicionamentos:
pode conjeturar-se que a memória ocupava, então, um papel
determinante na elaboração da escrita literária, porque o verso ou a
frase longa eram pensados com demora, interiormente enunciados e
consolidados, antes de serem lançados a esse suporte quase precioso
que era o papel; além disso, emendava-se pouco, porque a escrita
era ponderada, já que escrever e reescrever eram atos lentos e de
complexa rasura; e publicar um livro, a partir dessa escrita, obrigava
a saltar obstáculos vários, das censuras às limitações econômicas,
estas últimas eventualmente superadas com o apoio de mecenas; e
assim o livro publicado era um objeto artesanal, algumas vezes
próximo do artefato singular, como o mostram as variantes de
impressão que podiam inçar uma edição. Para tudo dizer: se Camões
tivesse podido dispor de um processador de texto e de acesso à
internet, Os Lusíadas teriam sido bem diferentes; e mesmo em
tempo de industrialização do livro, se Flaubert tivesse sido obrigado a
respeitar exigentes normas editoriais como as dos nossos dias, não
teria certamente emendado tanto.5

Como elucida o texto, a tecnologia esteve, está e sempre estará ligada à criação
literária. Se não à criação propriamente dita, ao fazer literário. E já que o fazer
também é o ato de ler, Reis fala da circulação de textos, que com a era digital, tem se
dado com muita facilidade, para o bem e para o mal. Segundo ele, a circulação em
redes é ilimitada, em escala universal, sem limites espaciais e em tempo real.
Se parte do discutido acima é o processamento do texto, cito aqui a oficina
literária como um processamento de ideias. Ideias que se discutem, formulam-se,
misturam-se e, de certo modo, dissipam-se. De novo, para o bem e para o mal.
Ernest Hemingway, Prêmio Nobel de Literatura de 1954, tinha fama de escrever
em pé. No livro Escritores em ação: as famosas entrevistas à Paris Review, o autor
afirma escrever todas as manhãs. Isso por uma razão muito simples: o clima era mais
fresco, não havia barulho e a entrega ao trabalho era muito maior.

5
Ibidem.

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E a disciplina em Hemingway era levada tão a sério que ele cita, na mesma
entrevista:

Leio o que escrevo e, como sempre paro quando sei o que irá
acontecer a seguir, parto do ponto em que parei. Escrevo até um
ponto em que ainda disponho de “sumo” e sei o que acontecerá em
seguida; então paro e procuro viver até o dia seguinte, quando me
entrego de novo à coisa.6

Em contrapartida, Georges Simenon, romancista nascido na Bélgica e radicado


na França, usava um método totalmente diverso. Ao iniciar um novo romance,
Simenon isolava-se e permanecia assim até terminar o trabalho. Período que levava
em média duas semanas. No final desse tempo, o autor estava tão exausto que
necessitava de atendimento médico.
Um método totalmente diverso ao do autor de O Velho e o Mar. No entanto,
uma semelhança vital entre as duas formas: a disciplina. Talvez seja a disciplina uma
das principais formas que credenciam as oficinas literárias. A disciplina imposta por
objetivos. O passo a passo.
José Hidelbrando Dacanal, em seu livro Oficinas literárias: fraude ou negócio
sério?, cita quatro tipos de oficina, classificadas por ele como Tipo 1, Tipo 2, Tipo 3 e
Tipo 4.
A oficina Tipo 1, Dacanal diz seguir o padrão clássico, idêntica a outras áreas
como pintura, dança e demais artes. O objetivo seria o conhecimento rigoroso e
profundo, como:

Estudo da Gramática, estrutura das línguas indo-européias, história


da língua portuguesa, estilística e retórica.
Leitura sistemática dos grandes clássicos portugueses e brasileiros.
Leitura das obras mais importantes da narrativa, do teatro, da lírica,
da história, da retórica e da política do Ocidente.
Leitura e análise de A poética, de Aristóteles e de Estética, de Hegel.
Estudo da formação e do desenvolvimento das principais literaturas
do Ocidente.
Produção de textos de natureza variada e sobre temas diversos,
submetidos a rigorosa correção estilística e retórica.7

6
HEMINGWAY, Ernest. Escritores em ação: as famosas entrevistas à Paris Review. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1968.
7
DACANAL, José Hildebrando. Oficinas literárias: fraude ou negócio sério? Porto Alegre: SOLES, 2009,
p.17.

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E complementa dizendo que as oficinas desse tipo estariam fazendo o que as


boas escolas do passado faziam.
No Tipo 2, segundo Dacanal, a oficina ensina macetes para quem quiser ser
ficcionista ou coisa parecida. E segue “Se for este o caso, trata-se de uma atividade
inócua, ou até prejudicial – por ser perda de tempo. E nem vale a pena explicar por
que é assim. Basta ler meia dúzia de padronizados e insossos contos produzidos em
tais oficinas.”
No Tipo 3, Dacanal classifica oficinas que afirmam, segundo as palavras do
autor, “ter o poder ou a competência de ensinar alguém a escrever contos, romances,
dramas ou poemas.”. Ele diz que essas oficinas são uma fraude que pode ter razões de
natureza psicológica, pedagógica, ética ou financeira. Cito abaixo dois argumentos
utilizados por Dacanal para defender tal ponto de vista e que, segundo ele, são
falácias:

A primeira falácia
Coloca à venda um produto que nunca existiu, não existe nem
existirá enquanto a natureza humana for a mesma.
A segunda falácia
Não fornece o único produto autêntico que pode ser vendido por
quem dele dispuser e adquirido por quem dele carecer: o
conhecimento profundo da língua – no caso, da Língua Portuguesa –
e a leitura diuturna e a análise exaustiva das obras de seus peritos
mais sofisticados, isto é, os grandes clássicos.8

No Tipo 4, Dacanal descreve:

Um grupo de pessoas se reúne, formal ou informalmente, para


discutir um tema, um autor, uma obra, etc sobre a coordenação de
alguém, geralmente pago... Há algo para criticar neste tipo de
atividade? Não. Afinal, todos têm o direito de abrir sua lojinha e de
vender o produto que bem entenderem pelo preço que os clientes
estiverem dispostos a pagar.9

Talvez o movimento expressivo, ou a busca por ele, seja um reflexo da própria


condição humana. A eterna causa-consequência. O artigo O processo criador10, de
Dante Moreira Leite, nos diz: “Pode-se falar em processo criador ou pensamento

8
Ibidem, p. 20.
9
Idem, p. 22.
10
LEITE, D.M.; LEITE, R.M. (Orgs.). Psicologia e Literatura. Ed. rev. São Paulo: UNESP, 2002.

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produtivo sempre que ocorra o aparecimento de nova solução para um problema


anterior”.
Os modos de expressão, ou a sua tentativa, estão se moldando de acordo com
nosso tempo, nossas condições financeiras e nossas necessidades de individualização.
Se pensarmos dessa forma, talvez seja plausível pensarmos que estamos entrando
numa era onde há mais escritores que leitores. Não é um dado científico. É uma
impressão. E uma leitura não propriamente sociológica, mas de comportamento.
Voltando a Dacanal, no mesmo livro, do qual não faço juízo de valor, pelo
menos por enquanto, e no qual também não percebo nenhum dado que comprove
suas teses, faz um levantamento sobre as causas do surgimento de tantas oficinas
literárias. Coincidentemente, ou talvez tenha o autor algum conceito e pré-disposição
a usar este número, também cita quatro causas para o surgimento e proliferação das
oficinas literárias.
A primeira seria enquadrada como Causas pedagógico-educacionais. Não
reproduzirei o raciocínio feito no livro. Em suma, Dacanal diz:

O salto tecnológico-industrial do Brasil nas últimas décadas devastou


o sistema pedagógico-educacional. Mas pela natureza humana
continuar a mesma, muitos indivíduos buscam o conhecimento
através de outras formas e alguns julgariam encontrá-lo nas oficinas
literárias, que Dacanal grifa como sendo “o horror! o horror!”.11

A segunda seria nominada como Causas cultural-tecnológicas. Num texto não


claro que não aponta necessariamente uma causa, Dacanal afirma que por
intempestivos e sucessivos saltos tecnológicos, as pessoas perderam os referenciais
civilizatórios e já não mais conseguem fazer a distinção entre tékne e sofia
(ferramental e sabedoria). E compara a oficina literária com outros fenômenos
sociológicos numa frase que transcrevo: “Em outros segmentos sociais e com
motivações de outra ordem, o florescimento das igrejas pentecostais é um fenômeno
sociologicamente idêntico”.
O terceiro ponto é nomeado como Causas socioeconômicas. E cita que há um
significativo número de pessoas entre 40 e 45 e entre 60 e 65 anos de idade que
dispõem de vitalidade biológica, de sobras financeiras e de tempo livre, que são
investidos em variadas atividades, como busca de parceiros, viagens, cursos,
academias de ginástica etc. E complementa:

11
DACANAL, José Hidelbrando, op. cit., p. 27.

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Por outro lado, os cursos de Letras, de Jornalismo etc. continuam a


despejar no mercado centenas e centenas de bacharéis, licenciados
mestres e doutores, não raro de reduzida capacitação técnica e com
ainda mais reduzidas perspectivas de emprego, particularmente em
um estado como o Rio Grande do Sul, no qual o setor pedagógico-
educacional está saturado e o gráfico-editorial-jornalístico é pouco
significativo.12

O quarto e último fator na avaliação de José Hildebrando Dacanal seria por ele
chamado de Causas histórico-literárias, sobre as quais diz o seguinte:

No Rio Grande do Sul a arte da palavra também foi a alma da


Província, mas em ciclo tão fugaz que mal superou cinco décadas, ao
longo das quais feneceu e desapareceu para sempre o secular poder
do patriciado rural/pastoril da Fronteira, que, operando da periferia
para o centro, organizou o Estado Nacional brasileiro moderno, do
qual logo a seguir o Sudeste se apropriaria, também para sempre.
Mas naquelas poucas e efêmeras décadas entre o nadir e o ocaso, a
arte literária no Rio Grande do Sul atingiu o zênite, alcançando
dimensão nacional/ocidental na lírica perene de Mario Quintana e
pelo milagre de O tempo e o vento – que permanecerá como uma das
poucas grandes criações épicas do século XX, ainda que o restante da
obra de seu autor tenha sido impiedosamente devastada pelos
anos.13

É sempre válido ter uma descrição de como Hemingway ou Simenon escreviam.


Eles ilustram nosso imaginário. Mas possivelmente sejam fantasmas de um tempo em
que a própria sociedade gerava grandes escritores. Aproximando a realidade atual,
percebemos novos meios e novos clamores sociais. A tecnologia, que facilitou muitas
coisas e dificultou outras, a rapidez da informação e a disseminação de gostos e
conhecimentos têm produzido uma nova forma de encarar a literatura. Não há mais
Hemingways nem Simenons. E tampouco sobreviveram suas formas de produzir. Fui
conversar com Pedro Gonzaga, um autor de Porto Alegre. E não aleatoriamente.
Escolhi Pedro e sua opinião para confrontar. Primeiro, para confrontar com processo
criativo. Depois para confrontar com a exposição que fiz acima do professor José
Hidelbrando Dacanal. Pedro Gonzaga é escritor e também professor de oficina
literária.
Pedro Gonzaga é natural de Porto Alegre. Depois de uma carreira na música,
passou a se dedicar ao magistério, lecionando literatura em faculdades e pré-
12
Idem, p. 28.
13
Idem, p. 29.

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vestibulares. Traduziu mais de 20 livros para o português, de nomes consagrados como


Charles Bukowski, Conan Doyle, Edgar Allan Poe, Patricia Highsmith, Jack London,
Mario Benedetti e Raymond Chandler. É mestre e doutor em literatura pela UFRGS.
Autor de quatro livros, entre conto e poesia, participou também de coletâneas digitais
e impressas. Seu livro mais recente é Falso começo (2013), finalista do Açorianos. Há
dez anos ministra oficinas de escrita criativa, e lança em junho de 2015 um livro em
parceria com Jane Tutikian reunindo técnicas de escrita chamado Escreva. Também é
cronista do jornal Zero Hora.
Inspirado pela forma como os clássicos escreviam, achei pertinente perguntar
para Pedro Gonzaga onde e de que forma ele o fazia.

Escrevo geralmente em cafés. Tanto à mão, em cadernetas, quanto


direto no Iphone, no bloco de notas. Quando se trata de texto em
prosa, crônicas, por exemplo, eu elejo um tema prévio, se tiver a
sorte de ter me ocorrido há algum tempo, já pensado, inclusive,
sendo a escrita o processo de descobrir e organizar o que falta. No
caso da poesia, que tem sido minha principal forma de expressão,
tudo começa com um sopro, um palpite que chega ao cérebro, vindo
muitas vezes dos sentidos. Aí é sentar e esperar que o poema se
realize. Depois é cortar os versos e ver seu som.14

No livro A arte do romance, Milan Kundera nos diz que o romance se


transformou no transcorrer do tempo. Se os primeiros romances falavam de viagens e
descobertas pelo mundo, depois passaram a se voltar para o mundo interior,
retratando as viagens através do infinito interior do ser humano. Ou seja, depois de
descobrirmos o que havia fora, tentamos entender o que havia dentro. Uma tarefa
bem mais subjetiva e capaz de fornecer inúmeros conflitos. Em O ofício de escrever15,
Ramon Nieto sugere que se deveria fazer uma pesquisa para saber quantos escritores
hoje compõem diante de uma tela. A verdade é que tanto O QUE se diz, quanto COMO
se diz e a forma de PRODUZIR, vão se transformando. Isso não é questão de mérito.
Mas questão de se usar as tecnologias que se oferecem e de se refletir na literatura os
anseios humanos. Por conta disso, quis saber de Pedro o que ele achava sobre o “ato
de escrever”. Teria este se transformado no decorrer do tempo, assim como a
literatura?

Acho que a forma como se dá o ato sem dúvida mudou. Da pena ao


teclado. E como a forma termina por repercutir no conteúdo, é

14
GONZAGA, Pedro. Em entrevista ao autor deste artigo. 2015.
15
NIETO, Ramón. A inspiração. In: ______. O oficio de escrever. São Paulo: Angra, 2001.

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provável que tenha mudado também. Agora para quem já nasce


dentro de certa tecnologia e não a vê cambiar radicalmente, não
creio que tenha essa percepção para si. Fora de uma possível história
da escrita, essa percepção é só o que importa.16

Pedro também menciona que o prazer da escrita, para ele, está na escrita. O
resultado final seria prazeroso num sentido de reconhecimento, de vaidade. “Mas
nada pode superar os instantes em que se está mergulhado nesse lugar onde o tempo
e a própria realidade transcorrem de maneira diferente”. Segundo ele, escrever é
conceber mundos. E isso, por si só, deveria fazer com que todos pudessem ter um
mínimo treinamento para ter esse prazer. Como tocar um instrumento pode trazer,
mesmo ao músico que nunca se apresentará. E segue: “Tento escrever alguma coisa
todos os dias. Achar alguma coisa que preste é, para mim, uma questão de
probabilidade. Quanto mais se escreve, mais chance tem de surgir alguma coisa boa
entre tantas coisas dispensáveis”. Então me lembrei de Ramon Nieto, que listou doze
tipos de estímulos, que iam dos espontâneos aos provocados. Não citei Ramon Nieto
ou sua lista de estímulos a Pedro Gonzaga. Mas provoquei-o sobre sua forma de
libertação.

Há muitos exercícios de libertação da criatividade. Para mim funciona


não olhar para a folha ou tela em branco. Pensar em outra coisa.
Ficar olhando para a estante, conversando com os autores. Eles são
generosos, sempre sopram alguma coisinha. A ideia, quem dera
pudéssemos saber de onde vem a ideia. Mas ela se manifesta, ao
menos para mim, assim como tu pergunta: com uma ideia pequena,
com uma impressão, com um enredo às vezes pronto, com uma
frase, com uma imagem, às vezes só como uma difusa sensação, que
é preciso apanhar antes que ela se desvanesça. As ideias são muito
mais fecundas que as formas em que se plasmam.17

E sobre as influências:

Leio sempre que posso. Creio que as influências são fundamentais.


Lembro de ler uma vez uma entrevista do Kenny G, dizendo que não
ouvia nenhum saxofonista porque queria ter um som próprio. Já se
vê o resultado dessa vida longe das influências. Acho que aprendi
com dois escritores bem díspares, Charles Bukowski, a paixão da
adolescência e inicio da vida adulta, e Carlos Drummond de Andrade,
a paixão do homem. Do primeiro, aprendi que é preciso escrever com

16
Idem.
17
Idem.

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as vísceras, nunca economizando na força para se chegar ao coração


do mundo. Com o segundo, aprendi o mesmo, mas o contrário, o
controle, a ponderação, a ironia e a espera pelo melhor verso.18

Sobre o ato de reescrever levando em conta leituras críticas, Pedro diz que
submete seus originais a uns três amigos que são leitores diferentes entre si. Diz saber
mais ou menos o que esperar de suas leituras. Assim, pode ver, por suas reações, se
alcançou aquilo que pretendia ou não, e ainda se seria possível ter chegado aonde
nem ele mesmo imaginara.
Olhando para o mercado literário, instiguei Pedro a responder se criava
pensando em atingir algum público específico ou por algum objetivo ou se escrevia
pela arte de escrever. “Penso em atingir leitores que estejam dispostos a sair um
pouco de seus centros de leitura, que estejam dispostos a melhorar o que escrevo.
Assim, meus leitores são sempre pessoas mais inteligentes do que eu. Escrever por
escrever sempre me pareceu meio frívolo”.
Para ir um pouco mais longe, e lembrando Barthes, em O rumor da língua, quis
saber de Pedro Gonzaga sobre este tema, um pouco mais acadêmico. E perguntei se
ele achava que o autor havia morrido. Se o importante era a obra. Ou hoje o autor
deve ser um ator com suas performances.

Acho que cada autor deve encontrar seu caminho, de acordo com
suas convicções. Quanto à morte do autor, ou da obra, isso é tralha
acadêmica que acadêmicos repetem por preguiça ou má-fé. De que
se possa encontrar belas ideias sobre isso em Barthes e Derrida não
deriva que seja assim na prática. As livrarias estão cheias de autores e
de obras de qualidade, escritas depois desses decretos bizantinos.19

No decorrer da história, é comum vermos grandes nomes da literatura


procurando referências para sua vida ou sua obra. Um dos exemplos mais populares
seria o de Rimbaud, que, jovem, viveu com Verlaine, tendo com este uma relação num
primeiro momento de aprendizado para depois se transformar numa relação afetiva.
Estas referências, creio, sempre irão existir, pois fazem parte do cerne da literatura. E
falando em cerne, é pertinente retornar ao polemista José Hidelbrando Dacanal e ao
livro mencionado anteriormente.

18
Ibidem.
19
Idem.

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Num capítulo chamado A colonização mental-tecnológica, o professor fala de


cultura, de conhecimento e da produção literária. Mais especificamente a produção de
grandes nomes da literatura. Cito:

Afinal, como foi visto, os grandes gênios da literatura, da filosofia, da


história e de todas as áreas das ciências exatas nada sabiam de
linguística, de árvores sintáticas, de morfemas, lexemas, sememas,
etc. Os grandes artistas da palavra no Ocidente conheciam apenas – e
muito bem – a gramática, isto é, a estrutura e o funcionamento de
sua língua, indo-européia por definição. E este conhecimento foi a
matéria-prima com que moldaram as obras que os eternizaram. Logo
– lógica aristotélica primária - todas as teorias linguísticas, antigas ou
modernas, são inúteis. Os gênios da arte literária são o argumento,
incontestável e irrecorrível.20

Deixando de lado o escritor que tinha em mãos, mudei a sintonia para o


professor:
Pedro Gonzaga, que escritores você indica a seus alunos? Por quê?

Como a oficina trabalha com textos curtos de ficção, costumo indicar


contistas, mas claro que também passamos por romancistas. Os que
mais tenho indicado são Tchekhov e Raymond Carver, porque acho
que ajudam de maneira evidente a entender o que é um bom
conto.21

A forma criativa de seus alunos muda conforme o andamento das aulas? “Creio
que eles vão descobrindo o tipo de escritores que são. Essa é a função de uma oficina,
permitir essa descoberta, então é natural que mudem”.22
Quais as semelhanças entre os alunos? E as principais diferenças? “Não vejo
muitas semelhanças, senão de interesses. São pessoas diferentes, que escrevem
diferente. Sempre acho que ensinar as técnicas, centrar o trabalho no aprendizado das
técnicas é uma maneira de respeitar essas diferenças”.23
Faulkner disse que o jovem escritor só aprende pelos próprios erros. Você
concorda? Por quê?

Concordo no sentido de introjetar um aprendizado, mas não no sentido


geral da proposição, porque também se pode aprender por observação.

20
DACANAL, José Hidelbrando, op. cit, p. 59
21
GONZAGA, Pedro, op. cit.
22
Idem.
23
Idem.

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Acho que o que ele quis dizer é que não adianta criticar os erros dos
outros, é preciso, como se fosse um músico no palco, tocar seu
instrumento. E quando toca se erra. Depois se pratica e se acerta, ou
transforma o erro em virtude.24

O erro é uma expressão que tem me fascinado. E o contato duplo com ela nas
últimas semanas me deu uma impressão, mesmo que possivelmente errada, de estar
no caminho certo. A possibilidade de transformar o erro em acerto, segundo Pedro
Gonzaga, é para mim libertadora. Então, tenho uma liberdade ao quadrado, pois
poucos dias antes, ouvira Bernardo Carvalho, em seu curso Desconfie de mim, no
espaço Delfos da PUCRS, mencionar que “a boa literatura é o entendimento dos seus
defeitos”.
Já o livro Oficinas literárias: fraude ou negócio sério?, de J. H. Dacanal, provoca,
num primeiro momento, uma discussão pertinente. No entanto, os argumentos ali
contidos tendem a ser incompletos, o que limita a discussão. Dacanal analisa a oficina
e sua produção literária de dentro para dentro. No momento em que fala de uma
padronização, não estuda a literatura como um todo, mas assim mesmo afirma que a
produção literária da oficina é padronizada. Estamos teorizando em cima da teoria.
Produzindo suposições sem conferir a prática. Talvez nos falte rever as razões de
Barthes. Talvez seja plausível estudar Ramon Nieto, mas também conectar seus
estímulos a obras literárias. Afinal, no começo, no meio e no fim disso tudo, o que nos
interessa é a literatura. E ela simplesmente não existe se faltarem os livros. Talvez
devêssemos tirar o rótulo de produção da oficina e analisar a literatura
contemporânea como um todo. A literatura é como a vida, e é composta de infinitas
redes, vivências e projeções. Quem sabe, com essa visão de conjunto, e somente com
ela, pudéssemos fazer a pergunta:
A literatura contemporânea está padronizada?

Referências
BARTHES, Roland. O grão da voz. Lisboa: Edições 70, 1982.
BARTHES, Roland. O rumor da Língua. Trad. Mario Laranjeira. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
DACANAL, José Hildebrando. Oficinas literárias: fraude ou negócio sério? Porto Alegre:
SOLES, 2009.
GONZAGA, Pedro. Em entrevista ao autor. 2015.

24
Idem.

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HEMINGWAY, Ernest. Escritores em ação: as famosas entrevistas à Paris Review. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1968.
KUNDERA, Milan. A arte do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
LEITE, D. M.; LEITE, R. M. (Orgs.). Psicologia e Literatura. Ed. rev. São Paulo: UNESP,
2002.
NIETO, Ramón. A inspiração. In: ______. O ofício de escrever. São Paulo: Angra, 2001.
p. 67-70.
REIS, Carlos. A oficina do escritor e a construção da memória: problemas éticos e
responsabilidade cultural. Cadernos do Centro de Pesquisas Literárias da PUCRS,
Porto Alegre, v.4, n.1, p. 10-16, 1998.

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ESPAÇOS E FORMAS DE PRESENÇA DO OUTRO NA FICÇÃO DE DALTON TREVISAN

Eneida A. Mader1

No presente trabalho, pretende-se analisar o conto “Cemitério de elefantes”,


do escritor paranaense Dalton Trevisan, à luz de teorias que abordam as formas de
identidade e alteridade na literatura contemporânea, bem como a condição humana e
a maneira de encarar o espaço intersubjetivo e social do Outro, tal como o vê e o
vivencia a narrativa ficcional.
O conto “Cemitério de elefantes” possibilita um diálogo com questões relativas
à alteridade, à exclusão social e à construção da identidade, uma vez que focaliza a
condição dos sujeitos excluídos socialmente – os bêbados da metrópole.
Dessa forma, este estudo apresenta a questão dos espaços do Outro e de suas
formas de presença, expressas na relação social não harmônica no conto “Cemitério
de Elefantes”, sob a perspectiva de que a leitura do discurso literário pode
proporcionar um debate ligado às questões culturais e filosóficas do homem.
O conto “Cemitério de elefantes” encaminha o leitor para um espaço situado à
margem do mundo no qual vivem sujeitos que se encontram reclusos da sociedade e
ausentes de um quadro socialmente instituído como modelar. Os bêbados são os
protagonistas do conto e simbolizam todos os “marginalizados” que vivem em
exclusão e que são alimentados com os restos que a sociedade lhes dá.
Há uma alegoria entre os elefantes e os bêbados do conto de Trevisan, no
sentido em que o narrador empresta aos bêbados as características daquele mundo
‘animal’, porém nada animalesco: os elefantes são solidários na vida e na morte. E,
embora os bêbados estejam assemelhados à imagem dos elefantes quanto ao peso, à
lentidão e à aceitação resignada da situação que se impõe – doença e velhice – e que
não pode ser mudada, de outra forma, também, os personagens se importam uns com
os outros, mesmo beirando a morte.
A narrativa tem início com uma informação importante – “à margem esquerda
do rio Belém, nos fundos do mercado de peixe, ergue-se o velho ingazeiro – ali os
bêbados são felizes”. Nessa passagem, observa-se um narrador em terceira pessoa e

1
Doutoranda em Teoria da Literatura na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, bolsista
CAPES.
E-mail: eneida.mader@gmail.com

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onisciente, que expõe a situação ao leitor e demarca o espaço que ambienta a


narrativa: uma praça que beira o rio.
No conto, aponta-se “o lado esquerdo da margem” como um lugar
desprivilegiado e que simbolicamente representa o negativo, um espaço reservado aos
vitimados pela exclusão: quem se importa com os bêbados? Por uma questão
‘cultural’, geralmente, a imagem de bêbado está associada à preguiça, à
vagabundagem e à marginalidade.
Além disso, esse espaço ‘ausente’, onde residem os bêbados do conto, fica nos
fundos de um mercado de peixe. É, portanto, um lugar fétido, e que, em geral, situa-se
à margem do rio e da cidade, devido ao mau cheiro e à presença de insetos. É nesse
espaço aparentemente abandonado e esquecido pelo mundo que o narrador marca
também a presença de um velho ingazeiro, além dos protagonistas – “os bêbados que
ali vivem em comunidade e são felizes à sua moda” (TREVISAN, 2009, p. 14).
Nas primeiras linhas da narrativa, o narrador fornece uma imagem do estrato
social onde convivem os protagonistas, de forma suficiente para marcá-los na sua
marginalidade e miséria: eles são velhos, doentes, apartados, ausentes do resto do
mundo, e estão reclusos.
Os personagens de “Cemitério de elefantes” estão ‘fora’ do eixo social, apesar
de estarem em pluralidade, coabitando na praça, um espaço popular, destinado ao
lazer ou à passagem da população urbana. Essa pluralidade demarcada no conto é “a
condição da ação humana”, como salienta a cientista política Hannah Arendt (2014),
em A condição humana. Conforme Arendt, a ação é a atividade que corresponde à
condição humana da pluralidade, ao fato de que a Terra e o mundo são habitados não
pelo Homem, mas por homens e mulheres portadores de uma singularidade única –
iguais enquanto humanos, mas distintos radicalmente e irrepetíveis, de forma que a
pluralidade humana, mais que a infinita diversidade de todo os entes, é a “paradoxal
pluralidade dos seres únicos”. (ARENDT, 2014, p. 218).
No trecho “Curitiba os considera animais sagrados”, tem-se dois importantes
focos para análise: a cidade de Curitiba e os elefantes como sagrados. A metrópole
paranaense serve como pano de fundo para a narrativa, mas percebe-se que essa
cidade ficcional de Trevisan é atípica, pois o olhar narrativo denota que nesse espaço
urbano só existe o submundo que abriga os personagens socialmente esquecidos.
No segundo foco, na referência aos “animais sagrados”, o conto remete à lenda
do cemitério de elefantes, segundo a qual esses animais têm uma espécie de
santuário, um lugar escolhido pela espécie, para morrerem em paz. Lendas africanas
contam que os elefantes, quando pressentem a morte, abandonam a manada e,

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guiados pelo instinto, vão para um lugar que só eles conhecem, no qual há abundância
de água, vegetação tenra, e onde estão os ossos dos antepassados. Ali, dispostos sobre
uma extensão de vários hectares, os paquidermes se deitariam para dormir o último
sono. Em geral, seriam esses recantos que acolheriam as manadas de paquidermes
velhos e doentes.
Essa simbologia, entre a lenda africana do espaço-santuário dos elefantes e a
praça na qual se encontram os personagens do conto, é empregada para aproximar as
criaturas humanas (os bêbados) e as humanizadas (os elefantes) que, embora oriundas
de espécies diferentes, encontram-se em igualdade de condições existenciais no
espaço ficcional: estão solidárias frente à morte. Dessa forma, elefantes e bêbados,
ambos se encontram relegados a um espaço reduzido, porém solidário, onde não
poderão perturbar o resto do mundo, uma vez que o mundo ao redor nem se importa
com a existência dos ‘pestilentos’.
Na passagem “quando ronca a barriga, a ponto de perturbar a sesta, saem do
abrigo e, arrastando os pesados pés, atiram-se à luta pela vida” (TREVISAN, 2009, p.
15), o conto remete às imagens trazidas pela lenda em que os elefantes idosos e
doentes, ao se tornarem mais lentos e se arrastarem, com isso atrasam toda a manada
em suas longas jornadas.
Mesmo velhos e doentes, os elefantes possuem o instinto de buscar um local
adequado para passar o final da sua existência e ali conviver com os animais de sua
espécie em igualdade de condições. Nesse sentido, o mesmo instinto de sobrevivência
dos bêbados de Trevisan está presente naquele da lenda dos elefantes: a luta solidária
pela sobrevida ou pela vida em defesa da morte.
Há muitos diálogos possíveis entre o conto “Cemitério de elefantes” com as
teorias da alteridade e identidade, pois a narrativa contemporânea dialoga com outras
linguagens artísticas e com outras áreas do saber. Desse modo, pretende-se destacar
também nesta pesquisa os aspectos que aproximam a obra de Dalton Trevisan de
teorias que tratam da alteridade e identidade, e que singularizam o autor no
panorama literário brasileiro.
O texto literário de Trevisan, ao abordar olhares oblíquos, trazendo para o
centro do espaço narrativo as representações de sujeitos que estão à margem da
sociedade, possibilita, assim, uma análise à luz de teorias filosóficas e culturais.
Uma vez que o conto focaliza os ‘bêbados’ como personagens num espaço
público – seres rotulados, posicionados à margem de um grupo de referência, que os
condena e despreza, é possível aproximar essa narrativa do estudo sociossemiótico
que Eric Landowski (2002) estabelece em Presenças do Outro.

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Landowski procura analisar, sob um prisma semiótico, as estratégias de


presenças do Outro e a origem da diferença que se interpõe entre os modelos de
padronização que o grupo de referência estabelece no cotidiano do mundo
contemporâneo, especialmente em locais públicos diversificados e nos espaços em
que o Outro procura coabitar.
No plano das práticas sociais, quando se encaram as relações entre sujeitos em
situação, não há relação de simetria nem de igualdade perfeitas. Evidenciam-se, então,
as diferenças e as discriminações de toda ordem, pois os sujeitos estão transformados
em atores sociais, como afirma Landowski, desempenhando posições e papéis
relativos que diferenciam os grupos uns dos outros, ressaltando as marcas sociais.
Mesmo que todo mundo seja em princípio sujeito do mesmo modo, cada um se
apresenta na realidade como pertencente a sua categoria sócio-profissional, a seu
grupo linguístico ou confessional, a seu meio étnico ou cultural, a sua faixa etária, a sua
geração, a seu sexo, e assim por diante.
Landowski (2002) define o “gênero de dissimetria”, como aqueles relacionados
aos estereótipos produzidos pelos grupos sociais que valorizam sistematicamente a
posse de certos atributos sociais, herdados ou adquiridos, em que se baseia mais
comumente o orgulho identitário deles. Esses grupos consideram-se, no âmbito de
uma determinada sociedade, como os que constituem o “Nós” de referência. E eles
mesmos acreditam ser, por oposição aos indivíduos ou às comunidades particulares
que suas diferenças assinalam (com graus de estranheza variável), como avatares
previsíveis do Outro.
Os grupos de referência estabelecem, assim, rotulações de toda ordem em uma
escala de estereotipia identitária, que vai do antissocial ao caipira, do transviado ao
marginal, do gringo ao puro estrangeiro, ou, até mesmo em outros planos – num
vocabulário chulo – do “deficiente ao bicha”.
Através das expressões empregadas pelo narrador de “Cemitério de elefantes”
para descrever as “marcas sociais” dos bêbados, é possível visualizar as formas em que
o sujeito receptor é solicitado a compor sentidos, tornando perceptível medir a
dimensão que essa iconografia é capaz de fazer ao solicitar a presença dos excluídos
(os bêbados), assemelhando-os aos elefantes.
O narrador conversa com o leitor quando diz “A você o caminho se revela na
hora da morte”, e, nesse ponto, é possível perceber um diálogo do conto com a
questão formulada pelos estudos filosóficos acerca da ética, como uma forma de
aceitar e entender o Outro, o ser responsável pela existência de outrem, conforme
Emmanuel Lévinas (2010) propõe em Entre nós.

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A escrita de Trevisan, ao dar voz aos excluídos, promove uma ruptura da


indiferença (uma preocupação pelo Outro, a ponto de assumir uma responsabilidade
por ele), como trata Lévinas ao referir-se ao “acontecimento ético: a possibilidade do
um-para-o-outro” (LÉVINAS, 2010, p. 18).
Para Lévinas,

a vocação de um existir-para-outrem é mais forte que a ameaça da


morte, ou seja, a aventura existencial do próximo importa ao eu
antes que a sua própria, colocando o eu diretamente como
responsável pelo ser de outrem. O em-si do ser persistente-em-ser
supera-se na gratuidade do sair-de-si-para-o-outro, no sacrifício ou
na possibilidade do sacrifício (LÉVINAS, 2010, p. 18).

O ser é também, necessariamente, ser para o outro, como define Landowski


(2002). É ser visto, avaliado, sondado e, classificado em algum lugar, em função de
algumas categorias que organizam o espaço social, como o espaço adotado pelos
bêbados, em relação às coordenadas definidas por um determinado “grupo de
referência, seja qual for a posição (interna, marginal ou externa) dos sujeitos
individuais ou coletivos” (LANDOWSKI, 2002, p. 42).
Os personagens de “Cemitério de Elefantes” carregam em seus fardos o
desprezo da sociedade, além das perebas e das agruras decorrentes do vício. O
narrador salienta que a sociedade os alimenta e faz suas provisões para que eles não
saiam daquele local imundo, de modo que não passem a ocupar outros espaços
sociais, pois trariam consigo o mal estar social da morte que a todos espreita, além da
imundície do lugar em que vivem.
É possível, assim, perceber no conto “Cemitério de Elefantes” o diálogo entre
esses espaços tão distantes – do Mesmo e do Outro – tão apropriado no exemplo que
se revela na conversa entre o pescador e o bêbado chamado de Papa-Isca. O pescador
pergunta-lhe o porquê da bebida, e Papa-Isca responde que é maldição de mãe.
A escrita de Trevisan é provocativa, pois é para a consciência moral do leitor
que esse narrador hesitante, esses personagens perdidos aguardam a adesão
emocional, ou, ao menos, estética, e esperam ansiosamente que se conclua a
existência.
Os “Outros” – não os mais distantes –, mas os que ficam aí perto, à margem,
supondo-se que eles veem e que sentem que não são exatamente o que “deveriam
ser”, assim como do lugar em que estão (uma praça-cemitério, no conto de Trevisan,
por exemplo), eles poderiam captar exatamente o que deveriam tornar-se se quiserem

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encontrar um dia seu lugar admitido entre aqueles mesmos com que sua estranheza
estabelece contradição. E Landowski questiona-se: “eles conseguirão um espaço ‘entre
nós?’” (LANDOWSKI, 2002, p. 46).
É na metrópole conturbada que Trevisan reconstrói histórias próprias e alheias,
de personagens que representam os excluídos da sociedade, e que são transformados
pelo estranhamento da linguagem em “animais sagrados”, “elefantes malferidos” ao
se comparar homens bêbados com elefantes à beira da morte.
Para Maria Zilda Cury, “tal estranhamento, no entanto, não tira destes textos
um profundo sentido político e de reflexão sobre a realidade social urbana brasileira”
(CURY, 2007, p. 17).
Através desse espaço social e intersubjetivo proporcionado pela ficção do conto
de Trevisan, é possível aproximar o leitor dos problemas com os quais “o Outro é
confrontado enquanto sujeito coletivo diante do grupo dominante, este último
ocupando uma posição ‘espacial’ definida como centro de referência” (LANDOWSKI,
2009, p. 61).
O conto de Trevisan estabelece essa pertença identitária entre homens e
elefantes em condição terminal. Nessa microesfera social, os bêbados da metrópole de
Trevisan estão às margens e, nessa prática da marginalidade, o espaço animalesco dos
elefantes torna-se humanizado pela igualdade de condições que vivenciam os homens
velhos e bêbados. Enquanto experiência de uma alteridade concretamente vivida – os
bêbados e os elefantes à deriva –, pode-se remeter a uma espacialidade outra, a uma
topografia e a uma cinética identitárias que apresentam um grau maior de
complexidade.
Analisado sob o prisma da semiótica das relações intersubjetivas, o espaço
social que o narrador adota em “Cemitério de elefantes” não está distante
espacialmente de um ‘Nós’ de referência; ao contrário, é um local muito próximo,
situado no coração da metrópole – a praça –, um ponto em que normalmente ocorrem
os encontros. É nessa encruzilhada de todas as mundanidades sociais, artísticas e
culturais de qualquer parte do mundo que os ‘marginalizados’ vivenciam o mundo ao
seu redor.
Para Landowski,

é preciso o tempo todo voltar-se e olhar nos arredores, pois então,


diante de nós, essa multidão heteróclita, poliglota, espalhada por
todos os lados, aparentemente sem destinação e que, de fato,
permanecerá ali praticamente até a aurora, como qualificá-la nos
termos de que dispomos? – Ursos, camaleões, dândis ou o quê? De

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fato, sentimos que nenhuma de nossas etiquetas convém


perfeitamente, como se aqueles ‘marginais’ não jogassem realmente
o jogo (LANDOWSKI, 2002, p. 62).

Assim, a cultura, a história, e a produção artística passam a ter seus contornos


redefinidos, e revisados a partir da narrativa de experiências desses sujeitos que
adquirem poder através do texto literário: mulheres, colonizados, grupos minoritários,
os portadores de sexualidades policiadas, os excluídos socialmente.
Para Homi Bhabha (1998),

conhecer ou definir o presente passa pelo reconhecimento de que


esse tempo não pode mais ser encarado simplesmente como uma
ruptura ou um vínculo com o passado e o futuro, não mais uma
presença sincrônica: nossa autopresença mais imediata, nossa
imagem pública, vem a ser revelada por suas descontinuidades, suas
desigualdades, suas minorias (BHABHA, 1998, p. 23).

Ali naquela praça do conto, cruzam-se diariamente universos que a priori não
se esperaria ver superpostos; de um lado, os pescadores e, de outro, os bêbados que
estão à deriva.
De um lado da margem do rio, encontra-se uma sociedade considerada ‘grupo
de referência’; do outro lado, vindo não se sabe bem de onde, tudo o que de
improvável de ser recuperado e que o Terceiro Mundo deposita em torno da capital: o
seu ‘entulho’ humano. Enquanto alguns atravessam a praça, os bêbados a ocupam,
formando uma comunidade ao ar livre. E de que modo eles serão rotulados? De
acordo com o microuniverso social, definido por Landowski, os bêbados não se
enquadrariam em nenhuma das qualificações – não são ursos, não são esnobes, nem
dândis, nem camaleões. É como se esses seres marginalizados “não jogassem o jogo
social” (LANDOWSKI, 2002, p. 62).
O espaço urbano do conto de Trevisan é desfigurado pelos “invasores” – os
bêbados. Eles perturbam os princípios de uma “sadia geometria urbana”, que foi
construída, muitas vezes, com o maior cuidado e transformado em verdadeiros
espaços-vitrinas, em que a cidade só oferece a melhor imagem de si mesma. Essa
sadia geometria urbana é a mesma que, segundo Landowski, “funda uma leitura
normal da cidade e o reconhecimento mútuo das identidades que ali coabitam”
(LANDOWSKI, 2002, p. 63).
Os bêbados e o seu ‘habitat’ são descritos pelo narrador de Trevisan de forma
nada ingênua, pois a linguagem do texto literário é endereçada a outrem e o invoca.

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Emmanuel Lévinas (2010), em Entre nós, define o modo como essa invocação é dada
pela linguagem:

ela não consiste em invocá-lo como representado e pensado, mas é


precisamente porque a distância entre o mesmo e o outro, onde a
linguagem se verifica, não se reduz a uma relação entre conceitos,
um limitando o outro, mas descreve a transcendência em que o
outro não pesa sobre o mesmo, apenas o obriga, torna-o
responsável, isto é, falante (LÉVINAS, 2010, p. 54).

A narrativa de Trevisan, como linguagem, não pode englobar outrem como


conceito, mas como pessoa. Para Lévinas, a invocação é anterior à comunidade, ou
seja, ela é relação com um ser que só está em relação comigo à medida que é
inteiramente por relação a si.
O bêbado, que se assemelha ao elefante santificado à beira da morte, é
assinalado no conto de Trevisan como um ser que está para além de todo atributo,
como uma presença sensível de um ‘rosto’ (o “outramente”, de Lévinas, “a consciência
moral”), “que se coloca em face de mim”, sem que o “em face” represente hostilidade
ou amizade. Essa é a particularidade de outrem na linguagem, para Lévinas, e que
dialoga com a condição em que se situam os personagens de “Cemitério de elefantes”.
Ao equiparar os moribundos bêbados à imagem dos velhos elefantes, o conto
de Trevisan está longe de representar uma animalidade ou o resíduo de uma
animalidade. Ao contrário disso, o enredo do conto constitui “a humanização total do
Outro” (LÉVINAS, 2008, p. 55).
Os bêbados convivem em um espaço ocupado pela pluralidade dos homens,
mas que se apresenta em alteridade para os personagens do conto, ao impor-lhes uma
condição de infortúnio e exclusão e por viverem uma vida diferente em relação ao
mundo.
A distinção humana não é idêntica à alteridade, como trata Hannah Arendt
(2014), “nem é idêntica à curiosa qualidade da alteritas, comum a tudo o que existe e
que é classificada como uma das quatro características básicas e universais do Ser,
transcendendo toda qualidade particular” (ARENDT, 2014, p, 218). Para Arendt, a
alteridade é aspecto importante da pluralidade,

é a razão pela qual todas as definições humanas são distinções. Em


sua forma mais abstrata, a alteridade está presente somente na mera
multiplicação de objetos inorgânicos, ao passo que toda vida
orgânica já exibe variações e distinções, inclusive entre indivíduos da
mesma espécie. Só o homem, porém, é capaz, de exprimir essa

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distinção e distinguir-se, e só ele é capaz de comunicar a si próprio e


não apenas comunicar alguma coisa – como sede, fome, afeto,
hostilidade ou medo (ARENDT, 2014, p. 218).

Desse modo, a alteridade que o homem partilha com tudo o que existe (no
conto, por exemplo, isso se aplica aos bêbados em relação ao espaço em que se
situam) e a distinção que ele partilha com tudo o que vive tornam-se unicidade. Então,
como diz Arendt, é por isso que “a pluralidade humana é a paradoxal pluralidade de
seres únicos”.
Assim, o homem tem o arbítrio de sua individualidade – os homens podem
viver do trabalho ou deixar que outros trabalhem por eles; podem simplesmente usar
e fruir do mundo das coisas sem lhe acrescentar um só objeto útil. As vidas podem ser
até injustas – alguns trabalham, outros só bebem – mas certamente são vidas
humanas.
Ao descrever não só o convívio dos bêbados, o espaço narrativo de “Cemitério
de elefantes” focaliza a morte dos personagens. É um espaço de morte, em que a vida
mostra a sua face mais frágil. Nesse aspecto, a escrita de Trevisan dialoga com a
doutrina da “Epifania do rosto”, descrita por Emmanuel Lévinas.
A epifania de que trata Lévinas consiste no “despertar para o outro homem na
sua identidade indiscernível para o saber; o rosto com a própria mortalidade do outro
homem”. É como se a Morte de cada personagem do conto remetesse para a
consciência de cada leitor – como se fosse sua a responsabilidade daquele indivíduo
(rosto) que falece às margens do rio. É um cemitério ficcional, criado para que se possa
também refletir que a morte do Outro homem põe em xeque e questiona a alteridade
de cada ser. Para Lévinas, a alteridade e esta separação absoluta manifestam-se na
epifania do rosto, no face a face:

A morte do outro homem me põe em xeque e me questiona, como


se desta morte o eu se tornasse, por sua indiferença, o cúmplice, e
tivesse que responder por esta morte do outro e não deixá-lo morrer
só. É precisamente neste chamado à responsabilidade do eu pelo
rosto que o convoca, que o suplica e que o reclama, que outrem é o
próximo do eu (LÉVINAS, 2010, p. 212-213).

O conto focaliza nos bêbados e nos elefantes a mesma condição de isolamento,


morte e fragilidade – o estar isolado é estar privado da capacidade de agir. A antiga
crença popular, como apresenta Arendt, indicava que um “homem forte” seria aquele
que, isolado dos outros, atribuiria sua força ao fato de estar só. Essa mera superstição,

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assim classificada por Arendt, estava baseada na ilusão de que ‘o estar só’ levaria à
condição ideal para que se ‘produzisse’ algo no domínio dos assuntos humanos.
Assim, o homem isolado seria capaz de ‘produzir’ instituições ou leis, tal como
se produzem mesas e cadeiras; também seria capaz de ‘produzir’ “homens melhores
ou piores”. Essa crença da produção através do isolamento também pode expressar “a
desesperança consciente de toda ação, política e não política, aliada à esperança
utópica de que seja possível tratar os homens como se tratam outros ‘materiais’”.
(ARENDT, 2014, p. 233).
E, para se contrapor a tudo isso, o escritor tenta, através de seus escritos
ficcionais, modificar o leitor e, assim, transformar os severos transtornos da sociedade,
em especial a brasileira, uma das campeãs mundiais em desigualdades sociais e em
preconceitos de toda espécie.
A escrita de Dalton Trevisan, dando ênfase aos excluídos sociais, através dos
personagens de sua escrita ficcional, segue na intenção de responsabilidade social e
está dedicada ao destino último do homem – certamente, o de alcançar a plenitude e a
felicidade na Terra, contribuindo para dirimir as desigualdades e as diferenças de toda
ordem, a partir do exercício libertador decorrente do texto literário.
O texto literário de Trevisan conduz a uma abordagem humanizadora desses
“elefantes” (os bêbados), pois eles se juntam em comunidades. Juntos, sabem que
formam um grupo harmônico dos excluídos, dos marginalizados, dos párias – daqueles
que vivem de restos. E esperam o que é inevitável a todos – a morte. Aguardam a
morte com naturalidade e, enquanto esperam pelo decreto final, convivem em paz e
em ajuda mútua.
Após a leitura sociossemiótica de “Cemitério de elefantes”, não é mais possível
olhar para um bêbado com a mesma visão anterior; descobre-se que eles estão ‘entre
nós’, não são ‘mera paisagem’. Os bêbados de Trevisan, que representam o homem à
deriva, têm alma de elefante: eles são solidários e se respeitam.
Os bêbados ocupam o mesmo espaço do resto do mundo e é para essa reflexão
que o conto conduz, pois, os “bêbados-elefantes-humanizados-desprezados” optaram
viver por eles mesmos, com toda desenvoltura, apesar das normas e códigos sociais.
Eles são felizes em um local fétido e sujo, apesar de saberem que os outros seres
vivem “outramente”, no conforto de seus lares. E, por que não, um dia, os indivíduos à
margem estarão “conosco, se nós também, mudando nossas leis e nossas posturas,
quiséssemos um dia nos tornarmos nós mesmos, isto é, outros – um pouquinho?”
(LANDOWSKI, 2002, p. 66).

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O texto literário proporciona esse ‘diálogo’ entre o ficcional e o real, a fim de


que se possa refletir sobre a ausência e a indiferença da sociedade em relação aos
sujeitos que sofrem na carne o opróbrio da condição humana e as injustiças.
O espaço que os bêbados ‘ocupam’ é aquele definido como espaço marginal,
em duplo sentido: o sentido de margem ou beira do rio e, também, conotativamente,
como um local de partidas ou o espaço dos excluídos, em relação ao grupo de
referência social.
Para o narrador de “Cemitério de Elefantes”, entretanto, os bêbados não
ocupam um lugar insignificante; ao contrário, mediante um olhar sensível, a narrativa
fornece um recorte humanizado do sujeito que está às margens, desses “pequenos
nadas” para a esfera social. Embora os bêbados sejam velhos, possam ser desprezados
e serem imperceptíveis para o mundo, não são insensíveis ao olhar do narrador.
Os marginalizados sociais do conto de Trevisan, contudo, são verdadeiros, pois
mal sabem o que são – uma espécie de “cegos sociais” –, assim considerados no
sentido em que Landowski define que eles não veem (não querem ou não podem ver)
que os Outros, “os videntes, os olham; e, na melhor das hipóteses, eles apenas
entreveem de modo difuso o que os outros, por sua vez, veem demasiado dele.”
(LANDOWSKI, 2002, p. 46).
“Nunca estamos presentes na insignificância”, como afirma Landowski e, ao
equiparar-se a condição existencial dos bêbados com a solidariedade dos elefantes à
beira da morte, a narrativa posiciona-se frente a uma consciência moral que não isola
a culpabilidade advinda da exclusão social.
A estereotipia baseia-se numa crença múltipla e cristalizada, de forma que é
comum o seguinte raciocínio – o Outro não sou Eu, então, não sou responsável por
esse Outro.
A literatura de Trevisan, como arte que enseja metamorfose, permite refletir
sobre as ausências de uma dada sociedade em relação aos desiguais, e reflete-se sobre
a dimensão da condição humana. O conto revisa questões ligadas à consciência moral
e cria, assim, um não-mundo, através do espaço de alteridade em que vivem os
personagens do conto. Esse poder que emana do conto é comunicativo e aberto-ao-
mundo, transcende e libera no mundo uma apaixonada intensidade que estava
aprisionada no si-mesmo (self).
É algo mais que uma transformação – bêbados e elefantes –, trata-se de uma
transfiguração, uma verdadeira metamorfose, como se o curso da natureza mortal –
que requer que tudo se extinga vire em ossos, pó ou cinzas – fosse invertido, de modo
que até o pó pudesse irromper em chamas. Essa é a permanência do texto literário,

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que permite refletir sobre as questões que englobam o humano, assim como as
abordadas no conto “Cemitério de elefantes”.
Naquele espaço da praça, onde estão os personagens à deriva, a existência
acaba, mas a condição humana, não: sobrevive por meio da narrativa, que lhe tira das
cinzas e lhe confere a ‘memorialidade’ – essa capacidade que a obra literária contém,
ou seja, a possibilidade de ficar permanentemente fixada na lembrança da
humanidade.
Dessa forma, o conto “Cemitério de elefantes”, como obra literária e artística,
proporciona um universo ficcional “artificial” de coisas, nitidamente diferente de
qualquer ambiente natural. Dentro de suas fronteiras, contudo, é abrigada cada ‘vida’
individual, embora esse mundo se destine a sobreviver e a transcender todas elas. É
por isso que a condição humana da obra é a sua mundanidade – a capacidade que o
homem possui de estar em pluralidade, sendo tão singular.
A ficção de Trevisan, em “Cemitério de elefantes”, comprova que a literatura é
a arte que promove a representação de todas as alteridades, o encontro com todas as
diferenças. Na representação da realidade da ficção, os espaços que jamais poderiam
ser mantidos juntos encontram abrigo na palavra, no texto, na criação subjetiva do
humano.
Na instância do texto literário, as palavras não carregam categorias de espaço,
nem de tempo, nem de lugar, mas a essência primordial de sua significação. Uma
significação que não cessa e que não se encerra, e que promove a revisão e a
diferença.
A reflexão de Landowski remete a outros planos semióticos, nos quais se
encontra a obra literária, ‘engajada’ implicitamente em um projeto político capaz de
repensar as diferenças e incluí-las, através das narrativas ficcionais. Nessas obras, tais
como o conto “Cemitério de elefantes”, de Dalton Trevisan, os narradores são
verdadeiros Robinsons à procura obstinada de vencer a alteridade que se lhes
configura. Assim que, para Landowski,

somos todos pequenos Robinsons com pés no chão: somos heróis de


romances que vagamos por mundos em construção, obrigados que
estamos, para advir à existência no interior de nosso próprio texto, a
fazer de nós também construtores de cenários, planejadores
urbanos, geômetras, agrimensores, sinalizadores do espaço – e do
tempo (LANDOWSKI, 2002, p. 70).

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Nesse sentido, a escrita literária dá voz ao Outro, e procura promover um


diálogo com a sociedade a fim de atenuar ou extinguir as fraturas sociais do mundo
contemporâneo, marcadas pela estereotipia, pela injustiça e pela exclusão social. A
literatura oferece essa porta aberta, que produz sentidos, de tal forma que se reflita
sobre as presenças do Outro e se permita a análise e a reflexão da condição humana
das minorias excluídas e que sofrem a ação da estereotipia.
O espaço habitado pelos personagens do conto “Cemitério de elefantes”
comprova que a ficção é um lugar em que o homem pode viver e contemplar, através
dos personagens, a plenitude de sua condição humana, e no qual se torna
transparente a si mesmo.
O espaço da narrativa é um lugar em que o homem, transformando-se
imaginariamente no Outro – no bêbado, no elefante, no louco, no dândi, no camaleão
etc. – e vivendo outros papéis, destaca-se de si mesmo.
Desse modo, a literatura proporciona ao homem uma presença no horizonte –
“que meu próximo seja o Ente por excelência” – e lhe possibilite viver a sua condição
fundamental de ser autoconsciente e livre, capaz de se desdobrar,
caleidoscopicamente, distanciar-se de si mesmo e de objetivar sua própria situação,
responsabilizando-se pelo Outro, conferindo-lhe um Rosto, apreendendo o Outro na
abertura do ser em geral, como elemento singular da sua identidade plural.

Referências

ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro:


Forense Universitária, 2014.
BHABHA, Homi. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis,
Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
CURY, Maria Zilda Ferreira. Novas geografias narrativas. Letras de Hoje, v. 42, n.4.
Porto Alegre, 2007.
LANDOWSKI, Eric. Presenças do outro: ensaios de sociossemiótica. São Paulo:
Perspectiva, 2002.
LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Trad. Pergentino Pivatto et
al. (Coord.). 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2010.
TREVISAN, Dalton. 35 noites de paixão: contos escolhidos. Rio de Janeiro: BestBolso,
2009.

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MACISTE NO INFERNO: O CINEMA NA OBRA DE VALÊNCIO XAVIER

Fernanda Borges1

Valêncio Xavier nasceu em São Paulo, mas viveu durante grande parte de sua
vida no Paraná. Apelidado por Joca Reiners Terron de Frankenstein de Curitiba (em
paralelo a Dalton Trevisan, o Vampiro de Curitiba), escreveu uma série de narrativas
visuais, híbridas. Seus livros contêm fotografias, desenhos, mapas, anúncios
publicitários, excertos de jornal e, também, palavras e frases, claro. Sua sintaxe não é
apenas verbal, mas, sobretudo, visual. Valêncio Xavier foi um artista que trabalhou em
diversas áreas e transitou por inúmeros meios, o que permite que pensemos em uma
poética interartística. Ele faleceu em 2008, deixando-nos várias obras a serem lidas e
redescobertas, pois muitos de seus textos foram publicados em pequenas editoras e
diversas vezes financiados pelo próprio autor. Em 1998 a editora Companhia das Letras
publicou uma reunião de textos do escritor sob o título O mez da grippe e outros
livros2, os quais haviam sido publicados separadamente.
O cinema, além de estar presente na estrutura de muitos textos, também é um
tema abordado pelo autor. Em Maciste no Inferno, publicado primeiramente em 1983
e depois em O mez da grippe e outros livros, acompanhamos os pensamentos da
personagem no cinema e assistimos com ela a trechos da história. A narrativa intercala
imagens do filme de 1925, que dá título à obra, à descrição das cenas, bem como à
narração dos principais acontecimentos do enredo e do constrangimento do homem
que, excitado pelas personagens, pelas cenas que vê na tela e pelo contato com o
braço da moça ao seu lado, masturba-se e sai à francesa do cinema para ninguém
perceber a grande mancha em suas calças...
“Negro como o inferno até acostumar a vista fico em pé as mãos na mureta de
madeira que separa as fileiras de cadeiras da grande porta com cortinas de velludo que
separa a salla de exibições da salla de espera”.3 Um homem vai ao cinema e entra na
sala quando a sessão já iniciou. Ao invés de procurar um bom lugar para se acomodar e
apreciar o filme, como normalmente se costuma fazer com lentidão e cuidado na sala
1
Doutoranda em Teoria da Literatura na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Bolsista CNPq.
E-mail: fernanda_etc@hotmail.com
2
Essa publicação recebeu em 1999 o Prêmio Jabuti de Melhor Produção Editorial.
3
Não há numeração de páginas em Maciste no inferno.

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escura, ele observa especialmente os lugares ocupados: quer se sentar ao lado de uma
mulher. O filme? Talvez não seja o mais importante para esse espectador: “Olho a tela
e nada vejo”, diz ele. Quem vê o filme é o leitor. Aliás, o leitor-espectador assiste a dois
filmes, ou melhor, a um filme somente, mas pensado em montagem paralela:
enquanto o narrador e a personagem assistem a Maciste no Inferno, nós assistimos ao
que se passa nas poltronas e na tela do cinema; vemos o narrador propor um jogo à
moça enquanto ela está mais interessada em descobrir o destino do herói do filme. E,
nós, no terceiro “enquanto”, queremos descobrir todos esses desfechos.
Maciste no inferno é um filme mudo italiano de 1925 dirigido por Guido
Brignone e protagonizado por Bartolomeo Pagano, um dos astros do peplum, gênero
épico italiano; é também um filme de 1962 dirigido por Riccardo Freda, realizador
famoso do gênero e, ainda, é um texto de Valêncio Xavier, de 1983, presente em O
mez da grippe e outros livros, de 1998.

Figura 1 – Maciste em três tempos: 1925, 1962, 1983.4

O filme assistido pelo narrador do texto é o de 19255. As descrições das cenas


na tela são intercaladas às da personagem em sua tentativa de aproximação e de
intimidação da mulher ao lado. Ele não ousa tocá-la, contudo, ao considerá-la bonita e
atraente, cruza os braços para, com a ponta dos dedos, conseguir roçar em sua blusa

4
Fontes: http://letterboxd.com/film/maciste-in-hell/
http://www.moviepostershop.com/maciste-in-hell-movie-poster-1931
http://produto.mercadolivre.com.br/MLB-718068049-raros-maciste-no-inferno-valncio-xavier-
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5
Para assistir ao filme: https://www.youtube.com/watch?v=DiGkUD6f_uc

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de seda. Isso é o suficiente para que o narrador se sinta excitado e comece a se


masturbar ao lado da moça. Ela não tira os olhos da tela e não quer participar de seu
jogo, ameaçando chamar o guarda caso o narrador não fique “quieto”. Mesmo assim,
ele goza e tenta sair discretamente para o banheiro. É o primeiro a deixar a sessão e é
observado pelas pessoas na sala de espera, pois está com o chapéu cobrindo a mancha
úmida nas calças.
Como o narrador entra na sala de cinema após o filme já ter iniciado, os
fotogramas antecedem a sua narração. O filme também antecede as palavras na
narrativa que estamos lendo. Ainda é interessante observar que a primeira página de
Maciste no inferno remete aos filmes que estão ou estarão em cartaz naquela sala de
cinema. Todos os títulos correspondem a filmes da década de 1920 e apresentam certa
conotação erótica: Noite de Amor, Vertigem de Luxo, Caminho da Perdição, Gigolô,
Rouge e Pó de Arroz, Perdida em Paris, Os Mysterios de Hollywood, Bachanal, Sodoma
e Gomorra, Três Noites de D. Juan, Macho e Femea, Maciste no Inferno…
A ausência de pontuação no texto escrito e de paginação no livro demonstra
que ele não se diferencia do texto fílmico, ou seja, explicita que são uma mesma
narrativa, em que imagens e palavras passam a se imiscuir por meio de sua
interpretação e de sua linguagem – um português antigo para um filme antigo
assistido no início do século XX. A mudança no foco narrativo – narração em primeira e
em terceira pessoa – ocorre por meio da mudança na fonte do texto: o filme é narrado
em arial, e as impressões do homem no cinema em letras times new roman em
negrito. Desse modo, os dois pontos de vista podem ser lidos também separadamente.
Além disso, se o Maciste da tela do cinema desce ao inferno ainda em uma
perspectiva heróica e hercúlea, o anti-herói valenciano – ou herói sem moral – vai ao
cinema em busca de prazeres obscuros: no escuro da sala, ele se sente à vontade para
dar vazão ao seu desejo ignorando quase que por completo o filme exibido. A mulher
no cinema representa a tentação do narrador, tentação essa buscada por ele e não
infligida por deuses ou demônios. A montagem dos fotogramas com a narração de
cenas de Maciste no inferno e com a narração da personagem também caracteriza a
atmosfera sensual buscada pelo narrador. A seleção de imagens do filme presentes na
narrativa remete à sedução, ao corpo feminino e à libertação do desejo, características
do inferno retratado na película. Tais fotogramas estão dispostos nas páginas em outra
ordem que não a do filme, ou seja, a montagem que lemos não é exatamente a mesma
a que assistimos. Somente percebi isso, obviamente, ao assistir ao filme no
computador e me deparar com a imagem que abre o texto de Valêncio, a qual está
presente no meio da história de 1925. As mulheres em trajes mínimos constam como

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tentações de Maciste no inferno, mas são a apresentação escolhida por Valêncio Xavier
para o texto que vamos ler.

Figura 2 – A introdução do texto de Valêncio Xavier

No filme Maciste no inferno, Bartolomeo Pagano dá vida ao herói, que nos


remete a Hércules: com bom coração e com braços fortes. A personagem fílmica foi
criada pelo poeta italiano Gabrielle d’Annunzio, que escreveu o roteiro do épico
Cabíria, de 1914. Nesse filme, Maciste não é a personagem principal, mas seus
atributos mitológicos fizeram-no popular a ponto de estrelar outras diversas
produções até os anos de 1960. Na narrativa retomada por Valêncio Xavier, livremente
inspirada em A divina comédia, de Dante Alighieri, o herói é desafiado por Plutão que,
por invejar a força física e moral da personagem, envia o demônio Barbadilha para
provocar Maciste e atraí-lo ao inferno. Lá, ele deve superar a tentação da carne se
quiser voltar à sua vida. Mesmo entre Plutão, os demônios e os condenados, Maciste
se mostra um líder, porém, ao ser beijado por Proserpina, a esposa de Plutão, é
novamente sentenciado a permanecer no inferno. Mas herói que é herói, se não conta
com os seus próprios trunfos, conta com os deuses, com a sorte ou com a vontade do
autor e do público de vê-lo superar tais provas demoníacas. Quando nada mais parece

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poder salvar o paladino, a prece de agradecimento da criança a qual Maciste defendeu


de Barbadilha o faz voltar à Terra. A prece infantil salva o herói do inferno, afinal, ele
precisa viver mais histórias e aventuras no cinema.

Figura 3 – A salvação de Maciste

Os filmes Maciste no inferno de 1926 e de 1962 pertencem ao gênero peplum,


um tipo de gênero épico específico do cinema italiano. Segundo Jacques Aumont e
Michel Marie,

O termo (oriundo do latim peplum, que designa um vestuário)


apareceu na crítica francesa por volta de 1958-1959, para designar
produções italianas populares que representam de forma muito
fantasista personagens da antiguidade greco-romana (AUMONT,
MARIE, 2009, p. 192).

As túnicas características desse período dão nome ao gênero, que retratam


figuras inspiradas na mitologia clássica. Tais produções populares, com baixo
orçamento e com histórias fantásticas e hiperbólicas, influenciaram cineastas
contemporâneos, como Quentin Tarantino, o qual realiza uma paródia do gênero nos
filmes Kill Bill, volumes 1 e 2, em que também se utiliza de referências aos “filmes B”
de artes marciais, por exemplo.

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A tradição do filme que reconstitui a antiguidade é muito precoce no


cinema italiano das origens, até Cabíria (1914) e depois no cinema
americano. Mas o termo “peplum” só se aplica à produção italiana e
ítalo-americana de filmes com temas antigos, do final dos anos 50
aos anos 70. Estes filmes não são superproduções com orçamentos
colossais, mas pertencem antes à categoria do “cinema bis”.
Exploram tanto quanto possível as técnicas de trucagem, o grande
ecrã do Cinemascópio e a cor. As narrativas estão sempre no limite
da paródia e nunca procuram a verossimilhança. O desempenho dos
actores é caracterizado por uma certa desenvoltura. Esta forma de
cinema marca um regresso às “atracções de feira” das origens
(AUMONT, MARIE, 2009, p. 192).

Assim como os pepla não dispunham de um grande orçamento para produção,


o mesmo ocorreu com o cinema e a literatura de Valêncio Xavier. Somente a partir da
publicação de O mez da grippe e outros livros pela Companhia das Letras em 1998, os
textos do autor tiveram um alcance nacional e não mais ficaram restritos a pequenas
editoras de distribuição regional. No entanto, as publicações anteriores somente são
encontradas a preços bastante restritivos, e a edição de Maciste no inferno, de 1983, é
uma raridade.
Se O mez da grippe é definido por seu autor como uma novella, Maciste no
inferno é concebido como raconto. Remetendo ao italiano racconto (conto, em
português), Valêncio Xavier evidencia a sua brincadeira de recontar a história do herói
popular Maciste filmada em 1926. Tem-se, portanto: o filme de Guido Brignone, o
narrador valenciano no cinema e o peplum sob a perspectiva do escritor – gênero de
massa retomado em uma narrativa que prima por escancarar seu caráter ordinário e
barato. Afinal, como não imaginar certa sordidez na poltrona do cinema e nas calças
do narrador?
Se usualmente é a literatura que é levada às telas do cinema, neste texto de
Valêncio Xavier é o cinema que é levado às páginas do livro. Com uma estratégia de
composição que se utiliza da mise en abyme para encaixar as narrativas e as diferentes
linguagens em obras que propõem a iconicidade e a verbalidade como elementos que
se espelham – o texto, de um modo bastante direto, constitui-se, portanto, a partir do
cinema na literatura. Não o cinema intelectualizado e cult ou o cinema hollywoodiano
e repleto de glamour, mas aquele que nos remete puramente ao entretenimento, à
cultura popular, sem grandes orçamentos ou pensamentos: o épico de massa. Em
entrevista com Valêncio Xavier, Ricardo Aleixo sintetiza tal atributo do autor:

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Como quem não quer nada além de se divertir, Xavier testa os limites
de cada gênero, sempre à procura da forma mais adequada a cada
assunto, mas age como quem transita em um ambiente próprio, fora
da literatura reconhecida como tal, esforçando-se por nos fazer crer
que seu conhecimento é ‘de almanaque’, não erudito (ALEIXO, 1998,
p. 3).

No entanto, o conhecimento “de almanaque” presente nos livros de Valêncio


Xavier é bastante enciclopédico em certa medida, pois demanda um leitor-
pesquisador, ou seja, um leitor que busque as referências e as brincadeiras do autor
realmente em um processo investigativo. Esse leitor também se torna híbrido ao ter de
lidar com labirintos e enigmas a fim de compreender tais “narrativas em abismo”. E
isso se constitui como um grande prazer. Em uma noite destinada ao estudo e à escrita
acadêmica, surge a possibilidade de se assistir a um filme de 1925 e de se descobrir um
novo gênero cinematográfico. A escritura limiar de Valêncio Xavier não estabelece
distinções e hierarquias entre palavras e imagens e configura-se não somente como
arte, mas como entretenimento, jogo e, também, literatura: uma literatura mais
eclética, híbrida, popular, lúdica, divertida, livre.

Referências

AUMONT, Jacques ; MARIE, Michel. Peplum. In: Dicionário teórico e crítico do cinema.
Trad. Carla Bogalheiro Gamboa e Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições Texto &
Grafia, 2009.
MACISTE NO INFERNO (Maciste in hell). Produzido por Stefano Pittaluga. Escrito por
Riccardo Artuffo. Dirigido por Guido Brignone. Intérpretes: Bartolomeo Pagano,
Elena Sangro, Lucia Zanussi, Franz Sala et al. 87 min, 1925, mono, preto e branco.
XAVIER, Valêncio. O mez da grippe e outros livros. São Paulo: Companhia das Letras,
1998.
______. “Mez da grippe” revela escritor polígrafo. O Tempo, Belo Horizonte, p. 3, 3
out. 1998. Entrevista concedida a Ricardo Aleixo.

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PRODUÇÃO DISCURSIVA NA AFASIA BILÍNGUE:


ENFOQUE NOS PADRÕES DE RECUPERAÇÃO DAS LÍNGUAS

Fernanda Schneider1

Introdução

No nosso atual contexto, não é exagero afirmar que quase metade da


população mundial é bilíngue ou multilíngue (GIUSSANI, ROUX, LUBRANO, GAINI,
BELLO, 2007; WEEKES, 2010). O bilinguismo é comumente definido como o uso de dois
idiomas ou dialetos na vida diária, independentemente da situação de uso (ANSALDO,
MARCOTTE, SCHERER, RABOYEA, 2008; GROSJEAN, 1994). Definição semelhante é
atribuída a um indivíduo multilíngue que faz uso de três ou mais idiomas ou dialetos.
Na contramão de ser um dado positivo - como na questão do bilinguismo -,
encontramos estimativas que apontam para o crescente número de novos casos de
afasia, muitos deles, afasia bilíngue - o que justifica o enfoque deste estudo. A afasia
consiste na alteração do conteúdo, na forma e no uso da linguagem e de seus
processos cognitivos subjacentes, tais como percepção e memória (ORTIZ, 2010, p. 47)
e pode surgir em decorrência de uma lesão no sistema nervoso central. No Brasil,
apesar de ter aumentado o interesse de pesquisadores que abordam a afasia, ainda
temos lacunas e há muito a ser pesquisado. E no que se refere especificamente à
afasia na população bilíngue, o desafio ainda é maior (SCHERER, 2011), primeiro,
porque existem fatores que influenciam, como idade de aquisição e proficiência;
segundo - e bem importante - devido à existência de dois sistemas linguísticos que co-
operam (FABBRO, 2001). Desse modo, isso deve ser considerado na avaliação e na
terapia tanto da produção quanto da compreensão linguística.
Diante dessas considerações, o presente estudo aborda noções acerca da
produção discursiva na afasia bilíngue. Para isso, partimos da seguinte questão: Qual é
a relação entre o tipo de tratamento e a recuperação das línguas na afasia bilíngue?

1
Doutoranda em Letras - Linguística, com ênfase em Neuropsicolinguística, na Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). É professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Rio Grande do Sul - Campus Ibirubá e bolsista da CAPES (Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).
E-mail: fernanda.schneider.001@acad.pucrs.br

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Para refletirmos sobre essa questão, buscamos respostas nas investigações presentes
na literatura existente, mais especificamente nos estudos de Fabbro (2001), Obler e
Park (2012), Adrover-Roig, Marcotte, Scherer e Ansaldo (2012), Verreyt (2013) e
Ansaldo e Saidi (2014) e no resultado de uma revisão sistemática nas bases de dados
Scielo, Scopus e ScienceDirect. Para tanto, apresentamos, primeiramente, algumas
noções acerca da afasia bilíngue, e na sequência, resultados dos estudos. Por fim,
discutimos esses resultados e apresentamos alguns apontamentos para a questão aqui
abordada.

Processamento discursivo, tratamento e recuperação das línguas na afasia bilíngue

Vários estudos clínicos têm demonstrado que afásicos bilíngues não


necessariamente manifestam as mesmas características, em termos de grau de
gravidade em ambas as línguas. Por essa razão, de acordo com Paradis (1995), já não é
eticamente aceitável avaliar pacientes afásicos em apenas uma de suas línguas.
Entretanto, cabe ressaltar que ainda são poucos, especialmente no Brasil, os
profissionais habilitados para trabalhar com a afasia bilíngue e os instrumentos
disponíveis para a avaliação –mesmo se tratando da afasia monolíngue.
A afasia bilíngue é caracterizada por desordens de natureza linguística. Dentre
essas desordens, destacam-se (SCHERER, 2011): a mistura de códigos (language
mixing) – que é caracterizada pela inclusão de elementos de uma língua na produção
da outra; a troca de códigos (language switching) – o falante inicia sua fala em uma
língua e, em seguida, passa a falar na outra língua, trocando o código inicialmente
utilizado; e problemas relacionados à tradução – que podem acarretar falta de
habilidade em tradução, necessidade de traduzir tudo o que é dito, tradução sem
compreensão ou paradoxal, em que o paciente consegue traduzir para a língua que
não fala de modo espontâneo.
Durante a fase aguda de recuperação, um afásico bilíngue pode apresentar
diferenças drásticas nas línguas, o que resulta numa variedade da dinâmica dos
padrões de recuperação. Lorenzen e Murray (2008) apresentam uma adaptação (Tab.
1) de Paradis (2004) e Fabbro (2001) para sintetizar essas diferenças.

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Tabela 1 - Bilinguismo e afasia


Padrões de Características
recuperação

Paralela Recuperação de línguas paralela às capacidades relativas anteriores à afasia. Se uma


(61%) língua era mais forte, voltaria a ser a mais forte.

Diferencial Uma língua é recuperada de modo muito melhor do que a outra em comparação com as
(18%) habilidades anteriores à afasia.

Antagônica Uma língua está inicialmente disponível; à medida que a outra língua é recuperada, a
inicial é inibida.

Antagonismo Repetição do padrão anterior com as línguas alternando em disponibilidade. Isso pode
alternado ocorrer dentro de ciclos que variam de 24 horas a vários meses.

Mistura (7%) Mistura incontrolável de palavras e construções gramaticais de duas ou mais línguas,
mesmo quando há a tentativa de se falar em apenas uma delas (é diferente da prática
comum de code-switching).

Seletiva (5%) Perda de linguagem somente em uma língua sem déficit mensurável na outra.

Sucessiva Recuperação de uma língua anterior à outra.


Fonte: Lorenzen, Murray (2008)

Na Tab. 1, podemos observar as principais características dos padrões de


recuperação das línguas. A recuperação pode ser paralela, diferencial, antagônica,
antagonismo alternado, mistura, seletiva e sucessiva. Apesar de se ter alguns
indicativos, exatamente o que contribui para o padrão de recuperação ainda é
debatido. O que podemos afirmar é que “compreender as características do discurso
afásico mono- e bilíngue é de fundamental importância para o tratamento”
(SCHERER, 2011, p. 947). Isso porque a recuperação da habilidade discursiva – crucial
no meio familiar e social – possibilita ao afásico melhor interação e consequentemente
sua readaptação social.
Nesse sentido, destacamos um aspecto relacionado ao processamento
discursivo, a ser considerado na afasia bilíngue: o contexto discursivo (SCHERER, 2011).
Faz-se necessário considerar o fato de que bilíngues podem privilegiar uma língua ou
outra, dependendo da situação. Por exemplo, no ambiente familiar o bilíngue utiliza
uma língua e com pessoas que não sejam da família utiliza outra. Como o afásico pode
apresentar dificuldade maior em uma das línguas, isso pode acarretar prejuízo do

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discurso num determinado contexto – o que deve ser observado e considerado pelo
terapeuta.
Assim, ao avaliar o afásico bilíngue, no que diz respeito ao processamento
discursivo, faz-se necessária a observação desses aspectos e é fundamental a
verificação dos elementos indicativos da complexidade e da eficiência da compreensão
e da produção discursiva do paciente a ser avaliado. O que implica, dentre outras
questões, considerar a habilidade de inferenciação, coesão e coerência discursiva,
conteúdo comunicativo e intencionalidade, linguagem não verbal e gestualidade.

Algumas investigações acerca da afasia bilíngue

Ao focar o tema deste estudo, realizamos uma revisão da literatura existente


(Tab. 2) e uma revisão sistemática (Tab. 3). O objetivo era o de verificar evidências da
relação entre o tipo de tratamento e a recuperação das línguas na afasia bilíngue. A
Tabela 2 apresenta 4 estudos relevantes para o tema proposto.

Tabela 2 – Estudos sobre afasia bilíngue


AFASIA BILÍNGUE
TÍTULO AUTORES OBJETIVOS RESULTADOS
1 Impairment Grasemann, Criar métodos computacionais Prediz que a língua mais fraca, a
and Sandberg, que podem complementar a primeira ou a segunda, é menos
Rehabilitatio Kiran, investigação clínica no resistente a danos do que a mais
n in Bilingual Miikkulainen desenvolvimento de uma forte. O modelo de tratamento
Aphasia: A melhor compreensão dos prevê que utilizando a língua
SOM-Based mecanismos subjacentes de menos danificada para tratamento
Model recuperação, e que poderiam beneficia a mais danificada, mas
(2011) ser utilizados no futuro para não vice-versa.
prever o tratamento mais
benéfico para os pacientes, de
modo individual.
2 The Nele Verreyt Explorar o controle da língua Pacientes com afasia diferencial
underlying por bilíngues não afásicos como mostraram priming cross-
mechanism uma função de comutação de linguístico da língua mais afetada
of selective linguagem diária (destacando- para a língua mais preservada. Isso
and se o fato de que o controle da demonstra que a língua menos
Differential língua passa a ser crucial para o recuperada pode ainda influenciar
recovery in estudo da afasia). O segundo o processamento sintático na
bilingual objetivo foi investigar as outra língua. Os resultados estão,
aphasia interações cross-linguísticas e em grande parte, em
(2013) controle cognitivo em conformidade com o modelo
participantes com afasia proposto por Hartsuiker et al.
bilíngue. (2004), e apoiam um controle com
base nos diferentes padrões de
afasia bilíngue.

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Tabela 2 (continuação) – Estudos sobre afasia bilíngue


TÍTULO AUTORES OBJETIVOS RESULTADOS
3 The Study of Obler, Investigar, na literatura Os estudos apresentados sugerem
Bilingual Park existente, qual língua retorna que as questões propostas não são
Aphasia: The primeiro na afasia bilíngue e se de fácil resolução. O que se tem,
Questions essa é a L1 ou a língua mais como resposta, são apontamentos
Addressed usada. e aspectos importantes a serem
(2012) considerados, como o fato de a
língua mais usada próximo ao AVC
ser mais facilmente recuperada.

4 Bilingual Adrover-Roig, Apresentar e refletir a A literatura sugere que a terapia


Aphasia: Marcotte, literatura existente intensiva, especificamente com
Neural Scherer, sobre representação em L1 e foco na disfunção linguística, é a
Plasticity and Ansaldo L2, focando a troca e a mistura chave para a recuperação.
Consideratio na linguagem patológica. Pressupõe-se que o estudo de
ns for estimulação magnética
Recovery transcraniana (TMS) e modelagem
(2012) causal dinâmica (DCM) permitirão
focar o impacto da abordagem
terapêutica como fator que pode
modular a transferência entre as
línguas.

Destacamos desses estudos, alguns aspectos. Grasemann et al. (2011) tinham o


objetivo de criar métodos computacionais que poderiam complementar a investigação
clínica no desenvolvimento de uma melhor compreensão dos mecanismos subjacentes
de recuperação, e que poderiam ser utilizados para prever o tratamento mais benéfico
para os pacientes de modo individual. Como resultado, o modelo (GRASEMANN et al.
2011) fez previsões testáveis.
Em primeiro lugar, os efeitos dos danos do ruído na nomenclatura sugerem
que, na maioria dos casos, o dano cerebral subjacente à afasia, não apenas o
comprometimento, é muito parecido para ambas as línguas. Em segundo lugar, prediz
que a linguagem mais fraca, se é a primeira ou a segunda, é menos resistente a danos
do que a mais forte. O modelo de tratamento prevê que utilizando a linguagem menos
danificada para tratamento beneficia a mais danificada, mas não vice-versa.
Já o estudo de Verreyt (2013) tinha por objetivo investigar as interações cross-
linguísticas e o controle cognitivo em participantes com afasia bilíngue. Como
resultados, destaca-se que os participantes com afasia diferencial mostraram priming
cross-linguístico da língua mais afetada para a língua mais preservada – a língua menos
recuperada pode ainda influenciar o processamento sintático na outra língua. Os
resultados estão, em grande parte, em conformidade com o modelo proposto por

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Hartsuiker, Pickering, Veltkamp (2004), e apoiam um controle com base nos diferentes
padrões de afasia bilíngue.
Por fim, os estudos de Obler e Park (2012) investigaram na literatura existente
qual língua retorna primeiro na afasia bilíngue e se essa é a L1 ou a língua mais usada,
e Adrover-Roig, Marcotte, Scherer e Ansaldo (2012) apresentam reflexões acerca da
representação em L1 e L2, focando a troca e a mistura na linguagem atípica. Os
estudos apresentados (OBLER, PARK, 2012) sugerem alguns apontamentos e aspectos
importantes a serem considerados, como o fato de que a língua mais usada próximo
ao AVC é mais facilmente recuperada (PITRES, 1895 apud OBLER, PARK, 2012). Outro
aspecto relevante é o apego emocional (MINKOWISK, 1963 e KRAPF, 1955 apud
OBLER, PARK, 2012) como fator ligado ao padrão de recuperação das línguas.
Os resultados dos estudos de Adrover-Roig et al. (2012) indicam que a
literatura aponta para o fato de que a terapia intensiva, especificamente com foco na
disfunção linguística, é a chave para a recuperação. Além disso, pressupõem que o
estudo de estimulação magnética transcraniana (TMS – transcranial magnetic
stimulation) e modelagem causal dinâmica (DCM – dynamic causal modelling)
permitirão focar o impacto da abordagem terapêutica como fator que pode modular a
transferência entre as línguas.
Na revisão sistemática, encontramos, a partir das palavras-chave (aphasia and
bilingual and recovery), 84 artigos. A busca foi realizada em 3 bases de dados: Scielo,
Pubmed e ScienceDirect. Ao aplicar os critérios de ano de publicação (2012 a 2015),
enfoque do estudo e excluindo revisões, textos repetidos e adaptações de testes,
chegamos a 5 artigos, conforme pode ser observado na Tabela 3.

Tabela 3 - Resultado das bases de dados


Afasia bilíngue

TÍTULO AUTORES OBJETIVOS RESULTADOS

1 A language teacher in Samar; Investigar o padrão de Os resultados revelaram a recuperação


the haze of bilingual Akbarib recuperação das línguas. não paralela das línguas. O estudo
aphasia: A Kurdish- mostrou que uma combinação de
Persian case (2012) variáveis influentes pode explicar o
padrão de recuperação de línguas pós-
acidente vascular cerebral.

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Tabela 3 (continuação) - Resultado das bases de dados


TÍTULO AUTORES OBJETIVOS RESULTADOS

2 Language Amberber Investigar o efeito do Os resultados demonstraram melhora


intervention in tratamento na segunda - específica da produção após o
French–English língua (L2), para um bilíngue tratamento em L2, e indicam cautela
bilingual aphasia: francês-inglês com afasia, em assumir que ocorrerá transferência
Evidence of limited anteriormente proficiente, 5 de terapia em proficientes bilíngues
therapy transfer anos pós- AVC. altamente motivados. O uso do BAT
(2012) como uma ferramenta de avaliação
cross-linguística é recomendado para
pesquisas na afasia bilíngue.

3 Semantic processing Sebastian, Analisar o efeito da língua Os resultados deste estudo


in Spanish–English Kiran, corrente uso/exposição na demonstraram que os substratos
bilinguals with Sandberg representação neural das neurais da linguagem de recuperação
aphasia (2012) línguas em participantes em pacientes bilíngues com afasia são
afásicos bilíngues (espanhol- semelhantes aos das regiões
inglês) usando uma tarefa de envolvidas por bilíngues típicos,
julgamento semântico. entretanto, incluir regiões adicionais
refletiria uma rede compensatória
para subservir a um processamento de
linguagem bem-sucedido.

4 A Computational Kiran, Aplicar um modelo O estudo sugere como a modelagem


Account of Bilingual Grasemann, computacional para simular computacional pode ser utilizada no
Aphasia Sandberg, um sistema de linguagem futuro para projetar receitas de
Rehabilitation (2013) Miikkulainen bilíngue Inglês-Espanhol em tratamento personalizado que
que representações resultam em uma melhor recuperação
linguísticas podem variar em do paciente.
idade de aquisição e
proficiência relativa nas duas
línguas para modelagem
individual de participantes.

O resultado dos estudos da tabela acima apresenta algumas indicações.


Amberber (2012) sugere que o tratamento pode ter de ser fornecido em cada língua
falada por um bilíngue com afasia. Os estudos de Samara e Akbarib (2012) indicam a
recuperação não paralela das línguas. Kiran et al. (2013) apontam para uma
modelagem computacional que pode ser utilizada no futuro para projetar tratamento
personalizado que resulte em uma melhor recuperação das línguas – o que poderia
também facilitar a escolha do tratamento. A pesquisa de Sebastian, Kiran e Sandberg
(2012) demonstrou que os substratos neurais da linguagem de recuperação em
pacientes bilíngues são semelhantes aos das regiões envolvidas por bilíngues normais,
entretanto incluir regiões adicionais refletiria uma rede compensatória para subservir
a um processamento de linguagem bem-sucedido que também pode ser considerado.

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Diante das investigações e resultados dos estudos, o que se pode afirmar é que
apesar do crescente número de pesquisas (ex. Tab. 2 e Tab. 3) sobre a afasia bilíngue,
ainda é difícil garantir se é vantajoso o paciente receber tratamento em apenas uma
ou nas duas línguas, ou se a opção por uma língua gera benefícios na recuperação da
língua não tratada.

Considerações finais

Como mencionamos anteriormente, ao focar o tema deste estudo, realizamos


uma revisão da literatura existente a fim de verificar evidências da relação entre o tipo
de tratamento e a recuperação das línguas na afasia bilíngue. Apresentamos alguns
estudos considerados relevantes para o tema proposto, presentes em obras
publicadas, e, além disso, realizamos uma revisão sistemática em bases de dados, a fim
de verificar estudos e buscar respostas para a questão abordada.
Partindo-se das reflexões e das investigações apresentadas: qual seria a relação
entre o tipo de tratamento e a recuperação das línguas na afasia bilíngue? O que pode
ser verificado é que apesar do crescente interesse pelo tema, os resultados ainda não
são suficientes para afirmar se é vantajoso o paciente receber tratamento em apenas
uma ou nas duas línguas, ou se a opção por uma língua gera benefícios na recuperação
da língua não tratada. Considerando-se que cada afásico é diferente, o que podemos
afirmar é que a avaliação, o tratamento do processamento discursivo e a recuperação
das línguas, no caso de um bilíngue, oferecem desafios a pesquisadores e terapeutas.
O grande desafio talvez seja o de se desenvolverem estratégias comunicativas
compensatórias, que proporcionem ao afásico a possibilidade de reinserir-se em seu
meio social, familiar e até mesmo profissional, apesar de suas limitações linguísticas.

Agradecimentos: Ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul – IFRS
(Campus Ibirubá) pela concessão à primeira autora de afastamento total para capacitação e à
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, pela bolsa de estudos.

Referências

ADROVER-ROIG, D., et al. Bilingual aphasia: neural plasticity and considerations for
recovery. In.: GITTERMAN, M. R.; GORAL, M.; OBLER, L. K. Aspects of Multilingual
Aphasia. Bristol, UK: Multilingual Matters, 2012.
AMBERBER, A. M. Language intervention in French–English bilingual aphasia: Evidence
of limited therapy transfer. Journal of Neurolinguistics, v. 25, p. 588–614, 2012.

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ANSALDO, A. I. et al. Language therapy and bilingual aphasia: clinical implications of


psycholinguistic and neuroimaging research. Journal of Neurolinguistics, 2008.
FABBRO, F. The bilingual brain: bilingual aphasia. Brain and Language, v. 79, n. 2, p.
201-210, 2001.
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Based Model. Presented at the 8th Workshop on Self-Organizing Maps, (WSOM
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GIUSSANI, C. et al. Review of language organization in bilingual patients: what can we
learn from direct brain mapping? Acta Neurochirurgica, 2007.
GROSJEAN, F. Individual bilingualism. In: ASHER, R. E. (Ed.). The encyclopedia of
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HARTSUIKER, R. J.; PICKERING, M. J.; VELTKAMP, E. Is syntax separate or shared
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MAUS – UM ROER PÓS-MODERNO DO HOLOCAUSTO

Gabriel Felipe Pautz Munsberg1

Um dos mais promissores e visitados trabalhos das narrativas pós-modernas é o


lançar-se à procura de respostas em um cotidiano extremamente fragmentado e
solúvel que, posto frente ao passado traumático do século XX, não consegue
sustentar-se sem exprimir o próprio padecimento da existência contemporânea. A
vasta literatura baseada na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) é demonstração da
insistente dúvida em relação, não só ao passado macabro dos prisioneiros dos campos
de concentração, mas também à própria condição humana dos dias atuais, pois o
Holocausto parece, por vezes, não ter sido um evento traumático o suficiente para que
a humanidade como um todo percebesse sua errância contra o próprio homem. Em
Maus – a história de um sobrevivente ([1991] 2009), Art Spiegelman realiza o pesado
trabalho da investigação do passado de seu pai, um judeu polonês, em Auschwitz e,
através do consciente uso de linguagens, expressa sua própria situação como sujeito
pós-moderno, fruto das inquietações subjugadas pelo Holocausto. Ao tentar penetrar
no denso campo do Holocausto, o indivíduo se vê preso em um labirinto e retorna ao
ponto inicial de sua confusão.

O resgate da história

A releitura crítica da história é uma das funções propostas pelas narrativas


históricas, as quais se valem de vozes por vezes ignoradas e informações negadas pela
História2. Ao pensarmos a História como um aglomerado de histórias particulares
(“histórias de ALGO”, como chama Guarinello, 2004) em uma sequência específica que

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura, linha de Teoria, Crítica e
Comparatismo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com fomento do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
E-mail: gabriel_munsberg@yahoo.de
2
O uso de História, com H maiúsculo, ocorrerá neste artigo para realizar fácil distinção da história real,
conjunto de experiências vividas que envolvem o sujeito e que constituem seu passado e presente. Ao
grafarmos História com letra maiúscula pretendemos também conceder-lhe a classificação de ciência,
disciplina escolar, como o faz Norberto Luiz Guarinello, em seu artigo “História científica, história
contemporânea e história cotidiana” (2004), ao discutir os impasses da história contemporânea como
disciplina científica.

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resulte em unidades de sentidos coerentes para a descrição e explicação de tais fatos,


conclui-se que a História não possui um olhar abrangente sobre toda a história
humana. O trabalho dos historiadores acaba sendo, dessa forma, questionado, uma
vez que,

na tentativa de dar conta dos processos históricos, buscam os


recursos da abordagem literária, referem-se à literatura como ficção
ou como narrativa, em geral usando os dois termos como
equivalentes, mas não aludem especificamente à ficção de caráter
histórico, campo em que o problema já existia muito antes da atual
tendência de aproximação dos estudos históricos e literários
(WEINHARDT, 1995, p. 49).

Porém a problematização da narrativa histórica conter a verdade histórica é


refutada logo de início, visto “que todas as formas de resgate do passado são
permeadas pela consciência de que a construção verbal não é o fato e não é ingênua”
(idem, p. 49). O acontecimento está ligado diretamente à experiência, ao passo que ao
ser tratada com linguagem, que é falha, se torna ficção. E, sendo assim, o pensamento
contemporâneo sobre o histórico é um pensamento crítico e contextualizador da
história (HUTCHEON, 1991). A História, como ciência, ignora esta problemática da
linguagem, tratando seu texto como a representação da experiência.
Entre a necessidade e a impossibilidade de relatar as histórias particulares, o
testemunho surge como um paradoxo contemporâneo da representação da
experiência, pois existe neste encontro a complexidade do evento com a linguagem,
ou seja, a linguagem não consegue dar conta do real, porém, por sua vez, nos obriga a
rever as noções herdadas pela História. Sobre tal representação da experiência,
Giorgio Agamben atualiza, em Infância e história (2006), a discussão de sua
decadência, colocada em crise já por Walter Benjamin desde a Primeira Guerra
Mundial. No ensaio “Experiência e pobreza”, de 1933, o crítico alemão relata que os
combatentes voltavam dos fronts "mais pobres em experiências comunicáveis, e não
mais ricos" (BENJAMIN, 2012, p. 115), apesar de toda gama de experiências e
estratégias às quais foram expostos, ou seja, a experiência da guerra não se reflete
beneficamente na experiência de vida dos soldados. Dessa forma, a experiência
coletiva – Erfahrung3 – entra em vias de extinção para Benjamin. Por sua vez, Agamben

3
A Erfahrung, dentro dos conceitos benjaminianos, é o conhecimento obtido e acumulado através de
uma experiência empírica, como em uma viagem (o verbo erfahren, em alemão, pode significar "saber"
ou "sofrer"; quando adjetivado, significa "experimentado"), analisado sempre em confronto com

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define a experiência já como destruída pela “pacífica existência cotidiana em uma


grande cidade” (AGAMBEN, 2005, p. 22), pois ela nada tem mais a oferecer como
traduzível à experiência.
Notavelmente, a representação da experiência só se dá pelo verbo, logo, trata-
se de ficção. Por mais que a narrativa baseie-se em acontecimentos4 e personagens
históricas, ela não conterá a “verdade” da experiência relatada. Sendo assim, a
literatura trabalha com a linguagem – e suas falhas – para contar a história em texto. A
narrativa pós-moderna é, nesse sentido, posicionada fora do polo central de poder5,
sendo este pulverizado às vozes marginalizadas e questionadoras dos conhecimentos
e, até mesmo, dos fatos. Tal qual na geometria, a excentricidade joga a verdade para
fora de um eixo central e a pulveriza às suas margens, de forma que surgem novas
verdades fragmentadas que interrogam e discutem o monopólio narrativo, detentor
da voz narrativa tida como única. Isso não quer dizer que o pós-modernismo rejeite o
conhecimento anterior, mas sim que pretende, por sua vez, subvertê-lo em sua
constância. Mais do que isso, não se nega a existência de um centro, mas sim se
concede a esse ponto a qualidade de ser indispensável à relativização das histórias.
O uso do testemunho na literatura, por exemplo, propõe expor experiências
individuais ao mesmo tempo em que analisa a versão oficial dos fatos narrados em
dimensão coletiva. Esta passa a ser, inclusive, uma das ocupações da literatura
contemporânea, posterior aos grandes eventos traumáticos do século XX.

Se a arte e a literatura contemporâneas têm como seu centro de


gravidade o trabalho com a memória (ou melhor, o trabalho da
memória), a literatura que situa a tarefa do testemunho de seu
núcleo, por sua vez, é a literatura par excellence da memória. Mas
não de simples rememoração, de “memorialismo”. Antes, essa
literatura trabalha no campo mais denso da simultânea necessidade
do lembrar-se e da sua impossibilidade; para ela não há uma mera
oposição entre memória e esquecimento (SELIGMANN-SILVA, 2003,
p. 388).

Erlebnis, o qual significa um conceito de vivência (erleben, em alemão, é o verbo que remete a "viver"
ou "presenciar").
4
Linda Hutcheon (1991) utiliza o termo “acontecimento” referente ao evento empírico, que aconteceu.
Ao relatar-se sobre determinado acontecimento, utiliza-se, então, o termo “fato”.
5
Toma-se aqui o conceito de Lyotard sobre poder: "este não é somente o bom desempenho, mas
também a boa verificação e o bom veredicto. O poder legitima a ciência e o diretor por sua eficiência, e
esta por aquelas. Ele se autolegitima como parece fazê-lo um sistema regulado sobre a otimização de
suas performances" (LYOTARD, 1986, p. 84).

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Márcio Seligmann-Silva aponta, ainda, que a historiografia tradicional coloca-se


como ciência do passado, substituindo a experiência pessoal e rejeitando a memória
coletiva. Contra este poderio da História, o qual reproduz o distanciamento entre
experiência e sujeito pós-moderno, se pretende utilizar a força do trabalho da
memória, uma vez que ela “a um só tempo destrói os nexos (na medida em que
trabalha a partir de um conceito forte de presente) e (re)inscreve o passado no
presente” (idem, p. 389).

Relatar o Holocausto

Recontar os horrores da Segunda Guerra Mundial, particularmente o


Holocausto, é uma atividade que tem sido cada vez mais utilizada pelos descendentes
dos participantes destes acontecimentos para buscar por compreensão e
entendimento do que se passou nos campos de concentração e, em especial, do que
tais eventos acabaram por influenciar na vida atual dos seus sobreviventes. Veronika
Zangl, em Poetik nach dem Holocaust (Poética após o Holocausto, em tradução livre,
2009), aponta três categorias de pensadores quanto às suas posições referentes à
representação do Holocausto. Os primeiros dizem que o Holocausto não deve ser
representado sem que haja uma necessidade por parte das vítimas do evento. Os
segundos afirmam que não se pode representar o Holocausto, levando em
consideração a impossibilidade de discutir tal tema. O último grupo vê na
representação do Holocausto um problema técnico, pois existe uma tentativa de
expressar a experiência particular como o coletivo em um quadro interpretativo já
socialmente constituído, porém isto se tornou impossível no momento em que os
nazistas, através do terror, exterminaram a condição de grupo nos campos de
concentração6.
Assim, o cartunista sueco naturalizado norte-americano Art Spiegelman, filho
do judeu polonês Vladek Spiegelman, sobrevivente do Holocausto, realiza esse
trabalho em sua obra Maus – A história de um sobrevivente ([1986-1991] 2009), na
qual as lembranças de seu pai desde antes do início da guerra até a liberação dos
prisioneiros dos campos de concentração de Auschwitz e Dachau são apresentadas

6
“Os chamados man made disasters [desastres produzidos pelo homem], como o Holocausto, a guerra e
as perseguições políticas e étnicas, objetivam a aniquilação da existência histórica e social do homem
através de diferentes maneiras de desumanização e destruição da sua personalidade. Pode não ser
possível para um indivíduo isolado inserir esse tipo de experiência traumática em um contexto narrativo
por meio de um ato idiossincrático, pois, para isso, é preciso também uma discussão social sobre a
verdade histórica do acontecimento traumático e sobre a negação e a defesa em face dele” (BOHLEBER,
2007, p. 169).

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envoltas no relacionamento de pai e filho e nas problemáticas da própria


representação literária – logo, ficcional – de ambos os eventos.
Ao retroceder ao passado de seu pai e tentar racionalizar a situação da
comunidade judaica durante o Holocausto, Art Spiegelman reflete também a sua
própria existência como judeu, então radicado nos Estados Unidos, durante os anos 80
e 90. A partir das memórias de Vladek, Spiegelman relê e reavalia a história dos judeus
europeus durante a guerra, reordenando assim aquilo que lhe falta como experiência,
visto que nasceu em 1946 na Suécia e não esteve nos campos de concentração. A falta
de experiência é sentida pelo personagem-narrador, não apenas por não ter memória
dos fatos, mas também por ser um descendente direto de sobreviventes do
Holocausto:

Sei que é maluquice, mas até que eu gostaria de ter estado em


Auschwitz com meus pais para poder saber mesmo tudo o que
sofreram! ... acho que é algum tipo de culpa por não ter passado pelo
que eles passaram no campo de concentração (SPIEGELMAN, 2009,
p. 176).

As tentativas de relatar fatos ocorridos nos campos de concentração são falhas,


tendo em vista questões como o uso da memória e da linguagem para suas
construções. A memória, como faculdade que conserva imagens dos acontecimentos
que sucederam, constitui-se como função social ao utilizar a linguagem para comunicar
e expandir suas experiências, ou seja, torna-se produto da sociedade. Sendo assim,
não há opção viável de transmissão de memórias sem que haja “perdas” de realidade
factual ao desenvolvê-la em linguagem.
Ao final dos livros, o leitor descobre que Vladek, responsável pelas memórias,
sofre do Mal de Alzheimer. Ao receber a visita de Art, Vladek reage com surpresa e
nega lembrar-se do telefonema do filho no dia anterior para conversarem ainda sobre
o final da guerra: “A guerra... iá, disso ainda me lembro” (idem, p. 288). Logo, o leitor
gera suspeitas sobre as lembranças do sobrevivente, pois não é possível ter certeza de
suas afirmações. Jacques Le Goff, ao discorrer sobre a memória no campo das ciências
sociais, afirma que a perda de memória manifesta-se também na linguagem, como
uma afasia, e

num nível metafórico, mas significativo, a amnésia é não só uma


perturbação no indivíduo, que envolve perturbações mais ou menos
graves da presença da personalidade, mas também a falta ou a
perda, voluntária ou involuntária, da memória coletiva nos povos e

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nas nações que pode determinar perturbações graves da identidade


coletiva (LE GOFF, 1996, p. 425).

Tal suspeita já pode ser levantada no momento em que Vladek, quando, ao


comentar sobre as marchas às quais os prisioneiros eram submetidos ao irem
trabalhar, é lembrado por Art da orquestra que, supostamente, tocava nos campos de
concentração. O pai diz lembrar-se apenas de marchar, dos gritos e tiros dos nazistas e
nega a existência de uma orquestra:

ART: Li sobre a orquestra que tocava quando vocês saíam do campo...


VLADEK: Orquestra? ... Só lembro de marchar. Não de orquestra...
Guardas acompanhava nós do portão até oficina. Como podia ter
orquestra ali?
ART: Sei lá. Mas está bem documentado...
VLADEK: Não. Só ouvia era as guardas gritando (SPIEGELMAN, 2009,
p. 214).

Quanto a isto, abrem-se duas suposições: ou não existiam orquestras nos


campos de concentração, o que negaria a versão oficial da História, ou que a memória
do prisioneiro não absorveu acontecimentos banais do Lager, como a cotidiana
marcha ao trabalho ao som de uma orquestra. Em outro momento, até mesmo o
tempo do que é narrado acaba não batendo com o tempo total de Vladek em
Auschwitz:

ART: Quanto tempo passou na quarentena ensinando inglês?


VLADEK: Uns dois meses... Foi bom, eu...
ART: Você já contou. Quantos meses você trabalhou na funilaria?
VLADEK: Tempo de funilaria mais sapataria... total cinco ou seis
meses.
ART: E três meses de trabalho forçado.
VLADEK: Iá... não! Agora eu lembra... Depois eu fiquei mais dois
meses no funilaria com Yidl... eles...
ART: Espere! São doze meses. Você falou que tinha ficado dez!
VLADEK: É? Então é menos tempo de trabalho forçado. Lá nós não
usa relógio... (idem, p. 228)

Percebe-se aqui que o período de trabalho forçado ao qual Vladek foi


submetido pode, conforme sua última fala, ter sido menor do que pensava ser
anteriormente. Isso reflete também o poderio da violência contra a saúde mental dos
prisioneiros, uma vez que mesmo uma escala invariável como o tempo acaba sofrendo

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variações a partir das narrativas do sobrevivente, a fim de que o conjunto total seja
tomado como verossímil.
O psicanalista alemão Werner Bohleber, ao tratar da especificidade da
importância da reconstrução do passado no tratamento analítico, aborda também a
recordação coletiva do Holocausto e seus resultados ulteriores, assim como o
esquecimento encontrado nos relatos de seus sobreviventes:

É bem verdade que essas recordações traumáticas estão sujeitas a


enganos e a processos de esquecimento ao longo do tempo, como
ocorre com qualquer outro tipo de recordação. No caso de
acontecimentos com grande intensidade emocional [..] aspectos
centrais do evento e da vivência são mais lembrados do que detalhes
que não têm relação com o núcleo do evento. O fator decisivo neste
caso é o eu, que deve ser capaz de manter atuante pelo menos sua
função de observação durante o evento traumático (BOHLEBER,
2007, p. 162).

Representar o Holocausto

Além da problematização sobre a recuperação de eventos traumáticos através


da memória de personagens dos mesmos, Maus demonstra em sua arquitetura
narrativa um problema maior, pois se trata de uma graphic novel e, como tal, utiliza de
elementos gráficos constantemente carregados de metáforas, distanciando-se
naturalmente da realidade a que se propõe um texto memorial. A metáfora possui
uma associação de semelhança implícita entre os elementos da realidade e da ficção,
ou seja, realiza a transposição de um significado para outra palavra ou, no caso das
narrativas imagéticas, a objetos visuais. Cabe ao leitor realizar o processo de
interpretação do objeto instituído pelo autor da ficção.
O fator estético desta obra convém para uma análise crítica sobre uma obra de
cunho memorial, a qual pretende constituir-se como parte de uma realidade.
Spiegelman projeta os personagens de Maus como animais conforme suas
nacionalidades: alemães são gatos, norte-americanos são cães, poloneses são porcos,
franceses são sapos e os judeus, independentemente de sua nacionalidade, são
representados por ratos. Percebe-se nesta última projeção – a principal da narrativa –
que Spiegelman trata os judeus não necessariamente como membros de uma
nacionalidade à parte, mas se apropria da propaganda nazista, na qual o povo judeu
era simbolizado por ratos, uma vez que deveria expor a epidemia especulativa

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comercial deste povo que supostamente era o responsável pelos males que a
Alemanha atravessava e que, como tal, deveria ser extirpado7.
O rato, conhecido por ser um animal sujo e de comportamento furtivo,
podendo viver em esgotos e invadir residências, acaba por representar uma etnia
considerada, tal qual o animal, como uma praga aos olhos do regime nacional-
socialista, exposto por gatos, predadores naturais dos camundongos. Este
antropomorfismo é reforçado também pela citação de Adolf Hitler como prefácio do
primeiro capítulo do livro: “Sem dúvida, os judeus são uma raça, mas não são
humanos” (SPIEGELMAN, 2009, p. 10). Ou seja, Spiegelman apropria-se em sua
narrativa da posição dada ao judaísmo na propaganda nazista, porém o que o leitor
encontrará é o rompimento com o ideário de que judeus sejam sempre mesquinhos e
sujos, mas que possuam variadas qualidades, tanto positivas quanto negativas, de
forma individual. O uso da propaganda nazista como forma de expressão na narrativa,
a qual pretende sobretudo indagar, é prova do (re)uso do centro, uma vez que a partir
da mesma linguagem do colonizador é possível questionar sua colonização. Esta
utilização do linguajar do colonizador também é encontrada na epígrafe do segundo
volume de Maus – E aqui meus problemas começaram, momento em que o autor traz
trechos de um artigo de jornal da região alemã da Pomerânia, datado de 1930, no qual
o judeu é novamente exemplificado como um rato, neste caso, Mickey Mouse8:

Mickey Mouse é o ideal mais lamentável de que se tem notícia [...] As


emoções sadias mostram a todo rapaz independente, todo jovem
honrado, que um ser imundo e pestilento, o maior portador de
bactérias do reino animal, não pode ser o tipo ideal de animal [...]
Abaixo a brutalização do povo propagada pelos judeus! Abaixo
Mickey Mouse! Usem a Suástica! (idem, p. 164).

7
A pesquisadora Jeanne Marie Gagnebin analisa que, segundo tendências que Max Horkheimer defende
em seu artigo Die Juden und Europa (Os judeus e a Europa, 1939), “o anti-semitismo decorreria da
necessidade, para o capitalismo monopolista do Estado, de lutar contra formas de capital comercial e
financeiro independentes, tais quais os empreendimentos judeus” (GAGNEBIN, 2003, p. 90).
8
Sobre Mickey Mouse, Walter Benjamin escreve em seu breve artigo “Zu-Micky Maus” ([1931] 1991)
sobre como os seres humanos tinham, desde então, uma representação, através do camundongo de
Walt Disney, de como se poderia persistir no mundo sem a experiência. Tal ausência de experiência não
era definida necessariamente pelas guerras, mas sim pelo cotidiano com sua rotina que expropria o
pensamento e os valores humanos. Benjamin ressalta, em seu ensaio “A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica”, escrito entre 1935 e 1940, que nos filmes contemporâneos da Disney é
revelada uma “tendência a aceitar confortavelmente a bestialidade e a violência como aparições que
acompanham a existência” (BENJAMIN, 2013, p. 85). Poucos anos após estes textos, os prisioneiros de
guerra, principalmente os judeus, encontravam-se precisamente sem similitude ao humano nos campos
de concentração, sendo que as construções sociais eram banalizadas e, muitas vezes, inexistentes
durante o confinamento militar.

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Permeado de desenhos antropomorfizados, vale destacar o uso de fotos reais


de Anja, Richieu e Vladek Spiegelman na obra. Uma foto de Anja com o próprio Art
aparece na reprodução dos quadrinhos de Prisioneiro do Planeta Inferno, publicada
anteriormente na revista Short Order Comics de 1973, narrativa na qual Spiegelman
trata do suicídio de sua mãe e de seu sentimento de culpa. A dedicatória do segundo
volume de Maus possui também uma foto de Richieu, o irmão morto durante a guerra.
Por fim, um retrato de Vladek usando o uniforme listrado, típico dos prisioneiros nos
campos de concentração, é oferecido ao leitor quase ao final da obra. Da mesma
forma que este retrato foi utilizado por Vladek para mostrar a Anja que estava vivo
após a guerra, o leitor recebe a imagem como uma amostra de realidade à qual a obra,
em seu objetivo maior, pretende dar-se.
Sobre esta foto justifica-se uma discussão maior. Logo após o término da
guerra, Vladek está a salvo na Alemanha buscando informações sobre sua esposa e, ao
passar por um salão fotográfico em que há um uniforme de prisioneiro, resolve
fotografar-se para, posteriormente, enviar a foto para Anja. Qual a razão que leva um
sobrevivente dos campos de concentração de Auschwitz e Dachau a fotografar-se,
meses após sua libertação, com um uniforme semelhante ao utilizado por ele quando
prisioneiro? É de se imaginar que os traumas vividos dentro dos campos de
concentração ultrapassam os limites que um ser humano possa aguentar e, por vezes,
são necessários outros meios para confirmar o passado que, apesar de marcado
literalmente na pele em formato de número de registro, insiste em ser negado. Tal
foto exprime, assim, um par de certezas aos envolvidos, principalmente para o próprio
Vladek, frente ao apagamento de todo um povo pelo genocídio escancarado através,
não somente dos atos, mas também das vozes dos soldados nazistas nos campos de
concentração:

Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocês nós ganhamos;
ninguém restará para dar testemunho, mas, mesmo que alguém
escape, o mundo não lhe dará crédito. Talvez haja suspeitas,
discussões, investigações de historiadores, mas não haverá certezas,
porque destruiremos as provas junto com vocês. E ainda que fiquem
algumas provas e sobreviva alguém, as pessoas dirão que os fatos
narrados são tão monstruosos que não merecem confiança: dirão
que são exageros e propaganda aliada e acreditarão em nós que
negaremos tudo, e não em vocês. Nós é que ditaremos a história dos
Lager (LEVI, 2004, p. 9).

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As fotos, constituintes dos novos arquivos familiares – “a iconoteca da memória


familiar” –, trazem “uma precisão e uma verdade visuais nunca antes atingidas,
permitindo assim guardar a memória do tempo e da evolução cronológica” (LE GOFF,
p. 466) e possuem peso de realidade factual. Da mesma forma, a inserção de
documentos verídicos em uma obra de ficção propõe uma aproximação à realidade,
ainda mais quando sua trama envolve-se tão diretamente com a proposta de
representar a realidade. Maus, apesar de classificado também como “biography” em
suas versões originais em inglês, é uma obra de ficção e, como tal, não reproduz a
realidade factual, mas sim representa a realidade. Por mais realista que seja uma
narrativa, ela nunca conseguirá ser real.
A frase, provavelmente, mais conhecida de Theodor Adorno – “Escrever um
poema após Auschwitz é um ato de barbárie, e isso corrói até mesmo o conhecimento
de por que hoje se torna impossível escrever poemas” (ADORNO, 1998, p. 26) –
remete à impraticabilidade de poesia após os campos de concentração, porém não no
sentido de ser a arte uma instância impossível de ser executada. Adorno aponta,
assim, a barbárie do esquecimento proposto pelo entretenimento sem crítica e
ressalta, em Negative Dialektik [Dialética negativa, 1966], sua crítica contra a doutrina
que a esfera cultural propõe (ou deixa de propor) com sua máquina de entretenimento
ao relegar Auschwitz:

Que isso possa ter acontecido no meio de toda tradição da filosofia,


da arte e das ciências do Esclarecimento, significa mais que somente
o fato desta, de o espírito, não ter conseguido empolgar e
transformar os homens. Nessas repartições mesmas, na pretensão
enfática à sua autarquia, ali mora a não-verdade. Toda cultura após
Auschwitz, inclusive a crítica urgente a ela, é lixo (ADORNO apud
GAGNEBIN, 2003, p. 99).

Narrar o Holocausto

O leitor de Maus percebe na obra a constante insistência de Art Spiegelman em


tratar do assunto Holocausto, mas também em demonstrar o caminho percorrido por
ele próprio na execução deste processo penoso, tanto para ele quanto para seu pai.
Lançada inicialmente em capítulos esparsos na revista Raw desde 1980, a graphic
novel é dividida em dois volumes: My father bleeds history (Meu pai sangra história) e
And here my troubles began (E aqui meus problemas começaram), publicados por sua
vez em 1986 e 1991, respectivamente. Por esta razão, o segundo volume de Maus

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apresenta também a visão do cartunista após o sucesso de sua obra, realizando assim
uma atividade metatextual, mais nítida e frequente em sua narrativa.
Logo na primeira página de E aqui meus problemas começaram, Spiegelman
retrata sua dúvida em como desenhar sua esposa francesa que se converteu ao
judaísmo:

FRANÇOISE: O que você está fazendo?


ART: Tentando descobrir como desenhar você...
FRANÇOISE: Quer que eu pose?
ART: Não, é para meu livro. Que animal você vai ser?
FRANÇOISE: Quê? Uma rata, lógico.
ART: Mas você é francesa!
FRANÇOISE: Bom... Que tal a coelhinha?
ART: Nah. É dócil demais.
FRANÇOISE: Hmmf.
ART: Estou pensando nos franceses em geral. Todos aqueles séculos
de antissemitismo. Pense no caso Dreyfus! Nos colaboradores
nazistas! Nos...
FRANÇOISE: Ok! Mas... Se você é rato, eu também devia ser. Afinal,
eu me converti!
ART: Já sei! ... Quadrinho 1: meu pai pedalando na ergométrica...
Chego e digo que me casei com uma sapa... Quadrinho 2: ele cai
desmaiado, em choque. Aí a gente fala com um rato rabino. Ele diz
umas palavras mágicas e zap! ... no fim da página a sapa se
transformou numa linda rata! (SPIEGELMAN, 2009, p. 171-172).

Pouco adiante, quando o personagem de Art relata a Françoise sua pretensão


de relatar a relação de Vladek com Auschwitz e o Holocausto, mesmo sem conseguir
entender a própria relação com o pai, fica evidente sua preocupação em “reconstruir
umas realidade pior do que os meus sonhos mais pavorosos. E ainda por cima em
quadrinhos!” (idem, p. 176). A arquitetura narrativa de Spiegelman mostra por si só
como é problemática ao tentar dar conta de uma realidade tão complexa como o
Holocausto pela própria dificuldade estética e construção de diálogos, no qual a voz de
Art é exposta por três páginas sem suspensão: “Na vida real, você nunca ia me deixar
falar isso tudo sem me interromper” (idem, p. 176).
No capítulo seguinte, Art surge desenhado desta vez não mais como um rato,
mas semelhante a um humano usando uma máscara de rato, enquanto fala sobre a
vida de Vladek, sua própria vida, sobre o processo de escrita do referido capítulo (“Eu
comecei essa página no finzinho de fevereiro de 87”; idem, p. 201), dados sobre os
mortos no Holocausto e do primeiro volume de Maus. Logo, repórteres, todos

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semelhantes a humanos, mas igualmente usando máscaras de diferentes animais


(gatos, cães, ratos) invadem a cena e realizam uma conferência sobre o livro,
pressionando Art através de perguntas até que ele diminua em tamanho e chore,
levando-o a uma consulta com Pavel, seu psicólogo. Pavel é um judeu tcheco que
sobreviveu aos campos de concentração de Terezin e Auschwitz, mas também é
retratado como um ser humano usando uma máscara de rato. Ao possuir remorso
sobre ter, talvez, exposto seu pai ao ridículo ao retratá-lo praticamente como o
estereótipo do judeu rabugento em Meu pai sangra história, Art pensa que seu
trabalho de contar sobre o Holocausto não é válido no momento em que não dá real
voz às vítimas do evento, mesmo que trabalhando a partir das entrevistas gravadas
com seu pai, a ponto de citar o escritor Samuel Beckett: “Toda palavra é como uma
mácula desnecessária no silêncio e no nada” (idem, p. 205). Porém, é esta mesma
frase que lhe demonstra o paradoxo da escrita, pois Beckett teve que transformar seu
pensamento exatamente em linguagem: “ele FALOU isso” (idem, p. 205).

Conclusão

De modo geral, Maus expõe a complexidade da rememoração do Holocausto.


Apesar do testemunho de um sobrevivente dos campos de concentração, a narrativa
não consegue constituir-se fielmente ao acontecimento empírico do Holocausto. Em
virtude do trabalho da linguagem, a experiência torna-se ficção e pontua o paradoxo
da história. O processo do testemunho e da memória, também exercidos através da
linguagem, mostra-se falho, por vezes incompleto, e coloca toda a narrativa em
dúvida. Como reflexo do pós-moderno, a subversão dos centros de poder é acionada
pela arquitetura narrativa de Art Spiegelman que, mobilizado, demonstra sua
deliberada labuta de questionar o fato da mesma forma que o acontecimento, no
incômodo roer das memórias.

Referências

ADORNO, Theodor. Crítica à cultura e à sociedade. In: ADORNO, Theodor. Prismas.


Trad. A. Werner e J. Mattos Brito de Almeida. São Paulo: Ática, 1998.
AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história.
Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Trad.
Gabriel Valladão Silva. Porto Alegre: L&PM, 2013.

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BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012.
BENJAMIN, Walter. Zu Micky-Maus. In: BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, [1931] 1991. p. 460-462.
BOHLEBER, Werner. Recordação, trauma e memória coletiva: a luta pela recordação
em psicanálise. Trad. Edith Vera Laura Kunze. Revista Brasileira de Psicanálise, São
Paulo, v. 41, n. 1, p. 154-175, mar. 2007.
ESTEVES, Antônio. O romance histórico brasileiro contemporâneo. São Paulo: UNESP,
2010. p. 17-43.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Após Auschwitz”. In. SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.).
História, memória, literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. Campinas:
Editora da UNICAMP, 2003. p. 89-110.
GUARINELLO, Norberto Luiz. História científica, história contemporânea e história
cotidiana. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 24, n. 48, p. 13-38, 2004.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro:
Imago, 1991.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad. Bernardo Leitão [et al.]. Campinas: Editora
da UNICAMP, 1996.
LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Trad. Luiz Sérgio Henriques. São Paulo:
Paz e Terra, 2004.
LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Trad. Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1986.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Catástrofe, história e memória em Walter Benjamin e Chris
Marker: a escritura da memória. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.). História,
memória, literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. Campinas: Editora da
UNICAMP, 2003. p. 387-413.
SPIEGELMAN, Art. Maus: a história de um sobrevivente. Trad. Antônio Macedo Soares.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
SPIEGELMAN, Art. Maus: a survivor’s tale. I: My father bleeds history (1986). New York:
Pantheon Books, 1992.
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York: Pantheon Books, 1992.
WEINHARDT, Marilene. Considerações sobre o romance histórico. Revista de Letras,
Curitiba, Editora da UFPR, n. 43, p. 49-59, 1995.
ZANGL, Veronika. Poetik nach dem Holocaust: Erinnerungen – Tatsachen –
Geschichten. Paderborn: Wilhelm Fink, 2009.

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O CONFLITO E O TRAUMA: MEMÓRIAS DE UMA REALIDADE DOLOROSA


EM K. RELATO DE UMA BUSCA DE BERNARDO KUCINSKI

Gabriela de Oliveira Guedes1

Representando conflitos e traumas

A América Latina foi marcada por duras repressões e ditaduras advindas de


diretrizes que buscavam combater a expansão comunista. Entre 1964 e 1990, Brasil,
Uruguai, Chile e Argentina enfrentaram anos de silenciamento forçado, torturas,
desterros e “desaparecimentos políticos” daqueles que fossem contra o
posicionamento instituído pelo governo da época. Após o restabelecimento das
democracias, coube aos sobreviventes divulgar o que realmente acontecera nos
porões da ditadura e ficara encoberto pelo crescimento econômico propalado pelos
defensores do sistema instaurado pelos militares.
Walter Benjamin, em sua tese Sobre o conceito da história, declara: “Articular
historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘tal como ele propriamente foi’.
Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela cintila num instante de perigo”. 2
Em 2015, assistimos às passeatas de uma parcela da população brasileira pedindo o
retorno dos militares ao poder. Esse pedido nos assombra devido ao esquecimento da
outra face que acometeu a sociedade durante a ditadura, e representaria um
retrocesso a todas as nossas conquistas democráticas e nas leis de direitos humanos.
Podemos dizer que esse instante de perigo emerge no século XXI, sendo ele
contraditório a todo um processo histórico que foi constituído em prol de uma
democracia. Devemos analisar a história por todos os lados, para que possamos tomar
conhecimento do que acontecia em todas as instâncias desse tempo nefasto de nossa
história.
A narrativa memorialística é uma instância que se posiciona no limiar entre
ficção e história. A escrita memorialista parte de uma reminiscência, do ato de
rememorar tudo que houve no passado e de repensar as lacunas dos esquecimentos
da nossa História. Assim,

1
Mestranda em Estudos Literários na Universidade Federal Fluminense – UFF - bolsista CNPq.
E-mail: gabrieladeoguedes@gmail.com

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Ao narrar, estamos sempre no entorno e no centro, pois o sujeito


que narra não conta a história de si mesmo sem narrar a história dos
que viveram com ele, dos que lutaram com ele, dos que caíram com
ele, dos que foram silenciados com ele, dos que voltaram a falar2com
e através dele. Nessa percepção, o sujeito que narra literariamente
num determinado Tempo e Espaço, dilatado ele também como um
coletivo de vozes, um ser plural, uma legião, pois dele ouviremos
e/ou leremos as ressonâncias de um ou vários grupos sociais com os
seus mais distintos signos, toda uma poética que, singular, é plural
(PORTO, 2011, p. 200).

A partir dessa reflexão, podemos compreender o porquê de não encontrarmos


em K. Relato de uma busca uma narrativa exclusivamente autobiográfica ou ficcional.
Ao utilizar-se do aparato estético ficcional, a liberdade criacional é expandida. Não há a
necessidade de se apoiar em documentos que suportem a versão dos fatos
apresentados na narrativa. Pode-se fazer um deslocamento do tempo e do espaço e
uma fusão de personagens para, assim, resgatar da memória individual de cada leitor a
lembrança de algum relato escutado previamente. Ao adotar essa abordagem, atribui-
se uma identificação com a realidade inserida na ficcionalidade.

O local da diferença

“O passado não é aquilo que passa, / é aquilo que fica do que passou”. As
palavras do escritor Alceu Amoroso Lima se encaixam aqui, pois a vida dos familiares
dos desaparecidos políticos foi marcada pelo trauma do sumiço de seus entes
queridos. K. Relato de uma busca possui como fio condutor da narrativa a busca
labiríntica de um pai por sua filha, uma professora universitária de Química. O autor do
livro, Bernardo Kucinski, é irmão de uma militante desaparecida que lecionava no setor
de Química na USP. Majer Kucinski, seu progenitor, foi um pai que buscou pistas
incessantes sobre o paradeiro de sua filha, Ana Rosa Kucinski.
Bernardo Kucinski foi um militante estudantil durante o regime militar e teve
que partir para o exílio depois de ser preso, podendo retornar à pátria amada apenas
após a anistia. Em diversas entrevistas, Kucinski fala sobre o impacto do regime em sua
vida. Destaco uma de suas respostas a uma entrevista dada ao jornal A Gazeta do
Povo:

2
BENJAMIN, Walter. “Über den Begriff der Geschichte”. In: Gesammelte Werke, vol. 1-2. Frankfurt/
Main: Suhrkamp, 1974, p. 695 e 701. Tradução de J.M.G.

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Rogério Pereira: De que maneira a ditadura militar o marcou como


cidadão? Quais as cicatrizes que este período da história do Brasil
deixou no senhor?
Bernardo Kucinski: A marca que se impôs foi a do desaparecimento
da minha irmã e de meu cunhado. Todo o resto, em especial a
censura nos jornais alternativos em que trabalhei, o exílio voluntário
de quatro anos, foram meros percalços, frente à tragédia que se
abateu sobre minha família. Eu diria que a ditadura ofereceu a nós
jornalistas da época uma oportunidade — sem dúvida dramática —
de nos realizarmos como pessoas e como criadores. De
transcendermos o trabalho banal e o comodato com o poder. Muitos
dos nossos grandes jornalistas foram forjados pelas condições da
ditadura, assim como muitos jornais alternativos talvez não tivessem
existido, sem o fator ditadura.

Podemos imaginar, através das páginas do romance desse autor, a dor


pungente desse caso em sua família e de como a literatura se apresenta como uma
forma de catarse por meio da escrita do trauma:

(A narrativa) abrange tanto a denúncia da barbárie e das atrocidades


por ele (o inimigo) cometidas como a reconstituição do rosto
desfigurado dos mortos, os quais tentaram, no passado, construir
uma vida diversa da do atual presente. Narrar as ruínas dessa
tentativa é um modo de atualizá-las (SELIGMANN-SILVA, 2001, p.
366).

Nas palavras do autor em uma entrevista concedida a Nahima Maciel do


Correio Braziliense, “Creio que a ficção permite a catarse. E a catarse ajuda a suportar
o trauma. O relato factual é mais próximo de um ajuste de contas com a história, com
os outros. A ficção é mais adequada a um ajuste de contas consigo mesmo”.

Representando o conflito

Como narrar o inenarrável? Como descrever com palavras o drama vivido por
diversas famílias afetadas pelo trauma da busca incansável por respostas sobre o
paradeiro de seus entes queridos? Como contar ao outro as torturas psicológicas e
físicas vividas dentro dos quarteis e locais de tortura? E como não narrar? Cada autor
perpassará um caminho criativo que apontará a estratégia narrativa que virá a ser
utilizada para o relato do passado.
A narração fragmentada realizada a partir de diversos pontos de vista permite
ao leitor uma “visita” à mente dos personagens. A breve prosa preenche lacunas da

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História com o exercício de imaginação desencadeado por esse processo de inventário


de perdas de uma perda.
Mikhail Bakhtin considerou o romance como sendo um gênero detentor de
vozes sociais díspares que se confrontam, destoam, revelando, dessa maneira,
pensamentos sociais distintos sobre um mesmo assunto; assim sendo, este é um
gênero polifônico em sua essência. Para esse autor, em sua análise sobre a obra de
Dostoiévski, os personagens serão seres autônomos possuidores de suas
características individuais, suas visões de mundo e suas reações em relação a um
determinado contexto. O mesmo conceito pode ser aplicado à obra kucinskiana.
Segundo Bakhtin, o enunciado é impregnado por pontos de vista e ideias,
nunca neutro, ele é permeado por intenções:

O enunciado existente, surgido de maneira significativa num


determinado momento social e histórico, não pode deixar de tocar
os milhares fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência
ideológica em torno de um dado objeto de enunciação, não pode
deixar de ser participante ativo do diálogo social. Ele também surge
desse diálogo com seu prolongamento, com sua réplica, e não sabe
de que lado se aproxima desse objeto (BAKHTIN, 1993, p.86).

Isto posto, podemos notar na composição do discurso uma influência da


dialogicidade da linguagem. O romance englobará as respostas cujos discursos
proporão por intermédio da compreensão. Essas diferentes vozes do discurso e suas
distintas visões de mundo possibilitam ao romance uma pluridiscursividade ou
plurilinguismo:

Introduzido no romance, o plurilinguismo é submetido a uma


elaboração literária. Todas as palavras e formas que povoam a
linguagem são vozes sociais e históricas, que lhe dão determinadas
significações concretas e que se organizam no romance em um
sistema estilístico harmonioso, expressando a posição sócio-
ideológica diferenciada do autor no seio dos diferentes
discursos da sua época (BAKHTIN, 1993, p.106).

Em K. Relato de uma busca, a opção pela escolha do foco narrativo


predominantemente em terceira pessoa recai sobre a intencionalidade de
distanciamento desse autor-narrador que envolverá questões singulares sobre sua
sabedoria relativa ao assunto narrado. Davi Arrigucci Júnior, em Teoria da narrativa:
posições do narrador (ARRIGUCCI, 1998), argumenta que a escolha da voz narrativa
infere uma maneira de difundir valores:

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A escolha da técnica, do ponto de vista, nunca é inocente. Escolher


um ângulo de visão ou voz narrativa (...) tem implicações de outra
ordem, ou seja, toda técnica supõe outras questões que são
problemas do conhecimento, epistemológicas, questões que podem
ser também metafísicas, ontológicas (...) (ARRIGUCCI JÚNIOR, 1998,
p.20).

A intencionalidade do autor ao escolher um tipo de voz narrativa confere à


obra características peculiares de distanciamento de acontecimentos vividos e uma
possibilidade de ambientar diferentes posicionamentos sem cair na discussão
maniqueísta do certo ou errado, exibindo, desse modo, posições individuais
diferenciadas mais profundas.
O capítulo inaugural da obra de Kucinski intitulado “As cartas à destinatária
inexistente” inicia-se com uma declaração feita em primeira pessoa pelo autor-
narrador:

De tempos em tempos, o correio entrega no meu antigo endereço


uma carta de banco a ela destinada; sempre a oferta sedutora de um
produto ou serviço financeiro. (...) / Sempre me emociono à vista de
seu nome no envelope. E me pergunto: como é possível enviar
reiteradamente cartas a quem inexiste há mais de três décadas? Sei
que não há má-fé. Correio e banco ignoram que a destinatária já não
existe; o remetente não se esconde, ao contrário, revela-se
orgulhoso em vistoso logotipo (KUCINSKI, 2014, p.9).

O conteúdo dessa abertura reitera a advertência realizada pelo autor ao leitor


no prefácio: “Caro leitor: / Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu”. O
leitor deve se preparar para o contato com a narrativa que mesclará ficção e
testemunho de alguns episódios que serão descritos, alertando, assim, o leitor de que
nem tudo é verdade, mas nem tudo é produto do processo criativo imaginativo.
No capítulo seguinte “Sorvedouro de pessoas”, somos apresentados ao
personagem K e toda a sua angústia:

A tragédia já avançara inexorável quando, naquela manhã de


domingo, K. sentiu pela primeira vez a angústia que logo o tomaria
por completo. Há dez dias a filha não telefona. / (...) / Pronto, estava
instalada a tragédia. O que fazer? Os dois filhos, longe, no exterior. A
segunda esposa, uma inútil. As amigas da universidade em pânico. O
velho sentiu-se esmagado. O corpo fraco, vazio, como se fosse
desabar. A mente em estupor. De repente, tudo perdia sentido. Um
fato único impunha-se, cancelando o que dele não fosse parte;

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fazendo tudo o mais obsoleto. O fato concreto de sua filha querida


estar sumida há onze dias, talvez mais. Sentiu-se muito só. / Passou a
listar hipóteses. Quem sabe um acidente, ou uma doença grave que
ela não quisesse revelar. A pior era a prisão pelos serviços secretos. O
Estado não tem rosto nem sentimentos, é opaco e perverso
(KUCINSKI, 2014, p. 13 e 16).

A escolha pela narrativa em terceira pessoa para descrever o desespero de um


pai permite ao leitor uma visão mais ampla da história e a entrada e saída da mente
dos personagens com mais facilidade, garantindo uma experiência de leitura única e
emocionante.
O livro ainda apresenta o entre-lugar dos informantes, que escondem suas
contribuições com os agentes do sistema por meio de aparências e comportamentos
sociais; Reminiscências de um pai saudoso; A descoberta de K. sobre a vida clandestina
da filha, relacionada à militância política e ao casamento com Wilson Silva; A tortura
psicológica perpetrada pelos aliados da ditadura; O “depoimento” da amante de um
dos delegados; Uma entrevista entre uma psicóloga e uma faxineira da antiga Casa da
Morte; Os extorsionários, dentre outros. Nesses outros episódios, o leitor poderá
entender como funcionavam os posicionamentos individuais em relação a um mesmo
contexto por meio das falas desses personagens.

Conclusão

K. Relato de uma busca é uma narrativa pungente, que parte do trauma, em


uma tentativa de elaboração simbólica, enquanto palavra, em uma necessidade de
deixar registrada a presença da desaparecida dos rols dos vivos e precocemente levada
aos rols dos mortos. Uma tentativa, emocionante, de manter a memória de sua busca
viva e a exigência de respostas para que esse assunto não caia no esquecimento e não
haja um apagamento de rastros. A escrita deixará marcas e permitirá a luta contra o
esquecimento.

Mas existe um direito à memória que é um dever de transgressão e


resistência, um dever que se configura num sujeito que ressignifica
em si uma sintaxe do inominável e, criando uma outra linguagem,
interrompe desde dentro, através da sua obra, a vida de outros
sujeitos. Essa interrupção, pela sua obra, significa um encontro com a
memória de outro – um processo de educação pela arte – em que
essa criação é o toque do humano (VILELA, Eugénia, 2000, p.46).

A utilização da polifonia bakhtiniana na tessitura de seu primeiro romance


revela na ficção de Kucinski a apresentação de diferentes posições sociais de uma

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mesma época em relação a um mesmo contexto. A literatura é convocada para dar


forma ficcional a um trauma e apresenta, ainda, a representação de posicionamentos
conflitantes por meio das vozes discursivas inseridas no texto. Ao longo dos capítulos,
os leitores vivenciarão a angústia, a dor, a busca labiríntica e infrutífera de informações
que levem à restituição do corpo da filha desaparecida para a conclusão dessa jornada
contra o esquecimento e em prol de respostas que levem a uma responsabilização
pelos atos praticados durante o regime militar.

Referências

ARRIGUCCI JÚNIOR, Davi. Teoria da narrativa: posições do narrador. Jornal de


psicanálise, v. 31, n. 57, 1998.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. Trad.
Aurora Fornoni Bernadini et al. 4. ed. São Paulo: Unesp; Hucitec, 1993.
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: Magia e técnica, arte e política –
ensaios sobre literatura e história da cultura – Obras escolhidas I. 7.ed. Tradução
de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Braziliense, 1994 [Obras Escolhidas, v.1].
KUCINSKI, Bernardo K. – Relato de uma busca. 2. Reimpressão. São Paulo: Cosac Naify,
2014.
MACIEL, Nahima. Cinquenta anos da ditadura militar é relembrada com lançamento de
livros. Disponível em: <http://divirta-se.uai.com.br/app/noticia/arte-e livros/2014/
03/11/noticia_arte_e_livros,152383/cinquenta-anos-da-ditadura-militar-e-
relembrada-com-lancamento-de-livros.shtml>. Acesso em 12 nov. 2015.
PEREIRA, Rogério. A libertação de Kucinski. Disponível em:
<http://rascunho.gazetadopovo.com.br/a-libertacao-de-kucinski> Acesso em 12
nov. 2015.
PORTO, Patrícia de Cássia. Narrativas memorialísticas: memória e literatura. Disponível
em: <http://www.fe.ufrj.br/artigos/n12/11_Narrativas_Memorialisticas_
Memoria.pdf>. Acesso em 10 nov. 2015.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. A catástrofe do cotidiano, a apocalíptica e a redentora:
sobre Walter Benjamin e a escritura da memória. In: DUARTE, Rodrigo;
FIGUEIREDO, Virginia (Orgs.). Mímesis e expressão. Belo Horizonte: UFMG, 2001.
VILELA, Eugénia. Corpos inabitáveis: errância, filosofia e memória. Enharonar. Porto, n
31, p.35-52, 2000.

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A CONSCIÊNCIA TEXTUAL NO PROCESSAMENTO DA COMPREENSÃO LEITORA:


FUNDAMENTOS TEÓRICOS E INSTRUMENTOS DE APLICAÇÃO

Gabriela Fontana Abs da Cruz1


Gabrielle Perotto de Souza da Rosa2
Leandro Lemes do Prado3

Introdução

Dados fornecidos por mecanismos medidores da situação de aprendizagem do


Brasil, como IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), Prova Brasil e PISA
(Programa de Avaliação Internacional de Estudantes), têm indicado a necessidade de
uma reorganização da essência da educação brasileira, a partir da reavaliação do papel
da escola como formadora de cidadãos capacitados em todos os níveis de ensino. Um
dos principais componentes avaliados e que causa alerta é a compreensão leitora.
Os dados do INEP4 (2011) mostram que, apesar de as metas estabelecidas pelo
governo estarem sendo alcançadas, o IDEB5 (2011) brasileiro continua com índices
baixos, visto que a nota obtida tende a baixar com o avanço do aluno dos anos iniciais
para os anos finais. O IDEB dos anos iniciais do Ensino Fundamental é 5,0; dos anos
finais é 4,1 e do Ensino Médio é 3,7. Essas notas baixam ainda mais quando analisamos
apenas alunos oriundos das escolas públicas.
A Prova Brasil, avaliação feita pelo SAEB (Sistema de Avaliação da Educação
Básica), tem verificado o desempenho de alunos do 5º e 9º anos do Ensino
Fundamental e 3º ano do Ensino Médio. Os resultados também revelam índices abaixo
dos desejados no desempenho em leitura.

1
Doutoranda em Letras (PUCRS); bolsista CAPES; docente do IFRS – Campus Restinga. E-mail:
gabriela.abs@gmail.com
2
Doutoranda em Letras (PUCRS); bolsista CAPES.
E-mail: gabiperotto@gmail.com
3
Doutorando em Letras (PUCRS); bolsista CNPq.
E-mail: professorleoprado@gmail.com
4
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas. Disponível em: <http://ideb.inep.gov.br/resultado>. Acesso
em: 30 mar. 2014.
5
Índice de Desenvolvimento da Educação Básica. Disponível em: <http://ideb.inep.gov.br/resultado>.
Acesso em: 30 mar. 2014.

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O PISA, desenvolvido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento


Econômico (OCDE), pesquisa, com periodicidade de três anos, a competência em
leitura de estudantes na faixa dos 15 anos de idade. Os resultados com os estudantes
brasileiros colocam o país nas últimas posições nas edições de 2003, 2006, 2009 e
2012. Na avaliação mais recente, a de 2012, cerca de 49% dos estudantes brasileiros
estão abaixo da linha de base proposta pelo programa. Isso significa que esses
estudantes conseguem, em geral, apenas reconhecer o tema principal ou o objetivo de
um texto, desde que este seja sobre um assunto de seu conhecimento prévio, e
conseguem fazer conexões simples entre o que está no texto e o seu conhecimento.
Apenas 0,5% dos avaliados obteve resultados que os classificassem no nível 5 de
proficiência, isto é, em que o aluno consegue lidar com textos não familiares, no que
diz respeito à forma e ao conteúdo, e consegue realizar uma análise mais refinada do
texto.
Tendo em vista esses resultados, as investigações feitas na área da
Psicolinguística dão importante atenção aos processos e aos aspectos envolvidos na
leitura e compreensão leitora. Um dos aspectos que vem ganhando destaque nesses
estudos é a consciência textual, a qual se estabelece através do diálogo entre
diferentes níveis de consciência linguística (fonológica, morfológica, lexical, sintática,
pragmática, e textual).
Neste artigo, o foco será, portanto, a consciência textual e sua relação com a
compreensão leitora e o objetivo principal será dar luz aos caminhos teóricos que se
percorre para tratar de tais temas. Para tanto, serão apresentados um panorama da
fundamentação teórica sobre o referido nível de consciência; a forma como se dá o
processamento da leitura; bem como os elementos linguísticos que constituem o texto
e que estabelecem um diálogo com o contexto. Para finalizar, serão apresentados
alguns instrumentos de aplicação, referentes a projetos desenvolvidos no Centro de
Referência para o Desenvolvimento da Linguagem (Celin/PUCRS).

Compreensão leitora

Dada a relevância à compreensão leitora e seu processamento e à consciência


textual para o desenvolvimento deste artigo, alguns tópicos que tangem a estas
questões serão abordados, a fim de se compreender sua importância para o acesso a
todas as áreas do conhecimento para o domínio da Língua Portuguesa,
A perspectiva teórica aqui assumida é a da Psicolinguística em interface com a
Linguística do Texto e as Neurociências, e foca no processamento cognitivo da leitura
com ênfase em desenvolver estratégias cognitivas e metacognitivas. Nesse

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entendimento, o texto não deve ser visto como um simples conjunto de elementos
gramaticais, nem como um repositório de mensagens e de informações (KLEIMAN,
1996), e a leitura é vista como um processo cognitivo que pode ocorrer
interativamente de forma ascendente – bottom-up – e de forma descendente – top-
down (SCLIAR-CABRAL, 2008).
O processamento ascendente se realiza das unidades menores para as maiores,
com a atenção do leitor se dirigindo para as pistas visuais do texto. De modo geral,
esse processamento é utilizado em situações em que o leitor tem poucos
conhecimentos prévios sobre o conteúdo ou a linguagem do texto, que o objetivo da
leitura exija uma atenção a detalhes e que o texto a ser lido seja complexo, exigindo
uma leitura cuidadosa.
O processamento descendente se realiza das unidades maiores para as
menores, com o leitor se apoiando nas informações extratextuais. De modo geral, esse
processamento é utilizado quando o leitor tem conhecimentos prévios sobre o assunto
e a linguagem do texto, quando seu objetivo exige uma leitura geral e a densidade do
texto não oferece dificuldades grandes de compreensão.
A combinação dessas formas está baseada num conjunto de variáveis:
intervenientes no processamento da Leitura tais como: Conhecimentos prévios do
leitor e estilo cognitivo do mesmo; gêneros textuais literários e não literários com
predominância narrativa, descritiva, expositiva, argumentativa, injuntiva; além, é claro,
dos processos de Coesão, Coerência e Superestrutura, que dão unidade e sentido ao
texto.
De acordo com Soares (1991), a leitura não é uma atividade apenas de
decodificação, em que o leitor apreende a “mensagem” do autor, mas é processo
constitutivo do texto com base na interação autor-leitor. Ou seja: o texto não preexiste
à sua leitura, pois esta é construção ativa de um leitor que, de certa forma, “reescreve”
o texto, determinado por seu repertório de experiências individuais, sociais, culturais.
Durante a leitura, o leitor utiliza estratégias de leitura (PEREIRA, 2010), como
skimming (leitura geral e rápida para uma aproximação inicial ao texto); scanning
(leitura de busca de uma informação específica no texto); leitura detalhada (leitura
minuciosa dirigindo a atenção para todos os detalhes); predição (antecipação do
conteúdo do texto, com base nas pistas linguísticas e nos conhecimentos prévios);
automonitoramento (observação, pelo leitor, do próprio processo de leitura);
autoavaliação (verificação, pelo leitor, da adequação das hipóteses de leitura
levantadas); e autocorreção (alteração, pelo leitor, das hipóteses formuladas, caso
constate inadequações).

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Com essas estratégias, tem-se a ativação dos conhecimentos prévios, a seleção


de informações, a realização de inferências, a antecipação e localização de
informações no texto, a articulação de relações textuais e contextuais, e também a
construção e a generalização de informações. Com isso, o uso de estratégias dá ao
texto e à leitura a perspectiva da prática social, pois o leitor, ao estabelecer relações
com o texto, interage com a sua própria realidade, ampliando-a, modificando-a,
percebendo-a de maneira mais nítida.
Além disso, a utilização dessas estratégias faz com que o leitor manipule os
elementos linguísticos do texto e os elementos extratextuais. Os elementos linguísticos
abrangem os fônicos (fonemas/letras, ritmo, entonação), os morfossintáticos (limites
de palavra e frase, estrutura vocabular, elos gramaticais), os semânticos (léxico,
significação vocabular, elos lexicais), os pragmáticos (situação de uso) e os textuais
(superestrutura, coerência, coesão). Os elementos extratextuais estão nos
conhecimentos prévios do leitor, em seus arquivos de memória e no contexto.
O paradigma de ensino da leitura constitui um conjunto de concepções dos
fundamentos já expostos. A compreensão textual e o seu processamento cognitivo,
por exemplo, são marcados pela situação de leitura. Para tanto é importante ter
critérios claros para a seleção do texto, levando-se em consideração suas
características como gênero (BAZERMAN, 2009) e as da situação da qual é oriundo, os
interesses pedagógicos do ano escolar, considerando o planejamento definido pela
escola, os objetivos de leitura e os conhecimentos prévios dos alunos.
É importante que seja estabelecido claramente o objetivo de leitura
considerando essas concepções. A opção por um texto com sequências descritivas,
narrativas ou argumentativas dominantes (ADAM, 2008) revela as necessidades de
quais procedimentos de leitura são os mais adequados a serem usados e explicitados.
A compreensão do texto tem suporte nos seus elementos linguísticos, isto é,
nos constituintes fônicos (ritmo, rima, aliteração...), morfológicos (limite e estrutura
dos vocábulos, classes gramaticais, flexões...), sintáticos (limite e estrutura das
frases/versos, paralelismo, combinações entre os segmentos...), léxico-semânticos
(vocábulos e seus significados, paralelismo...), pragmáticos (relações entre o texto e a
situação comunicativa) e textuais (superestrutura, coerência e coesão). Assim, a
proposta de leitura passa por uma análise linguística criteriosa do texto para que se
possa alavancar o entendimento do texto e alicerçar sua compreensão.
Considerando o aprendiz em situação de leitura, é importante que a análise
linguística se constitua de atividades que direcionem a atenção dos alunos para a
organização do texto em seus elementos constitutivos: os elementos coesivos lexicais

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relevantes para o sentido do texto – seus significados e estruturas, suas repetições,


seus modos de agrupamentos, suas substituições; os elementos gramaticais – os
processos de retomada linguística, os nexos, as relações entre os vocábulos, as elipses;
os traços da superestrutura – formato, moldura, esquema, suporte, sequências
dominantes; os traços de coerência – tema, tópicos de desenvolvimento, relações
entre os tópicos e entre esses e o tema; as marcas da situação de produção (autor,
propósito, fonte, suporte) e de recepção do texto (elementos linguísticos e tópicos que
integram e que não integram os conhecimentos prévios dos alunos, objetivo da
leitura).
A compreensão do texto se apoia na análise linguística, pois assim possibilita a
compreensão dos fatos e dos argumentos utilizados. Nesse sentido, destacam-se,
paralelamente à análise dos elementos linguísticos, atividades sobre o conteúdo do
texto – o tema e seus tópicos, os fatos e suas relações e os argumentos e seus vínculos
com a tese em desenvolvimento (ADAM, 2008).
Os conhecimentos prévios armazenados na memória declarativa são acionados
pelo leitor para a compreensão do texto. Assim, o professor, paralelamente ao
trabalho de ensino da análise linguística, deve também propor atividades que levem o
aluno a acionar seus conhecimentos prévios, expondo-o a textos com maior ou menor
correspondência com eles.
Nesse sentido, a seleção dos textos deve apresentar a diversidade necessária
de modo a exigir a ativação de conhecimentos que já possui e a busca de
conhecimentos que não estão ainda armazenados em sua memória declarativa, de
modo a contribuir para o desenvolvimento cognitivo e a aprendizagem.

Atenção e consciência

Os estudos sobre atenção têm apresentado um constante desenvolvimento,


principalmente quanto à sua relação com a linguagem e a cognição. Na obra Psicologia
Cognitiva, no capítulo sobre Atenção e Consciência, Robert Sternberg (2000) cita o que
outros autores teorizam sobre atenção: “A atenção é o meio pelo qual processamos
ativamente uma quantidade limitada de informação a partir da enorme quantidade
disponível através de nossos sentidos, de nossas memórias armazenadas e de nossos
outros processos cognitivos”. O cérebro humano, apesar de guardar muita
informação, precisa selecionar aquilo que tem maior importância e descartar
informações pouco utilizadas ou irrelevantes. E a atenção envolvida nessa seleção
ajuda a priorizar qual foco será dado para a informação, se maior ou menor atenção.

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Sternberg (2000) afirma que “a informação pré-consciente são as memórias


que não estamos usando, mas podemos acessar quando necessitarmos”. O priming é o
estímulo que afeta o reconhecimento de alguns estímulos. É o exemplo de quando
encontramos um ex-colega e ele nos pergunta se lembramos daquela professora
específica. Logo, a memória que não estava sendo usada é ativada e nos recordamos
como se tivéssemos pensando nisso ontem.
O número de alvos e fatores de distração afeta a dificuldade de atenção na
tarefa. Quando o estímulo-alvo tem características semelhantes aos outros elementos
e há algo bastante distinto, o item distinto chama mais atenção. Há facilidade de se
conduzirem buscas por características e dificuldade de buscas conjuntas. Alvos muito
semelhantes a fatores de distração são difíceis de detectar. Os que são muito distintos
são mais fáceis.
Na leitura, é mais fácil ler textos longos em letras minúsculas do que em
maiúsculas, pois as maiúsculas tendem a ser mais semelhantes entre si e as minúsculas
têm mais características distintivas. Para isso, conhecer o estímulo ajuda a encontrá-lo
mais facilmente, pois o conhecimento facilita a busca visual.

Atenção seletiva e dividida

Na atenção seletiva, escolhemos prestar atenção em alguns estímulos e ignorar


outros. (COHEN, 2003; DUNCAN, 1999). Os estímulos externos não nos afetam se
estiverem no nível da habituação. E na atenção dividida, nós dividimos nossos recursos
de atenção para coordenar nosso desempenho em mais de uma tarefa
simultaneamente. Para isso, é necessário estar vigilante aos sinais – prestar atenção a
um campo de estimulação por um período prolongado, buscando um estímulo-alvo de
interesse –, para que não se perca a atenção em determinado distrator e se deixe de
lado um sinal importante. Por meio da detecção de sinais é que somos submetidos ao
priming para agir com rapidez ao estímulo. E realizamos buscas ativas por alguns
estímulos determinados, por exemplo, uma mãe, quando leva seu filho na praça e
inicia uma conversa com outra mãe, fica atenta aos sinais de choro de criança.
Para o estudo da atenção seletiva, há um mecanismo de teste chamado
Sombreamento. Funciona da seguinte forma: o participante ouve duas passagens
simultâneas diferentes e deve repetir apenas uma o mais rápido possível. Os
experimentos mostram que as pessoas ouvem os dois, um pouco de cada. E percebem
mudanças de voz, tipo de sinais, etc, mas não percebem mudanças semânticas, nem
de idiomas.

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Há seis teorias de atenção seletiva baseadas em filtro e gargalo, mas neste


artigo iremos tratar somente das Teorias de atenção seletiva baseadas em recursos de
atenção. Baseado na questão “Como podemos realizar mais de uma tarefa que
demande atenção ao mesmo tempo?” é que se pensou em desenvolver as teorias
citadas, pois elas ajudam a explicá-la.
A resposta é simples: as pessoas dividem melhor sua atenção quando as tarefas
concorrentes pertencem a modalidades sensoriais diferentes. Se ela estiver ouvindo
música clássica e redigindo um texto, estará utilizando recursos auditivos e visuais, que
são diferentes. Já redigir um texto ouvindo uma notícia na televisão não funciona
porque ambas as tarefas são verbais e visuais, e uma acabará afetando o desempenho
da outra. Os processos pré-atencionais podem ocorrer de forma simultânea, mas os
processos que requerem atenção precisam ocorrer em ordem. Mas à medida que as
tarefas vão se tornando automáticas, o desempenho demanda menos atenção,
podendo assim ser realizadas simultaneamente com outras. Spelke, Hirst e Nesser
(1976) mostram que as tarefas controladas podem ser automatizadas de forma a
consumir menos recursos de atenção. Duas tarefas controladas diferentes podem ser
automatizadas para funcionar juntamente como uma unidade. Mas as tarefas não se
tornam totalmente automáticas.

Consciência de processos mentais complexos

Conforme Nisbett e Wilson (1977), estamos conscientes dos produtos de nosso


pensamento, mas apenas vagamente conscientes dos processos do pensamento. O
acesso consciente das pessoas aos seus processos de pensamento e o controle que
elas têm sobre eles é bastante reduzido. Exemplo disso é não tentar pensar em alguém
ou em algo. A técnica não funciona, pois quanto mais se tenta não pensar, mais
obcecado pela coisa se fica. Os comportamentos adaptativos sugerem que tenhamos
muita atenção a mudanças em nosso ambiente. Porém, estudos mostram que as
pessoas são pouco capazes de reconhecer mudanças do que se pode esperar,
principalmente mudanças visuais e bastante visíveis.
A atenção envolve a interação de diversas áreas específicas do cérebro. Fora de
nossa consciência, estamos sempre tentando entender um fluxo constante de
informações sensoriais. Quando escolhemos uma hipótese satisfatória, excluímos
várias possibilidades de atenção limitada. Porém, a atenção não é sobrecarregada, pois
é substituída e os processos de atenção são entrelaçados aos processos de percepção.

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Segundo Sternberg (2000), “os recursos de atenção limitados de modalidades


específicas parecem influenciar outros aspectos da atenção. Na verdade, as
descobertas da pesquisa cognitiva proporcionaram muitos conhecimentos sobre a
atenção, mas também se tem obtido outros por meio do estudo dos processos de
atenção no cérebro”.

Consciência textual

A consciência textual é uma atitude reflexiva que o indivíduo faz sobre o seu
objeto de análise, o texto, de forma deliberada, em que o foco atencional está no
próprio texto. Além disso, Gombert (1992) afirma que esse tipo de consciência está
centrado no monitoramento e na atenção a traços que constituem o texto e que os
determinam como pertencentes a um determinado gênero. Esses traços estão
relacionados à coesão, à coerência e à superestrutura.
A coesão é um componente que diz respeito às relações de sentido que existem
no interior do texto e que o definem como tal. Essas relações são estabelecidas por
mecanismos, os quais são denominados por Halliday e Hasan (1976) coesão gramatical
e coesão lexical. A coesão gramatical envolve a referência, a substituição, a elipse e a
conjunção.
A referência diz respeito a itens linguísticos que são “vazios” de significados,
mas que, no discurso, remetem a outros itens e, assim, são passíveis de serem
compreendidos. São itens linguísticos conhecidos como dêiticos e possuem como
principais exemplares os pronomes pessoais e demonstrativos.
A substituição é um mecanismo de relação interna no texto. Um elemento
(desde um simples nome a uma frase inteira) é colocado no lugar de outro, ocorrendo
sempre uma redefinição.
A elipse refere-se à omissão de um item lexical, ou até mesmo um enunciado,
visto que podem ser recuperados com muita facilidade a partir do contexto. Esse
mecanismo seria, pois, uma espécie de substituição, porém por zero, por um espaço
vazio.
A conjunção, também chamada de conexão, permite que relações significativas
entre elementos do texto sejam estabelecidas, como as que ocorrem por marcadores
formais, os quais correlacionam o que será dito ao que já o foi.
A coesão lexical, por sua vez, ocorre por meio de dois mecanismos: a reiteração
e a colocação. O primeiro refere-se à repetição, bem como ao uso de sinônimos e
hiperônimos. A colocação refere-se ao uso de palavras de um mesmo campo
semântico.

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O segundo constituinte do texto é a coerência, que se refere à possibilidade de


instauração de um sentido ao texto, isto é, está relacionada à significação global, à
macroestrutura do texto. Para tanto, deve haver a possibilidade de estabelecimento
de alguma unidade ou tipo de relação entre os seus elementos componentes.
Charolles (1997) compreende a coerência como uma relação conjunta entre os níveis
textuais micro e macrolinguístico e propõe quatro macrorregras que precisam ser
levadas em consideração para que um texto seja identificado como coerente: a
repetição, a progressão, a não-contradição e a relação.
A repetição está relacionada à retomada de elementos, por meio de uma série
de recursos, tais como pronominalizações, determinações, referenciações contextuais,
substituições lexicais, recuperações pressuposicionais, retomadas de inferência,
entre outros. Um texto coerente apresenta uma continuidade semântica, ou seja, há
elementos de retomada de ideias e conceitos na superfície do texto para o seu
desenvolvimento linear.
A progressão diz respeito ao equilíbrio entre a retomada de elementos dados
no texto e as informações novas. O texto não poderá apresentar somente ideias novas,
pois será progressivo; nem apenas a retomada de informações, pois se tornará
redundante.
A não-contradição, por sua vez, é o respeito aos princípios lógicos do texto,
expressos nos elementos linguísticos e no vocabulário, por exemplo. As informações
de um texto não podem se contradizer; devem ser compatíveis entre si e com o
mundo que o texto representa.
A última metarregra é a relação. Charolles (1997) diz que esta metarregra está
vinculada à forma como os conceitos dentro de um texto se encadeiam e se
organizam, além da função que exercem uns em relação aos outros.
Por fim, o último componente da consciência textual a ser apresentado é a
superestrutura, a qual está relacionada à estrutura esquemática convencional do
texto. Sendo esta estrutura convencional, entende-se que ela é variável, podendo
sofrer alterações conforme a cultura à qual está submetida. Em outras palavras, a
superestrutura “é uma forma global que organiza a macroproposição (o conteúdo
global do texto)” (VAN DIJK, 2004, p.30) e ela “fornece a sintaxe completa para o
significado global, isto é, para a macroestrutura do texto” (idem). Assim, os discursos
caracterizam-se por terem um significado global, que faz com que o tema seja
formalizado, e, portanto, permite que haja uma coerência global no texto. Essas
estruturas podem ser frequentemente expressas “pelos títulos ou cabeçalhos, ou por
posição temática inicial ou derivadas por macrorregras (tais como supressão,

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generalização e construção), a partir das proposições expressas pelo texto e do


conhecimento ativado do mundo” (VAN DIJK, 2004, p.70). Além disso, são organizadas
por uma ordem geral de princípios, o que possibilita a especificação de funções
esquemáticas, além de categorias das partes dos textos, como, por exemplo, os
parágrafos contendo as premissas e a conclusão em uma dissertação escolar.

Projetos Celin

Após a discussão teórica sobre compreensão leitora, atenção e consciência


textual, cabe agora apresentar alguns projetos desenvolvidos pelo CELIN (Centro de
Referência para o Desenvolvimento da Linguagem) que investigam esses aspectos
teóricos. São eles:

Caminhos de Leitura Virtual pelo RS/Brasil: PROUCA, Universidade e Escola em Rede


de Ensino, Pesquisa e Extensão

O projeto vinculado ao “Grupo de Pesquisa/CNPq Aquisição, Aprendizado e


Processamento Cognitivo da Linguagem: instrumentos, procedimentos e tecnologias”
consistiu em uma busca de resposta à indagação: em que medida um trabalho
pedagógico com estratégias de leitura virtuais contribui para a compreensão leitora de
alunos de séries finais do Ensino Fundamental e para a formação e adesão dos
professores? Os objetivos do projeto eram, entre outros, produzir materiais de leitura
virtuais para alunos de oitavo e nono ano das séries finais do Ensino Fundamental.
Com um número de 120 sujeitos, o projeto se desenvolveu durante dois anos,
sendo o primeiro destinado à preparação dos materiais e dos professores. Os
professores receberam uma capacitação para uso dos materiais em notebooks cedidos
aos alunos das escolas pelo governo federal, através do Programa Um Computador por
Aluno.
O foco da compreensão leitora foram os elementos de coesão e de coerência
que constituem a consciência textual. Atividades de leitura e escrita foram
desenvolvidas com quatro gêneros textuais, dois literários e dois não literários: poema
e texto instrucional para o oitavo ano e fábula e curiosidade científica para o nono ano.
As atividades foram desenvolvidas em dez módulos (repetição, sinonímia, associação
por contiguidade, superordenado, elipse, referenciação, conjunção, manutenção
temática, progressão temática e ausência de contradição interna) e disponibilizadas
num software nos computadores do projeto.

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Os resultados foram coletados a partir de pré-testes e pós-testes aplicados


antes e depois da intervenção e evidenciaram um crescimento da compreensão leitora
bem como da consciência textual. O destaque se deu para o maior crescimento
percentual nos dados da compreensão para os gêneros não literários.

Estratégias de leitura em textos literários na escola

O projeto também desenvolvido pelo CELIN seguiu os mesmos moldes do


PROUCA, porém os objetivos eram investigar estratégias de leitura em gêneros
textuais literários com alunos do nono ano do Ensino Fundamental e do primeiro ano
do Ensino Médio.
As estratégias investigadas foram predição, scanning e leitura detalhada e os
gêneros selecionados para o estudo foram a fábula, o conto e a crônica narrativa.
Atividades de leitura foram desenvolvidas para serem aplicadas em ambiente virtual e
não virtual.
Os resultados revelam maior crescimento da compreensão leitora do pré para o
pós-teste, porém o crescimento no gênero conto foi menor. Da mesma forma, o
crescimento nas atividades desenvolvidas virtualmente foi maior.

Projeto Biblioteca Infantojuvenil Solange Medina Ketzer no Hospital São Lucas da


PUCRS: Leitura, Prazer e Arte

Em 1997, a ala pediátrica do Hospital São Lucas (HSL) da PUCRS ganhou uma
biblioteca a partir do projeto supracitado, através do qual bolsistas do curso de Letras
vêm promovendo diariamente a leitura junto às crianças internadas. Essa leitura se dá
por meio de contações de histórias no espaço da biblioteca ou em visitas aos quartos.
Em 2015, o projeto foi ampliado para a ala psiquiátrica do HSL e conta com
bolsistas que promovem a leitura de segunda a sexta durante uma hora com os
pacientes internados na ala.
Nestes espaços a literatura tem a função de humanização e seu papel é
estimular a imaginação e promover a transgressão do ambiente enfermo a partir das
histórias contadas. A leitura contribui para o bem-estar dos pacientes, ajudando-os em
seus tratamentos.
As dinâmicas realizadas promovem a compreensão leitora bem como a
consciência textual através das dinâmicas de contação das histórias. Os pacientes têm
momentos de entretenimento e entram em contato com diferentes gêneros textuais.

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Os resultados revelam uma melhor interação entre os pacientes a partir das


atividades e o desenvolvimento do gosto pela leitura. Além disso, os médicos relatam
que houve uma diminuição nas intercorrências da ala psiquiátrica, bem como uma
diminuição nos medicamentos de alguns pacientes. Tais resultados evidenciam o papel
da leitura como mecanismo de melhora para o bem-estar das pessoas.

Conclusão

O presente artigo propôs-se a refletir sobre a compreensão leitora e a


consciência textual como objeto de investigação em contexto pedagógico e uma
perspectiva teórica para o ensino de língua portuguesa. Tendo em vista os resultados
decorrentes da aplicação de provas oficiais, o desempenho de estudantes brasileiros
na compreensão leitora os coloca em situação de desvantagem e, para que esta
situação seja revertida, é preciso capacitar os professores e fazer avançar as pesquisas
sobre o tema.
Para tanto, procurou-se expor uma possibilidade teórica e metodológica sob a
luz da Linguística, mais especificamente da Psicolinguística, para o aprendizado e o
ensino. Os fundamentos desse paradigma constituem-se numa seleção dos tópicos
que explicitam o aprendizado da leitura e possibilitam a proposição de caminhos para
o seu ensino com foco na consciência textual.
Os fundamentos teóricos utilizados indicam a existência de relações entre a
compreensão da leitura de texto e a consciência textual. A primeira se realiza como
processamento cognitivo, que, por sua vez, conta com o uso de estratégias cognitivas e
metacognitivas de leitura. A segunda consiste no direcionamento da atenção do leitor
para os constituintes linguísticos do texto e para o processo de compreensão por ele
realizado, com vistas ao sucesso no entendimento e à explicitação dos procedimentos
utilizados.
Isso significa que, para o desenvolvimento da consciência textual e da
compreensão leitora, faz-se necessária a aplicação de atividades de observação da
superestrutura, da coerência e da coesão do texto, considerando os entrelaçamentos
com os elementos constitutivos fonológicos, morfológicos, sintáticos, semânticos,
pragmáticos e textuais. O caminho de ensino da leitura construído no âmbito das
relações entre estratégias de leitura, consciência textual e atenção, apresentadas
neste artigo, evidenciam possibilidades produtivas. Resta reconhecê-las, valorizá-las e
assumi-las como forma eficaz para o sistema de ensino.

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PAUL AUSTER, ENTRE OUTROS: INTERFACES INTERARTÍSTICAS E CONVERGÊNCIAS

Gabriela Semensato Ferreira1

Há algo, na obra de Paul Auster, que permite falar por entrelinhas. Falar de
invisibilidades, explorá-las através de imagens rasgadas, cheias de espectros ou
fantasmas. Nesses textos, a criação se dá a partir de ausências, por vezes. Nunca se diz
tudo, e por isso mesmo abre-se o caminho para muitos outros discursos em potência.
Literatura, portanto, já que aberta a um campo de sentidos vastíssimo sem que se
afirme a possibilidade de apreensão total do mundo, seja ele fictício ou não.
Aparente, ainda, é a relação entre sua obra literária, as artes visuais e o cinema.
Paul Auster produziu, além de romances e poesia, traduções, crítica de arte e roteiros
cinematográficos, além de atuar como diretor. Pode-se dizer, portanto, que o conjunto
de sua obra ultrapassa os limites do literário e explora sua visualidade, assim como o
que expõe de invisível, em jogo também nas artes visuais e audiovisuais.
Meu primeiro interesse por essa obra surgiu a partir da leitura de Invisível
(AUSTER, 2009). Eu já estudava literatura e metaficção em razão da pesquisa de minha
orientadora2 sobre poéticas contemporâneas. Havia ali, desde o início, algo que
aproximava os escritos do catalão Enrique Vila-Matas, como Bartleby e Companhia
(2000), daquele livro curioso de Paul Auster. Este último, Invsível, conta a história da
relação entre dois personagens escritores, um mais jovem, estudante, e outro mais
velho que, depois de um tempo, “desaparece”. Ele deixa apenas seu diário (ou
autobiografia), cujas últimas páginas são bastante fragmentadas. Cabe então ao jovem
escritor reescrevê-las. Só agora, anos depois, é que percebo o quanto estas poucas
linhas sobre o enredo dizem da obra de Paul Auster e, de muitas formas, da de Enrique
Vila-Matas também. Esse desaparecimento do escritor, afinal, não é novidade
nenhuma no meio literário. Vila-Matas, por exemplo, dedica diversos escritos a isso,
entre os quais o já citado Bartleby e Companhia. Neste, afirma-se que tudo que será
lido são notas de rodapé sobre um texto invisível acerca de escritores que pararam de
escrever. Ou seja, não há acesso a esse outro texto, já que invisível, suspenso. O texto

1
Mestra e doutoranda em Letras pela UFRGS e bolsista CAPES.
E-mail: gabisemensato@gmail.com
2
Professora Dra. Rita Lenira de Freitas Bittencourt, cujo projeto de pesquisa (de 2007 a 2012) se
intitulava Poéticas do presente: a narrativa de limiar de Enrique Vila-Matas.

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marginal, entretanto, ao qual se tem acesso, encontra-se no centro da página,


deslocado. Pensa-se, nesse sentido, não apenas em uma estética de margens, de
bordas, rodapés, limiares, mas nos espaços que se ocupa nessa escrita e dos quais ela
se ocupa3.
Trata-se de um “mal”, além disso, de um bloqueio que impede a escrita,
transformando escritores em “Bartleby”. Assim, faz-se referência à narrativa Bartleby,
o escriturário (1853), de Herman Melville, em que o personagem é um verdadeiro
enigma, e escolhe refutar qualquer pedido dizendo que “preferiria não fazer”, ao invés
da escolha de um decisivo “sim” ou “não”. Bartleby de certa forma encarna essa
imagem da indecisão e indefinição, que se reconhece em obras como a de Paul Auster.
O escriturário de Wall Street, que antes trabalhava com cartas extraviadas, acaba por
“desaparecer” da narrativa quando é internado. Esse destino se repete, de alguma
forma, em O Mal de Montano (VILA-MATAS, 2002), onde também figura o escritor
bloqueado, assim como os diários e a relação entre a escrita e a vida. Esse “escrever
para desaparecer” está, ainda, em Doutor Passavento (VILA-MATAS, 2005), assim
como em outras obras de Paul Auster. Podem-se encontrar, mais uma vez,
invisibilidades e desaparecimentos mesmo em Dom Quixote (1605), de Miguel de
Cervantes. Não surpreende, dessa forma, que, no texto, também o autor esteja
“morto” e que nele se perca a identidade do corpo daquele que escreve, noção
desenvolvida por Roland Barthes (1968). Ou, como diz Foucault (na conferência de
1969), de que a escrita abra um espaço onde o sujeito que escreve não pára de
desaparecer, podendo-se pensar, assim, na função autor no texto.
Assim, o que dizer dessa invisibilidade de Invisível? O que seria esse
desaparecimento do escritor, ou sua presença, ainda que não a possamos ver? Egle
Pereira da Silva (2013), acadêmica com diversos trabalhos sobre Auster, fala de
“máscaras”, que seriam usadas, na ficção, para esconder a face de quem fala. Assim, o
escritor estaria de alguma forma presente, mas sempre sob outras “formas”, sob essas
máscaras. É difícil afirmar o mesmo, entretanto, do autor.
Presente ou ausente, de qualquer maneira, é possível perceber que Auster põe
em cena, nesse texto, o próprio ato problemático de escrever, de fazer arte. Seu
personagem, em Invisível, transforma-se em espécie de “ghost writer”, um escritor
fantasma, na medida em que intervém no diário de outro, que também se torna seu.
Ao final, o narrador informa, ainda, que todos os nomes usados foram alterados, que
estes não são os nomes “verdadeiros” daqueles personagens, pois quis manter

3
Este movimento também se aproximava dos Cinco prefácios para cinco livros não escritos de Friedrich
Nietzsche, que, segundo o tradutor Pedro Süssekind, “possuem uma certa autonomia (...) indicando um
caminho a ser seguido”, como esboços dos textos que o sucederiam (2000, p. 12).

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protegidas suas identidades. Utiliza, portanto, uma ferramenta bastante comum na


indústria cinematográfica de obras “baseadas em fatos reais”. Lança, nas últimas
páginas do livro, um problema, uma quebra, que talvez não fosse aguardada pelo
leitor. Surpreende, pois, ao intervir e causa uma dúvida: será que essas personagens
existiram “de verdade”? Quem é esse jovem escritor que viaja à França e larga seus
estudos na universidade de Columbia? Com uma rápida busca, talvez até mesmo na
orelha do livro, o leitor-pesquisador descobre: há pontos em comum entre essa
história e a vida de seu escritor, Paul Auster.
Embarca-se, nesse momento da descoberta, em uma viagem proposta por sua
obra, uma viagem que pode ser feita mesmo no escritório. Um mundo de
questionamentos surge quando se percebe que há elementos autobiográficos do autor
dentro da obra, mas discretamente imbricados no texto, e além de tudo pistas para
quem as quiser descobrir. Entretanto, costurando tudo isso, há o aviso ao fim: esses
nomes são todos fictícios. Oras, é claro que são! Tudo ali é ficção. Mas então como
lidar com o autobiográfico que se esforça para ser notado e ao mesmo tempo se
esconde?
A noção de “pacto autobiográfico” de Philippe Lejeune, ainda reconhecida,
propõe que se desenvolve um pacto, no ato de leitura desse tipo de texto, quando há
o reconhecimento do nome utilizado pelo personagem-narrador, que deveria coincidir
com o nome do escritor. Pode ser que o nome não seja mencionado e ainda haja
pacto, mas se o nome diferir, ele não ocorre. Essa noção já foi revisada e questionada,
e ainda nos perguntamos como tratar casos como o de Auster, em que há essa
coincidência de nomes por vezes, mas nunca sem uma reviravolta, uma mudança, um
jogo de palavras.
Quando decidi não ser mais uma Bartleby, pelo menos em parte, e voltar a
escrever, percebi que talvez a forte intertextualidade que a obra de Auster tem com
seus próprios textos e de outros escritores e artistas provavelmente não era gratuita e
teria relação com a questão autobiográfica. Surgiram, então, os casos exemplares de
Diego Velázquez, René Magritte e Orson Welles, a partir de diálogos que era possível
estabelecer entre seus trabalhos e os de Auster4.
Diego Velázquez, apesar de distante temporalmente (século XVII), ainda é
bastante conhecido. Um de seus quadros mais discutidos pela crítica é As Meninas, ou
A família de Filipe IV (1656). Como comentado por Michel Foucault em As palavras e as
coisas (2000), vê-se nele um autorretrato do pintor Velázquez a pintar um quadro que

4
Este trabalho foi desenvolvido em minha dissertação de Mestrado em Letras, intitulada Paul Auster,
entre outros: sobre os limites da representação nas artes (2014), disponível em
http://hdl.handle.net/10183/102220.

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está de costas para o espectador. Os modelos desse quadro (dentro do quadro) não
estão no centro do quadro maior, mas se podem entrever suas imagens pelo reflexo
no espelho pequeno ao fundo da sala: o rei e a rainha. Em vez disso, ao centro, vê-se,
ao lado do pintor, a infanta, acompanhada de aias, cortesãos, damas e anões, assim
como de um cachorro.

Figura 1 – Velázquez, D. As Meninas ou A Família de Filipe IV. C. 1656/57

Fonte: Museo del Prado, Madrid

Velázquez tira do centro, do enfoque principal, aqueles que na época se


considerariam como o centro, isto é, o casal real, e coloca ali não apenas ele como
pintor, mas também esses outros sujeitos. Além disso, ao impedir que vejamos
claramente o que seria o modelo ali representado, é como se esse modelo de
“mesmo” caísse fora de sua própria representação. Chamamos essas imagens pelos
nomes das pessoas que as inspiraram, os modelos, a infanta Margarida, mas sabemos
que elas não o são. Que essa que vemos não é Margarida e aqueles não são o rei e a
rainha. O que enxergamos é outra coisa, não a mesma. Foucault reconhece nesse
quadro, portanto, elementos que apontam para a crise desse conceito de
representação como repetição do mesmo, como imitação a partir da semelhança.

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Considerando-se outras pinturas de Velázquez, vê-se que o autorretrato


permanece como um tema seu, assim como a transformação de pessoas de seu
convívio, o sogro e mestre e a esposa, em personagens bíblicos, como ocorre no
quadro Adoração dos Magos (1619).
Aproximando-se da obra de Velázquez, Paul Auster, em A invenção da solidão
(1982), usa seu nome próprio na primeira metade desse ensaio ficcional, mas depois,
na segunda parte, o substitui por A. Traz o pai e o filho como personagens, e costura
mais elementos autobiográficos em meio a críticas de outras obras, memórias do pai e
da infância, e a tentativa de superar o luto. Em certo momento, cita duas fotografias,
que são incluídas em algumas edições dessa obra. Na primeira, diz que está a imagem
de seu pai, multiplicada cinco vezes ao redor de uma mesa, como se estivesse em uma
reunião espírita. Assim, ao multiplicar-se, desaparece mais uma vez. Sua invisibilidade
também é citada como parte da infância do escritor e, claro, depois de sua morte.

Figura 2 – Auster, P. “Retrato de um homem invisível”

Fonte: The invention of solitude (2003, p. 27)

Outra foto que muito lembra esta é o Retrato de cinco ângulos de Marcel
Duchamp (1917)5, artista plástico cuja obra também questiona os limites do que se
considera arte. Esse tipo de retrato é aparentemente feito a partir do posicionamento
de espelhos ao redor do modelo, que é então multiplicado. Ou seja, esses espectros só
aparecem na foto, só são presentes naquele instante, fabricados em imagem.

5
Retrato de cinco ângulos de Marcel Duchamp. Fotógrafo: Henri-Pierre Roche. 1917. Fotografia por
processo da prata coloidal – National Portrait Gallery, Washington.

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Ao lidar com a fotografia, há ainda mais uma dificuldade no que se refere ao


tratamento do conceito de representação. Como explica Susan Sontag (2004), ela é
considerada também “documento”, “evidência do real”, um rastro desse real que
permanece ali registrado. Mas será que, no momento em que essas fotos são usadas
em A invenção da solidão, podem ser interpretadas apenas como “documentos” e
“provas do real”? O próprio narrador fala na “séance”, ou reunião espírita, fala da
multiplicação e consequente desaparecimento do pai. Mais uma vez, leva essa
“representação” a seus limites e expõe a crise da noção de mimese como “imitação”.
Afinal, não é possível ver aqui, assim como em Velázquez, algo diferente, que não
apenas repete ou imita? Isto é, percebe-se, nesses casos, por mais próximos que
possam parecer de um “real” pré-existente, a criação de algo que só existe na arte.
Isso nos leva a pensar, portanto, no papel dos nomes na obra artística e
também na língua e no contexto social. Nomear é fixar uma palavra a uma coisa. Os
nomes dos objetos são arbitrários, mas quando decidimos mudá-los opera-se uma
desidentificação.

Figura 3 – Magritte, R. La clef des songes (1930). Óleo sobre tela, 81 x 60 cm

Fonte: coleção particular de Magritte

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Nesse quadro de René Magritte, A interpretação dos sonhos (1930), os objetos


pintados recebem nomes diferentes. Como diz Foucault, “o que parece exatamente
com um ovo, se chama acácia; com um sapato, a lua; com um chapéu coco, a neve;
com uma vela, o teto” (2004). Por que essa troca, essa desidentificação? Talvez em
nossos sonhos o simbólico prevaleça, com seu “excesso de sentido”, como diz Paul
Ricoeur (1976). A partir de Freud, foi possível perceber nos sonhos sentidos para além
do literal, em que um objeto pode falar não apenas de seu uso cotidiano, mas
simboliza, para o sonhador, mais do que isso. E na arte, o que significa mudar o nome
de algo “representado”? Talvez indique que de qualquer forma, aquele ovo não é e
nunca será um ovo, mas sim o desenho de um. É o que se pode dizer também do
cachimbo de René Magritte, em A Traição das imagens (1926/ 1929), que apresenta
uma inscrição logo abaixo avisando: “Isto não é um cachimbo”.
O que nos leva a pensar, mais uma vez, que o Paul Auster inscrito em A
invenção da solidão, obviamente também não é Paul Auster, por mais próximo que
seja o enredo fragmentado da obra da vida do escritor. E essa troca de nomes é
enfatizada quando o nome de Auster é substituído, como já disse, por A. Em Viagens
no scriptorium (AUSTER, 2006), esse jogo de palavras vai além, já que o personagem
principal é nomeado “Blank” apenas, ou “espaço em branco”, em português. Desde o
início da narrativa, o personagem é vigiado por uma câmera escondida, que tira fotos
constantemente. O próprio texto, por vezes, aproxima-se de um roteiro teatral ou
cinematográfico e, nesse caso, a situação do leitor é complexa. O que sugere, por
exemplo, a falta de identidade conectada ao personagem Blank? Estaria ela
relacionada à incógnita identidade do narrador? À medida que o personagem observa
os objetos que se encontram em seu quarto, percebe um fenômeno curioso: todos
possuem etiquetas com seus nomes.
Assim, a visão, em Viagens no scriptorium, tem um funcionamento específico.
Está ligada à percepção que Blank tem do que o rodeia. Nesse espaço, nem tudo que é
visto pelo narrador através da câmera é percebido pelo personagem. Ele não vê tudo
que existe em seu quarto, simplesmente porque ainda não entrou em contato com
todos os objetos.
Isso ocorre, por exemplo, quando ele pensa em se vestir. Em uma conversa ao
telefone com James P. Flood, um ex-policial, este menciona um armário. Blank
presume que haja roupas no armário, “se é que aquele armário existe de fato”
(AUSTER, 2007, p. 13). Quando finalmente se veste, porém, é com a ajuda de outra
personagem, Anna, o que não resolve sua dúvida. A mente de Blank está repleta de
fantasmas do passado, assim como a narrativa em que se encontra, já que os

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personagens com quem entra em contato já apareceram, antes, em outras obras de


Paul Auster. Além disso, as fotos que a cada segundo são tiradas dele “não mentem,
mas também não contam a história inteira” (AUSTER, 2007, p. 8). São apenas
“evidência exterior”. Elas não servem como “evidência” no sentido de comprovação, e
as memórias que trazem à tona se voltam apenas a ficções.
Quem é “Blank”, portanto, nessa história? Ele ganhou um nome, assim como os
objetos em seu quarto, com suas tiras de esparadrapo. Portanto, ele é tão “Blank”
quanto a porta é PORTA e a janela, JANELA6. Nesse sentido, cada etiqueta está (e não
está) no devido lugar, marcando a existência das coisas. Contudo, elas não ficam no
lugar por muito tempo. Ocorre uma mudança nesta cena. Em certo momento, ele
nota, ao olhar para sua mesa, que o esparadrapo havia sido trocado. Em vez de dizer
MESA, agora dizia LUMINÁRIA. Todos os objetos tiveram seus nomes trocados, como
em um quadro de Magritte. Blank entra em desespero e decide devolver todas as
palavras a seus lugares, para recuperar alguma estabilidade. Porém, descobre-se,
então, escritor, inventor de todos aqueles com quem convive nessa narrativa. Percebe
a ficção dentro da ficção, que para ele é “real”. É o retrato do inventor solitário, em
exílio, dentro do quarto que se torna escritório. Ocupa, assim, o espaço do nome “Paul
Auster”, que aparece diversas vezes nessas obras. Responde, dessa forma, à pergunta
sobre a autoidentificação ou autorreferencialidade no texto recorrendo à
desidentificação, como ocorre já em Cidade de vidro (da Trilogia de Nova York). Lá,
afirma o escritor-detetive: “Meu nome é Paul Auster. Este não é meu nome real”
(AUSTER, 1987, p. 40).
Mas se Auster não é Auster e o cachimbo não é cachimbo, se no lugar do nome
pode haver um espaço em branco (espaço ocupado, entretanto), então o que resta? A
arte! A criação, a performance, o texto, que não se pretende ser “todo”, ou fechado,
mas mantém vazios e brechas, espaços de passagem. Em Verdades e mentiras (1973),
o personagem de Orson Welles (atuado por ele) pretende “tornar real” a história da
arte que elabora no filme, mas afirma que esta não tem relação, entretanto, com a
“realidade”, e sim com a “verdade”, ou, em outras palavras, com a arte.
Que consequências tem uma apologia da arte como a pensada por Friedrich
Nietzsche, por exemplo, nesse campo de pesquisa, e também para nós, como leitores
e espectadores? Modifica, certamente, nossa maneira de ler e interpretar as obras de
arte. Não nega que há profundas relações entre o que se considera “real” e a arte, ou
entre a vida e a arte, muito pelo contrário, demonstra que há relações complexas
entre essas instâncias, e que não se resolvem, portanto, opondo-se simplesmente fato
6
Os nomes dos objetos são destacados em caixa alta nessa obra, assim como certas falas do
personagem.

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e ficção, ou “verdade”, autobiografia e ficção, sem se pensar na hierarquia que essas


oposições geram há séculos, sem se pensar em seus pontos de contato e de incerteza.
Pensar a arte como imaginação de algo que ainda não ocorreu, no sentido de
Aristóteles, ou seja, como criação, é também pensar em formas de ler essas interfaces
artísticas e identificar, nesses textos, um pensamento próprio, poético, que permite
estabelecer intertextualidades, mas também borrar as fronteiras entre os gêneros
textuais, fílmicos. Permite observar, além disso, esse espaço de inespecificidade da
estética contemporânea, como diria Flora Garramuño (2014), ou de hibridez,
impossibilitando, dessa forma, a escolha de apenas um nome ou uma categoria fixa
que as defina.
Assim, quando Paul Auster desenvolve um projeto envolvendo a escrita de uma
história que se torna O livro das ilusões (2002) e um roteiro cinematográfico para o
filme A vida interior de Martin Frost (2007), vai além nesse terreno fértil dos híbridos.
Não se trata, então, de um livro que foi adaptado para o cinema, mas de um texto que
possibilitou a criação de ambos, justamente, talvez, por ter consciência da visualidade
presente na literatura e da poeticidade presente no cinema. É uma obra de
convergência, portanto, termo proposto por Henry Jenkins (2006) ao falar dos estudos
de mídias atuais.

Figura 4 – Auster, P. A vida interior de Martin Frost, 2007.

Fonte: Auster (2007)

Além das referências cruzadas que se identificam nesses textos, quando se


descreve o filme dentro do livro, por exemplo, e de suas interfaces, percebe-se mais
uma vez a presença de elementos autobiográficos. Isso porque, entre referências do

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filme à obra literária, há fotos de família. No livro, elas são de outros personagens, mas
na obra fílmica aparecem como retratos do escritor Paul Auster e de sua família.
Apenas visíveis por alguns instantes, não são mais retomadas até o fim da narrativa.
Desaparecem de cena. São mais peças nesse jogo de esconde-esconde que indica
fantasmas, seres do além (da obra), mas logo os torna invisíveis, inventando nomes e
pensando as artes a partir de suas próprias construções discursivas.

Referências

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______. Invisible. New York: Henry Hold, 2009.
______. The Book of Illusions. New York: Faber and Faber, 2002.
______. Travels in the Scriptorium. 1. ed. 2006. Ebook edition. London: Faber and
Faber, 2010.
______. The Book of Illusions. New York: Faber and Faber, 2002.
BARTHES, Roland. A morte do autor. In: ______. O rumor da língua. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
FERREIRA, Gabriela Semensato. Paul Auster, entre outros: sobre os limites da
representação nas artes. 132 f. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Instituto de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras,
Porto Alegre, 2014.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.
Trad. Salma Tannus Muchail. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Coleção
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______. O que é um autor? In: ______. Ditos e escritos III: Estética: literatura e pintura,
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GARRAMUÑO, Flora. Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética
contemporânea. Trad. Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.
JENKINS, Henry. Convergence Culture: where old and new media collide. New York:
New York University Press, 2006.
LEJEUNE, P. El pacto autobiográfico y otros estudios. Madrid: Megazul Endymion, 1994.
IMA, L. C. "Júbilos e Misérias do pequeno Eu". In: ______. Sociedade e discurso
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MELVILLE, Herman. Bartleby, o escriturário. Trad. Cássia Zanon. Porto Alegre: L&PM,
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MUSÉE Magritte Museum. Musées royaux des Beaux-Arts de Belgique.
Bruxelles. Disponível em <http://www.musee-magritte-museum.be/Typo3/index.
php?id=accueil&L=1>. Acesso em 09 jan. 2014.

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NATIONAL Portrait Gallery. Five-way portrait of Marcel Duchamp. Fotógrafo não


identificado. Disponível em <www.npg.si.edu/exhibit/duchamp/pop-ups/01-
02a.html>. Acesso em 12 ago. 2012.
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Edições 70, 2013.
SILVA, Egle Pereira da. Máscara e dissimulação. Revista de Letras do Instituto de
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Vianna Baptista. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
______. Doctor Pasavento. Barcelona: Anagrama, 2005.
______. O mal de Montano. Trad. Celso Mauro Paciornik. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

Filmografia
A VIDA interior de Martin Frost. Direção e roteiro: Paul Auster. Lisboa e Azenhas do
Mar, Portugal: Alma Films, Tornasol Films, Clap Films, Salty Features, 2007. 1 DVD
(96 min), son., color. Título original: The Inner Life of Martin Frost.
VERDADES e mentiras. Direção. Orson Welles. Produção: François Reichenbach,
Dominique Antoine e Richard Drewitt. Roteiro: Orson Welles e Oja Kodar. França:
Janus Film e SACI, 1973. 1 DVD (89 min), son., color. Título original: Vérités et
mensonges.

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BILINGUISMO NA INFÂNCIA ATRAVÉS DO MÉTODO LEARNING FUN

Gislaine Müller de Castro1


Claus Dieter Stobäus2

1 Introdução

Fenômenos atuais como a globalização e a expansão tecnológicas requerem


que as pessoas utilizem mais de uma língua para se comunicar em diferentes
ambientes. Hoje em dia, o idioma inglês, por exemplo, é necessário em situações como
atualizar o software do telefone celular, ler o manual de algum equipamento ou
brinquedo.
Assim, os processos de ensino e de aprendizagem de língua estrangeira têm se
tornado mais (re)conhecidos até fora dos Sistemas de Ensino, principalmente entre
adolescentes e adultos. Nesse sentido, desde as últimas duas décadas, o ensino de
língua inglesa tem se ampliado às crianças. A maioria das escolas de Educação Infantil
oferece algum tipo de trabalho de interação com o idioma, oportunizando, assim,
aprendizagens em língua inglesa aos alunos, propiciando o bilinguismo já desde a
infância.
Queremos expor neste trabalho como a aprendizagem de línguas estrangeiras
pode ser estimulada através da interação, ferramenta essa que permeia o método de
ensino de língua inglesa desenvolvido especialmente para crianças, Learning Fun.
Também trazemos o conceito de diálogo colaborativo (SWAIN, 2000), que é
fundamental para a discussão aqui abordada, o qual é entendido como a interação de
apoio estabelecida entre os alunos aprendizes durante a realização das tarefas. Nesse
caso, a aprendizagem é mediada através do uso da própria língua e da resolução de
problemas linguísticos ocorridos.
Usamos como base os princípios da teoria sociocultural de Vygotsky (1978),
pioneiro em estudos do desenvolvimento intelectual em crianças, salientando-se a

1
Mestranda em Educação PPGEDU/PUCRS, bolsista CNPq.
E-mail: gislaine.muller@acad.pucrs.br
2
Pós-doutor em Psicologia - Universidad Autónoma de Madrid, Doutor em Ciências Humanas/Educação,
professor titular dos Programas de Pós-Graduação em Educação e Gerontologia Biomédica da PUCRS.
E-mail: stobaus@pucrs.br

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importância das interações sociais. Posteriormente, estas teorias foram adaptadas


para os estudos de aquisição de segunda língua (L2) e língua estrangeira (LE) por
Lantolf (2000) e Donato (2000).
Por sua vez, o conceito de interação utilizado neste trabalho é o adotado por
Hall (2009), que se caracteriza por ser uma atividade imprescindível na comunicação
entre os indivíduos. Da mesma forma, o conceito de aprendizagem usado neste artigo
remete a outros teóricos socioculturais tais como Swain e Lapkin (2001), os quais
conceituam aprendizagem como um processo mediado socialmente, ou seja, que
depende de uma interação para que aconteçam a discussão, a negociação e a solução
do problema. Outro conceito muito utilizado no estudo da aquisição de segunda língua
e que faz parte do referencial teórico deste trabalho é o de andaimento (scaffolding),
que se caracteriza como um diálogo de apoio entre os aprendizes, por meio do qual
eles podem atingir um nível elevado de aprendizagem (SWAIN, 2000).
Os autores do presente trabalho pretendem observar e caracterizar dados
linguísticos provenientes de interações em sala de aula de língua inglesa em contexto
de ensino bilíngue. Essa investigação baseia-se em dados coletados mediante
observação de aulas bilíngues em uma escola privada no município de Porto Alegre, as
quais utilizam o método Learning Fun para desenvolvê-las. Os resultados aqui
relatados são preliminares e parciais, sendo que a coleta de dados segue até julho de
2016. A seguir, esboçaremos com detalhamento os conceitos que fundamentam o
referido estudo.

2 Referenciais teóricos

De acordo com Vygotsky (1978), o conhecimento é socialmente construído


através de um processo de colaboração, interação e comunicação entre os aprendizes
em contexto social. Para Lantolf (2000), a língua é um conjunto de sistemas que resulta
do uso, sendo utilizada como ferramenta para a ação social; os artefatos simbólicos de
uma língua são modificados por seus falantes, sejam eles arte, símbolos, números,
música, bem como a própria língua, e se transformam ao longo dos tempos para se
adaptarem a novas necessidades.
Pode-se afirmar, conforme Vygotsky (1978), que o conhecimento é um
movimento que parte do interpsicológico (entre indivíduos) para o intrapsicológico
(dentro do indivíduo); em outras palavras, durante o diálogo em um contexto social no
qual há comunicação, os sujeitos aprendem com esta interação, internalizando
conhecimento.

Dialogue Under Occupation 264


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A fim de facilitar o processo de aprendizagem, usa-se o andaimento,


originalmente apresentado por Wood, Bruner e Ross (1976), conceito que se refere ao
processo de apoio entre um especialista (expert) e um aprendiz (novice) na aquisição
da língua materna (L1). Posteriormente, este termo foi adaptado para as teorias de
aquisição de segunda língua (Donato, 1994). No presente estudo, observamos
andaimento no processo de diálogo de apoio entre a professora e os aprendizes,
auxiliando-os gradativamente na solução de problemas encontrados durante a
produção das tarefas.
A zona de desenvolvimento proximal (ZDP) é outro conceito central para a
aprendizagem, ela é tida como uma característica que se desenvolve por meio da
interação e expande o potencial da aprendizagem (MITCHELL, MYLES, 2004). Este
conceito de ZDP refere-se, metaforicamente falando, a um local no cérebro onde surge
a aprendizagem dominantemente produtiva, adquirida a partir da interação construída
entre os pares. Ainda conforme Mitchell e Myles (2004), a ZDP refere-se ao domínio de
uma habilidade que o indivíduo ainda não é capaz de usar independentemente, mas
que pode ser desenvolvido caso este tenha suporte ou andaimento.
Finalmente, faz-se necessário contextualizar que fazemos um deslocamento
teórico neste trabalho com o objetivo de conceituar bilinguismo, o qual, para Myers-
Scotton (2006) é a habilidade de usar duas ou mais línguas para levar adiante uma
situação do cotidiano.

3 Metodologia

Relataremos neste artigo dados coletados referentes a duas aulas de ensino


formal bilíngue, ministradas conforme a metodologia Learning Fun, em uma escola
privada do município de Porto Alegre. Foram realizadas observações de interações
entre uma docente e seus sete alunos, sendo estes com idades entre quatro e seis
anos de idade. Os dados aqui apresentados fazem parte da pesquisa de mestrado da
autora mestranda.
A metodologia de ensino de língua inglesa para crianças foi especialmente
desenvolvida em 1994 por Teresa Catta-Preta. As aulas acontecem duas vezes por
semana, com duração de duas horas e trinta minutos cada. Essas são conduzidas de
maneira natural e lúdica, com materiais concretos, fantoches, cartões de vocabulário e
músicas, os quais são utilizados para propiciar a aprendizagem de forma divertida. É
importante salientar que a autora mestranda possui autorização de Teresa Catta-Preta
para a observação das aulas.

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Os dados estão sendo coletados em forma escrita em Diários de Campo, pela


pesquisadora e analisados com a Técnica de Análise de Conteúdo conforme sugere
BARDIN (2013), com o intuito de identificar os dados linguísticos provenientes da
interação, bem como os momentos de aprendizagens dos alunos participantes.

3.1 Cuidados éticos

O procedimento da pesquisa se dá apenas observatório e de coleta de dados


mediante anotações por parte da pesquisadora autora, o que faz com que essa
pesquisa ofereça risco mínimo aos participantes. Além disso, é importante destacar
que foram tomados cuidados éticos, a fim de proteger a identidade dos participantes
e, isso foi autorizado pelos pais, mediante Termo de Consentimento Livre Esclarecido.
Em respeito aos aspectos éticos da Resolução 466, do Ministério da Saúde, os nomes
utilizados pelos participantes serão fictícios para preservar suas identidades. Os responsáveis
pelas crianças envolvidas neste estudo assinarão um Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE) e receberão uma cópia dele.

4 A produção dos alunos

As aulas mediante a metodologia Learning Fun promoveram diálogos e


interação durante todo o desenvolvimento da aula, a partir dos quais excertos dos
dados observados foram selecionados com o objetivo de exemplificar as interações, as
reflexões linguísticas produzidas pelos aprendizes.
É importante destacar que a fala da professora está identificada com a letra “T”
e a fala dos alunos pela letra “S” e com números de acordo com cada aluno, por
exemplo: S1, S2 e assim por diante.
Vejamos a seguir as interações ocorridas ao longo do preenchimento do
calendário referente ao tempo e temperatura, conforme sugere a rotina da aula da
metodologia, exemplo número um.

1. T: People. Let’s look at the window. ((cantando))


2. S: Let’s look at the window. ((todos cantam juntos))
3. T: People. What’s the weather like today? Uhmm. I think it’s sunny. Is it a sunny
day today people? Sunny day ((mostrando o cartão com o dia ensolarado))
4. S1: no. =
5. S4: =yes:
6. T: sunny day?

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7. S3: mas na outra janela tá.


8. T: Let’s look out the window people. I think tha:t today: it is a rainy day
((mostra o cartão com o dia chuvoso))
9. S3: no::
10. T: What do you think? Rainy day?
11. S4: mas tá sunny, olha lá na outra janela=
12. T: =or the weather is cloudy? Cloudy day?
((gesticula e mostra o cartão com nuvens))
13. S1: yes.
14. T: so, cloudy day?
15. S1,2,3,5,6: yes.
16. S4: tem sol lá.
17. T: because the sun is coming out from behind the clouds, you see?
18. S4: ah tá.

No exemplo acima, verificamos que os aprendizes apresentam dúvidas no


momento de decidir como está o tempo; nublado ou ensolarado ou chuvoso, bem
como demonstram negociação mediante interação. Nesse sentido, podemos perceber
o benefício da utilização do cartão ilustrativo de vocabulário que o método sugere para
a facilitação da compreensão dos alunos quanto ao vocabulário em aprendizagem
(tempo). Além disso, a interação que o método e a tarefa de preenchimento do
calendário propiciam são favoráveis para que os aprendizes utilizem a língua
estrangeira.
O excerto acima, ainda, mostra que os alunos empregaram a língua materna
como ferramenta de apoio para desenvolver o diálogo, quando não possuíam
vocabulário suficiente para fazê-lo na língua alvo.
Também, a professora é a mediadora da aprendizagem, uma vez que essa
estimula os aprendizes a visualizar, refletir e produzir os vocábulos na língua alvo.
Nesse sentido, a professora está desenvolvendo, por meio do andaimento e da
interação, o auxílio que os alunos necessitam para o desenvolvimento de sua ZPD,
promovendo a expansão do potencial da aprendizagem de seus alunos, conforme a
teoria já postulada por Mitchell e Myles (2004).
No diálogo a seguir (2), os alunos e a professora estão no momento de
apresentação de vocabulário novo ou de revisão, o qual é chamado de Circle Time.
Nele todos sentam em rodinha no chão e ficam curiosos para saber o que sairá de
dentro da mystery bag (saco de mistérios) da professora. Vejamos as interações.

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1. T: People, what color is my mystery bag?


2. S2, S4: blue.
3. T: yes, it’s blue. Blue. Very: nice:=
4. S5: = qui nem a cor do cabelo da teacher.@@
5. T: @ yes. Like my hair:
6. @@
7. S1: azul.
8. T: blue.
9. S1: Por que não pode chamá de azul?
10. S6: Porque é aula de inglês e não é aula de português.
11. @@@@
12. T: yes. We have to speak in English. Blue.

Evidencia-se, no exemplo acima, que há colaboração durante a construção do


diálogo. Através da colaboração, um dos alunos corrige o outro, enfatizando a
importância da utilização da língua inglesa, já que estão em aula bilíngue, na qual o
idioma inglês deve ser usado. Tal interação e aindaimento, também, promoveram
reflexão linguística e negociação de sentido entre os aprendizes. Ainda, nesse sentido,
Swain (1995) afirma que os aprendizes modificam suas falas durante o processo de
negociação de sentido, o que contribui para a aprendizagem.
Segundo Swain e Lapkin (2001), a produção na língua estrangeira leva os
aprendizes a perceberem que não conseguem expressar precisamente o que querem
dizer, o que pode ajudá-los a compreender que a forma da língua alvo é diferente da
forma da sua língua materna. Esta percepção é um passo importante para que a
aprendizagem da língua estrangeira de fato aconteça.

5 Considerações finais

As aulas bilíngues, seguindo a metodologia Learning Fun, promovem


oportunidades para a interação em língua inglesa. A produção na língua alvo foi
estimulada pelos materiais utilizados em aula, como cartões de vocabulário, fantoches,
materiais concretos e jogos.
O processo de aprendizagem da língua alvo foi facilitado pelo andaimento da
professora e dos colegas. A língua materna foi utilizada como recurso de comunicação,
quando o vocabulário na língua alvo era insuficiente; também, os alunos faziam as
atividades conjuntamente, compartilhando conhecimentos e utilizando andaimento na
negociação.

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Os alunos estão desenvolvendo habilidades linguísticas, utilizando o vocábulo


aprendido nas aulas bilíngues para expressar o que desejam na língua alvo. Ao realizar
esta atividade, eles têm oportunidade de refletir sobre a língua alvo.

Referências

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. 3. ed. rev. ampl. Lisboa: Edições 70, 2013.
DONATO, R. Sociocultural contributions to understanding the foreign and second
language classroom. In: LANTOLF, J. P. (Org.). Sociocultural Theory and Second
Language Learning. Oxford: Oxford University Press, 2000. p. 27-50.
HALL, J.K. Interactional as method and result of language learning. U.S.A, Cambridge
Journals, v. 43 p. 1-14, 2009.
LANTOLF, J. P. Introducing sociocultural theory. In: LANTOLF, J. P. (Org.) Sociocultural
Theory and Second Language Learning. Oxford: Oxford University Press, p. 1-26,
2000.
MITCHELL, R; MYLES, F. Second language learning theories. New York: Hodder Arnold,
2004.
MYERS-SCOTTON, C. Multiple voices: an introduction to bilingualism. Austrália:
Blackwell, 2006.
SCHNACK, C. M.; PISONI, T. D.; OSTERMANN, A. C. (2005). Transcrição de fala: Do
evento real à representação escrita. Entrelinhas, v. 2, n. 2. Retrieved November
24, 2006.
SWAIN, M. Three functions of output in second language learning. In: COOK, G.;
SEIDLHOFER, C. (Eds.), Principle and practice in applied linguistics: Studies in
honour of H.G. Widdowson. Oxford: Oxford University Press, 1995. p. 125-144.
SWAIN, M. The output hypothesis and beyond: Mediating acquisition through
collaborative dialogue. In: LANTOLF, J. P. (Org.) Sociocultural Theory and Second
Language Learning. Oxford: Oxford University Press, 2000. p. 97-114.
SWAIN, M.; LAPKIN, S. Focus on form through collaborative dialogue: Exploring task
effects. In: BYGATE, M.; SKEHAN, P.; SWAIN, M. (Eds.), Researching pedagogic
tasks: Second language learning, teaching and assessment. London: Pearson
International, 2001.
VYGOSTKY, L.S. Mind in Society: The Development of Higher Psychological processes.
Cambridge, MA: Harvard University Press, 1978.
WOOD, D.; BRUNER, J. S.: ROSS, G. The role of tutoring in problem solving. Journal of
child psychology and psychiatry. Londres, v. 17, p. 89-100, 1976.

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GESTÃO DOS USOS DE SI NA ATIVIDADE LABORAL:


TENSÕES EVIDENCIADAS NOS DISCURSOS EM EDITORIAIS DE UM JORNAL DE EMPRESA

Gislene Feiten Haubrich1

Múltiplos são os olhares investidos na noção de trabalho. Desde os gregos,


trabalhar é uma ação com restrito valor social/simbólico, visto que se associa ao
sacrifício, punição ou mesmo o apagamento do ser em função do resultado material da
produção. No entanto, estudos dos ergonomistas da atividade, em oposição às
exigências tayloristas, manifestam uma perspectiva fundante para a transformação do
olhar investido ao fazer laboral: a distância entre o prescrito e o real. Assim,
compreende-se que as prescrições, embora importantes, pois servem como base à
atuação do sujeito, não são cumpridas plenamente, mecanicamente: o trabalhador,
por diferentes questões envolvidas na situação do trabalho, faz escolhas e modifica o
processo de produção normatizado. Com referência a esses elementos, o ponto de
vista da atividade de trabalho é ampliado com os estudos da Ergologia, que remontam
ao início da década de 1980, na França. Busca-se interpretar, então, o trabalho
enquanto permanente desconforto intelectual, situação singular e única, momento em
que o corpo-si investe saberes para realização de sua atividade.
Em direção a essa proposta se pode entrelaçar a perspectiva de Bakhtin (2015)
que, ao tratar da interação verbal, atesta que todo texto é dialógico. Aquele que
enuncia é tomado por enunciados anteriores, pela palavra coletivamente valorada e
tensionada. Nesse sentido, o enfoque dialógico bakhtiniano permite ao analista do
discurso olhar para a materialidade semiológica que dispõe com a possibilidade de
problematizá-la, permeando a tessitura filosófica que está imbricada em todo o
processo analítico. No tramar destes fios, o estudo ensaia uma alternativa para
compreender a dinâmica da atividade de trabalho no universo das normas
antecedentes, do prescrito. Para tanto, parte-se da compreensão de que as premissas
da atividade e do dialogismo, por vezes, são desconsideradas na produção dos
discursos organizacionais, visto que o caráter informacional intenta subtrair a
dimensão da alteridade na construção de sentidos. Desse modo, reconhece-se que,

1
Doutoranda e mestra em Processos e Manifestações Culturais. Universidade Feevale. Pesquisa
realizada com incentivo da CAPES.
E-mail: gisleneh@gmail.com

Dialogue Under Occupation 270


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mesmo inerente, a perspectiva sociocultural do trabalho é secundária às estruturas da


enunciação na comunicação organizacional.
Diante dessa breve contextualização e com o propósito de refletir sobre as
práticas discursivas organizacionais, com os holofotes [ora] voltados ao prescrito, o
estudo tem como objetivo compreender como as tensões da gestão dos usos de si, na
atividade laboral, são evidenciadas no ato de linguagem da empresa Hera. Diante de
tal escopo, delimita-se este como um estudo de caso, cuja abordagem é qualitativa e
está ancorada na análise teórico-ergo-discursiva. No âmbito discursivo, são
considerados o ato de linguagem, o contrato de comunicação e as estratégias de
organização discursivas (CHARAUDEAU, 2010). Os apontamentos ergológicos referem
o uso de si pelo outro e o uso de si por si (SCHWARTZ; DURRIVE, 2007). Concebem-se
as categorias teóricas a partir da tensão entre os usos de si perante as relações de
poder (GALBRAITH, 1989; FOUCAULT, 2014), que culmina com o esboço de uma
identidade projetada pelo sujeito enunciador quanto ao sujeito destinatário, expressa
no discurso do sujeito comunicante. O corpus é composto por oito editoriais do jornal
da empresa, publicados no período de janeiro/2012 a junho/2014. A Hera é uma
empresa de automação industrial localizada no Vale do Sinos e contava, no período da
coleta de dados, com cerca de 440 trabalhadores entre as áreas de P&D e fábrica. O
artigo é estruturado com uma breve apreensão conceitual e segue com a abordagem o
caso em estudo.

Discurso, poder e trabalho: diálogo para a compreensão da atividade

Fairhust e Putnam (2010, p. 105) atestam: “as organizações são construções


discursivas porque o discurso é a real fundação sobre a qual a vida organizacional é
construída”. Sob a égide desse pressuposto, procura-se construir o arcabouço teórico
que orientará a análise dos editoriais do jornal da empresa Hera no estudo das tensões
entre os usos de si na atividade. A noção discursiva que orienta o olhar investido neste
estudo advém da semiolinguística de Charaudeau (2004, 2010). Conforme esse autor,
o ato de linguagem se constitui da atuação de quatro sujeitos: dois seres sociais (EUc-
TUi) e dois seres de fala (EUe-TUd).
Interessa mencionar que, para Charaudeau (2010), o processo comunicativo
ocorre como um jogo de intencionalidades, no qual aquele que comunica (EUc)
pretende envolver aquele que interpreta (TUi). Para tanto, vale-se de estratégias
discursivas delineadas pelos seres de fala: enquanto o enunciador (EUe) seleciona e
manifesta as temáticas e intenções do seu discurso, preocupa-se também com o
destinatário (TUd) e as possíveis construções de sentido que ele possa fazer perante o

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contexto que envolve a troca linguageira. A ação desses sujeitos decorre do contexto
que contempla tanto as circunstâncias quanto a própria situação da comunicação, que
“é como um palco, com suas restrições de espaço e de tempo, de relações, de
palavras, no qual se encenam as trocas sociais e aquilo que constitui seu valor
simbólico” (CHARAUDEAU, 2012, p. 67).
Assim, as interações são orientadas por contratos ou acordos socialmente
instituídos que permitem e orientam a enunciação discursiva. Este contrato
comunicacional é composto por dados internos e externos. Os primeiros se referem ao
movimento de projeção realizado pelo EUc, através do diálogo entre EUe e TUd no
quadro propriamente discursivo. A eles vinculam-se quatro princípios de organização:
enunciar, descrever, narrar e argumentar. Os dados externos advêm da identidade dos
sujeitos, da finalidade e do propósito do discurso, além do dispositivo adotado para
mediar à interação. Charaudeau (2004) destaca que as finalidades discursivas implicam
as relações de força expressas por visadas comunicativas, das quais se destacam: 1)
visada de informação, cuja ação do EU é fazer-saber e a do TU dever saber, uma
tentativa de promover uma relação com a “verdade”; 2) visada de captação, sendo que
o EU almeja fazer sentir e o TU deve sentir por meio da persuasão.
A proposição charaudeana do jogo de intencionalidades motiva a inclusão da
noção de poder à análise discursiva. Nesse caso, opta-se por dois olhares diferentes,
mas que em apoio podem auxiliar na digressão que ora se propõe. A começar pela
argumentação de Galbraith (1989), que procura delimitar três formas de manifestação
do poder. As duas primeiras categorias da noção de poder, para esse autor,
aproximam-se, pois referem à rejeição da própria vontade em função da vontade do
outro. O que diferencia o poder condigno do compensatório é o percurso de
reconhecimento. Enquanto no primeiro há sofrimento e busca-se eliminá-lo, no
segundo, a gratificação ofertada justifica a renúncia aos interesses próprios. De fato, os
interesses se transformam. As duas primeiras, que se caracterizam pela objetividade,
diferem desta terceira forma, a do poder condicionado, que é subjetivo e cujo
exercício pode ser implícito.
Em apoio a essa perspectiva, recorre-se aos pressupostos metodológicos
apresentados por Foucault (2014) para análise do poder enquanto relação assimétrica
e dinâmica. Ele é algo que circula e que funciona em cadeia; é exercido em rede
perante relações de força estabelecidas no/pelo embate discursivo. Foucault (2014)
evidencia dois esquemas de análise do poder: contrato – opressão e dominação –
repressão. É sobre o segundo que se discorrerá brevemente, visto que traz
contribuições interessantes ao estudo em andamento. Nesta perspectiva, a

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observação se dá por meio das ramificações do poder na sociedade. A dominação não


é polarizada, mas compartilhada e assumida diante do resultado do embate. Tal qual é
a repressão, que se caracteriza como efeito das relações de dominação.
Neste caso, as normas coletivamente instituídas determinam “verdades” a
partir das quais as instituições se revelam como instrumentos de dominação por meio
do estabelecimento de consensos que estão implicados nas relações de força entre os
indivíduos. A aproximação ou afastamento nas interações sociais decorre da
interpelação das instituições, mediante os discursos manifestos e que sustentam as
escolhas feitas pelos sujeitos no momento do embate discursivo. Desse modo, a
organização social possibilita a visualização da materialidade das punições e da
delegação do poder de punir em função dos comportamentos institucionalmente
propagados e assimilados. Os sentidos e saberes institucionalizados são tratados,
então, como técnicas e táticas de dominação.
A perspectiva foucaultiana conduz à noção de trabalho defendida neste estudo,
pois, conforme aponta Durrive (2011, p. 49), “o que caracteriza o homem é, na
verdade, a capacidade de se mover dentro de um universo de normas”. E normas são,
sobretudo, expressões discursivas. O mover indicado por Durrive encontra-se na noção
de dramáticas dos usos de si, desenvolvida por Schwartz e Durrive (2007). O termo
“dramática” pode ser entendido em aproximação à noção do ato de linguagem de
Charaudeau (2010), ou seja, na encenação discursiva protagonizada pelos seres de
linguagem para produção de sentidos e expressão de intencionalidade. No entanto,
remete também ao entendimento de que a situação (ou palco) laboral é única e
irrepetível, pois os elementos imbricados em cada interação são diferentes e
exigem/permitem ao sujeito diferentes formas de resposta.
As possibilidades de produção da resposta do trabalhador referem à noção de
atividade humana do trabalho. Existem diversos discursos normativos que perpassam
o universo laboral e cabe ao sujeito recorrer a essas prescrições, interpretá-las e
renormalizá-las, ou seja, “fazer uso de suas próprias capacidades, de seus próprios
recursos e de suas próprias escolhas” (SCHWARTZ; DURRIVE, 2007, p. 192). Assim,
conforme define Schwartz (2000, p. 41) “trabalho é uso de si”. Uso de si pelo outro,
por aquele que demanda a intervenção do “eu”, relaciona-se com as normas
antecedentes e prescrições, que podem ser registradas ou simbólicas. Elas visam
orientar a ação e aí está a relevância da norma, pois a evolução dos processos decorre
justamente da renormalização, quer dizer, da leitura e da interpretação da norma,
etapa que implica o uso de si por si, que “é, sobretudo, administrar-se como sujeito em
atividade, ou seja, fazer uso de si como corpo físico e como si” (FÍGARO, 2009, p. 36).

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Diante do diálogo entre as categorias teórico-ergo-discursivas, brevemente


delimitadas, e os discursos dos editoriais do jornal da empresa Hera, acredita-se que
podem ser identificadas evidências para a compreensão da dinâmica da atividade de
trabalho no universo das normas antecedentes. Do prescrito mediante a tensão dos
usos de si. A sequência do artigo apresenta, a partir das pistas discursivas, reflexões
acerca dos possíveis interpretativos produzidos pela leitura crítica dos discursos
organizacionais. Para além do olhar da produção da informação, enfatiza-se a
interação perante a inclusão da dimensão da alteridade no rastro do corpus
selecionado.

O rastro dos editoriais: pistas e tensões na atividade do corpo-si

Do ponto de partida oriundo da breve exposição do arcabouço teórico, pode-se


realizar alguns apontamentos acerca da tensão dos usos de si na atividade laboral,
evidenciados pelo ato de linguagem em editoriais do jornal da empresa Hera, no
período delimitado para este estudo. A fim de orientar a leitura desta análise, parte-se
do olhar do uso de si pelo outro, mediante prescrições e normatizações, para a
posterior indicação de elementos relacionados ao uso de si por si. O encontro desses
usos de si mediados pela noção de poder encerra o processo analítico. No entanto,
opta-se por iniciar tal processo com a síntese das categorizações discursivas da
semiolinguística de Charaudeau (2010), visto que é no discurso que se encontram as
pistas para a investigação proposta. Desenvolvem-se, então, as concepções de
situação e contrato de comunicação.
Quanto à situação de comunicação (CHARAUDEAU, 2010) em enfoque, destaca-
se que o palco é delimitado pelo jornal de empresa, ou seja, uma relação monologal
estabelecida entre sujeito e texto, cuja peculiaridade é a multiplicidade de parceiros de
linguagem. A figura do comunicador (EUc) é assumida pela empresa Hera, que ao se
projetar como enunciadora (EUe) assume a posição de disseminadora de saberes
mediante um elevado volume de prescrições. O destinatário (TUd) é idealizado como
uma figura passiva, assimilada e persuadida pela prescrições organizacionais. De outro
modo, o analista do discurso, na posição de interpretante (TUi), busca problematizar
essa relação pretendida entre o enunciador e destinatário (EUe e TUd).
As características identitárias da Hera e sua classe trabalhadora podem ser
sintetizadas: 440 funcionários2, sendo 319 homens e 121 mulheres, cuja alocação é

2
Dados de 04/11/2014. Sabe-se, entretanto, que no ano de 2015 a empresa Hera reduziu seu quadro de
trabalhadores em cerca de 50%.

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dividida entre sede, fábrica e filiais em nove diferentes cidades brasileiras. Quanto à
escolaridade, a classe trabalhadora se mostra heterogênea: 39% possuem ensino
fundamental, médio ou técnico completo ou incompleto, enquanto 61% possuem
ensino superior ou pós-graduação completo ou incompleto. Salienta-se ainda que a
condição de enunciação construída pelo ato de linguagem visa oportunizar apenas à
organização a apresentação de saberes, além da restrição do diálogo e no interesse em
estabelecer uma hegemonia de valores e perspectivas.
O modo de organização discursivo argumentativo (CHARAUDEAU, 2010)
sustenta os enunciados por meio de explicações que encerram o processo
informacional e visam neutralizar as renormalizações inerentes ao ambiente
organizacional. Exemplifica-se tal asserção com um excerto dos editoriais, na edição
79, cujo modo enunciativo que sustenta a construção textual é o alocutivo, ou seja,
“com o seu dizer, o implica e lhe impõe um comportamento” (CHARAUDEAU, 2010, p.
82, grifo do autor). Em “por outro lado, nós mesmos devemos nos comportar de forma
a demonstrar nosso estado de espírito mais importante: estar de bem com a vida!” o
enunciador modaliza um estado de espírito, “estar de bem com a vida”, elemento
indiscutivelmente subjetivo e não passível de normalização. Esse uso de si pelo outro é
imposto ao trabalhador que tem seu processo de sujeição implicado.
Exemplo semelhante é encontrado na edição 78 que, entretanto, é
estabelecido perante a função elocutiva do modo enunciativo. Em “Hoje é necessário
colocar nossa inteligência dentro da máquina e a máquina dentro da indústria. É isso
que estamos fazendo na Unidade de Painéis [...]” fica evidente a intenção de
engajamento do outro, mediante a produção de um efeito de verdade que anula
novamente a subjetividade humana do processo laboral. No entanto, tal olhar não se
sustenta quando se toma como base a perspectiva da atividade humana do trabalho.
Na realização de seu fazer o trabalhador, corpo-si, “lócus de debate de normas”
(SCHWARTZ, 2014, p. 259), recebe a norma, a interpreta e a renormaliza, sem a
possibilidade de repeti-la, pois os elementos que compõem o contexto já não são os
mesmos. O oposto aparece como intenção daquele que enuncia.
O elevado volume de prescrições presente nos enunciados dos editoriais
analisados manifesta certa inflexibilidade ao investimento das competências
particulares no exercício da atividade laboral. Em contrapartida, a organização
determina como seus valores a inovação, o empreendedorismo e o conhecimento, por
exemplo, eventos que exigem a ação criativa do sujeito “para criar produtos que
surpreendam” (edição 83). Desse ponto, busca-se identificar a incitação ao uso de si
por si que é prestada pela Hera nas proposições divulgadas nos editoriais. Salienta-se

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que dos oito editoriais analisados, quatro utilizam a expressão “profissionais altamente
qualificados” para caracterizar os trabalhadores. Por um lado, pode-se inferir que se
reconhece o potencial dos trabalhadores. Por outro lado, percebe-se a delimitação de
um perfil esperado pela organização mediante a qualificação profissional e acadêmica
dos sujeitos.
A gratidão também é modalizada a partir de enunciados que reconhecem a
relevância do investimento dos saberes do trabalhador no uso de que faz de si
(SCHWARTZ; DURRIVE, 2007). Exemplifica-se com excertos da edição 77 (“graças ao
trabalho de muitas pessoas que dedicaram entusiasmo, coragem e disposição”),
edição 79 (“mostrando espírito empreendedor”) e ainda na edição 80 (“O Brasil sabe
que a Hera é uma empresa extremamente competente [...] Aqui contamos com
profissionais qualificados que dedicam seu tempo na criação de soluções inovadoras
com tecnologia de ponta”). A construção enunciativa em evidência nestes trechos é
elocutiva (CHARAUDEAU, 2010), através da expressão do ponto de vista da
organização.
Em contrapartida, de forma explícita, apenas algumas áreas têm seu potencial
produtivo reconhecido, como é o caso do P&D. Nas edições 80 e 81, respectivamente,
afirma-se: “tudo isso não seria possível sem o trabalho duro de nosso P&D, que
desenvolveu um produto que entusiasmou o mercado internacional”; “as atualizações
da Série ABC, que continua a ser estudada e renovada em nosso processo de Pesquisa
& Desenvolvimento”. Percebe-se que o enfoque do jornal está em elevar o setor de
P&D ao patamar de diferencial da empresa no mercado, visto que, além dessas
asserções nos editoriais, a composição do canal (páginas 3 a 7) se constitui
fundamentalmente da apresentação de produtos e soluções em matérias escritas por
funcionários dessa área.
Nos exemplos das edições 80 e 81, fica evidente, ainda, a valorização do
trabalhador que “coloca-se por inteiro em atividade [que] põe em movimento a
energia de seu corpo, seus sentidos, sua experiência física e intelectual – o corpo em
relação ao meio, aos instrumentos e técnicas” (FÍGARO, 2009, p. 35). A ação
transgressora e criadora dos sujeitos (TRINQUET, 2010) é incentivada e atestada, o que
converge com os valores da organização. Entretanto, referência semelhante não é
aplicada aos trabalhadores da fábrica. Na edição 78, ao investir o olhar à fábrica de
painéis, o enunciador evidencia a produção de “painéis de automação [...] [que] são o
cérebro dos complexos sistemas de produção e infraestrutura”. O enfoque está no
produto, os sujeitos envolvidos na realização do processo são apagados e o potencial
de desenvolvimento é atribuído às máquinas.

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Uma circunstância discursiva relativa à situação de comunicação


(CHARAUDEAU, 2010) em análise é o negócio da empresa, a automação dos processos
industriais e, nesse caso, se justifica o interesse em mostrar no jornal, que circula entre
clientes, competências a partir dessa temática. Porém, ao considerar a classe
trabalhadora, que também tem acesso ao periódico, o destaque à atividade de uns e a
baixa relevância ao trabalho de outros tende a ocasionar problemas de
relacionamento e conflitos no ambiente organizacional. No caso da fábrica, a atividade
é percebida como execução plena de prescrições; os sujeitos vistos como engrenagens
das máquinas, sem o investimento de qualidades particulares na atividade. Em
oposição, tal característica é reconhecida, valorizada e instigada aos trabalhadores do
setor de P&D.
Diante dos apontamentos realizados até o momento é notável a relevância de
compreender as dramáticas dos usos de si a partir das relações de poder inerentes aos
processos laborais. Embora a Hera intente a homogeneização de perspectiva mediante
seu ato de linguagem prescritivo e com isso tente representar a anulação dos conflitos
e das diferenças, tal cenário é utópico, visto que há uma pluralidade de interesses que
são permanentemente negociados entre os trabalhadores. O conflito de perspectivas e
a disputa de sentidos no ambiente laboral o constituem, e isso é alheio à vontade da
organização, ao passo que, conforme aponta Morgan (2011, p. 163), “o poder é o meio
através do qual conflitos de interesses são, afinal, resolvidos”.
A tentativa de imposição de uma conduta aos trabalhadores decorre,
principalmente, do exercício do poder condicionado (GALBRAITH, 1989). Alguns
excertos contribuem para esse entendimento: “[...] Como referência nacional de
empresa de base tecnológica, é dever da Hera contribuir para o crescimento desta
entidade [...]” (edição 81); “Mantivemos nossa tendência pioneira, nos tornando a
primeira companhia do estado a ingressar neste segmento da bolsa” (edição 82); “São
estas companhias que ajudam a reduzir o grande déficit de nossa balança comercial no
segmento de eletrônica. Não é pela mera manufatura de produtos que vamos pagar a
conta do conhecimento” (edição 83). Nesse caso, a organização visa justificar as ações
tomadas, além de evitar questionamentos acerca delas. Utiliza, então, a modalização
do condicionamento comportamental que advém da sociedade e não pode ser
menosprezado.
A elaboração dos enunciados apresentados no parágrafo anterior se ancora
especialmente na visada comunicativa de incitação (CHARAUDEAU, 2004), que é
utilizada com o propósito de atribuir ao interpretante do discurso (TUi) a decisão final,
porém, os argumentos empregados pelo EUc influenciam a construção da

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interpretação, como se dissesse: “recomendamos isso, porém, você tem “liberdade”


para escolher como fará isso”. O locutor visa “mandar fazer” (faire faire), mas não
estando em posição de autoridade, não pode senão incitar a fazer; ele deve, então,
“fazer acreditar” (por persuasão ou sedução) ao TU que ele será o beneficiário de seu
próprio ato” (CHARAUDEAU, 2004, s. p.). Desse modo, salienta-se que tal
condicionamento e a crença de que as prescrições atendam às necessidades
interacionais dos sujeitos conduz a uma provável produção de informações no âmbito
informal.
O contexto normatizador e redutor que permeia os usos de si na realização da
atividade laboral conduz a breve reflexão das precauções metodológicas para análise
do poder no esquema dominação-repressão estudado por Foucault (2014), pois
permite a investigação de elementos discursivos que contribuem ao entendimento da
produção de sentidos sobre a atividade, na situação de comunicação enquadrada pelo
conjunto de editoriais. Nesse caso, cabe considerar as organizações enquanto forma
institucionalizada do exercício do poder, visto o interesse da Hera na determinação e
conservação dos sistemas produtivos, que mantém o sujeito externo/apagado da
atividade.
Diante disso, o ato de linguagem da Hera permite “examinar como a punição e
o poder de punir materializavam-se em instituições locais, regionais e materiais”
(FOUCAULT, 2014, p. 282). O discurso prescritivo à disposição de todos os
interlocutores atribui a eles a autoridade para monitorar os demais. Embora haja o
direcionamento ao papel das lideranças quanto a essa fiscalização, uma vez divulgado
o dito a todos, ele faz parte das normas que orientam as práticas laborais e a elas traz
implicações, renormalizações mediante a interação, interpretação e transgressão.
Como resultado possível, infere-se o estímulo à competitividade, por exemplo, que
para os trabalhadores do P&D pode fomentar o desenvolvimento e aprimoramento.
Porém, dissociada das práticas reconhecidas e destacadas pela organização, a
competitividade tende a gerar conflitos na atividade dos trabalhadores da fábrica.
A institucionalização de saberes por meio de técnicas e táticas de dominação
(FOUCAULT, 2014) é facilmente vislumbrada perante o corpus em análise. Os editoriais
representam uma forma de repressão comportamental perante o elevado volume de
prescrições que evidenciam a intenção de uniformização da ação dos trabalhadores,
além da dimensão informacional das relações estabelecidas na organização, que
desvincula o diálogo das práticas bem quistas no ambiente laboral. Tal aspecto conduz
à reflexão acerca do processo de sujeição altamente controlado e desencadeado por

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uma perspectiva que menospreza os sentidos gerados e as interações vivenciadas por


meio da atividade.
Aspectos como esses levam à sugestão da determinação de perfis adequados
ou inadequados à atividade e à organização, aspecto considerado na definição da
identidade projetada (EUe>TUd) do trabalhador, enquanto destinatário ideal desse ato
de comunicação (CHARAUDEAU, 2010). Desse modo, o destinatário é percebido como
imerso nos objetivos de negócio da Hera, seja por seu prévio interesse, seja por
imposição da empresa. Só permanece quem se adapta e busca produzir dentro dos
parâmetros determinados. Apenas parte do grupo de funcionários é percebido como
essencial, enquanto a outra não é referenciada como tal. Entretanto, em ambos os
casos, interessa apenas o resultado da ação, não a atividade em si.

Algumas breves considerações

Próximo do fim, esse percurso reflexivo exalta a relevância de reinvestir o olhar


ao trabalho para, então, reinterpretá-lo e renormalizá-lo. Enquanto prática
sociocultural, o trabalho é um espaço fecundo para reconhecer o processo de
representação identitária e de sujeição dos indivíduos. Nesse sentido, pode-se
problematizar a simplificação promovida pela perspectiva que relaciona mundo e
mercado. Se o trabalho é complexificado com a superação de um ponto de vista
economicista para outro, antropológico, da atividade humana, então é possível
identificar percursos cuja ênfase seja a intervenção do trabalhador na prescrição e na
transformação cotidiana.
Enquanto lócus de encontro e embate discursivo, o ambiente organizacional se
estrutura mediante os diversos jogos de intencionalidade experimentados pelos
trabalhadores no uso de si por si com vistas ao uso de si proposto pelo outro. O
diálogo entre organização e sociedade se estabelece a partir da cultura, sendo
inerentes as intervenções de um ao outro. Assim, faz sentido investir atenção nos
movimentos provenientes da relação dominação-repressão em ambos os espaços e
considerando as escolhas do sujeito neste processo, pois os condicionamentos
comportamentais culminam com a aceleração ou redução de impactos nas interações
entre indivíduos e coletivos.
Por fim, diante dos elementos apresentados, pode-se apontar que o discurso
da Hera é normalizador, com a intenção de restringir espaços do dizer e produzir
efeitos de “verdade”, além de outorgar aos trabalhadores a vigilância uns dos outros,
aspectos que tendem a estimular a competitividade. As possíveis coerções emanadas
do “dizer para fazer” e a crença de que as prescrições atenderiam às necessidades

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interacionais dos sujeitos na atividade laboral podem reduzir a comunicação nas


organizações a simples simulacros de produtividade no desempenho organizacional,
além de manter o enfoque contraproducente da noção de trabalho e o olhar que
desconsidera a capacidade criadora do sujeito na atividade.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins
Fontes, 2015.
CHARAUDEAU, Patrick. Visadas discursivas, gêneros situacionais e construção textual.
2004. Disponível em: <http://www.patrick-charaudeau.com/Visadasdiscursivas-
generos.html>. Acesso em: 10 jun. 2013.
______. Linguagem e discurso: modos de organização. Trad. Angela M.S. Corrêa e Ida
Lúcia Machado (coord. de tradução). São Paulo: Contexto, 2010.
______. Discurso das mídias. Trad. Angela M.S. Corrêa. São Paulo: Contexto, 2012.
DURRIVE, Louis. A atividade humana, simultaneamente intelectual e vital:
esclarecimentos complementares de Pierre Pastré e Yves Schwartz. Revista
Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, supl. 1, p. 47-67, 2011.
FAIRHUST, Gail T.; PUTNAM, Linda. As organizações como construções discursivas. In:
MARCHIORI, Marlene (Org.). Comunicação e organização: reflexões, processos e
práticas. São Caetano do Sul: Difusão, 2010. p. 103-148.
FÍGARO, Roseli. Comunicação e trabalho: binômio teórico produtivo para as pesquisas
de recepção. Mediaciones Sociales: Revista de Ciencias Sociales y de la
Comunicación, Madrid, n. 4, p. 23-49, 2009.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.
GALBRAITH, J. Kenneth. Anatomia do poder. São Paulo: Pioneira, 1989.
MORGAN, Gareth. Imagens da organização. São Paulo: Atlas, 2011.
SCHWARTZ, Yves. Trabalho e uso de si. Pró-Posições, Campinas, v.11, n. 2 (32), p. 34-
50, 2000.
______. Motivações do conceito de corpo-si: corpo-si, atividade, experiência. Letras de
Hoje, Porto Alegre, v. 49, n. 3, p. 259-274, 2014.
______. DURRIVE, Louis (Org.). Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade
humana. Niterói: EdUFF, 2007.
TRINQUET, Pierre. Trabalho e Educação: o método ergológico. Revista HISTEDBR On-
line, Campinas, número especial, p. 93-113, ago. 2010.

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BÓRIS E DÓRIS: ALGUMAS NOTAS SOBRE O DIÁLOGO

Guilherme Azambuja Castro1

Luiz Vilela é um escritor cuja maior marca é a habilidade em escrever diálogos,


tanto nas narrativas curtas como nas longas. Em sua obra, o drama dos personagens é
geralmente desenvolvido através das vozes e da dinâmica do conversar, como observa
Hélio Pólvora: “Vilela é bom, fora de série, quando põe gente conversando, amando, e
sofrendo, interrogando o seu destino ou libertando o instinto, gente que sem saber se
expõe a julgamento por seus instantes decisivos, reveladores” (HOHLFELDT, 1988, p.
198). Na novela Bóris e Dóris, os dois protagonistas fazem exatamente isso:
conversam. Através de um diálogo aparentemente superficial, cotidiano, no
restaurante de um hotel, aos poucos vamos sentindo as perdas, os desejos, as
frustrações dos personagens, e pressentindo o destino que os aguarda.
Por considerarmos esta novela obra exemplar no tocante à difícil tarefa de
urdir a trama somente através dos diálogos, a seguir, em breves notas, refletiremos
sobre a técnica de escrever diálogos, tendo como base teórica o ensaio Diálogo:
hablarlo, de Allison Amend, professor da escola de escrita criativa de Nova York
Gotham Writers’ Workshop, e o capítulo “Diálogo”, dedicado por Francine Prose,
conhecida autora norte-americana de guias de escrita criativa, em seu livro Para ler
como um escritor, exclusivamente ao estudo da técnica de escrever diálogos.

Uma conversa ordenada

Assim como qualquer representação literária da vida, o diálogo não tem a


obrigação de parecer real, mas sim de soar como se real fosse. Ao contrário da fala
cotidiana, em que normalmente não nos preocupamos com a ordem, com a sua
limpeza, eufonia etc., “el dialogo en la ficción”, diz Allison Amend, “debe provocar un
mayor impacto, tener un mayor enfoque, una mayor relevancia que una conversación
ordinaria” (AMEND, 2012, 198). Apesar de a trama de Bóris e Dóris ser uma conversa
da primeira à última página – as pouquíssimas intervenções do narrador caberiam

1
Doutorando em Letras, Escrita Criativa, PUCRS. Bolsista CAPES.
E-mail: guilherme.castro.001@acad.pucrs.br

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juntas em meia página – sentimos que não é uma conversa desordenada, cada linha
falada exerce uma função na trama, um objetivo: um enfoque.
Graças à eficiente comunicabilidade das falas de Bóris e Dóris, portanto, é que
aos poucos vamos assimilando tudo que é necessário para acompanhar a história: os
traços físicos e psicológicos dos personagens, suas gradativas mudanças, o passar do
tempo, o espaço em que se situam etc. O cuidado de Luiz Vilela com o texto é
primoroso no sentido de, ao mesmo tempo em que preserva as vestes de
informalidade nas vozes dos protagonistas, conseguir dispô-las numa sequência tal
que, lendo-as uma após a outra, a fábula vai aos poucos se mostrando e fazendo
sentido na imaginação do leitor.

Bóris e Dóris

A novela começa assim:

– Muito bem – ele disse, pegando o garfo e a faca.


– Você vai comer só isso? – ela perguntou.
– É claro que não – ele respondeu, olhando para o pratinho com a
fatia de melão.
– Coma um pedação de bolo de chocolate – ela disse. – O bolo está
uma delícia.
– E o meu colesterol? O meu colesterol também está uma delícia.
(VILELA, 2006, p. 07)

Bóris é um empresário sexagenário que sonha em se tornar diretor do


conglomerado que, segundo ele, está prestes a ser aprovado numa reunião. Na
primeira metade do livro, é Bóris quem conhecemos. Através das suas manifestações,
sabemos do seu sonho de ascensão profissional, apesar da idade, pois faz prognósticos
megalômanos que beiram ao cômico, como a criação das Organizações Paternostro
(seu sobrenome) e, consequentemente, a futura compra de um jatinho particular.
Sabemos, ainda, que Bóris é um homem machista, materialista e alheio às
preocupações dos outros, em especial Dóris, que teria largado o sonho de ser
professora por exigência dele.
A nostalgia pelos sonhos abandonados é o sofrimento de Dóris, que somente
aparecerá na segunda metade do livro, quando assumirá o comando da trama, ou da
conversa. Através de uma pequena história, Dóris apresenta seus questionamentos
sobre a felicidade de estar junto de Bóris. A partir desse momento, conseguimos
enxergar o personagem Dóris mais de perto:

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– Mas deixe-me contar a minha tarde divertida...


– Um briefing, Dóris; não um relatório.
(VILELA, 2006, p. 51)

A história que ela vai contar teria ocorrido no dia anterior, no mesmo hotel. É
determinante na trama porque sugere uma possível traição com um funcionário do
hotel. O tal encontro só teria sido possível porque ela estava lá, no saguão, sem fazer
nada, enquanto Bóris tratava dos seus negócios.
Esse “nada a fazer” de Dóris gera o seguinte diálogo:

– A gente pensa em tudo quando a gente não está fazendo nada – ela
disse.
– É verdade – ele concordou.
– A gente pensa em tudo.
– Minha mãe dizia, citando um santo, que eu não lembro qual, que “a
ociosidade é a oficina do diabo”.
– É isso mesmo...
– Você não quis mais dar aula...
– Eu? Eu não quis? Você é que não quis que eu desse, Bóris.
(VILELA, 2006, p. 60)

Dóris conta que foi convidada pelo funcionário a ir tomar banho num lago, ali
perto, e que provavelmente fará isso em seguida, nua, porque é o costume por lá
tomar banho despido no lago.
Bóris mantém uma falsa despreocupação. E prossegue para a tal reunião, às
dez e meia em ponto.
No último capítulo, Bóris volta da reunião e a trama se resolve.

Vontadezinha de seguir

Cada capítulo do livro é uma cena entre Bóris e Dóris. Na primeira, Bóris e Dóris
estão no restaurante do hotel, ainda não são nove horas da manhã, Bóris está
esperando o motorista, que deverá passar às dez e meia para apanhá-lo. Bóris olha o
relógio a todo o momento, Dóris implica com isso. Aqui, o diálogo é bem humorado,
Bóris chega a ir cantando ao buffet para repetir a fatia de melão. Ele tem algo
importante a fazer, algo que ainda não contou. Esse dia “vai entrar para os anais da
história”, ele diz. Mas nada sabemos sobre isso. Sabemos por enquanto poucas coisas
sobre os personagens: a diferença de idades, por exemplo – Dóris tem 37, e Bóris, 60 –
e que há uma grande, porém oculta, expectativa em Bóris.

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É preciso avançar, porque a conversa até aqui não foi capaz de mostrar muito
mais do que isso. Os primeiros diálogos diluem uma tensão mínima em pontuações
aparentemente despretensiosas, típicas de um começo de uma manhã ensolarada, e o
leitor vai permanecer na cena, primeiro, porque se diverte, e segundo, por efeito
dessas pequenas pontuações: “hoje vai ser um grande dia”, “vai entrar pra os anais da
história”, “depois eu conto”. O leitor, frente ao suspense, vai terminar a cena com uma
vontadezinha de saber o que Bóris quer tanto contar.

Monólogos travestidos

Até a metade do livro, como dissemos, é Bóris quem conduz a conversa. Dóris é
praticamente uma ouvinte. Mas a forma de diálogo não se desfaz porque Vilela é
especialista em travestir um verdadeiro monólogo em um aparente diálogo. Cenas
como esta, em que Bóris praticamente planeja o funcionamento inteiro de um negócio
para comercializar imagens de Nossas Senhoras, acontecem a toda hora no livro:

– Por falar em milhão – ele disse, – eu tive uma ideia, uma ideia
sensacional: criar uma loja de Nossa Senhora. Imagens, terços,
orações, o diabo, com perdão da palavra...
– Você está falando sério?
– Por que não? Religião é um prato cheio, minha filha. Religião...
Nossa Senhora, então, nem se fala: Nossa Senhora pode dar uma
mina de ouro.
– Hum.
(VILELA, 2006, p.18 )

As intervenções de Dóris são de curta duração, uma ou duas palavras com o


propósito apenas de interromper o fluxo do monólogo de Bóris e assim dar ao texto
somente a aparência de diálogo.
Mas as interrupções são verossímeis: lendo-as (ou ouvindo-as) temos a
impressão de estarmos nos identificando: ora, também falamos assim. Ou:
conhecemos alguém que fala assim.
Uma gostosa sensação de cotidianidade.

Arengar

Vilela constrói essa impressão de cotidianidade através de eficientes artifícios.


Caso mantivesse apenas um personagem falando, sem as interrupções – “hum..., você
está falando sério?...”, “Bóris, só você mesmo...” – e sem o tom despretensioso de

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uma fala cotidiana, o leitor, já inserido no mundo onde o diálogo faz a história – se
aborreceria. É o que Francine Prose chama de “arengar”: “Arengar é outra coisa que
deveria ser feita com moderação em literatura, como na vida, com um olho em por
que e por quanto tempo um leitor vai permanecer interessado num personagem que
simplesmente fica falando e falando” (PROSE, 2008, p. 189). Bóris e Dóris em muitos
trechos falam sozinhos. Mas graças a um jogo de frases curtas, a dinâmica da leitura
não é interrompida. É a vestimenta de diálogo real (da vida) ao diálogo ficcional que
permite esse “arengar” amenizado dos personagens. E assim, arengando, Vilela expõe
com eficácia o caráter dos dois personagens.

Ambiguidade

Uma das diferenças entre o diálogo real e o ficcional é que o diálogo, no texto,
precisa refletir o caráter, a personalidade de quem fala, e suas intenções. É assim que
o autor chamará a atenção do leitor para esse outro mundo, um mundo simbólico, que
é a ficção. Na ficção, o diálogo não tem o direito de ser irrelevante, de dizer somente o
que na superfície diz. O diálogo precisa, sobretudo, deixar subentendido. Deixar pelo
menos uma pontinha de interrogação pululando na cabeça do leitor sobre os
personagens e suas intenções. Nesse sentido, Francine Prose diz que, quando falamos

às vezes estamos tentando impedir que o ouvinte perceba o que não


estamos dizendo, que pode ser não apenas perturbador, mas,
tememos, tão audível quanto o que estamos dizendo. Em
consequência, o diálogo geralmente contém tanto subtexto quanto
texto, ou mais. Mais coisas ocorrem sob a superfície do que nela.
Uma marca do diálogo mal escrito é que ele faz apenas uma coisa, no
máximo, de cada vez. (PROSE, 2008, p.146).

Quando os personagens são ambíguos, sarcásticos, irônicos, receosos, mal-


intencionados, o leitor é levado a completar cada fragmento de voz numa dupla
leitura, como se houvesse uma espécie de legenda invisível a respeito dos reais
objetivos de quem está falando no papel. Não se confunde com o subtexto
normalmente atribuído ao conto – neste caso, é a história que é cifrada –, aqui é o que
o personagem quer dizer em detrimento do que diz efetivamente, em voz alta.
Em Bóris e Dóris, considerando ser uma novela que se desenvolve inteiramente
sobre os diálogos dos personagens, admitimos trechos que não trazem subtexto. São
passagens meramente indicativas: de tempo, de lugar, de alguma característica
importante sobre o espaço, e, portanto, servem apenas para entregar a informação ao

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leitor, e não para causar sensações, senão a de estar compreendendo algumas coisas.
Compreendemos, por exemplo, que se trata de um casal que o homem é vinte e três
anos mais velho; compreendemos que estão os dois no restaurante do hotel, numa
manhã ensolarada e que, em pouco tempo, o homem irá a uma reunião importante.
Porém, essas informações, ainda que ajudem ao entendimento da trama, não causam
sensações. Com elas, somos capazes de compreender, mas não de sentir os
personagens em sua substância humana abalada. No entanto, se bem colocadas no
meio de uma trama em que o fluxo de diálogo é a forma principal, se soarem naturais
e foram econômicas, essas indicações cumprem uma função narrativa e, por isso, são
bem-vindas.
Em uma novela como essa, é através do subtexto, de fala em fala, que
podemos perceber a complexidade interior dos personagens. A linguagem das vozes,
em seu rápido fluxo, em certos momentos se abre em ilhas de ambiguidades. A morte,
por exemplo, tema recorrente em cada cena (cada capítulo), é tratada por Bóris com
graça e humor, e então as palavras transcendem o significado literal:

– Me diga, me diga uma coisa: se esse motorista não passar aqui, o


que acontecerá? Você morrerá?
– Não, não morrerei. Será muito pior, chegarei atrasado à reunião.
– Quer dizer que chegar atrasado à reunião é pior do que morrer.
– Claro. Muito pior. O que é a morte? A morte não é nada. Agora,
imagine se eu chegar atrasado a essa reunião... (VILELA, 2006, p. 50)

As ambiguidades devem passar sutis aos olhos do leitor que, fascinado, sabe já
muito bem a essa altura que Bóris está na verdade zombando, mas zombando de algo
bastante sério. Pois a morte, para Dóris, é um tema mais necessário e presente do que
para ele, apesar dela ser muito mais jovem. Dos dois, é ela quem ali de fato representa
a perda, o luto pelos sonhos abandonados, enquanto ele ainda tem um objetivo na
vida: as Organizações Paternostro.

Ler Bóris e Dóris é maravilhar-se ouvindo os personagens conversando. Nas


palavras de Allison Amend, aqui podemos ouvir nas vozes dos personagens justamente
“las diferencias en sus personalidades” (AMEND, 2012, p. 211). As falas, apesar de às
vezes privilegiarem a informação apenas útil em detrimento da representação
dramática, na maior parte do tempo são carregadas de ambiguidades e segredos sobre
os personagens. Assim, o leitor é conduzido a participar ativamente do texto,

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compreendendo-o e sentindo-o não apenas através das vozes superficiais, mas


sobretudo através dos silêncios. É nos silêncios dos personagens, no que eles querem
dizer, que Vilela desenvolve, de cena em cena, seus mais intensos dramas: cotidianos,
sim, mas profundamente humanos.

Referências

AMEND, Allison. Diálogo: hablarlo. In: Escribir ficción. Guía práctica de la famosa
escuela de escritores de Nueva York. Trad. Jessica J. Lockhart. Barcelona, ES: Alba
Editorial, 2012.
HOHLFELDT, Antonio. Conto brasileiro e contemporâneo. 2. ed. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1988.
PROSE, Francine. Para ler como um escritor: um guia para quem gosta de livros e para
quem quer escrevê-los. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
VILELA, Luiz. Bóris e Dóris. Rio de Janeiro: Record, 2006.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte,
literatura e tradução. São Paulo: Editora 34, 2005.

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HENRY LAWSON EM PORTUGUÊS:


DILEMAS INTERCULTURAIS EM TRADUÇÃO DE LITERATURA

Gustavo Arthur Matte1

1 Introdução

Henry Lawson (1867 – 1922), de origens humildes, tornou-se um escritor


central para o processo de formação de uma literatura australiana nos anos 1890.
Símbolo de identidade nacional, seu rosto já estampou cédulas do dólar australiano e
selos postais dos correios na Austrália e, na história daquela literatura, é referido como
um marco. Apesar disso, no entanto, ainda não foi traduzido para o português e não
chegou ao conhecimento dos leitores brasileiros que, na verdade, pouco conhecem ou
possuem acesso à literatura australiana em geral.
Assim, para pensarmos a tradução de Henry Lawson para o português e sua
possível inserção no mercado editorial e no sistema literário brasileiro – e tendo em
vista que um conto é um objeto cultural criado para ser compreendido em
determinado contexto histórico e cultural, um objeto que existe em determinada
relação com a sua tradição literária –, devemos, antes disso, levar em conta que
estamos lidando não apenas com distâncias geográficas, temporais ou linguísticas,
mas, sobretudo, com distâncias de ordem histórica, cultural e literária2, sendo as duas
culturas e respectivas literaturas (a australiana e a brasileira) bastante particulares e
distantes entre si, além de cultivarem pouco conhecimento mútuo.
Dessa forma, uma reflexão – ou ao menos uma breve noção – sobre a história
da Austrália poderá permitir melhor compreensão dos contos de Henry Lawson e do
universo que representam, principalmente se levarmos em conta que suas narrativas
possuem forte teor regional (o interior rural da Austrália) e dialogam intimamente com
seu tempo (fim do século XIX). Há, nos contos de Lawson, uma série de palavras (por
exemplo, as que caracterizam tipos sociais) que, num contexto brasileiro (atual ou

1
Bacharel em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestrando em Teoria da
Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Bolsista CNPq.
E-mail: gustavo.matte@acad.pucrs.br
2
Conforme Bassnet e Lefevere (2001, p. 123), “what is studied is the text embedded in its network of
both source and target cultural signs”.

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contemporâneo ao autor), ficariam deslocadas ou inadequadas caso fossem traduzidas


por seus “correspondentes diretos” em português – e, por isso, deve-se, em relação a
elas, avaliar as implicações de optar ou não pela tradução, considerando-se a validade
de opções diversas – como notas de rodapé; tradução direta por supostos equivalentes
em português; manter os termos em inglês e, paralelamente, trabalhar na produção
de textos de apoio que ambientem o universo retratado e possam, por exemplo,
aparecer como um prefácio à obra; etc. Só que tomar uma atitude que transita pela
escolha de qualquer uma dessas opções tradutórias diversas carrega, por sua vez, seus
próprios “prós e contras”, que serão discutidos adiante.
A produção das traduções discutidas neste trabalho orientou-se em dois eixos
principais de reflexão: o primeiro é a adequação estética/formal, que se expressa na
discussão sobre a preferência de trabalhar a língua portuguesa de acordo com o
registro de uma literatura paralela (com traços em comum) à de Lawson no Brasil do
fim do século XIX ou, por outro lado, usar um registro da língua portuguesa mais atual
e próximo ao público leitor; o outro eixo de reflexão – justamente o que será discutido
no presente estudo – é a adequação histórica, social e cultural, buscando a melhor
maneira de representar, em língua portuguesa brasileira, o universo australiano
daquela época.
Para servir como base à análise, usaremos três contos de Lawson já submetidos
ao processo de tradução e reflexão, sendo eles: Rats (1893), Remailed (1894), e In a dry
Season (1892), todos originalmente publicados em jornais periódicos e posteriormente
reunidos na coletânea While the Billy Boils (1896).

2 A Austrália de Henry Lawson

Precisamos, antes de tudo, considerar que o universo sociocultural australiano


representado por Henry Lawson é bastante específico, inclusive dentro do próprio
contexto australiano. O tema primordial dos contos de While the Billy Boils é a vida no
interior (the bush), com sua paisagem, fauna, flora, economia, homens e relações
sociais engendradas por esse complexo. Por esse teor bastante regional, torna-se
impossível qualquer reflexão ou prática de tradução sem que se considere – ao menos
brevemente –os “arredores” da obra.
Dentre os elementos históricos e culturais que se sobressaem nos textos, é
notável a predominância de certos termos que caracterizam tipos sociais cujos
sentidos são derivados, especificamente, desse contexto rural australiano, e que não
encontram equivalentes na sociedade brasileira. Tomemos, por exemplo, os shearers:
eram trabalhadores rurais responsáveis pela tosa das ovelhas, sendo que, naquela

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época, a produção de lã era a atividade fundamental da economia australiana –


alçando-os, assim, a uma posição de relativo peso nas relações sociais que não poderia
ser verificada em outros países, como o Brasil. A tradução do termo shearer pelo
suposto equivalente em português (tosquiador) seria, conforme demonstraremos,
bastante problemática, pois um “tosquiador de ovelhas” não remete o leitor à
totalidade do sentido da palavra shearer. Perde-se, nesse processo, toda a dinâmica
social protagonizada por esse tipo de personagem:

- Atores sociais relevantes – a importância da lã transformou o shearer num


protagonista da dinâmica de classes na Austrália;

- Classe sindicalizada – a relativa escassez de mão de obra e a conquista da


educação universal possibilitaram a sindicalização em massa dessa categoria;

- Andarilhos – dada a sazonalidade do trabalho e a vasta área geográfica do


interior australiano, esses trabalhadores viajavam a pé, de propriedade em
propriedade, atendendo à grande demanda pelo serviço que prestavam.

Assim, por não possuir nenhuma dessas características dos shearers, um


“tosquiador” brasileiro pode até representar um equivalente em termos de
habilidades manuais, mas não dá conta de seu significado social, e uma tradução que
ignore esses aspectos terá como resultado diversas lacunas de sentido. Tendo em vista
que autor e público alvo dos originais compartilhavam o mesmo sistema cultural, o
conhecimento da dinâmica social dos shearers é presumido pelo texto e, em alguns
casos, não é reconstruído, na forma de indícios, pelo autor. No conto Rats, por
exemplo, o leitor se depara, logo no início, com a presença de três shearers:

‘Rats’ “Rats”
WHY, there's two of them, and they're – Vejam só, tem dois, e estão brigando!
having a fight! Come on.’ Vamos lá!
It seemed a strange place for a fight — Era um lugar estranho para uma briga –
that hot, lonely, cotton-bush plain. And aquela planície quente, deserta, de pasto
yet not more than half-a-mile ahead pobre. Ainda assim, menos de meia milha
there were apparently two men adiante, parecia que havia dois homens
struggling together on the track. lutando no meio da estrada.
The three travellers postponed their Os três viajantes adiaram o descanso e

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smoke-ho and hurried on. They were seguiram em frente. Eram shearers – um
shearers — a little man and a big man, pequeno e um grandão, conhecidos por
known respectively as ‘Sunlight’ and "Sunlight" e "Macquarie",
‘Macquarie,’ and a tall, thin, young respectivamente; e o outro, um jackaroo
jackeroo whom they called ‘Milky.’ alto e magro, que chamavam de "Milky"
Fonte: LAWSON, Henry. Publicação original em 1893. Tradução: Gustavo Arthur Matte, sob supervisão
do professor Ian Alexander, da UFRGS. Domínio público: disponível em
https://ebooks.adelaide.edu.au/l/lawson/henry/while_the_billy_boils/book2.8.html

De tal forma que temos, aí, os três shearers apresentados na condição de


viajantes, que viajam a pé, e estão no meio de uma planície quente e deserta. Os três
permanecem na mesma condição até o fim do conto – viajantes andarilhos numa
planície deserta – sem que, no entanto, seja apresentada qualquer justificativa ou
motivo para sua condição. Para um leitor australiano é perfeitamente normal – e isso
já está contido no termo – que um shearer esteja na estrada, pois faz parte do
significado social desses homens naquela cultura. Assim, automaticamente, ao ler
sobre shearers que estão viajando como andarilhos, o próprio leitor é capaz de
preencher as informações “suprimidas” pelo autor, pois, naquela cultura, são
informações implícitas. Um leitor brasileiro, no entanto, por desconhecer essa
característica do “tosquiador de ovelhas” australiano de ser andarilho, não
compreenderá a natureza social completa do evento retratado no conto e poderá,
inclusive, deparar-se com uma leve sensação de absurdo – pois, afinal, o que estariam
três trabalhadores fazendo com o pé na estrada? É claro que essa leve lacuna de
sentido não comprometeria, por si, a leitura do texto, mas seria suficiente para gerar
conotações e impressões bastante diferenciadas daquelas que possui na cultura de
origem.
Além dos shearers, outros tipos bastante frequentes e também culturalmente
específicos na obra de Henry Lawson são os swagmen e os sundowners. Os swagmen
eram trabalhadores rurais itinerantes, em geral vítimas da grande depressão
econômica da década de 1890, que causou intensa queda nos preços da lã e gerou
uma grande população de desempregados. Recebiam esse nome pois carregavam
todos os seus (poucos) pertences enrolados em uma espécie de cobertor, num
embrulho chamado de swag. Perambulavam pelo interior da Austrália em busca de
trabalho nas propriedades e cidades por que passavam e, caso não houvesse trabalho,
os proprietários geralmente forneciam comida e abrigo provisório em troca de
pequenos serviços.

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Já os sundowners, que também aparecem no contexto da crise dos anos 1890,


eram um tipo de swagman. Recebiam esse nome pois chegavam nas propriedades,
propositadamente, quando o sol já estava se pondo, e já havia terminado o trabalho
do dia. Aproveitavam a refeição e o pouso oferecidos pelo proprietário e desapareciam
na manhã seguinte, antes de começar o trabalho.
Assim, para entendermos a figura do swagman e do sundowner nos contos de
Lawson, é necessário primeiro conhecermos a natureza do trabalho rural na Austrália e
os efeitos da depressão da década de 1890.
É importante também ressaltar que a crise dos anos 1890 não se relaciona com
a literatura de Lawson apenas por caracterizar elemento fundamental do universo
retratado, mas também por constituir pano de fundo para a consolidação do próprio
sistema literário que Lawson ajudou a construir. Afinal de contas, a crise e a onda de
desemprego foram seguidas por ataques aos direitos dos trabalhadores que, por sua
vez, responderam com grande mobilização sindical e consciência de classe3. É nesse
contexto que podemos afirmar consolidar-se uma espécie de literatura operária na
Austrália, muito bem representada por Lawson, que publicava seus contos
principalmente em jornais voltados ao público operário4, como o The Worker ou o
Bulletin. Essa relação pode muito bem ser observada no trecho seguinte:

Also it's safe to draw a sundowner sitting Também, podemos desenhar um


listlessly on a bench on the veranda, sundowner sentado preguiçosamente em
reading the Bulletin. um banco na varanda, lendo o Bulletin.
Fonte: LAWSON, Henry. In a dry season. Publicação original em 1892. Tradução: Gustavo Arthur Matte,
sob supervisão do professor Ian Alexander, da UFRGS. Domínio público: disponível em
https://ebooks.adelaide.edu.au/l/lawson/henry/while_the_billy_boils/book1.16.html

Eis aí uma síntese da distância sócio-histórica entre o contexto cultural de


origem (Austrália) e o de chegada (Brasil): um trabalhador rural desempregado
(sundowner), mas alfabetizado, e que possui acesso a publicações periódicas que o
tomam como público alvo (Bulletin). Esse breve parágrafo concentra distâncias

3 O universo dos sindicatos é muito bem retratado no conto The Union Buries its dead.
4 O tipo de veículo através do qual o autor publicou originalmente seus contos também é um dado
importante para a reflexão tradutória. Tendo sido escritos inicialmente para veiculação em jornais
periódicos, os contos de Lawson apresentam forte diálogo com a realidade cultural imediata e com o
público leitor desses mesmos jornais, o que faz com que os textos sejam ainda mais culturalmente
específicos do que um conto que, por exemplo, tivesse sido produzido para ser consumido pelo
australiano urbano ou pelo inglês metropolitano. Conforme Bassnet e Lefevere (2001), “the material
conditions in which the text is produced, sold, marketed and read also have a crucial role to play” (p.
136).

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intransponíveis entre a realidade histórica australiana de fins do século XIX e a


brasileira, principalmente a contemporânea ao autor. Questões como essa devem ser
levadas em conta quando se pretende o melhor resultado possível na tradução
intercultural de textos. Mas como traduzir a literatura de Henry Lawson preservando
da melhor maneira possível os sentidos e formas mais específicos da cultura de
origem?

3 Possibilidades

Lidar com textos literários repletos de palavras como essas – carregadas de um


sentido histórico específico – exige um trabalho de contextualizar o leitor, caso se
queira preservar intatos os sentidos culturais da origem. Essa contextualização pode
ser feita através de notas de rodapé ou glossários, por exemplo, que, no entanto,
possuem o problema de documentarem demais o texto. Além do mais, por ser um
livro de contos, não se pode assumir que o leitor os lerá em ordem, ou que os lerá a
todos, de tal forma que seria necessário registrar com notas de rodapé todas as
ocorrências dos termos culturalmente específicos, o que, por sua repetição
considerável, consistiria num excesso de paratextos, entrecortando o texto 5. A
apresentação documentada de uma obra literária dá ao texto um aspecto de estudo,
ou investigação, que pode até ser desejável para um público de leitores mais
investigativos ou curiosos, ou até leitores acadêmicos e especializados, mas pouco
indicada para leitores cujo propósito seja mais descompromissado.
Outra possibilidade é a produção de textos de apoio que acompanhem a
publicação como, por exemplo, um prefácio ambientando o leitor no universo ao qual
a obra pertence – permitindo, assim, que os termos originais sejam mantidos em inglês
e sem a necessidade de notas de rodapé. Essa escolha possui o mérito de manter texto
e paratextos bastante afastados, deixando a leitura do texto fluída e amenizando
consideravelmente o efeito de documentação da obra, além de manter intatos os
termos culturalmente muito específicos e, portanto, intraduzíveis. Há, no entanto, a
desvantagem de que tal publicação perderia a adesão de leitores com pouco
compromisso em conhecer a realidade social profunda do texto fonte – aqueles que
querem ler apenas o texto, e não o paratexto, e ficariam completamente abandonados
com a não-tradução dos termos. Isso pode significar a perda de um número
considerável e importante de leitores caso a intenção seja apresentar para o sistema

5 O uso de um glossário seria positivo no sentido de eliminar a repetição do paratexto, que ocorreria
com a nota de rodapé. Mas, ainda assim, seria um fator de ruptura na leitura, entrecortando-a.

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literário brasileiro a obra de um autor nunca publicado em português, oriundo de uma


literatura nacional pouco conhecida no Brasil.
Por outro lado, devemos considerar que a opção pela tradução dos termos por
possíveis “equivalentes” em português possui a vantagem (que é, ao mesmo tempo,
uma desvantagem, pelos motivos já discutidos) de deixar o texto com uma aparência
mais doméstica, o que pode ser positivo no sentido de atrair aqueles leitores que estão
interessados no texto como uma narrativa, mas sem assumir compromissos com suas
especificidades culturais. Ao possibilitar uma leitura mais fluída (sem nota de rodapés
ou glossários que entrecortem o texto) – e também sem a necessidade de que o leitor
tenha que se dedicar à leitura de um texto adicional (prefácio) para que possa
desfrutar da tradução –, o uso dos termos em português pode, no entanto, – e irá –
eliminar consideravelmente as especificidades do contexto cultural de origem, em
alguns casos até influindo consideravelmente nas impressões de leitura (como no
exemplo de Rats, acima); a vantagem, porém, será a possibilidade de abarcar um
público leitor consideravelmente maior, o que pode ser bastante importante para a
estreia de um autor num sistema literário distante. Futuramente, caso a experiência
com Lawson seja aprovada por leitores brasileiros, outras propostas de tradução,
focadas em públicos mais específicos, poderão ser produzidas, se houver demanda,
aprimorando o conhecimento que teremos, a partir da primeira tradução, daquele
autor.

Referências

BASSNETT, Susan; LEFEVERE, André. Constructing Cultures: essays on literary


translation. Shangai: Shangai Foreign Language Education Press, 2001.
LAWSON, Henry. In a dry Season. University of Adelaide. 1892. Texto em domínio
público: disponível em <https://ebooks.adelaide.edu.au/l/lawson/henry/while_
the_billy_boils/book1.16.html>. Acesso em: 11 nov. 2015.
LAWSON, Henry. Rats, 1893. University of Adelaide. Texto em domínio público:
disponível em <https://ebooks.adelaide.edu.au/l/lawson/henry/while_the_
billy_boils/book2.8.html>. Acesso em 11 nov. 2015.

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REFLEXÕES SOBRE MODULAÇÃO PEDAGÓGICA NO PROCESSO ENSINO/APRENDIZAGEM:


UM ESTUDO DE CASO

Gustavo Giusti1
Adail Sobral2

Introdução

O cenário social do mundo atual é marcado pela velocidade no trânsito das


informações, pela facilidade de acesso aos mais diversos aparatos tecnológicos, bem
como também é característica do mundo contemporâneo a inserção dos jovens ao
mundo digital e sua fácil adaptação à dinamicidade existente.
Pertencentes a esse dinâmico cenário, os jovens, os quais passaremos a tratar
como alunos, encontram-se não só habituados à comunicação instantânea, mas
também aparentam uma voracidade em busca de resultados de quaisquer espécies
para quaisquer ações que venham a executar, característica essa típica da cultura do
imediatismo.
Andando por uma via paralela ao referido cenário social, encontramos nossos
colégios, escolas e universidades. Essa via parece apresentar uma enorme dificuldade
em acompanhar a sociedade, não só em termos de utilização de tecnologias em sala
de aula, mas também no fortalecimento da aliança professor/saber/aluno. Essa aliança
certamente definirá o quão eficiente será a construção do processo
ensino/aprendizagem.
Com uma realidade científica crescendo exponencialmente nas mais distintas
áreas, a quantidade de objetos de estudo aumenta significativamente, e a forma como
estes conhecimentos chegam aos alunos torna-se assunto cada vez mais discutido,
estabelecendo diálogos entre autores e exigindo reflexões necessárias.
Assim, duas ideias que permeiam esse cenário acadêmico devem ser
conhecidas de modo a fundamentar arguições acerca da construção do procedimento
ensino/aprendizagem: Transposição Didática e Modulação Dialógica. Tanto os

1
Doutorando em Letras. Universidade Católica de Pelotas.
E-mail: ggiusti@pelotas.ifsul.edu.br
2
Doutor em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela PUC-SP e professor da Universidade
Católica de Pelotas.
E-mail: adail.sobral@gmail.com

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docentes como os administradores acadêmicos, munidos sobre essas ideias, serão


capazes de consolidar uma possibilidade maior de proporcionar a seus alunos uma
apropriação mais rápida e definitiva dos conteúdos acadêmicos desejados. Nesse
sentido, este trabalho propõe-se a fundamentar e refletir sobre a construção de uma
modulação pedagógica, apresentando resultados obtidos em sala de aula através de
uma ferramenta tecnológica.

Transposição Didática: a articulação entre os diversos saberes

Para que seja possível o entendimento sobre a teoria de Transposição Didática,


é necessário antes distinguir os diferentes tipos de saberes existentes, bem como a
articulação entre eles, seguindo a ideia proposta por Yves Chevallard, apresentada em
1985 em seu livro La Transposition Didactique.
Para começar a percepção sobre como distinguir os saberes, Matos Filho (2008)
nos auxilia quando expõe:

À ciência cabe o papel de responder as perguntas que são formuladas


e necessárias de serem respondidas em um determinado contexto
histórico e social. Por outro lado, esses novos saberes precisam ser
comunicados à comunidade científica, em um primeiro plano, e à
própria sociedade, em um segundo plano (MATOS FILHO, 2008, p.2).

A partir dessa visão, podemos desdobrar o conhecimento adquirido pela


sociedade em três saberes distintos. No primeiro momento, tem-se na descoberta ou
desenvolvimento de conhecimento por parte de cientistas/especialistas a geração do
saber científico. Este é um saber de cunho específico e avançado, compreendido em
sua essência e suas possíveis consequências pelos cientistas, os quais têm como tarefa
contínua, além de aperfeiçoarem suas descobertas, moldá-las para que a sociedade
como um todo possa ter conhecimento.
Após o saber científico, entramos no meio acadêmico e encontramos o saber a
ser ensinado. Este é o conhecimento que as instituições de ensino recortam por
julgarem pertinente a respectiva prática pedagógica exercida na instituição. É este
saber que encontramos nos livros, videoaulas e apostilas desenvolvidas por docentes.
E por fim, o terceiro saber é aquele em que ocorrem os processos de ensino e
aprendizagem, o saber ensinado. Esse é o saber que ocorre na sala de aula, onde, com
o auxílio de livros, softwares e de professores, o aluno consegue construir para si e
apropriar-se deste conhecimento.
Estes três saberes foram colocados por Chevallard como sendo

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[...] o savoir savant (saber do sábio), que no caso é o saber elaborado


pelos cientistas; o savoir a enseigner (saber a ensinar), que no caso é
a parte específica aos professores e que está relacionada à didática e
à prática de condução de aula; e por último savoir enseigné (saber
ensinado), aquele que foi absorvido pelo aluno mediante as
adaptações e as transposições feitas pelos cientistas e pelos
professores (CHEVALLARD3, 1998, apud ALMEIDA, 2011, p.10).

Almeida (2011), ao refletir sobre essa distinção de saberes, corrobora nossa


análise quando diz que

[...] há sim diferenças entre aquilo que se elabora nos espaços


puramente científicos e aquilo que é desenvolvido nos ambientes
estritamente educativos. Não se trata de diferenças conceituais, mas
de diferenças “textuais”, pois elas estão no campo semântico e léxico
e, por isso, precisam ser consideradas, porque as transposições as
levarão em conta por demais (ALMEIDA, 2010, p.10).

Uma vez delimitados e devidamente distinguidos os três saberes, torna-se mais


visível a importância da teoria da Transposição Didática. Como o conhecimento gerado
pelos cientistas, bem como a forma como a própria comunidade científica recebe este
conhecimento, não é igual à forma como jovens alunos devam ter acesso a essa
informação, a transposição didática surge então como instrumento que vai nos
permitir estudar a variação do conhecimento entre os saberes. Assim, segundo
Polidoro e Stigar (2010), em um sentido restrito, a transposição didática pode ser
entendida como a passagem do saber científico ao saber ensinado. Entretanto, os
autores alertam para que apesar do sentido restrito dado por sua definição, não haja
confusão por parte dos leitores com relação à mudança de ambiente. Supõe com o
termo passagem o processo de transformação do saber, e não apenas uma mudança
de lugar, como do laboratório para a sala de aula. Com base nessa passagem de
conhecimento, afirma-se que

A transposição didática é entendida como um processo no qual um


conteúdo do saber foi designado como saber a ensinar sobre, a partir
daí, um conjunto de transformações adaptativas que vão torná-lo
apto para ocupar um lugar entre os objetos de ensino. O trabalho
que transforma um objeto do saber a ensinar em um objeto de

3
CHEVALLARD, Y. La transposition: Didactique du savant au savoir enseigné, 1998. In: ALMEIDA,
Transposição didática: por onde começar?, 2011.

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ensino é denominado Transposição didática (CHEVALLARD4 1991,


apud POLIDORO e STIGAR, 2010, p.154).

Na ação de definir a transposição didática, Chevallard, por consequência, viu-se


engajado noutro desafio: uma vez que afirmava que os objetos de conhecimento
haviam se transformado em objetos de ensino e aprendizagem, seria agora necessário
repensar os demais sujeitos participantes dessa cadeia de acontecimentos, tais como
professores, autores e alunos, diferenciando as análises acerca das dimensões
cognitivas de exigência de cada processo de ensino/aprendizagem.

O processo da Transposição Didática

Para que o saber científico possa atingir o ponto onde o professor julgue que
este conhecimento encontra-se apto a ser apropriado por seus alunos, alguns passos
são certamente necessários para transformar o saber cientifico em saber escolar.
Chevallard interpreta essa dinâmica didática como sendo composta por duas etapas de
transposições complementares: externa e interna. Segundo ele, a externa é
contemplada pelo currículo formal e livros didáticos, ou seja, todo material de apoio
que auxilie o aluno. Podemos incluir nessa lista quaisquer recursos tecnológicos hoje
disponíveis em grande número de nossas instituições de ensino. Já a transposição
interna é aquela que ocorre quando os conteúdos a serem ensinados são colocados
em sala de aula, é onde ocorre a ação do processo de aprendizagem.
Como forma de auxílio ou até mesmo em busca de um melhor embasamento
sobre a conceituação de Transposição Didática, temos Pereira (2012):

A transposição didática fará o trabalho de reorganização, mediação


ou reestruturação dos saberes historicamente constituídos em
saberes tipicamente escolares, ou seja, em saberes ensináveis e
aprendidos, compondo a cultura escolar com conhecimentos que
transcendem os limites da escola (PEREIRA, p. 5, 2012).

Nesse momento, é oportuno recordar a motivação da existência do processo


de transformação do conhecimento: o sistema pedagógico acadêmico não é
compatível com o conhecimento científico gerado pelos pesquisadores.
Evidentemente que se inter-relacionam, porém para que um conhecimento possa ser
ensinado, ele necessita passar por um processo de transformação, visto que em seu

4
CHEVALLARD, Y. La transposition Didactique. Genoble: La pensée sauvage, 1991. In: POLIDORO;
STIGAR. A transposição didática: a passagem do saber científico para o saber escolar, 2010.

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primeiro momento não foi criado com o objetivo de ser ensinado. É da natureza
humana gerar comparações, criar hierarquias, porém, mesmo havendo um
distanciamento entre os saberes, não há necessidade de um sobrepor o outro, uma
vez que ocorrem em situações distintas.
No âmbito da transposição externa, temos como agentes participantes do
processo desde instituições de pesquisa, instituições acadêmicas e escolares, e
também um mercado de livros didáticos e programas políticos ligados a currículo
escolares. Esse círculo que vivencia a educação foi nomeado por Chevallard como
Noosfera. O resultado desta “esfera pensante” (denominada assim por MATOS FILHO,
2008) são os documentos que regram as diretrizes curriculares e orientam o ensino de
uma determinada disciplina.
A passagem para o saber ensinado, que complementa então a transposição
didática, tem no professor o sujeito responsável por sua execução. E para que o saber
científico atinja os alunos, o próprio Chevallard em seus escritos já colocava que
eventuais “deformações” se fazem necessárias. Essas “deformações” não devem ser
compreendidas como perda de conhecimento, muito menos como um objeto a ser
ensinado equivocado. Durante a ocorrência da transposição interna, o conceito de
modulação inserido por Sobral (2009) destaca-se na literatura por permitir uma
excelente reflexão sobre as concepções dialógicas adotadas por docentes em sala de
aula, razão pela qual analisaremos com maior cuidado esse conceito, que talvez possa
complementar os termos da epistemologia proposta por Chevallard.

A modulação pedagógica

O processo pedagógico de ensino/aprendizagem é construído na aliança


formada pela relação professor/saber/aluno, denominada por Chevallard como
“funcionamento didático”. Como visto anteriormente, é necessário realizar a
transformação – com prováveis deformações, segundo Chevallard - para que os
saberes científicos de uma dada época a serem ensinados possam se tornar saber
ensinado. Partindo do pressuposto que o principal fator que alicerça a relação entre o
professor e o aluno é o saber, então a transposição do conhecimento necessita ser
feita com conhecimento técnico e cautela, passada aos alunos de forma responsável e
acessível, tarefa essa exposta assim pelo autor:

Um conteúdo de saber foi designado como “saber a ensinar” sofre, a


partir de então, um conjunto de transformações adaptativas que vão

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torná-lo apto para ocupar um lugar entre os “objetos de ensino”


(CHEVALLARD, 1991, p.45, apud MONTEIRO, p. 85).

E Pereira (2012) também relata em seu trabalho a complexidade dessa tarefa:

Um grande desafio do professor é transformar um conhecimento do


saber em um conteúdo didático para serem assimilados pelos alunos.
Para isso os conteúdos devem sofrer a ação didática criativa do
professor de forma a transformar um saber científico em saber
ensinado (PEREIRA, p. 6, 2012).

Temos assim duas reflexões possíveis que nos levaram diretamente a um


desafio. Por um lado temos exposto o grau de complexidade exigido, não para se
entender a importância da tarefa docente de transpor os saberes, mas sim para
executá-la, e por outro lado, encontramos na concepção didática proposta apenas a
relação aluno/professor sendo contemplada, não se privilegiando uma reflexão sobre
o terceiro elemento da aliança (o funcionamento didático). Para auxiliar essa reflexão
pedagógica em torno de como realizar a transposição dos saberes, Sobral (2009)
apresenta a ideia de modulação. Em uma análise inicial, podemos caracterizar a
modulação, nesse contexto, como sendo a transformação do conhecimento a ser
ensinado em um objeto de conhecimento escolar palpável para os alunos, modificando
o objeto a ser ensinado e interrelacionando-o com os demais conhecimentos já
construídos pelos alunos, adequando-os assim às possibilidades cognitivas destes.
Faz-se necessário observar, aqui, que a modulação a ser realizada sobre o
objeto de conhecimento é de autoria do docente, cabendo-lhe assim a
responsabilidade de escolher não as mais completas ou complexas explicações e
analogias, mas sim adaptar de modo pedagógico a linguagem oral e escrita a ser usada.
Caso haja condições, é interessante que esta transformação do objeto de ensino
ocorra de maneira mais individualizada possível no processo de ensino, o que torna
necessário para melhor eficácia que o professor conheça a realidade social de seus
alunos.
Bakhtin, ao abordar os temas discurso e enunciação, refletindo sobre as
relações dialógicas que constituem o enunciado, alerta para a necessidade de se
conhecer o ouvinte:

Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza


responsiva; toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou
naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante
(BAKTHIN, 1997, p. 271).

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E complementa: “O empenho em tornar inteligível a sua fala é apenas o momento


abstrato do projeto concreto e pleno do discurso do falante” (BAKTHIN, 1997, p. 272).
Isso nos leva a pensar na existência de um elo entre gênero, discurso e texto, e
que Sobral interrelaciona da seguinte maneira:

Parto da ideia de que o texto (qualquer que seja a unidade


materialidade – som, imagem, sinais, etc.), entendido como unidade
linguístico-composicional, e o discurso, entendido como processo de
mobilização de textos para a realização de projetos enunciativos,
criam uma intricada rede conceitual, em vez de restringir-se a um ou
a outro aspecto (SOBRAL, 2008, p.1).

Tendo, portanto, em mente que texto não é somente a escrita, podemos


expandir o território onde o professor necessitará modular não somente seus livros e
apostilas, mas de certa forma quaisquer recursos pedagógicos que venha a utilizar
para apresentar seus conhecimentos específicos da disciplina. Sobral, no entanto, faz
um alerta com relação ao processo de modulação, quando ao transformar/modificar
escritas e falas:

O texto traz potenciais de sentidos, realizados apenas na produção


do discurso; o discurso vem de alguém e dirige-se a alguém (ou seja,
é endereçado), o que modula sua arquitetônica, e traz em si um tom
avaliativo, ao mesmo tempo em que remete a uma compreensão
responsiva ativa da parte de seu interlocutor típico – nos termos de
gênero no qual se insere (SOBRAL, 2008, p.2).

Assim, para realizar a transposição didática, em termos de modular o saber, o


professor já realiza, de modo pessoal e interno, uma personificação de seu ouvinte,
buscando adaptar seu discurso da melhor maneira possível para ser compreendido.
Com base nas ideias apresentadas por Sobral e Bakhtin, pode-se dizer que
modular o conhecimento a ser ensinado também significa redimensionar o objeto de
conhecimento (saber a ser ensinado) para outra prática dialógica, para além da
utilizada pelos livros, levando em consideração a mudança discursiva para que seu
ouvinte seja capaz de responder aos seus ditos, concretizando então, sua própria
construção do conhecimento. É um espaço para livre criação do professor, que
entretanto deve exercer o cuidado de garantir que o distanciamento entre o saber
científico e o saber ensinado não distorça o saber de origem e nem se torne dogma.

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Baseado nas reflexões de Pereira (2012), e para melhor construir a concepção


de modulação, pode-se esboçar um caminho acerca das competências necessárias
para que um docente consiga executar a modulação com maiores chances de êxito:
a) Dentro de sua área de especialização, julgar baseado em relevância,
pertinência e significância os saberes científicos a serem ensinados;
b) Dominar o saber a ser ensinado em suas especificidades e de modo
articulado e contextualizado;
c) Determinar um pressuposto sobre como o aluno possa construir o saber
ensinado. Conhecer a realidade social e relacionar com outros
conhecimentos, fatos e momentos atuais dominados pelos alunos é de
grande valia;
d) Criar situações que promovam oportunidade do aluno se desenvolver;
e) Articular com as demais disciplinas;
f) Utilizar-se de novas linguagens, gêneros e discursos;

A ferramenta utilizada e o procedimento metodológico

Como ambiente propício para implementação prática dessas ideias, foram


utilizadas duas turmas de ensino técnico profissionalizante do curso de Eletrônica do
Instituto Federal Sul-Riograndense, localizado na cidade de Pelotas –RS, curso este
composto por oito semestres letivos.
O estudo de caso realizado teve como ferramenta de apoio o software
Multisim, produzido pela empresa National Instruments. Trata-se de um simulador
eletrônico virtual, voltado às áreas da engenharia eletroeletrônica e mecatrônica.
Através desta ferramenta virtual é ofertado aos alunos vivenciar um ambiente
profissional, permitindo realizar atividades práticas relacionadas não somente à
montagem de circuitos elétricos, mas também a execução dos mais variados testes
relacionados ao funcionamento dos mesmos.
Este software foi escolhido em virtude de sua grande aceitação entre as
empresas de tecnologias, sua rápida inserção nas faculdades de engenharia e a
excelente gama de recursos ofertados pelo simulador, tanto com relação à vasta
biblioteca existente de componentes eletrônicos como os inúmeros testes visuais
possíveis. Além disso, o software tem em sua interface gráfica equipamentos de
medições semelhantes aos existentes nas bancadas físicas já existentes à disposição
dos alunos em laboratórios. A figura 1 apresenta um circuito projetado por um aluno,
mostrando também a visualização do equipamento de medição, no caso, um
osciloscópio.

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Figura 1 – Tela proporcionada pelo Simulador Multisim da National Instruments

É possível apresentar sucintamente algumas outras vantagens do uso do


simulador eletrônico, tais como o valor do custo operacional nulo para o aluno, o
tempo relógio de sala de aula mais bem aproveitado, o risco de danificar algum
componente com sobrecarga sem reposição inexistente e, principalmente, o fato do
aluno não ser submetido ao risco de choque elétrico.
A aquisição desse software simulador permitiu ainda aos docentes trabalharem
de modo a não mais ficarem reféns dos componentes eletrônicos existentes no setor
de ferramentaria do curso, bem como os projetos eletrônicos, mesmo que de modo
acadêmico, não mais precisarem estar restritos aos componentes obtidos nas lojas da
cidade, visto que a biblioteca existente no software é extensa, permitindo aos alunos
colocar em prática (mesmo que de forma virtual) suas ideias para que se criem
projetos inovadores e úteis em seu cotidiano.
No momento em que se observa que o aluno tem autonomia para decidir qual
o propósito de projeto de circuito eletrônico que ele deseja construir, é de fácil
conclusão que cada aluno trabalhará de maneira diferente. Nada mais oportuno do
que essa situação para que o docente possa exercer a modulação pedagógica sobre o
saber a ser ensinado.
Quando o professor adquire informações pessoais sobre os alunos, com
relação, por exemplo, a seu contexto social, necessidades e experiências de vida, as
abordagens científicas podem ganhar contextualizações fundamentadas no cotidiano
de cada um, seja exemplificando um detector de presença ou um bafômetro digital
automotivo. Nesse ponto é que ocorre a modulação pedagógica.

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Com a recente aquisição do software pelo curso de Eletrônica, alguns


professores passaram a utilizá-lo de forma sistemática a partir do quinto semestre
letivo. Assim, para a realização da tarefa proposta por esta pesquisa, foram utilizadas
duas turmas pertencentes ao quarto semestre. Esta escolha se deu por dois motivos: o
conteúdo programático das disciplinas já habilita o uso do simulador e é possível
adiantar essa ferramenta para uma turma sem prejuízo às demais, visto que essas
serão oportunizadas regularmente no quinto semestre. Portanto, para a pesquisa duas
turmas foram abordadas durante um semestre letivo, com o mesmo docente, uma
com uso do simulador, em que os alunos puderam ter uma abordagem modulada
individualmente, e outra turma trabalhando em bancadas eletrônicas convencionais,
submetidas ao ensino regular proposto pelo curso.
O período vespertino do curso técnico de Eletrônica contou com duas turmas
em seu quarto semestre letivo, ficando o grupo A com 12 alunos e o grupo B com 10
alunos. Para realizar o trabalho de modulação pedagógica, abordada através da
ferramenta de simulação eletrônica durante o semestre, foi feita a opção pelo grupo A,
pelo simples fato de apresentar mais alunos, o que seria um desafio maior e possíveis
resultados positivos seriam evidenciados mesmo com a matemática desfavorável.

Resultados obtidos

Quando o assunto é educação, processo ensino/aprendizagem,


desenvolvimento escolar ou ainda o quanto o saber a ser ensinado se tornou de fato
saber ensinado, realizar uma espécie de conclusão de resultados é sempre uma tarefa
árdua a que se propõe o pesquisador. Por se encontrar muitas vezes imerso em seu
campo de pesquisa, pode facilmente de forma inconsciente deixar-se dominar pelas
hipóteses mais satisfatórias ou simplesmente julgar o resultado como satisfatório
observando apenas os itens que lhe convêm.
No estudo de caso abordado aqui, esta tarefa foi amenizada, talvez pelo fato do
ambiente de estudo encontrar-se situado nas áreas das ciências ditas hard, como o é a
eletrônica. Com o intuito de não correr o risco de um julgamento subjetivo ilegítimo
com relação ao quanto os alunos se apropriaram do conhecimento científico
apresentado na disciplina, foi desenvolvida pelo professor ao final do semestre uma
proposta de tarefa a ser executada por ambos os grupos.
Essa proposta de buscar mensurar matematicamente os resultados obtidos no
trabalho docente durante o semestre se assemelha a uma prova curricular teórica
(Figura 2), porém conta também com a destreza dos alunos para desenvolver um
circuito eletrônico capaz de solucionar um problema específico (Figura 3). Para tanto,

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foram permitidos os mesmos materiais disponíveis e tempo (uma hora e meia) de


execução da tarefa, que contou com três itens a serem avaliados.

Figura 2 – Questões abordadas na pesquisa sobre aquisição do conhecimento científico

Figura 3 – Situação proporcionada aos alunos como desafio eletrônico

A discrepância de resultado obtido foi significativa. Apesar do grupo A (que


trabalhou com a ferramenta) contar com um contingente de alunos maior, o que ao
longo das aulas dificulta um atendimento mais personalizado, este apresentou uma
média de 94% de conclusão correta da tarefa, contra 42% de acerto do grupo B.
Entretanto, a maior surpresa obtida não foi com relação a acertos ou erros em
questões pré-definidas, mas sim, no que diz respeito ao modo como os alunos do
grupo A desenvolveram a questão de projeto eletrônico constante na tarefa.
Pelo fato de trabalharem durante o semestre desenvolvendo ideias pertinentes
a seus cotidianos, no momento em que foi necessário solucionar uma questão com

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outra especificidade, eles obtiveram êxito quase em sua totalidade, entre os 12 alunos.
Já o grupo B, que trabalhou circuitos pré-definidos ao longo do semestre, apenas dois
alunos (entre dez) conseguiram esboçar uma solução, sendo que um ainda não obteve
o desenvolvimento em tempo hábil.

Considerações finais

Para que possamos concretizar uma reflexão mais coerente, não nos
prendendo puramente aos resultados mensuráveis, faz-se pertinente refletir melhor
sobre os procedimentos. Partindo do raciocínio de que toda transposição didática
enfrenta dilemas acerca de sua construção prática, cabe pensar que

Se, na escola, trabalham-se práticas discursivas a partir de outras


práticas discursivas típicas da escola (que são inevitavelmente
redutoras em alguma medida, porque a escola não pode reproduzir o
mundo fora dela), é preciso ter claro que essas metapráticas são
distintas das práticas que se ocupam e que podem deturpá-las caso
não se tenha consciência das operações impostas pela transposição
didática (SOBRAL, 2011, p. 44).

Através do uso de ferramentas que proporcionam igualar o ambiente


acadêmico ao profissional, o papel do professor ultrapassa suas apostilas de sala de
aula, obrigando-o a modular todas as suas práticas discursivas, pois o sujeito ouvinte já
não é mais o mesmo aluno passivo, uma vez que este também passa a ser portador de
enunciados, mesmo que em forma de linguagem eletrônica. Mesmo com esse risco
amenizado, sempre que trabalhamos com tecnologia em sala de aula, o papel docente
se torna mais fundamental ainda, conforme Costa (2008) em sua pertinente reflexão
sobre o uso de tecnologias em sala de aula.

Se, num primeiro momento, isso pode depender de uma atitude


favorável dos professores à utilização de novas tecnologias no
processo de ensino e de aprendizagem, num segundo momento a
questão fulcral parece ser a de saber como fazê-lo de forma
adequada e em estreita relação com as práticas educativas desses
mesmos professores (COSTA e VISEU, 2008, p. 15).

Um segundo item a ser necessariamente observado, crucial talvez, parte de


uma questão já abordada por Peralta e Sobral, quando dizem:

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Em suma, não é porque o aluno/profissional em formação não pode


dispor de certos recursos teóricos que ele seria inferior (a tirania da
teoria), do mesmo modo como não é inferior o professor/formador
por não ter ciência de um “saber prático” que o aluno/formador em
formação detém (a tirania da prática). Importa o fato dialógico de
que um dos pares só é professor/formador porque o outro é
aluno/profissional em formação (PERALTA, 2009, p.64).

Nesse ponto encontramos o desafio maior do professor que se propõe a


modular seu conteúdo acadêmico a cada aluno, pois poderá estar entrando num
ambiente possivelmente desconhecido e, somando-se a isso, temos ainda o fato de
apresentar uma ferramenta tecnológica ao aluno, o qual poderá adquirir, apropriar-se
e usufruir de novos conhecimentos científicos até mesmo para o professor, ou
simplesmente encontrará saberes recortados pelo professor no processo de
transposição didática.
Assim, o caráter dialógico da modulação pedagógica só terá valia no momento
em que ambas as partes imersas nos processos de ensino e aprendizagem tiverem
aprendido a conviver com novos desafios, aceitando, mesmo diante do conhecimento
da legitimidade da posição ocupada por cada um dos participantes, que o processo
sempre será aberto e alterações práticas serão características constantes e mútuas.

Referências

ALMEIDA, G. P. de. Transposição didática: por onde começar? 2. ed. São Paulo: Cortez,
2011.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
COSTA, F.; VISEU, S. Formação – Acção – Reflexão: um modelo de preparação de
professores para a integração curricular das TIC. As TIC na Educação em Portugal.
Concepções e práticas. Lisboa, 2008. p. 238-258.
MATOS FILHO, M. A. S. de. A transposição didática em Chevallard: as
deformações/transformações sofridas pelo conceito de função em sala de aula. In:
Congresso Nacional de Educação/Educere Curitiba: PUCPR, 8. 2008.
PEREIRA, P. R. B. A transposição didática como mediadora da transformação dos
saberes, 2012.
POLIDORO, L. de F.; STIGAR, R. A transposição didática: a passagem do saber científico
para o saber escolar. Ciberteologia – Revista de Teologia & Cultura, São Paulo, ed.
27, ano VI, p. 153-159, jan./fev. 2010.

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SOBRAL, A. U. Gêneros discursivos, posição enunciativa e dilemas da transposição


didática: novas reflexões. Letras de Hoje, v. 46, p. 37-45, 2011.
SOBRAL, A. U.; PERALTA, S. A. Para uma formação dialógica do professor: reflexões a
partir de um estudo de caso. Dialogia (UNINOVE. Impresso), v. 8, p. 55-66, 2009.
SOBRAL, A. U. As relações entre texto, discurso e gênero: uma análise ilustrativa.
Revista Intercambio, v. XVII, p. 1-14, 2008. São Paulo: LAEL/PUC-SP.
SOBRAL, A. U. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de
Bakhtin. Campinas: Mercado de Letras, 2009.

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AUSÊNCIA DA CULTURA: RETRATOS DA LINGUÍSTICA APLICADA BRASILEIRA

Hilário I. Bohn1
Luiza Machado da Silva2

O formato da vida real não dá pra enxergar;


por isso a gente faz ficção, pra poder ajeitar a vida pra fotografia.
Luís Augusto Fischer

1 Introdução

Não abordamos aspectos ficcionais neste texto embora saibamos que a


realidade é “uma ilusão bem persistente” como sugeriu Albert Einstein, mas cabe bem
a frase retirada do romance Quatro Negros, de Luís Augusto Fischer (2008), na qual
faríamos uma pequena modificação: o formato da vida real não dá para enxergar, por
isso a gente faz ciência.
A ciência que fazemos, a Linguística Aplicada (LA), sofre deslocamentos
constantes pelo caráter inter(trans)disciplinar que a caracteriza. Assim, este trabalho
vem a mostrar uma fotografia da LA brasileira nesta década ou apresentar a realidade
(ilusão persistente?) atual desta ciência. Tentaremos não fazer juízos de valor apesar
de isto talvez ser constitutivo da linguagem.
Uma característica da área do conhecimento da LA, inclusive, enfaticamente
reivindicada pelos pesquisadores brasileiros, é a sua inter(trans)disciplinaridade
(MOITA LOPES, 2006). A decisão de instituir uma ciência no entre-espaço de outras
ciências certamente traz para o debate científico um conjunto de complexidades não
experimentadas pela ciência normal, conforme definida por Kuhn (1988), em sua obra
A estrutura das revoluções científicas.
No intuito de discutir a LA brasileira, inclusive para situá-la em seu espaço entre
as ciências humanas, entendemos que é necessário trazer o olhar das instituições,
brasileira e internacional, que organizam a LA, ou seja, mais especificamente a
Associação de Linguística Aplicada do Brasil (ALAB) e a Associação Internacional de
1
Doutor em Linguística Aplicada, professor titular da Universidade Católica de Pelotas (UCPel).
E-mail: hinbohn@gmail.com
2
Mestre em Linguística Aplicada, doutoranda da Universidade Católica de Pelotas (UCPel), bolsista da
CAPES. E-mail: msluiza@hotmail.com

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Linguística Aplicada (AILA). A ALAB, em seu website, diz que a área da LA não é
“concebida como aplicação de teorias linguísticas, mas como um campo de
investigação de usos situados da linguagem nas diversas esferas do meio social”3. No
website da AILA, encontramos uma definição de LA que complementa aquela
encontrada na ALAB:

LA é um campo de pesquisa e prática interdisciplinar que lida com


problemas de linguagem e comunicação em vários aspectos, entre
eles comunicação relacionada a problemas na ou entre sociedade(s),
multilinguismo, discriminação linguística, conflitos linguísticos,
política linguística e planejamento linguístico.4

Embora saibamos que a LA nasceu, fundamentalmente, nas salas de aula de


línguas estrangeiras, seu caráter como ciência foi sendo ressignificado ao longo do
tempo e, infelizmente, a ALAB e a AILA não apresentam mais informações sobre LA,
sobre os desdobramentos da área nos seus websites, tampouco essas associações
disponibilizam documentos em que haja uma discussão histórica ou atual da ciência
que representam.
A carência de informação sobre os conflitos entre a LA e as ciências que a
sustentam na sua inter(trans)disciplinaridade não se deve a falta de documentos, nem
à carência do debate entre os pesquisadores da LA sobre esta ciência que se
estabelece neste entre-lugar ocupado pela LA. Podemos dizer que existem dispositivos
que organizam a área da LA, mas nos parece que, de alguma forma, as Associações que
poderiam dar visibilidade a esses dispositivos (textos, artigos e documentos oficiais)
não o fazem. A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) não têm
documentos próprios para a LA. No caso do CNPq, a única menção é o número de
registro da área. Em se tratando da CAPES, há um documento da área de Letras
Linguística, que fala dos Programas de Pós-Graduação (PPGs) de Linguística no Brasil,
sem mencionar uma única vez a Linguística Aplicada.
Podemos dizer que entendemos a LA como uma área que coexiste com outras
ciências, é inter/multi/transdisciplinar, ela carece de outros conhecimentos que não
apenas os linguísticos para o êxito de suas investigações. A Antropologia, Filosofia,
Ciências Políticas, Sociologia, Psicologia, Educação, Psicanálise e outras áreas dialogam

3
O link para o website está nas referências.
4
Idem ao 3.

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com a linguagem, a fim de compreender o homem no seu universo social, tarefa


primordial da LA.
Nesta pesquisa, examinamos como os linguistas aplicados brasileiros têm
lidado com esta inter(trans)disciplinaridade. Devido à abrangência da área, limitamos o
nosso enfoque a um dos aspectos mais centrais dessa inter(trans)disciplinaridade, o
conceito de cultura. Ele perpassa os estudos linguísticos, sociológicos, antropológicos,
para apenas nomear alguns dos aspectos relacionados do homem com a linguagem.
Nesta relação destacam-se, entre outros, o multilinguismo, a discriminação linguística,
os conflitos, o planejamento e as políticas linguísticas.

2 De que cultura falamos?

Iniciamos a discussão com a afirmação de que este talvez seja um dos conceitos
mais fluidos da linguagem. Os conceitos de ética, valores (materiais, imateriais),
estética, arte, literatura, linguagem, todos fazem parte desse emaranhado de
significados que se concretizam na palavra cultura. Para não prolongar a discussão nos
limitamos ao conceito de cultura desenvolvido pela Escola de Frankfurt, pelo Marxismo
e pelos Estudos Culturais.
Para provocar, “o termo [cultura]5 denota o domínio estético, em particular o
domínio da arte e da literatura” (BOTTOMORE, 2012, p.138), mas limitar a cultura à
arte e literatura é desconsiderar a própria história da humanidade. Percorrendo as
páginas do mesmo livro encontramos as palavras de Lukács: (...) cultura “é o conjunto
de produtos e capacidades de valor que são dispensáveis em relação à manutenção
imediata da vida” (LUKÁCS apud BOTTOMORE, 2012, p.139). Nesses termos, Lukács
aproxima-se da definição de Freud (2014) que em seu livro O Mal Estar na Cultura
afirma que a cultura é tudo aquilo que é supérfluo (como a arte e a literatura, por
exemplo!), também é tudo aquilo que impede aproximar-nos do prazer, tudo aquilo
que inibe os impulsos biológicos. Por outro lado, a cultura é tão imprescindível à vida
humana, que não poderíamos reduzir a cultura apenas ao dispensável. Seria
extremamente interessante discutir a cultura a partir de todas as ciências, mas
precisaríamos de um livro, razão pela qual limitaremos as nossas discussões a alguns
autores que nos ajudam a compreender a importância da cultura no universo da LA.
Inicialmente, o termo cultura era tratado como um conceito ligado à
materialidade; cultura estava ligada ao cultivo de grãos e animais. A partir do século
XVI, o termo foi ganhando novos significados, passou a ser considerado o “cultivo da

5
Grifo nosso.

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mente” (THOMPSON, 2009, p. 167) para dar conta do processo do desenvolvimento


humano e, neste sentido, o termo passou a denotar “de início um processo
completamente material, que foi depois metaforicamente transferido para questões
do espírito”. (EAGLETON, 2011, p. 10).
Ao longo dos séculos, os distintos significados de cultura foram sendo
construídos de formas diferentes, em diferentes países e de acordo com as distintas
ciências que se utilizavam do termo. Citamos, por exemplo, o fato de que no século
XIX, na França e na Inglaterra, a palavra cultura passou a ser sinônimo de civilização,
quer dizer, uma pessoa culta era considerada civilizada. Neste mesmo período, a
Alemanha opunha os termos cultura e civilização:

Zivilisation era associada ao refinamento das maneiras, ligado aos


padrões sociais (classes superiores). Kultur era o termo usado pela
intelligentsia alemã (da qual fazia parte um extrato social de
estudiosos da língua alemã) para diferenciar-se das classes
consideradas superiores e buscou sua realização no campo da
academia, ciência, filosofia e arte. (THOMPSON, 2009, p. 168)

Ao final do século XIX, emergiu uma mudança importante, especialmente por


causa de antropólogos, como Franz Boas, que insistiam na necessidade de deixar de
lado as concepções etnocêntricas das comunidades (sociedades), e entra no debate
uma concepção simbólica de cultura que “aparece com a reflexão de que os seres
humanos não só produzem e recebem expressões linguísticas significativas como
conferem sentido a produções não-linguísticas” (THOMPSON, 2009, p. 174).
Esse momento mostra a linguagem como primordial nos processos de
culturalidade. Geertz (2008) preocupa-se com as questões de significado, simbolismo e
interpretação da cultura. Assim, para o autor, a análise da cultura deve ignorar a
formulação de leis e a construção de esquemas evolucionistas. Em consonância com as
ideias de Thompson e Geertz, White descreve o processo que ela chama de
simbologização, que ocorre a partir da linguagem:

[...] supõe várias formas: pensar, sentir e agir. Podemos pensar em


seus produtos: ideias, crenças, conceitos, atos, rituais, atitudes e
objetos; os quatro principais produtos são ideias, atitudes, atos e
objetos. Todos têm uma coisa em comum: decorrem do processo de
simbologização. (WHITE, 2009, p.55)

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Vemos que a cultura, atualmente, está inteiramente ligada ao homem e à


linguagem. É nessa perspectiva que entendemos que a área de LA requer o diálogo
com outras áreas – dialogamos aqui com os Estudos Culturais, a Antropologia, a
Sociologia e, a seguir, com a Psicanálise – e, reiteramos a importância dos estudos
com/sobre cultura, por tratar-se de um conceito intrínseco à vida e à atividade
humana. Jullien corrobora a ideia de que não há existência do humano sem a cultura,
quando diz que “[...] a (uma) cultura é efetivamente através do que um sujeito existe;
ela é a dimensão de desdobramento e de efetivação do sujeito (ou, dito às avessas, o
sujeito que não se desenvolve culturalmente é, constatamos diariamente, um sujeito
atrofiado)” (JULLIEN, 2009, p.183).

3 A nossa pesquisa

Tendo em vista os conceitos apresentados sobre cultura e a discussão


levantada sobre o papel da LA no Brasil, realizamos um levantamento dos trabalhos
publicados nos três últimos congressos promovidos pela a ALAB nesta década: o IX
CBLA (Congresso Brasileiro de Linguística Aplicada) – Linguística Aplicada e Sociedade,
na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 2011; o X CBLA – Política e
Políticas Linguísticas, também ocorrido na UFRJ, em 2013 e o XI CBLA – Linguística
Aplicada para além das fronteiras, na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul
(UFMS), em 2015. É importante ressaltar que os congressos de 2011 e 2013 já tiveram
seus artigos publicados, ao passo que os dados referentes ao congresso de 2015 foram
apresentados pelo atual Presidente da ALAB, o Prof. Dr. Ruberval Franco Maciel, no V
Seminário dos Programas de Pós-Graduação em Letras e Linguística - Políticas e
Agendas, que ocorreu em junho de 2015, na Universidade de Campinas, e cedidos por
ele para a realização desta investigação.
O congresso de 2011 contava com 24 eixos temáticos. Realizamos,
primeiramente, um levantamento sobre onde se havia concentrado a maioria dos
trabalhos apresentados, entre os 24 eixos propostos pela ALAB. Abaixo, mostramos os
gráficos dos três eventos, separadamente.

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Gráfico 1 – CBLA 2011: 24 Eixos temáticos

CBLA 2011 – Eixos temáticos


Tradução 2,60%
Sociolinguística 2,00%
Políticas Linguísticas 0,70%
Multimodalidade no Texto e no Discurso 0,00%
Multilinguismo e Multiculturalismo 0,00%
Material Didático 9,30%
Línguas Minoritárias 1,30%
Linguagem em Contexto de Necessidades Especiais 2,60%
Linguagem e Trabalho 0,00%
Linguagem e Tecnologia 12,30%
Linguagem e Mídia 0,70%
Linguagem e Literatura 2,00%
Linguagem e Identidade 10,60%
Letramentos 4,60%
Gêneros Textuais 6,60%
Formação de Professores 6,60%
Estudos de Narrativas 0,70%
Ensino e Aprendizagem de Línguas Adicionais 5,30%
Ensino de Línguas para Fins Específicos 0,70%
Crenças em Ensino e Aprendizagem de Línguas 2,60%
Ensino e Aprendizagem de Língua Materna 2,60%
Autonomia na Aprendizagem de Línguas 2,60%
Análise do Discurso e Pragmática 9,30%
Análise da Conversa 2,00%
0,00% 2,00% 4,00% 6,00% 8,00% 10,00% 12,00% 14,00%

Podemos perceber que no Gráfico 1, referente ao congresso de 2011, há uma


forte concentração de trabalhos nos eixos: material didático (9,3%), linguagem e
tecnologia (12,3%), linguagem e identidade (10,6%) e análise do discurso e pragmática
(9,3%). Em menor número, mas acima dos 5%, estão os eixos gêneros textuais (6,6%),
formação de professores (6,6%) e ensino e aprendizagem de línguas adicionais (5,3%).
É importante estar atento ao fato de que o único eixo temático que tem como
objetivo tratar da cultura, o multilinguismo e multiculturalismo não apresenta
nenhuma ocorrência. O mesmo ocorre no Gráfico 2, em que não há trabalhos neste
eixo temático. Já percebemos, de imediato, um silenciamento total nestes dois
primeiros congressos em relação à cultura como protagonista de pesquisas
apresentadas.

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O Gráfico 2 apresenta praticamente a concentração de trabalhos nos mesmos


eixos de 2011, que são o material didático (10,1%), linguagem e tecnologia (13,0%),
linguagem e identidade (13,0%) e um aumento nos estudos sobre formação de
professores (11,6%). As outras pesquisas de maior ocorrência estão localizadas nos
eixos linguagem e mídia (7,2%), ensino e aprendizagem de línguas adicionais (8,7%) e
análise da conversa (7,2%).

Gráfico 2 – CBLA 2013: 25 Eixos temáticos

CBLA 2013 – Eixos temáticos


Tradução 2,90%
Sociolinguística 0,00%
Políticas Linguísticas 4,30%
Multimodalidade no Texto e no Discurso 0,00%
Multilinguismo e Multiculturalismo 0,00%
Material Didático 10,10%
Línguas Minoritárias 1,50%
Linguagem em Contexto de Necessidades Especiais 0,00%
Linguagem e Trabalho 1,50%
Linguagem e Tecnologia 13,00%
Linguagem e Mídia 7,20%
Linguagem e Literatura 0,00%
Linguagem e Identidade 13%
Letramentos 4,30%
Gêneros Textuais 1,50%
Formação de Professores 11,60%
Estudos de Narrativas 0,00%
Ensino e Aprendizagem de Línguas Adicionais 8,70%
Ensino e Aprendizagem de Língua Materna 1,50%
Ensino de Línguas para Fins Específicos 1,50%
Crenças em Ensino e Aprendizagem de Línguas 1,50%
Autonomia na Aprendizagem de Línguas 4,30%
Aquisição de Linguagem 0,00%
Análise do Discurso e Pragmática 4,30%
Análise da Conversa 7,20%
0,00% 2,00% 4,00% 6,00% 8,00% 10,00% 12,00% 14,00%

Em 2015 podemos perceber um aumento significativo de pesquisas no eixo


formação de professores (20,8%), ficando em segundo lugar as pesquisas relacionadas
ao ensino e aprendizagens de línguas adicionais (11,7%). A partir destes dois eixos é
possível visualizar o espaço que a sala de aula tem nas pesquisas em LA.
Com ocorrência acima de 5% estão os eixos material didático (6,6%), linguagem
e tecnologia (6,7%), linguagem e identidade (6,7%) – sendo que houve uma diminuição
considerável deste eixo em relação aos congressos anteriores –, letramentos (6,7%) e

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ensino de língua materna (5,2%). Em relação a este último, é interessante observar


como as pesquisas em língua materna apareceram um pouco mais neste último
evento, o que é extremamente positivo. Lembramos que começamos a discussão
sobre LA dizendo que ela nasceu nas salas de aula de línguas estrangeiras, o que nos
leva a crer que ainda haja, talvez, por parte de muitos pesquisadores, a ideia de que a
LA continua ligada apenas à língua estrangeira (LE) e por isso muitos pesquisadores da
língua materna (LM) não busquem a ALAB para apresentarem seus estudos.
Outro aspecto que vale comentar é que o Gráfico 3 apresenta a ocorrência de
trabalhos no eixo multilinguismo e multiculturalismo (1,5%) pela primeira vez nesta
década. Embora seja uma porcentagem muito baixa, são 10 dos 655 trabalhos
apresentados no evento. Ainda há uma ausência da cultura como protagonista de
pesquisas na LA, mas já aparecem alguns trabalhos.

Gráfico 3 – CBLA 2015 – 25 Eixos temáticos

CBLA 2015 – Eixos temáticos


Tradução 1,20%
Sociolinguística 1,80%
Políticas Linguísticas 3,00%
Multimodalidade no Texto e no Discurso 1,20%
Multilinguismo e Multiculturalismo 1,50%
Material Didático 6,60%
Línguas Minoritárias 0,90%
Linguagem em Contexto de Necessidades Especiais 0,90%
Linguagem e Trabalho 0,40%
Linguagem e Tecnologia 6,70%
Linguagem e Mídia 1,80%
Linguagem e Literatura 1,20%
Linguagem e Identidade 6,70%
Letramentos 6,70%
Gêneros Textuais 3,60%
Formação de Professores 20,80%
Estudos de Narrativas 0,60%
Ensino e Aprendizagem de Línguas Adicionais 11,70%
Ensino e Aprendizagem de Língua Materna 5,20%
Ensino de Línguas para Fins Específicos 2,00%
Crenças em Ensino e Aprendizagem de Línguas 3,50%
Autonomia na Aprendizagem de Línguas 1,70%
Aquisição de Linguagem 1,10%
Análise do Discurso e Pragmática 4,30%
Análise da Conversa 4,60%
0,00% 5,00% 10,00% 15,00% 20,00% 25,00%

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Com esta análise percebemos o quanto as pesquisas apresentadas nos


Congressos Brasileiros de Linguística Aplicada estão orientadas para a sala de aula.
Decidimos, então, realizar um segundo levantamento destes dados, observando o
número de pesquisas que se dirigem à sala de aula e às pesquisas que se relacionam
com o ser humano e a sociedade em que estão inscritos, como por exemplo, as
relações de trabalho, interdisciplinaridade com outras áreas do conhecimento,
relações etnicorraciais, entre outras. O resultado que segue, no Gráfico 4, é
surpreendente, já que nos três congressos analisados pelo menos 80% dos trabalhos
estão relacionados às salas de aula, enquanto menos de 20% se referem a trabalhos
inseridos em outros contextos.

Gráfico 4 – CBLA de 2011, 2013 e 2015


CBLA de 2011, 2013 e 2015
100,00% 85% 82,10%
80,90%
80,00%
60,00%
40,00%
19,10% 15% 17,90%
20,00%
0,00%
Sala de Aula Outros temas

2011 2013 2015

Coincidentemente as análises realizadas neste trabalho mostram um


comportamento semelhante à pesquisa realizada por Bohn (2015), na qual analisou as
palavras-chave dos artigos publicados nos últimos dez anos em três periódicos
nacionais da área de LA, que também mostra a forte concentração nas publicações e
pesquisas dos linguistas brasileiros de LA na sala de aula (formação de professores e
ensino), dando a impressão, às vezes, que esta formação e ensino se desenvolvem
num vácuo histórico, cultural e filosófico.
Alguns estranhamentos que percebemos ao longo deste estudo nos levam a
acreditar que o controle e, por conseguinte, o fatiamento dos eixos de pesquisas
oferecidos nos congressos da ALAB têm forte concentração em temáticas ligadas às
salas de aula, o que faz com que a maioria absoluta das pesquisas que são
apresentadas nos congressos da associação sejam orientadas ao ensino e
aprendizagem.

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A ausência de trabalhos sobre línguas indígenas, línguas minoritárias e a pouca


presença de estudos apresentados sobre língua materna, também chamam a nossa
atenção pelo fato de estes estudos também poderem contribuir com as pesquisas
sobre ensino e aprendizagem. O fato de não haver um único trabalho sobre línguas
indígenas, em um país como o Brasil, já demonstra que há pesquisadores que não
estão se sentindo convidados a fazerem parte da ALAB, já que não há uma linha
temática dedicada às questões indígenas. Entretanto, há muitos estudos sobre as
línguas indígenas, minoritárias e sobre a LA que são apresentados em eventos de
outras associações, como a ABRALIN (Associação Brasileira de Linguística) e a ALFAL
(Associação de Linguística e Filologia da América Latina).
Há outras ausências – além da cultura, que ficou evidente nos dados
apresentados – que são significativas e que serão estudadas nesta pesquisa e
apresentadas em trabalhos posteriores. São ausências relacionadas ao mundo que é
contemplado na LA e parece que não é mostrado nos congressos de sua associação no
Brasil, como os trabalhos que investigam as relações de trabalho, a pobreza, a questão
dos habitantes de rua, as doenças, as violências em todos os seus níveis, as identidades
de gênero e as relações etnicorraciais. São estudos sobre a linguagem e as
discursividades que não ocorrem somente na sala de aula, mas fazem parte da vida do
ser humano. A ausência, por fim, da interdisciplinaridade – que é, por excelência, o
caráter da área de Linguística Aplicada – especialmente em disciplinas que
conversariam tão bem com a área. Há uma carência de trabalhos que dialoguem com a
História, a Antropologia, a Sociologia e a Filosofia.

4 Considerações

Algumas considerações que finalizam este texto precisam ser feitas. Primeiro, é
importante deixar claro que não fazemos um julgamento de valor do trabalho
investigativo dos linguistas aplicados brasileiros (BOHN, 2015), lembrando a conhecida
frase de Jean P. Sartre, “Uma das coisas mais odiosas dos seres humanos é julgar os
outros”. E embora apresentemos os dados em números, não é um estudo com
tratamento estatístico, especialmente numa dimensão quantitativa materializada em
valores e medições numéricas.
Há indícios, nas buscas feitas, de uma forte concentração das pesquisas da LA
brasileira na sala de aula, na formação de professores, especialmente sobre o ensino e
a aquisição das línguas estrangeiras (adicionais), como dissemos anteriormente. Assim
a complexidade sociocultural, linguística, profissional e identitária da sociedade

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brasileira com os seus vínculos linguísticos, fronteiras e periferias ainda é pouco


explorada nos projetos de pesquisa dos linguistas aplicados.
Outrossim, verifica-se uma certa desorganização das comunidades dos
linguistas aplicados em socializar os documentos, as políticas (os dispositivos) que
“governam” e “estruturam” as instituições e organizações sociais. Neste sentido,
pode-se indagar se a LA brasileira não está subsumida por uma linguística denominada
de Educacional (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação –
ANPED), das Ciências Sociais (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Ciências Sociais – ANPOCS), ou pela própria área da Linguística (Associação Brasileira
de Linguística – ABRALIN). Se assim nos posicionamos, perderíamos a característica da
inter(trans)disciplinaridade, constitutiva da LA, e nos encontraríamos na periferia das
disciplinas que sustentam os estudos da linguagem. Por isso, talvez, seja tão
importante, como pesquisadores da linguagem, inserir-nos numa LA crítica, em que a
vida do usuário da linguagem, do enunciador, é central.

Referências

AILA - Association Internationale de Linguistique Appliquée. About. Disponível em:


<Associahttp://www.aila.info/en/about.html>. Acesso em: 30. jun. 2015.
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<http://www.alab.org.br/pt/a-alab/historia>. Acesso em: 30. jun. 2015.
Anais eletrônicos 10º Congresso Brasileiro de Linguística Aplicada. Disponível em:
<http://www.alab.org.br/eventosalab/evento/pag.php?view=article&id=9>.
Acesso em: jun. 2015.
Anais eletrônicos do Congresso Brasileiro de Linguística Aplicada 2011. Disponível em:
<http://www.alab.org.br/pt/eventos/ix-cbla/130>. Acesso em: jun. 2015.
BOHN, Hilário I. Linguística Aplicada Brasileira: uma área do conhecimento em
construção no meio de saberes, desejos e de políticas. Trabalho apresentado na
abertura do V Seminário dos Programas de Pós-Graduação em Letras e Linguística
- Políticas e Agendas no Campo de Estudos da Linguagem, UNICAMP 22/06/2015.
BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar,
2012.
EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. 2. ed. Tradução de Sandra Castello Branco. São
Paulo: Editora UNESP, 2011.
FISCHER, Luís Augusto. Quatro Negros. 3. ed. Porto Alegre: L&PM, 2008.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura. Trad. Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM,
2014.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. 13.reimpr. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

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JULLIEN, François. O diálogo entre culturas: do universal ao multiculturalismo. Rio de


Janeiro: Zahar, 2009.
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva,
1998.
MACIEL, Ruberval F. Concentração das pesquisas em LA no 11º CBLA. V Seminário dos
Programas de Pós-Graduação em Letras e Linguística - Políticas e Agendas no
Campo de Estudos da Linguagem, UNICAMP 22/06/2015.
MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Por uma Linguística Aplicada indisciplinar. São Paulo:
Parábola Editorial, 2006.
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios
de comunicação de massa. 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
WHITE, Leslie A. O conceito de cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.

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LIVROS HIGH TECH:


REFLEXÕES SOBRE A NOVA EXPERIÊNCIA LITERÁRIA-TECNOLÓGICA

Iuli Gerbase1

Introdução

As inovações tecnológicas, além de afetarem nossos trabalhos,


relacionamentos e ritmo do dia-a-dia, também afetam a arte. O cinema, o teatro, as
artes visuais, a fotografia e a música utilizam equipamentos que são atualizados e mais
bem elaborados a cada ano. Entretanto, uma forma de arte ainda dá seus primeiros
passos na implementação de tecnologias: a literatura. Embora os meios de impressão
tenham evoluído, o formato final das folhas e papel reunidos mantém-se praticamente
igual há séculos.
Aos poucos, e principalmente na literatura voltada para crianças e
adolescentes, este quadro vem se transformando. A utilização da internet, GPS,
câmeras e outros aparatos tecnológicos nos livros desperta cada vez mais o interesse
do consumidor e a atenção dos editores.
Mesmo o cinema, uma arte que sempre dependeu de uma tecnologia complexa
e de dezenas de equipamentos, chegou a um ponto em que cansou parte dos
espectadores e realizadores com tanta técnica, efeitos e engenharias mirabolantes. O
Dogma 95 foi um movimento que criticou ferozmente esse abuso tecnológico. É
questionável, portanto, se a literatura também chegará a um ponto onde um grupo de
pessoas se rebelará e pedirá a volta da simplicidade da literatura, em que o texto deve
funcionar por si só.

A busca do Dogma 95 por um cinema menos maquiado

Em 1995, o cinema fazia seu aniversário de cem anos desde a primeira projeção
pública feita pelos irmãos Lumière. Dos dez filmes desse ano com as maiores
bilheterias internacionais, quatro eram filmes de ação, dois de aventura, três infantis e
um thriller. (BOX OFFICE MOJO, 1995). Entre os oito filmes que não são animações,

1
Mestranda em Escrita Criativa no Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS. Bolsista CNPq.
E-mail: iuli.gerbase@acad.pucrs.br

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sete apresentavam uma grande quantidade de efeitos visuais: explosões, foguetes,


estrelas, fantasmas, naves, aranhas gigantes e macacos motoristas.
Um certo grupo de cineastas dinamarqueses estava cansado do cinema demasiado
maquiado, repleto de camadas que sufocavam a realidade. Sentiam a necessidade de
contra-atacar os filmes cheios de truques tecnológicos e roteiros previsíveis que
dominavam o cinema Hollywoodiano.
Durante uma celebração do centenário no Odeon-Théâtre, em Paris, o diretor
dinamarquês Lars von Trier, conhecido por seus filmes controversos e desafiadores,
apresentou o manifesto “Dogma 95”, criado por ele e pelo diretor compatriota
Thomas Vinterberg. Para escrever os votos de castidade, von Trier e Vinterberg se
perguntaram quais proibições doeriam mais em um diretor ao filmar. O resultado foi o
seguinte:
“ DOGMA 95
DOGMA 95 é um grupo de diretores de cinema fundado em Copenhagen na
primavera de 1995.
DOGMA 95 tem o objetivo expresso de combater “certas tendências” do cinema
atual.
DOGMA 95 é uma ação de resgate!
Em 1960, já tivemos o bastante! O cinema estava morto e precisava ressuscitar.
Os objetivos foram corretos, mas os meios não! A new wave mostrou ser apenas uma
marola que morria ao chegar em terra firme, virando sujeira.
Slogans de individualismo e liberdade criaram trabalho por um momento, mas não
trouxeram mudanças. A onda estava aberta à disputa, assim como seus diretores. A
onda nunca foi mais forte que o homem por trás dela. O cinema antiburguês tornou-se
burguês, porque a base na qual suas teorias foram fundadas fazia parte da percepção
burguesa da arte. O conceito de autor foi um romantismo burguês desde o começo e
portanto… falso!
Para o DOGMA 95, o cinema não é individual!
Hoje, a tempestade da tecnologia está furiosa, e o resultado será a derradeira
democratização do cinema. Pela primeira vez, qualquer pessoa pode fazer filmes. Mas
quanto mais acessível o meio se torna, mais importante é a avant-garde. Não é por
acaso que a expressão “avant-garde” tem conotações militares. Disciplina é a solução…
nós devemos colocar nossos filmes em um uniforme, porque o filme individual vai ser
decadente por definição!
DOGMA 95 combate o filme individual, apresentando um conjunto de regras
incontestável, conhecido como O VOTO DE CASTIDADE.

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Em 1960, já tivemos o suficiente! O filme havia sido maquiado até a morte, eles
diziam; porém desde então o uso de maquiagens tem estourado.
O objetivo “supremo” do filme decadente é enganar o espectador. É disso que
temos tanto orgulho? Foi isso que os “100 anos” nos trouxeram? Ilusões nas quais as
emoções podem ser comunicadas?… pela trapaça escolhida livremente pelo artista
individual?
Previsibilidade (dramaturgia) tornou-se o bezerro de ouro em volta do qual nós
dançamos. Ter a vida interior do personagem justificando a trama é muito complicado,
não é ‘alta arte’. Como nunca antes, a ação superficial e o filme superficial estão
recebendo todo o louvor.
O resultado é estéril. Uma ilusão de emoção e uma ilusão de amor.
Para o DOGMA 95, o filme não é ilusão!
Hoje, o resultado da furiosa tempestade de tecnologia é a elevação da
maquiagem a Deus. Com o uso da nova tecnologia, qualquer um a qualquer hora pode
lavar até o último grão de verdade na mortal adoção da sensação. As ilusões são onde
o filme pode se esconder.
DOGMA 95 contesta o filme de ilusão, apresentando um conjunto de regras
incontestáveis, conhecido como O VOTO DE CASTIDADE.
[Voto de castidade, apresentado e analisado adiante]
Além disso, eu prometo como diretor reprimir o gosto pessoal! Eu não sou mais
um artista. Eu prometo privar-me de criar ‘uma obra’, como eu considero o instante
mais importante que o todo. Meu objetivo supremo é forçar a verdade dos meus
personagens e da situação. Eu prometo fazer isso através de todos meios disponíveis e
ao custo de qualquer consideração sobre gosto e estética.
Deste modo, eu faço meu VOTO DE CASTIDADE.
Copenhagen, segunda-feira, 13 de março de 1995.
Em nome do Dogma 95
Lars von Trier, Thomas Vinterberg”

O Dogma 95 renunciava a todo o glamour das grandes produções. Seu objetivo


era valorizar, com o uso de equipamentos modestos e equipe reduzida, a intensidade
da atuação e a narração de uma história espontânea e, com isso, trazer à tona um
cinema mais real.
Farei, a seguir, uma análise de quais seriam os objetivos de cada regra do “Voto
de Castidade”:

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“Regra 1: A filmagem deve ser feita em uma locação. Objetos e cenários não
devem ser trazidos (se um objeto específico é necessário para a história, deve-se
escolher uma locação que o possua).”
Filmar “em locação” significa, ao contrário de montar um set, filmar em um
lugar que já existia antes da filmagem, seja uma cafeteria, casa, hospital, colégio, etc. A
filmagem em locação pode ser complicada devido aos ruídos da vizinhança e suas
restrições de horário e espaço. A principal vantagem de utilizar uma locação é usufruir
do seu realismo, da vivência que o lugar transparece. Na sua busca pela verdade, é
esperado que o Dogma exija que a história se adapte a um lugar real.
“Regra 2: O som nunca deve ser produzido à parte da imagem, ou vice-versa. (A
música não deve ser usada a menos que ocorra onde a cena está sendo filmada)”.
O que é proibido nesta regra é o que chamamos de “música extradiegética”, ou
seja, aquela que o espectador ouve, mas os personagens não. Primeiramente, se o
cinema desta corrente busca a realidade, é sabido que o céu não produz melodias
enquanto caminhamos na rua. Portanto, por que em um filme isto deveria acontecer?
Além disso, a música é um elemento forte e muito utilizado no cinema para
emocionar, conduzir a trama e adicionar ritmo às sequências. A música extradiegética
vai contra os ideais do Dogma 95 na medida em que é uma ferramenta que
automaticamente gera emoções no espectador por si só. O Dogma 95 repudia os
truques fáceis para criar sentimentos no público. A emoção deve vir somente da trama
e dos personagens, sem a ajuda de artimanhas.
“Regra 3: A câmera deve ser operada na mão. Qualquer movimento ou
mobilidade atingível com a câmera na mão é permitido. (O filme não deve acontecer
onde a câmera está; a filmagem deve acontecer onde o filme está).”
O uso da câmera estática, posta no tripé, cria um engessamento dos atores,
que acabam preocupando-se com o ponto em que estão em foco e os limites do
enquadramento. Para o Dogma 95, a câmera deve seguir o movimento dos atores, aos
quais é permitida a improvisação em cima do roteiro. Assim, a dramaturgia é
priorizada, não o enquadramento esteticamente perfeito.
“Regra 4: O filme deve ser em cores. Iluminação especial não é aceita. (Se não
houver luz suficiente, a cena deve ser cortada, ou uma lâmpada simples acoplada à
câmera).
“Regra 5: Efeitos especiais e filtros são proibidos.”
As regras 4 e 5 buscam diminuir a manipulação da imagem. O uso da imagem
em preto e branco, iluminação dramática, efeitos especiais e filtros afastariam o filme

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da realidade. Estas regras reforçam a ideia do Dogma 95 de ignorar a estética


individual do diretor e uniformizar os filmes.
“Regra 6: O filme não deve conter ação superficial. (Assassinatos, armas, etc.
não podem ocorrer.)”
Esta proibição, que concerne a narrativa, possui dois propósitos: divergir do
enredo hollywoodiano e evitar uma fácil provocação de emoções. O cinema comercial
americano atrai espectadores com ação, super-heróis, explosões e tiros. O Dogma 95
quer explorar as emoções do dia-a-dia, de acontecimentos reais.
Mesmo em filmes que retratam o cotidiano, o aparecimento de uma arma na
mão de um personagem cria instantaneamente tensão na cena. Segundo o diretor
francês Jean-Luc Godard, “Tudo o que você precisa para um filme é uma arma e uma
menina”. A arma traz a noção de perigo e ameaça, mas não passa de um objeto cênico.
Seguindo a lógica da Regra 2, que proíbe música extradiegética, a Regra 4 inibe um
artifício que abalaria o espectador sem esforços.
“Regra 7: Alienação temporal e geográfica são proibidas. (Isso quer dizer que os
filmes acontecem aqui e agora).”
É proibido, então, o uso de flashbacks e flashforwards e quebras na linearidade
da narrativa. Não podemos entrar em uma máquina do tempo e reviver alguns
minutos de nossa infância, nem visualizar nosso futuro em uma bola de cristal. Se nós
não podemos, o filme do Dogma 95 também não pode, já que busca a realidade.
É condenado falsear o espaço geográfico, apresentando um enredo que se
passa no Caribe e filmando em uma praia da França, assim como também não é
possível criar ambientes fictícios: o paraíso, algum planeta de uma galáxia distante,
etc.
“Regra 8: Filmes de gênero não são aceitos.”
São vetados aqui os “filmes de gênero”: ficção científica, western, aventura,
terror, ação, policial, musical, animação e suspense. O amplo gênero do drama é
inevitável e o mais frequente no Dogma 95. Seus criadores afirmavam que o filme de
gênero já prepara o espectador para certos arquétipos da narrativa e clichês. Queriam
que a trama fosse livre de padrões pré-estabelecidos e seguisse as necessidades que o
desenvolvimento dos personagens trazia.
“Regra 9: O formato do filme deve ser 35 mm.”
Com o intento de uniformizar os filmes, foi definido, a princípio, que o negativo
de captação e o formato final deveriam ser 35mm. Rapidamente, já no segundo filme
do Dogma 95, Os Idiotas, foi permitido que a filmagem fosse digital, e apenas o
formato final 35mm.

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“Regra 10: O diretor não deve ser creditado.”


Essa regra reforçaria o argumento que o filme não deve ser individual. A ideia é
radical e afronta o ego dos diretores. Em Festa de Família, Vinterberg aparece
rapidamente como o taxista, talvez para demarcar sutilmente seu território.
A ideia foi respeitada nos filmes: não há o nome do diretor nos créditos.
Entretanto, não funcionou na prática. Para que os filmes pudessem concorrer
em festivais de cinema, foi preciso indicar o nome dos diretores. Quando Festa de
Família venceu o Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes de 1998, Vinterberg
subiu ao palco sozinho para recebê-lo.
O Dogma 95 apresentou uma nova proposta para o cinema, libertando
diretores e revolucionando através da abstinência e restrição. O movimento nos
presenteou com trinta e cinco filmes, vários deles excelentes e premiados em festivais
importantes como Cannes, Berlim e Toronto. Além disso, funcionou como uma
espécie de terapia para seus diretores. As regras, que a princípio pareceram
repressoras, permitiram a eles trabalhar o desapego à perfeição estética e dar mais
atenção à narrativa e aos atores. A imposição de restrições liberou a criatividade,
posto que estes novos limites anulassem outras definições até então impostas pelo
cinema comercial.

A incorporação da tecnologia na literatura

Agora, em 2015, vinte anos depois do manifesto do Dogma 95 ser anunciado,


outra forma de arte está sofrendo grande interferência da tecnologia: a literatura.
As novas tecnologia dos romances digitais permitem uma nova relação entre o
leitor e o livro. A interatividade é proposta de diversas maneiras, e com elas novos
termos surgiram: o “crowdsourcing”, quando é permitido aos leitores contribuir para a
obra (esse método começou com a Wikipedia, mas agora se estende a livros de ficção);
a “ficção hipertextual” fornece aos leitores vários finais possíveis para a mesma trama;
a “hipermídia” utiliza-se de outras mídias, como som, vídeo e fotos para incrementar a
narrativa; e a “realidade aumentada”, em que, colocando um determinado ponto do
livro em frente a uma webcam, faz-se a imagem ser refletida na tela, porém com novos
elementos 3D.
O Trip Book Smiles, por exemplo, lançado em abril de 2015, é um ebook que,
através do GPS, reconhece onde o leitor está e muda o cenário da história de acordo
com a cidade. O livro foi escrito por Marcelo Rubens Paiva e lançado pela Smiles,
programa de fidelidade de passagens aéreas.

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Em 2009, os escritores americanos Duane Swierczynski e Anthony E. Zuiker


(também roteirista de série policial C.S.I.) lançaram o livro Level 26, traduzido no Brasil
como Grau 26. O livro, anunciado como o primeiro “digi-novel”, apresenta a trama de
um agente aposentado do FBI que volta a trabalhar para deter um assassino em série
extraordinário. A cada vinte páginas do livro, o livro fornece códigos para que o leitor
assista a vídeos na internet que ilustram trechos do livro. A produção destes vídeos
não perde em qualidade para as séries policiais tradicionais.
O filme brasileiro Os Famosos e os Duendes da Morte, dirigido e roteirizado por
Esmir Filho, foi baseado nos manuscritos do livro homônimo de Ismael Caneppele, que
também contribuiu no roteiro. O roteiro e a versão final do livro foram escritos em
paralelo e lançados em 2010. O projeto conta com um site onde é possível acessar
músicas e fotos relacionadas às obras. Também foi criado um perfil de fotolog (blog de
fotografia) para a Jingle Janger, umas das personagens principais. O material do site
não acrescenta novas informações nem interfere na trama do livro ou do filme, mas
reforça a atmosfera e amplia o universo de ambos.
Em 2014, foi lançado o livro Até que o mar acalme, do escritor e músico
argentino Miguel Gizzas. Cada capítulo do livro contém um código QR (código de
barras dimensional que direciona a um website) que proporciona ao leitor uma música
correspondente ao momento da narrativa.
A interatividade de alguns dos livros mais vendidos neste ano não necessita de
tecnologias além da impressão. Os livros para colorir destinados a adultos que querem
aliviar o estresse estão em alta. Um dos principais exemplos, Jardim secreto, que conta
com 96 páginas de desenhos complexos, vendeu 1,5 milhão de cópias desde seu
lançamento em agosto de 2013. Já o livro interativo Destrua este diário”, lançado em
2007, vendeu mais de 2 milhões de cópias até 2014. Neste caso, o consumidor deve
seguir as tarefas propostas pelo livro: rasgar uma folha, escrever uma mesma palavra
diversas vezes, desenhar sem tirar a caneta do papel e até mesmo levar o livro para o
banho.
É debatível se livros como Jardim secreto ou Destrua este diário apresentam
uma ameaça para a literatura de ficção convencional. Visto que seus objetivos são a
princípio terapêuticos, como estimular a criatividade e aliviar o estresse, eles
proporcionariam uma atividade distinta à de sentar e ler um livro como Orgulho e
preconceito. Entretanto, os usuários destes livros declaram seu efeito aditivo e
admitem passar horas colorindo e interagindo com eles. É possível pensar, então, em
uma competição de tempo e dinheiro gastos pelo leitor entre o livro tradicional e o
livro terapêutico. Quantas páginas poderiam ser lidas enquanto o possível leitor colore

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vinte hortênsias? Se o leitor estiver com orçamento reduzido e tiver que limitar suas
despesas, qual dos dois compraria?
O mercado de livros infantil está se apropriando drasticamente de todas estas
ferramentas tecnológicas e interativas, o que provavelmente afetará o hábito dos
leitores das próximas gerações. Os livros costumavam ser obrigados a emocionar e
surpreender apenas com o uso das palavras distribuídas em uma trama bem
desenvolvida. Agora, os jovens leitores contam com jogos, músicas, vídeos e várias
outras ferramentas que suplementam o livro. Supõe-se que será difícil para as futuras
gerações contentarem-se apenas com o texto, visto que esse está virando apenas uma
parte do todo que conta a história. O prazer de imaginar personagens está sendo
substituído pela curiosidade de descobrir visualmente como eles são através de vídeos
e fotografias.

Um possível dogma literário

Após esta onda de tecnologia e interatividade invadindo a literatura aumentar,


é de se esperar um contrafluxo. Provavelmente chegaremos a um ponto em que os
escritores, ou mesmo leitores, irão proclamar, assim como os cineastas dinamarqueses
em 1995, “Basta! Já tivemos o suficiente.” Como experimento, podemos fazer uma
adaptação do Voto de Castidade do Dogma 95 para a literatura de 2015. Proponho-
me, então, a propor um Dogma 2015 Literário, adaptando o manifesto do Dogma 95:

O DOGMA LITERÁRIO 2015


DOGMA LIT 2015 é um grupo de escritores fundado em Porto Alegre no outono
de 2015.
O DOGMA LIT 2015 tem o objetivo expresso de combater “certas tendências”
do mercado literário atual.
O DOGMA LIT 2015 é uma ação de resgate!
As novas tecnologias utilizadas em livros estão arruinando o encanto principal
da literatura: permitir ao leitor imaginar! As “digi-novelas”, com seus links para vídeos
na internet destroem o privilégio do leitor de criar os personagens em suas mentes. Os
atores contratados impõem o visual, a dicção, a voz e os trejeitos de cada personagem.
Atualmente, em vez de simplesmente folhear um livro para acionar o prazer da leitura,
o consumidor deve conectar-se a uma rede wifi, verificar se o GPS está ligado, ouvir
um CD, ajustar a webcam e carregar a bateria. Os leitores foram transformados em
verdadeiras marionetes da tecnologia.

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Sem falar nos livros que devem ser coloridos ou rasgados, supostamente com o
intento de trabalhar emoções negativas. Bons tempos em que o pagamento da terapia
era feita no consultório do psicólogo, não na livraria.
Para nós, já basta! Não podemos deixar o leitor perder sua capacidade de
imaginar livremente cenários e personagens. Não podemos deixar a narrativa
tradicional, que conta somente com a combinação de palavras de uma certa língua,
passar a ser vista como algo desinteressante e insuficiente.
O DOGMA LIT 2015 contesta o livro repleto de apêndices digitais, apresentando
um conjunto de regras incontestáveis, conhecido como O VOTO DE CASTIDADE
LITERÁRIO.
Além disso, prometo como escritor não ceder ao uso de tecnologias para a
suposta comercialização de minha obra, não importa o quanto meu editor insista!
Prometo cumprir minha abstinência do uso de outras plataformas, visto que
meu objetivo supremo é resgatar a essência da literatura.
Deste modo, eu faço meu VOTO DE CASTIDADE LITERÁRIO:
“Regra 1: O livro não deve sugerir ao leitor que ele faça alguma ação além de
folhear as páginas. Também não é permitido propor ao leitor comer, beber, ou escutar
algo específico enquanto folheia as páginas. Deixe o leitor em paz!
Regra 2: O livro não deve conter nenhuma imagem, seja esta desenho ou
fotografia. Isto inclui a capa, que deve conter apenas o título, o nome do autor e da
editora.
Regra 3: A fonte do livro deve se ater a um único tamanho e estilo do começo
ao fim da obra. A fonte deve ser preta.
Regra 4: O livro não pode direcionar o leitor a materiais adicionais, incluindo
músicas, vídeos, desenhos, fotografias, artes visuais, blogs, websites, outros textos ou
mapas.
Regra 5: O livro não deve conter nenhum recurso eletrônico como GPS,
conexão a rede wifi, CD, DVD, disquete, pen drive etc.
Deste modo, eu faço meu VOTO DE CASTIDADE LITERÁRIO.
Porto Alegre, 30 de maio de 2015.
Em nome do Dogma Literário 2015
Iuli Gerbase”

Uma literatura afetada

Levantemos a questão: o texto do livro que utiliza anexos tecnológicos seria o


mesmo sem eles? Mesmo que seja possível ao leitor obter a trama completa somente

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através do texto, quanto o conhecimento do autor de que vídeos serão feitos para
ilustrar certo trecho pode influenciar no seu modo de escrever?
O escritor tem consciência de que suas palavras provavelmente não causarão o
mesmo impacto que a sequência cheia de luzes, música e edição dinâmica do vídeo
que será produzido. Então, para que tentar? Encaramos o risco de o texto virar apenas
um instrumento de preparação para o leitor chegar ao vídeo. Afinal, quando a equipe
do digi-novel precisar escolher trechos para serem filmados, quais serão escolhidos:
diálogos comedidos entre os personagens ou o desarmamento de uma bomba? A
versão literária desta cena complicada passa a ser uma pequena amostra do que o
vídeo vai apresentar. Ela poderia ser acompanhada pela frase: “para deixar sua
experiência mais completa, assista ao vídeo no link…”. Que motivação, portanto, tem o
escritor para realmente dar o melhor de si na construção desta sequência, se depois
ele será humilhado pela versão audiovisual da mesma?
Outro elemento que pode afetar a escrita literária é a possibilidade de
adaptação da obra. Diversos bestsellers começam como livros tradicionais, mas são
seguidos de adaptações para cinema. Quando a adaptação para o cinema também é
um sucesso comercial, o mercado se amplia: o marketing cria inúmeros produtos
inspirados na obra: material escolar, roupas, louças, capas de celular, comidas,
brinquedos etc. O livro A culpa é das estrelas, de John Green, lançado em 2012,
vendeu 1.813.574 cópias até junho de 2014. O filme homônimo, lançado em 2014,
rendeu 271.613.643,00 dólares em bilheteria mundialmente. Bestsellers juvenis como
Harry Potter, Jogos vorazes e Crepúsculo geram contratos milionários com produtoras.
A escritora americana Annie Dillard escreve em seu livro The writing life: “Livros
escritos com contratos para o cinema em mente tem um odor leve porém óbvio e
nocivo. Não consigo nomear o que, no texto, alerta o leitor sobre os motivos
misturados do escritor; (...) Esses livros parecem ter medo de serem apenas livros;
parecem querer tirar seus disfarces e pular para as telas.”

Considerações finais

Os livros interativos que utilizam tecnologias ou levam a vídeos e outras mídias


ainda são uma novidade. Não são eles que dominam as vendas nas livrarias, e termos
como “digi-novel” e “realidade aumentada” não fazem parte do dia-a-dia da maioria
dos leitores. Entretanto, eles estão cada vez mais presentes nas livrarias e lojas online.
Não só eles, como vídeos e fotos em que os leitores mostram sua experiência literário-
eletrônica.

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A criação literária também pode se tornar uma atividade menos solitária, seja
isso bom ou ruim. É possível escrever um livro tradicional sozinho e contar com outras
pessoas, como um editor e um agente, apenas no momento de publicar e lançar o
livro. Um digi-novel, entretanto, obriga o escritor a dialogar com uma equipe que
produzirá o vídeo que ilustrará um trecho da história. Talvez seja aconselhável que o
escritor aprenda sobre as novas tecnologias utilizadas na literatura para poder melhor
negociar e pensar a estratégia de interação de outras mídias.
Apontar um código no livro para uma webcam pode nos parecer estranho
agora, mas, num futuro não muito distante, as próximas gerações poderão sentir a
mesma estranheza ao ver alguém folheando simples páginas brancas com letras pretas
impressas. Portanto, é válida a reflexão de como o aumento dessas ferramentas
influenciará nos hábitos tanto dos leitores como dos escritores.

Referências

DILLARD, Annie. The writing life. New York: Harper Perennial, 1989.
HJORT, Mette; BONDEBJERG, Ib. The Danish directors. Dialogues on a contemporary
national cinema. Bristol: Intellect Books, 2001.
SIMONS, Jan. Playing the waves. Lars von Trier's game cinema. Amsterdam:
Amsterdam University Press, 2007.
SCHEPELERN, Peter. Ten years of Dogme. Film - Special Issue / Dogme. Copenhagen:
The Danish Film Institute, edição especial, primavera 2005.
COSTA, Cristiane. Admirável livro novo. Revista Bravo!, n. 152, p. 70-77, São Paulo,
abril, 2010.
LAURA, Benavides Carrera et al. Enough was enough! 111 f. Trabalho final do projeto
de pesquisa. Journalism and Computer Science, Roskilde University Center, 2005.
YALGIN, Emre. Dogma/Dogme 95: Manifesto for contemporary cinema and realism. 96
f. Monografia de conclusão do Master of Fine Arts. Institute of Fine Arts. Bilkent
University, 2003.
PUBLISHERS WEEKLY. The Best Selling Books of 2014. Disponível em:
<http://www.publishersweekly.com/pw/by-topic/industry-
news/bookselling/article/65171-the-fault-in-our-stars-tops-print-and-
digital.html>.
BOX OFFICE MOJO. 1995 Worldwide grosses. Disponível em:
http://www.boxofficemojo.com/yearly/chart/?view2=worldwide&yr=1995
IMDB. Internet Movie Data Base. Disponível em: <http://www.imdb.com>.

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PSIQUE HUMANA COMO EXPEDIENTE LITERÁRIO NA PRIMEIRA VERSÃO DE


QUINCAS BORBA

Janaína Tatim1

A presente comunicação decorre de um projeto de pesquisa de mestrado,


formulado ao longo do primeiro semestre de 2015, e de um trabalho final elaborado
para a disciplina “Tópicos de Teoria Literária II - A cultura como em trauma”, cursada
no Programa de Pós-graduação em Teoria e História Literária na Unicamp, também no
primeiro semestre de 2015.
O objeto de estudo da pesquisa referida é a primeira versão do romance
Quincas Borba de Machado de Assis, publicado pela primeira vez na “Parte Literária”
da revista A Estação ao longo de cinco anos, entre 1886 e 1891. Essa primeira versão
possui diferenças importantes em relação à versão final que conhecemos em livro,
dada a público já em 1891. Dentre as diferenças textuais, destacamos a reorganização
do enredo e as reescritas, acréscimos e supressões de trechos da narrativa.
Uma hipótese ampla que propomos é a de que o texto da primeira versão
apresenta problemas estéticos autônomos, isto é, particulares e significativos
relativamente àquele primeiro processo de produção do romance, problemas que não
necessariamente ficam visíveis na versão final, e que, não obstante, são passíveis de
estudo se considerada a primeira versão.
Algo que expressa essa particularidade seria o que formulamos como hipótese
de pesquisa mais específica: a primeira versão de Quincas Borba permite identificar
reverberações e desdobramentos do debate deflagrado por Machado de Assis, em fins
da década de 1870, em torno de sua visão sobre as estéticas Naturalista e Realista. Por
meio de uma crítica feita, via imprensa, ao romance de Eça de Queiroz, O primo
Basílio, Machado teria chegado à seguinte questão de fundo, motor de problemas da
primeira versão: diante da proposta de animalização do humano pelas novas poéticas,
como poderia a forma romance resistir, concebendo e apresentando pessoas humanas
e morais?

1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária do Instituto de Estudos da
Linguagem, UNICAMP, com bolsa de mestrado FAPESP.
E-mail: janaina@live.cuk

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Esse pressuposto crítico de que o romance deveria apresentar pessoas morais


não foi suscitado apenas quando do debate sobre as estéticas Naturalista e Realista.
Trata-se de um problema de longa data para Machado de Assis e que foi se maturando
e complexificando ao longo de toda a sua obra. Neste sentido, defendemos que ele
ainda é um problema relevante e não plenamente resolvido quando o autor se dedica
a escrever Quincas Borba.
Para José Luiz Passos (2007), a constituição moral do sujeito perpassa toda a
história dos romances machadianos como seu objeto por excelência, sendo um
fundamento de sua poética. Em outras palavras, o conceito de pessoa humana e moral
fundamenta a tessitura estética de suas obras, a plausibilidade da representação da
vida interior das personagens, sendo motivações e conflitos morais as verdadeiras
molas das ações, crenças e intenções.
A concepção do personagem como uma pessoa moral faz parte de um conjunto
de princípios descendentes de regras da poética clássica. Daí os pressupostas que
organizam a crítica machadiana de que o romance deve apresentar pessoas humanas e
morais, por meio da análise de paixões e caracteres, de modo que a verossimilhança
seja um dado internamente sustentado na narrativa, dando a medida da verdade do
discurso literário.
O termo chave para localizar essa questão na crítica a O Primo Basílio é
justamente o de pessoa moral, pois nos argumentos de Machado a unidade do
romance e as molas de suas ações deveriam advir do caráter moral das personagens,
seja de suas “paixões” ou de seus “vícios”. Machado reprova o romance de Eça nesse
sentido, pois Luísa, sua principal personagem, seria um títere sem substância moral;
mas não apenas ela, quase nenhum personagem teria complexidade moral para
impulsionar as ações do romance, por isso mesmo o conflito central e desencadeador
das ações precisava apoiar-se no fortuito, no acidental, nas cartas adúlteras roubadas.
Ou seja, como resumiu Passos, Machado reclamava a Eça “um retrato plausível das
motivações e da vida interior” que justificasse ações, intenções e crenças dos
personagens, diferenciando situação moral, que ele prezava como o objeto do
romance (conflitos basicamente advindos da relação do eu com outros sujeitos, como
vergonha, culpa, remorso), das sensações corporais (instintos mais básicos que fazem
parte dos seres humanos).
Além disso, os inventários e descrições de que Eça lança mão, na visão de
Machado, não cumpririam qualquer função necessária ao conflito narrativo, figurando
apenas como um modismo de escola, no caso, Realista, sem necessidade interna. Essa
seria a grande confusão do Realismo, pois a intenção de esgotar a realidade com

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descrições, por vezes ancoradas em preconceitos como o da animalidade do ser


humano, resultaria numa representação falseada, sem verdade humana ou mesmo
estética. A verossimilhança teria pouco a ver com descrever a realidade, retratá-la ou
tentar reproduzi-la; antes, ela compõe a verdade do discurso literário que se fundaria
justamente em seu arranjo interno, pela unidade ou coerência entre as várias
instâncias de uma narrativa.
Certa passagem de sua análise de O Primo Basílio ressoa um tom quase
indignado: “De uma carvoeira, à porta da loja, diz ele [Eça] que apresentava a ‘gravidez
bestial’. Bestial por quê? Naturalmente, porque o adjetivo avolume o substantivo e o
autor não vê ali o sinal da maternidade humana; vê um fenômeno animal, nada mais”
(ASSIS, 2008, p. 1237). Machado de Assis parece especialmente irritado com a
animalização do ser humano, sua redução ao instintual, a qual, ao ser vertida para a
literatura, tentava ocupar o lugar do conflito moral como verdade e, principalmente,
mola estética. Aqui, a questão do decoro, conceito da poética do classicismo francês,
singulariza-se no contexto político-intelectual específico do século XIX, adquirindo uma
função de contrapartida à suposição de que uma visão de mundo pseudocientífica e
positivista sustentava ideologicamente parte da literatura de então.
Isto posto, um dado que chama atenção no texto da primeira versão de
Quincas Borba é a recorrência com que aparecem motivos vinculados à investigação
da psique humana, seus processos e fenômenos. O autor parece ter investido num
aprofundamento dessa concepção da pessoa moral do personagem pelo fundamento
de seu caráter, agora amparado no estudo da psicologia humana. Levada a cabo, a
tarefa de analisar motivos psíquicos se coloca desde o nível micro, do desvelamento de
motivos interiores para atitudes ou pensamentos de personagens, até o nível da
estruturação do romance, sendo um dos mais importantes fios condutores do enredo
o processo de enlouquecimento de Rubião. Além disso, o romance parece dar
expressão literária a questões específicas do campo da psicologia, como o
funcionamento do inconsciente trazido à tona por lapsos, fantasias e mesmo sonhos
como expressão cifrada de desejos. Deste modo, outra hipótese que assumimos é a de
que essa investida na psicologia humana como fomento para expedientes, temas e
técnicas literárias seria tributária do pressuposto já formulado por Machado de Assis
de que a constituição moral do personagem enquanto sujeito deve ser a mola do
romance, ou seja, que suas motivações e conflitos morais é que devem engendrar
ações, crenças e intenções e não o dado externo das ideias pré-concebidas de uma
escola literária, por exemplo.

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Um desses motivos psicológicos que mais nos chama atenção no corpo da


narrativa do romance é o episódio de irrompimento de uma memória involuntária do
protagonista Rubião.
O conceito de memória involuntária é por nós mobilizado a partir de Marcel
Proust e Walter Benjamin (1989) à medida que fornece um ponto de partida para
discutir a natureza e a função deste tipo de memória enquanto expediente literário.
Proust constitui os conceitos de memória voluntária e involuntária pelo
confronto de suas naturezas distintas sobretudo no que tange a dois aspectos: como
se constituem e como se nos apresentam esses tipos de memória. A primeira é o tipo
de memória sujeita à tutela do intelecto, isto é, a busca pelo passado que pode ser
feita através da vontade consciente do sujeito; não obstante, essa memória
deliberadamente evocada não acessaria o passado em sua força e potência. O que se
acessa a partir dela são elementos outrora computados pela consciência, de natureza
meramente informativa e bidimensional. Já a memória involuntária escapa
plenamente à vontade consciente do sujeito, por isso, Benjamin destaca da
formulação de Proust a centralidade do acaso e do elemento exterior ao sujeito como
gatilhos disparadores da memória involuntária. Sugere-se que a memória involuntária
é formada por aquilo que penetrou no sujeito ao ultrapassá-lo em sua consciência
lógica e linear. Ela se liga a tudo aquilo que no humano está antes da racionalidade, ou
a ultrapassa: nos cheiros, nos sabores, nos gestos automáticos que se fazem sem que
nos apercebamos deles. A memória involuntária guarda um saber que até então não
era sabido. Através deste tipo de memória, acessamos uma imagem cheia de
profundidade e de efeitos de presentificação, como se o passado fosse o real
acontecendo de novo no agora. A madeleine que desperta a intensidade do passado
esquecido é o arquétipo maior desse movimento de revelação proustiano.
Benjamin propõe que a memória involuntária propicia ao sujeito um meio de
apropriação de sua experiência. Em Busca do Tempo Perdido dramatizaria o ato
contínuo de um sujeito a elaborar sua experiência e ser possuído por ela, como se o
romance fosse o único e mesmo fio de um novelo infinito de memória em elaboração
pela narrativa. O romance de Proust seria ele todo o monumento da memória
involuntária.
No contexto de um romance realista como Quincas Borba, no entanto, a
memória involuntária vai nos remeter a outros problemas e funções do retorno da
matéria mnemônica não elaborada. Ela ocorre em Quincas Borba quando Rubião está
tomado pela excitação de um acontecimento que deflagra sua queda amorosa por
Sofia, mulher de seu sócio. Ao tentar elaborar para si o episódio em que fizera à dama

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uma tacanha declaração de amor, Rubião encontra-se em um estado de alienação do


mundo, apesar de estar na rua. Quando se dá conta, está sendo alvo da disputa de
três cocheiros que se dispõem a levá-lo para casa. O gesto de hesitação de seu corpo,
certas palavras-chave usadas pelo cocheiro, misturados à confusão emocional do
momento, fazem irromper um episódio muito antigo e esquecido, em que, hesitante
como no presente, Rubião se via tendo que decidir se acompanharia o préstito de
enforcamento de um escravo:

Rubião, depois de hesitar ainda, deu consigo dentro do tilburi que lhe
ficava à mão, e mandou tocar para Botafogo. Então lembrou-se de
um velho episódio esquecido, ou foi o episódio que lhe deu
inconscientemente a solução. Uma ou outra coisa, Rubião guiou o
pensamento, com o fim de escapar às sensações daquela noite.
Lá iam longos anos. Ele era então muito rapaz, e pobre. Um dia, às
oito horas da manhã, saiu de casa, [...] desceu a rua do Ouvidor até a
dos Ourives, não viu nem ouviu cousa nenhuma.
Na esquina da rua dos Ourives deteve-o um ajuntamento de pessoas,
e um préstito singular. Um homem, judicialmente trajado, lia em voz
alta um papel, a sentença. Havia mais o juiz, um padre, soldados,
curiosos. Mas, as principais figuras eram dois pretos. Um deles,
mediano, magro, tinha as mãos atadas, os olhos baixos, a cor fula, e
levava uma corda enlaçada no pescoço; as pontas do baraço iam nas
mãos de outro preto. Este outro olhava para a frente e tinha a cor
fixa e retinta. Sustentava com galhardia a curiosidade pública. Lido o
papel, o préstito seguiu pela rua dos Ourives adiante; vinha do Aljube
e ia para o largo do Moura.
Rubião naturalmente ficou impressionado. Durante alguns segundos
esteve como agora à escolha de um tilburi. Forças íntimas ofereciam-
lhe o seu cavalo, umas que voltasse para trás ou descesse para ir aos
seus negócios - outras que fosse ver enforcar o preto. Era tão raro ver
um enforcado! Senhor, em vinte minutos está tudo findo! - Senhor,
vamos tratar de outros negócios! E o nosso homem fechou os olhos,
e deixou-se ir ao acaso. O acaso, em vez de levá-lo pela rua do
Ouvidor abaixo até à da Quitanda, torceu-lhe o caminho pela dos
Ourives, atrás do préstito. Não iria ver a execução, pensou ele; era só
ver a marcha do réu, a cara do carrasco, as cerimônias... Não queria
ver a execução. De quando em quando, parava tudo, chegava gente
às portas e janelas, e o oficial de justiça relia a sentença. Depois, o
préstito continuava a andar com a mesma solenidade. Os curiosos
iam narrando o crime - um assassinato em Mata-porcos. O assassino
era dado como homem frio e feroz. A notícia dessas qualidades fez
bem a Rubião; deu-lhe força para encarar o réu sem delíquios de
piedade. Não era já a cara do crime; o terror dissimulava a

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perversidade. Sem reparar, deu consigo no largo da execução. Já ali


havia bastante gente. Com a que vinha formou-se multidão
compacta.
"Voltemos", disse ele consigo.
Verdade é que o réu ainda não subira a forca, não o matariam de
relance; sempre era tempo de fugir. E, dado que ficasse, por que não
fecharia os olhos, como fez certo Alípio diante do espetáculo das
feras? Note-se bem que Rubião nada sabia desse tal rapaz antigo;
ignorava, não só que fechara os olhos, mas também que os abrira
logo depois, devagarinho e curioso...
Eis o réu que sobe à forca. Passou pela turba um frêmito. O carrasco
pôs mãos à obra. Foi aqui que o pé direito de Rubião descreveu uma
curva na direção exterior, obedecendo a um sentimento de regresso;
mas o esquerdo, tomado de sentimento contrário, deixou-se estar;
lutaram alguns instantes... Olhe o meu cavalo! - Veja, é um rico
animal! - Não seja mau! - Não seja medroso! Rubião esteve assim
alguns segundos, os que bastaram para que chegasse o momento
fatal. Todos os olhos fixaram-se no mesmo ponto, como os dele.
Rubião não podia entender que bicho era que lhe mordia as
entranhas, nem que mãos de ferro lhe pegavam da alma e a
retinham ali. O instante fatal foi realmente um instante; o réu
esperneou, contraiu-se, o algoz cavalgou-o de um modo airoso e
destro; passou pela multidão um rumor grande, Rubião deu um grito,
e não viu mais nada (ASSIS, 1975, 157-159).

A relação do acaso com a irrupção dessa memória é ambígua. Um dia qualquer


ao sair para a rua, Rubião fora “casualmente” confrontado com a singular
oportunidade de presenciar um enforcamento – mas nada de casual há neste acaso,
uma vez que ele é o produto de uma ordem social específica. Uma das senhas que
fazem a correspondência entre presente e passado é o gesto hesitante frente à
necessidade de tomar uma decisão, cuja importante função é paralisar o sujeito. No
agora, Rubião precisa escolher qual tílburi tomar. Já o passado obrigava-o a decidir-se
por assistir ou não ao enforcamento. Em dado momento, Rubião encontra-se de tal
modo possuído pela memória, que parece estar em transe delirante: as palavras do
cocheiro penetram na cena do passado e o passado domina a consciência de Rubião
no presente. A palavra cavalo e as metáforas dela derivadas também fazem a ponte
entre os dois tempos. Ao cavalo associa-se a metáfora da dominação daquele que
conduz, que monta. O carrasco tem a postura de um cavaleiro e é com sua sublime
elegância que emplaca o ato mais bárbaro: ele cavalga o enforcado que esperneava na
forca.

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Para o personagem, a memória do enforcamento funciona como uma válvula


de descompressão do estado de confusão amorosa em que se encontra no presente.
Essa relação um tanto singular com a lembrança de um enforcamento nos faz refletir
sobre a possibilidade de um sujeito, nas condições objetivas de Rubião, simbolizar essa
cena de violência enquanto traumática.
Para Rubião, alienar-se do presente pela memória involuntária fornece algum
prazer. De modo cínico, é mais ou menos neste sentido que o narrador vai associar o
leitor a tal memória: pelo âmbito do gozo. A cena não voltará a ser referida ao longo
de todo o romance, a não ser no capítulo que a precede, em que há uma provocação
irônica à leitora, chamada “senhora minha”, em que o narrador comenta: “Não,
senhora minha, ainda não acabou este dia tão comprido; não sabemos o que se passou
entre Sofia e o Palha, depois que todos se foram embora. Pode ser até que acheis aqui
melhor sabor que no caso do enforcado” (ASSIS, 1975, p. 162). O leitor é associado a
um gosto de leitura – aquele que aprecia o enredo amoroso e logo será levado pelo
fluxo da narrativa para bem longe do desagradável encontro com a morte brutal. Ao
mesmo tempo, presume-se que a leitora teria encontrado algum sabor, um gosto, um
gozo, na cena do enforcamento. A violência socialmente produzida e legitimada é
subsumida cinicamente pelo proveito do indivíduo.
A (im)possibilidade de simbolizar a memória enquanto traumática, dentro da
narrativa, isto é, para Rubião, está comprometida pelas instituições sociais que, no
limite, promovem essa mesma cena de barbárie. A instituição do direito aparece aqui
desvelada em seu poder de braço repressor e violento da ordem social estabelecida. A
promoção pública do enforcamento pela justiça molda os sentidos a serem extraídos
da situação. Rubião encoraja-se a seguir o préstito uma vez que a linguagem
performativa da justiça transforma um sujeito escravizado em criminoso hediondo. A
publicidade confere ao ato um valor didático e exemplar para a sociedade. À justiça se
concede o espaço público legitimado para a máxima violência, ela é o agente legítimo
da barbárie, um dos pilares mantenedores da ordem social escravista.
A forma como a memória involuntária e seu conteúdo aparecem na narrativa
mostram a ultrapassagem do sujeito, porém ela ultrapassa ainda a lógica literária do
enredo, pois a cena fica desligada do desenrolar de ações necessárias. Ela parece
alheia à lógica dos conflitos romanescos. Nenhuma instância delimitável da narrativa a
retoma. A memória involuntária invade a economia do romance e permanece
deliberadamente não aparada por ele, não integrada à ordem narrativa.
Enquanto parte do “cenário” e do cotidiano da Corte, em Quincas Borba, os
escravos e a ordem social escravocrata estão presentes, porém assimilados e

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invisibilizados na narrativa. Seria preciso prestar uma atenção voluntária à presença


dos escravos, caso contrário eles parecem o óleo lubrificante da máquina que
desenrola as ações do romance: recebem ordens, executam-nas, acompanham seus
amos em viagens, levam pra lá e pra cá recados e cachorros, servem o café, encilham
cavalos, trepam aos morros do Rio de Janeiro, são cuidadosos para não acordar a
sinhá, às vezes são menos que uma presença, são rumores enchendo o silêncio da casa
elegante de Sofia. Nesta subcondição, eles não estão exatamente apagados, porém
invisibilizados pela mimese realista do cotidiano brasileiro daquela época.
Além de parte integrante da ordem do trabalho enquanto força produtiva, os
escravos também figuram na dimensão das coisas, estão reificados, são bens,
mercadorias, propriedades: infalivelmente, são itens no rol de todas as heranças
mencionadas no romance, enumerados entre vírgulas na lista junto a todas as outras
coisas. Nesta condição, são o símbolo da tradicional ordem escravocrata.
Assim, o conteúdo da escravidão só se torna consciente de fato enquanto
material não elaborado. Quando a memória involuntária irrompe, cifrada de horror,
por meio de uma subjetividade que mal pode problematizá-la, permanece
insidiosamente em aberto, não simbolizada, desligada, sem integração lógica ao resto
da narrativa. A estruturação do romance conduz, pois, para que a cena não seja
integrada nem à história do personagem, nem à história de sua leitura. Tal memória
permanece como uma ferida aberta, que causa profundo mal-estar na leitura.
Se lembrarmos da crítica que Machado fez a Eça quanto aos elementos
fortuitos que não contribuem para a verossimilhança interna do romance, estaríamos
diante de um autor em contradição, visto o uso dessa memória involuntária que
aparentemente não se faz necessária à narrativa. Quando algo da ordem do
inconsciente interpela a organização racional que é a estruturação de um romance, em
função dos pressupostos anteriormente discutidos, encontramos o limite do artifício
da autonomia interna do romance.
Trata-se do que consideramos como uma importante contribuição da pesquisa
dos fenômenos da psique humana às possibilidades da representação do romance. E
não se trata apenas de um jogo estético com as possibilidades de figurar a memória e
o esquecimento na narrativa, trata-se de vincular isso tudo a um dado social, ou, à
invasão da narrativa pelo real.
Se em um nível a memória aparenta ser fortuita, em outro ela traz à tona um
importante conteúdo social, histórico e político. Ela põe em negativo a tarefa em
aberto de perlaborá-la e simbolizá-la, vencer a submissão cínica e individualista à
violência legitimada pelo Estado, lutar contra seu esquecimento na memória da leitura

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do romance, e quiçá em nossa memória histórica e social de nação. Pois, como sugere
Ernest Renan em seu ensaio O que é uma Nação: “Ora, a essência de uma nação é que
todos os indivíduos tenham muitas coisas em comum, e também que todos tenham
esquecido coisas”. Resta, talvez, ao âmbito da leitura, a tarefa de elaborar esquecidos
que fenômenos como a memória involuntária fazem ressurgir.

Referências

ASSIS, Machado de. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
________. Literatura Realista (O primo Basílio, romance do sr. Eça de Queirós, Porto,
1878). In: Obra completa em quatro volumes: volume 3. Org. Aluizio Leite Neto,
Ana Lima Cecilio, Heloisa Jahn. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.
BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Charles Baudelaire, um lírico
no auge do capitalismo. Trad. José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves
Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989.
PASSOS, José Luiz. Machado de Assis: o romance com pessoas. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo: Nankin editorial, 2007.
RENAN, Ernest. O que é uma Nação? Trad. Samuel Titan Jr. Plural; Sociologia, USP, São
Paulo, v. 4, p. 154-175, 1997.

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UM DIÁLOGO ENTRE LITERATURA E FILOSOFIA:


A REPRESENTAÇÃO DO MAL NO ROMANCE O MORRO DOS VENTOS UIVANTES

João Pedro Rodrigues Santos1

A temática da maldade na literatura

O que é o mal? Por que ele existe? É possível definir o que é o bem e o que é o
mal? Essas são algumas das perguntas que acompanham os primórdios da civilização
humana. Desde que o homem toma conhecimento de sua existência, começa a
perceber que há uma dualidade entre mal e bem. Essa separação existe, mas é
propriamente, em sua essência, ambígua. Tal dicotomia pode ser estabelecida por uma
sociedade, por uma cultura, pela religião, pelas leis, etc. Historicamente, observamos
que cada época tem seus costumes e seus conceitos, implícitos e explícitos, do que é o
certo e do que é o errado, ou seja, do que é o bem e do que é o mal. Cada sociedade
cria ideias e representações do mal e do bem. Não responderemos o que é o mal.
Acreditamos que essa é uma questão incógnita, sem respostas, ou com respostas
relativas. O mal acontece na matéria e na não matéria. Há o mal palpável e o mal que é
metafísico e abstrato. O mal se aplica ao racional e ao irracional, ao sensorial, ao
material, ao imaterial, ao psíquico, ao linguístico, ao emocional. Compreendê-lo em
sua amplitude foge do nosso objetivo, pois a complexidade em que se encontra esse
tema tange a um mistério. Responder o que é o mal é um mistério. Descobrir o que é o
mal é como a questão que atormenta Alberto Caeiro (PESSOA, 2012). O heterônimo
pessoano deseja desvendar o mistério das coisas. Desvendar o mal é tão impossível
quanto desvendar o mistério das coisas. Ou, quando pensamos ter descoberto o que é
o mal, acomete-nos o mesmo “mal” que acometeu Bernardo Soares (PESSOA, 1999). O
outro heterônimo de Fernando Pessoa descobre que o único enigma que não tem
resposta é o porquê existem enigmas. Algo semelhante nos ocorre quando tentamos
responder o que é o mal.
O mal faz parte da natureza humana. Desde as culturas primitivas o homem
parece simbolizar essa dualidade entre bem e mal que perpassa a existência. Em quase

1
Mestrando em Teoria da Literatura na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Recebe
bolsa de incentivo da CAPES.
E-mail: jpsantosr@hotmail.com

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todas as culturas ocidentais e orientais é possível encontrarmos representações da


bondade e da maldade. Há sempre o mal que nós fazemos e há o mal que nós
sofremos. Então, partiremos apenas da constatação de que o mal se faz presente em
nós e em nosso entorno. Nós o sentimos. Ele é externo, mas também pode vir de
dentro de cada um.
A temática do mal nos coloca em um labirinto. Como Teseu que procura o
Minotauro pelo labirinto, nós procuramos entender o mal. A literatura será o nosso fio
de Ariadne. Ao pensar no mal deparamo-nos, em paradoxo, com o bem. Ambos
podem ser conceituados e aplicados às coisas de acordo com os benefícios ou
prejuízos que trazem para nós. O cristianismo postula que existe Deus a quem cabe
determinar o que é o bem ou mal. O ocidente, perpassado pela tradição judaico-cristã,
apresenta o mal personificado na figura do diabo. Assim, para falar do mal na
literatura nos enredamos em questões filosóficas. Desde o nascimento da filosofia
ocidental vários foram os pensadores que se debruçaram para tentar compreender e
desvelar o que é o mal.
Sem dúvida, há algo terrível e, ao mesmo tempo, fascinante na maldade. Com
frequência nos perguntamos o que leva um ser humano a praticar determinados atos,
em determinadas circunstâncias, com outro ser humano. A historiadora britânica
Miranda Twiss questiona:

O que torna o mal tão fascinante? Folheando as páginas da história, é


difícil encontrar um assunto que tenha intrigado mais a inteligência
humana do que o mal. Um livro de história que trata da
desumanidade do próprio homem é mais instigante do que outro que
detalhe atos de bondade das pessoas. O mal destrói a integridade, a
felicidade e o bem-estar de uma sociedade “normal”; apesar disso,
somos atraídos por ele, talvez com a esperança de chegarmos a
aprender com nossos erros. Mas o mais provável é que seja por um
desejo perverso de ouvir falar sobre as desgraças que se abatem
sobre os outros enquanto nos consolamos com a idéia que nunca vai
acontecer conosco. (TWISS, 2004, p.14)

No século XX, na Segunda Grande Guerra, observamos acontecer o que a


filósofa Hannah Arendt chamou de “banalização do mal” (ARENDT, 1999). Em resumo,
seu conceito é aplicável à relação de Adolf Otto Eichmann2 com a estrutura nazista de

2
Adolf Otto Eichmann foi um político da Alemanha nazista e tenente-coronel da SS. Ele foi responsável
pela logística de extermínio de milhões de pessoas no final da Segunda Grande Guerra. Organizou a
identificação e o transporte de pessoas para os diferentes campos de concentração, sendo por isso
conhecido freqüentemente como o executor-chefe do Terceiro Reich.

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máquina da morte. Naquele momento e lugar, o ato de fazer o mal a outras pessoas
estava inserido num ritmo de atividade burocrática qualquer, sem que o agente
assumisse a responsabilidade pelo desdobramento de seu ato.
Retrocedendo ao século XIX, temos Friedrich Nietzsche. Ele postulou que os
seres humanos precisam ir além do bem e o do mal. Nossas percepções de bem e mal
fazem sentido em um mundo onde há um Deus, e não em um mundo sem Deus.
Quando sobrepujamos a ideia da existência de Deus tiramos a validade de conceitos
sobre como devemos viver. Nietzsche descrevia a si mesmo como um “imoralista”, não
alguém que faz o mal deliberadamente, mas alguém que acredita que precisamos ir
além de toda a moral. A morte de Deus abre novas possibilidades para a humanidade
que podem ser assustadoras ou construtivas. A vantagem, na perspectiva de
Nietzsche, era que os seres humanos, ao subtraírem Deus, podiam criar seus próprios
valores. Na obra Além do bem e do mal, ele propõe que “Não há quaisquer fenômenos
morais, mas apenas uma interpretação moral de fenômenos.” (NIETZCHE, 2014, p.97).
Voltando no tempo mais um pouco, encontramos Santo Agostinho. Ele foi um
dos pensadores que mais debateu e tentou entender o mal. Nascido em 354, ele
faleceu em 430. Em suas Confissões, Agostinho refletiu sobre alguns dos principais
alicerces do cristianismo. Ele foi um dos primeiros filósofos a ser posteriormente
transformado em santo pela igreja católica. Agostinho questionava-se sobre como
Deus e o mal podem coexistir. Para ele era um mistério entender por que Deus
permite que acontecimentos maus, ou seja, o mal aconteça. Se tudo vem de Deus e
por Deus, então como ele permite o mal? O mal vem de Deus também? Agostinho, no
início de sua vida, aderiu ao maniqueísmo para evitar a crença de que Deus queria,
fazia ou permitia o mal. Na concepção maniqueísta de mundo, Deus e Satã estão
imersos num combate eterno pelo poder. Em determinados espaços e certos tempos,
o mal sobrepujava o bem, mas nunca durante muito tempo. Os maniqueístas
refutavam a ideia de poder supremo do bem. O bem, nessa perspectiva, era
constantemente ameaçado pelas forças do mal. Já no fim da vida, Santo Agostinho
negou as proposições maniqueístas. Ele voltou a se debater com a problemática do
mal e conjecturou que na verdade o mal não existe por si. Ele não é substância, ele é
apenas a ausência do bem. O mal, então, é a privação, é o nada. Agostinho fornece
uma dimensão moral ao mal, pois nega que o mal tenha materialidade. Ele preconiza
que o mal é simplesmente uma privação do bem (AGOSTINHO, 2014).
Alguns filósofos contemporâneos rediscutem os conceitos e proposições sobre
o mal. Paul Ricoeur dedicou vários escritos à busca de desvelar o mal. Ele comunica
que o mistério do mal é semelhante ao mistério da morte. Nenhuma filosofia consegue

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apreender a morte, pelo menos não completamente. Assim como a morte, apresenta-
se o mal, algo que beira o indizível (RICOEUR, 1988). Ricoeur refletiu em algumas de
suas teorias sobre a simbologia do mal, sobre a relação do mal com os mitos etc. Em
uma de suas últimas obras, O Mal - Um desafio à filosofia e à teologia, ele revê
algumas de suas posições anteriores sobre o mal e empreende a ideia de que o mal é
algo misterioso, inapreensível e indizível. O filósofo francês fala da necessidade de se
combater ética e politicamente o mal, o que normalmente causa também outro mal.
“Pela ação, o mal é antes de tudo o que não deveria ser, mas deve ser combatido.
Neste sentido, a ação inverte a orientação do olhar.” (RICOEUR, 1988, p. 48). Portanto,
“Todo o mal cometido por um ser humano, já vimos, é um mal sofrido por outro. Fazer
mal é fazer sofrer alguém.” (RICOEUR, 1988, p. 48).
A literatura nunca deixou o mal de lado. O mal é representado na literatura
desde Homero e as tragédias gregas, passando depois por muitas outras obras, como,
por exemplo, Dante Alighieri com a sua A Divina Comédia. A obra do poeta italiano
ajudou a criar o imaginário ocidental cristão sobre bem e mal, ao descrever “o
Inferno”, “o Purgatório” e “o Paraíso”.
Um estudo interessante sobre a relação do mal com a literatura é apresentado
no livro Monstros e monstruosidades na literatura, que foi organizado pelo professor e
pesquisador Julio Jeha. Nesse livro temos um capítulo, escrito por Jeha, chamado
“Monstros como metáfora do mal”. Nesse texto o pesquisador apresenta uma reflexão
sobre as representações do mal na literatura de forma ampla e depois faz uma análise
da corporificação do mal no monstro do romance Frankenstein, de Mary Shelley. Para
ele, “[...] o mal é a pedra na qual toda filosofia tropeça. Neste ponto tomamos
consciência que até o sofrimento carece de palavras para ser dito. Se é difícil definir o
mal, talvez seja possível discernir uma causa para ele.” (JEHA, 2007, p.10).
O autor do capítulo vai mostrando que a literatura parece oferecer uma
compreensão diferenciada sobre o mal através da fruição estética. A literatura
proporciona discussões pertinentes na tentativa de apreensão do mal. Ela nos ajuda a
compreender que o mal é parte de nossa existência e que devemos aprender a lidar
com ele.
Jeha, em seu texto, fala ainda da ambiguidade e da relatividade do mal.
“Algumas mulheres muçulmanas podem pensar que usar uma burca lhes confere
poder, enquanto ocidentais podem pensar que tal prática as degrada porque indica
opressão masculina e frequentemente oculta sinais de violência familiar.” (JEHA, 2007,
p.11). Então, o mal depende do olhar de cada um e da cultura em que cada um está
inserido. Cada sujeito carrega, de forma consciente ou inconsciente, noções e

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conceitos do que é o bem e o mal. O autor do texto que estamos explanando discorre,
também, sobre a mudança na forma de pensar o mal em fins do século XIX:

A partir do fim do século XIX, a discussão tendeu a focar mais o mal


do que sua existência supostamente problemática. Marx, Freud e
Nietzsche retiraram da moral sua relativa autonomia e sua
intencionalidade, reduzindo-a a outros elementos que a antecedem e
a condicionam. Marx encontra as causas do mal nas relações de
produção, Nietzsche o localiza na vontade de poder e Freud o
descobre nas pulsões libidinais. Assim, eles transformam o mal em
Mal, um conceito abstrato, platônico, que reside no reino das idéias.
(JEHA, 2007, p.17)

De acordo com Karl Marx, o mal pode ser pensado em relação à luta de classes,
o mal para ele é que uns possuem mais riquezas e os outros menos, ou nada.
Nietzsche, de certo modo, postula o direito do mais forte sobre o mais fraco. Para ele
precisamos abandonar a moral para entender o mal. Já Freud fala que o mal é parte
inerente da raça humana. Para vivermos em sociedade precisamos passar por um
processo de castração e inibição de nossos impulsos primitivos. Relegamos ao
inconsciente nossa verdadeira natureza. Dessa forma, o preço da civilização é a
neurose, pois essa castração e recalcamento geram frustrações. Freud demonstrava
compaixão com os indivíduos e com a sociedade, pois ambos estão fadados à
destruição, como fica explicado em O mal-estar na cultura (FREUD, 2012). O mal para
Freud é que temos que oprimir e assassinar nossa verdadeira natureza para conseguir
viver em sociedade.
Na literatura a ambiguidade do mal parece ser atestada através de metáforas.
Parece que filósofos e teólogos tateiam ao representar ou entender o mal, desse
modo, “[...] escritores talvez sejam capazes de tornar o indizível visível. A serviço deles,
figuras do discurso, principalmente metáforas, podem dar corpo a noções abstratas
tais como existência negativa.” (JEHA, 2007, p.18). Ao tentarmos representar o mal,
normalmente criamos metáforas, relacionando seres e acontecimentos. Assim sendo,

[...] quando falamos do mal, tendemos a criar referências


metafóricas, relacionando um ser ou um acontecimento a algo que
existe em um plano diferente. Entre as metáforas mais comuns que
usamos para nos referir ao mal, estão o crime, o pecado e a
monstruosidade (ou o monstro). Quando o mal é transposto para a
esfera legal, atribuímos-lhes o caráter de transgressão das leis
sociais; quando o mal aparece no domínio religioso, o reconhecemos
como uma quebra das leis divinas, e quando ele ocorre no reino

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estético ou moral, damos-lhes o nome de monstro ou


monstruosidade. Ao dizermos que Madame de Merteuil, em Les
liaisons dangereuses, é um monstro esperamos trazer à mente do
nosso interlocutor uma idéia de excesso e transgressão que
caracteriza o comportamento moral daquela personagem. Passamos
do mais concreto (a vida diária, ainda que ficcional) para o mais
abstrato (domínios religiosos, legal, estético e moral) por meio de
uma semelhança estrutural, e, ao fazer isso, esperamos ajudar nossas
mentes a entender algo que, de outra maneira, poderia escapar a
nossa compreensão. (JEHA, 2007, p.19)

À vista disso, refletiremos sobre a personagem de Heathcliff, de O Morro dos


Ventos Uivantes, sobre a qual nos deteremos com especificidade mais adiante. Outras
personagens desse romance dizem, em certos momentos, que ele não pode ser
humano, ele parece ser um monstro ou um demônio. Da mesma forma pode pensar o
leitor numa primeira leitura. Entretanto, essa noção de que Heathcliff é a
personificação do mal e é um monstro vai sendo relativizada. Vamos apiedando-nos da
personagem e entendendo, em certas instâncias, suas motivações. Todos os monstros
também têm um lado humano. É isso que parece ser o que algumas narrativas dizem.
Então,

No século 19, a literatura inglesa gerou cinco narrativas de monstros:


Frankenstein, ou, o moderno Prometeu (1818, 1831), de Mary
Shelley; Dr. Jekyll e Mr. Hyde (1886), de Robert Louis Stevenson; O
retrato de Dorian Gray (1891), de Oscar Wilde, A ilha do Dr. Moreau
(1896), de H. G. Wells, e Drácula (1897), de Bram Stoker. “Ao lado do
monstro de Frankenstein (...) podemos colocar o Doppelgänger
[duplo], a máscara da inocência, o criador de seres humanos e o novo
e aprimorado vampiro”, anuncia David Punter. Todos eles são
metáforas da degenerescência humana e, assim, da essência do
humano, que, como nos ensinam Leopardi e Bataille, é o próprio mal.
(JEHA, 2007, p.22-23)

Os “monstros” desses romances parecem aglutinar um paradoxo. Em


Frankenstein ficamos em dúvida se o monstro é a criatura criada pelo doutor Victor, ou
se o próprio doutor Victor é que é um monstro, pois ele é covarde e não assume a sua
própria criação. Ele renega sua própria criatura, que não pediu para existir, mas que
existe porque ele lhe deu vida. Quem é mesmo o monstro dessa história? Em O retrato
de Dorian Gray, de Wilde, nos questionamos também sobre a dubiedade da
personagem que dá nome ao romance. Será que Dorian é mesmo mau? Ou era
inocente e foi pervertido? É possível culpá-lo de querer ser sempre jovem e bonito,

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vivendo na sociedade em que vivemos? Em Dr. Jekyll e Mr. Hyde, que também é
chamado de O médico e o monstro, já temos a questão da ambiguidade instaurada no
próprio título do romance. O médico e o monstro são a mesma pessoa, são o bem e o
mal dentro de cada um, são o duplo de todos nós. No romance A ilha do Dr. Moreau
temos a narrativa de um cientista que faz experiências de criação de seres humanos. O
romance propõe toda uma discussão sobre ética, religião, bem, mal etc. Em Drácula
avulta a metáfora de um ser humano que se alimenta do sangue de outros seres
humanos, a humanidade vampirizada. Ou seja, uma metáfora dos humanos que se
alimentam uns dos outros, usando disfarces sedutores. Falaremos agora da
personagem de Heathcliff.

Heathcliff: entre a escuridão e a luz

Essas narrativas citadas acima concretizam personagens complexas, ambíguas,


duplas. Sob enredos que beiram e interseccionam o fantástico e o mistério, esses
romances referidos propõem grandes discussões. Da mesma forma o faz o romance O
Morro dos Ventos Uivantes, escrito por Emily Brontë e publicado, pela primeira vez,
em 1847. Esse é um romance que fala de amor, ódio e vingança. A obra mostra a
ambivalência que existe entre o estranho e o familiar, a realidade e o sonho. O
romance de Brontë nos conta a história de um amor improvável que surge entre um
“cigano mestiço”, Heathcliff, trazido quando pequeno à Inglaterra, e uma menina
inglesa, Catherine. Amor frustrado que gera uma força maligna e destruidora. Nessa
narrativa quase todas as personagens praticam maldades, sobressaindo-se, é claro,
Heathcliff. Assim, o romance investe na ambiguidade e os leitores têm dificuldades de
defender ou condenar as personagens.
Heathcliff, em função da sua vingança, usa de muita violência contra as outras
personagens. Em certo momento, ele tortura Isabella (irmã de Linton). Inclusive, o
protagonista seduz essa mesma personagem e depois a faz de refém. Ele consegue,
também, obter a casa que era de Hindley e causa, ainda, a morte de Catherine. Depois,
obriga a filha de Catherine a se casar com o seu filho e se apropria da casa de Linton. O
leitor fica revoltado com esses atos e fica compadecido pelas outras personagens. Ao
mesmo tempo, o leitor se questiona se a vingança de Heathcliff não tem um pouco de
sentido. Ele foi humilhado e rechaçado de muitas formas quando criança. Hindley,
principalmente, usa de sua condição social elevada para maltratá-lo. O cigano volta,
então, três anos depois em busca de vingança, mas entende, após a morte de
Catherine, que o maior mal já foi feito. Catherine está morta, seus atos são inúteis, ela
não voltará. Cabe a ele reencontrá-la num outro mundo. A questão da aparência e da

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raça dessa personagem também possui algo de metafórico. Heathcliff é um cigano


trazido, talvez, da Índia ou da Espanha. Ele tem a pele escura, feições brutas. É sempre
sugerido que há algo de inumano nele.
Nós, leitores, nos compadecemos com o sofrimento de Heathcliff e ao mesmo
tempo achamos assustadores seus atos. É o mistério que encerra toda obra literária,
há sempre mais do que uma possibilidade de interpretação, abrindo questionamentos
que não se finalizam. Para pensar na personagem de Heathcliff nos reportamos ao
clássico Aspectos do romance (1974), de E. M. Forster. Nessa teoria, o autor começa
explicando que há um intenso diálogo entre nós, pessoas da vida real, e as
personagens. Contudo, por mais que as personagens se pareçam com as pessoas, elas
não são cópias dessas. Temos um conhecimento maior de uma personagem do que
poderemos ter de qualquer pessoa, pois a personagem é uma entidade textual que se
encerra no próprio texto, tudo sobre ela está ali e sempre estará. Forster criou ainda
uma já famosa divisão entre as personagens: as “planas” e as “redondas”. As
personagens planas são aquelas que são construídas em torno de apenas uma ideia, e
não surpreendem. Já as personagens redondas são imprevisíveis e podem nos abismar.
Voltando ao romance, analisamos que desde o começo de O Morro dos Ventos
Uivantes Heathcliff suportava os maus tratos. Isso porque o afeto de seu pai adotivo
despertou ciúmes em Hindley. Até mesmo Nelly3, a empregada da casa, no começo,
não gostava do menino cigano, depois ela acabou se afeiçoando a ele. Em
determinado momento do romance, Hindley é mandado para estudar fora. Cathy e
Heathcliff ficam, dessa forma, numa infância idílica e onírica, sem regras e livres. Com a
morte do pai, Hindley retorna, já casado, mas no início, até o incidente na casa dos
Linton (quando Cathy é mordida), as crianças permanecem livres. Nelly conta:

Uma das principais diversões dos garotos era correrem de manhã


para a charneca, ficando lá o dia inteiro; o castigo que vinha depois
só lhes causava gargalhadas. O coadjutor podia passar quantos
capítulos quisesse para Catherine decorar e Joseph podia açoitar
Heathcliff até que o braço lhe doesse; os dois esqueciam tudo assim
que se viam juntos ou quando combinavam alguma travessura que os
vingasse. (BRONTË, 2010, p.61)

A empregada parece gostar de Heathcliff e protegê-lo. Na véspera de Natal, ela


fala que vai deixar Heathcliff mais bonito que Linton, “E, agora, embora eu tenha que
fazer o jantar, hei de arranjar tempo a fim de preparar você de jeito a que Edgar Linton

3
Nelly é um dos narradores homodiegéticos do romance. Na verdade, predomina a voz dela na
narração, pois ela é que conta os acontecimentos para o sr. Lockwood.

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fique feito um boneco a seu lado. Aliás, ele tem realmente cara de boneco.” (BRONTË,
2010, p. 73). A governanta completa: “Você é mais novo, mas juro que é mais alto que
ele e muito mais largo de ombros. Se quisesse, derrubava-o num abrir e fechar de
olhos. Não acha que pode?” (BRONTË, 2010, p.73). Heathcliff responde: “- Mas Nelly,
nem que eu derrubasse vinte vezes, isso não o tornaria menos bonito, nem mais bonito
a mim. Quisera eu ter cabelo louro e pele alva, andar bem vestido e ser bem
comportado como Linton e ter a sorte de possuir a riqueza que ele vai herdar.”
(BRONTË, 2010, p.74). Nelly, desse modo, arruma Heathcliff. Ela nos narra:

Quis, porém, a má sorte, que no momento em que Heathcliff, de um


lado, abria a porta que ligava a cozinha com a sala, Hindley, do outro
lado, a empurrasse. Encontraram-se ambos e o patrão irritou-se ao
ver o rapaz limpo e satisfeito; ou, solícito talvez em cumprir a
promessa feita a sra. Linton, empurrou-o bruscamente para a cozinha
e iradamente ordenou a Joseph que “mantivesse aquele sujeito fora
da sala – que o mandasse para o sótão até que acabasse o jantar”.
- Se o deixarem sozinho um minuto ele mete os dedos nas tortas e
rouba as frutas.
- Não, senhor – retruquei sem me conter –, Heathcliff não é capaz de
tocar em nada; e acho que, tanto quanto nós, tem direito ao seu
quinhão de gulodices.
- Quinhão receberá ele do meu braço se o apanho aqui embaixo
antes que anoiteça! – vociferou Hindley. – Fora, vagabundo! Então,
agora, está querendo se fazer de janota, hein? Espere até que eu
meta a mão num desses cachinhos... num instante os ponho lisos.
(BRONTË, 2010, p.75)

Depois disso, Linton, nessa mesma noite, faz um comentário zombeteiro sobre
o cabelo de Heathcliff ser crespo e diferente. A personagem não consegue tolerar a
suposta impertinência de alguém que, desde então, ele parecia odiar como a um rival.
De modo que ele apanha um recipiente com calda quente de maçã e atira no rosto e
no pescoço de Linton, iniciando uma confusão. Por isso, como punição, é espancado e
maltratado por Hindley. A partir desse incidente, Heathcliff percebe que não há
conciliação entre ele e esse mundo de Cathy. Ele jura para Nelly que irá se vingar de
Hindley, não importando quanto tempo ele terá que esperar. Heathcliff odeia Hindley,
mas, depois dessa noite de Natal, em determinado momento da narrativa, ele salva
Hareton, o filho de Hindley. Já observamos, então, como essa personagem é ambígua e
misteriosa.
Posteriormente, depois de ser humilhado muitas vezes, Heathcliff vai embora
do Morro dos Ventos Uivantes sem deixar vestígios, seu paradeiro é um mistério. Após

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três longos anos ele volta rico e encontra Cathy casada com Linton. A personagem
explica sua vingança para Cathy:

- Não vou tirar vingança de você – replicou Heathcliff com menos


veemência. – Não é esse o meu intento. O tirano tortura os escravos,
mas os escravos nunca se voltam contra ele; vão esmagar aqueles
que lhes ficam por baixo. Pode me torturar até a morte, para se
divertir; consinta, porém, ao menos, que eu também me divirta um
pouco, de maneira idêntica, e, tanto quanto lhe for possível, evite me
insultar. (BRONTË, 2010, p.143)

Pensamos que todo o romance está impregnado de um sadismo feminino por


parte de sua criadora, como falou Georges Bataille em seu ensaio A literatura e o Mal
(1989). Esse ensaio discorre sobre a relação da literatura com o mal, nele o crítico
francês explica como se dá a significação da maldade em algumas obras. Um capítulo
do ensaio é dedicado para desvelar o romance O Morro dos Ventos Uivantes e sua
autora, Emily Brontë. Bataille reflete sobre o profundo conhecimento do mal que teve
a escritora inglesa, mesmo ela tendo uma vida reclusa e perpassada pela religião de
seu pai: “Emily Brontë parece ter sofrido uma maldição privilegiada. Sua efêmera vida
foi infeliz apenas moderadamente. Mas, sua pureza moral intacta, ela teve do abismo
do Mal uma experiência profunda.” (BATAILLE, 1989, p.11). Desse modo, “Ainda que
poucos seres tenham sido mais rigorosos, mais corajosos, ela foi até o fim do
conhecimento do Mal.” (BATAILLE, 1989, p.11). Bataille postula o sadismo e a
atmosfera demoníaca que aparecem em vários momentos do romance.
Ele comunica que a chave para a compreensão da narrativa está na infância e na
vontade de Heathcliff em recuperar esse reino maravilhoso:

[...] nós devemos observar que, na narrativa, os sentimentos se fixam


na idade da infância na vida de Catherine e de Heathcliff. Mas se por
acaso as crianças têm o poder de esquecer por um momento o
mundo dos adultos, a este mundo, entretanto, elas estão submetidas.
Sobrevém a catástrofe. Heathcliff, a criança encontrada é obrigado a
fugir do reino maravilhoso das corridas com Catherine na charneca. E
apesar de sua duradoura rudeza, esta renega a selvageria de sua
infância: deixa-se atrair por uma vida cômoda, de que sofreu a
sedução na pessoa de um jovem, rico e sensível cavalheiro. A bem da
verdade, o casamento de Catherine com Edgar Linton possui um valor
ambíguo. [...] Heathcliff, que voltou rico de uma longa viagem, tem
razão, portanto, em pensar que Catherine traiu o reino
absolutamente soberano da infância, ao qual, de corpo e alma, ela
pertencia com ele. (BATAILLE, 1989, p.15-16)

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O romance como um todo, de certa forma, trata dessa busca pelo reino perdido
de Heathcliff. Ele quer reencontrar seu mundo bucólico, estando disposto a fazer
qualquer maldade para reencontrá-lo. Há uma inadequação entre Heathcliff e o mundo
“normal”, ele pertence ao mundo da sua infância e quer desesperadamente voltar para
ele. Nelly comenta que o tratamento que Hindley deu ao menino cigano “seria capaz
de transformar um santo num demônio.” (BRONTË, 2010, p.85). Assim, a ambiguidade
de Heathcliff vai sendo construída. Depois dele retornar, seduzir Isabella, fugir com ela
e casar-se, eles retornam ao Morro dos Ventos Uivantes. Hindley está afundado em
dívidas por causa de jogos, por essa razão Heathcliff compra o Morro e vai morar nele
com Isabella. Ele permite que Hindley fique na casa, pois assim será a vez dele se
vingar. Em sua fúria, o protagonista começa a maltratar e agredir Isabella. Ele nunca a
amou. O casamento foi apenas parte de seu plano para se vingar, também, de Linton.
Quando Nelly visita Heathcliff e Isabella, ele conta para Nelly o seu desejo de
contemplar a destruição de Linton, “No momento em que a proteção dela
desaparecesse, eu lhe arrancaria o coração do peito e lhe beberia o sangue [...]”
(BRONTË, 2010, p.188). Na visita, a empregada percebe como Isabella está sendo
maltratada. Nós, leitores, ficamos assustados e estarrecidos com tudo que Heathcliff
faz. Contudo, aí é que está a ambiguidade, pois nos lembramos de tudo que ele sofreu
e, embora sintamos piedade das outras personagens, notamos um pouco de sentido
em sua vingança, mesmo repudiando seus atos. Sobre O Morro dos Ventos Uivantes e
Heathcliff, Ana Maria Machado confessa:

Fiquei obcecada com os personagens – principalmente o fascinante


protagonista Heathcliff, que eu não sabia se era objeto de minha
paixão ou me apavorava, mas certamente povoava meus sonhos. [...]
a atmosfera do livro é insuperável, com seus elementos góticos e
lúgubres em meio a uma paisagem agreste e misteriosa que, para
sempre, introduziu em meu imaginário os pântanos cobertos de
neblina, as urzes na charneca (eu tive que procurar no dicionário o
que eram essas palavras, mas isso só aumentava seu encanto), os
ventos desencadeados e constantes. Tudo impregnado de memórias
terríveis, de dor profunda, da tentação de vencer o sofrimento pelo
amor. (MACHADO, 2002, p.105 e 106)

O depoimento de Machado sintetiza essa sensação arrebatadora proporcionada por


Heathcliff. Ele suscita piedade e, ao mesmo tempo, medo e desprezo.
Acima de tudo, sentimos seu sofrimento e queremos vê-lo superar o sofrimento

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através do amor. Isso ocorre no fim do romance, quando há uma espécie de redenção
da personagem. Quando Catherine está no leito de morte ela se encontra com
Heathcliff, que consegue entrar furtivamente na casa. Ele e Cathy trocam acusações,
choram e se beijam. Ele diz:

- Agora você está mostrando o quanto foi cruel, quanto foi cruel e
falsa. Por que me desprezou? Por que traiu seu coração, seu próprio
coração, Cathy? Não tenho para lhe dar uma palavra de consolo.
Merece o que está sofrendo. Matou-me com suas mãos. Pode me
beijar e chorar... pode arrancar também de mim beijos e lágrimas: o
choro e os beijos só servirão para queimá-la melhor... para condená-
la mais... Você me amava... que direito tinha de me deixar? Que
direito, responda!, lhe dava o miserável capricho que sentiu por
Linton? Porque nem a desgraça, nem a miséria, nem a morte, nem
nada – nenhuma praga mandada por Deus ou satanás nos poderia
separar – você, por sua vontade, nos separou! Não lhe despedacei o
coração; você o despedaçou sozinha! E, com o seu, esmagou também
o meu. Pior para mim, que sou o mais forte. Quero por acaso viver?
Que vida será a minha quando você... Oh, Deus do céu! Quereria
você viver com a sua alma enterrada num túmulo? (BRONTË, 2010,
p.203)

Aqui vemos a derrocada do amor de Cathy e Heathcliff. Ele não é um homem


totalmente mau, seus sentimentos são ambivalentes. Ele é um homem desesperado.
Georges Bataille diferencia o mal feito em razão de benefícios próprios do mal
realizado por puro prazer, ou seja, o sadismo:

De fato, Wuthering Heights, ainda que os amores de Catherine e


Heathcliff deixem a sensualidade em suspenso, põe acerca da paixão
a questão do Mal. Como se o Mal fosse o meio mais forte de expor a
paixão. [...] Nós não podemos considerar como expressivas do mal as
ações cujo objetivo é um beneficio, um proveito material. Este
beneficio, sem dúvida, é egoísta, mas pouco importa se esperamos
dele outra coisa que o próprio Mal, um proveito. Ao passo que, no
sadismo, trata-se de ter prazer com a destruição contemplada, a
destruição mais amarga sendo a morte do ser humano. É o sadismo
que é o Mal: se se mata por um proveito material, não é o verdadeiro
Mal, o Mal puro, já que o assassino, além do proveito obtido, tem
prazer em ter ferido. (BATAILLE, 1989, p.14)

Portanto, o mal feito em razão de ganhos materiais é diferente do sadismo. Heathcliff é


sádico, pois sente prazer em ver a destruição dos seus inimigos. É deste sadismo

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feminino que a obra está impregnada. Esse sadismo é que chocou profundamente os
leitores na época do lançamento do romance, pois o mesmo tinha sido escrito por uma
mulher.
Desse modo, podemos aproximar a atmosfera do romance e as atitudes e
ideias de Heathcliff do niilismo de Nietzsche. Heathcliff é uma personagem “imoral”,
para ele só importa a sua vingança pelo amor perdido. Fica também sugerido em
vários momentos do romance o direito do mais forte sobre o mais fraco de que fala
Nietzsche. Northrop Frye, em seu estudo Anatomia da crítica (1973), já apregoa que
no romance de Brontë “algo de niilístico e indomável provavelmente se manterá a
irromper de suas páginas” (FRYE, 1973, p.299). À vista disso, a seguinte assertiva do
filósofo alemão talvez defina toda a grandeza e a atmosfera do romance O Morro dos
Ventos Uivantes: “O que é feito por amor, ocorre sempre além do bem e do mal.”
(NIETZSCHE, 2014, p.104).
Ao mesmo tempo, no final do romance, antes de Heathcliff morrer, acontece
uma espécie de redenção da personagem. Ele dá indícios de se arrepender de tudo
que fez, ele apenas quer encontrar a sombra de Cathy em um outro mundo.
Apontamos, por fim, que Emily Brontë constrói seu romance sobre essa ambiguidade.
Para ela o contraditório é harmônico, uma obra pode ser e não ser alguma coisa,
sendo duas coisas opostas ao mesmo tempo. Pensamos, então, que Heathcliff é uma
personagem ambígua, ambivalente. Ele está entre a escuridão e a luz, desconstruindo
as tipificações.

Referências

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. J. Oliveira e A. Ambrósio de Pina. 4. ed.


Petrópolis: Vozes, 2014.
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad.
José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Trad. Suely Bastos. Porto Alegre: L&PM, 1989.
BRONTË, Emily. O Morro dos Ventos Uivantes. Clássicos Abril Coleções. Trad. Rachel de
Queiroz. São Paulo: Abril, 2010.
FORSTER, E. M. Aspectos do romance. 2. ed. Trad. Maria Helena Martins. Porto Alegre:
Globo, 1974.
FREUD, Sigmund. O mal estar na cultura. Trad. Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM,
2012.
FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo:
Cultrix, 1973.

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JEHA, Julio. Monstros como metáforas do mal. In: JEHA, Julio (Org). Monstros e
monstruosidades na literatura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos desde cedo. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2002.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Trad. Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM,
2014.
PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. 2. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1999.
PESSOA, Fernando. Poemas de Alberto Caeiro. Porto Alegre: L&PM, 2012.
RICOEUR, Paul. O Mal - Um desafio à filosofia e à teologia. Trad. Maria da Piedade Eça
de Almeida. Campinas: Papirus, 1988.
TWISS, Miranda. Os mais perversos da história. Trad. de Dinah de Abreu Azevedo. São
Paulo: Planeta do Brasil, 2004.

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A METAPRAGMÁTICA EM FOCO: UMA PROPOSTA DE ESTRUTURAÇÃO DE PROTOCOLO PARA O


ESTUDO DA CONSCIÊNCIA PRAGMÁTICA

Jonas Rodrigues Saraiva1


Patrícia Martins Valente2

Considerações iniciais

A consciência, uma das faculdades humanas mais estudadas por áreas


vinculadas à saúde, também importa aos estudos da linguística por meio do escopo da
Psicolinguística (PL). Dos dois “braços” teóricos principais que, interdisciplinarmente,
formam a Psicolinguística (Psicologia + Linguística), o linguístico toma do psicológico
esse conceito (consciência humana) para o vincular aos níveis da língua, de onde
advêm os conceitos de consciência fonológica, consciência morfológica, consciência
sintática, consciência semântica, consciência lexical e consciência pragmática. Esta
última, em especial, interessa-nos, no presente texto, pelo intuito de promover
interface: Psicolinguística e Pragmática.
Especificando o ponto a ser abordado, propomos, com base em teorias
pragmáticas e em estudos sobre consciência linguística, uma possibilidade de estrutura
para um instrumento de avaliação da consciência pragmática em forma de protocolo
verbal. A partir de tal objetivo, não pretendemos – ainda – apresentar dados empíricos
sobre essa estrutura. Trata-se de um trabalho de transposição teórica para uma
iniciativa de pesquisa aplicada e, quiçá, por derivação, para iniciativas práticas,
pedagógicas. O aporte teórico será construído, como já mencionado, sob uma
perspectiva de interface: dos estudos psicolinguísticos, adotaremos a noção de
consciência linguística, primeiro tópico a ser desenvolvido, e, dos estudos pragmáticos,
tomaremos, arbitrariamente, duas das teorias mais conhecidas da área, a Teoria dos
Atos de Fala (TAF) e a Teoria das Implicaturas (TI).
Com base nesses objetivos e nesse referencial, apresentam-se, para nortear a
produção do texto, as seguintes questões de pesquisa: 1) Como se pode usar a noção
de consciência como ponto de contato com estudos da ótica da pragmática? 2) Quais

1
Doutorando em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS. Bolsista CNPq.
E-mail: jonasrsaraiva@hotmail.com
2
Doutoranda em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS. Bolsista CAPES.
E-mail: paty_valente13@hotmail.com

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as características de um instrumento de aferição da consciência pragmática de


crianças? 3) Que contribuições teóricas e práticas pode aportar uma interface
linguística dessa natureza, tendo em vista os estudos já desenvolvidos sobre o
assunto?
A metodologia utilizada no trabalho será a de revisão bibliográfica, criação e
análise de corpus, sendo esse corpus a transposição de conhecimentos depreendidos
das teorias pragmáticas, e a proposta de uma estrutura para instrumento de pesquisa.
Para tanto, no tópico seguinte, é apresentada uma revisão do conceito de
consciência, tendo em vista ser um conceito-chave para o presente trabalho e para o
que nele se quer propor. Em seguida, são visitadas brevemente as teorias de cunho
pragmático citadas, consideradas ainda atuais nos estudos linguísticos, para o auxílio
na produção do conteúdo do instrumento. O item subsequente apresenta reflexões
sobre os arrazoados teóricos anteriores e busca unir os conhecimentos das duas áreas
para a construção da interface e a produção da proposta de estrutura para o
instrumento. Por fim, as conclusões do texto refletem os aspectos teórico-práticos
abordados e encaminham para reflexões finais, sendo seguida pelo tópico de
referências.

1 Aporte psicolinguístico: consciência

Antes de iniciar efetivamente a abordagem de consciência, parece-nos cabível


explicitar o intuito teórico do que aqui propomos.
Autores, como Raymundo (2009) e Tomitch (2007), têm se dedicado ao
estudo da utilização de instrumentos em Psicolinguística, pois, diferentemente da
Psicologia, a PL não possui um corpo de instrumentos oficiais para a avaliação dos
diferentes tipos de processos linguísticos. Portanto, a elaboração de instrumentos é
sempre um desafio ao pesquisador da área. Dado esse fato, pretendemos sugerir um
caminho para a produção de um Protocolo Pragmático com uma estrutura que permita
a análise da consciência nesse nível linguístico. Assim, teremos como referencial
principal o trabalho de Tomitch (2007).
Retomamos o tópico sobre consciência a seguir.
A consciência é uma qualidade momentânea que caracteriza as percepções
internas e externas dentro dos conjuntos dos fenômenos psíquicos, segundo a
Psicologia Geral. Para a Psicologia Cognitiva, a consciência é o conhecimento que o
indivíduo tem de seus objetos mentais (percepções, imagens ou sentimentos). A
Psicolinguística utiliza este último conceito, buscando explicar os processos
conscientes dos indivíduos quando estão envolvidos no desempenho de atividades.

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Segundo Eysenck e Keane (1994), a Psicologia Cognitiva preocupa-se em


explicar os processos mentais, tanto cognitivos como metacognitivos. Entretanto,
apreender, processar e recuperar a informação, o conhecimento, só é possível através
do processo mental denominado cognição.
Uma das discussões mais comuns entre os estudiosos da consciência é o
aspecto empírico dos estudos do tópico. Metodologicamente, são questionados
principalmente os problemas de abordagem e de avaliação experimental da
consciência, tendo em vista serem, ainda, os protocolos verbais, o principal meio de
pesquisa da área, apesar da incerteza dos resultados que permitem. Sobre isso,
Gombert (1992) propõe uma distinção para a análise da consciência em dois níveis: o
teórico, em que se pressupõe a existência de algum nível de consciência se a tarefa é,
pelo menos, realizada com sucesso pelo participante; e experimental, em que é
possível ao participante descrever o processo de realização. Segundo Flôres (1994),
dado esse impasse, o melhor é assumir a posição da existência de graus de
consciência, o que também é nosso ponto de vista. Dessa forma, parece-nos
totalmente cabível o prosseguimento dos estudos com base em protocolos verbais,
pois (também nos parece) ainda está distante a possibilidade de instrumentos
plenamente confiáveis de leitura da mente.
Nessa discussão, são importantes os conceitos de cognição e metacognição,
que, para nós, são adotados sob a definição de Flavell (1981): metacognição é a
“cognição sobre a cognição”. Por decorrência, dado o sentido do prefixo “meta-”,
metalinguagem é uma abordagem linguística da própria linguagem. Esse último ponto
não se afasta do anterior, a consciência em si, tendo em vista ser uma explicação de
conceitos que estão interligados com a consciência, pois será aportado a seguir o
conceito de consciência metalinguística propriamente dito.
Estamos afinados com Cazden (1976), que define consciência metalinguística
como “a capacidade de tornar as formas linguísticas opacas e prestar atenção a elas
em si e por si”. Falar em consciência linguística é falar na habilidade do indivíduo de
descrever e de agir sobre os próprios conhecimentos linguísticos. Essa consciência
propicia o uso da linguagem para descrever a si própria e permite a metacognição e,
por extensão, a metalinguagem.
A consciência linguística possui as seguintes propriedades, conforme Pereira
(2010): “ativa em sincronia diversas áreas do cérebro; tem um foco linguístico
específico; utiliza informações periféricas a esse foco (o contexto); é intencional na
busca da análise de algum ponto específico”. Sob essa perspectiva, pode focar os
segmentos fônico, mórfico, sintático, semântico, pragmático e textual (GOMBERT,

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1992), sempre avaliando o contexto dos demais segmentos. A consciência fonológica


focaliza os fonemas e as sílabas que constituem a estrutura linguística e as
propriedades entoacionais e rítmicas da língua em uso. A consciência morfológica
analisa o vocábulo em si. A sintática olha para a frase internamente. A semântica, para
a significação vocabular e estrutural da língua e os elementos coesivos lexicais. A
consciência pragmática está voltada para a situação de uso da língua. E a textual, para
as relações dos elementos linguísticos textuais entre si e deles com o contexto.
De acordo com Poersch (1998), o processo da conscientização constitui um
continuum, que parte do totalmente inconsciente, automático, passando por níveis
que denotam pré-consciência, um simples dar-se conta (conhecimento tácito) e chega
ao nível da consciência plena (conhecimento explícito). A memória declarativa –
quando o sujeito é capaz de verbalizar os procedimentos – é denominada de
consciente, explícita, controlável ou ainda serial, enquanto a procedimental, a não
declarativa – quando o indivíduo não consegue explicar os procedimentos – é
inconsciente, implícita, automática ou ainda paralela.
Chegar ao nível de consciência plena é ter a possibilidade de explicitar e de
monitorar determinada atividade, pois o objeto em foco será alvo de reflexão, tendo o
sujeito consciência do que é percebido e aprendido. A verbalização é o meio através
do qual o sujeito comunica o conhecimento explícito alcançado. Daí a importância de
instrumentos tais como o protocolo verbal.
Nesse ponto, muitas questões são evocadas, considerando-se o aporte teórico
até aqui produzido: Como se podem definir os níveis de consciência em crianças?
Como se pode avaliá-la com esse público? Qual o papel de cada nível linguístico de
consciência? Qual o papel do nível pragmático?
Talvez não haja, aqui, espaço para todas essas perguntas. Por ora, é nossa
intenção abordar de maneira mais detalhada a última delas, o que fazemos a partir do
próximo tópico.

2 Aporte pragmático: atos de fala e implicaturas

A Pragmática é reconhecida como a área por excelência do estudo do contexto


e do uso, ou seja, da relação entre falante e língua (MORRIS, 1938). Embora as
definições iniciais da área não abarquem aspectos cognitivos da linguagem, percebe-se
que, atualmente, as teorias têm se voltado para eles. Por exemplo, a Teoria da
Relevância (TR) – uma das mais recentes nos estudos pragmáticos – declara-se
claramente cognitivista. Porém, nem sempre houve essa preocupação. No presente
trabalho, não utilizaremos a TR, mas teorias anteriores, de um período teórico em que

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a mente era ainda um conceito vago. A teoria dos atos de fala e a teoria das
implicaturas são dois aportes teóricos que podem auxiliar na produção de um
protocolo pragmático, embora não se relacionem diretamente, de maneira teórica,
com a cognição. Em outras palavras, pretendemos utilizar tais teorias, escolhidas,
como dito, arbitrariamente, como um caminho para chegar a uma análise cognitiva, a
consciência, que está vinculada à metacognição, embora não sejam elas teorias
propriamente cognitivas.
Antes de adentrar a cada uma delas especificamente, é importante abordar a
consciência metapragmática como um todo, para melhor compreender o campo que
estamos adentrando. Flôres (1994) apresenta uma definição importante: é a de que as
“habilidades pragmáticas permitem o uso efetivo da linguagem no seu contexto, e as
metapragmáticas possibilitam a compreensão e controle desse uso” (p.184).
Para Gombert (1992), o nível metapragmático daria conta somente do
sistema linguístico e seu contexto de uso, sendo reservados os aspectos
intralinguísticos para o nível metatextual, embora ele assuma a existência de um
campo semântico-pragmático que abarcaria o que não é estrutural na linguagem, pois,
para ele, seria difícil separar os dois campos. Essa visão certamente influenciou a
criação do Protocolo Pragmático de Flôres (1994). No caso do presente trabalho,
propomos considerar ao máximo a noção de uso e contexto como conceitos-chave
para o entendimento da pragmática, embora não neguemos suas relações inerentes
com a semântica. Essa visão está bastante presente nas teorias pragmáticas que serão
abordadas. Vamos, de maneira sintética, estudá-las.
A Teoria dos Atos de Fala, proposta por Austin, foi uma das primeiras
iniciativas de vinculação da língua, abstrata, com sua possibilidade de concretização,
propondo uma visão diferente da que, na época, pregava a linguagem somente como
descrição do mundo. Dessa forma, Austin (1962) propõe que os enunciados de
natureza apenas descritiva sejam denominados constatativos. Um exemplo de
enunciado constatativo é “Essa casa é grande”. Nesse enunciado, só se pode verificar a
relação da língua com o mundo e o valor de verdade existente nessa relação. Porém,
Austin propõe que não existem somente enunciados de natureza descritiva.
Apresenta, então, o conceito de enunciados performativos (performative utterance).
Um exemplo de enunciado performativo é “Feche a janela, por favor”. Esse enunciado,
como se pode verificar, não é passível de verificação de valor de verdade. Não apenas.
Verifica-se uma intencionalidade de agir (to perform) sobre o mundo físico por parte
do locutor. Para ser performativo, o enunciado precisa gerar, ou não, ações no mundo.
Quando de um enunciado resulta uma ação no mundo, diz-se que ele é um enunciado

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bem-sucedido. Quando um enunciado cumpre algumas condições, ele se torna bem-


sucedido. Vejamos a seguir.
Duas condições importantes para um enunciado bem-sucedido são a
autoridade e o contexto. Pense-se, por exemplo, em um padre que enuncia: “Eu vos
declaro marido e mulher”. Ele é revestido socialmente de autoridade para fazer desse
enunciado bem-sucedido. Porém, precisa estar contextualmente recoberto dessa
autoridade. Se estiver em uma situação fora de uma solenidade religiosa de
casamento, o enunciado será malsucedido.
A partir dessa visão, Austin divide os atos enunciados performativos em
locucionários (ato de enunciar), ilocucionários (ato realizado no mundo ao enunciar) e
perlocucionários (atos resultantes da ação do enunciado). Cremos que o ato
locucionário não apresenta necessidades de explicitação conceitual e que o ato
perlocucionário não apresenta direta relação com o que propomos, ao que nos
deteremos, sobretudo, nos atos ilocucionários.
Veja-se, por exemplo, o diálogo contextualizado a seguir:

TEXTO 1:
Carlinhos se justifica com a mãe por tê-la desobedecido e ido a uma festa dos colegas da turma
no dia em que ela tinha lhe dado um castigo:
- Mas mãe, você não fez nada, só disse que eu estava de castigo! E nem falou quando
começava.
A mãe, aos berros, responde:
- E desde quando precisa marcar hora ou fazer alguma coisa pra botar alguém de castigo?! Eu
falei: “tá de castigo”. É o bastante! E o senhor pode se considerar com o castigo dobrado,
mocinho!

Socialmente, a mãe está revestida de autoridade suficiente para infligir um


castigo ao filho, bem como não precisa “fazer” mais nada além de declarar que ele
assim ficará. Ou seja, o aspecto ilocucionário do ato de fala é justamente a efetivação,
no mundo, do castigo imposto a partir do momento em que essa imposição foi
enunciada.
Contemporâneo ao de Austin, o trabalho de Grice (1975) pode ser
considerado uma obra-chave na estrutura teórica constitutiva da Pragmática. A Teoria
das Implicaturas (TI) abriu caminho para os chamados pós-griceanos, que até hoje
“carregam” teoricamente os conceitos da TI através do campo de atuação da
pragmática, seja para assumi-los, para desenvolvê-los ou para negá-los (A TR, citada
anteriormente, é um exemplo do último caso).

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Grice propôs a TI como forma de abordagem para a até então inexplorada


diferença entre “dizer” e “querer dizer”, ou, de forma mais técnica, entre dito e
implicado.
O autor abordou principalmente o que chamou de implicaturas
conversacionais particularizadas (IPP). Diz-se “principalmente”, pois seu trabalho
abarca implicaturas convencionais e implicaturas conversacionais generalizadas, as
quais não poderemos abordar aqui.
No que tange às IPP, Grice definiu máximas com base no Princípio de
Cooperação (PC). O PC diz respeito ao fato de que, em uma conversação, os
participantes têm clara a noção de que todos participam ativa ou passivamente da
mesma situação de uso e partilham do mesmo contexto, não sendo aceitas
interferências de outros contextos e situações discursivas sem o conhecimento de
todos os participantes. Esse princípio garante que, caso haja alterações estranhas ao
discurso, elas sejam tratadas como implicaturas. Digamos, se um locutor responde a
seu interlocutor com uma resposta que tangencia a pergunta feita, por exemplo,
considera-se que, intencionalmente, seu enunciado gera uma implicatura. Esse caso se
encontra no escopo da categoria de modo, de Grice.
As categorias e máximas garantem a manutenção do PC. Ao serem
(aparentemente) quebradas, definem o tipo de implicatura gerada. Diz-se
“aparentemente”, pois, se o PC for quebrado, a conversação é anulada. Assim, a
implicatura gerada é o que permite aos interlocutores perceberem que o PC, na
verdade, não é quebrado e que as intenções dos participantes são de continuar na
mesma situação discursiva, embora um deles tenha, aparentemente, mudado de
assunto (categoria de relação), tenha falado a menos ou a mais do que o necessário
(categoria de quantidade), tenha sido obscuro em sua colocação (categoria de modo),
ou tenha faltado com a noção de verdade (categoria de qualidade).
De forma mais específica, as categorias estão baseadas em
princípios/máximas. Para a de qualidade, o princípio é: faça sua contribuição o mais
verdadeira possível. Veja-se, por exemplo, o diálogo contextualizado a seguir:

TEXTO 2:
Após presenciar uma discussão da mãe com uma vizinha, a menina comenta:
- Muito simpática a nossa vizinha, né, mãe?!
- Sim, filhinha muuuuito simpática!

No caso da fala da mãe, está posto que ela não acredita no que está dizendo e
produz um efeito de ironia ao responder à filha. Essa ironia é o resultado da

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implicatura gerada, quando a mãe, aparentemente, faltou com a verdade no


enunciado.
Para a categoria de quantidade, o principal princípio é: faça sua contribuição
tão informativa quanto necessário. Veja-se, por exemplo, o diálogo contextualizado a
seguir:

TEXTO 3:
O garoto retorna das férias na casa dos avós e a mãe quer saber notícias:
- E aí, filho, me conta o que você fez, você brincou, jogou bola, conversou com a vovó e...
- … aham.
- E gostou de ir lá? Quando eu era pequena eu adorava passear no bairro e conhecer as amigas
da vovó e...
- … legal.
- O ano que vem, você pode convidar aquele seu amiguinho pra ir junto e...
- … é.

No caso da fala do garoto, as respostas são fugidias e parecem implicar que


não quer falar com a mãe sobre o assunto. Há uma aparente quebra da necessidade de
ser informativo, o que gera a implicatura. A fala da mãe também pode ser exemplo de
“quebra” dessa máxima, por ter um excesso de informatividade, ou seja, implica, por
exemplo, que ela tem elevado interesse em que o filho goste da casa dos avós.
Para a categoria de relação, o principal princípio é: faça sua contribuição
relevante para o tópico geral. Veja-se, por exemplo, o diálogo contextualizado a seguir:

TEXTO 4:
Dois meninos conversam quase ao final de uma tarde juntos brincando:
- Eu gostei muito desse binquedo!
- Minha mãe não dexa eu empestá meus binquedos!

Na fala do segundo garoto (2), vê-se uma “quebra” da máxima de relação por
conta da aparente mudança de assunto. Entretanto, é possível ver que (2) entendeu
que a intenção do primeiro garoto (1), com sua fala, era a de expressar desejo pelo
carrinho, ao que (2) respondeu implicando não querer ou não poder emprestá-lo.
Por último, para a categoria de modo, o principal princípio é: seja claro. Veja-
se, por exemplo, o diálogo contextualizado a seguir:

TEXTO 5:
A professora pergunta para a turma sobre o trabalho para a feira de ciências e aponta para
Fernando:
- Fê, você trouxe o trabalho de ciências?

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- Olha, professora, a senhora sabe como é, lá em casa a gente está se mudando agora, porque
a gente sempre se muda quase todo o ano, porque meu pai é militar e daí eu fiz, e ficou muito
legal, mas, quando saímos, eu pensei que minha mãe tinha dito pro meu pai pegar e ele disse
que não tinha visto, daí eu resolvi procurar e agora vai começar uma reforma na casa e eu
poderia...
- Já entendi tudo, Fê, não precisa falar mais nada. Paty, você trouxe...

A fala da professora, ao final, demonstra que ela compreendeu o que o garoto


queria dizer mesmo sem que ele tenha dito claramente. Veja-se a total falta de
organização do pensamento, na resposta do garoto, o que leva à implicatura de uma
resposta negativa para a pergunta da professora.
A partir de tais explicitações, cabe ressaltar dois aspectos: primeiro, nossa
intenção não foi, e não poderia ser, em um trabalho dessa natureza e dessa extensão,
esgotar os conceitos das teorias; apenas as introduzimos para que o leitor esteja ciente
de que questões da linguagem são abordadas pelo escopo de cada uma; segundo, o
que proporemos é um modelo típico de protocolo de avaliação da consciência
pragmática, acompanhado de orientações gerais para a possibilidade de sua produção.
É uma tarefa quase impossível, em nossa visão, propor um estudo pragmático que dê
conta de todos os casos em que um instrumento possa ser aplicado. Portanto, o
cabível é uma proposta da estrutura básica, geral, típica de instrumento dessa
natureza. Essa estrutura é apresentada no tópico seguinte.

3 Protocolo de avaliação da consciência pragmática: uma estrutura possível

Com base em Tomich (2007), apesar das críticas aos estudos que utilizam
protocolos, conclui-se que ainda são a melhor saída para a pesquisa em PL. Neste caso,
como se trata de uma interface dessa área com a Pragmática, uma estrutura possível
de instrumento de avaliação da consciência desse nível da linguagem é proposta a
seguir, tendo como referências os trabalhos de Pereira (2013, 2010) e de Flôres (1994).

3.1 Corpus

Sugere-se que cada questão do instrumento contenha um texto que o


aproxime do mundo da criança, de forma que ela se reconheça na situação
apresentada. No caso deste trabalho, optou-se pela criação dos textos para que o
conteúdo (pragmático) estivesse mais ostensivamente “visível” no protocolo.
Sobre essa elaboração, sugerimos alguns princípios importantes:

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1º princípio - transposição teórica: o texto precisa expressar claramente um ponto de


uma teoria pragmática. Essa, talvez, seja a parte mais difícil da elaboração da questão. É
preciso “enxergar” a teoria no uso, na prática e no contexto da criança. Os TEXTOS utilizados
no referencial teórico da Pragmática, citados anteriormente, foram construídos para o
instrumento. Optamos por utilizá-los também no referencial para demonstrar em que medida
expunham o ponto teórico escolhido. Abordemos o penúltimo TEXTO (4) para explicitá-lo:
selecionamos, do que imaginamos poder ilustrar a vivência de uma criança, um trecho de um
possível diálogo. O diálogo demonstra a faixa etária das crianças envolvidas por meio da
transcrição fiel de sua fala. Após um detido estudo da máxima de Grice, ilustrada no TEXTO 4,
foi possível imaginar uma situação em que ela fosse usada como base de uma conversa de
duas crianças. Isso exigiu reflexão teórica a ponto de localizar, no mundo, uma possibilidade de
inserção de uma implicatura, o que, antes, exigiu profunda análise da conceituação e de
exemplos dessa implicatura.
2º princípio - contextualização: o texto precisa expressar um contexto próximo da
criança. No caso do exemplo mencionado, há uma linha anterior que demonstra o que se
passa com os dois personagens, que também são apresentados nessa linha. Essa é uma opção
de como se pode introduzir uma ideia de contexto, sem ser muito extensa. Em casos de
contexto não explícito, há que ver se ficam claros, principalmente, a relação com o mundo
infantil, os envolvidos na situação, os motivos da enunciação, etc. Esse é um aspecto de suma
importância, tendo em vista a relação entre a pragmática e o contexto de uso da linguagem.
3º princípio - ludicidade: é importante que o texto seja apresentado de maneira
atrativa para um público de crianças pequenas, o que visa manter sua atenção durante a etapa
de aplicação do instrumento. Pensando assim, pode-se sugerir a utilização de elementos de
mídia em cada questão: vídeos e ou imagens e ou áudios. No caso do exemplo citado, pode-se
utilizar uma imagem que expresse a situação. Pode-se, inclusive, utilizar balões de fala que
identifiquem os personagens.

Sobre os princípios citados, cabe ressaltar que são, em certa medida, bastante
gerais para práticas científico-pedagógicas que envolvem crianças. Ou seja, não dizem
respeito exatamente e especificamente a um instrumento de avaliação da consciência
pragmática. Porém, são importantes para preparar o participante e delimitar o
conteúdo e a abrangência do teste. São, portanto, passos precedentes à verificação da
consciência em si, que virá a seguir por meio de questões (orais) que constituem a
“essência” do protocolo verbal.

3.2 Análise linguística e consciência

Como forma de propiciar uma reflexão sobre o corpus, propõe-se formular


perguntas que explicitem as informações e os conhecimentos expostos no texto e a
capacidade de reflexão das crianças sobre eles. Como fazem parte de uma questão do
instrumento, vamos denominá-las subquestões. Propomos uma divisão das
subquestões de acordo com três critérios – elas não precisam ser usadas na ordem em

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que estão dispostas nos critérios, pois essa ordem apenas as caracteriza de acordo
com nossa visão:

1º Critério – Questões de contexto (Qctxt): são importantes para que a criança não tenha,
como empecilho, alguma dificuldade de compreensão da situação, tendo em vista que o foco
do instrumento é a consciência. A Pragmática está presente nessas questões por ser, como já
mencionado, uma área vinculada diretamente ao contexto que envolve a linguagem.
2º critério – Questões de conteúdo (Qctd): são importantes, após as de contexto, para
que a criança identifique, ainda que não explicitamente, o ponto central do conteúdo
abordado. Por conta da clareza nesse critério é que optamos pela elaboração ad hoc dos textos
utilizados.
3º critério – Questões de consciência (Qcons): são importantes para avaliar o processo
focalizado durante todo o texto. Podem ser dispostas mais ao final do conjunto de questões,
após as reflexões sobre o contexto e o conteúdo, tendo em vista que dependem de tais
raciocínios de maneira antecedente para expressarem a presença de consciência (ou não) do
caminho cognitivo percorrido, até então, pela criança por meio das subquestões.

Assim, seguindo a ordem de disposição dos exemplos no texto (no decorrer


do item 2), as perguntas que seguem são sugestões que propiciam aferir a
compreensão do contexto e do conteúdo e a presença de consciência, por parte das
crianças, em cada situação:

Sobre o TEXTO 1: a) O que a mãe de Carlinhos fez com ele no dia da festa da turma?
(Qctxt); b) Como ela fez isso? (Qctxt / Qctd / Qcons); c) O que ela disse exatamente para o
menino nesse dia? (Qctxt); d) A mãe e Carlinhos estão conversando antes ou depois da festa?
(Qctxt); e) A mãe fez algo com Carlinhos ou só falou com ele? (Qctxt / Qctd / Qcons); f) O que
vai acontecer com Carlinhos segundo a mãe? (Qctxt); g) Como ela fez isso? (Qctxt / Qctd); h)
Você acha que só ao falar a mãe já estava colocando Carlinhos de castigo? (Qctd); i) Por que
você acha isso? (Qctd / Qcons); j) Você sabia que às vezes não precisamos agir, precisamos
apenas falar e já estaremos agindo? (Qcons); k) Vamos conversar sobre isso? Você pode dar
mais exemplos? (Qcons).
Sobre o TEXTO 2: a) A menina viu a mãe conversando com a vizinha? (Qctxt); b) Você
acha que a mãe da menina e a vizinha estavam brigando? (Qctxt); c) Você acha que a vizinha
pode ter sido simpática? (Qctxt / Qctd); d) Quando a mãe entrou, você acha que a menina
falou o que pensava sobre a vizinha? (Qctd); e) E a mãe da menina, falou o que pensava sobre
a vizinha? (Qctd); f) Por que você acha que a menina e a mãe falaram uma coisa boa em vez de
uma coisa ruim sobre a vizinha? (Qctd); g) O que você acha que a mãe e a menina queriam
dizer sobre a vizinha? (Qcons); h) Você percebeu que elas disseram uma coisa querendo dizer
outra coisa sobre a vizinha? (Qctd); i) Por que elas fizeram isso? (Qcons); j) Você acha que isso
pode acontecer em outras situações? (Qcons).
Sobre o TEXTO 3: a) A mãe e o menino estão conversando quando? (Qctxt); b) O que
a mãe quer saber do menino? (Qctxt); c) Como o menino está respondendo? (Qctxt); d) Você
acha que o menino está respondendo ao que a mãe está perguntando? (Qctd); e) E você acha
que a mãe está entendendo o que o menino quer dizer? (Qctd); f) Você acha que o menino

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gostou do passeio na casa dos avós? (Qctd / Qcons); g) O menino disse o que queria dizer para
a mãe dele ou ficou escondendo o que queria dizer? (Qctd / Qcons); h) Por quê? (Qcons); i)
Como ele poderia ter respondido? (Qcons); j) Você percebeu que, mesmo respondendo, assim,
rápido, foi possível entender o que ele queria dizer? (Qcons).
Sobre o TEXTO 4: a) O que os dois meninos estavam fazendo? (Qctxt); b) Por quanto
tempo? (Qctxt); c) O que o primeiro menino pediu ao outro? (Qctxt); d) Como foi que ele pediu
isso? (Qctxt / Qctd); e) O menino vai conseguir o que queria com o brinquedo? (Qctxt); f) Você
acha que o primeiro menino estava mesmo pedindo isso, ou foi o outro menino que
entendeu? (Qctd / Qcons); g) Como você sabe isso? (Qctd / Qcons); h) O que você entendeu da
história? (Qcons); i) A mãe do menino estava junto no lugar? (Qctxt / Qcons); j) Por que o
segundo menino falou da mãe dele? (Qcons); k) O segundo menino disse “não” ao primeiro?
(Qcons); l) Como você entendeu o que ele quis dizer? (Qctd / Qcons).
Sobre o TEXTO 5: a) Quem são os personagens da história? (Qctxt); b) O que eles
estão fazendo? (Qctxt); c) Onde você acha que eles estão? (Qctxt); d) O que vai acontecer na
escola? (Qctxt); e) O Fernando respondeu ao que a professora perguntou? (Qctd); f) Como ele
respondeu? (Qctd); g) Você entendeu a resposta do Fernando? (Qcons); h) O que ele quis
dizer? (Qcons); i) A professora entendeu a resposta? (Qcons); j) O que a professora entendeu?
(Qcons); k) Por que ele respondeu assim? (Qctd / Qcons).

Considerações finais

Para os estudos psicolinguísticos, é de grande importância o desenvolvimento


de instrumentos de pesquisa adequados às necessidades da metodologia, ao público
participante e ao referencial teórico. Nos estudos sobre consciência linguística, esse
desafio é bastante árduo por conta da necessidade de entendimento do
funcionamento dos processos mentais e da reflexão do próprio indivíduo sobre esses
processos.
Nesse sentido, o presente trabalho buscou propor uma estrutura de
instrumento de pesquisa, baseado em trabalhos já existentes sobre o assunto, voltado
para o nível pragmático da língua. Dessa forma, o intento precisou selecionar teorias
dessa área dos estudos linguísticos. As teorias selecionadas foram a Teoria dos Atos de
Fala e a Teoria das Implicaturas. Essas teorias serviram apenas a título de
demonstração de como poderia ser a estrutura do instrumento. A abordagem teórica
da proposta pode ser qualquer outra que se deseje.
Para tanto, elaboraram-se princípios para a estrutura geral e critérios para as
subquestões de cada questão do instrumento. Nesse ponto, o trabalho correspondeu
às expectativas expressas nas questões de pesquisa, sobretudo com relação à segunda.
Assim, as características de um instrumento de aferição da consciência pragmática
podem ser, segundo sugerimos, três principais: apresentar uma transposição teórica
clara, estar adequado ao contexto linguístico e sociopedagógico da criança, apresentar

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de forma lúdica o corpus textual de cada questão e apresentar subquestões que levem
em conta a compreensão da situação/contexto do texto, o conteúdo (pragmático) e o
conceito de consciência.
Esse último ponto ajuda a responder à primeira questão de pesquisa. Assim,
por meio de questões que levem a criança a refletir sobre o fato e o contexto
apresentados na questão, no nível concreto e no nível linguístico, sugerimos uma
maneira para o uso da noção de consciência como ponto de contato com os estudos
pragmáticos.
Sobre as subquestões propostas para o instrumento, cabem algumas
observações. A sua construção e organização é, talvez, o ponto de maior complexidade
na elaboração do instrumento, tendo em vista ser bastante difícil demonstrar na
estrutura da questão somente um ponto dos muitos aspectos envolvidos. Ou seja, é
difícil fazer com que cada questão aborde objetivamente um aspecto apenas do
instrumento. Por isso, optamos por dispô-las sem divisão e sugerindo um foco ao lado
de cada uma (Qctxt ou Qctd ou Qcons), embora, em alguns casos, tenha sido
impossível delimitar apenas um. Consideramos, entretanto, que essa caraterística do
protocolo não o prejudica. Pelo contrário, por ser uma caraterística inerente à
linguagem a interação das partes que a formam, dá ao instrumento “veracidade” no
quesito abordagem do uso da língua.
Por fim, com base nos estudos já desenvolvidos sobre o assunto, parece-nos
importante apontar contribuições teórico-práticas advindas da interface proposta,
como forma de responder à terceira questão de pesquisa. Para a Psicolinguística, a
orientação referente à produção de instrumentos sempre é relevante tendo em vista
ser uma área de predominância de iniciativas empíricas. Nesse caso, a própria
estrutura proposta para o instrumento constitui-se como contribuição prática para a
PL. Para a Pragmática, como área predominantemente teórica e de origem filosófica, a
possibilidade de transposição prática é uma contribuição importante.
Teoricamente, a intersecção dos conceitos das duas áreas, PL e Pragmática,
aporta contribuições para ambas: para a primeira, no que se refere às possibilidades
de estudo dos processos com base em uso e contexto; para a segunda, no que se
refere às possibilidades de estudo processual (consciência) do âmbito prático da língua
(uso e contexto).
Nesse sentido, cabe ressaltar que, na interface proposta, a PL esteve presente
no conceito e na verificação da consciência, e a Pragmática, por sua vez, esteve
presente em dois aspectos: na observância de uma necessidade continuada de
contextualização do instrumento (sendo esse um aspecto de cunho metodológico), e

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no foco (de conteúdo) linguístico do instrumento (sendo esse um aspecto vinculado à


natureza do objeto de estudo). Assim, a criação das questões do instrumento
evidencia a interface na medida em que expressa a busca pela construção de um
raciocínio de uso linguístico contextualizado e da verificação da consciência desse uso
por parte do usuário infante.
Cabe ainda ressaltar que o trabalho, de forma alguma, esgota as
possibilidades de abordagem dos aspectos abordados. Apenas manifesta uma pequena
contribuição no que tange aos estudos empíricos e teóricos das áreas envolvidas.
Mesmo nessa pequena contribuição, ainda deixa elementos a serem completados
pelos pesquisadores que dele se utilizarem como base para alguma iniciativa de
pesquisa. Dessa forma, são necessários ainda muitos ajustes e adequações para que,
futuramente, quiçá, possa tornar-se um instrumento validado, de maior extensão e de
maior abrangência de público. Esse é nosso desejo.

Referências

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CAZDEN, C. B. How knowledge about language helps the classroom teacher - or does it:
a personal account. The Urban Review, v. 9, p. 74-90, 1976.
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VALORAÇÃO DO TRABALHO DOMÉSTICO NÃO-REMUNERADO:


DIÁLOGOS FILOSÓFICOS ENTRE HANNAH ARENDT E YVES SCHWARTZ

Joseane Laurentino de Brito Lira1

Introdução

O trabalho doméstico não remunerado é um serviço culturalmente realizado


pela mulher para sua própria família e é visto pela sociedade como uma situação
comum, corriqueira, uma vez que não tem remuneração porque é feito pela mulher
que serve ao seu marido e filhos. Nessa perspectiva, indivíduos que se dedicam
apenas ao trabalho de reprodução social são considerados inativos perante as
estatísticas oficiais brasileiras e o trabalho que realizam é invisível e desvalorizado pelo
próprio Estado. As raízes dessas questões estão relacionadas a questões históricas e
econômicas, uma vez que o discurso econômico ignorou a duplicidade sexual da
espécie e suas implicações na produção, na distribuição e no bem-estar da família, até
que essa temática começou a ser discutida em meados do século XX. A tradição da
economia, numa perspectiva neoclássica, cuja abordagem assumiu-se como ciência
positiva e cuja ética era neutra, resultou num modelo de família no qual o homem
opera como ganha-pão e a mulher assegura o trabalho doméstico e as esferas de
reprodução.
Diante da consideração de que o trabalho doméstico não remunerado é
considerado um trabalho não valorado, fomos buscar a historicidade da dimensão
desse trabalho fazendo um percurso pelo pensamento filosófico grego até a
modernidade – trazido pela cientista política Arendt e tentamos dialogar com o
discurso filosófico de Yves Schwartz, o qual trata a questão do trabalho, não de uma
perspectiva filosófica marxista, feito em troca de um valor mercantil, mas aquele que
está relacionado “ao uso e à usura de nossas faculdades industriosas”(SCHWARTZ,
2011, p.34).

1
Doutoranda em Linguística no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE. Pesquisadora
do grupo de pesquisa Linguagem, Sociedade, Trabalho e Saúde.
E-mail: josilaurec@gmail.com

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O nosso objetivo aqui é discutir quais são as questões históricas e sociais que
levam a sociedade a não valorar o trabalho doméstico como qualquer outro trabalho
produtivo na escala econômica.
Para analisar melhor essa questão, trouxemos o pensamento de Hannah
Arendt, uma cientista política germânica de origem judia nascida em Linden, Hanôver,
Alemanha, consagrada como um dos grandes nomes do pensamento político
contemporâneo por seus estudos sobre os regimes totalitários e sua visão crítica da
questão judaica. No seu livro A condição humana, a autora diz que a condição humana
está relacionada às formas de vida que o homem impõe a si mesmo para a sua
sobrevivência. Segundo ela, as condições tendem a suprir a existência do homem e
variam de acordo com o lugar e o momento histórico no qual ele está inserido. Assim,
todos os homens são condicionados de duas maneiras: a primeira, pelos próprios atos,
pensamentos e sentimentos. A segunda, pelo contexto histórico no qual estamos
vivendo (cultura, amigos, família), elementos externos do condicionamento.
Para Arendt (2007), a condição humana estaria relacionada à Vida Ativa e,
assim, designa as três atividades humanas fundamentais, as quais correspondem às
condições básicas mediante as quais a vida foi dada ao homem na terra: o labor, o
trabalho e a ação. O labor seria o processo biológico necessário à sobrevivência do
indivíduo e da espécie humana. Já o trabalho produz um mundo artificial de coisas,
diferente de qualquer ambiente natural. Segundo a autora, a condição humana do
trabalho é a mundanidade, uma vez que tudo que é fabricado ou trazido ao mundo é
mundanizado. A ação, por sua vez, seria a atividade que é exercida entre os homens
sem a mediação de coisas ou de matéria. Ela estaria relacionada à condição humana da
pluralidade e seria, então, eminentemente social.
Segundo Arendt (2007), de acordo com o pensamento grego, a capacidade de
organização política é oposta à associação natural cujo centro é composto pela casa e
pela família. O surgimento da cidade-estado deu ao homem uma espécie de segunda
vida, uma vida política (bios politikos), na perspectiva de Aristóteles. Dentro dessa vida
política, estariam presentes duas atividades consideradas políticas: a ação (práxis) e o
discurso (léxis), no entanto, para aqueles que não viviam na polis – escravos e bárbaros
– esse discurso não era igual à faculdade de falar e sim, à capacidade de todos os
cidadãos em discorrer uns com os outros.
A esfera da vida privada (família) e a esfera da vida pública (política) eram
distintas e separadas a partir do surgimento da antiga cidade-estado, mas a
ascendência da esfera social, que não era nem privada e nem pública no sentido
restrito do termo é um fenômeno relativamente novo na era moderna. Para a

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pensadora política, o entendimento acerca da linha divisória entre as esferas pública e


privada é diferente do axioma no qual se baseava todo o antigo pensamento político
uma vez que aquilo a que chamamos de sociedade hoje é para ela “um conjunto de
famílias economicamente organizadas de modo a constituírem o fac-símile de uma
única família sobre-humana, e sua forma política de organização é denominada
“nação”” (2007, p. 38).
Para Arendt, historicamente, o surgimento da esfera pública, muito
provavelmente, se deu a partir da esfera privada da família e do lar, no entanto, a
santidade do lar jamais foi esquecida, o que impediu que a polis violasse a vida privada
dos cidadãos por entender que sem ser dono da casa, nenhum homem pode participar
dos “negócios do mundo”.

Historicamente, é muito provável que o surgimento da cidade-estado


tenha ocorrido às custas da esfera privada da família e do lar.
Contudo, a antigasantidade do lar, embora muito mais pronunciada
na Grécia clássica que na Roma Antiga, jamais foi inteiramente
esquecida. O que impediu que a polis violasse as vidas privadas de
seus cidadãos e a fez ver como sagrados os limites que cercavam
cada propriedade não foi o respeito pela propriedade privada tal
como o concebemos, mas o fato de que, sem ser dono de sua casa, o
homem não podia participar dos negócios do mundo porque não
tinha nele lugar algum que lhe pertencesse (ARENDT, 2007, p. 39).

Arendt chama atenção para o pensamento grego acerca da vida privada


dizendo que ela estava relacionada à necessidade de sobrevivência, uma vez que era a
necessidade de viver e de alimentar o corpo que asseguraria a vida da espécie, mas,
para que isso acontecesse requereria a companhia de outros. De acordo com essa
perspectiva histórica, a manutenção individual seria tarefa do homem e a
sobrevivência da espécie, tarefa da mulher. Pode-se observar aí, que as tarefas do
cuidado e da sobrevivência da espécie eram, desde épocas mais remotas, relacionadas
à mulher, a qual seria responsável pelo cuidado e alimentação do corpo e,
consequentemente, pela sobrevivência da espécie.
De acordo com a pensadora política, na idade média, ainda havia, de certa
forma, um abismo entre as esferas pública e privada. Segundo ela, a principal
característica do feudalismo foi “a absorção de todas as atividades para a esfera do lar
(privada) e, consequentemente, a própria existência da vida pública” (idem, p.43). Já
no mundo moderno, de acordo com a autora, as esferas sociais e políticas não diferem
muito entre si, uma vez que todas as questões pertinentes à esfera privada da família

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passaram a ser de interesse coletivo e assim essas duas esferas – pública e privada –
recaem uma sobre a outra (idem, ibidem, p.43). A esfera da polis era a esfera da
liberdade, mas, para estar nela, seria necessário vencer todas as necessidades da vida
em família pois “Ser livre significava ao mesmo tempo não estar sujeito às
necessidades da vida nem ao comando de outro e também não comandar” (idem,
p.41). Para ingressar na vida política era necessário ao homem arriscar a própria vida,
no entanto, a sobrevivência, a defesa da vida – possíveis apenas na vida privada – e o
amor à vida representavam um obstáculo à liberdade. É na vida pública em sociedade
que também se espera que os seus membros tenham determinados comportamentos
associados a inúmeras e variadas regras as quais tendem a normalizar esses indivíduos
e fazê-los comportarem-se de modo a reagirem diferentemente do modo como se
comportam em sua esfera particular.
Poderíamos dizer, então, com essa pensadora política, que a esfera pública se
apoia na esfera privada uma vez que os cuidados da vida doméstica – trabalho
doméstico não remunerado – relacionados à sobrevivência são imprescindíveis para a
sustentação da vida pública de qualquer homem. Seguindo esse raciocínio, ela vai
dizer que o trabalho se diferencia do labor a partir daquilo que é produzido levando-se
em conta a questão da durabilidade. Em outras palavras, tudo o que é produzido pelo
processo do trabalho é consumido, no entanto, no caso do labor, a coisa consumida
não tem a mesma permanência mundana dos produtos produzidos pelo homo faber.
Trazendo a questão daquilo que é produzido pelo labor, o qual está relacionado à
sobrevivência, poderíamos dizer então que o trabalho doméstico não remunerado,
cujo produto é consumido mais rapidamente, não seria valorado pelo fato de sua
durabilidade não ser a mesma de objetos como um sapato, por exemplo.
Arendt segue dizendo que, ao contrário do animal laborans, cuja vida é alheia
ao mundo e assim, é incapaz de habitar uma esfera pública e mundana, o homo faber é
perfeitamente capaz de ter a sua própria esfera pública, embora essa não seja uma
esfera política, no sentido da polis para os gregos. Essa esfera pública seria o mercado
de trocas, lugar onde aquilo que é produzido pelos artífices, por exemplo, é levado
para a exposição. É nesse mercado de trocas que os objetos recebem valor, uma vez
que podem ser negociados e permutados. A sociedade comercial, típica dos primeiros
estágios da era moderna ou do início do capitalismo manufatureiro, resultou dessa
produção ostensiva e o seu fim chegou com o enaltecimento do labor. Nela, o valor de
um determinado produto só poderia ser estimado não pelo seu processo de produção,
mas pela esfera pública na qual o objeto surge para ser estimado, exigido ou
desdenhado (idem, p.177).

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O valor é aquela qualidade que nenhuma coisa pode ter na


privatividade, mas que todas adquirem automaticamente assim que
surgem em público. Esse <<valor negociável>>como disse Locke
claramente, nada tem a ver com <<a valia intrínseca e natural de
qualquer coisa>>, esta valia é uma qualidade objetiva da própria
coisa,<<independente da vontade do comprador ou vendedor
individual; algo ligado à própria coisa, existente quer ele queira ou não,
e que ele deve reconhecer.>> A valia intrínseca de uma coisa só pode
mudar se a própria coisa – como uma pessoa pode destruir a valia de
uma mesa retirando-lhe uma das pernas – , ao passo que o <<valor
negociável>> de uma mercadoria flutua com a << mudança de alguma
proporção entre essa mercadoria e outra coisa qualquer. (ARENDT,
2007, p.177-178).

O valor imputado às coisas passa a ser mais subjetivo quando trazido para a
relatividade da troca, na esfera pública. Segundo Arendt, foi esse conceito de valor que
Marx introduziu quando disse que as coisas, ideias ou ideais morais só têm valor
quando se relacionam com o social.
De acordo com Arendt (2007), não é de se surpreender que a distinção entre
labor e trabalho tenha sido ignorada na antiguidade clássica. A diferenciação entre a
casa privada e a esfera política pública, entre o doméstico que era um escravo e o
chefe da casa que era um cidadão, entre as atividades que deviam ser escondidas na
privatividade do lar e aquelas que eram dignas de vir a público, apagaram e
predeterminaram todas as outras distinções até restar somente um critério: é na
privatividade ou em público que se gasta a maior parte do tempo e do esforço?
Sem dúvida, a evolução histórica tirou o labor do seu esconderijo e o trouxe à
esfera pública onde ele pode ser organizado e dividido de acordo com a sua
produtividade. Contudo, um fato ainda mais relevante nesta questão, já pressentido
pelos economistas clássicos e claramente descoberto e expresso por Marx, segundo
Arendt, é que a própria atividade do trabalho (labor), independentemente das
circunstâncias históricas e de sua localização na esfera privada ou na esfera pública,
possui realmente uma produtividade por mais perene que seja a durabilidade dos seus
produtos. Para a pensadora política, a produtividade estaria relacionada à força
humana empreendida para a produção de qualquer coisa cuja intensidade não se
esgota depois que ela produz os meios de sua subsistência e sobrevivência, mas é
capaz de produzir um excedente, a qual não se extingue mesmo quando não
acrescenta novos objetos ao artifício humano. A sua preocupação maior são os meios
da própria reprodução. Essa força não produz outra coisa, senão vida.

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É dentro dessa perspectiva valorativa que se dá na esfera do público e não do


privado e também da questão da produtividade que queremos promover um diálogo
entre as ideias de Arendt e as ideias do ergologista Yves Schwartz, filósofo e membro
do Instituto Universitário da França. Schwartz publicou inúmeros artigos e livros, entre
eles Expérience et Connaissance du Travail (1988), Travail et Philosophie: convocations
mutuelles (1992) e Le paradigme ergologique ou un métier de Philosophe (2000), bem
como o ensaio intitulado Conceituando o trabalho, o visível e o invisível (2011), cujos
conceitos de visível e invisível serão retomados neste trabalho de pesquisa.
De acordo com a abordagem ergológica, proposta por Schwartz, o trabalho não
pode ser visto como algo simples que se reduz a uma troca de tempo por salário, mas
sim como uma realidade mais complexa a ser entendida. Todo o pensamento acerca
do valor do trabalho não deve estar dissociado de princípios materiais e imateriais,
uma vez que nele estão envolvidos aspectos biológicos, psíquicos e históricos. Para ele,
o trabalho é uma evidência viva que escapa a toda definição e pergunta: “o que está
comprometido – do homem – no trabalho?” (p. 20). Neste ensaio, cujo título já
mencionamos acima, Schwartz (2011) se propõe a retrabalhar a noção de trabalho,
tentando explicar, a partir das dimensões invisíveis, quais são os impasses evocados a
respeito do conceito de trabalho para, assim, interrogar o trabalho do historiador.
Começa, então, dizendo que o nascimento do trabalho, numa perspectiva histórica se
dá a partir da fabricação das primeiras ferramentas pelo homem para a transformação
da sua existência, fato que impulsiona o homo sapiens adiante no seu processo
histórico. No entanto, na consciência do homem, estaria embutido o conceito de
trabalho, mais genérico, relativo ao processo de fabricação, possivelmente desde o
homem neolítico bem como a relação demiúrgica que o homem tem quanto à sua vida
psíquica e social. Esses conceitos, para Schwartz, não estão separados e evocam de
uma forma mais espontânea e massiva, a definição de “trabalho strictu sensu”, que
seria uma prestação remunerada em uma sociedade mercantil. Essa visão, segundo o
ergologista, tem uma ligação profunda com o desenho do trabalho na Revolução
industrial e pela porção do tempo de trabalho em troca de remuneração. Segundo ele,
é isso que permite distinguir o trabalho do lazer ou do “não trabalho” (desemprego).
Além disso, distingue, também, a espera socioprofissional da esfera do privado.
O valor do trabalho, a partir do século XIX, está relacionado ao valor mercantil.
É em torno dessa noção de tempo vendido, considerada amplamente desigual, que se
organizam as classes sociais, os movimentos sociais e a experiência da exploração. É
nessa perspectiva que nasce, a partir de Marx, a noção de “trabalho produtivo” a qual
remete à ideia do homem como fabricador de ferramentas, definida por Schwartz,

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como o primeiro nascimento do trabalho, tomado como o trabalho que impulsiona a


sociedade a progredir economicamente,

ou então como uma noção historicamente muito mais delimitada,


como segmento de trabalho, mais ou menos produtor da mais-valia,
tanto quanto o tempo de “sobretrabalho”possa ser, nesse segmento,
mais ou menos aumentado. (SCHWARTZ, 2010, p.23)

Schwartz continua dizendo que essa noção de trabalho mercantil relacionado à


quantidade de horas para ser realizado, além de ser um ponto crucial na história do
trabalho, sufocou, mais ou menos, outras noções acerca dele, a saber “trabalho
doméstico”, “trabalho militante”, “trabalho sobre si”.
Na tentativa de pensar acerca do trabalho e seus nascimentos e renascimentos,
numa perspectiva histórica, o filósofo diz que os três elementos a seguir não
interagem, apesar de estarem historicamente situados:

De fato, a história segue de maneira caótica, crítica, com recaídas,


ultrapassando de longe os lugares e os tempos ditos ‘de trabalho’,
porque três elementos continuam a interagir, em um relativo
desconhecimento recíproco:
[1] a preocupação própria a todo trabalho humano, “sem uma marca
particular”, teria dito Marx, de normalizar, de racionalizar, de se
avaliar, o gênio humano felizmente não retorna ao zero a cada um de
seus empreendimentos;
[2] a preocupação própria a nossas sociedades contemporâneas,
fundadas sobre a mercantilização do trabalho, de gerá-lo, mesmo em
parte às cegas, de se dar instrumentos de governo, de medida, de
avaliação do que ele pode trazer ao campo da concorrência mercantil;
[3] o renascimento permanente daquilo que, na atividade humana,
escapará necessariamente a toda codificação seja ela qual for, e a fará
aparecer aqui como sempre e quem, ao frequentar hoje as atividades
de serviço, poderia negar que um ‘pensamento’, uma operação
intelectual, não é fecunda, não é eficaz, visto que tal operação faz
parte de um corpo para o qual viver em seu meio de trabalho é valor
ou saúde? Quanto à divisão social do trabalho (trabalho entendido
aqui como definição de um objetivo de produção de um grupo
humano, presidido por uma repartição estabilizada de postos ou
empregos a serem ocupados... (SCHWARTZ, 2011, p.27)

Para Schwartz, é impossível pensar em trabalho sem levar em conta as


mobilizações que são feitas por meio do corpo e do fazer humano relacionado à
própria história pessoal de quem faz o trabalho. Sendo assim, como se pode decompor

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o sentido do trabalho? Prosseguindo, o ergologista diz que o conceito de “trabalho


invisível” está relacionado ao trabalho das mulheres, inclusive na esfera mercantil,
industrial. Isso revela não só a instabilidade nas fronteiras entre o trabalho masculino e
feminino, como também nos remete à desigualdade do status do trabalho.
A invisibilidade do trabalho doméstico, segundo Schwartz, estaria relacionada
“às formas limites” das tarefas domésticas. Essa invisibilidade, para ele, se daria pelos
seguintes motivos: o único trabalho digno de atenção é aquele que está relacionado ao
valor mercantil, como se só nele houvesse o envolvimento e o uso de nossas
faculdades industriosas, como se quaisquer trabalhos, mercantil ou não mercantil, não
fossem formas de atividade humana. Seria, então, o fato de que não se leva em conta
as dimensões antropológicas do trabalho do gênio humano, para se interessar por ele
só quando se encontra enquadrado em uma relação mercantil. Seria, ainda, esquecer
o conteúdo tão diversificado de um trabalho considerado “informal” e suas
continuidades entre as formas consideradas domésticas e o trabalho por contrato. A
outra razão para isso é que se perderia o alargamento desse benefício, se
opuséssemos o trabalho doméstico a outro, o qual se tornaria visível por sua
negociação contratual, seus procedimentos operatórios, seus produtos, etc. Para
redescobrir a parte invisível do trabalho doméstico seria necessário mensurar todas “as
continuidades, as circulações, as transferências, em todos os sentidos entre o informal,
o doméstico e as formas mercantis de contrato [...].” (SCHWARTZ, 2011, p.32) Isso
significa considerar os recursos, os atos e os espaços onde os corpos e almas humanas
atuam na sua atividade de trabalho, até mesmo aquele considerado a partir de uma
valoração mercantil.
Para Schwartz, se a atividade doméstica fosse trazida à condição de trabalho,
haveria um reequilíbrio à visão da vida social e familiar. Seria possível, também,
aprofundar a abordagem do trabalho em geral, refletindo sobre o que é invisível em
cada trabalho.

Considerações finais

Ao colocarmos em diálogo o discurso de Hannah Arendt, acerca da valoração


do trabalho na esfera pública, com o de Yves Schwartz, a respeito da invisibilidade,
podemos concluir que o trabalho doméstico não remunerado não é valorado na
sociedade por ser uma atividade realizada, quase em sua totalidade, pelas mulheres,
responsáveis em sua grande maioria por fazer esse tipo de trabalho, as quais sempre
foram invisibilizadas na sociedade mesmo realizando trabalho com valor mercantil.
Isso se deve, também, ao fato de que as mulheres, historicamente, foram destinadas a

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realizar atividades reprodutivas. Outra constatação da desvalorização do trabalho


doméstico não remunerado é que esse trabalho sempre esteve presente na vida
humana por estar relacionado à sobrevivência da espécie, ou seja, e como diz Arendt,
é algo que só produz vida. No entanto, tudo aquilo que ele produz, além de ser
consumido rapidamente, não pode ser submetido ao “mercado de trocas”, uma vez
que é feito e consumido na esfera privada. A desvalorização desse trabalho também
passa pela questão daquilo que a sociedade considera como trabalho, uma vez que,
numa perspectiva econômica, trabalho é aquilo que tem valor mercantil, ou seja,
aquele relacionado à quantidade de horas de tempo vendida. Assim, quando se
compara o trabalho doméstico não remunerado com qualquer outro trabalho,
automaticamente, ele perde o valor, uma vez que o valor do trabalho em termos de
atividade corporal, mental e social, se perde dentro dessa comparação mercantil.

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INFÂNCIA ROUBADA NAS VOZES QUE SE CALAM:


UMA LEITURA DO CONTO DE FADAS PELE DE ASNO CONTRAPONDO AO MINICONTO CICATRIZ

Juliane Della Méa1


Luana Teixeira Porto2

Introdução

A Literatura Infantil nasce das narrativas orais, as quais eram transmitidas de


geração em geração entre os séculos IX e X na Europa e versavam sobre vivências do
cotidiano das pessoas. Como prática oral, tais histórias acabaram se modificando de
acordo com a sociedade e a época. Dentre as narrativas orais, inclui-se o conto de
fadas, que, no século XVII, tinha a finalidade de apresentar valores impostos pela
sociedade, através das histórias adaptadas e criadas simbolicamente conforme a
intenção do narrador e do meio onde vivia.
No contexto contemporâneo, os contos de fadas se utilizam de narrativas
enviesadas, nas quais artistas transcrevem histórias paradigmáticas, segundo seus
anseios, com a possibilidade de narrá-las de maneira fragmentada, repetida,
descontraída, reduzida, desconstruída e ou desvinculadas do conto original.
Em ambos os períodos históricos, os contos de fadas reproduzem-se através de
discurso, que, segundo Michel Foucault, é:

Um conjunto de regras anônimas, históricas sempre determinadas no


tempo espaço, que definiram em uma dada época, e para uma área
social, econômica, geográfica, ou linguística dada, as condições de
exercício da função enunciativa (FOUCAULT, 2002, p. 136).

1
Graduada em Letras-Espanhol pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões –
URI – Campus de Frederico Westphalen. Professora da rede Pública e Privada do Estado do Rio Grande
do Sul. Especialista em Gestão Estratégica de Pessoas. Especialista em Literatura Brasileira. Mestranda
do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras pela Universidade Regional Integrada do Alto
Uruguai e das Missões – URI – Campus de Frederico Westphalen.
E-mail: dmjuli79@hotmail.com
2
Doutora em Letras e Professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras pela
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – Campus de Frederico
Westphalen.
E-mail: luana@.uri.br

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Dessa forma, sendo um discurso, contos de fadas disseminam perspectivas


ideológicas e valores de um dado contexto social, o que implica a necessidade de
reconhecer o lugar desse texto no conjunto da produção literária, no caso, a literatura
infantil, já que o gênero se insere no conjunto dos textos destinados ao público pueril.
A propagação da Literatura Infantil na sociedade europeia ocorre a partir do
século XVII, com a produção de livros com histórias adaptadas pelos escritores, as
quais mais tarde se tornaram referência desse gênero literário. São autores
importantes nesse universo de criação de histórias Charles Perrault, La Fontaine,
Irmãos Grimm e Andersen.
Os contos de fadas eram um alerta para as classes populares, pois, ao
transcrever literariamente a realidade condicionada à população, expunham conflitos
contundentes que seguem a humanidade até os dias de hoje, como o ódio, a inveja, o
desejo, o individualismo, a maldade, o amor violento, dentre outros. Diante disso, ao
se ler um conto de fadas e tendo em vista que sua origem está ligada a uma “leitura”
da realidade de classe, é possível discutir o contexto de produção da narrativa, numa
articulação entre literatura e vida social.
Nessa perspectiva, cabe recorrer a Antonio Candido, quanto afirma que “o
externo (no caso o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como
elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se
assim, interno” (CÂNDIDO, 2000, p. 6), uma vez que a cultura social perpassa o texto,
através da percepção do autor, perfazendo um produto de influência social.
Na atualidade, a sociedade moderna se encontra em constantes mudanças,
absorvendo de forma muito rápida o externo (referido por Cândido) que a cerca, e a
literatura não poderia deixar de se adaptar ao frenesi da busca pelo imediato, pelo
simplificado, pelo novo. Nesse contexto, surgiu o miniconto, espécie de conto muito
pequeno, minimizado, segundo Giulio C. Argan (1992, p. 32). No entender de Graça
Paulino, que classifica o miniconto como gênero literário, é “um tipo de narrativa que
tenta a economia máxima de recursos para obter também o máximo de
expressividade, o que resulta num impacto instantâneo sobre o leitor” (2001, p. 137),
como feedback da própria existência real.
David Lagmanovich, em antologia sobre o miniconto hispânico, La outra mirada
(2005), deixa claro que a produção literária minimizada dos séculos XX e XXI é um
relato curto chamado de miniconto e, embora a Teoria da Literatura não aprove esse
conceito, ele insiste que “as narrativas breves sempre existiram nas composições dos
sumérios, nos escritos bíblicos, na narrativa oral africana, (...) mas ao fazer um corte
temporal pensamos no desenvolvimento de um gênero literário com leis próprias”

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(2005, p. 10), leis estas, que o tornam em sua estética e intensidade uma nova criação
do século atual, cuja tendência é mostrar e ou sugerir ao leitor que preencha as elipses
narrativas e entenda a história por trás da história em culminância as suas vivências,
experiências e posicionamentos.
A verossimilhança da literatura para com a realidade, existente na antiguidade,
reporta-se para a atualidade embora com formatação distinta, simplificada e
instigante. O que antes era tido como protótipo de conduta a ser seguida hoje permite
a liberdade de levantamento de hipóteses e conclusões mediante reflexões propostas
pela obra, pois essa é um fato plausível de exame. Por isso, propomos o cotejo de
narrativas distanciadas no tempo e que apresentam um tema em comum.
Esta análise comparatista envolve o exame de dois objetos literários: um conto
de fadas e um miniconto. Para isso, são cotejados o conto “Pele de Asno”, do escritor
francês Charles Perrault, e o miniconto “Cicatriz”, de Flora Medeiros, textos que
espelham a sexualidade, mais especificamente a questão do incesto. Sobre olhar
reflexivo acerca das narrativas e levando em consideração o impacto da violência
estrutural e conjuntural nas relações interpessoais e sociais, a qual interfere na
configuração dos textos literários, constata-se que as duas narrativas, em termos
estéticos e conteudísticos, problematizam a violência contra a criança e expressam um
valor social por possibilitar a ampliação da quebra do silêncio na literatura ao tratar de
abusos corporais e psíquicos projetados na infância, dando, assim, representatividade
à infância roubada e aos sujeitos-crianças cujas histórias são repletas de práticas de
violência.

Ouvidos atentos e vozes caladas

Contar histórias é uma atividade que acompanha o homem desde sua origem.
Nos tempos primórdios, as gravações em pedras narravam a maneira como eram
concebidas as conquistas humanas. Com o uso da linguagem, o próprio homem
transmitia oralmente, histórias que eram perpassadas entre gerações, contando a
origem de determinado povo, de objetos, de lugares. Visto que a linguagem organiza,
valoriza e investiga, trazendo à superfície imagens, histórias e conceitos construídos ao
longo de um percurso pessoal, o ato de transmitir essas considerações ganha a
nomenclatura de narrativa.
Ambos os objetos analisados “Pele de Asno”, conto de fadas de Perrault e
“Cicatriz”, miniconto de Flora Medeiros, são narrativas que permeiam não apenas no
campo infantil; mas social, porque além de exibirem temática polêmica, apresentam
vozes caladas e sofredoras, relatos de amores e humilhações; aspectos relevantes para

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uma análise detalhada no entorno do conceito humanitário; uma vez que, são vozes
infantis intimidadas por atitudes adultas de seus genitores.
Assim a Literatura Infantil ganha forma e espaço, concebendo, dentro da
sociedade uma nova classe social de características próprias, a infância. As histórias
elaboradas para crianças foram associadas a instrumentos de ensino para a pedagogia,
onde de certo modo, a sociedade impunha suas delimitações e condutas, onde livros
traduzem as mais variadas dicotomias.

Por intermédio desse recurso, traduz para o leitor a realidade dele,


mesmo a mais íntima, fazendo uso de uma simbologia que, se exige,
para efeitos de análise, a atitude decifradora do intérprete, é
assimilada pela sensibilidade da criança (LAJOLO; ZILBERMAN, 2010,
p. 20).

Realidade essa que por deveras não é tão boa assim, que não permite a
intervenção de uma “fada madrinha” e nem ao menos o final feliz da história, fato que
persiste em muitos núcleos familiares, independente de padrão social ou econômico.
Como afirmam os autores Azevedo e Guerra (1988):

Desde que o mundo é mundo, a criança tem sido vítima de toda sorte
de explorações, inclusive e principalmente de natureza sexual
(princípio nº 9 da Declaração) no entanto, sua denúncia tem tido
pouco eco, abafado pelo „complô do silêncio‟ com que a sociedade
em geral e os especialistas, em particular, têm procurado encobrir
„temas impertinentes‟. Por sua vez, a própria ideia de exploração
sexual da infância é conquista recente, na medida em que se assenta
em um duplo reconhecimento – o da existência de um padrão
assimétrico de relações sociais entre gerações – o padrão
adultocêntrico e o da concepção da criança como cidadão, sujeito de
direitos, e não como menor de idade, passível de ser objeto do prazer
adulto. (AZEVEDO; GUERRA, 1988, p. 5-6)

Ao analisar a narrativa Pele de Asno, de Charles Perrault (século XII) - um dos


contos de fadas de maior conhecimento dentre a sociedade e cujo principal público
deveria ser o infantil -, é notória a manifestação do desejo carnal e incestuoso por
parte do pai para com a filha, que para livrar-se do assédio foge de casa. Isso, contudo,
não ocorre no miniconto Cicatriz, de Flora Medeiros, publicado no século XXI, narrativa
em que a filha permanece no convívio do pai que a molesta e violenta sexualmente.
O conto de Charles Perrault traz a história de um rei muito bom. Ele então
escolhe para ser sua rainha uma mulher encantadora, linda, serena e doce; do

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casamento nasce uma menina “muito prendada, e assim sendo, o casal se consolava
de não ter outros filhos” (PERRAULT, s.d. p.39); algum tempo depois, a rainha fica
muito doente, e faz um último pedido ao seu esposo, de jurar casar-se apenas quando
encontrar outra mulher que tenha melhores talentos que ela. No miniconto Cicatriz,
observamos uma célula familiar, desconstituída, uma criança que diferente do conto
de fadas, encontra-se na maior parte do tempo sozinha “a casa vazia” (MEDEIROS,
s.d.), indagando o leitor sobre a real existência da mãe ou sua ausência temporária.
Ambas as narrativas são escritas em primeira pessoa, o que permite uma
subjetividade maior por parte do narrador e um envolvimento intenso por parte do
leitor. O narrador expressa seu ponto de vista, detalhado e com caráter utilitário; em
Pele de Asno, Perrault, ao fim do conto, expunha uma moral, segundo a sua convicção:
“Esta história mostra que é preferível expor-se aos maiores sofrimentos, a faltar a
cumprir o dever, pois a virtude pode ser desprezada e infeliz, mas sempre será
premiada.” (PERRAUT, s.d. p.55). Esse era um aspecto formal presente em seus contos.
O miniconto Cicatriz, por sua vez, não traz uma moral exposta de forma direta, mas
uma afirmação incisiva, que transmite ao leitor sentimento de repúdio, quando o
narrador relata “Eu pus de molho na cândida, mas a mancha não saiu.” (MEDEIROS,
s.d.), confirmando o que Walter Benjamin (1994, p. 200) afirma sobre a narrativa e seu
caráter utilitário: nela, o narrador expressa um ponto de vista, “seja num ensinamento
moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa forma de vida”.
Ao reportar o conto de fadas sobre uma óptica incestuosa, podemos citar como
fato maior o momento em que o rei pede a protagonista em casamento; a princesa
fica apavorada, percebendo que cometeriam um incesto se a união fosse realmente
consumada – na época o casamento era consumado pelo ato sexual propriamente dito
– o que a faz fugir de casa, seguindo o conselho da Fada Madrinha, depois de várias
tentativas falhas para evitar o pai. Preso ao juramento que fizera, o rei percebeu que
“só a Princesinha era mais bela e possuía certos lindos predicados, que a falecida mãe
não possuía. O próprio Rei o notou e loucamente apaixonado tomou a estranha
resolução de casar-se com ela” (PERRAUT, s.d. p. 42). A autoridade manifestada na
sociedade patriarcal, na qual ao homem é conferido o poder de decisão, escolha e
ação, se reflete na narrativa do miniconto: “Meu pai tirou a calça e me mandou deitar”
(MEDEIROS, s.d.).
A fragilidade e impotência da criança frente ao desejo do patriarca acabam por
suscitar novamente a representação de sistemas de valores, cujas “narrações em
primeira pessoa, as representações etnográficas da vida do cotidiano ou da política
também correspondem às necessidades e tendências da esfera pública” (SARLO, 2007,

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p.115), fazendo com que conto e miniconto incisam a linha tênue entre o amor
fraternal e sexual em um deslocamento da noção de sujeito e hierarquia dos fatos,
destacando os pormenores cotidianos.
Para a criança, a manifestação de afeto por parte da família é algo de suma
importância, porém é traumática quando um adulto a assedia sexualmente, sendo
difícil a ela distinguir as manifestações de carinho fraternal, de obediência e de amor
às de carícias incestuosas, submissão e desejo. Isso abre precedentes para condutas de
desvio moral: casamento do rei com a princesa no conto de fadas e estupro do pai
para com a filha no miniconto.
Além desses aspectos, é pertinente destacar que Pele de Asno e Cicatriz
representam o caminho do amadurecimento e da construção da identidade feminina.
A princesa, ao fugir de casa como uma menina, no término do conto, demonstra
atitudes de mulher, ao casar-se e perdoar o pai que tanto lhe fez sofrer.

Mas nenhum príncipe potentado exibiu luxo mais deslumbrante do


que o pai da noiva, o qual, com o tempo, se esquecera da antiga
paixão, conservando apenas, e ainda mais vivo, o seu afeto paternal.
Assim que a viu, correu para ela, chorando de alegria, beijou-a
ternamente e disse:
- Bendito seja o Céu, que me permitiu encontrar-te, minha filha
querida! (PERRAULT, s.d. p. 54).

Perfazendo o horror emocional e sentimental vivenciado, no decorrer do


miniconto pela protagonista, a transição de fases menina/mulher não ocorre de forma
figurada (como no conto) e sim física, narrada de maneira precisa e brutal permitindo
que o leitor reviva a cena de violência e preencha as lacunas das entre linhas, o que o
torna de certa forma instigante e revoltante, “naquele dia foi diferente. Meu pai tirou
a calça e me mandou deitar. — Fica quietinha, filha, fica. Não vai doer nada”
(MEDEIROS, s.d.).
Os objetos de análise evidenciam a criança como elemento de fetiche do pai,
por ser exclusivo de desejo nos dois casos. Desta forma, em ambas as situações
retratadas nas narrativas, a filha está ligada amorosamente ao pai, cujos desejos entre
o amor fraternal e sexual se contrapõem, caracterizando o que Freud descreve por
fetiche, sendo que o amor do príncipe é considerado normal e o amor incestuoso do
pai de caráter perverso. Freud nos diz que:

O ponto de ligação com o normal é proporcionado pela


supervalorização psicologicamente necessária do objeto sexual, que

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se propaga inevitavelmente por tudo o que está associativamente


ligado ao objeto. Por isso certo grau desse fetichismo costuma ser
próprio do amor normal, sobretudo nos estágios de enamoramento
em que o alvo sexual normal é inatingível ou sua satisfação parece
impedida [...] (FREUD, 1905).

Ambas as meninas (do conto e do miniconto) vivem um drama amoroso no


contexto familiar, uma vez que o amor paterno, tido como normal, mescla-se ao
desejo sexual. No entanto, são nítidas a dor e frustração em ver aquele que deveria ser
seu cuidador transformar-se no protagonista de um trauma que deixará sequelas e
marcará toda a sua vida, como o próprio título da narrativa sugere Cicatriz. Esse título,
aliado ao teor tenso da história, faz do miniconto uma narrativa de profunda reflexão
entre normal e insano, uma vez que o pai se dispõe a retribuir sexualmente seu amor,
consumando o ato do estupro, transcrito de maneira insinuosa pela própria filha, “O
lençol ficou todo sujo de sangue. Eu pus de molho na cândida, mas a mancha não saiu”
(MEDEIROS, s.d.).
O abuso sexual infantil raramente deixa marcas visíveis e o silêncio por parte
das vítimas e até mesmo dos demais familiares impossibilita uma ação eficaz para a
prevenção dessa prática, que segue se alastrando dentro do contexto social existente.
Esse silêncio é definido por Tilman Furniss (1993) como síndrome do segredo, e o autor
enumera fatores internos e externos que contribuem para esse sigilo.

a falta de evidências médicas e de elementos para comprovar o


abuso sexual infantil, a necessidade de acusação verbal por parte da
criança, a falta de credibilidade ao menor, as consequências da
revelação, ameaças físicas e psicológicas, distorção da realidade,
medo de punição pela ação que participou, a culpa da criança, a
negação e a dissociação.(FURNISS, 1993, p. 29)

Além de todos os fatores mencionados, o silêncio possui outros agravantes: a


criança fica propensa do convívio do agressor (pai), temendo por ser responsável a um
possível término do casamento dos pais, afastamento da mãe ou descrédito de seu
depoimento, ficando à mercê de seu agressor, como percebemos em “Eu odiava o
barulho da porta do meu quarto fechando. Sempre na mesma hora. Depois da escola,
com a luz apagada, a casa vazia” (MEDEIROS, s.d.), mergulhada num calo profundo,
por medo da revelação.
Em Pele de Asno, a criança sofre o excesso de amor e afeição por parte de seu
pai que, na falta da presença materna, se sente liberado para perseguir de modo

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erótico sua própria filha. No miniconto Cicatriz, a mãe não é citada, o que expede a
dúvida de sua existência ou o desconhecimento dos fatos ocorridos durante a volta da
escola, em sua ausência.
Ainda sobre elementos narrativos das duas histórias, cabe registrar que Pele de
Asno se destaca por apresentar uma princesa fora dos padrões: ativa, corajosa e
vigorosa, que encara o mundo desconhecido, para não se submeter aos caprichos do
pai. Já o miniconto insinua a existência de uma criança que sofre humilhações e
posteriormente é condicionada a submeter-se àquela situação horrenda, de
submissão, perceptível na passagem em que a criança lava o próprio lençol,
permanecendo calada.
O miniconto Cicatriz transmite ao leitor um sentimento constrangedor e de
repúdio pela situação em que a criança se encontra no contexto familiar e, embora o
conto de fadas deixe explícito que ocorrências desse tipo não desaparecerão tão
breve, Perrault no último parágrafo de sua narrativa escreve: “Na história de Pele de
Asno é difícil acreditar. Mas, enquanto no mundo houver crianças, mães e avós,
sempre há de ser repetida” (PERRAUT, s.d. p. 55), sugerindo o que Sarlo (2007)
entende pela narrativa em primeira pessoa:

A literatura, é claro, não dissolve todos os problemas colocados, nem


pode explicá-los, mas nela o narrador sempre pensa de fora da
experiência, como se os humanos pudessem se apoderar do
pesadelo, e não apenas sofrê-lo. (SARLO, 2007, p. 119)

Esse pesadelo do abuso sexual na infância afeta não apenas a coletividade em


si, mas a memória e a história de milhares de crianças que convivem diariamente com
esse pesadelo dentro de seus próprios lares; crianças em que o sofrimento fica restrito
às cicatrizes, calando sonhos e projeções futuras, que a literatura com seu papel
humanizador (CÂNDIDO, 2000), convida a sociedade a refletir.

Considerações finais

A Literatura Infantil sofreu transformações com a evolução tecnológica, social e


econômica. Os primeiros clássicos infantis foram repaginados, reescritos, modificados,
com a finalidade de atender aos novos padrões impostos pela contemporaneidade.
Histórias escritas por autores consagrados, como Perrault, Andersen, Irmãos Grimm,
mantêm sua essência e são lidas atualmente por crianças, jovens e adultos, pois
apresentam narrações populares, que valorizam a imaginação e a fantasia.

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Porém, o século XXI não brinda a sociedade com a fantasia e nem ao menos
com uma “Fada Madrinha” capaz de aconselhar e de certa forma proteger as crianças,
como em Pele de Asno. O miniconto Cicatriz, enfocando uma realidade contrária a
essa, demonstra a ausência de um entorno social, familiar, institucional e jurídico que
ampare a criança vítima de violência sexual.
Acordando com Antônio Cândido (2002), quando afirma que a função da
Literatura é humanizar o homem, abordar funções psicológicas, formadoras e sociais,
fazendo despertar no leitor emoções, sentimentos e até mesmo revolta, o que as duas
narrativas examinadas permitem reconhecer é que é doloroso pensar que a mesma
literatura com papel humanizador retrata com nitidez um problema social alarmante.
Através da leitura do conto Pele de Asno e do miniconto Cicatriz, além da
reflexão sobre um comportamento social impróprio e inaceitável, é possível se
sensibilizar diante de um fator de violência infantil, muitas vezes não denunciado e
escondido pelo sistema de organização social vigente.
Nessa perspectiva de que a Literatura contribui para a formação humana,
interpretar não é apenas entender o que o texto diz, mas extrair dele significância e
sentido para a própria vida. Partindo desse pressuposto, conclui-se com esse trabalho
que desde os tempos primórdios a violência sexual contra crianças já era simulada
através da Literatura, mesmo sendo camuflada dentro dos Contos de Fadas, e os
problemas familiares e as inquietações da alma afligiam a sociedade, demonstrando a
realidade vivenciada pelos seus membros.
Na atualidade, essa mesma realidade vem à tona, embora de forma mais clara,
direta e sucinta, colocando em xeque e choque as relações intrafamiliares e rompendo
a cumplicidade silenciosa estabelecida no núcleo familiar, para que a sociedade
imponha uma rede de comunicação, pela qual se possa ser capaz de pensar, ouvir,
denunciar e julgar o mais rápido possível esses atos de violência sexual infantil.

Referências

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
BENJAMIN, W. O narrador. In: BENJAMIN, W. (Ed.). Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. Trad. Sérgio P. Rouanet. São
Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-221.
BRUNER, Jerome S. A construção narrativa da realidade. Critical Inquiry. Trad.
Waldemar Ferreira Netto, 1991.
CÂNDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000.

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______. A literatura e formação do homem. In: Textos de Intervenção. São Paulo: Duas
Cidades / Editora 34, 2002.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. v. 1: A vontade de saber. Tradução: Maria
Thereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1999.
______. A ordem do discurso. 7. ed. São Paulo, Loyola, 2001.
______. Arqueologia do saber. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
FURNISS, Tilman. Abuso sexual da criança: Uma abordagem multidisciplinar. Tradução:
Maria Adriana Veríssimo Veronese. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
LAGMANOVICH, David (org.). La otra mirada: antología del microrrelato hispánico.
Valencia: Menoscuatro, 2005.
MEDEIROS, Flora. Cicatriz. s.d. Disponível em: <http://autoressaconcursosliterarios.
blogspot.com.br/2013/05/os-20-minicontos-classificados.html>. Acesso em: 12 de
out. 2015.
PAULINO, Graça et al. Tipos de textos, modos de leitura. Belo Horizonte: Formato
Editorial, 2001.
PERRAULT, Charles. A bela adormecida no bosque e outras histórias bonitas. São Paulo:
Brasil, s.d.
SARLO, Beatriz. Tempo passado: Cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução
Rosa Freire d’ Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, Belo Horizonte: UFMG,
2007.
ZILBERMAN, Regina; MAGALHÃES, Ligia Cademartori. Literatura infantil: Autoritarismo
e Emancipação. 3. ed. São Paulo: Ática, 19.

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REVERBERAÇÕES ÉPICAS NO CONTEMPORÂNEO:


O DIÁLOGO ENTRE GONÇALO TAVARES E A EPOPEIA CAMONIANA

Kim Amaral Bueno1

Pistas do prefácio de Eduardo Lourenço à primeira edição de Uma Viagem à Índia

Eduardo Lourenço escreve o prefácio para a primeira edição de Uma viagem à


Índia (2010). O texto, embora curto, é bastante rico nas pistas que dissemina sobre o
livro de Tavares, fruto da erudição e da sensibilidade do crítico português. Mas
também, obviamente, da riqueza do texto tavariano e das múltiplas entradas, a
despeito das poucas saídas, que tal texto produz: a imagem do labirinto é mais uma
das evocadas por Lourenço ao comentar a obra, numa franca associação a Jorge Luis
Borges. As epígrafes para o prefácio, cujo título é “Uma viagem no coração do caos”,
são duas: a primeira, de Kafka, do pequeno conto O Novo Advogado, e a segunda, do
próprio texto que prefacia, uma estrofe do Canto VII. O crítico começa apontando
aquilo que nos salta aos olhos já na primeira página no livro, a sua “original revisitação
da mitologia cultural e literária do [...] Ocidente” (2010a, p.9), tendo como “modelo”
Os Lusíadas.
A formatação do texto como tal, a partir do paradigma da epopeia camoniana e
da confrontação explicita com a herança cultural do passado, produz mais do que um
“exercício sofisticado de des-construção [...], mas uma versão lúdica e paródica de uma
quête, aleatória e como tal assumida” (2010a, p.9). A obra é considerada por Lourenço
como um “prosaico poema, antipoema e hiper-poema, com consciência aguda da sua
ficcionalidade, [que] navega e vive entre os ecos de mil textos-objetos do nosso
imaginário de leitores” (2010a, p.9). A alusão à categoria de Genette de “hipertexto”
parece bastante apropriada para Uma viagem à Índia, tanto pela conexão com seu
hipotexto imediato, Os Lusíadas (que por sua vez também é hipertexto), mas também
pela “referência hiper-literária” através das peripécias que dialogam como o texto
camoniano e nele “encontram motivos de reinvenção surpreendente” (2010a, p.9).
Há uma rápida constatação histórica de que a decepção (talvez, o fracasso)
encarnado pelo texto de Tavares seja compatível com o “desespero” e a “agonia”

1
Doutorando em Teoria, Crítica e Comparatismo no PPG-Letras – UFRGS.
Email: kim.amaral@ymail.com

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ocidental, uma espécie de consciência de que histórica e meta-histórica de uma


conversão do Ocidente e da sua cultura sob o signo de Ulisses em êxtase vazio,
fascinado pelo esplendor do seu presente sem futuro utópico, glosando sem descanso
a sua proliferante ausência de sentido” (2010a, p.10). Lourenço define a obra de
Tavares como um “travestimento sem precedentes do texto epopaico (Os Lusíadas, a
seu modo, também é já texto de decepção, por conta da realidade), uma viagem ao
fim do nosso fabuloso presente como glosa interminável da existência como tédio de si
mesma” (2010a, p.10).
A viagem de Bloom pretendida por Tavares, para o crítico português, está
centrada na muito mais na “reescrita da aventura verbal” (2010a, p.11) que
representa, que materializa esta “eterna busca do Oriente” (2010a, p.11). Ele utiliza a
expressão “contra-epopeia”, como se o texto fizesse um percurso na contramão do
gênero, como se navegasse por este rio literário contra a sua correnteza, qualificando-
a como “luminosa, paródica e burlesca” (2010a, p.11).
Para Lourenço, o “autor-herói” de Uma viagem à Índia é o “primeiro não-
viajante consciente da ficcionalidade de todas as buscas do Graal” (2010a, p.11). A
cadeia de negações com a qual o texto tavariano é aberto parece ser compreendida
por Lourenço dentro da lógica que submete tal texto à contramão do épico (e portanto
não menos épico, apenas um épico a contrapelo): “Jerusalém, Atenas, Roma, o Graal,
o novo mundo, a própria natureza [...]” são deixadas como “pura legenda [...] no limbo
em que se dissolveram” (2010a, p.11), de modo que Gonçalo M. Tavares se assemelha
a uma espécie de “Cassandra de si mesma” (2010a, p.12), cuja tradição, evocada para
ser negada, assumida para ser rejeitada, procurada para dela se esconder, percorrida
para dela fugir, já está inscrita no seu “futuro esquecimento” (2010a, p.12).
O artifício de Bloom é operar não a sua memória do passado, mas sim a sua
memória do futuro: profeta de seu tédio, oráculo de sua própria peregrinação anti-
redentora, Bloom não vê sentido nas suas ações, e num texto próximo a um niilismo
agudo, tem o nada, ou o “menos um”, como saldo da sua equação de vida. Então
parece transparecer a real posição dos deuses dentro da epopeia de Tavares: o texto
parece encarnar a sacralidade ambivalente daqueles que habitam o Olimpo nas
epopeias clássicas, e dele, da própria matéria linguística, emerge a potência que não
redime nem salva o objeto de sua criação, mas o lança a um destino maior, o da
recepção pelo leitor e os caminhos incertos daí decorrentes.
O crítico oscila entre se referir ao texto como um “romance-poema” ou um
“poema-romance”, mas não se furta de lhe atribuir um poder premonitório,
“futurista”, através de seu “anacronismo paradoxal”, e parece assim executar nova

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dobra no texto tavariano através do seu dispositivo épico e anti-épico: a cadeia de


referências do passado em franca subversão indicam uma “negrura absoluta”
(pessimista), marca desta “viagem à Índia, pátria arcaica de nós mesmos como Espírito,
entre fantasmas e vampiros de que esta cruel e tônica Viagem se alimenta” (2010a
p.15). A viagem a que se pretende o texto também tem seu itinerário psicanalítico,
digamos, por entre nossos sonhos e ilusões, de modo que, “nem a mais sublimada,
escapa ao seu olhar de anatomista dos nossos sonhos divinos” (2010a, p.15): para
Lourenço, “Bloom é um Édipo que não está disposto a vazar os olhos por um pecado
de que não é sujeito” (2010a, p.15). Não esqueçamos que o motivo principal da
viagem de Bloom é o fato de ter matado o pai, que por sua vez mandara matar a
amada do filho, porém “Bloom não desce aos infernos para resgatar, como o incauto
Orfeu, a Eurídice, que perdeu por culpa paterna” (2010a, p.15). Eduardo Lourenço
conclui sua rápida análise afirmando que

Uma Viagem à Índia é uma navegação parada e fulgurante da nossa


alma de pós-modernos, fugitivos e perseguidos, como um herói de
banda desenhada entre os recifes simétricos de um Poder sem rosto
que nem precisa existir para nos servir de Destino e uma universal
Ilha de Amores tarifados de onde desapareceu até a lembrança de
que alguma vez, como na história de Pedro e Inês (de Bloom e Mary),
Poder e Amor tivessem dormido na mesma cama. (LOURENÇO,
2010a, p.16)

Análise comparada entre o Primeiro Canto de Uma Viagem à Índia e de Os Lusíadas

O protagonista do longo poema narrativo de Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem


à Índia (2010), é Bloom, personagem francamente herdada da grande obra moderna
de James Joyce, Ulisses. Mas também se insere na tradição de viajantes portugueses
cujo ápice é representado pela epopeia quinhentista protagonizada por Vasco da
Gama, Os Lusíadas, de Luís de Camões, cuja primeira edição data de 1572. Aos moldes
do texto renascentista, a obra de Tavares também é divida em mil cento e duas
estrofes distribuídas em dez Cantos, porém não há rigidez quanto à métrica ou quanto
ao emprego de qualquer esquema rímico.
Uma viagem à Índia apresenta em seus primeiros cantos aspectos formais e
temáticos que configuram, subversivamente, aquilo que nas epopeias clássicas
corresponde à proposição do texto, à invocação dos deuses e à dedicatória do poeta.
Tais elementos, típicos das manifestações literárias do épico antigas e renascentistas,
aparecem no texto pós-moderno feitas uma série de “negações” regidas pelo advérbio

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“não”, a iniciar as nove primeiras estrofes do primeiro Canto. O que se nega é,


sobretudo, o caráter mítico contido nas narrativas basilares da cultura humana, aquilo
que, nelas, catapulta o herói histórico à sua duplicata “maravilhosa”, fazendo-o
transcender o plano do real e ganhar existência mítica. Assim, a obra de Tavares
referencia lugares sagrados, antigas tradições e civilizações, divindades do Ocidente e
do Oriente, que povoam o imaginário coletivo.
Exemplo das oposições e das referências intertextuais mobilizadas por Tavares,
na primeira estrofe o narrador/sujeito poético afirma que “Não falaremos do rochedo
sagrado / onde a cidade de Jerusalém foi construída / nem a pedra mais respeitada da
Antiga Grécia / situada em Delfos [...]” (2010b, p.25). O “rochedo” mencionado se
refere ao altar de sacrifícios utilizado por muitos profetas e circunscrito à Mesquita de
Omar, lugar sagrado para o Islã e para os judeus na Cidade Velha de Jerusalém. Para a
tradição judaica, também teria sido o lugar onde o Abraão preparou o sacrifício de seu
filho Isaac. A Cúpula da Rocha também marca a partida da Al Miraaj, a ascensão aos
céus do profeta Maomé, numa primeira referência a alguma forma de viagem
realizada no texto.
Encerrando a proposição (“Falaremos de uma viagem à Índia. / E do seu herói,
Bloom” [2010b, p. 28]) e a anti-invocação desenvolvida ao longo das nove estrofes
iniciais, a décima estrofe assinala o desejo do protagonista em ralação a sua viagem e
já adianta no que ela resultará:

Falaremos da hostilidade que Bloom,


o nosso herói,
revelou em relação ao passado,
levantando-se e partindo de Lisboa
numa viagem à Índia, em que procurou sabedoria
e esquecimento.
E falaremos do modo como na viagem
levou um segredo e o trouxe, depois, quase intacto. (TAVARES,
2010b, p.28)

A hostilidade em relação ao passado, a busca (infrutífera) por sabedoria e por


esquecimento e o fracasso em acessar as suas próprias questões íntimas esboçadas
por este segredo que, embora depois de retornar da viagem, segue intacto, são os
desdobramentos desta viagem que aparece sintetizada na pequena parábola narrada
nas estrofes treze e quatorze:

Mas atentemos nesta outra história (uma parábola?).


Da multidão sai um homem

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que corre em direcção


a uma linha imaginária.
Esse homem não está louco;
a multidão, sim, está louca.
O homem corre até encontrar um esgrimista

oferecem-lhe uma espada, ele combate e vence.


Tem agora pressa, um morto atrás de si
e na sua cabeça uma linha imaginária
para a qual se deve dirigir.
Sabe que deve correr sempre, sem parar,
mas não o suficiente para alcançar o objectivo.
Eis a história – acabou. (TAVARES, 2010b, p. 33)

Na décima nona estrofe de Os Lusíadas, há o início da ação, antecedendo ao


concílio dos deuses (que se estende pelas vinte estrofes seguintes):

Já no largo oceano navegavam,


As inquietantes ondas apartando;
Os ventos brandamente respiravam,
Das naus as velas côncavas inchando;
Da brancura escuma os mares se mostravam
Cobertos, onde as proas vão cortando
As marítimas águas consagradas,
Que de gado de Próteu são cartadas, (CAMÕES, 2006, p.75)

Em Uma viagem à Índia, há, na estrofe correspondente, a figuração do desejo


do narrador/sujeito poético de que Bloom “[tu] cresças e que crescendo / vás direto à
realidade / e não pares” (p.31), talvez numa oposição à narrativa mítica elaborada por
seus antepassados para, heroicamente, os glorificar. No texto tavariano, a ação fica
suspensa por um desejo, por uma espera, realizando um movimento antes de tudo
mental e linguístico pelas hipóteses que revestem a partida de Bloom. A ele não basta
conhecer “sete teorias” (2010b, p.31), haverá, pois, de fazer uma incursão pelas “sete
altas montanhas” (2010b, p.31).
Em Uma viagem à Índia, nas estrofes que compreende a discussão dos deuses
na epopeia camoniana, o narrador/sujeito poético procura abordar questões de
linguagem e de literatura, num exercício flagrantemente metadiscursivo. Ora, o texto
de Gonçalo M. Tavares é fortemente irônico, e é justamente sobre a ironia que o
narrador/sujeito poético discorrerá ao longo de três estrofes:

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[...]
Mas falaremos ainda, Bloom, da ironia que muito
aplicaremos.
De que forma a catástrofe
traz perturbações ao velho método
de aplicar uma distância ao mundo?

Por cima da catástrofe, de um ponto de vista aéreo.


o homem é capaz de ironizar,
porém, já debaixo da catástrofe,
debaixo dos seus escombros,
a ironia será a última a aparecer
depois da acção instintiva de defesa,
do desespero que ainda emite ordens e tentativas,
e do último grito que assinala o fracasso.

Só depois deste grito a ironia regressa,


dizendo, quando muito:
morro, é certo, mas mesmo assim
guardo uma elegante distancia em relação
à minha morte.
Eis, Bloom, em traços largos,
a apresentação da velha ironia
que por vezes utilizaremos para evitar
rir às gargalhadas, ou chorar. (TAVARES, 2010b, p.34)

Prosseguindo a reflexão metaliterária nas estrofes paralelas àquelas em que,


em Camões, os deuses debatem o destino da viagem lusa, o narrador/sujeito poético
parece problematizar, no plano linguístico aquilo que figura nas páginas de Os Lusíadas
no plano temático narrativo, colocando em cheque a eficiência da língua e a sabedoria
que dela emerge pela voz dos deuses, em versos como os que iniciam tal discussão na
vigésima sétima estrofe, nos quais se lê: “[...] Bloom, / fala com os homens de uma
cidade, / mas se desejas surpreender de uma vez a / sabedoria primária / passa uma
tarde ao lado de um animal / sem linguagem.” (2010b, p.34).
Na sequência, o texto passa a abordar o “destino”, valendo-se da “já referida
ironia contemporânea” (2010b, p.35), dando a entender que o destino que rege as
ações humanas e é, em Camões, decido pelos deuses, na verdade é fruto de uma
construção linguística, da produção ficcional de um verso que pode ser tomado com
verdade apenas arbitrariamente. Assim, “Claro ainda que se o Destino surgir em verso
obscuro / Ficaremos na mesma, podendo o avião levantar voo / ou ir ao fundo, que

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ambos os acontecimentos / confirmarão o estranho verso / que os anunciou.” (2010b,


p.35).
No texto tavariano, a discussão sobre a língua e a linguagem prossegue entre a
trigésima e a trigésima quinta estrofes, num questionamento sobre a possibilidade de
falar/narrar a história de Bloom. Na vigésima quinta estrofe, o protagonista contempla
um mapa estando ainda a planejar a sua viagem, enquanto a natureza a ele se
antecipa já anunciando tempestades. O destino é marcadamente negativo para Bloom,
e parece não ser traçado pelos deuses ou por qualquer poder sobrenatural, mas sim
pela natureza da qual o próprio homem faz parte. Na trigésima sexta estrofe, há a
narração de uma pequena parábola dentro do texto:

Mas ouçamos uma história (outra parábola?)


Um duro homem avança por uma rua
que termina numa floresta como antes na infância
avançara por uma floresta que terminava
numa rua.
Olha para todos os lados mas evita olhar para cima
pois alguém lhe dissera que os humanos
só participam nos acontecimentos
abaixo do nível dos olhos,
e esta expressão – abaixo do nível dos olhos –
torna-se tão forte como a velha expressão
– abaixo, ou acima, do nível do mar. (TAVARES, 2010b, p.37)

A história relaciona mais uma vez natureza e humanidade, numa narrativa


bastante lacunar e de traço surrealista. O narrador/sujeito poético chama atenção
para o olhar, cujo “nível” é comparado com o do mar. É inevitável a aproximação com
os “olhos de ressaca” da personagem machadiana Capitu. Pela voz do narrador/sujeito
poético, “[...] a referência natureza / é substituída pela referência humana” (2010b,
p.37), de modo que os “homens que antes agiam ao nível do mar / agem agora acima
ou abaixo do nível dos olhos” (2010b, p.37). O olhar acima do nível, ao nível ou abaixo
do nível dos olhos humanos é a referência para três formas distintas “de responder a
um único mundo” (2010b, p.38): “Saltar, argumentar, rastejar” (2010b, p.38).
Em Os Lusíadas, a ação inicia de fato na quadragésima segunda estrofe, quando
o concílio dos deuses é encerrado e o narrador retoma a saga lusitana situando a frota
de Vasco da Gama: “Cortava o mar a gente belicosa / Já lá da banda do Austro e do
Oriente, / Entre a costa Etiópica e a famosa / Ilha de São Lourenço [...].” (2006, p.81). A
frota se detém em Moçambique e tem contato com os primeiros nativos. É
interessante notar que Gonçalo Tavares, em seu poema, justamente na estrofe

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quarenta e dois, não cita lugares como o faz Camões, mas situa a narração no tempo
através do mês de março. “Entretanto, em Março / alguém acerta com força nas sete
vidas de um gato, / matando-o de uma única vez / e poupando assim seis outros
movimentos / intensos.” (2010b, p. 39).
É notável o desejo de um esvaziamento de ação no texto. Este desejo é
concretizado por algumas artimanhas tais como a circularidade do narrado; a
compressão do tempo e do espaço, tal como na imagem de atingir “as sete vidas de
um gato / matando-o de uma única vez” (2010b, p.39); e, na formulação de uma
espécie muito particular de ação, que pode ser observada na trigésima nona estrofe.
Nela, o sujeito poético estabelece um paralelo entre duas formas de “avanço”, ou seja,
de movimento: aquele que “um homem faz entre dois mundos afastados. / Ou o
avanço, apenas, entre o peito e a camisa, / na respiração que, sem dar um único passo,
/ percorre uma distância mais individual e não visível / que no final se expressa por
uma decisão.” (2010b, p. 38).
Assim, aproximar o movimento de cruzar mundos afastados e o movimento de
um suspiro, e concluir que o escasso e quase inerte movimento da respiração pode
antever uma decisão, é revelador deste tipo de ação e de movimento que se constrói
pelo seu oposto, pela não-ação. Uma epopeia, tradicionalmente, é composta por
peripécias e deslocamentos, elementos dos quais o texto tavariano está esvaziado. O
narrador/sujeito poético reafirma o propósito do texto e dá claro indício do tipo de
“aventura” ele, em sua quase totalidade, se ocupará:

Não falaremos então de um povo


que é demasiado e muito.
Falaremos nesta epopeia apenas de um homem: Bloom.
Bloom abriu os seus dois olhos contraditórios
(um que queria ver o novo, o outro dormir)
dirigindo o olhar para o calmo compartimento
onde acabara de entrar.
Bloom, nosso herói. Eis o que faz primeiro: observa. (TAVARES,
2010b, p.40)

Bloom é movido por esta não-ação/inação, em uma narrativa que, neste ponto,
da conta da sua respiração, das suas elucubrações, do movimento de seus olhos,
enquanto seu par hipotextual, “Vasco da Gama, o forte Capitão / Que a tamanhas
empresas se oferece, De soberbo e altivo coração, / A quem Fortuna sempre favorece”
(2006, p. 82), navega no Índico e se aventura na ilha de Moçambique.

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Bloom está na primeira etapa de sua viagem: está “em Londres, só e sem
dinheiro” (2010b, p. 40). Avista três homens, neste primeiro contato com os nativos
que o texto faz menção, agora numa aproximação mais explícita ao que acorre em Os
Lusíadas e o contato dos portugueses com os Mouros. Bloom nitidamente tem medo,
afinal “era individual e um” (2010b, p. 42).
Na quadragésima nona estrofe, há mais uma reflexão sobre o tempo e o
espaço: o tempo é comparado a uma “baleia absurda” sem corpo. O narrador/sujeito
poético fala em aniquilar os dias com um arpão, que para ele constitui um desejo
impossível. Parece-me apenas ser possível o aniquilamento dos dias pela ação,
justamente aquilo que praticamente não há no texto. A metáfora da “baleia sem
corpo” aludindo ao tempo é interessante porque revestida de contradições.
Bloom fala do ponto intermediário em que está sua viagem e ouve “os três
homens contarem infâncias, / repetindo cada um deles, duas vezes certos
acontecimentos / fúteis, o que muito [o] aborreceu [...].” (2010b, p. 43-44). Mesmo
“aborrecido” com os homens, Bloom aceita ser hospedado por eles. Na quinquagésima
nona estrofe, preparando-se para dormir na casa dos “homens redundantes”, surge o
pai destes três homens, que num paralelo ao texto camoniano pode ser entendido
como o régulo dos Mouros. O homem lhe oferece presentes que lhe parecem inúteis,
de modo que se lê na septuagésima sexta estrofe:

Os presentes incluíam coisas para a estética,


úteis mas feias, e coisas para a utilidade,
absolutamente inúteis mas belas.
Bloom sentia-se como alguém
que só tendo mão direita recebe uma luva
para a mão esquerda
Quase perfeito – disse Bloom,
enquanto o casado oferecido que tentara vestir
se rasgava em dois. (TAVARES, 2010b, p.47)

Bloom pressente que será traído pelos homens, percebendo a maldade nos
gestos, desconfiando da postura de seus anfitriões. Os quatro homens fazem planos
para roubar a mala que Bloom traz consigo. De modo surpreendente, Bloom reage e
bate nos homens, espancando o velho, e consegue fugir. Um dos filhos, ao arremessar
uma pedra em Bloom, acerta a cabeça do pai, matando-o. Os três filhos, em vingança,
chamam Thom C. para armar uma emboscada a Bloom. Três dias depois do ocorrido,
passada a excitação da luta, Bloom, caminhando pela cidade, encontra Thom C., com
quem ingenuamente simpatizou. Bloom pergunta ao estranho por “algum sítio / cujos

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hábitos fossem sedutores” (2010b, p. 60). O homem desconhecido o leva ao terceiro


andar de um prédio onde está a prostituta Maria E.
Os demais Cantos de Uma Viagem à Índia seguem um sistema de equivalências
semelhantes a deste primeiro Canto. Episódios centrais na epopeia camoniana, tais
como a chegada a Melinde, a narração da História de Portugal por Vasco da Gama, o
amor de Inês de Castro e D. Pedro, o Velho do Restelo, o Gigante Adamastor, a
chegada à Índia e a Ilha dos Amores terão seu correspondente paródico na obra de
Gonçalo M. Tavares em seus respectivos Cantos.

Referências

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Org.: Emanuel Paulo Ramos. Porto: Porto Editora, 2006.
LOURENÇO, Eduardo. Uma viagem no coração do caos. Prefácio à Uma viagem à Índia:
melancolia contemporânea (um itinerário), de Gonçalo M. Tavares. São Paulo:
Leya, 2010a.
TAVARES, Gonçalo M. Uma viagem à Índia. São Paulo: Leya, 2010b.

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CUIDADO! NÃO ROTULE! SIGA ADIANTE!


UMA PEDAGOGIA CULTURAL DE AUTOAJUDA EM FAN PAGES DO FACEBOOK

Lauren Escoto Moreira1


Angela Dillmann Nunes Bicca2

As publicações de autoajuda têm apresentado fórmulas que prometem sucesso


pessoal e profissional, o que inclui, por exemplo, a realização profissional, a conquista
de bens materiais, o aumento da autoestima e da autoconfiança, o encontro de um
grande amor e a cura de doenças. Em geral, esses textos se apresentam como um
conjunto de orientações práticas e breves que apontam os modos como alcançar
algum objetivo à medida que um indivíduo consegue colocar em ação um conjunto de
preceitos a seguir e/ou receitas práticas a serem prontamente executadas que lhe
exigem mudar a si mesmo indicando, inclusive, formas específicas de agir. A autoajuda
teria se multiplicado criando o que poderia ser compreendido como um manual de
sobrevivência para os indivíduos contemporâneos, um guia que dispensa as discussões
de suas teses apresentando-as como verdades. Criam-se verdadeiras receitas para
combater a angústia, a falta de confiança em si e nos outros, o medo, a incerteza, a
insegurança que resultariam em obstáculos para uma vida feliz.
Segundo Brunelli (2011), é frequente que as obras de autoajuda apresentem
trechos que podem ser destacados de texto maiores e usados isoladamente em outros
contextos. Além disso, tem sido recorrente a criação e a circulação de textos curtos
que guardam grande semelhança com os trechos retirados de livros de autoajuda.
Nesses dois casos, pode-se dizer que os textos possuem características de aforismos,
por isso a autora (idem) fala na aforização do discurso de autoajuda como uma
importante tendência contemporânea.
Isso pode ocorrer quando um pequeno texto indica uma ação a ser realizada
como, por exemplo, faça, cuide, ouse, arrisque, não desista etc., mas também pode
ocorrer quando o texto valoriza formas de ser e de agir levando cada indivíduo a inferir
que é o responsável pela conquista de seus objetivos. Tais textos funcionam como uma

1
Mestranda em Educação, Instituto Federal Sul-Rio-Grandense.
E-mail: lalauzinhaster@hotmail.com
2
Doutora em Educação, Instituto Federal Sul-Rio-Grandense.
E-mail: angela.bicca@hotmail.com

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Pedagogia Cultural produzida por textos que não se afinam com as formas lineares de
escrita e leitura por que podem ser lidos/escritos sem que exista uma ordem
necessária. Aliás, muitos desses textos são postados em páginas de mídias sociais para
serem lidos e comentados de forma quase aleatória por internautas que “aprendem”
que são os grandes responsáveis por si mesmos.
Destacamos que a noção de Pedagogias Culturais (KELLNER, 2001; SILVA, 1999;
STEINBERG, 1997) possibilita discutir os modos como os artefatos midiáticos, na
contemporaneidade, têm exercido uma função pedagógica. As Pedagogias Culturais
apontam, dessa forma, para uma ampliação do que se compreendia como espaços
formativos na área de Educação. Aliás, uma ampliação que tem relação íntima com a
articulação entre o campo dos Estudos Culturais e a área de Educação e para a qual
não faz sentido uma dicotomia que colocava o conhecimento acadêmico e escolar de
um lado e as formas não acadêmicas de saber de outro.

É dessa perspectiva que os Estudos Culturais analisam instâncias,


instituições e processos culturais aparentemente tão diversos quanto
as exibições de museus, filmes, livros de ficção, turismo, ciência,
televisão, publicidade, medicina, artes visuais, música... Ao abordá-
los, todos, como processos culturais orientados por relações sociais
assimétricas, a perspectiva dos Estudos Culturais efetua uma espécie
de equivalência entre essas diferentes formas culturais (SILVA, 1999,
p.139).

Portanto, buscamos discutir, neste texto, os modos como textos curtos que se
assemelham às produções de autoajuda estariam “ensinando” os indivíduos
contemporâneos a viver mais e melhor à medida que enfatizam a dimensão de
responsabilidade que cada um teria por sua própria vida, situação que tem
consonância com a individualidade mais valorizada pela racionalidade neoliberal.

Procedimento de pesquisa

Para sistematizar das frases curtas postas em circulação em fan pages do


Facebook acessamos a página da mídia social Facebook (https://www.facebook.com)
no dia 31 de março de 2015, data em que digitamos no mecanismo de busca de
páginas da mesma mídia social o termo “frases”. O referido mecanismo de busca
selecionou uma longa listagem de páginas a partir desse termo. Como seria impossível
abordar na pesquisa um material tão vasto, adotamos como critério o número total de

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curtidas3 registradas pelos/as usuários/as das páginas. Considerando que algumas


páginas possuíam um número de curtidas muitas vezes superior a tantas outras
estabelecemos o número de 900.000 curtidas como valor mínimo para inclusão da fan
page no corpus analítico.
Outro critério adotado foi o de desconsiderar as páginas pessoais, páginas de
grupos fechados, páginas dedicadas a um/a autor/a, páginas dedicadas a uma temática
específica e páginas que cujo nome não fosse escrito em língua portuguesa. Esse
recorte garantiu que somente páginas com acesso livre a qualquer usuário/a fizesse
parte da pesquisa. Esse procedimento levou a localização das fan Page intituladas
Frases Curtas net4 com número total de 982.256 curtidas; Frases Curtas5 com número
total de 3.335.646 curtidas e Frases para o Face6 com total de 3.685.548 curtidas.
Após a definição de quais seriam as páginas que comporiam o corpus analítico,
adotamos o critério de examinar postagens realizadas entre os dias 01 a 31 de março
de 2015. A fim de evitar que exista alteração posterior no que havia em cada uma das
páginas após a data de 31 de março de 2015 salvei todas as postagens em arquivo
gerado de software Word, suporte de registro que independe de conexão da Internet.
Com esse trabalho obtivemos um total de 28 postagens. Dentre as quais localizamos
aquelas que se valem de expressões indicativas de ações imediatas e que configurem
um tipo de indivíduo que tem se produzido no mundo contemporâneo.
Para desenvolver a discussão valemo-nos do que Hall (1997) apontou ser a
ligação entre cultura e linguagem através dos modos como os significados são
partilhados por indivíduos pertencentes a uma mesma cultura. A linguagem funciona
como um sistema de representação que possibilita aos indivíduos o partilhamento de
valores, ideias, sentimentos, emoções, conceitos e saberes. A representação, portanto,
está ligada aos modos como as pessoas conferem, coletivamente, sentido para as
coisas do mundo. Essa compreensão de representação possui forte ligação com a
noção de discurso que o compreende como “práticas que formam sistematicamente
os objetos de que falam” (FOUCAULT, 1997, p, 56). Nessa perspectiva, a representação
não compreende a possibilidade de as imagens e as palavras reflitam o mundo, ela
aponta construção discursiva dos entes e os modos como os significados são sempre
negociados e contestados nas relações de saber-poder.

4
https://www.facebook.com/frasescurtasnet?fref=ts
5
https://www.facebook.com/frasescurtas?fref=ts
6
https://www.facebook.com/frasesparafaceoficial?fref=ts)

Dialogue Under Occupation 401


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A pedagogia cultural da autoajuda e a produção do indivíduo contemporâneo

Inicio a discussão com postagens que apresentam diretamente ações a serem


realizadas e que configuram a ação sobre um indivíduo.

Figura 17

Essa mensagem apresenta uma ordem, um ditame, um imperativo que coloca


o/a leitor/a do texto na obrigação de atentar para si mesmo, responsabilizando-se pela
própria vida sem que tenha possibilidade de contestação. Ao fazer isso, a frase pode
ser compreendida, também, como uma indicação para que o/a leitor/a não se
preocupe, em primeiro lugar, com a vida dos outros.
Ao mesmo tempo, a faixa preta idêntica à que é usada em remédios
controlados, onde estão escritas as palavras de mando, reforça a ideia de alerta, de
recomendação obrigatória e de prescrição a ser sempre observada.
Outra postagem coletada na pesquisa coloca o indivíduo na obrigação de agir.

Figura 28

Assim como a anterior, essa postagem inicia com uma indagação questionando
o/a leitor/a sobre o que ele/a deseja, ambiciona ou tem vontade. Em segundo

7
Disponível em: <https://plus.google.com/+FrasescurtasNet1> Acesso em 31 mar. 2015.
8
Disponível em: <https://plus.google.com/+FrasescurtasNet1> Acesso em 31 mar. 2015.

Dialogue Under Occupation 402


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momento, afirma que qualquer conquista é o resultado de atitudes a serem tomadas


por aquele indivíduo, e por mais ninguém, em relação ao referido desejo.
A afirmação aponta que esperar pelos outros ou adiar a busca da realização do
que se almeja é como querer que as realizações sejam resultado da sorte ou algum
presente a ser recebido. O jogo de palavras remonta o chavão muito usado
popularmente “nada cai do céu” a não ser o que é resultado de fenômenos naturais,
tal como a chuva.
A postagem apresentada a seguir fala sobre atitudes que o indivíduo deve
tomar na trajetória da vida.

Figura 39

Por isso, a indicação de ousar, arriscar, não desistir do que almeja e valorizar
aquelas pessoas que lhe amam. É dessa forma que se deve agir para que as pessoas
que lhe são importantes sintam-se valorizadas e respeitadas. O texto aponta, portanto,
que a felicidade pode ser plenamente alcançada no momento em que o indivíduo
separa o que é indispensável de todo o resto.
Uma mensagem que tem muito em comum com o que aparece na postagem
apresentada a seguir.

Figura 410

9
Disponível em: <https://plus.google.com/+FrasescurtasNet1> Acesso em 31 mar. 2015.
10
Disponível em: <https://plus.google.com/+FrasescurtasNet1> Acesso em 31 mar. 2015.

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Essa postagem indica que a vida exige reconhecer os erros e recomeçar tantas
vezes quantas forem necessárias. Por isso a mensagem apresentada decorre do
entendimento de que é necessário lutar mediante os conflitos que surgem na vida.
Obstáculos que impediram alguém de ser feliz em algum momento poderão otimizar
seus objetivos de sucesso se forem tomados como aprendizagem, experiência de vida
ou sinalizadores do melhor caminho a seguir.
As postagens são atravessadas pelo discurso da autoajuda à medida que
afirmam a responsabilidade de cada indivíduo por si mesmo, um indivíduo que age
visando a sua própria felicidade, que persiste em seus propósitos de sucesso e que não
se preocupa em demasia com os outros.
Os discursos de autoajuda estariam, portanto, estreitamente relacionados a
uma forma de individualização voltada para a obtenção da prosperidade, do sucesso,
do crescimento pessoal e profissional. Ou ainda, um indivíduo que é o maior
responsável por todas as situações e circunstâncias em que se encontra, que tem de
ser proativo, que tem a si mesmo como uma forma de capital (capital humano) e que
por isso necessita acionar suas habilidades e competências individuais. Os discursos de
autoajuda estariam, dessa forma, requerendo uma forma de individualidade bastante
valorizada pelas sociedades neoliberais, uma individualidade produzida em torno da
possibilidade de que cada um faça investimentos sobre si mesmo.
Aliás, algo que só foi possível com a articulação de tecnologias de governo de si
e dos outros que vem, desde o surgimento das sociedades ocidentais modernas,
possibilitando formas de identificação permanentes que consolidam o que chamamos
de “eu”.
Como explicou Diaz (2012), o “eu” que os discursos da autoajuda presumem
existir não é um dado prévio, é o resultado das tecnologias de governo que se
desenvolveram como uma expressão da racionalidade de governamento liberal e que
mais tarde muda sua ênfase com o desenvolvimento das formas de governamento
neoliberal. Uma forma de jogo de identificação que, inicialmente, significou a
construção da identidade moderna orientada para que os indivíduos reconheçam a si
mesmos como individualidades e que precisam cada vez de menos controle, vigilância
e regulação externos e que, desde meados do século XX, tem sido levada a suas mais
altas expressões para colocar no centro os indivíduos que mais assumem o governo de
si mesmos.
Ao desenvolver a análise dos modos como se produziu o que chamamos de
indivíduo moderno, Foucault (1987) mostrou em detalhes como essa forma de
individualidade está relacionada aos mecanismos disciplinares que apareceram,

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primeiramente nas escolas, hospitais, quartéis, prisões e hospitais entre os séculos XVI
e XVII.
São mecanismos que produzem a docilidade dos corpos à medida que se valem
das distribuições ou do princípio do quadriculamento que dispõe “cada indivíduo no
seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo” (FOUCAULT, 1987, p.123); da regulação do
tempo empregado na produção de qualquer tarefa evitando-se qualquer forma de
ociosidade; da decomposição de cada atividade em frações que devem ser executadas
de forma a garantir a qualidade do todo; da composição das forças empregadas para
que os corpos sejam eficientes enquanto partes de um todo complexo, assim como se
fosse uma engrenagem que precisa funcionar bem para que a máquina tenha a
eficácia esperada. “O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o
esquadrinha, o desarticula e o recompõe (FOUCAULT, 1987, p.119)”.
Os mecanismos disciplinares, com essas estratégias, possibilitaram que uma
forma de poder fosse aplicada “ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que
obedece, responde, se torna hábil cujas forças se multiplicam” (FOUCAULT, 1987
p.117). Um poder ininterrupto que visa gerir, controlar, reparar, utilizar, transformar,
hierarquizar e aperfeiçoar cada corpo. Ou seja, que visa aproximar cada indivíduo ao
desempenho considerado ótimo, ou ainda, que visa normalizar.
A disciplina ao possibilitar essa forma de ação sobre o corpo produz uma forma
de individualidade que é “celular (pelo jogo da repartição espacial), é orgânica (pela
codificação das atividades), é genética (pela acumulação do tempo), é combinatória
(pela composição das forças). E, para tanto, utiliza quatro grandes técnicas; constrói
quadros; prescreve manobras; impõe exercícios; enfim, para realizar a combinação das
forças, organiza ‘táticas’. A tática, arte de construir, com os corpos localizados,
atividades codificadas e as aptidões formadas, aparelhos em que o produto das
diferentes forças se encontra majorado por sua combinação calculada é sem dúvida a
forma mais elevada da prática disciplinar” (FOUCAULT, 1987, p.141).
Porém, as disciplinas não ficaram restritas ao âmbito das instituições de
sequestro, seus mecanismos foram expandidos para todo o corpo social. Dessa foram,
criou-se uma rede de dispositivos que percorria toda a sociedade, como mostrou
Foucault (1987). Isso teria ocorrido com a explosão demográfica que se iniciou no
século XVIII, na Europa. Dessa forma, o poder disciplinar teria passado a gerir, além do
corpo de cada indivíduo, a população.
Dessa forma, a individualidade moderna formou-se conectada não apenas com
a ação das disciplinas, mas também com a possibilidade de governar a população, ou
seja, conduzir a conduta dos indivíduos.

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Dessa forma, foi possível que os Estados que existiam na Europa nos séculos
XVIII e XIX atentassem para a criação de condições infraestruturais com vistas a
permitir a autorregulação dos processos sociais, econômicos e pessoais. Segundo
Foucault (2008a, p. 87), o liberalismo se propõe a “produzir o necessário para tornar
você livre” ou agir “de tal modo que você tenha a liberdade de ser livre”, não significa,
portanto, que essa forma de governar seria mais tolerante e que outras formas seriam
mais autoritárias.
Como explicou Marín-Diaz emergiu a

[...] racionalidade liberal na qual se produziram modos de existência


que levaram os indivíduos e coletivos a se tornarem sujeitos desses
modos concretos de ser e estar no mundo: sujeitos autorregulados
nos modos que coincidem desejos, esperanças, decisões,
necessidades e estilos de vida com objetivos governamentais
(MARÍN-DIAZ, 2012, p. 110).

Gerir a população implica administrar processos tais como a natalidade, a


morbidade, a mortalidade, a incidência de doenças epidêmicas e endêmicas, assim
como criar condições de segurança pública, promover a previdência social, atentar
para a habitação, o saneamento básico e esgoto, entre outros, sempre a um político e
econômico mínimo. O que passa a vigorar, segundo Foucault (2008a), diz respeito a
governar não mais a partir do modelo da família em que se gerenciava cada um dos
seus membros, mas administrar fenômenos que são irredutíveis ao modelo da família
e que apresentam regularidades que só as estatísticas fazem aparecer. Isso significa
que os estados modernos se tornaram cada vez mais governamentalizados.
Porém, a partir de meados do século XX, uma nova racionalidade de governo
emerge e ganha força: a que foi se instituiu nos Estados Unidos da América sob
influência das análises oriundas da Escola de Chicago nos anos 1960 que tem a Teoria
do Capital Humano como uma de suas expressões mais significativas.
Gadelha resume a governamentalidade neoliberal dizendo que

[...] trata-se de uma governamentalidade que busca programar


estrategicamente as atividades e os comportamentos dos indivíduos;
trata-se, em última instância, de um tipo de governamentalidade que
busca programá-los e controlá-los em suas formas de agir, de sentir,
de pensar e de situar-se diante de si mesmos, da vida que levam e do
mundo em que vivem, através de determinados processos e políticas
de subjetivação: novas tecnologias gerenciais no campo da
administração (management), práticas e saberes psicológicos

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voltados à dinâmica e à gestão de grupos e das organizações,


propaganda, publicidade, marketing, branding, literatura de
autoajuda etc. (GADELHA, 2009, p. 151).

A governamentalidade neoliberal norteamericana se produziu expandindo o


domínio de ação das análises oriundas da economia para o que, até então, era
considerado exterior à economia, a saber, as relações sociais e os comportamentos
dos indivíduos. Nesse contexto, o neoliberalismo produz o indivíduo como um
empresário de si mesmo, como o nomeia Foucaut (2008b). De certa forma o
neoliberalismo retoma o homo economicus já conhecido nas análises econômicas
anteriores, mas não o toma como homem da troca e sim como homem da empresa e
da produção, como aquele que toma ele próprio como o seu capital. A Teoria do
Capital Humano, dessa foram, possibilita usar os elementos de análise do jogo
econômico para pensar, em especial, o comportamento humano. Sob essa ótica, o
indivíduo investe sobre si mesmo como se fosse um empresário que busca obter
ganhos, movimenta investimentos, formaliza a competição (FOUCAULT, 2008b). Assim
cada um é transformado em sujeito-microempresa, disposto a comercializar todas as
relações humanas à medida que as inscreve em relações de concorrência.
Nesse contexto os processos educativos são vitais por transformarem os
indivíduos em empreendedores de si mesmos que competem acirradamente entre si a
fim de se valorizarem no mercado. Busca-se produzir, como explicou Gadelha (2009),
indivíduos que se reconhecem como livres e como os únicos responsáveis pela sua
trajetória de vida, capazes de viver em risco permanente em virtude de suas escolhas,
competitivos, proativos, inventivos, flexíveis, adaptativos, capazes de aprender
sozinhos e empreendedores. Enfim, trata-se de um indivíduo eficaz em agir sobre si
mesmo.

Para finalizar

Regulações de conduta social através da literatura de autoajuda têm


penetrado, incondicionalmente, a vida dos indivíduos neste século XXI. Considerando
que cada um constitui seu maior problema, o único responsável por seus atos, a
autoajuda tem recomendado a cada um conhecer-se, comandar-se, ser autoconfiante
para que chegue à plenitude, serenidade e à sublimação dos conflitos que surgem ao
longo da vida.
Por esse motivo muitas pessoas recorrem aos textos de autoajuda como uma
alternativa, uma solução rápida ou uma resposta imediata para as situações da vida

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cotidiana. Textos esses que tem proliferado nas redes sociais, especialmente no
Facebook, reforçando o desenvolvimento do individualismo contemporâneo.

Referências

BRUNELLI, Anna Flora. Aforização no discurso de autoajuda. Revista do GEL, São Paulo,
v. 8, n. 1, p. 125-137, 2011.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. Curso dado no Collège de France
(1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008a.
______. Nascimento da Biopolítica. Curso dado no Collège de France (1978-1979). São
Paulo: Martins Fontes, 2008b.
______. Vigiar e Punir: História da Violência nas Prisões. Petrópolis: Vozes, 1987.
______. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
GADELHA, Sylvio. Biopolítica, governamentalidade e educação. Belo Horizonte:
Autêntica, 2009.
HALL, Stuart. The work of representation. In: HALL, Stuart. Representation. Cultural
representations and signifying practices. London: Open University, 1997. p. 233-
290.
KELLNER, D. A cultura da mídia. Estudos culturais: identidade e política entre o
moderno e o pós-moderno. Baurú: EDUSC, 2001.
MARIN-DIAZ, Dora Lilia. Autoajuda e educação: uma genealogia das antropotécnicas
contemporâneas. 2012. 491fls. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.
SILVA, Tomaz T. da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo.
Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
STEINBERG, Shirley. Kindercultura: a construção da infância pelas grandes corporações.
In: SILVA, Luis H. da; AZEVEDO, José C. de e SANTOS, Edmilson S. dos (Orgs).
Identidade social e a construção do conhecimento. Porto Alegre: SMED, 1997, p.
98-145.

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THE BEST OF YOUNG BRAZILIAN NOVELISTS:


APOIO À INTERNACIONALIZAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA

Lilia Baranski Feres1


Valéria Silveira Brisolara2

A partir do momento em que informações concebidas em determinada língua e


cultura são transportadas para língua e cultura diferentes, uma atividade transcultural
se estabelece. Quando um romance escrito em francês é traduzido para o português,
fronteiras linguísticas e culturais são trespassadas. Através dessas reescrituras,
conhecimentos de uma cultura – seja ela dominante/central ou não – rompem
barreiras e ganham espaço. A tradução é, portanto, uma atividade que ocorre entre
fronteiras, viabilizando à literatura seu caráter transnacional e transcultural ao passo
que também permite que o leitor se depare com as distintas identidades culturais
(HALL, 2005) representadas nas literaturas.
No entanto, pensando sobre a participação do Brasil nessas trocas de âmbito
literário, percebemos que muito embora o português seja a sexta língua mais falada
globalmente, não pertence aos idiomas mais traduzidos para o inglês. As obras dos
países ditos de ‘terceiro mundo’ representam 1% ou 2% das traduções dos países ditos
de ‘primeiro mundo’ e 60% das publicações ficcionais são traduções do inglês; dentre
os best-sellers de ficção, há um autor nacional para dois autores estrangeiros (MELLO e
VOLLET, 2000). No ano de 1990, apenas 2,4% dos livros britânicos publicados e
somente 2,9% dos títulos americanos foram traduções.
As discrepâncias apontadas pelas estatísticas corroboram o receio de Hall
(1997, p.4) em relação a uma possível “homogeneização cultural”, embora saibamos
que a forma como cada local reage ao global é única e imprevisível, resultando em
dinâmicas heterogêneas. Ademais, Hall (1997, p.4) também nos lembra que a
distribuição da cultura não é igualitária. Está sempre em jogo o que o autor denomina
“geometria do poder” (HALL, 1997, p.4), que determina o quê, como, quando e quanto
será enviado e recebido nas trocas interculturais, estabelecendo, assim, hegemonias e
subordinações, interesses e omissões, dominações e exclusões.

1
Mestranda em Letras pelo UniRitter com apoio Fapergs/Capes. E-mail: liliabaranski@hotmail.com
2
Professora do Programa de Pós-graduação em Letras do UniRitter.
E-mail: valeria_brisolara@uniritter.edu.br

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Países com maiores índices no âmbito das traduções também revelam dados
interessantes: há uma predominância de traduções de títulos em língua inglesa. Na
França, em 1985, 71% das versões provinham do inglês enquanto que na Alemanha,
em 1990, aproximadamente 65% eram oriundas da língua inglesa (VENUTI, 1995,
p.13,14). De acordo com um estudo realizado para o relatório mundial na UNESCO
sobre diversidade cultural (2009), 75% do total de livros cadastrados da ferramenta
Index Translationum (no período 1979-2007) foram traduzidos de apenas três línguas:
inglês, francês e alemão. Como língua-fonte, o inglês sozinho é responsável por 55%
dos livros traduzidos em todos os gêneros.
Outra estatística reveladora no tocante à assimetria desse tipo de troca cultural
é que das cerca de oitocentas línguas identificadas no Index Translationum, vinte (das
quais dezesseis tratam-se de línguas europeias) constituem-se como língua-fonte de
96% dos livros traduzidos. A mesma disparidade pode ser observada no que se refere
às línguas-alvo: 50% dos livros registrados foram traduzidos para apenas cinco idiomas:
alemão, espanhol, francês, inglês e japonês (BRISSET, 2011). Dados como os
apresentados configuram evidências contundentes: o fato de que “a cultura dominada
traduz incomparavelmente mais a cultura hegemônica do que vice-versa” (MELLO e
VOLLET, 2000, p.6). Tais informações vão ao encontro da teorização de Venuti (1995),
segundo o qual, editoras inglesas e americanas participam de feiras internacionais de
livros e lá vendem os direitos de tradução de diversos títulos em língua inglesa,
principalmente best-sellers. A contrapartida, entretanto, não é equilibrada. O mercado
americano “raramente compra os direitos para publicar traduções em língua inglesa de
livros estrangeiros”3 (VENUTI, 1995, p.14).
A tradução se apresenta, portanto, como um fenômeno (entre outros)
prevalecente de atuação internacional nos mercados literário e editorial. A demanda
por traduções cresceu exorbitantemente com o advento da globalização, entretanto,
de modo paradoxal, mascara a diversidade cultural em virtude da hierarquia
estabelecida pelos idiomas que participam dessa dinâmica. Um dos efeitos dessa
equação desigual é que tanto a língua quanto a cultura desses países chamados de
‘terceiro mundo’ são rigorosamente afetadas pelas línguas e culturas dos países
considerados de ‘primeiro mundo’. Portanto, dentro da dinâmica de trocas
interculturais, o Brasil apresenta-se como um país que mais importa do que exporta
cultura, no que tange à literatura.

3
Tradução das autoras. Citação original: “rarely buy the rights to publish English-language translations
of foreign books” (VENUTI, 1995, p.14).

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Em razão de problemáticas como as anteriormente citadas (entre muitas


outras, evidentemente), faz-se mister abordar questões de tradução sob outro olhar. A
atividade tradutória sempre foi e sempre será complexa, mas antigamente muito
dessa complexidade era ignorada, tanto no sentido de ser desconhecida quanto no
sentido de ser deixada de lado intencionalmente. Hoje, porém, é imprescindível que a
tradução seja encarada como o fenômeno intricado que é, exigindo olhares que
atentem para as relações que se estabelecem entre os diversos sistemas que
compõem os grandes sistemas literário e cultural, levando em conta, portanto,
aspectos sociológicos, políticos e ideológicos que atuam em tempo e espaços
específicos.
Este cenário complexo de problemas enfrentados nos campos literário e
editorial, que se materializa nesta disparidade entre países hegemônicos e não
hegemônicos, coaduna-se com iniciativas do governo federal que visam ao incremento
das trocas interculturais entre o Brasil e o resto do mundo. Essas iniciativas vão ao
encontro da constatação de que o Brasil tem vivenciado um acréscimo de notoriedade
no palco internacional (FAVERI, 2015). De acordo com dados da Câmara Brasileira do
Livro, a venda de direitos autorais para países estrangeiros teve um acréscimo de US$
495 mil em 2010 para US$ 1,2 milhão em 2012 (FERNANDES e FERNANDES, 2015,
p.87).
Nos primeiros anos da década de 90, após ter participado da feira de Frankfurt,
nosso país teria observado um aumento substancial no número de traduções de suas
obras (FAVERI, 2015, p.2). É bem provável que novas iniciativas governamentais
almejem ampliar os resultados obtidos nos anos 90. É o caso do Programa de Apoio à
Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros no Exterior, inserido no Programa de
Internacionalização do Livro e da Literatura Brasileira. Tanto essas medidas quanto a
publicação da revista literária Granta (2012) intitulada The best of young Brazilian
novelists vêm ao encontro dessa parca participação brasileira no mercado literário
mundial, surgindo como resposta ao impasse dessa desigualdade no fluxo de trocas
culturais da atualidade.
O Programa de Internacionalização do Livro e da Literatura Brasileira, de
responsabilidade da Fundação Biblioteca Nacional, juntamente com o Ministério da
Cultura, consiste em uma agenda política governamental cujo próprio nome explicita
seu objetivo primordial: disseminar mundo afora a literatura criada por escritores
brasileiros. O programa se sustenta sobre alguns pilares, que na realidade constituem
iniciativas menores e mais direcionadas a pontos específicos do programa maior. Entre
eles estão: o Programa de Apoio à Publicação de Autores Brasileiros na Comunidade

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dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que consiste em bolsas para editoras dos
países-membro da CPLP no valor de até R$ 6 mil concedidas a interessados em adaptar
textos brasileiros para as características do português falado em Portugal, em países
africanos onde o português é a língua oficial (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau,
Moçambique, São Tomé e Príncipe) e no Timor Leste; o Programa de Residência de
Tradutores Estrangeiros no Brasil, através do qual tradutores estrangeiros que estejam
trabalhando na tradução de livros brasileiros podem se candidatar a bolsas no valor de
até R$ 15 mil, para residência de até cinco semanas4; o Programa de Intercâmbio de
Autores Brasileiros no Exterior, que contempla editoras estrangeiras que promovam a
literatura brasileira por meio de palestras, sessões de autógrafos e entrevistas – o
edital estima pagamento de bolsas de até US$ 3 mil; e o Programa de Apoio à
Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros no Exterior.
A última ação governamental mencionada, que está em foco neste trabalho, foi
implementada pela Fundação Biblioteca Nacional, juntamente com o Ministério da
Cultura, com o objetivo de “difundir a cultura e a literatura brasileiras no exterior”
através do fornecimento de apoio financeiro a editoras estrangeiras que têm interesse
em traduzir (para qualquer idioma), publicar e distribuir (em forma de livro impresso
ou digital), no exterior, obras de escritores brasileiros que tenham sido previamente
publicadas em português no Brasil. Em virtude de uma parceria feita com o Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o programa pode apoiar
tanto projetos de obras técnicas ou científicas nas áreas de Ciências Humanas e Sociais
Aplicadas, Ciências da Vida, Engenharias, Ciências Exatas e da Terra quanto no campo
da literatura, em especial os gêneros romance, conto, poesia, crônica, infantil e/ou
juvenil, teatro, obra de referência, ensaio literário, ensaio de ciências sociais, ensaio
histórico, ensaio de vulgarização científica e antologias de poemas e contos, integrais
ou em parte. O auxílio pode ser concedido a propostas de traduções inéditas, novas
traduções ou reedições de obras já traduzidas no país e que tenham se esgotado ou
estejam fora de mercado por no mínimo três anos. Há também a previsão de
lançamentos de editais específicos da Fundação Biblioteca Nacional para regiões e/ou
idiomas particulares e efemérides.

4
Na primeira parte, os tradutores realizam uma imersão na cultura brasileira que supra as necessidades
específicas da obra a ser traduzida. Na segunda parte, os tradutores participam de oficinas e palestras
nas comunidades em que estiverem alojados e, também, em cursos ministrados em centros de estudos
de tradução que sejam parceiros do programa (como o da Universidade Federal Fluminense (UFF), Casa
Guilherme de Almeida, da Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo, e a Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC)).

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Foram concedidas 770 bolsas de apoio à tradução no período de 1991 a 2014


(que inclui a época quando o programa não era tão expressivo e não operava sob a
atual alcunha), sendo que a iniciativa foi responsável pela concessão de 543 bolsas
(70% da totalidade) entre os anos de 2011 e 2014 (no ano de 2011, o programa
anteriormente em vigor foi reformulado, renomeado e relançado), segundo dados
fornecidos pelo Ministério da Cultura. A estimativa de investimento é de R$ 76 milhões
que se estenderá até o ano de 2020. As bolsas concedidas às editoras internacionais
podem chegar a R$ 8 mil. Com base no fato de que 70% dos incentivos concentram-se
nos últimos quatro anos de auxílio federal, percebe-se que esta medida do governo
federal representou um incremento significativo no número de obras brasileiras a
serem traduzidas para outros idiomas. Somente através do programa da Fundação
Biblioteca Nacional, são 290 escritores brasileiros com publicações em 47 países.
Outra forma encontrada pelo Ministério da Cultura de intensificar a presença
do Brasil no exterior foi através de uma maior participação de editoras nacionais em
eventos internacionais. A Fundação Biblioteca Nacional investiu na elaboração de uma
agenda (que também se estenderá até 2020) de inserção de nosso país em uma série
de eventos literários de renome mundial: Feira do Livro de Frankfurt, em 1994 e 2013
(um dos dois únicos países a ser homenageado duas vezes; o outro é a China); Bienal
Internacional do Livro do Rio de Janeiro, em 2011; Feira do Livro de Bogotá (como
convidado de honra), em 2012; Feira do Livro de Bolonha, em 2014; Feira Internacional do
Livro de Gotemburgo, em 2014; Feira do Livro de Caracas, em 2014 ; Salão do Livro de
Paris, em 2015; Feira do Livro de Londres, em 2016; Feira do Livro de Nova York, em
2017; entre outros ainda não divulgados. Complementarmente, o Centro Internacional
do Livro também participa, em associação com entidades do ramo, como a Câmara
Brasileira do Livro (CBL), dos principais eventos da área, com o objetivo de intensificar
a presença do Brasil nos anos subsequentes às homenagens.
Todas essas medidas visam a despertar maior interesse das editoras
internacionais pela literatura produzida no Brasil. E elas parecem estar de fato surtindo
efeito, já que, segundo publicações de 2015 do Ministério da Cultura, percebeu-se
uma alteração dos locais de chegada das traduções nos últimos dez anos. Leitores da
França, Itália e Argentina representavam (e continuam sendo importantes
importadores de nossas obras) os principais consumidores de literatura brasileira
traduzida. Porém, a partir de 2010, a Alemanha passou a investir mais na tradução de
obras brasileiras e hoje representa o maior consumidor de nossa literatura.
Dentre as obras brasileiras traduzidas no Reino Unido em 2012 por meio de
edital do Programa de Apoio à Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros no

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Exterior está a edição 121 da revista Granta, cujo título é The best of young Brazilian
novelists. A revista em questão foi criada em 1889 por alunos da Universidade de
Cambridge e nomeada Granta em homenagem ao rio que cruza a cidade.
Originalmente, servia como veículo de notícias e chistes estudantis, mas quase cem
anos após sua criação (em 1979), sofreu uma grande reformulação e ganhou formato
de revista literária trimestral. Um pouco mais tarde, foram lançados os livros com selo
Granta, que rapidamente adquiriram status e prestígio, contribuindo para a sua
consolidação como editora literária independente. As edições da revista com os títulos
do tipo “Os melhores jovens escritores [...]”, publicadas a cada dez anos, se propõem a
apresentar os mais importantes nomes de cada geração. Foram lançados títulos
referentes aos melhores jovens escritores da Inglaterra, da América (do Norte), do
Brasil e da Espanha. A revista defende que suas edições têm “definido os contornos do
cenário literário desde 1983”5, embora alegue “não ter uma agenda política ou
literária”.
A edição sobre “os melhores jovens escritores brasileiros” foi primeiramente
lançada em português (Granta v.9) e posteriormente lançada em versão inglesa
(Granta v.121). Para a publicação da edição em português foram escolhidos vinte
autores, todos nascidos depois de 1972, que por meio de sua escrita “contribuem para
mudar o panorama das letras no país” (GRANTA EM PORTUGUÊS, 2012, p.5). Os textos
brasileiros compilados retratariam uma parcela significativa dos escritores em
atividade no Brasil. Todos eles têm idade inferior a 40 anos e possuem no mínimo um
conto publicado. A totalidade dos contos brasileiros compilados foi selecionada pelo
júri que acredita que “os textos compõem um mosaico surpreendente de estilos e
temas e chama atenção pelo vigor e apuro estilístico – o acerto nos detalhes, a busca
por uma linguagem coesa, o desenvolvimento cuidadoso de personagens” (p.6). O
comitê julgador, nas palavras da revista, foi composto por “uma equipe de jurados
altamente qualificada, editorialmente independente” (GRANTA EM PORTUGUÊS, 2012,
p.8) que contava com “pessoas de diferentes áreas da cena literária” (p.8). Foram sete
jurados: Beatriz Bracher, Cristovão Tezza, Samuel Titan, Manuel da Costa Pinto, Italo
Moriconi, Marcelo Ferroni e Benjamin Moser, o único estrangeiro (norte-americano),
cujo nome foi sugerido pela Granta inglesa, biógrafo de Clarice Lispector, tradutor e
escritor. A revista alega que a presença de um jurado estrangeiro “enriqueceu o
processo de escolha dos autores” com sua “visão ‘externa’” (p.9).

5
Tradução das autoras. Citação original: “defining the contours of the literary landscape since 1983” (<
http://granta.com/about/ >. Acesso em: 02 de jul. 2015).

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Como justificativa para esse olhar alheio ao Brasil estar mais atento à literatura
emergente desse país, a revista defende que “o Brasil vive um momento especial na
literatura” (p.9). É enfatizado o fato de que nos últimos vinte anos houve poucos
escritores publicados e aclamados no cenário exterior. Inúmeros fatores estariam
contribuindo para uma mudança desse cenário de baixa contribuição dos escritores
brasileiros na literatura global. Entre eles, programas mais consistentes e duradouros
de apoio à tradução e ao intercâmbio de agentes do campo literário, um aumento do
interesse de editoras e agentes estrangeiros por escritores de língua portuguesa e o
Brasil como país homenageado em diferentes eventos literários ao redor do mundo6. É
importante, portanto, avaliar se as iniciativas em vigor estão sendo eficazes no que
elas se propõem a fazer. De igual modo, faz-se necessário atentar para seus próximos
desdobramentos.
Em relação à publicação da edição inglesa da revista literária Granta, excluindo
a questão da autoridade desempenhada por ela através de um discurso que dissemina
opiniões sobre o que é bom ou não e sobre o que merece ser lido ou não, o veículo
cumpre o papel de levar a outros países uma amostra dos trabalhos feitos por autores
brasileiros. Desconsiderando o fato de esses vinte nomes serem ou não “os melhores”
de sua geração, o importante é que há literatura brasileira sendo divulgada em outros
países. Além disso, por a Granta gozar de status privilegiado no cenário literário
mundial é bastante provável que seu discurso ecoe e repercuta em um interesse maior
pelos vinte nomes elencados; em última análise, para fins deste trabalho, em um
interesse maior pela literatura brasileira.
Pesquisas nos mostram que, tradicionalmente, as obras brasileiras têm pouca
representatividade no cenário literário mundial, principalmente no norte-americano
(FERNANDES e FERNANDES, 2015; FAVERI, 2015). O referencial teórico aqui levantado
corrobora a teoria de Even-Zohar (1990), que defende que países detentores de uma
literatura nacional forte e bem estabelecida tendem a ter na atividade tradutória um
papel mais marginal, como é o caso dos Estados Unidos. Embora a parca participação
da literatura brasileira no sistema literário traduzido norte-americano seja
representada por certa variação de autores e gêneros literários, em que Paulo Coelho,
Jorge Amado, Clarice Lispector e Machado de Assis são os recordistas de publicações
no período 2000-2014, é possível observar um acréscimo no número de traduções de
escritores contemporâneos, como João Paulo Cuenca e Milton Hatoum (FERNANDES e
FERNANDES, 2015). Tais informações parecem ser indícios de um aumento do
interesse por escritores menos prestigiados pelo público e pela crítica (pelo menos
6
A agenda na qual o Brasil está inserido até 2020 foi citada anteriormente.

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atualmente) e da importância de se investir em diferentes formas de inserção dos


autores brasileiros no cenário literário internacional.
As iniciativas do governo federal, juntamente com a publicação da revista
Granta (em português e em inglês), podem, sim, ser ferramentas relevantes para atrair
mais atenção para o que é produzido no Brasil em termos literários (já que, no quesito
música, parecemos ter bastante atenção do público externo). Parece, de fato, que há
um caminho a ser trilhado pelo Brasil em direção a um maior reconhecimento
internacional de seus escritores e de sua literatura. O assunto, entretanto, não deve
ser tratado com ingenuidade. Devemos ter consciência de que somente medidas
governamentais são insuficientes para solucionar o dilema da disparidade existente
nas trocas culturais entre esses países de língua inglesa e o Brasil (e a maioria dos
demais países). Há muitos outros fatores presentes nas dinâmicas do sistema literário,
que regem o estabelecimento de padrões hegemônicos e que fogem do alcance de
medidas desse tipo. Entretanto, entende-se que é de vital importância investir em
medidas de disseminação e internacionalização na literatura brasileira, seja através da
concessão de bolsas de apoio, da publicação de edições de revistas literárias dedicadas
a apresentar a literatura que está sendo produzida recentemente por nossos autores
ou da inserção de nosso país nas agendas culturais mundo afora. Mesmo que tais
investimentos pareçam ser diminutos para se atingir uma mudança definitiva no
cenário literário mundial, grandes transformações só podem ser obtidas através dos
primeiro passos dados.
Para fins deste trabalho, o foco manteve-se nos dados teóricos relacionados às
iniciativas federais e à publicação da edição 121 da revista literária inglesa Granta, pois
a intenção era investigar as propostas das medidas do governo federal que visam ao
aumento da divulgação da literatura brasileira no exterior. Entretanto, também é de
vital importância analisar os dados quantitativos (total de livros traduzidos nos últimos
anos) a fim de investigar se de fato as iniciativas estão sendo eficazes, isto é, se estão
viabilizando um acréscimo no número de traduções e publicações de autores
brasileiros no exterior. Da mesma forma, uma análise quantitativa com o objetivo de
explorar quais títulos estão sendo importados pelas editoras participantes do
Programa de Apoio também se faz pertinente, pois tais informações podem nos
oferecer pistas sobre o tipo de literatura que tem chamado mais atenção dessas
editoras e desses países, bem como sobre os desdobramentos acarretados pelas
decisões editoriais. Esses assuntos serão foco de estudos posteriores.

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Referências

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Brasil: uma análise da última década. In: de FAVERI, Claudia Borges (Org.). O Brasil
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PORTAL BRASIL. 28 jul 2014. Governo lança na Flip programas para internacionalizar
literatura brasileira. Disponível em: www.brasil.gov.br/cultura/2012/07/governo-
lanca-na-flip-programas-para-internacionalizar-literatura-brasileira. Acesso em 06
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PROGRAMA DE APOIO À TRADUÇÃO E À PUBLICAÇÃO DE AUTORES BRASILEIROS NO
EXTERIOR. Brazil: Literature Translation Grant. Centro de cooperação e difusão
Fundação Biblioteca Nacional. 11 set. 2012. Ministério da cultura investirá US$35
milhões na internacionalização da literatura brasileira até 2020. Disponível em:

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EFEITOS COLATERAIS DO PROGRESSO:


DESENRAIZAMENTO E EXCLUSÃO SOCIAL EM
O LIVRO DAS IMPOSSIBILIDADES, DE LUIZ RUFFATO

Luciane Figueiredo Pokulat1

Em 1940, Walter Benjamin expunha, em seu texto Sobre o conceito de história


(2012), seu descontentamento em relação aos acontecimentos do período pelo qual
passava a Europa. Em um momento em que o mundo já havia conhecido as barbáries
resultantes da Primeira Guerra, passara pelo período entre guerras e vivia a
problemática do início da Segunda Guerra Mundial, o pensador alemão, desiludido e
pessimista, argumentava, em tom profético, que a onda de progresso crescente e
promissor do mundo industrial culminaria em uma terrível catástrofe para a
humanidade. Benjamin criticava o historicismo alemão, acusando-o de conservador
porque se mostrava comprometido apenas com a visão das classes dominantes e
propunha um novo conceito de história: aquele escrito do ponto de vista dos vencidos,
que teria a tarefa de “escovar a história a contrapelo”, para permitir o acesso ao lado
avesso e deixar emergir dela a barbárie forjada com o nome de progresso.
Pensar o lado avesso da história, remontando fatos com novos olhares, dando
voz a atores tradicionalmente emudecidos tem sido, nos parece, uma das tendências
da ficção brasileira contemporânea e, a nosso ver, é nesse sentido que se alinha a
narrativa de Luiz Ruffato, especialmente seu projeto literário publicado entre os anos
de 2005 e 2011. Inferno provisório é o título de uma série literária criada pelo autor
mineiro composta por trinta e oito histórias independentes e autônomas entre si
distribuídas em cinco romances igualmente autônomos. A pentalogia visa a
estabelecer as relações entre o presente e o passado histórico de um país que se
modernizou e se urbanizou rapidamente. A temática principal são os deslocamentos
humanos ocorridos em território nacional com personagens sendo representados na
sua busca por melhores lugares e por empregos – localizados geralmente nas

1
Doutoranda em Letras pelo PPG UFRGS. Mestre em Letras pelo PPG URI-FW. Professora efetiva do
Instituto Federal Farroupilha-Campus FW.
E-mail: luciane@cafw.ufsm.br

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metrópoles brasileiras – que lhes garantam o acesso à moderna sociedade do


consumo.
Embora de uma forma bastante sintética, é possível dizer que o primeiro
volume da pentalogia, intitulado Mamma, son tanto felice (2005), trata a questão do
êxodo rural nas décadas de 1950 e 1960, enquanto O mundo inimigo (2005), segundo
volume da série, discute a fixação do proletariado numa pequena cidade industrial na
década de 1960 e começo da década de 1970. Já o terceiro romance da pentalogia,
intitulado Vista parcial da noite (2006), aborda a problemática de sujeitos à margem
do processo modernizador e o embate entre os imaginários rural e urbano nas décadas
de 1970-1980. Em O livro das impossibilidades (2008), quarto romance da saga,
registra-se as mudanças comportamentais das décadas de 1980-1990, com
personagens já ambientados na metrópole; e, finalmente, o quinto e último volume,
Domingos sem Deus (2011), contempla histórias ocorridas do final do século XX até a
entrada do século XXI, terminando pontualmente no último dia do ano de 2002.
Além disso, se à primeira vista nota-se com facilidade que a saga aborda o
assunto da migração, em uma leitura um pouco mais apurada percebe-se que a ênfase
recai nas motivações pessoais desses deslocamentos e nas subjetividades dos sujeitos
representados, o que acarreta, em um segundo momento, em transformações de
ordem identitária. A maneira como Ruffato constrói sua narrativa, reunindo inúmeras
histórias ambientadas nas zonas rural e urbana ocorridas em um tempo histórico que
vai da segunda metade do século XX até a entrada do século XXI, nos permite
conhecer, pela representação das subjetividades das personagens algumas causas da
migração brasileira, bem como consequências de tal processo, sendo estas o assunto
do qual esse artigo se ocupa.
Entre 1960 e 2010, em um espaço concentrado de apenas meio século, o Brasil
transformou-se rapidamente e, conforme o historiador Daniel Aarão Reis (2014), os
indicadores sociais atestam que o Brasil modernizou-se. Em 1950 e na primeira
metade de 1960, o país ainda era essencialmente rural, mas a rápida urbanização
instalada ainda na década de 1960 já registrava, no início dos anos 1970, a maioria da
população vivendo nas cidades, sendo que na entrada do século XXI, atingia-se a
marca de mais de 80% residindo em centros urbanos. Segundo o demógrafo Fausto
Brito (2006), a grande expansão urbana brasileira é um fenômeno relativamente
recente e isso acontece em decorrência das migrações internas, iniciadas mais
fortemente a partir da segunda metade do século XX, “e se articula com um conjunto
de mudanças ocorridas na economia, na sociedade e na política brasileira” (2006, p. 1).

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A intensa e rápida expansão, que teve seu auge medido pela velocidade do
crescimento da população urbana entre os anos de 1950-1970, acabou sendo um
componente fundamental das mudanças estruturais na sociedade brasileira. Os
números demonstram essa aceleração: em 1920, o Brasil contabilizava uma população
de 27,5 milhões de habitantes; na década de 1950 esse número quase dobrou,
aumentando para 52 milhões; e, na década de 1960, a população urbana se tornava
superior à rural. Somente entre 1960 e o final dos anos 1980 estima-se que saíram do
campo em direção às cidades quase 43 milhões de pessoas, incluindo os efeitos
indiretos da migração, ou seja, os filhos tidos pelos migrantes rurais nas cidades
(BRITO, 2006, p. 2-3).
Os dados nos mostram um país que se urbanizou rapidamente e isso se deve ao
processo de industrialização do Brasil que aconteceu de uma forma bastante intensa,
causando uma série de deslocamentos humanos rumo às metrópoles e imprimindo
uma velocidade muito peculiar na modernização do país. As estatísticas referentes às
dinâmicas sociais impostas na segunda metade do século XX em diante nos permitem
levantar a hipótese de que o processo acelerado da urbanização ocorrida
principalmente em virtude da migração rumo às cidades provocou uma rapidez
tamanha nas transformações pelas quais o país passou e, talvez por consequência
dessa pressa e do modo desgovernado como se deu a modernização brasileira, muitos
pontos importantes ficaram sem a devida solução como a precariedade de moradias,
saneamento básico, saúde e educação, mas, principalmente, a adaptação dos sujeitos
migrantes nas grandes cidades. Essa pressa e a falta de um projeto definido para a
modernização do Brasil pode ser uma das raízes para aquilo que hoje é considerado
um dos piores problemas da nação brasileira: o aumento gradativo da vala da
desigualdade social, o que só faz aumentar o sentimento de iniquidade, injustiça e
insegurança, acarretando no aumento da violência urbana e na descrença no futuro e
no presente de nosso país.
O propósito desta comunicação é apresentar uma leitura do romance O livro
das impossibilidades (2008) como uma história a contrapelo nos termos
benjaminianos. O argumento da história a contrapelo se alicerça no fato de que, no
limiar do século XXI, Ruffato se propõe a passar em revista um importante momento
da história brasileira – a modernização nacional –, focalizando sua narrativa na versão
de uma personagem em geral ausente nas representações literárias brasileiras: o
operário urbano. É assim que as subjetividades e os cotidianos de sujeitos migrantes,
os trabalhadores de classe média baixa, ambientados nas metrópoles brasileiras das
décadas de 1980-1990, emergem do texto literário, proporcionando reflexões em

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torno das consequências do projeto modernizador da nação brasileira. A leitura do


quarto volume da série literária nos possibilita a percepção de que deslocamentos
espaciais acarretam em deslocamentos identitários, os quais culminam em questões
desestabilizadoras do sujeito como desenraizamento, solidão e exclusão social, as
quais, em seu conjunto, são aqui tomadas como a outra face do projeto da
modernização nacional, ou seja, como a demonstração do fracasso de um projeto que
não se cumpriu em sua totalidade, pois não o foi para uma parte de sua população.
O romance é composto por três narrativas intituladas “Era uma vez”, “Carta a
uma jovem senhora” e “Zezé & Dinim (sombras do triunfo de ontem)”. Elas se passam
durante a década de 1980 até a entrada do século XXI com alusão também às décadas
anteriores em virtude da frequência com que o autor recorre às memórias das
personagens. O mesmo narrador em terceira pessoa que comparece nos volumes
anteriores da saga discorre sobre as histórias de sujeitos trabalhadores, migrantes já
moradores da urbe, os quais computam em suas histórias pessoais, além dos
empregos conquistados em São Paulo e Rio de Janeiro, a dor causada pelos
sentimentos da exclusão, da solidão e do desenraizamento. Para pensarmos sobre
essas questões, iremos nos ocupar aqui da segunda narrativa do romance.
Em “Carta a uma jovem senhora”, temos a oportunidade de conhecer a história
de Aílton, um sujeito migrante, morador há quase duas décadas da metrópole do Rio
de Janeiro, que acaba de perder o emprego de caixa de um banco e, no tempo
presente da narrativa, está no quarto de um hotel escrevendo uma carta. A ação
narrativa parte do tempo presente – a escritura da carta – e remete ao passado – a
vida pregressa do protagonista. Durante o processo de escrita da carta, a personagem
retoma fragmentos de seu passado e reconstitui a sua história, a qual o leitor vai
conhecendo ao juntar as partes da carta com os fragmentos relatados pelo narrador
em terceira pessoa. Montando essas partes da narrativa, ficamos conhecendo a
história pessoal de um adolescente morador de Cataguases que era apaixonado por
Laura, a qual, por sua vez, optara por Jacinto porque ele havia engajado na Marinha
Mercante e viajava pelos mais variados lugares do mundo, dos quais enviava cartas
para Laura que as exibia com orgulho para toda a turma.
Aborrecido por ter sido preterido pela moça, Aílton decide migrar da cidade
natal rumo ao Rio de Janeiro, a fim de tentar o sonho da ascensão financeira e social
ainda com a esperança de ter o reconhecimento de Laura, moça que estava sendo
preparada pela família para “ser alguém na vida”: “Laurinha vai estudar advocacia, não
vai ficar aqui comendo algodão que nem todo mundo não. Quero ela longe da fábrica.”
(RUFFATO, 2008, p. 77). O fragmento destacado se refere à voz do pai da moça e serve

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para comprovar aquilo que comparece com frequência no romance ruffatiano: a


sombra do destino operário está sempre rondando as famílias de classe média baixa
que, com pavor da vala comum destinada à maioria dos jovens daquela classe social,
utilizam os meios que podem – no caso de Laura, ela é incentivada aos estudos – para
livrar seus filhos do rumo antevisto para eles.
Aílton desafiara o destino operário e do anonimato em Cataguases, pois
migrara para o Rio de Janeiro com o intuito de “ser alguém na vida”, embora sua
principal intenção fosse conquistar o amor e o reconhecimento de Laura. Porém, no
tempo presente da narrativa, após dezesseis anos de metrópole, a personagem não
contabiliza os grandes feitos sonhados na terra de origem. Além do emprego de caixa
de banco que mal supria as despesas – o qual, inclusive, acabara de perder –, em sua
trajetória de migrante, tem a oportunidade de conviver com a exclusão e com a
violência urbana e sentir a dor da solidão e do desenraizamento. Ele mora perto de um
Morro que é constantemente invadido pela polícia na caça a traficantes e, portanto,
tiroteio, polícia, bandido e violência fazem parte de sua rotina. Inclusive, no dia de sua
demissão, ele é impedido de entrar em sua casa porque a rua está barrada em função
de uma dessas costumeiras ações na guerra contra o tráfico. Enquanto aguarda a
situação se resolver, ele tem a oportunidade de encontrar ocasionalmente, no bar da
esquina, César, um também sujeito migrante o qual, para a surpresa do leitor, divide o
apartamento com Aílton.
No relato, fica visível que o encontro é entre dois estranhos que por
necessidade e conveniência dividem um mesmo lugar de moradia e não sabem nada
um sobre o outro. Essa passagem do texto permite a inferência da solidão a que estão
fadados aqueles jovens migrantes trabalhadores urbanos sem qualquer vínculo afetivo
e sem nada a ser compartilhado um com o outro, além da divisão das contas e
despesas referentes ao espaço exíguo onde moram. Quando se encontram no bar,
Aílton relata ao companheiro de apartamento sobre a sua demissão e, entre uma
cerveja e outra, decide contar também sobre seu passado em Cataguases e sobre seu
amor por Laura. César, entretanto, pouco se interessa pela segunda parte do relato,
pois já está pensando com quem irá falar, a fim de arrumar outra pessoa para dividir o
local de moradia e as despesas, já que o atual parceiro não lhe interessa mais, pois
provavelmente sairá de lá em breve.
Conforme Simone Weil (2001), a falta de vínculo é um fator de sofrimento para
o ser humano e, nesse sentido, o relato de Aílton é exemplar. No momento presente
da enunciação, quando está sozinho no quarto de hotel escrevendo a carta para Laura,
o migrante morador da metrópole percebe claramente qual é o aspecto da vida que

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mais lhe faz falta no tempo presente. Ao assumir, durante a escrita da carta, que no
passado ele era feliz porque “fazia parte de um grupo”, o sentimento da personagem
só faz confirmar a teoria de Weil, para quem o ser humano necessita sentir-se
enraizado a algo, precisa fazer parte de uma comunidade, o que significa dizer que a
alma humana necessita da relação com outro humano com quem possa compartilhar
alguma coisa. Em seu livro escrito em 1943, intitulado O enraizamento (2001), ela
explica:

O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais


desconhecida da alma humana. É uma das mais difíceis de definir.
Um ser humano tem raiz por sua participação real, ativa e natural na
existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do
passado e certos pressentimentos de futuro. Participação natural, ou
seja, ocasionada automaticamente pelo lugar, nascimento, profissão,
meio. Cada ser humano precisa ter múltiplas raízes. Precisa receber a
quase totalidade de sua vida moral, intelectual, espiritual, por
intermédio dos meios dos quais faz parte naturalmente (WEIL, 2001,
p. 43).

Com a finalidade de explicitar tal sentimento, Weil (2001, p. 11) divide as


necessidades humanas em duas categorias fundamentais: as do corpo e as da alma.
Segundo ela, as necessidades básicas do corpo resumem-se em ele precisar de
alimentação, calor, higiene, moradia, roupa, cuidados para curar ou prevenir doenças
e proteção contra a violência. Já as necessidades da alma são mais difíceis de
compreender e, conforme a autora, fazem parte desse grupo as necessidades que
temos de ordem, liberdade, obediência, responsabilidade, igualdade, hierarquia,
honra, castigo, liberdade de opinião, segurança, risco, propriedade privada,
propriedade coletiva e verdade. É a essa última lista que a autora acrescenta a
necessidade do enraizamento que, para ela, é uma das mais importantes e
desconhecidas necessidades da alma humana.
Por outro lado, é possível pensarmos em torno dessa necessidade humana a
partir da perspectiva de Stuart Hall (2006), para quem as identidades modernas estão
sendo “descentradas”, isto é, deslocadas ou fragmentadas. Conforme Hall, um tipo
diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas desde o
final do século XX e fragmentando paisagens, noções culturais de classe, gênero,
sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, cujos aspectos, no passado, forneciam às
pessoas sólidas localizações como indivíduos sociais. Essas transformações estão
mudando as identidades pessoais e abalando a ideia que temos de nos próprios como
sujeitos integrados. Assim, aquele sujeito anteriormente vivido como sendo dono de

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uma identidade unificada e estável está se tornando fragmentado, composto não de


uma única, mas de várias identidades, algumas vezes até mesmo contraditórias ou não
resolvidas.
Um dos fatores que mexe, inevitavelmente, com a identidade de um sujeito são
os deslocamentos espaciais a que ele se submete, sejam eles voluntários ou
involuntários. Independente das causas, embora saibamos que no caso da migração a
maior motivação é a de ordem econômica, os deslocamentos humanos afetam as
noções que o sujeito possui do espaço, de si mesmo e do outro. Por estarem em
constante movimento, esses sujeitos migrantes estão frequentemente em contato
com o estranho, com o diferente, e precisam, por isso, desenvolver sua capacidade de
adaptação ao(s) novo(s) ambiente(s) e às diferentes culturas. Conforme argumenta
Hall (2006), à medida que os sistemas de significação e representações culturais se
multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante
de identidades com as quais podemos nos identificar ao menos temporariamente. A
identidade cambiante descrita por Stuart Hall, e também a necessidade humana
referida por Simone Weil de o homem ter intrínseco a si o desejo de pertencer a uma
comunidade, de formar um elo afetivo com outros seres da mesma espécie, pode ser
uma chave de leitura para o romance O livro das impossibilidades constituído pelas
três narrativas anteriormente referidas.
No caso de “Carta a uma jovem senhora”, o olhar do narrador se mostra atento
às atitudes, aos pensamentos e aos sentimentos expressos por Aílton, um homem
solitário que depois de assumir a nova condição de desempregado está tentando
organizar seu passado e escrever uma carta para um antigo amor da adolescência.
Frente a um fato novo que acabara de descobrir, o protagonista procura recompor um
passado mal resolvido pela junção de fatos ocorridos há dezesseis anos com o
presente modificado pelo fato recém-descoberto. Às partes da carta endereçada a
Laura que vai progressivamente sendo escrita por Aílton, o narrador intercala
fragmentos do passado e, para marcar as partes intercaladas entre presente e
passado, o autor Luiz Ruffato, conforme seu estilo pessoal de escrita, difere tais
tempos alternando os tipos de letras. O escritor usa um tipo gráfico para as partes da
carta, outro para os pensamentos de Aílton, outro para o narrador relatar o momento
presente na enunciação e outro ainda para o narrador contar os fatos passados que
fizeram com que tal carta precisasse ser escrita.
O narrador sublinha como um aspecto de grande importância na vida de Aílton
o fato de ele ter sido “admitido” ao grupo de jovens conhecido por APL – Amor, Paz e
Liberdade –, conquistando o direito de poder participar “do coro das missas

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dominicais, dos piqueniques, dos banhos de cachoeira, da distribuição de comida,


agasalhos e brinquedos na periferia da cidade, das visitas aos doentes do hospital”
(RUFFATO, 2008, p. 77). Isso lhe permitia, além de estar sempre junto de Laura, o
sentimento de pertencimento, uma vez que era parte integrante de um determinado
grupo, e tal sentimento conferia a ele uma sensação agradável, fato suficiente para
sentir saudade do passado, pois se sente oprimido e angustiado no tempo presente.
Conforme aponta Bauman (2005, p. 74-75), a essência da identidade “não pode
ser constituída senão por referência aos vínculos que conectam o eu a outras pessoas”
e ao pressuposto de que possivelmente tais vínculos irão perdurar com o passar do
tempo. No entanto, para sujeitos cuja sina é a migração, como os moradores de
Cataguases representados no romance ruffatiano, não se constitui em uma surpresa o
fato de sermos informados, no tempo presente da enunciação, que os vínculos desses
jovens que compunham um grupo no passado foram desfeitos e cada um seguiu um
rumo diferente. Na carta de Aílton, ele relata ter procurado informações sobre o
destino de cada um dos integrantes de sua antiga turma: Laura havia se formado em
Letras, em Cataguases e se mudado para Belo Horizonte; Isaías entrara para o
seminário, mas não se ordenara padre e era representante comercial no Espírito
Santo; Ricardo fora para São Paulo, tornara-se protético e abrira um consultório em
Ubá; Vilma se envolveu com um traficante, foi presa, cumpriu pena e sumiu sem
ninguém saber seu paradeiro; Virgínia casou, ficou morando em Cataguases, tem três
filhos, é professora de matemática; Pistolinha se mudou para Belo Horizonte, formou-
se em Engenharia e se casou; Saulo, o irmão de Laura, foi para os Estados Unidos, mas
ninguém soube informar o que o rapaz faz por lá. Retirado da referida carta, o trecho
que segue é esclarecedor em relação ao problema mal resolvido no passado do
protagonista e que o aflige no tempo presente:

E o Jacinto? Você ainda lembra dele? Você e ele são


responsáveis pela desgraceira que é minha vida, Laura. Você
foi uma doença, uma doença que me fez perder o gosto pelas
coisas, que me fez achar que o mundo se resume naquele
tempo que passei hipnotizado por você, sem perceber que era
humilhado o tempo todo. [...] Você ainda conseguiu se virar.
Constituiu família, enterrou o passado, essas coisas todas que
estou lembrando devem ser estranhas para você agora. Eu
fiquei escorregando pela vida, andando feito bobo pelas ruas e
pelas praias do Rio de Janeiro, fuçando os becos, os morros, os
ônibus, os táxis, para ver se via alguém parecida com você, se
encontrava alguém que pudesse me livrar dessa maldição
(RUFFATO, 2008, p. 79).

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Esse trecho da carta é muito importante para demonstrar o quanto esse


migrante saído de Cataguases, empregado como bancário no Rio de Janeiro, sofre por
não ter conseguido se livrar de seu passado, de suas origens e, principalmente, por
carregar nas costas o peso de um amor não correspondido vivido na época da
adolescência. Esse sentimento é agravado na fase atual que Aílton vive em virtude da
nova identidade de desempregado na urbe. À informação de sua demissão, segue-se o
porre, a ressaca e, mais tarde, a carta que está sendo escrita e que confere sentido a
sua vida e também à narrativa, por organizar os fatos de um passado de miséria, do
qual, inexplicavelmente, ele sente saudade:

Quando fui demitido do banco tomei um porre. No dia seguinte,


acordei de ressaca deitado na poltrona da sala [...] um aperto no
peito, uma saudade danada, um negócio esquisito que eu vou te
contar. Lembrei de quando eu morava na Vila Resende, as galinhas
desnorteadas com o apito do trem, um cachorro que eu tinha [...].
Depois, a ida para a casa da tia Cotinha na Vila Teresa, as peladas no
campinho, eu aprendendo a andar de bicicleta, cada tombo! as aulas
na Flávia Dutra. E as tardes azuis, nunca mais vi tardes tão bonitas
quanto aquelas, os urubus planando entre as nuvens brancas. Mas o
que me marcou mesmo foi a época que eu fazia parte da turma, eu
era feliz e não sabia, como diz a música. E me deu uma vontade de
voltar no tempo, um desgosto assim pelo encaminhamento da minha
vida, como se eu tivesse perdido o fio da meada (RUFFATO, 2008, p.
80).

O fragmento destacado apresenta elementos já bastante familiares ao leitor de


Inferno provisório. A lembrança das peladas no campinho, a bicicleta, a citação dos já
conhecidos lugares pobres de Vila Resende e Vila Teresa, ou a alusão ao som de
galinhas desnorteadas misturando-se ao apito do trem remetem aos quintais e
cotidianos vividos por famílias moradoras de Cataguases em décadas passadas. Isso
tudo é lembrado com saudade pela personagem que, no presente da enunciação, se
mostra um ser melancólico porque demonstra não ter conseguido aceitar e superar as
perdas acumuladas ao longo da vida e reelaborar a sua história, em especial no que diz
respeito a seu sentimento por Laura.
O tema da felicidade é assunto que subjaz à narrativa de Inferno provisório cujo
enfoque são os deslocamentos humanos ocorridos com personagens se
movimentando em busca de um emprego melhor, de um simples emprego ou da reles
sobrevivência o que se resume, em última instância, no desejo e na busca da

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felicidade. Nesse sentido, é preciso sublinhar o fato de ser notável, ao longo da


pentalogia, que com uma certa frequência as personagens aludem a um tempo mais
feliz do que aquele em que se encontram no momento e no lugar por elas vividos no
tempo da enunciação. Esse tempo que pode ser tanto o passado como o futuro nos
permite perguntarmo-nos sobre o que acontece com o presente desses sujeitos que
demonstram sentir falta de algo que não se encontra no momento vivido e que não
raras vezes se refere a um passado de condições de vida sociais e econômicas
inferiores? No caso de Aílton, ele se mostra um sujeito atormentado por um passado
que não compreende e um estranho no tempo presente em que vive, pois não
consegue se sentir parte do espaço-tempo vivido.
No último parágrafo escrito na referida carta – a qual, aliás, nunca foi concluída
–, Aílton informava que procurara e encontrara Jacinto na cidade de Santos para com
ele passar a limpo seu passado e, principalmente, para entender por que nunca
houvera retornado a Cataguases para se casar com Laura, como ele pressupunha que
iria acontecer. O parágrafo no qual consta o relato do encontro dos dois não é escrito
pelo protagonista em sua carta a Laura e sim pelo narrador em terceira pessoa que
narra a conversa entre os dois depois de Aílton ter descoberto Jacinto trabalhando
como atendente em uma lanchonete na cidade de Santos. Seguido aos devidos
reconhecimentos e cumprimentos, os antigos conhecidos travam a conversa sobre os
tempos idos e Jacinto comenta que nunca mais teve contato com ninguém do grupo
de jovens do qual faziam parte. Ao ser questionado pelo amigo por que sumira de
Cataguases, “sem mais nem menos”, Jacinto responde que desaparecera porque a
história que contava sobre seu ingresso na Marinha Mercante e sobre suas viagens
pelo mundo afora era tudo invenção. Essa informação é um choque para Aílton cuja
identidade fora erigida sobre a base de um passado – que só agora ele descobre – era
uma mentira.
Depois da descoberta sobre a mentira sustentada durante anos por Jacinto,
segue o soco na cara e a retirada de Aílton que se refugia no quarto de um hotel. O
sujeito migrante recém-desempregado, depois de se dar conta de ter edificado sua
vida sobre um passado inexistente e que mora no Rio de Janeiro já há algum tempo,
mas nunca conseguira se identificar com a cidade, com alguém, ou com qualquer tipo
de grupo, percebe que precisa se reinventar e, como passo inicial, resolve escrever
uma carta a Laura para revelar a descoberta e confessar o seu amor e ódio eternos.
Entre bebida e cigarro, sozinho no quarto de hotel em São Paulo, Aílton, durante a
madrugada, escreve a carta e remonta o passado. Todavia, como é comum na
narrativa de Ruffato, o autor prepara um final ambíguo. O narrador relata que Aílton

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interrompe a carta e sai repentinamente do quarto em busca de um telefone,


sugerindo ter algo urgente para falar com alguém. Não tendo aparelho disponível na
recepção, impossibilitado de sair do hotel devido aos perigos da rua, ele volta ao
quarto, relê a carta, amassa-a e rasga-a em pedaços, assim como faz pedacinhos do
papel em que conservava o endereço e o número atual do telefone de Laura.
O final é ambíguo porque, ao mesmo tempo em que podemos pensar que o
protagonista, com esse gesto, conseguira finalmente desvencilhar-se de seu passado e
aceitar um encontro consigo mesmo para começar um novo momento da vida,
retomando o passado para reorganizar o presente e refazer sua identidade, também
podemos pensar que, por ele não ter concluído a carta e enviado a Laura, esse passado
vai continuar lhe atormentando por mais algum tempo. Conforme Bauman (2005, p.
33), os habitantes do mundo líquido-moderno estão em constante construção de suas
identidades que são móveis e voláteis e, se, por um lado, isso pode parecer negativo
em função da iminente perda de referências a que o sujeito está exposto com
frequência, tendo de refazer-se a todo o momento; por outro, faz bem pensar que está
sempre ao alcance de todos nós novas identidades ainda inexploradas e não
experimentadas e que os sujeitos podem se refazer frente ao novo, ao longo de suas
vidas. A possibilidade da reconstrução, embora dolorosa devido às perdas, pode
também oferecer um certo conforto e uma certa esperança.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos Alberto


Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2005.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012.
BRITO, Fausto. Brasil, final de século: a transição para um novo padrão migratório? In:
ANAIS DA ABEP, Caxambu, 2000. Disponível em: <www.abep.nepo.unicamp.br/>.
Acesso em: 15 mai. 2014.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e
Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
REIS, Daniel Aarão (coordenação). Modernização, ditadura e democracia: 1964-2010.
vol. 5. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2014.
RUFFATO, Luiz. Mamma, son tanto felice. (Inferno provisório; 1). Rio de Janeiro:
Record, 2005.
______. O mundo inimigo. (Inferno provisório; 2). Rio de Janeiro: Record, 2005.
______. Vista parcial da noite. (Inferno provisório; 3). Rio de Janeiro: Record, 2006.

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______. O livro das impossibilidades. (Inferno provisório; 4). Rio de Janeiro: Record,
2008.
______. Domingos sem Deus. (Inferno provisório; 5). Rio de Janeiro: Record, 2011.
WEIL, Simone. O enraizamento. São Paulo: EDUSC, 2001.

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LINGUAGEM E COGNIÇÃO: A INTERFACE DO PROCESSAMENTO SINTÁTICO ATRAVÉS DE UM


EXPERIMENTO DE PRODUÇÃO DE SENTENÇAS DO PB

Mariana Terra Teixeira1

1 Localização teórica: a interface psicolinguística

A interação entre linguagem e cognição é, há muito tempo, foco de estudos


linguísticos. Cognição é um termo científico utilizado para fazer referência ao conjunto
das inteligências humanas. A linguagem é, em si, um sistema cognitivo, isto é, uma
inteligência, capacidade, do cérebro humano. Nós, humanos, somos os únicos seres
vivos que têm a capacidade de produzir e compreender uma língua e fazemos isso de
forma inconsciente. É na mente humana que a linguagem é produzida e
compreendida.
Para descobrir o funcionamento da linguagem no cérebro humano, linguistas,
psicolinguistas e neurocientistas da linguagem estudam a linguagem em diferentes
dimensões. Linguistas teóricos procuram responder em que consiste o conhecimento
linguístico na mente das pessoas, formulam teorias abstratas sobre quais são e como
funcionam os conhecimentos linguísticos na faculdade humana da linguagem.
Psicolinguistas são cientistas empíricos que investigam, através de métodos e técnicas
experimentais, como as crianças adquirem uma língua natural e como esse
conhecimento linguístico é posto em uso tanto por crianças quanto por adultos.
Neurocientistas da linguagem estudam os mecanismos cerebrais que dão origem à
linguagem humana, estudam o que acontece no cérebro humano quando a linguagem
está em funcionamento e procuram responder quais são os fundamentos físicos e
fisiológicos do conhecimento linguístico.
Neste artigo, nos situamos na dimensão psicolinguística, que é o resultado da
interface entre a Psicologia Cognitiva, área que estuda a natureza e o funcionamento
da cognição humana, e a Linguística, área que estuda a linguagem. A psicolinguística
tem como objeto o estudo da realidade psicológica das línguas naturais e tem como

1
Mariana Terra Teixeira possui licenciatura em Letras Português/Espanhol pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS) e é mestranda em Linguística do Programa de Pós-Graduação da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) com bolsa CAPES.
E-mail: mariana.terra@acad.pucrs.br

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objetivo descrever empiricamente, com base em experimentos, os processos


psicológicos pelos quais o conhecimento linguístico se realiza na mente humana.
O objetivo deste trabalho é contribuir para o debate de como a linguagem
funciona no cérebro, mais precisamente, como atua o sistema de processamento da
linguagem. Faremos isso através da análise de um fenômeno linguístico: a aquisição e
o processamento de sentenças passivas. A aquisição e o uso da linguagem envolvem a
consideração de um grande número de informações de origens diversas. A fim de
pensar em como crianças aprendem construções sintáticas, e por que as aprendem,
faremos uma revisão teórica sobre dois vieses do tema: um, teórico, partindo da
gramática descrita pela linguística; e outro, mais empírico, partindo de dados
experimentais e postulados relacionados a experimentos. Dessa maneira, procuramos
contribuir para o estudo do processamento sintático da linguagem visto na interface
linguística teórica e linguística experimental, com foco no processamento de sentenças
ativas e passivas do português brasileiro.
As sentenças passivas têm características funcionais muito marcantes nas
línguas. Uma das suas principais funções é ser uma construção sintática que permite a
manutenção do tópico discursivo no início da frase. Com essa função, a passiva torna-
se importante para o discurso, já que os falantes possuem uma tendência geral de
manter o tópico do discurso no início da frase (BATES et al. 1995; MARCHMAN et al.
1991; GABRIEL, 2001). No que diz respeito à aquisição, segundo Gabriel (2001), as
crianças são sensíveis ao tópico discursivo, mas elas nem sempre têm disponível uma
estrutura que permita a manutenção do tópico discursivo no início da frase (GABRIEL
2001, p. 426). Dessa maneira, as crianças parecem adquirir as sentenças passivas para
desempenhar essa função, isto é, para terem uma estrutura frasal que as permita
manter o tópico do discurso na primeira posição da sentença.
Neste ponto, surgem perguntas fundamentais para nossa discussão: como as
crianças sabem que devem manter o tópico do discurso? Como as crianças se tornam
sensíveis a tais particularidades da linguagem? Que conhecimento elas possuem e/ou
adquirem que as permite ter um conhecimento linguístico sensível a características
estruturais, funcionais, discursivas específicas da língua adquirida? Pensando o
processamento da linguagem na interface e, neste momento, mais especificamente, o
processamento de sentenças passivas, buscamos responder a essas perguntas. Duas
hipóteses teóricas estão em confronto: ou as crianças nascem equipadas de algum tipo
de regras e princípios que as faça saber que devem manter o tópico discursivo, assim
como as fazem aprender às demais características da sua língua; ou as crianças

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identificam um padrão no input linguístico a que estão expostas e passam responder


de acordo com esse padrão.
O experimento que pensamos para responder a essas questões é um
experimento de produção de sentenças ativas e passivas e será descrito em mais
detalhe na seção cinco deste artigo. Dessa maneira, acreditamos que conceitos e
teorias importantes permeiam nossa discussão. Uma abordagem linguística do
fenômeno é tão necessária quanto uma abordagem psicolinguística, visto que
pretendemos acessar a linguagem da criança através de um experimento empírico. Por
isso, neste artigo, abordaremos questões gramaticais e de processamento da
linguagem. Acreditamos que a integração dessas áreas contribuirá para uma
explicação viável sobre o processamento das sentenças passivas em português
brasileiro.
Nesta primeira seção deste artigo, procuramos delinear o tema de nosso
trabalho, o processamento da linguagem visto na interface entre linguística e
psicolinguística, interface teórico-experimental, que culminará no design de um
experimento de produção de sentenças passivas. Na segunda seção, desenvolveremos
o aporte teórico linguístico para o nosso experimento e as nossas conclusões, através
da teoria gerativa (CHOMSKY 1957, 1965, 1981). Na terceira seção, desenvolveremos a
posição teórica da influência do input linguístico na aquisição da linguagem (DEMUTH
1989; DEMUTH 2007; DEMUTH, K.; MOLOI, F.; MACHOBANE, M. 2010), que contrasta
com a visão gerativa. Na quarta seção, descreveremos as particularidades das
estruturas passivas que serão importantes para pensar o experimento de produção de
sentenças detalhado na seção cinco. Por fim, na seção seis, faremos uma conclusão
sobre a importância de se tratar de um fenômeno de processamento da linguagem na
interface teórico-experimental.

2 Teorias Linguísticas: a gramática da linguagem

A linguística formal gerativa surgiu a partir das ideais de Chomsky (1955). O


autor foi o primeiro a trazer a linguagem para o campo da biologia, postulando que os
seres humanos possuem a faculdade da linguagem, um órgão biológico no cérebro
humano que permite às crianças adquirirem uma língua natural. De acordo com a
Teoria Gerativa (CHOMSKY 1957, 1965, 1981), a faculdade da linguagem possui
princípios e parâmetros. Os princípios são as regras válidas para todas as línguas
naturais. Um exemplo de princípio linguístico seria que todas as línguas possuem
indicação de tempo gramatical (tense), pelo menos de presente e passado, seja esse

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tempo linguístico codificado no verbo da sentença, como em português, ou através de


advérbios, como em chinês, ou através de outros mecanismos existentes na linguagem
humana. Já os parâmetros são as propriedades específicas das línguas, que uma língua
pode ou não ter ativado. Um exemplo é o parâmetro do sujeito nulo: as línguas
naturais podem ou não permitir que o sujeito não seja expresso foneticamente na
sentença. Por exemplo, a língua inglesa tem o valor negativo para esse parâmetro, por
isso, uma sentença sem o sujeito ser pronunciado, em inglês, é agramatical, como
“*ate pizza yesterday”, para a sentença ser gramatical, tem de, necessariamente,
expressar o sujeito: I ate pizza yesterday. Desta maneira, segundo a Teoria Gerativa, as
sentenças de uma língua são ou não gramaticais, representando uma visão categórica
de linguagem, as sentenças são ou não formadas segundo a gramática de uma língua
natural. Tendo definido que o novo objetivo da linguística era a competência
linguística do falante-ouvinte ideal, isto é, o conjunto de regras, princípios e
parâmetros da gramática interna do falante e não o seu desempenho, Chomsky sugere
que a coleta e análise de dados empíricos do discurso dos falantes façam parte do
campo da sociologia. O objetivo da linguística gerativa é estudar a capacidade inata da
linguagem.
A Gramática Universal (GU) é o estágio inicial da faculdade da linguagem de
uma criança adquirindo uma língua. A GU é composta por princípios universais a todas
as línguas e parâmetros que, como vimos, são regras que serão fixadas, isto é, que
adquirirão o valor positivo ou negativo de acordo com a língua natural que a criança
esteja adquirindo. Quando a criança tiver os parâmetros da sua língua fixados, ela terá
adquirido a gramática de uma língua natural e se comunicará perfeitamente de acordo
com a gramática daquela língua. Uma questão fundamental que é respondida pela
Teoria Gerativa é o fato irrefutável de que toda criança adquire pelo menos uma
língua, e isso acontece naturalmente ao ser exposta a estímulos linguísticos de uma
dada língua. O que é ainda mais indiscutível, é que a criança aprende e usa
perfeitamente uma língua, mesmo exposta a poucos estímulos linguísticos. Desta
maneira, parece inevitável que o cérebro humano possua um componente biológico
que permita a aquisição da linguagem. Caso contrário, outros animais deveriam
demonstrar o mesmo comportamento quando expostos a uma língua e, como
sabemos, não é isso que acontece, somente o ser humano é capaz de falar.
Teorias linguísticas gerativistas (CHOMSKY, 1955; BORER & WEXLER, 1987) e
funcionalistas (GIVÓN, 1984; 1990) divergem em relação à maturação linguística de
princípios no cérebro humano (na faculdade da linguagem) necessária para a
compreensão e produção de estruturas complexas, como sentenças passivas. Na teoria

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funcionalista de Givón (1984, 1990), o sistema linguístico deve ser estudado dentro do
quadro das regras, princípios e estratégias que governam seu uso comunicativo
natural. Ao contrário do paradigma gerativo formal, no qual o estudo da competência
tem prioridade lógica e psicológica sobre o estudo do uso, do desempenho linguístico
dos falantes. Se a voz passiva é uma estrutura complexa, acreditamos que deve haver
uma relação entre o avanço da idade e/ou escolaridade das crianças e o uso de
passivas.

3 Teorias psicolinguísticas: o funcionamento da linguagem

A existência da competência linguística do falante é inegável, no entanto, há


outras teorias linguísticas que lidam de maneira diferente com a aquisição da
linguagem. Segundo Demuth (2007), a Teoria da Otimidade (PRINCE & SMOLENSKY,
1993, 2004), mesmo sendo de base gerativa, traz a oportunidade de se pensar, em
termos de restrições, as formas do “output”, isto é, do que é pronunciado pelos
falantes, o desempenho, segundo o gerativismo. Segundo a Teoria da Otimidade, uma
sentença gramaticalmente estranha, duvidosa, não tida totalmente como gramatical
(com marcação ‘?’ ou ‘#’ em um modelo gerativista), pode ser interpretada como
aceitável em certas circunstâncias (discursos, contextos). A noção de interação entre
restrições gramaticais, discursivas e contextuais de uma língua é extremamente
importante para a pesquisa em aquisição da linguagem. Segundo Demuth (2007), ao
invés de parâmetros categóricos, que dividem frases entre gramaticais e agramaticais,
a aquisição das línguas pode ser entendida como uma curva gradual de aprendizado,
em termos de um processo contínuo de aprendizado do “ranking de restrições”.
Características gramaticais da língua vão sendo “ranqueadas” de acordo com a sua
importância, podendo ou não ser violadas, de acordo com a sua posição no ranking
naquele momento da aquisição da língua pela criança, aproximando-se, gradualmente,
a forma do ranking do adulto.
Katherine Demuth é uma linguista que defende a importância da frequência
das estruturas na aquisição da linguagem. Estruturas mais frequentes na língua são
adquiridas mais cedo do que estruturas menos frequentes. Isso abre a possibilidade
para se pensar que estruturas mais frequentes possam ser mais fáceis de aprender,
porque elas são tipicamente “não marcadas”, isto é, são as estruturas default da
língua. Mesmo já tendo comprovado que nem sempre frequência e “marcação”2

2
Por estruturas marcadas entendemos que a autora se referia a estruturas de uso mais restrito, a
depender de contextos específicos para o seu uso. (DEMUTH, 2007, p. 5).

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coincidem nas línguas, Katehrine Demuth é uma das primeiras linguistas a postular que
o caminho do desenvolvimento de uma língua é sensível à frequência de estruturas
específicas dessa língua. No entanto, nos deparamos de novo com questões
fundamentais subjacentes à aquisição da linguagem: por que as crianças adquiririam
estruturas mais frequentes primeiro? Segundo Demuth (2007), uma possível resposta
seria a de que quanto mais frequentes são algumas estruturas das línguas, mais difícil
é para a criança ignorá-las. Segundo um ponto de vista que a autora admite ser
intuitivo, a criança seguiria a lógica de que, se uma estrutura acontece muito na língua,
ela tem de prestar atenção a esta estrutura, pois não pode ser somente “ruído” (noise)
do sistema da linguagem. Isto é, não deve ser interferência de algum outro sistema
cognitivo, deve ser uma propriedade da linguagem em específico, que ela precisa
saber.
Segundo a autora, a Teoria da Otimidade pode ajudar nessa sua visão de
aquisição. As restrições da linguagem devem ser mais “pesadas” de acordo com a sua
informação sobre frequência, pois é a frequência que determina o peso, quando e
como as restrições são ranqueadas. Segundo Demuth (2007), a Teoria da Otimidade já
está bem desenvolvida e é muito útil para as restrições fonológicas de alto nível das
línguas. E, pelo menos para a fonologia, parece haver algum efeito de frequência,
estruturas fonológicas mais frequentes são adquiridas primeiramente. Um exemplo
citado pela autora é a aquisição da estrutura das sílabas em língua inglesa e em língua
espanhola. Conforme o estudo de Demuth, Culbertson & Alter (2006), sílabas com
coda (com consoante ao final da sílaba, como em sílabas CVC – consoante, vogal,
consoante) são adquiridas mais rapidamente por crianças inglesas e posteriormente
por crianças espanholas, já que, em inglês, sílabas complexas são 60% das estruturas
das sílabas da língua e, em espanhol, somente 25%. Talvez a alta frequência de uma
forma particular force a criança a atender a essa estrutura gramatical particular
primeiro.
Estudos psicolinguísticos com adultos indicam que os efeitos de frequência não
ocorrem somente no desenvolvimento fonológico das crianças, mas também em sua
sintaxe. Através da técnica de priming, na qual adultos são previamente expostos a
certas construções sintáticas e, posteriormente, utilizam mais tais construções em seu
discurso, Brooks e Tomasello (1999) demonstraram que, sob circunstâncias
apropriadas de priming, é possível extrair sentenças passivas com verbos novos,
inventados, de crianças de três anos de idade. Esses resultados não são
surpreendentes para quem trabalha com experimentos psicolinguísticos com adultos,
mas eles são inovadores e pouco explorados no campo da aquisição da linguagem.

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Um dos primeiros estudos que demonstrou que a frequência tem um papel


importante na aquisição de estruturas sintáticas é o de Demuth (1989) sobre a
aquisição de sentenças passivas. Esse trabalho da autora demonstrou que sentenças
passivas são bem mais frequentes em Sesotho, uma língua Bantu, do que em inglês.
Demuth (1989) argumenta que a alta frequência de passivas em Sesotho pode explicar
porque as sentenças passivas são adquiridas até os 2,8 anos pelas crianças falantes
dessa língua, idade considera baixa para a aquisição de passivas se comparada à
aquisição dessa estrutura em outras línguas, como o inglês. Dessa maneira, segundo
Demuth (1989, 2007) a frequência das estruturas gramaticais é parte da nossa
competência linguística e influencia não só em como nós processamos e produzimos a
linguagem, como também quais aspectos da linguagem são aprendidos primeiro. No
entanto, por trás da frequência das sentenças passivas em Sesotho, está a sua função
discursiva. Passivas são frequentes em Sesotho porque são uma das únicas estruturas
da língua para se perguntar acerca do sujeito da frase. Isso evidencia que frequência é
um dos fatores que pode influenciar quando e como as crianças demonstram o
conhecimento gramatical, mas há mais questões envolvidas, como, no caso das
passivas, a função da estrutura na língua.
Todos esses pressupostos sobre competência linguística, parte biológica da
linguagem, frequência de estruturas específicas em cada língua natural, demonstram a
necessidade de um modelo integrado da aquisição da linguagem, no qual as restrições
(sintáticas, semânticas, discursivas, fonológicas, prosódicas, de processamento, de
frequência) competem, todas desempenhando o seu papel na determinação de como
e quando quais aspectos da linguagem são adquiridos (DEMUTH, 2007, p. 386).

4 A estrutura da voz passiva em português brasileiro

As sentenças passivas são construções complexas devido a suas características


sintáticas, semânticas e pragmáticas, por isso, a complexidade de sua produção e
compreensão. Essas características linguísticas variam de língua para língua,
dependendo da função da voz passiva em cada língua. De modo geral,
pragmaticamente, as construções passivas se caracterizam pela alta topicalidade do
paciente e a baixa topicalidade ou até mesmo supressão do agente. Semanticamente,
elas são orações transitivas com agente, paciente e uma modalidade verbal específica.
Sintaticamente, temos a promoção do não-agente à função de sujeito e o aspecto
estativo do verbo. De acordo com essas características, linguisticamente, admitir a

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afirmação de que sentenças ativas e passivas são modalidades diferentes de dizer a


mesma coisa é impreciso.
Segundo as gramáticas tradicionais, voz passiva diz respeito ao modo como o
verbo se relaciona com seus complementos, tanto em termos sintáticos quanto
semânticos. Há a passiva sintética e a passiva analítica, para elaboração do
experimento deste artigo, nos concentraremos na produção de sentenças passivas
analíticas, ou seja, aquelas passivas que possuem a estrutura “verbo ser + particípio”.
As partes que compõem a passiva analítica, segundo gramáticas tradicionais, são o
sujeito passivo, o verbo ‘ser’, o particípio do passado do verbo principal e o agente da
passiva. Como podemos ver no exemplo (LUFT, 2OO2, p. 68):

(1) Voz ativa: [o professor] – atendeu – o aluno.


Suj. ativo verbo obj. direto
Voz passiva analítica: o aluno – foi atendido - [pelo professor]
Suj. Passivo ser + Particípio agente da passiva

O objeto direto da voz ativa é quem se torna o sujeito passivo e o sujeito da voz
ativa é quem se torna o agente da passiva. Agente da passiva é uma classificação
semântica, sintaticamente é um sintagma preposicionado (SP), normalmente
introduzido pela conjunção por.
Há, ainda, quatro divisões das sentenças passivas que são importantes para o
entendimento das discussões acerca da aquisição de sentenças passivas ao longo de
nosso trabalho: passivas adjetivas x passivas verbais; passivas cheias x passivas
truncadas; passivas reversíveis x passivas não-reversíveis; passivas de verbos de ação x
passivas de verbos de não-ação. Estudos clássicos da literatura sobre sentenças
passivas atentam para o fato de passivas adjetivas serem adquiridas primeiramente
pelas crianças, principalmente as com verbo de ação, em detrimento da aquisição de
passivas verbais, que possuiriam uma estrutura mais complexa. Outros estudos
apontam que o processamento de sentenças passivas truncadas é mais fácil para as
crianças, por não incluir o sintagma preposicionado, o agente da passiva. E há, ainda,
estudos que postulam que passivas reversíveis são mais facilmente acessadas do que
passivas não reversíveis. Vejamos o que essas divisões representam.
Maratsos et al. (1979, 1985) e Pinker et al. (1987) falam da maior facilidade das
crianças em adquirir sentenças passivas adjetivas. Desta maneira, os autores dividem
as sentenças passivas em verbais, exemplo 2.a), e em passivas adjetivas, exemplo 2.b)
abaixo.

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(2) a) Passiva verbal: A comida foi feita pela avó.


b) Passiva adjetiva: A comida está feita.

As passivas verbais são tradicionalmente vistas como as sentenças passivas


“reais”, elas mantém uma relação próxima com suas contra-partes ativa, no caso do
exemplo, seria a sentença ativa “A avó fez a comida”. As passivas adjetivas parecem
possuir apenas um argumento caracterizando-se, muitas vezes, em uma passiva
truncada/curta; e a sua contra-parte ativa é de difícil acesso, não sendo uma sentença
visível na sua contra-parte passiva.
Estudos como o de Fox e Grodzinsky (1998) mostraram que as crianças
compreendem mais as sentenças passivas truncadas, isto é, sem o agente da passiva
expresso. A sentença 3.a) é um exemplo de passiva truncada e a 3.b) de uma passiva
cheia:

(3) a) Sentença passiva truncada: A mansão foi demolida.


b) Sentença passiva cheia: A mansão foi demolida pelos pedreiros.

A divisão entre passivas reversíveis e irreversíveis é uma divisão semântica.


Passivas reversíveis são aquelas que têm dois agentes em potencial na frase. Devido a
restrições semânticas, as passivas irreversíveis são aquelas que somente um dos
termos pode ter o papel de agente, sob pena de a frase torna-se agramatical, pois se
torna ilógica. Vejamos os exemplos em 4 abaixo.

(4) a) Passiva reversível:


A filha foi abraçada pelo pai.
O pai foi abraçado pela filha.
b) Passiva irreversível:
O livro foi lido por José.
*José foi lido pelo livro.

Nas passivas em 4.a) pode ocorrer a inversão dos papeis de agente e paciente
do verbo abraçar e ambas as sentenças são aceitáveis na língua, apesar de não terem o
mesmo significado. Em 4.b), se ocorrer a inversão dos papeis temáticos dos termos da
sentença gramatical, ela se torna uma sentença anômala, semanticamente ilógica.
As sentenças passivas típicas têm um agente e um paciente na sua estrutura
profunda, segundo Maratsos et al (1979, 1985). Segundo essa definição, as passivas
com verbos de ação, que exigem a presença do papel temático de agente e do papel
temático de paciente para seus complementos, são as passivas típicas. Já as sentenças

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passivas com verbos de não-ação, verbos mentais, experimentais, perceptuais, que não
exigem papel temático de agente e paciente para seus argumentos, não seriam
passivas típicas. Em 5 abaixo, vemos exemplos de passivas com verbo de ação e com
verbo de não-ação. Em 5a), podemos identificar o papel de paciente do policial, e o
papel de agente do ladrão. Em 5b), o papel semântico do sujeito passivo é de tema e o
papel do agente da passiva é de experienciador.

(5) a) Passiva com verbo de ação:


O policial foi atacado pelo ladrão.
b) Passiva com verbo de não-ação:
A imagem da Santa Maria foi admirada pela devota.

Na próxima seção deste artigo, desenvolveremos o design de um experimento


que investigue a produção de sentenças passivas em português brasileiro. Para tanto,
delimitamos a produção de passivas analíticas com verbos de ação, que são sentenças
que possuem sua contraparte ativa que é, por sua vez, a estrutura mais utilizada, a
estrutura default em língua portuguesa. A sentença passiva é, então, a construção
marcada. Todas as imagens utilizadas no design desse experimento possibilitam a
produção de passivas reversíveis e o participante pode ou não mencionar os dois
personagens que aparecem nas imagens, o agente e o paciente da ação, produzindo
passivas cheias ou truncadas. É sempre importante, em estudos com experimentos,
que o design seja objetivo. Em linguística experimental é difícil, por mais que o
linguista tenha vontade e conhecimento para isso, testar muitos fatores ao menos
tempo, sob pena de não responder a nenhuma questão proposta.

5 Design do experimento de produção de sentenças passivas

Desenvolvemos aqui um experimento de produção de sentenças ativas e


passivas a ser feito com crianças e adultos. Pensamos em dois grupos de crianças, um
cursando o segundo ano escolar, entre 7 e 8 anos, pois, assim, já teriam adquirido a
língua portuguesa, bem como a escrita dessa língua, e outro mais amadurecido, de 9 a
10 anos, com um tempo de exposição maior à leitura. A voz passiva parece ser mais
utilizada na língua escrita em português brasileiro, por isso, os anos de leitura e escrita
podem influenciar na sua produção. Desta maneira, os adultos serão o grupo controle,
para sabermos a quantidade de passivas no input que as crianças recebem em
português e, assim, testar a teoria da frequência da estrutura no input linguístico, de
Demuth (2007). O segundo grupo de crianças também é interessante para

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observarmos se há relação entre o avanço da idade e/ou escolaridade das crianças e o


uso de passivas. As pesquisam que envolvem seres humanos devem ser submetidas ao
Comitê de Ética. Todos os participantes que participam das pesquisas devem assinar o
termo de consentimento livre e esclarecido.

5.1 Objetivos

O design desta tarefa foi delineado para se testar a frequência da produção de


sentenças passivas e ativas em português brasileiro, tanto de crianças como de
adultos. O primeiro objetivo do experimento seria, então, obter a frequência de uso de
sentenças passivas e ativas na produção dos falantes do português brasileiro. O
segundo objetivo seria comparar a quantidade de passivas na fala de adultos e de
crianças, para se pensar, assim, na função da voz passiva em português brasileiro, que
pode, como já indicado em outros estudos (PEROTINO 1995), ser mais evidente na
língua escrita. Ao segundo objetivo também podemos agregar a questão da frequência
de sentenças ativas e passivas no input linguístico da criança. O terceiro objetivo seria
analisar a produção de passivas cheias e de passivas truncadas, tanto por crianças
quanto por adultos, visto que, nas imagens do experimento, sempre aparecem dois
personagens, o agente e o paciente, possibilitando o uso da passiva cheia.

5.2 Tarefa de produção de sentenças

A tarefa consiste na produção sintática de frases na voz ativa e na voz passiva e


é baseada no design de Segaert et al. (2011), embora vise a responder a perguntas
diferentes. A tarefa pode ser desenvolvida no programa E-Prime 2.0 e, assim, os
estímulos são disponibilizados no monitor do computador. As instruções para o
desempenho da tarefa devem ser fornecidas aos participantes oralmente e também
apresentadas no monitor antes do início do experimento. Logo após as instruções do
funcionamento da tarefa, os participantes devem realizar uma prática, isto é, um
treinamento de como executar a tarefa.
A tarefa consiste na apresentação de um verbo na cor verde e na forma
infinitiva no centro do monitor por 1000ms. Na sequência, o participante vê a imagem
de um casal representando a ação desse verbo e deve produzir uma frase utilizando o
verbo para descrever a imagem, a imagem ficará na tela por 8000ms. Os casais podem
ser dois adultos ou duas crianças. Orienta-se que seja combinado com os participantes
durante o treino que eles podem chamar os adultos de “a mulher” e “o homem” e as
crianças de “a menina” e “o menino”. Na imagem, um dos atores está em verde e o

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outro em vermelho. O participante deve formular a frase de modo que mencione o


ator que estiver em verde primeiro na frase, podendo o ator em verde estar
executando a ação (voz ativa) ou sofrendo a ação (voz passiva) (ANEXO I). Em seguida
a uma imagem colorida, temos uma imagem cinza, que constitui o alvo do
experimento. O verbo e a imagem alvos aparecem na cor cinza (ANEXO II) para que o
participante possa escolher livremente que estrutura sintática prefere utilizar para
descrever a figura, uma sentença ativa ou uma sentença passiva. Como já mencionado
ao final da seção 4, este experimento foca nas sentenças passivas analíticas com
verbos de ação, como entrevistar, fotografar, servir. Como os participantes são
solicitados a mencionar os dois personagens da imagem, espera-se que eles produzam
passivas cheias. Além disso, devido à animacidade de ambos os personagens (em todas
as imagens os personagens são seres humanos), todas as possíveis passivas as serem
produzidas são reversíveis.
A tarefa possui condições, para que a produção de sentenças ativas ou passivas
seja a mais real possível. As condições são as seguintes: 1) não há repetição de verbo
entre a imagem colorida e a imagem alvo; 2) sem repetição de atores entre as
imagens, ou seja, se na imagem colorida tivermos a figura de adultos, no alvo teremos
crianças; 3) 50% das imagens coloridas suscitam frases na voz ativa e 50%, na voz
passiva; 4) 50% apresentam o agente na direita e 50%, na esquerda. Sendo que
nenhuma condição é repetida duas vezes seguidas e as condições são apresentadas de
forma randomizadas. Ainda, durante a apresentação das imagens, 40% dos estímulos
totais são verbos intransitivos, os quais servem como distratores. Esta questão é
importante. A quantidade de sentenças passivas ou ativas que os participantes
produzirem na imagem cinza alvo, depois de uma imagem distratora, isto é, depois de
uma imagem colorida com cena intransitiva, será a porcentagem de uso de sentenças
passivas e ativas em português brasileiro. Em holandês, 92% da produção dos falantes
são sentenças na voz ativa e, em inglês, 88% (SEGAERT 2013). Nessa tarefa, o tempo
de resposta é medido em milissegundos e a acurácia, em porcentagem. Devem ser
apresentadas bastantes imagens para os participantes, em torno de 100, para que se
possa confirmar a produção de sentenças ativas e passivas.

6 Conclusões

O desenvolvimento da Linguística como ciência cognitiva depende da


integração entre as três dimensões: a realidade teórica, o que é a competência
linguística humana; a realidade psicológica, como processos mentais permitem a
aquisição e o uso dessa competência linguística; e a realidade neurológica, quais são os

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substratos cerebrais que sustentam/subjazem a competência da linguagem. Por isso,


os estudos de fenômenos linguísticos na interface são decisivos para a compreensão
da natureza da linguagem. Neste artigo, procuramos estudar o processamento
sintático de sentenças ativas e passivas em português brasileiro em uma interface
teórico-experimental. Acreditamos ter mostrado a importância de se levar em conta
tanto aspectos linguísticos teóricos quanto experimentais em estudos linguísticos
experimentais. Afinal, postulados teóricos e resultados de experimentos podem e
devem ser complementares, não opostos.

Referências

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Anexos

Anexo I – Imagem colorida do experimento, verbo chamar

Anexo II – imagem cinza, imagem alvo do experimento, verbo entrevistar

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CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DOS BLOCOS SEMÂNTICOS PARA O ENSINO DA ESCRITA ACADÊMICA

Maristela Schleicher Silveira1

Introdução

A palavra argumentação, conforme enfatiza Ducrot (2009), provoca alguns mal-


entendidos. A teoria da Argumentação na Língua (TADL), proposta por Ducrot e
Ascombre, refere-se, dentre outros aspectos, a segmentos discursivos constituídos por
encadeamentos normativos e transgressivos e é atualmente desenvolvida por Marion
Carel por meio da Teoria dos Blocos Semânticos (TBS). A TBS é uma aplicação do
estruturalismo saussuriano.
Para Saussure, o significado de uma expressão está nas relações estabelecidas
com outras expressões da língua (CAREL & DUCROT, 2005). O estruturalismo descreve
a língua por meio da própria língua, sem interferência do mundo exterior e a TBS
descreve a argumentação sem considerar a exterioridade da língua. Para
compreendermos melhor essa teoria, é importante apresentarmos o que Ducrot
destaca sobre: encadeamentos argumentativos, interdependência semântica, aspectos
argumentativos, bloco semântico, argumentação interna e externa.
O encadeamento argumentativo pode ser normativo ou transgressivo. A
fórmula que esquematiza os encadeamentos é X CONECTOR Y. Quando o conectivo é
DC (donc2), a orientação para a continuação é normativa. Todavia, se o conectivo é PT
(pourtant3), a orientação para a continuação é transgressiva. Ressalta-se que esses
dois conectivos não representam a única forma de marcar cada uma das relações
(CAREL & DUCROT, 2005).
Ao referir-se à interdependência semântica, Ducrot enfatiza sobre a
importância do encadeamento para o estabelecimento de relação entre dois
segmentos. O autor destaca que um segmento só tem sentido em relação com o outro
e afirma que o valor argumentativo de uma palavra é a orientação que é dada por essa

1
Mestre em Letras pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões. Docente do
SENAI/SC.
E-mail: mari.silveira972@gmail.com
2
Do francês: portanto
3
Do francês: no entanto

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palavra ao discurso. "... o emprego de uma palavra torna possível ou impossível uma
certa continuação do discurso e o valor argumentativo dessa palavra é o conjunto
dessas possibilidades ou impossibilidades de continuação discursiva..." (DUCROT,
1988, p. 51).
Os aspectos argumentativos representam um conjunto de encadeamentos.
Aldrovandi (2014) parafraseia Ducrot e destaca que por meio da mudança de um
conector DC em um PT e através da negação, é possível chegar a até oito aspectos
divididos em dois blocos semânticos com quatro aspectos cada. Ducrot (2005) afirma
ainda que cada bloco pode ser representado em um quadrado argumentativo. Um
quadrado teria os aspectos:

A DC B
A PT neg B
neg A PT B
neg A DC neg B

Enquanto o outro quadrado teria os aspectos:


A DC neg B
A PT B neg
A DC B
neg A PT neg B

A noção de argumentação externa e argumentação interna é essencial para a


TBS. A argumentação externa refere-se aos encadeamentos que podem ser feitos a
partir da entidade linguística ou nos encadeamentos que chegam até ela. As frases
Pedro é prudente, portanto não sofrerá acidentes e Ele tem medo, no entanto não é
prudente são exemplos da argumentação externa da palavra prudente à direita e à
esquerda respectivamente. A argumentação interna é a descrição da significação da
entidade linguística e ocorre por meio de paráfrases.
A seguir apresentaremos dois fragmentos de artigos científicos, mais
precisamente, os trechos que correspondem à introdução de cada um dos textos. O
primeiro trecho é de um artigo publicado na Revista E-Tech, está disponível no site
http://revista.ctai.senai.br/ e chamaremos de Texto A. O segundo trecho, designado
Texto B, é de um artigo disponível na biblioteca da instituição de ensino e foi
elaborado por um acadêmico egresso do Curso Superior de Tecnologia em
manutenção Mecânica.

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Encadeamentos argumentativos nos textos

Texto A
Analisa-se primeiramente o texto publicado na revista E-tech. Apresentamos
cada parágrafo seguido dos encadeamentos argumentativos observados e depois
apresentamos a análise das relações estabelecidas.

Parágrafo 1: A revolução industrial iniciou um processo de mudança radical na


vida das pessoas, pois, a partir desta mudança no cenário produtivo, o homem
intensificou sua relação com as máquinas. A busca desenfreada por uma resposta à
crescente demanda de consumo obrigou os seres humanos a se adaptarem às
máquinas, o que promoveu uma série de impactos à saúde do homem.

1 Mudança radical DC relação homem/máquina intensificada.


2 Homem obrigado a se adaptar às máquinas DC impactos à saúde.

Percebe-se neste texto a progressão das ideias por meio de uma abordagem
histórica sobre os problemas causados pelo esforço físico e como isso está sendo
resolvido. No primeiro parágrafo, percebemos que as palavras mudança e adaptação
têm uma função importante para o sentido do parágrafo. Também está claro que na
época retratada, o fato de o homem precisar se adaptar à máquina causou problemas
à saúde. Isso é representado pelo encadeamento normativo "2".

Parágrafo 2: No período da industrialização, tinha-se como foco promover o


crescimento econômico a todo custo, e não havia conscientização sobre os riscos
ergonômicos (instalações inadequadas para os trabalhadores) no local de trabalho.
Também não era avaliada a qualidade de vida dos trabalhadores, a regra era produzir
e fortalecer a economia. (PILLASTRINI, 2010; OTTO, 2011).

3 Industrialização DC crescimento econômico.


4 Crescimento econômico PT-neg conscientização sobre riscos ergonômicos.
5 Industrialização PT -neg qualidade de vida dos trabalhadores.
6 Industrialização DC produzir.
7 Produzir DC fortalecer a economia.

Neste parágrafo é enfatizada, pelo encadeamento transgressivo negativo, a


preocupação como o crescimento econômico sem dar importância à conscientização

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sobre os riscos ergonômicos. Além disso, a conjunção "e" da segunda linha, estabelece
uma relação transgressiva, enquanto a mesma conjunção na última linha do parágrafo
estabelece uma relação normativa. Percebe-se que na época retratada não havia
preocupação com a qualidade de vida dos trabalhadores, encadeamento "5".

Parágrafo 3: O ritmo acelerado de crescimento do mercado consumidor exigiu


cada vez mais da indústria um aumento de produtividade e uma redução dos custos de
fabricação. O grande desafio era atender a necessidade deste consumidor que exigia
das empresas: velocidade, eficiência e agregação de valor. Com estes direcionadores,
as organizações buscaram alterar seus processos, melhorando a relação homem-
máquina, para dar uma resposta ergonômica (adequando o ambiente de trabalho) ao
ser humano inserido neste ambiente. (ELIZABETH et al. 2011; KUHLANG, 2011).

8 Aumento de produtividade PT redução de custos.


9 Empresas velozes, eficientes, com valor agregado DC alterar processos.
10 Alterar processos Dc melhorar relação homem-máquina.
11 Melhorar relação homem-máquina DC adequar o ambiente de trabalho ao
ser humano.

No terceiro parágrafo, também se pode observar a conjunção e com uma


função transgressiva, ou seja, mais produção com menor custo - encadeamento 8.
Novamente percebe-se a importância da palavra alterar. Porém, enquanto nos dois
primeiros parágrafos o sentido de mudança e alterar referiam-se somente ao
crescimento econômico, aqui já se percebe uma preocupação com a relação homem-
máquina e que para melhorar essa relação é preciso - que o ambiente de trabalho se
adéque ao homem - encadeamentos 10 e 11.

Parágrafo 4: Nesse cenário de evolução, segundo Bornia (2010), as empresas


modernas procuram melhorar constantemente suas atividades e, nesse esforço, a
eliminação dos desperdícios é um dos principais pontos para obter um processo de
melhoria contínua. Segundo o autor: “[...] o foco no combate aos desperdícios é uma
ferramenta poderosa para a racionalização do processo produtivo e,
consequentemente, para a redução de custos”. (BORNIA, 2010, p. 7).

12 Eliminar desperdício DC processo de melhoria contínua.


13 Combate ao desperdício DC redução de custos.

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No quarto parágrafo, percebe-se a progressão das ideias do texto, visto que a


melhoria dos processos é resultado da eliminação de desperdícios e eliminando-se
desperdícios pode-se reduzir custos.

Parágrafo 5: Neste sentido, surgiram movimentos com foco em reduzir os


desperdícios e as atividades que não agregam valor, sendo que um desses movimentos
consiste na filosofia lean. A ergonomia, por sua vez, contribui através das intervenções
ergonômicas nos postos de trabalhos, reduzindo os custos com absenteísmos e
melhorando a qualidade de vida do ser humano e, como consequência, promovendo o
aumento da produtividade. (KUHLANG, 2011; IIDA, 2005).

14 Redução de desperdícios DC redução de atividades que não agregam valor.


15 Contribuição da ergonomia DC redução de custos.
16 Contribuição da ergonomia DC qualidade de vida.
17 Qualidade de vida DC aumento de produtividade.

A argumentação no parágrafo 5 se dá pela relação normativa entre redução de


desperdício, qualidade de vida e aumento de produtividade. Também é importante
observar que a ideia de reduzi desperdícios retoma o que já foi abordado no parágrafo
anterior.

Parágrafo 6: No cenário atual, o grande motivador da mudança, que está


forçando as organizações a promoverem cada vez mais intervenções ergonômicas, é a
necessidade de atender às exigências da NR 17 – ERGONOMIA. O aumento potencial
nos custos da Previdência Social, decorrente de indenizações e correções de problemas
de saúde, advindos de atividades que não atendem os requisitos ergonômicos, motivou
o governo a aumentar a &scalização e aplicar multas nas empresas que geram
passivos ergonômicos. (DELLEMAN et al. 2002; BATTINI et al. 2011; DUL et al. 2009).

18 Exigências da NR17 DC motivador de mudança.


19 Indenizações por problemas de saúde DC-neg requisitos ergonômicos.
20 Aumento de fiscalização DC multas em empresas geradoras de passivos
ergonômicos.

Nos parágrafos anteriores, o autor destaca que a preocupação com a qualidade


de vida dos colaboradores resulta em aumento de produtividade. No parágrafo 6, ele
enfatiza que a mudança é motivada por exigências da NR17. Os encadeamentos 18 e
20 são normativos e novamente percebe-se a importância da palavra mudança para a

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construção da argumentação do texto. O encadeamento 19, transgressivo, reforça que


as indenizações por problemas de saúde advém da negação dos requisitos
ergonômicos. A relação estabelecida por esse encadeamento reforça a importância de
se observar esses requisitos.

Parágrafo 7: Este trabalho tem como objetivo promover a melhoria em uma


bancada de teste de estanqueidade, por meio da intervenção ergonômica, com o
objetivo de demonstrar as contribuições que tal intervenção pode trazer para o setor
metalúrgico da cidade de Joinville.

21 Melhoria da bancada de testes DC intervenção ergonômica


22 Intervenção ergonômica DC contribuições para o setor metalúrgico.

No parágrafo 7, percebe-se que o sentido de mudança está na argumentação


de melhoria. Ou seja, se algo melhora é porque muda. O autor tem amparo no que
abordou anteriormente para afirmar que a intervenção ergonômica contribuirá com o
setor metalúrgico, visto que afirmou anteriormente que há a NR 17 e que além de
haver uma norma que deve ser respeitada, a melhoria na qualidade de vida do
colaborador propicia melhor produtividade.

Texto B
A trecho extraído para a análise do Texto A está organizado em quatro
parágrafos. Apresentaremos cada parágrafo e os encadeamentos argumentativos
observados.

Parágrafo 1: Nada mais prático que apertar um simples botão e se deslocar até
outro andar, sem nenhum esforço físico.

23 Apertar botão DC prático;


24 Nenhum esforço físico DC prático.
25 Apertar botão DC nenhum esforço físico.

Neste primeiro parágrafo, a palavra prático desempenha uma função


importante na argumentação apesar de se tratar de um parágrafo curto, que poderia
estar mais completo se o autor não o separasse do segundo parágrafo.

Parágrafo 2: Os "elevadores para cadeirantes", além de confortável e ágil, pode


ser a solução ideal para quem tem pouco espaço, pois é uma ideia inteligente e voltada

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aos que necessitam de uma facilidade para acessos em certos lugares de difícil acesso,
seja ele residencial, público ou comercial. Visa atender à necessidade de garantir
acessibilidade a todos os locais por pessoas portadoras de deficiências ou com
mobilidade reduzida, suprindo assim de maneira prática e eficiente uma exigência
social e legal, possibilitando a integração social.

26 Elevadores para cadeirantes DC solução para pouco espaço


27 Garantia de acessibilidade DC possibilidade de integração social

Percebe-se neste parágrafo problemas de concordância" os elevadores [...]


pode ser [..] é uma ideia [...] seja ele...Visa atender" Também há problemas com
relação a pontuação. Não há nenhuma marcação, por entidade linguística, da relação
com o primeiro parágrafo.

Terceiro parágrafo: Pela estimativa do IBGE, o Brasil tem 28 milhões de pessoas


com deficiência. o transporte vertical é uma grande conquista da tecnologia a favor da
comodidade, seja como instrumento de trabalho ou como transporte usual, tendo a
certeza de que os elevadores são parte do seu dia a dia, uma lei federal de 2004
determina que todos os locais devesse promover a facilidade de acesso para pessoas
com deficiência e mobilidade reduzida.

Transporte vertical DC conquista para a comodidade.

Também há problemas com a concordância neste parágrafo. As ideias


apresentadas parecem confusas. É apresentada uma estimativa do IBGE, seguida de
um comentário sobre transporte vertical e depois uma referência a uma lei federal. O
referente para o pronome "seu" também está confuso no texto. Percebe-se uma
relação como os parágrafos anteriores por meio da expressão "facilidade de acesso".

Quarto parágrafo: Elevadores especiais são fundamentais para o transporte de


pessoas portadoras de deficiência física, e também para espaços diferenciados. devem
seguir todos os padrões estabelecidos pela ABNT (Associação Brasileira de Normas
Técnicas) e as legislações específicas para transporte vertical, garantindo o máximo em
segurança aos usuários. Também são muito usados em condomínios de apartamentos
para atender ao hall central antes de acesso aos elevadores principais do prédio,
piscinas, áreas de lazer, etc.

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No último parágrafo, percebe-se o estabelecimento de relação com os


parágrafos anteriores por meio das entidades linguísticas elevadores; deficiência física.
É um parágrafo que apresenta problemas de concordância e pontuação e isso
prejudica a construção de sentido por parte do leitor.

Considerações sobre transposição didática

O texto B apresenta muitos problemas. A desorganização das ideias no interior


de cada parágrafo e a falta de relação entre um parágrafo e outro dificultam o
processo de leitura. Esperamos que a transposição didática da TBS seja uma
possibilidade para que os estudantes aprimorem seus textos. Acreditamos que
precisam ser feitas tentativas. Para isso, propomos inicialmente a leitura coletiva dos
dois trechos de textos, começando pelo texto A.
Consideramos que uma atividade oral é uma boa alternativa. O texto A foi
projetado e ao realizar a leitura os alunos foram questionados sobre o sentido do
enunciado. As perguntas feitas pelo professor abordam as relações estabelecidas no
parágrafo e conforme os alunos fazem os apontamentos, o professor registra os
enunciados que parafraseiam o texto. Chevallard (1985) destaca que devem ser feitas
adaptações para que a teoria seja transformada em objeto de ensino. Por isso, o
professor não falará com seus alunos em TBS.
As entidades linguísticas utilizadas em sala de aula devem ser adequadas ao
ensino. Desse modo, o professor pode pedir primeiramente que os estudantes leiam
cada parágrafo e façam apontamentos sobre a sua compreensão, dizendo "com outras
palavras" o que entenderam do texto. Após discussão com a turma sobre o sentido do
parágrafo, o professor pode fazer perguntas cujas respostas evidenciem a relação
estabelecida.
Um exemplo disso é a questão: A que se refere a expressão "desta mudança"
no parágrafo 1? Este exemplo também possibilita explicar o uso de expressões
anafóricas e catafóricas e mostrar aos alunos que a expressão no texto deveria ser
"dessa mudança" por ser uma expressão anafórica. Outro exemplo de questionamento
possível é com relação ao tempo verbal, ou seja, pode-se solicitar que formulem
hipóteses sobre o motivo de até o terceiro parágrafo o tempo verbal predominante ser
o passado e a partir do quarto parágrafo o tempo verbal predominante ser o presente.
Essa variação do tempo predominante é responsável pela progressão das ideias já que
o autor tem por objetivo convencer sobre a importância do seu projeto.
Após ter estudado detalhadamente o texto A, pode ser realizada a leitura
coletiva do texto B. Propomos que o professor questione os estudantes sobre a relação

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estabelecida no texto e espera-se que os estudantes percebam que os parágrafos não


estão redigidos de forma clara. Os questionamentos do professor devem possibilitar o
estabelecimento de relação entre os dois textos e os acadêmicos devem propor a
reescrita tornando-o claro. Também pode ser proposto que encontrem na biblioteca
referências que tratem do assunto para que possam incluir paráfrases em que
apareçam as fontes de consulta.

Considerações finais

Pela análise desses dois textos percebemos que o texto A está melhor
organizado e possui características de texto científico como por exemplo, a
fonte/autor da afirmação que no texto aparece parafraseada. Observamos que há
relação entre as ideias que compõem cada parágrafo e também entre parágrafos que
são organizados de modo a apresentar uma progressão das ideias.
O texto B apresenta muitos problemas e a nossa preocupação refere-se ao fato
de ser um texto que corresponde ao Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de um
egresso do Curso superior de Tecnologia em Manutenção Industrial. Os demais
textos/TCCs também apresentam problemas parecidos.
Acreditamos que a transposição didática da TBS contribuirá para a escrita dos
textos acadêmicos, pois se os estudantes perceberem as relações estabelecidas e até
mesmo os problemas que dificultam a compreensão, poderão, por meio da escrita e
reescrita, melhorar a qualidade de seus textos. Conforme abordamos, nossa proposta
ainda é uma tentativa e mais estudos e testes precisam ser realizados.

Referências

ALDROVANDI, Makeli. Coesão e coerência textuais sob a perspectiva da teoria da


argumentação na língua. Dissertação (Mestrado em Letras). Programa de Pós-
Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: PUCRS, 2014.
CAREL, Marion; DUCROT, Oswald. La Semántica Argumentativa. Una Introducción a la
Teoría de los Bloques Semánticos: Edición literaria a cargo de María Marta Negroni
y Alfredo M. Lescano. 1. ed. Buenos Aires: Colihue, 2005.
DUCROT, Oswald. Polifonía y argumentación: conferencias del seminario tTeoría de la
Argumentación y Análisis del Discurso. Cali: Universidad del Valle, 1988.
_____. Argumentação retórica e argumentação linguística. Letras de Hoje, Porto
Alegre, v. 44, n. 1, p. 20-25, jan./mar. 2009.

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MEDIANERAS: BUENOS AIRES EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO

Michele Neitzke1

Introdução

A globalização não é um tema novo nos debates que discorrem de narrativas de


obras fílmicas, as quais se encaixam no contexto latino-americano contemporâneo,
pois como comenta Getino (2015, p.3), “resulta indiscutible que la identidad cultural
nacional, al igual que el cine directamente relacionado con ella, no es ni lo fue nunca
una circunstancia estática o incontaminada” pelos gêneros hollywoodianos. Desta
forma, percebe-se que a influencia global do cinema atua na serialização das películas,
pouco se percebendo características territoriais, étnicas, religiosas ou socioculturais.

odemos di er que os interc mbios culturais entre sociedades


coincidem com o in cio da hist ria da humanidade, desde a r cia
lássica e o mp rio omano, com as in meras trocas e intera es
ocorridas no editerr neo, passando pela e pans o da uropa em
dire o m rica e a rica sempre ocorreu o contato entre di erentes
culturas (CANCLINI, 2015, sp).

Canclini (1993) elucida que as áreas da comunicação, bem como da arte,


antropologia, história, dentre diversos outros setores do conhecimento, unem-se no
atual contexto em entendimento com as tecnologias, presentes assim também em
outros aspectos da cultura atual. Esta mistura entre o culto e o comum serve como um
antro da heterogeneidade cultural. Para ele, assim como o grafite e as revistas em
quadrinhos, o cinema também atua como um lugar de confluência cultural,
compreendendo as mais diferentes estéticas artísticas.
interculturalidade transcendeu os limites dos pa ses hegem nicos no nal do
s c.XX devido ao crescimento dos processos globalizadores operados por empresas
transnacionais. Um mercado mundial formado para efetuar trocas de bens materiais

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação Curso de Mestrado em Letras Área de concentração:
Literatura Comparada na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - Campus de
Frederico Westphalen.
E-mail: michele@neiztke.com.br

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proporcionou o acr scimo de uide e intera es, assim como diminuiu ronteiras
entre os pa ses. progress o das tecnologias de comunica es, bem como as
disposições de deslocamento que permitem um aumento dos contatos de pessoas,
id ias, bens e signi cados causaram tamb m um maior encontro entre as mais di ersas
culturas.
Neste trabalho temos como objeto principal o filme argentino Medianeras:
Buenos Aires da era do amor digital, lançado no ano de 2011, pelo diretor Argentino
Gustavo Taretto. Sendo uma coprodução entre Argentina, Espanha e Alemanha, em
suas variáveis relacionadas ao estudo do sujeito, das identidades e da cultura latino-
americana, recebeu os prêmios de melhor filme estrangeiro e de melhor diretor no
Festival de Gramado do mesmo ano. O longa foi produzido a partir do curta de mesmo
nome, lançado no ano de 2005. A representação de vidas solitárias, do caos urbano e
da vida moderna na capital Argentina são apresentadas ao público, permitindo uma
leitura das identidades mostradas na obra e as consequências sofridas por elas em
decorrência da globalização.

A era do amor digital

A história relata a vida de Martin e Mariana, representados por Javier Drolas e


Pilar Lopez de Ayala. Ambos vivem na mesma movimentada rua de Buenos Aires,
cruzam-se quase que diariamente, mas nunca se encontraram, nem mesmo notam um
ao outro em decorrência das barreiras impostas pela urbanização da cidade e pelo
isolamento contemporâneo mediado pela tecnologia global. Depressivos e sozinhos,
vivem em meio a este caos da vida urbana e agitada da metrópole, sendo muitas
destas barreiras um conjunto de características próprias da globalização como, por
exemplo: imersão virtual, isolamento, percepção de aceleração do tempo e de
diminuição das distâncias, que nos permite identificar a forte presença de elementos
de outras nacionalidades no dia a dia dos latino-americanos, revelando a interconexão
entre diferentes países e diferentes culturas na configuração da identidade latino-
americana, no que Canclini (1993) designou como identidades híbridas.

El desarrollo tecnológico, sobre todos los satélites y la informática,


contribuyeron a crear en las dos últimas décadas un mercado
económico y financiero mundial, donde la producción se
desterritorializa. Estos cambios en la producción son acompñados por
la ormaci n de una ‘cultura internacional-popular’que organi a a los
consumidores de caso todos los países con información y estilos de
vida homogeneizados, pero sí compartidos en un imaginario multilocal

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constituid por los ídolos del cine hollywoodense y la música pop, los
heróes deportivos y los diseños de ropa (CANCLINI, 2015, sp).

A , termo escolhido para por anclini para “designar as misturas


interculturais propriamente modernas, entre outras, aquelas geradas pelas integra es
dos stados nacionais, os populismos pol cos e as ind strias culturais” (Canclini, 2003,
p. XXVII). Seria assim um termo adequado para tradu ir os processos deri ados da
interculturalidade, n o s as us es raciais comumente denominadas de
ou o sincretismo religioso, mas tamb m as misturas modernas do artesanal com o
industrial, do culto com o popular e do escrito com o isual, ou se a, trata-se de um
conceito de maior amplitude e atualidade que e plicaria melhor os comple os
processos combinat rios contempor neos “n o s as combina es de elementos
tnicos ou religiosos, mas tamb m a de produtos de tecnologia a an adas e processos
sociais modernos ou p s-modernos” ( N L N , 2015, sp).
O filme, considerado uma comédia romântica, um gênero, que segundo o
modelo hollywoodiano, é caracterizado por histórias onde duas pessoas se conhecem,
mas, apesar de sentirem atração uma pela outra, elas não se envolvem
romanticamente devido a barreiras externas, como por exemplo um pai possessivo ou
uma distância de cidades, mas que por alguma reviravolta, eles acabam ficando juntos
e vivendo felizes para sempre em um casamento comum. Segundo Getino (2015, p. 3)
“los g neros no son necesariamente modelos acabados de abricaci n”, ou se a, no
caso do cinema latino-americano, ele pode e deve adequar-se as novas realidades do
cinema contemporâneo, devido as exigências que se fazem sobre ele.

A partir de la década del noventa, surge una serie de filmes en algunos


países latinoamericanos, especialmente en Argentina, Colombia, Brasil
y Mexico, que tienen como rasgo común una supuesta orientación
hacia los modos de representación realista (DOLL, 2012, p. 52).

Nesta película percebemos que a história é adaptada para as realidades que


recentemente tem invadido a América Latina, o uso incessante da internet e as
consequências que isso pode trazer para as pessoas. No caso de Martin, um web
designer que trabalha em seu pequeno apartamento em Buenos Aires, pouco sai para
a rua, tendo assim uma vida bastante depressiva, e vivendo muito mais no mundo
virtual, onde faz de tudo, das compras ao sexo.
No prédio vizinho, está Mariana, uma jovem arquiteta que não atua na sua área
e trabalha como vitrinista. Assim como Martin, ela vive em um apertado apartamento,

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que divide com os manequins da loja, sendo esses, às vezes, a sua única companhia,
fora seu amigo virtual. Tendo recentemente acabado um relacionamento de muito
tempo, ela evita contato com outras pessoas na vida real a fim de não demonstrar suas
fobias, como o medo de usar elevador. Desta forma, a internet serve como consolo e
também como fuga.
Ambos os personagens acabam sendo muito parecidos, ao refletirem a vida
moderna e as barreiras que ela impõe. E, mesmo que seus caminhos se cruzem
diariamente, eles demoram a se encontrar. A narrativa se passa na movimentada e
cosmopolita Buenos Aires de mais de três milhões de habitantes. A câmera mostra
como a urbanização tomou conta da cidade, tornando o que uma vez foi uma bela e
verde cidade, em um emaranhado cinza de prédios, cujas paredes laterais proibidas de
terem janelas servem para a publicidade de famosas marcas, janelas estas que são
chamadas de medianeras. E é, justamente, nessas paredes que ambos os personagens
irão, literalmente, procura uma luz, pois, mesmo sendo proibido, eles as rompem para
abrir janelas, que trarão um pouco mais de felicidade, cor e vida aos seus
apartamentos e permitindo assim um encontro que desde o inicio da obra filmica, é
esperado por todos.

Conclusão

Conclui-se, a partir da análise da obra cinematográfica, que é muito forte a


influência estrangeira e hegemônica sofrida pelas culturas latino-americanas através
da globalização. Medianeras fala desse mundo em que vivemos, um mundo
interconectado de diversas formas, e dos processos de imbricamentos culturais pelos
quais passamos diariamente, que são responsáveis por nos levarem a entender, ou
não, todas estas culturas que agora se misturam. As mudanças culturais concebidas
em decorrência das tecnologias mais recentes e também por transmutação na
elaboração e circulação emblemática, não possuem mais uma responsabilidade apenas
dos meios de comunicação. Os valores citadinos modificaram-se devido a
transformação produzida através do cruzamento de forças modernistas.
No decorrer do filme, poucas características explicitamente latino-americanas
são identificáveis, além da língua falada pelos personagens, apresentando uma
identidade em constante processo de hibridação intercultural, ou seja, todas as
organizações como etnia e classe se reestructuran en médio de conjuntos interétnicos,
transclasistas y transnacionales (CANCLINI, 1993). Processo esse que é comum a todas
as identidades, são híbridas pelo simples fato de terem passado por reconstruções em

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função da influência e do contato com de outras identidades, intensificados pelos


decorrentes do processo de globalização.

Referências

CANCLINI, Néstor García. La Globalización: ¿productora de culturas híbridas? ctas del


ongreso La noamericano de la sociaci n nternacional para el studio de la
sica opular. Disponível em: <http://cursos.campusvirtualsp.org/
pluginfile.php/2588/mod_resource/content/1/Modulo1/Garciacanclini_1_.pdf>.
Acesso em: 15 nov. de 2015.
CANCLINI, Néstor García. La Cultura Visual En La Epoca Del Posnacionalismo. ¿Quién
nos va a contar la identidad? Nueva Sociedad, n. 127, set-out, 1993.
DOLL, Darcie. Escapar de los géneros entrando en ellos. Una tendencia del cine
latinoamericano actual. Comunicación y Medios, n. 26, 2012.
GETINO, Octavio. Algunas reflexiones sobre los generos cinematograficos y la
globalizacion de la imagen. Disponível em: <http://octaviogetinocine.blogspot.
com.br/2010/06/algunas-reflexiones-sobre-los-generos.html>. Acesso em 15 nov.
2015.
MEDIANERAS: Buenos Aires da era do amor digital. Direção: Gustavo Taretto. INCAA.
Argentina, 2011. 95 min. Som, Color, Formato: 35 mm.

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ALFRED ANDERSCH: REFLEXÕES SOBRE O CONFLITO NÃO RESOLVIDO ENTRE BIOGRAFIA E


OBRA À LUZ DA ESTÉTICA DA RECEPÇÃO

Milena Kunrath1

A Alemanha, uma nação de forte tradição literária, não produziu nada de


significativo no campo da literatura no período de 1933 a 1945, anos do domínio
nazista. Os escritores que anteriormente encontravam-se ativos, e que pretendiam
continuar escrevendo, seguiram por diversos caminhos: a adaptação às exigências
medíocres da ditadura, o exílio e a clandestinidade, que poderia ter por consequência
a prisão e até mesmo a morte. Na Alemanha, houve ainda uma quarta via tomada por
alguns autores, a imigração interna (Innere Emigration).
Dentro da imigração interna, uma forma dos escritores fecharem-se em si
mesmos, a maioria dos intelectuais proeminentes recusou-se a escrever de forma
vigiada, ou seja, não publicaram neste período. Uma nova geração tentou se impor
usando de estratégias para driblar o sistema, como por exemplo, tratar de temas
clássicos, fazer paródias discretas ou publicar clandestinamente para um pequeno
grupo. A maioria não sobreviveu à guerra: ou tombaram como soldados, suicidaram-se
ou foram perseguidos e mortos pelo regime.
Alfred Andersch foi uma exceção. Ele não só sobreviveu para contar sua
história, como também se tornou um escritor conhecido e "representante" de sua
geração. Andersch se autointitula um expoente da imigração interna, embora sua
biografia o desminta. As cerejas da liberdade - um relato2 surgiu em 1952 como um
relato, mas também como uma justificativa da deserção de Alfred Andersch em 1944.
O autor apresenta sua obra da seguinte forma:

Meu livro tem meramente a tarefa de expor que eu, seguindo um


curso nebuloso, escolhi, em um determinado momento, o ato que
deu alma à minha vida e tornou das cinzas para girar a roda do meu
ser3 (ANDERSCH, 2006, p. 54).

1
Doutoranda em Teoria da Literatura da PUCRS, bolsista CAPES. E-mail: milena.kunrath@gmail.com
2
Die Kirschen der Freiheit - ein Bericht, no original, sem tradução para o português.
3
Mein Buch hat lediglich die Aufgabe darzustellen, daβ ich, einem unsichtbaren Kurs folgend, in einem
bestimmten Augenblick die Tat gewählt habe, die meinem Leben Sinn verlieh und von Achse wurde, um
die sich das Rad meines Seins dreht.

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E completa, "Este livro não quer mais nada do que dizer a verdade, uma
verdade privada e subjetiva"4 (ANDERSCH, 2006, p. 54).
Na época de sua publicação, Andersch foi aclamado pela crítica pela sua
coragem na abordagem de um tema tabu (deserção); e o impacto da obra foi definido
por Heinrich Böll da seguinte forma: "Um golpe de trombeta no silêncio onipotente. 5"
O momento foi certeiro, já que abarcou a discussão pela remilitarização da Alemanha
da era Adenauer.
Tanto sucesso não foi, porém, unânime. Principalmente, o surgimento de
outras obras do autor e a sua postura implacável contra toda e qualquer crítica
colocaram seu trabalho em cheque. Um dos grandes questionadores do valor
intrínseco da obra de Andersch foi o escritor W. G. Sebald. Para Sebald, 2011, "(...) a
imigração interna de Andersch foi, na verdade, um processo de ajustamento às
circunstâncias dominantes que o comprometeu profundamente" (p. 103). Nos anos do
domínio do terceiro Reich, o aspirante a escritor trabalhou numa editora
reconhecidamente racista (lidava principalmente com teorias étnicas, higiene racial e
teoria das raças): Sebald (2011) questiona se um "imigrante interno" não poderia ter
escolhido um outro trabalho qualquer que não se coadunasse tão nitidamente com os
princípios do Führer.
Andersch foi um dos fundadores do grupo intelectual-literário "47". Ao
contrário de outros participantes desse grupo, como Günter Grass, não adotou o
argumento da culpa coletiva dos alemães. Pelo contrário, acreditou na inocência dos
soldados (inclusive ele) e coloca a responsabilidade pela guerra e suas sórdidas
consequências apenas nos altos mandatários do Reich. Para Sebald,

Andersch, que no fim das contas vivenciara uma guerra


relativamente cômoda, se arrogava agora porta-voz "dos
combatentes de Stalingrado, El Alamein e Cassino", absolvendo-os
em seu comentário ao processo de Nuremberg de qualquer
cumplicidade pelos crimes de Dachau e Buchenwald (SEBALD, 2011,
p. 112).

Sebald continua sua crítica, afirmando que a guerra foi para Andersch mais uma
excursão cultural pela Europa do que efetivamente o pesadelo dos que estiveram de
fato na frente de batalha. Quando ficou claro para Andersch que a Alemanha não iria
vencer a guerra, o impulso pela deserção começou a atormentá-lo.
4
Dieses Buch will nichts als die Wahrheit sagen, eine ganz private und subjektive Wahrheit.
5
"Trompetenstoβ in schwüler Stille."

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O escritor questiona ainda o fato do casamento "inter-racial" de Andersch com


a judia Angelika ter ficado de fora de seu livro-relato Die Kirschen der Freiheit. Na
biografia oficial de Andersch, escrita por Stephan Reinhardt (Alfred Andersch. Eine
Biographie, sem tradução para o português), o casamento acontece em 1935 e teria
tido o intento de proteger a moça das leis raciais de Nürnberg, não excluindo, ao
mesmo tempo, o fato do escritor admitir o seu enorme apelo erótico e a fortuna de
sua família. O argumento de proteção fica invalidado ao constatar-se que ele se
divorciou de Angelika em 1943, "momento em que já não mais se tratava da
promulgação das leis raciais, mas da execução mais rápida possível da solução final"
(Sebald, 2001, p.105); além disso, a motivação do divórcio torna a atitude ainda mais
torpe: ele queria lançar-se como escritor, mas a precondição para qualquer publicação
era o atestado de origem racial do cônjuge.
Segundo Sebald (2011), Andersch usa da "Literatura como meio de retificar a
biografia" (SEBALD, 2011, p. 122). Sebald escreve um ensaio que visa a "desmascarar"
as incoerências entre a vida e a obra de Alfred Andersch. Não há dúvida, diante das
diversas provas documentais, da má fé e da moral questionável do escritor. Mas a
pergunta mais importante a ser respondida que aqui se impõe é: A obra perde o valor,
ou tem seu valor alterado, diante da biografia duvidosa de seu criador?
Já houve na Literatura movimentos que estudaram exclusivamente o autor, a
obra ou a recepção. Hoje sabemos que nenhuma pesquisa que se utilize somente de
um destes elementos será completa. Não podemos, portanto, conceber que a vida do
autor e a opinião do leitor poderão ser desconsideradas se a obra for excelente por si
só. Podemos nada saber sobre o autor e sua vida, mas, no caso, de Andersch, o
sabemos, e esta informação não pode ser ignorada como componente de avaliação a
qualidade, inclusive literária, da obra.
Segundo Jauss, 1993,

É preciso incluir também nesta interacção entre a obra e a


Humanidade a relação das obras entre si, e situar a relação histórica
entre as obras no conjunto de relações recíprocas que existem entre
a produção e a recepção (JAUSS, 1993, p. 47).

A pergunta não é nova, nem foi dirigida a apenas uma obra. Existem diversos
exemplos, inclusive no presente, em que a arte ultrapassa os limites do aceitável em
nome de algo maior. As obras de Günter Grass, por exemplo, perdem seu valor pelo
passado nazista escondido pelo autor? E quanto ao gênio do cinema, Polanski,
criminoso confesso, devemos perdoá-lo, já que produz ótimos filmes? Cada caso é um

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caso. O que incomoda em Andersch, primeiramente, é a pretensão de verdade de sua


autobiografia. Die Kirschen der Freiheit - ein Bericht se propõe como verdade já no
título: um relato. O personagem principal de O Tambor de Günter Grass, apesar de
fantástico no sentido literário, tem semelhanças incríveis com o autor, mas este
apresentou sua obra como ficção. Por que Andersch não optou por oferecer sua visão
deturpada dos fatos com a segurança de uma ficção?
Segundo Almeida, Andersch dá pistas em seu relato de que o narrado possa
constituir uma ficção, porém mesmo ela admite que o restante do relato corresponde
à verdade:

A caracterização das personagens e de si mesmo com o protagonista


e a descrição de objectos e lugares são apresentadas com exactidão
quase obsessiva, notando-se um cuidado extremo na composição
global da obra, cujos processos estilísticos variados são apontados
pelo próprio narrador/autor: num dado momento este atribui ao seu
relato (lembremos o subtítulo — "Ein Bericht") a designação de
"Erzählung" (vd. KF, 123) atribuindo-lhe implicitamente traços da
narrativa ficcional (ALMEIDA, 1992, p. 180).

No decorrer do relato de Andersch, observamos uma técnica narrativa em que


transparece seu modo de expor-se. Muitas de suas experiências pessoais são descritas
com uma primeira pessoa oculta, e, já que a gramática do alemão não permite o
sujeito oculto, acredito que não se trate apenas de estilo, mas sim de uma deliberada
"ocultação" pessoal para os temas em que o autor não se reconhece como o herói.
Pode-se argumentar que a leitura da obra precisa ser isenta, e que o leitor não
é credenciado para avaliar, com todos seus preconceitos e informações adjacentes
(acerca da vida do escritor), a literariedade ou o valor de um livro. Jauss argumenta,
porém, citando Bulst, da seguinte forma:

Mas – tal como afirmou Walther Bulst – "nunca nenhum texto foi
escrito para ser filologicamente lido e interpretado por filólogos"
nem – acrescento eu – para ser historicamente lido e interpretado
por historiadores. Ambos os métodos falham a compreensão do
leitor e de seu papel genuíno, compreensão imprescindível tanto
para o conhecimento estético como histórico: a do leitor como
aquele a quem primeiro é dirigida a obra literária (JAUSS, 1993, p.
56).

Wolfgang Iser (1996) concorda com esta linha de pensamento:

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O texto não pode ser fixado nem à reação do autor ao mundo, nem
aos atos de seleção e da combinação, nem aos processos de
formação de sentido que acontecem na elaboração, nem mesmo à
experiência estética que se origina de seu caráter de acontecimento
(ISER, 1996, p. 13).

Ou seja, todos os elementos devem ser levados em conta e o principal fruidor


do processo, o leitor da obra não pode ser excluído de sua avaliação. Usando como
exemplo dois escritores alemães do pós-guerra, Hans Hellmut Kirst e Dieter Noll,
podemos observar o poder de influência da crítica: Kirst, apesar de estudado como um
expoente dos escritores dos romances de guerra, é considerado irrelevante no
panorama literário. Do mesmo modo, embora tenha vendido milhões de exemplares, o
apelo para narrativas de guerra distanciou-se das aspirações do publico leitor, e o que
em determinado momento fazia parte de sua própria história não foi mais capaz de se
comunicar às gerações posteriores. Da mesma forma, Noll não é mais lido, nem
pesquisado na Alemanha, mas por diferentes motivos: apesar da qualidade da obra,
por ter sido um escritor aprovado6 da ex-Alemanha Oriental (seu principal livro era,
inclusive, leitura obrigatória do ensino médio), Noll não é estudado pela academia e só
é lembrado por aquela geração de secundaristas que foram obrigados a ler seus livros.
No último caso, até mesmo a academia agiu como um leitor indignado, afinal não se
pode louvar alguém que certamente foi cúmplice de uma ditadura.
Segundo Wolfgang Iser (1996), isso se deve a dois tipos distintos de apreciação
da obra: “Uma teoria do efeito está ancorada no texto - uma teoria da recepção está
ancorada nos juízos históricos dos leitores.” (ISER, 1996, p. 16) Ou seja, podemos
separar dois tipos de interpretação de um texto. De forma paradigmática, recortamos
um determinado momento na história, e observamos a recepção dos leitores de
acordo com as informações que eles possuem (os valores da época, o conhecimento a
respeito da vida do autor). Por outro lado, podemos observar também apenas o efeito
e a fruição do leitor em seu contato direto com o texto. Para Iser (1996), então, “O
efeito estético deve ser analisado, portanto, na relação dialética entre texto, leitor e
sua interação.” (ISER, 1996, p. 16)
Iser (1996) preocupa-se ainda com outra distinção: “(...) a obra literária tem
dois polos que podem ser chamados polos artístico e estético. O polo artístico designa
o texto criado pelo autor e o estético a concretização produzida pelo leitor." (ISER,
1996, p. 50). Com isto, o autor explica a importância do trabalho conjunto, escrita e

6
Ser um escritor aprovado pelo regime significava, consequentemente, desfrutar das vantagens e
concordar acriticamente com a ideologia e todas as atitudes do governo.

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leitura para concretização total da obra. Não se pode, portanto, conceber a existência
do texto sem o ato da leitura. Então, segundo Iser (1996), "O efeito depende da
participação do leitor e sua leitura; contrariamente, a explicação relaciona o texto à
realidade dos quadros de referência e, em conseqüência, nivela com o mundo que o
surgiu através do texto ficcional." (ISER, 1996, p. 34)
Pergunto-me, então, se a biografia manchada do autor altera o valor de sua
obra. Sim e não. Não, pois o texto é, de fato, o mesmo e as informações externas não
alteram o texto escrito, segundo a teoria do efeito de Iser (1996). Acrescento ainda
que as questões sobre a biografia do escritor só vieram à tona muito depois da
publicação e do consequente sucesso do livro Die Kirschen der Freiheit. Não há dúvidas
de que o efeito da obra sobre o leitor, desejado ou não pelo autor, aconteceu. Se ainda
existem questionamentos a respeito da obra posterior do escritor, seu romance de
estreia foi capaz de abordar o tema proibido da deserção enquanto a Alemanha se
recuperava da guerra que destruiu física e moralmente o país e seus habitantes. As
reflexões sobre qual o caminho a nação, ainda ocupada pelas potências vencedoras,
seguiria dali para frente e qual espaço seus soldados ocupariam neste contexto
(alguns, recém-retornados dos campos de prisioneiros), ainda que literárias, foram
necessárias para transformação da Alemanha no país atual. Porém, após a estreia da
obra, seu sucesso e consequentes estudos, sabemos sobre a vida do autor e os
questionamentos feitos a respeito de sua idoneidade, e agora a nossa recepção está
ancorada não apenas no texto, mas estará condicionada também aos fatores externos.
Devemos então observar que não existe uma resposta absoluta para as questões
propostas e que os estudos das obras, neste caso, do trabalho de Alfred Andersch,
podem e devem oferecer múltiplos resultados.

Referências

ALMEIDA, Maria Marques. Alfred Andersch: o devir de um escritor: análise dos


processos de estilização literária de vivências pessoais na construção de uma
escrita autobiográfica específica. 1992. 646fls. Tese (Doutorado em Letras) -
Universidade do Porto, Porto, 1992.
ANDERSCH, Alfred. Die Kirschen der Freiheit. Zürich: Diogenes, 2006.
ISER, Wolfgang. O ato da leitura: Uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes
Kretschemer. São Paulo: Ed. 34, 1996.
JAUSS, Hans Robert. A literatura como provocação. Tradução de Teresa Cruz. Lisboa:
Vega, 1993.

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SEBALD, W. G. O escritor Alfred Andersch. Tradução de Carlos Abbenseth e Frederico


Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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DESAFIOS NA ANOTAÇÃO AUTOMÁTICA MORFOSSINTÁTICA DE CORPUS DE LÍNGUA FALADA

Mônica Rigo Ayres1

1 Introdução

A tecnologia permite que avancemos em várias áreas da ciência, e com a


Linguística não poderia ser diferente. Pretendemos, com nosso trabalho, sugerir
melhorias para que um etiquetador automático morfossintático tenha ainda mais
acurácia na etiquetagem, especialmente ao tratar de corpus de língua falada. Neste
texto, falaremos brevemente sobre a linguística de corpus, o processo de etiquetagem,
apresentaremos o etiquetador e o corpus utilizados em nosso trabalho e discutiremos
os desafios encontrados na etiquetagem de aspectos específicos de língua falada,
sugerindo implementação de novas etiquetas no software.
O objetivo principal de nossa pesquisa2 é tornar o etiquetador um instrumento
ainda mais confiável para pesquisa linguística, especialmente para tratar de língua
falada, já que corpora anotados podem auxiliar pesquisas tanto de cunho teórico como
aplicado.

2 Linguística de corpus

A Linguística de corpus se preocupa com a coleta, compilação e exploração de


textos com a finalidade de auxiliar pesquisas linguísticas. É necessário que essa
amostra de língua esteja em um formato que possa ser processado pelo computador,
pois assim é mais seguro o armazenamento do corpus, mais rápido seu
compartilhamento e sua exploração pode ser feita com a ajuda de ferramentas
computacionais. De acordo com Berber Sardinha
a Linguística de Corpus se ocupa da coleta e exploração de corpora,
ou conjuntos de dados linguísticos textuais que foram coletados
criteriosamente com o propósito de servirem para a pesquisa de uma

1
Mestranda em Linguística na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
E-mail: monicarigoayres@hotmail.com
2
Esta pesquisa foi desenvolvida em meu trabalho de conclusão de curso de Licenciatura em Letras na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em parceria com a Universidade Federal do Ceará
(UFC).

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língua ou variedade linguística. Como tal, dedica-se à exploração da


linguagem através de evidências empíricas, extraídas por meio de
computador. (SARDINHA, 2000a, p. 2)

Então, um corpus é um conjunto de textos ou dados linguísticos autênticos,


coletados e selecionados com uma intenção de pesquisa. Para que um corpus seja
estudado, é preciso que o pesquisador primeiramente delimite seu enfoque de estudo
e só então defina qual é o corpus mais adequado para seu objetivo de pesquisa.
Muitas das informações que o linguista quer buscar no corpus não estão explícitas; por
exemplo, um corpus não reconhece o que é “verbo” ou o que é “adjetivo”. Esses
subsídios precisam ser fornecidos, para que as perguntas que um linguista venha fazer
possam ser respondidas, como, por exemplo, quais os adjetivos usados no corpus? etc.
O fornecimento dessa informação é o que chamamos de etiquetagem.

3 Etiquetagem automática

Além de escolher o corpus para a pesquisa, o linguista precisa escolher qual a


ferramenta computacional mais adequada para seu objetivo. Vale destacar a
importância do computador para tarefas que poderiam ser muito exaustivas e levar
um longo tempo se fossem feitas com nossas limitações humanas, tais como contar
palavras. Existem muitas ferramentas que têm capacidade para fazer muitas
operações; o que falta, talvez, é conhecimento por parte dos linguistas para utilizar
essas ferramentas. Em nossa pesquisa trabalhamos com um etiquetador, que pode
ser, basicamente, morfológico ou morfossintático (part of speech tagging), que
classificará as unidades lexicais do texto através de tags (etiquetas) morfossintáticas;
ou sintático (parsing), que identificará no texto as estruturas sintáticas presentes3. De
acordo com Alencar (2012, p. 125), a etiquetagem “é uma tarefa aparentemente
simples para o processamento da linguagem, no entanto, o desempenho de outras
ferramentas depende diretamente desse processo”. Além disso, a importância do
anotador automático também diz respeito à questão de se entender a linguagem
natural, “a etiquetagem morfossintática é uma tarefa intermediária que tem como
objetivo principal analisar e entender a língua natural” (ALENCAR, 2012, p. 125).

3
Há outros tipos de etiquetagem, como a semântica e discursiva, por exemplo. Sobre as diversas
aplicações da Linguística de Corpus, remetemos o leitor a Garside, Leech & McEnery (1997), Berber
Sardinha, 2000a, 2000b, 2004a, 2004b, entre outros.

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4 Ferramenta e corpus

4.1 Etiquetador Aelius

O projeto do etiquetador Aelius4 surgiu da necessidade de tornar acessível a


estudantes e pesquisadores de Linguística a análise automática de textos, além de ser
uma maneira de iniciar estudos na área da Linguística Computacional, por parte de
alunos de Engenharia, Computação e Letras. O Aelius foi desenvolvido pelo professor
Leonel Alencar, da Universidade Federal do Ceará, que coordena o grupo CompLin –
Computação e Linguagem Natural. Essa ferramenta foi desenhada para etiquetar
morfologicamente textos escritos de maneira automática, para isso utilizando o
mesmo conjunto de etiquetas adotado pelo projeto do corpus de português histórico
Tycho-Brahe, um corpus eletrônico já anotado, composto de textos em português
escritos por autores nascidos entre 1380 e 1845. Atualmente, 57 textos (2.547.503
palavras) estão disponíveis para pesquisa livre, com um sistema de anotação linguística
em duas etapas: anotação morfológica (aplicada em 33 textos) e anotação sintática
(aplicada em 16 textos) (ALENCAR, 2012, p. 128).
Segundo Alencar (2010, p. 2), “o nível alcançado de acurácia da etiquetagem
supera o de ferramentas análogas livremente disponíveis, voltadas sobretudo para o
português contemporâneo”, ou seja, dentre as ferramentas que temos disponíveis, o
Aelius é uma ótima alternativa para a etiquetagem de corpora, pois tem um alto índice
de acertos.

4.2 Corpus Varsul

O projeto Variação Linguística na Região Sul do Brasil – Varsul – estuda a


variação linguística na região Sul do Brasil e conta com a parceria de quatro
universidades brasileiras: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Universidade Federal de Santa Catarina e
Universidade Federal do Paraná. Esse projeto foi criado no ano de 1982, seguindo a
proposta da professora Leda Bisol, e tem como objetivos principais proporcionar
subsídios para descrever a língua falada no Brasil; criar condições para teste e
desenvolvimento de teorias linguísticas; e oferecer subsídios para programas
educacionais, promovendo, assim, o conhecimento e o respeito às variedades

4
O etiquetador Aelius pode ser “baixado” gratuitamente no site <http://aelius.sourceforge.net/
manual.html>.

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linguísticas. Atualmente, o projeto do Varsul se divide em três: Banco de Dados do


VARSUL, Amostra Digital VARSUL e Banco de Dados Diacrônico.5

5 Etiquetagem automática e correção manual

Primeiramente, foram selecionados alguns trechos de transcrições de


entrevistas do banco de dados de Porto Alegre do Varsul, aleatoriamente.
Selecionados os textos, que estavam em formato .doc, foi necessário passá-los para o
formato .txt, tendo em vista que é o formato que o etiquetador Aelius espera receber
seus arquivos para poder rodar os textos e fazer a etiquetagem. Esses trechos
passaram por uma limpeza que retirou todas as marcas que poderiam atrapalhar a
anotação, como travessões, asteriscos e parênteses, por exemplo. Após os textos
estarem “limpos”, eles foram, então, rodados no etiquetador automático Aelius.
Finalmente, foram impressos e revisados manualmente.

5.1 Trechos do corpus

Primeiramente apresentamos um trecho como exemplo de texto cru, ou seja,


bem como ele está no banco de dados do Varsul. Aqui podemos notar a presença de
caracteres que podem atrapalhar o etiquetador, como asteriscos, sustenidos e
colchetes.

Quadro 1 – Trecho original do corpus do Varsul

O segundo quadro é uma amostra de como o texto fica após ser “limpo”, sem
as marcas que podem interferir na etiquetagem.

5
As entrevistas do Varsul estão disponíveis nas universidades participantes do projeto.

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Quadro 2 – Trecho do corpus do Varsul “limpo”

O próximo quadro é um exemplo de como o texto fica após ser etiquetado


automaticamente pelo Aelius. Ao ser anotada, cada palavra recebe um símbolo /
(barra) e após esse símbolo uma etiqueta que define sua classe, como podemos
observar a seguir:

Quadro 3 – Trecho do corpus do Varsul etiquetado6 automaticamente pelo Aelius

6
As etiquetas que aparecem neste trecho são as seguintes: ADJ adjetivo; ADJ-G adjetivo neutro; ADV
advérbio; C complemetizador; CONJ conjunção; CONJS conjunção; D demonstrativo; D-F demonstrativo
feminino; DEM demonstrativo; D-UM-F demonstrativo um feminino; N nome; NEG negação; NPR nome
próprio; SR verbo ser infinitivo; P preposição; P+D pronome + demonstrativo; PRO pronome; POR$
pronome possessivo; Q quantificador; QT aspas; SE se; SR-P verbo ser presente; VB verbo infinitivo; VB-P
verbo presente; VB-SR verbo futuro subjuntivo; e, WPRO pronome relativo ou interrogativo. A lista de
etiquetas original pode ser visualizada no endereço <http://www.tycho.iel.unicamp.br/~tycho/corpus/
manual/tags.html>.

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A correção manual da etiquetagem automática é um trabalho que exige muita


atenção e revisão, pois são muitas as etiquetas que podem aparecer, e uma mesma
palavra pode aparecer com etiquetas diferentes, dependendo dos contextos em que
estiver inserida. Por isso, deve-se prestar atenção ao contexto da palavra e não apenas
à etiqueta da palavra isolada ou pensada em um contexto abstrato.
No quadro 4, podemos ter uma ideia de como se dá a revisão manual da
etiquetagem automática. As etiquetas marcadas equivocadamente estão destacadas
em negrito.

Quadro 4 – Trecho do corpus do Varsul etiquetado automaticamente e revisado manualmente

Para fazer a correção manual do corpus etiquetado automaticamente,


analisamos os textos destacando as etiquetas que apareceram erradas. Após essa
primeira análise, revisamos o corpus para garantir que nenhuma etiqueta passasse
despercebida, principalmente se empregada incorretamente.
A partir de nossas correções da etiquetagem automática, calculamos a acurácia
do anotador: o corpus analisado contém 154.530 palavras, das quais 7.004 foram
etiquetadas equivocadamente, de maneira que a acurácia do Aelius é de 95,4% em

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nosso corpus. Apesar de sua acurácia ser considerada alta, sua eficiência é ainda maior
na análise de textos escritos: 96,3% de acurácia (cf. ALENCAR, 2013)7.

6 Problemas específicos de língua falada encontrados na etiquetagem automática

O Aelius foi projetado para analisar textos de língua escrita; por isso,
encontramos alguns problemas ao utilizá-lo para etiquetar textos de língua falada,
como esperado. Na língua falada temos ruídos, hesitações e truncamentos que
acabam gerando palavras desconhecidas pelo etiquetador, que precisa encontrar uma
solução em seu dicionário para gerar uma etiqueta para essas “pseudo-palavras”; há
algumas interjeições menos comuns e expressões que o anotador tem dificuldade de
etiquetar; e, além disso, há gírias e palavras típicas e específicas (de Porto Alegre, no
nosso caso), que acabaram sendo etiquetadas equivocadamente.

Exemplos de erros de etiquetagem de aspectos típicos de língua falada:

● Claro: ... muito/Q gaúcho/N ,/, claro/ADJ ,/, né/NPR ?/. (marcador
conversacional)
● Né: ... era/SR-D hoje/ADV o/D sem/P fio/N ,/, né/NPR ?/. (marcador
conversacional)
● Cans: ... tínhamos/TR-D cans/N-P calçamento/NPR e/CONJ não/NEG
(truncamento)

Nossa sistematização de erros pretende servir de base para melhorias no


Aelius, a fim de que ele possa ter um índice ainda mais apurado na análise de outros
corpora de língua falada.
Acreditamos que casos que lidam com truncamentos sejam complicados de se
resolver, pois é bastante complicado que o etiquetador reconheça quando se trata de
uma palavra ou de um “pedaço” de palavra. Uma maneira possível de resolver o
problema com palavras truncadas pode ter alguma relação com o algoritmo elaborado
por Alencar (2009). Nesse texto, Alencar propõe um reconhecedor de neologismos. O
truncamento obviamente não é um neologismo, mas é uma “palavra”, de certa
maneira, nova. O anotador deve ser capaz de reconhecer quando uma palavra aparece
ao lado de um fragmento que repete sua estrutura, antecedendo-a (como no exemplo

7
Para efeitos de comparação, o etiquetador LX-Tagger7 (uma ferramenta desenvolvida na Universidade
de Lisboa pelo NLX - Grupo de Fala e Linguagem Natural do Departamento e Informática) tem 96,2% de
acurácia em textos de língua escrita.

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su sua) ou sucedendo-a (como no exemplo maquiagem maqui maq), ocorrências de


nosso corpus.
Temos de levar em conta que a análise morfossintática que nós, linguistas,
fazemos considera uma grande quantidade de regras e padrões que nos são naturais,
mas, ao etiquetador, foram passadas apenas algumas dessas informações, através de
moldes estatísticos; por isso, algumas vezes o etiquetador acaba sendo induzido a
etiquetar equivocadamente, pois ele não conta com a intuição de falante natural.
Com base em toda a análise que fizemos da anotação do Aelius, percebemos
que seria muito valiosa a inclusão de novas etiquetas, que pudessem fazer com que o
índice de acertos do anotador fosse ainda mais alto.
A partir da implementação dessas etiquetas, esperamos que a acurácia do
Aelius seja ainda mais satisfatória em sua tarefa de anotação de língua falada.

7 Inserção de implementações no etiquetador

Para que o Aelius possa dar conta de todas as palavras do corpus analisado – e
futuramente, de outros corpora de língua falada –, pensamos que é necessário que
haja uma etiqueta que dê conta de casos muito específicos da fala, como as
onomatopeias e aféreses, e, além disso, o caso dos marcadores conversacionais. Para
fazermos implementações em um etiquetador, devemos utilizar um corpus já anotado
e revisado, para que se treine um algoritmo de aprendizagem de máquina. Os
algoritmos utilizam-se de regras estatísticas para aprender como as etiquetas se
relacionam entre si. Exemplificando, a frequência de determinantes antes de
substantivos é muito grande; por isso, há grandes chances de a palavra que esteja
antes de um nome ser um determinante e vice-versa, e o anotador adquire essa noção
através do que é “ensinado” a ele, com regras estatísticas e com a inserção de palavras
no dicionário do programa.
Para a inserção de novas etiquetas, é necessário o treinamento de um
algoritmo de aprendizagem de máquina com um corpus que tenha passado por
anotação e revisão com essas novas etiquetas, para que se arquitete um novo
etiquetador. Também aqui reside a importância de nosso trabalho: disponibilizamos
um corpus de língua falada etiquetado automaticamente e revisado manualmente.
Não só o Aelius poderá ser treinado com base nesse corpus anotado, mas também
qualquer outro etiquetador morfológico em língua portuguesa que pretenda etiquetar
corpora falados.

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7.1 Etiqueta onomatopeia

A onomatopeia é a criação de uma palavra que reproduz o mais “fielmente”


possível um som. Em nossa análise, ocorreu apenas um caso de onomatopeia, a
imitação do som de uma ovelha: bé. Para que o Aelius dê conta dessa e de outras
onomatopeias que possam aparecer em corpora futuros, acreditamos que seja
adequado inserir a etiqueta “ONTP” - Onomatopeia, para que o anotador etiquete
corretamente as palavras como as seguintes: argh, atchim, au, bang, bé, blá, brr, bzz,
clique, cof, grr, hum hum, nhac, tec, tic, tac, toc, plaft, piu, pof, pum e vrum. Com o
passar do tempo, se surgir a necessidade, essa lista pode vir a aumentar. Esperamos
que assim o Aelius dê conta desse recurso de formação de palavra, não muito
produtivo, mas encontrado nas línguas naturais, especialmente na modalidade falada.

7.2 Aférese

Outro caso que apareceu no corpus foram ocorrências de aférese, a supressão


de fonema no início das palavras. No corpus do Varsul analisado, ocorreram apenas
casos de aférese verbal, com os quais o etiquetador conseguiu lidar satisfatoriamente,
como tá, tão etc. No entanto, como pretendemos propor melhorias para que o Aelius
possa analisar textos na modalidade falada da língua, de maneira irrestrita,
acreditamos que seja válido preparar o anotador para lidar com casos de aférese
nominal, adjetival, preposicional e adverbial, como por exemplo: “fessora”
(professora), “brigada” (obrigada), té (até), “bora” (embora), etc.
Aqui a implementação sugerida não consiste em uma nova etiqueta, mas sim
na inserção de novas palavras no dicionário do programa.

7.3 Etiqueta marcador conversacional

Os marcadores conversacionais são palavras ou expressões típicas e


corriqueiras da fala, principalmente da conversa, que possuem um aumento em seu
escopo de significados e funcionam como subsídios para a interação. Esses marcadores
podem ser linguísticos ou não. Os marcadores não linguísticos (ou “extralinguísticos”)
são ações como risos e olhares, por exemplo, e não trataremos deles aqui, pois não
temos como captá-los, justamente por não serem marcas linguísticas per se.

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Os marcadores conversacionais linguísticos se dividem em prosódicos e verbais.


Os prosódicos também não serão analisados neste trabalho, porque são os
alongamentos de sílabas, as pausas e as mudanças na tessitura ou na velocidade da
voz, ou seja, são aqueles aspectos que não estão marcados no corpus e só
conseguiriam ser percebidos se ouvíssemos as entrevistas. Os marcadores verbais são
aspectos que podemos notar na transcrição das entrevistas e se dividem em
lexicalizados e não lexicalizados, segundo a classificação proposta por Urbano (2010).
Os lexicalizados são Bom, Claro, Tipo, etc., e os não lexicalizados são Ãh, Ahã e Hum,
por exemplo.

7.3.1 Etiqueta marcador conversacional não lexical

Ãh, Ahã, Hum, Hum hum e Tarará foram os casos que ocorreram em nosso
corpus; por isso, sugerimos que eles sejam adicionados ao dicionário do etiquetador,
com a etiqueta MC, de marcador conversacional. Além dessas ocorrências, sugerimos
que sejam adicionadas palavras como Eh, Ahn e Uhn, que também podem aparecer
em corpora futuros.

7.3.2 Etiqueta marcador conversacional lexical

Bom, Claro, Né, Olha, Tá, Tal e Tipo são ocorrências do nosso corpus; portanto,
sugerimos que essas palavras sejam adicionadas com a etiqueta MCL, de marcador
conversacional lexical. Aqui há de se tomar mais cuidado, pois, como todas são
palavras lexicais, têm mais possibilidades de significado; por isso, o algoritmo precisa
ser bem treinado, levando em conta as que aparecem mais no início, as mediais, e as
finais.
O estudo das posições dos marcadores é bastante importante. Por exemplo,
quando a ocorrência Bom acontece como primeira palavra da frase, seguida por uma
vírgula ou ainda, se acontece no meio da sentença mas entre vírgulas, a chance de ser
um adjetivo é muito pequena, e a chance de ser um marcador discursivo é muito
grande.
Em comunicação pessoal, o professor Sergio Menuzzi sugeriu que talvez os
marcadores conversacionais que aparecem em posição final podem estar sendo
confundidos com vocativo, por causa de sua posição na frase, ocorrendo sempre ao
final e geralmente após uma vírgula, seguida por um ponto de exclamação ou

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interrogação, bem como ocorreria com um vocativo, que é usualmente um nome


próprio, o que justificaria essa etiqueta.
Com essas sugestões, esperamos que a taxa de acerto do Aelius para etiquetar
língua falada automaticamente, que já é alta, seja ainda mais satisfatória.

8 Considerações finais

A Linguística de Corpus vem evoluindo cada vez mais ao longo dos últimos
anos, mas um problema frequentemente encontrado é que muitas vezes não há
ferramentas disponibilizadas gratuitamente para que os pesquisadores possam ter
mais eficiência e versatilidade em seus objetivos de pesquisa. Com a finalidade de
auxiliar pesquisadores em linguística, o Aelius foi criado, e a fim de aumentarmos seu
escopo de anotação automática morfossintática para além de língua escrita,
abrangendo também língua falada, fizemos este trabalho, analisando exaustiva e
cuidadosamente o corpus de língua falada anotado automaticamente.
Esperamos que nossa pesquisa possa contribuir de maneira satisfatória com a
melhoria desse programa que pode auxiliar muitas pesquisas em nossa área. Além
disso, esperamos que cada vez mais os profissionais da linguagem tenham
conhecimento dessas ferramentas que estão a nossa disposição e que efetivamente as
usem, pois são instrumentos valiosos para a pesquisa. A importância da Linguística de
Corpus, em conjunto com a Linguística Computacional, pode ser constatada na
“elaboração de teorias gramaticais formalmente mais consistentes e
psicolinguisticamente mais realistas [...] e, assim, testar, com um grau de sofisticação
que dificilmente poderia ser atingido por seres humanos, a adequação dos modelos
postulados” (ALENCAR; OTHERO, 2011, p. 9).
Desejamos que a ferramenta seja aperfeiçoada em uma próxima versão e, além
disso, que seja mais utilizada por linguistas, pois esperamos que o Aelius obtenha
maior número de acertos – não esquecendo que ele já tem uma acurácia alta – e que o
Varsul tenha à sua disposição um etiquetador automático morfossintático de
qualidade, para futuras pesquisas. Acreditamos que essas ferramentas computacionais
que auxiliam o estudo da língua poderiam ser ainda mais usadas por linguistas porque
há muitos corpora disponíveis e as ferramentas estão cada vez mais acessíveis,
tornando nossas pesquisas mais eficientes e confiáveis.

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Referências

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aspectos da construção de um transdutor lexical do português capaz de analisar
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_____. Aelius: uma ferramenta para anotação automática de corpora usando NLTK. IX
Encontro de Linguística de Corpus. Porto Alegre, PUCRS, 8 e 9 de outubro de 2010.
_____. Superando o estado da arte na etiquetagem morfossintática por meio de regras
de pós-etiquetagem. In: Anais do X Encontro de Linguística de Corpus – Aspectos
metodológicos dos estudos de corpora. Belo Horizonte: UFMG, 2012.
_____. Novos recursos do Aelius para o processamento computacional raso do
português. In: LAPORTE, E.; SMARSARO, A.; VALE, O. (Orgs.). Dialogar é preciso:
linguística para o processamento de línguas. Vitória: PPGEL/UFES, 2013.
ALENCAR, Leonel Figueiredo de; OTHERO, Gabriel de Ávila (Orgs.). Abordagens
computacionais da teoria da gramática. Campinas: Mercado de Letras, 2011.
ALUÍSIO, Sandra Maria; ALMEIDA, Gladis M. B. O que é e como se constrói um corpus?
Lições aprendidas na compilação de vários corpora para pesquisa linguística.
Calidoscópio, v. 4, n. 3, p. 156-178, set./dez. 2006.
BERBER SARDINHA, Tony. Linguística de corpus: histórico e problemática. Revista
D.E.L.T.A., v. 16, n. 2, 2000a.
_____. O que é um corpus representativo? DIRECT Papers 44. São Paulo e Liverpool:
LAEL & AELSU, 2000b.
_____. Linguística de Corpus. Barueri, SP: Manole, 2004.
_____. Linguística de Corpus: Uma entrevista com Tony Berber Sardinha, Revista
Virtual de Estudos da Linguagem – ReVEL, v. 2, n. 3, agosto de 2004.
BRANCO, António e João Silva, 2004. Evaluating Solutions for the Rapid Development
of State-of-the-Art POS Taggers for Portuguese. In: Maria Teresa Lino, Maria
Francisca Xavier, Fátima Ferreira, Rute Costa and Raquel Silva (orgs.), Proceedings
of the 4th International Conference on Language Resources and Evaluation
(LREC2004), Paris, ELRA, p. 507-510.
GARSIDE, Roger; LEECH, Geoffrey; McENERY, Anthony. Corpus annotation: linguistic
information from computer text corpora. London / New York: Longman, 1997.
OTHERO, Gabriel de Ávila; GASPERIN, Caroline Varaschin. Linguista x computador -
trabalhando com corpus eletrônico, (manuscrito), 2001.
OTHERO, Gabriel de Ávila; MENUZZI, Sérgio de Moura. Linguística Computacional
teoria & prática. São Paulo: Parábola, 2005.
RASO, Tommaso; MELLO, Heliana (Orgs.). C-ORAL BRASIL I Corpus de referência de
português brasileiro falado informal. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.
URBANO, Hudinilson. Marcadores Conversacionais. In: Análise de textos orais. São
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A PULSÃO DA ESCRITA FEMININA:


ENSAIO PASSOS PARA A NARRATIVA AUTOFICCIONAL

Olívia Scarpari Bressan1

Ensaio 1: A pulsão da escrita de autora feminina

E por mais que queira me alhear, já não é mais possível. O pensamento retorna
em espiral. As cabeças de Medusa se multiplicam. Já não posso mais cortá-las, estão
por todos os lados. Esboço as primeiras linhas de um assunto que, como mulher,
sempre compreendi muito mais na vida vivida do que na vida escrita. E, mais ainda,
medrosa, pois em mim o assunto ressoa, pulsa e se debate, como um réptil que,
depois de cortado, ainda continua a se mover aspirando desesperado e por instinto
pelos movimentos involuntários de vida. As pequenas castrações que acontecem no
comezinho dos dias quando as relações entre macho e fêmea se dão pelo embate; nos
olhares lascivos na rua, nos sorrisos de ameaça do taxista, na expressão insultada da
amiga que ouve que já transei com mais de vinte caras, na cara de prazer dele quando
aceitei fazer sexo casual sem camisinha. A associação é rápida e inevitável: acabo por
lembrar das minhas primeiras leituras ao entrar no mestrado em Escrita Criativa. É
bom que as fontes literárias sejam mais contemporâneas, os colegas recomendam. E
então, nessa exata ordem, acompanhei o protagonista de “Um copo de cólera”, de
Raduan Nassar, chamar sua companheira de “jornalistinha de merda”, cenas de prazer
femininas em Dentes Guardados no conto “Intimidade” de Daniel Galera (“Ela catou o
cinzeiro de vidro e jogou na minha cara, acertou na testa. – Qual é a tua, imbecil? Dei
um tapa na cara dela. Tirei toda a roupa de Linda e deitei-a de bruços na cama. Ela
ainda chorava) e me dou conta de que, para além do escritor-artífice que, na literatura,
busca por um efeito estético, as ideias e posicionamentos ideológicos inscritos nessas
histórias me mostram que a literatura reflete, de fato, a vida.
...

Tentando entender melhor minhas escolhas para produzir meus próprios


textos, passo a, intuitivamente, não mais procurar por autores e, sim, por autoras. E
1
Olívia Scarpari Bressan é jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e
mestranda em Escrita Criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). É
bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (FAPERGS).
E-mail: oliviascarpari@gmail.com

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encontro mais marcas e expressões com as quais me identifico e que me levam a


pensar que, sim, eu também poderia ter escrito aquelas obras. E então,
instintivamente, acabo percebendo que deve haver, sim, uma diferença entre
literatura escrita por mulheres e a escrita por homens. E talvez seja essa mesmo uma
das virtudes de se fazer um mestrado em Escrita Criativa: pensar em literatura a partir
de uma perspectiva de produção ativa e não exclusivamente de contemplação.
Recuperei pelo caminho Clarice e Clarah Averbuck de minha adolescência, li as
memórias da escritora hipster-de-vinte-e-poucos Lena Dunham, descolei Ana Cristina
César, Petra Costa, Camila Doval, Zelda Fitzgerald, Sylvia Plath, Márcia Denser, Tatiana
Salem Levy, Verônica Stieger, Zadie Smith e tantas outras. Tantas personagens, tantas
autoras, tantos jeitos de ser. E acho que, nesse durante essa busca, me encontrei um
pouco também.
...

Durante essas pesquisas, uma aula online sobre a obra de Clarice Lispector,
disponível no site do Instituto Moreira Salles, em que o professor de Literatura
Brasileira da USP, José Miguel Wisnik diz:

num curso sobre Clarice Lispector na Universidade [...]


aproveitávamos para que a gente lesse Clarice e escrevêssemos
todos, instigados pelo texto dela. Fazíamos um jogo, inclusive, que
era o de abrir o livro da Clarice em uma página qualquer- sempre
salta uma frase surpreendente ou perturbadora - e aí todos
escrevíamos. E eu reparei que frequentemente os alunos homens e
eu, inclusive, escrevíamos de um jeito diferente das alunas mulheres.
Os homens escreviam já de perfil para a história da literatura, ou
seja, se exibindo para um futuro julgamento crítico, enquanto que as
meninas pareciam mais expostas à dor e ao espanto daquela escrita.

O que Wisnik quer ilustrar a partir de sua experiência prática e, é claro,


conforme sua impressão pessoal e masculina, é que o feminino aparece diferente nos
meandros da escritura. Ou seja, quando a escrita feminina não se quer universal,
tendo em vista que é “o masculino [que] corresponde ao neutro, ao universal”
(FIGUEIREDO, p. 77), ela consegue achar suas próprias marcas, como voz e temáticas
que pouco tenho a ver, por exemplo, com os grandes temas da humanidade sobre os
quais discorrem os homens. Afinal, como mesmo diz Simone de Beauvoir: “não é
possível imaginar a escrita de uma mulher não marcada pelo ser feminino” (BEAUVOIR
apud DOVAL, 2009, p. 18).

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Quando me leio nas palavras da pesquisadora e feminista Eliane Showalter


(1981), entendo a necessidade que nasce anterior à teoria: minha busca tateante por
escritoras foi uma tentativa de encontrar, a partir delas, minha própria voz. E
completa: “as mulheres devem parar de estabelecer parâmetros em relação aos
outros, e observarem-se umas às outras, na busca por encontrar o que é seu” (p. 180).
Showalter, nesse sentido, cria a teoria gimnocêntrica – em contraposição ao
paradigma androcêntrico vigente em nossa sociedade – que defende um modo de
crítica feminista que estuda a mulher como escritora, a história, os estilos, os temas, os
gêneros e as estruturas da escrita feminina. E que se propõe à pergunta: “Como
poderemos constituir as mulheres como um grupo literário distinto? Qual a diferença
da escrita feminina?” (1981, p. 175).
Comecei a compreender assim que meu processo de criação literária passaria
pela tentativa de responder a esses questionamentos, tanto a partir da prática textual
como a partir das reflexões teóricas sobre a própria produção literária. E que, sem
dúvida, minha escrita não poderia deixar de ter marcas que indicassem que sou
mulher; que não havia nada de errado com isso; que seria uma bobagem negar o
feminino; esforçar-me para esconder o gênero em prol de uma “tentativa da escritora
de igualar-se a uma escrita homogênea, ideal; a escrita pautada pelo paradigma
masculino da criação” (SCHMIDT, 1995), já que, conforme questiona Camila Doval
(2010): “por que afinal deveríamos almejar a indiferenciação de rastro, se é pela
diferença que significamos?” (p.53).
O raciocínio pode parecer simples, por vezes até óbvio. A premissa da literatura
como sinônimo de território de liberdade, sonhos, fruição, não cederia espaço para
interditos ou silenciamentos de gênero e de classe. Mas essa reflexão passa ao largo
de ser precisa. O silenciamento feminino, a supressão do direito de sonhar acaba por
ressoar na percentagem de mulheres autoras que não chega, entre 1990 a 2004, a
nem 30% do total de escritores editados pela Rocco, Companhia das Letras e Record -
as editoras de maior circulação do Brasil. Foi o que os dados coletados na pesquisa
histórica da professora da Universidade de Brasília (Unb), Regina Dalcastagnè
indicaram sobre o mercado editorial brasileiro, na qual descobriu o que muitos leitores
já suspeitavam: quase três quartos dos romances publicados (72,7%) foram escritos
por homens; 93,9% dos autores são brancos; o local da narrativa é mesmo a metrópole
em 82,6% dos casos; o contexto de 58,9% dos romances é a redemocratização, seguida
da ditadura militar (21,7%). Além de o protagonista ser, na maior parte das vezes,
representado como artista ou jornalista, os negros surgem quase sempre como
marginais e as mulheres, como donas-de-casa ou prostitutas.

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O imaginário da questão feminina na literatura brasileira ganha um artigo


específico escrito por Dalcastagnè, intitulado Imagens da mulher na narrativa
brasileira em que interpreta com mais vagar os dados levantados. Em obras escritas
por mulheres, 52% das personagens são do sexo feminino, bem como 64,1% dos
protagonistas e 76,6% dos narradores. Para os autores homens, os números não
passam de 32,1% de personagens femininas, com 13,8% dos protagonistas e 16% dos
narradores. Ela conclui: “Fica claro que a menor presença das mulheres entre os
produtores se reflete na menor visibilidade do sexo feminino nas obras produzidas.”
(DALCASTAGNÉ, 2007, p. 3). A análise da pesquisadora é de 2007, mas parece explicar
até hoje a pouca participação de mulheres em concursos literários – no último prêmio
SESC de 2015, no qual as mulheres representavam 1/3 dos inscritos.2 Tais dados,
podem ser explicados, sem dúvida, sob uma perspectiva histórica como rescaldo de
uma trajetória longa de silenciamentos.
Lembro-me de quando fui apresentar em aula ministrada pelo professor e
escritor, Assis Brasil, em “Teorias da Criação Ficcional”, as ideias da escritora Brenda
Ueland, uma das primeiras mulheres a publicar um manual de Escrita Criativa,
intitulado “If you want to write” de 1938. Ela dedica um capítulo inteiro chamado “Por
que mulheres que fazem muito trabalho doméstico devem negligenciá-lo para
escrever” [Why Women who do too much house work should neglect it for their
writing], no qual ensinava as mulheres a burlar as inúmeras tarefas domésticas que
tinham para conseguirem, sem culpa, dar um jeito de escrever.
1938, diga-se de passagem, já contabilizava grandes revoluções na literatura
modernista: Proust já havia lançado Em busca do tempo perdido entre 1913 e 1927;
Joyce já havia escrito quinze anos antes sua obra mais célebre, Ulysses; grandes
escritores como Hemingway, F. Scott Fitzgerald, da geração perdida, já haviam se
mudado para Paris para marcar o sistema literário com suas obras. Enquanto isso, num
dos primeiros manuais de “como escrever”, Brenda Ueland – ela mesma uma feminista
que se casou três vezes e cuja mãe havia sido uma sufragista – ensinava as mulheres a
tentar conciliar a escrita com as atividades de uma desvelada mãe com a sua própria
criação artística, que, aliás, seria tão benéfica para as mulheres que curaria até
resfriados3 (UELAND, 1987, p.15). Nesse sentido, o descompasso histórico é imenso.

2
Minoria entre inscritos, mulheres vencem os dois Prêmio Sesc. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/raquelcozer/2015/06/1645160-minoria-entre-inscritos-
mulheres-vencem-os-dois-premio-sesc.shtml
3
É bastante provável que, ao comparar a criação literária a uma panaceia que cura resfriados e mal-
estar, Ueland quisesse dizer que o ato criador seria capaz de fazer as mulheres purgarem alguns males
provenientes da histeria. Assim imagino, pois, como conforme a professora de Letras da UFF, Eurídice
Figueiredo (2013), ao invés de criar, escrever, a mulher silencia: “a loucura na mulher manifesta-se

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A postura coadjuvante da mulher nas artes também pode ser explicada pelo
fato de ela nunca ter sido alçada pelo homem à posição de produtora. Ela sempre
representou em nossa sociedade patriarcal, a figura da musa, isto é, modo de
intermédio do artista com o que há de mais elevado. Isso não estimula uma postura
mais ativa e corajosa por parte das mulheres de se colocar a público, de encontrar sua
própria voz para expressão, como explica Simone de Beauvoir em “O Segundo Sexo”:

Sendo a própria substância das atividades poéticas do homem,


compreende-se que a mulher se apresente como sua inspiradora: as
Musas são mulheres. A Musa é mediadora entre o criador e as fontes
naturais em que deve haurir. Tesouro, presa, jogo e risco, musa, guia,
juiz, mediadora, espelho, a mulher é o Outro em que o sujeito se
supera sem ser limitado, que a ele se opõe sem o negar. Ela é o Outro
que se deixa anexar sem deixar de ser o Outro. E, desse modo, ela é
tão necessária à alegria do homem e a seu triunfo, que se pode dizer
que, se ela não existisse, os homens a teriam inventado (BEAUVOIR,
2009, p. 230).

Nesse sentido, a mulher é anexa ao homem, inventada e idealizada por ele. A


idealização acaba por calar, reprimir, pois se trata de um imaginário de perfeição e
formatação inexistente, avalizada a partir de um outro que domina. São essas razões
que levam a doutora em estudos de Escrita Feminina, Rita Terezinha Schmitt (1995), a
asseverar que “a literatura feita por mulheres envolve uma dupla conquista: a
conquista da identidade e a conquista da escritora” (p. 187).

Ensaio 2: A narrativa autoficcional

Bem, que as mulheres estão em desvantagem nas produções artísticas sob uma
perspectiva histórica isso é ponto recorrente – e nem por isso menos relevante. Mas
proponho aqui contar um pouco de minha trajetória de ensaio na escrita para falar
sobre aspectos do trabalho que estou escrevendo de cunho, a um só tempo, pessoal e
ficcional.
A história começa com uma frase de Serge Doubrovsky (1977) citada para
entender a escolha pela autoficção como caminho possível para autoexpressão:

Autobiografia? Não, esse é um privilégio reservado aos importantes


desse mundo, ao fim de suas vidas, e em belo estilo. Ficção, de
acontecimentos e fatos estritamente reais; se se quiser, autoficção,

muito mais pela doença física, pela somatização, do que pelo delírio, ou seja, a mulher está silenciosa
(silenciada) mesmo na loucura.” (p. 87)

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por ter confiado a linguagem de uma aventura à aventura da


linguagem, fora da sabedoria e fora da sintaxe do romance,
tradicional ou novo (DOBROUVSKY apud FIGUEIREDO, 2013).

Nasce então a ideia de um livro, fruto de um misto entre necessidade premente


como escritora de uma contação pessoal sobre as experiências minhas e dos outros,
unida à constatação de Figueiredo (2013) de que as autoficções escritas por mulheres
são ainda raras por aqui:

Enquanto na França muitas escritoras escreveram romances


autobiográficos e se colocaram publicamente como protagonistas de
conflitos no seio de suas famílias, no Brasil o mesmo não aconteceu.
Escritoras dessa geração deixaram obra importante, mas nenhuma
delas escreveu de maneira confessional (FIGUEIREDO, p. 83).

A autoficção serve, nesse caso, como caminho de liberdade necessária –


encontrado depois de anos de silenciamento, anos de necessidade de escrita pulsante,
mas ignorada veementemente – visto que não tem compromisso com a verdade: é
uma ficção que se inspira e joga livremente com os biografemas. Seria difícil fabular
sem utilizar minha própria experiência com não-ficção, período no qual experimentei
textualmente em linguagem jornalística, e continuar me utilizando amplamente o
recurso da referencialidade como matéria para criação. Algo parecido fala a escritora
francesa Annie Ernaux quando se refere a sua própria produção: “Em seu sentido
tradicional de imaginação de fatos, de personagens, a ficção efetivamente não tem
lugar no que escrevo, mas, em seu outro sentido, de construção, de agenciamento
formal, esse lugar é imenso” (ERNAUX apud FIGUEIREDO, 2013).
A partir disso, pensei em criar um relato que exigisse da memória, espaço em
que naturalmente realidade e invenção se embaralham bastante, para falar sobre as
experiências de uma personagem mulher, 20 e poucos anos, que se muda para uma
cidade maior, após a cidade onde cresceu ter sido seu espaço primeiro de movimento,
desenvolvimento e também de tragédia. A escrita é assim, catártica e imperfeita,
reflexiva e agonizante, bem como o primeiro parágrafo que escrevi sugere:

Aliás, hoje, não desconsidero ser rascunho. Foi o início de tudo. A


demonstração da necessidade. Houve, ali, uma quebra quando
constatei que o nosso mundo é bastante agreste para aqueles que
sonham. O quanto somos embotados criativamente de modo
sistemático. Na escola, se demoramos um tempo mais para escrever
na redação da aula, a professora fica irritada porque quer ir embora.
Incapaz de ponderar que criatividade leva tempo, devem ter feito

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isso com ela também. Ou mesmo os colegas na aula quando escrevi


pela primeira vez uma poesia sobre a morte dela, ficaram
escandalizados.

Para falar de coisas tão íntimas e discorrer sobre a matéria feminina sem tantas
amarras, expandi minha experiência em direção também a experiência do outro, das
outras, essa liberdade fabulatória de ser autobiográfica e biografar os outros a partir
de uma voz em eu; eus reais e inventados, realizados e imaginados. Assim, lançar mão
da paleta de cores oferecida pela autoficção foi a saída criadora que me permitiu
escrever, fabular e achar um caminho de liberdade.

Referências

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.


DALCASTAGNÈ, Regina. Imagens da mulher na narrativa brasileira. In: O eixo e a roda,
v. 15, Belo Horizonte, UFMG, 2007. p. 127-135.
DOVAL, Camila. Escritura feminina e desgarrada. 2012. 74 f. Dissertação (Mestrado) –
Faculdade de Letras, Departamento de pós-graduação em Letras, área de
concentração em Escrita Criativa, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre, RS, 2012.
FIGUEIREDO, Eurídice. Mulheres ao espelho: autobiografia, ficção, autoficção. Rio de
Janeiro: EdUERJ, 2013.
GALERA, Daniel. Dentes guardados. Porto Alegre: Livros do Mal, 2002.
NASSAR, Raduan. Um copo de cólera. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
SCHMIDT, Rita Terezinha. Repensando a cultura, a literatura e o espaço da autoria
feminina. In: NAVARRO, Márcia Hoppe (org). Rompendo o silêncio: gênero e
literatura na América Latina. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1995. 191
p. Coleção Ensaios CPG-Letras; 3.
SHOWALTER, Elaine. Feminist criticism in the wilderness. Critical Inquiry, The
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WISNIK, José Miguel. A matéria Clarice. [Aula disponibilizada na Internet]. 2015.
Disponível em: http://claricelispectorims.com.br/Media/view_video/55. Acesso 10
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A CONSCIÊNCIA TEXTUAL EM DIÁLOGO COM O ENSINO DE UMA COMPREENSÃO LEITORA EFICAZ

Patricia de Andrade Neves1


Danielle Baretta2
Fernanda Schneider3

Introdução

É evidente em nossas escolas que há um grande problema, atualmente, no


aprendizado de leitura. Dentre as possíveis razões, temos o grande índice de
analfabetismo entre os alunos dos anos iniciais e um número expressivo de
analfabetos funcionais – com baixo desempenho em leitura. Assim, uma das maiores
dificuldades para os docentes é proporcionar uma formação que habilite aos discentes
serem letrados. Isto é, ler e interpretar um texto satisfatoriamente, adquirir o hábito
da leitura e conseguir refletir de forma crítica sobre tudo que for lido.
Os conceitos relacionados à consciência humana perpassam diferentes autores
da linguística, dessa forma, temos, segundo Gombert (1992), a consciência
metalinguística que é um importante aspecto da compreensão leitora, sendo essa uma
habilidade de se refletir conscientemente a respeito de aspectos primários das
atividades linguísticas. Tal consciência está subdividida em diferentes tipos:
consciência fonológica (habilidade de segmentar, analisar e manipular
intencionalmente sons que compõem a fala); consciência morfológica (habilidade de
refletir sobre os morfemas); consciência sintática (habilidade de refletir e manipular a
estrutura gramatical e os elementos linguísticos das sentenças); consciência
pragmática (habilidade de se refletir sobre o uso da língua); e consciência metatextual
(habilidade de se refletir a respeito do texto).
Dentre as habilidades metalinguísticas postuladas por Gombert (1992), o
enfoque teórico desse artigo será a consciência metatextual que, conforme o autor, tal
habilidade volta a nossa atenção para o texto de forma consciente, considerando
aspectos como a estrutura (traços que definem a tipologia textual), a coerência (as

1
Mestranda em Linguística, PPGL-PUCRS. Bolsista CNPq. E-mail: andradeneves.patricia@gmail.com
2
Doutoranda em Linguística, PPGL-PUCRS. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Rio Grande do Sul – IFRS. Bolsista CAPES. E-mail: fernanda.schneider.001@acad.pucrs.br
3
Mestranda em Linguística, PPGL-PUCRS. Bolsista CAPES. E-mail: daniellebaretta@hotmail.com

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relações do conteúdo), a coesão (o que contribui para a amarração do texto) e a


consciência procedimental (os procedimentos que o leitor se utiliza para compreender
o texto). Bächler (2006) afirma que a linguagem de forma consciente é primordial para
ocorrer a significação das palavras, frases e discursos. A consciência linguística possui
diversos segmentos: consciência fonológica, morfológica, sintática, pragmática e a
textual. No caso, para os estudos relacionados à compreensão leitora, será enfatizada
a consciência no texto, relacionando as questões internas textuais com o contexto.
Há diversas propostas pedagógicas que podem reverter a situação atual da
capacidade de compreensão leitora dos alunos, sendo primordial um trabalho
pedagógico que envolva, desde os anos iniciais, a consciência linguística. Já que a
criança possui o conhecimento linguístico quando chega à escola, sistematizar de
forma consciente tudo o que ela for aprender é essencial para a leitura e a escrita que
ela vai adquirir.
Atualmente o leitor precisa ir além do óbvio, a sociedade está pedindo tal
processamento, não é possível só decodificar os textos, o que está
subentendido/implícito torna-se o mais importante. Dessa forma, obtemos, segundo
Flôres (2008), a distinção entre o leitor que apenas decifra o que está escrito sem
interpretar, utilizando apenas a lógica interna do texto, sendo a sua atuação apenas a
repetição e aquele que lê e ao mesmo tempo interpreta e faz uma leitura crítica
envolvendo as inferências. Sendo assim, a interpretação ocorre mutuamente entre o
leitor e o autor, pois esse se inscreve igualmente no ato da leitura.

1 Ensino

Quando falamos na questão do ensino da compreensão leitora, temos que definir


qual método está sendo utilizado. A questão é que não há uma definição teórica
universal a ser desenvolvida nas escolas, já que cada docente decide como fazer e o
que utilizará teoricamente. Nesse sentido, Pereira e Cabral (2012, p. 16) chamam a
atenção para o fato de que,

As atividades de compreensão focalizam questões de conteúdo do


texto, caracterizando-se ou pela localização ou pela extrapolação,
traduzida está na proposição de conexões com o mundo. A
exploração linguística ocorre posteriormente ao trabalho de
compreensão, caracterizando-se por aspectos gramaticais
classificatórios.

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O trabalho com a leitura não tem, na maioria das vezes, vínculo com a
produção textual, mas sim com a gramática e com diversos gêneros textuais. Além
disso, mesmo após vários anos frequentando a escola, muitos saem dela apenas
decifrando o que está escrito, não conseguindo compreender, interpretar. Manguel
(2001) afirma que a metodologia utilizada para o aprendizado da leitura apenas se
utiliza das convenções sociais e limita a nossa capacidade leitora.
King (2007) propõe que a compreensão leitora pode ser literal (de forma mais
superficial, as informações que estão explícitas no texto) ou inferencial (de forma mais
profunda, estabelecendo inferências que necessitam do conhecimento prévio do
leitor). Sendo a inferencial o maior objetivo de ser ensinada na compreensão leitora
em sala de aula.
Há na alfabetização tradicional diversos equívocos de ensino e aprendizagem,
um deles é a maneira mecanicista de ensinar a escrita, focando nas letras de forma
sequencial, depois as agrupando de forma silábica. Não há uma descoberta do som da
letra pela criança, uma forma mais livre do manuseio de diversos livros em sala de
aula, combinação de linguagem verbal e não verbal e a relação entre língua oral e
escrita.
Nota-se que não é apenas no ensino escolar que se encontram falhas, pois o
papel da leitura, a função da escrita, o quanto e como são valorizadas, o que é
relevante para ser aprendido, também contribuem para o sistema falho do ensino e
aprendizagem da compreensão textual. Todo o contexto precisa ser avaliado, já que
ele determina os moldes educacionais vigentes.
Atualmente ainda se encontra, mesmo com a diversidade de textos
apresentados em sala de aula, o ensino baseado nos moldes de textos narrativos,
descritivos e dissertativos. Dessa forma, as aulas de Língua de Portuguesa se ancoram
num padrão dissociado ao ensinar leitura, escrita e gramática. Há que se levar em
conta também a diferença entre compreender (processo interno relacionado
exclusivamente com a mente do próprio indivíduo) e interpretar (deslocamento do
foco da atividade mental, interação com o texto e o mundo).
A partir de publicações de autores conhecidos no meio acadêmico e entre
professores da educação básica, temos o texto como uma unidade em que pode ser
aprendido e ensinado diversos aspectos no ensino de Língua Portuguesa além de
apenas a compreensão textual, por exemplo: coesão, coerência, estudo gramatical,
intertextualidade. Sendo assim, obtivemos na escola um crescimento do grupo de
professores que se interessam pela linguística e apoiam um ensino menos normativo.

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Os livros didáticos devem ser levados em conta na hora do ensino de Língua


Portuguesa, pois eles são na maioria das vezes o que irá conduzir a maior parte do
trabalho pedagógico em sala de aula, diminuindo assim o material de leitura
disponível, sendo que inserir outras tipologias textuais tem importância na
aprendizagem e ensino da compreensão textual. Há também uma tendência
dominante, nos livros didáticos, da exemplificação gramatical por meio de textos
publicitários, notícias, tiras etc. Deixando de aparecer textos argumentativos que
auxiliem na eficácia do desempenho argumentativo da linguagem. Naturalmente a
criança tem uma maior facilidade com as narrativas, pela ordem cronológica que elas
possuem, e na argumentação nem sempre há uma ordem temporal, evidenciando
dessa forma uma dificuldade maior na compreensão desse tipo de texto.
Uma prática muito comum nas aulas de interpretação de texto são as
perguntas feitas a respeito do que foi lido sem antes ter certeza de que todos
compreenderam de fato o texto. Na maioria das vezes, os alunos necessitam de auxílio
e são textos assim, com maior dificuldade interpretativa, que devem ser levados em
sala de aula. Para as atividades extraclasse, reservam-se os textos mais “óbvios”, com
menos subjetividade e que possam os alunos lerem com autonomia. É também
importante, após a leitura comentada do texto, que os alunos escrevam sobre o que
foi comentado, assim auxiliará na memorização do que foi lido.

2 Processamentos Cognitivos e Conscientes de Leitura

Segundo Gombert (1992), a consciência textual trata o texto como objeto de


análise em que o foco recai sobre o texto e não sobre os seus usos. Outros fenômenos
da língua também fazem parte da consciência metatextual como a capacidade de
monitoramento da leitura, metacompreensão, escrita de textos, revisão e manipulação
de partes do texto. A atividade metatextual tem um importante papel no
monitoramento da escrita ao se usar estratégias para compor e revisar textos. Ao se
desenvolver comportamentos metalinguísticos (o indivíduo julga de forma consciente
e correta além de explicitar verbalmente quais critérios utilizou), a consciência
metatextual também será desenvolvida.
Pereira e Cabral (2012) afirmam que a consciência textual relaciona os aspectos
internos do texto com o contexto englobando coerência (conteúdo do texto
relacionado com a semântica e a pragmática), coesão (elementos de ligação entre as
frases e parágrafos) e estrutura (elementos que categorizam o texto como tal).
Quando se reflete sobre a estrutura organizacional de um texto, para definir os
gêneros textuais, por exemplo, há o acesso à consciência textual. Segundo Colomber e

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Camps (2002), para se compreender o que se lê são necessários dois processamentos:


bottom - up (movimentação da informação textual para a cognição, sendo a leitura
minuciosa) e top - down (movimentação dos conhecimentos prévios).
Gombert (1992) afirma que há uma extensa análise sobre a consciência
linguística, sendo essa uma habilidade de pensar a respeito da função e natureza da
linguagem. Tal consciência engloba a consciência fonológica, sintática, semântica,
concepção da palavra e a consciência textual.
Como afirmam Albuquerque e Spinillo (1998), dependendo do gênero textual
teremos uma maior ou menor consciência do texto e relação com a produção. Já que
há gêneros mais fáceis de serem identificados e produzidos.
Dependendo do contexto, conhecimento prévio, condições de produção,
tipologia textual e a cognição do leitor, teremos uma maior ou menor compreensão
leitora. Segundo Smith (2003), o significado do texto também ocorre na informação
não visual, pois além das marcas deixadas pelo autor há o conhecimento prévio do
leitor sobre o assunto e sobre a linguagem.
Há dois processamentos cognitivos da leitura: metacognitivos (monitoramento
do processo pela consciência, como objetivo da leitura, segmentação do que é
importante, avaliação da compreensão e medidas de correção) e cognitivos (traços
intuitivos e inconscientes, a escrita que ocorre da esquerda para a direita por
exemplo). Nota-se que há certas estratégias de leitura como: skimming (leitura rápida
e de forma global), scanning (uma leitura rápida, porém com um foco definido), leitura
detalhada (minuciosa), inferência (formulação de deduções e conclusões), predição
(antecipação do conteúdo do texto), automonitoramento (autovigilância no
processamento da leitura), autoavaliação (julgamento dos procedimentos) e
autocorreção (ação corretiva). Relacionando tais conhecimentos com a prática em sala
de aula, Pereira & Cabral (2012) afirmam que para um bom desempenho da leitura em
sala de aula é necessário, como objetivo pedagógico, o desenvolvimento do processo
cognitivo na leitura, pois a compreensão leitora se dá pela consciência do leitor em
relação à linguagem. Deve-se evitar a dissociação dos conceitos trabalhados nas aulas
de compreensão textual, promovendo a interação linguística entre fonologia,
morfologia, sintaxe, semântica e pragmática. Não podendo se esquecer de que o
processo cognitivo, no que se refere à leitura e à interpretação de texto, não ocorre de
forma linear, exigindo do leitor processos e estratégias cognitivas e metacognitivas.
Para uma compreensão leitora eficaz, há dois tipos de consciência: consciência
textual e procedimental. O leitor para compreender o que lê observa certas pistas
visuais e as relaciona com o conhecimento prévio que possui. Baddeley (1986)

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descreve três tipos de memória: memória de trabalho (relevante para a compreensão


textual), memória declarativa (memória de longo prazo, relacionada aos
conhecimentos prévios) e a memória procedural (aprendizagem de habilidades
motoras e cognitivas). Tais memórias relacionam-se à consciência textual e
procedimental e como consequência à compreensão leitora. Segundo Gombert (1992),
o foco da consciência textual é o texto que integra a estrutura (traços que definem a
tipologia textual), coerência (as relações do conteúdo) e a coesão (o que contribui para
a amarração do texto) e o da consciência procedimental os procedimentos que o leitor
se utiliza para compreender o texto. Conforme Pereira e Cabral (2012, p. 44):

[...] No caso de ser orientado (pela mediação do professor) para


dirigir uma dupla atenção – para o texto (o que está lendo) e para os
procedimentos em uso (como está lendo), o leitor se utiliza tanto da
memória declarativa como da memória procedural e desenvolve
tanto a consciência textual como a consciência procedimental.

Nota-se que, conforme a situação de compreensão, teremos um tipo de


processamento e estratégia de leitura específico, sendo assim, desenvolve-se a
consciência procedimental que se relaciona com a textual. Na consciência
procedimental, ocorrem as estratégias de leitura, já que o leitor necessita identificar
que estratégias são necessárias de forma consciente para saber o que é primordial
numa determinada situação.
Smith (2003) afirma que tanto o desenvolvimento da compreensão leitora
quanto o da consciência textual estão relacionados. Há o confronto entre a estrutura,
coerência, coesão, fonética, morfologia, sintaxe, semântica pragmática e o texto com
os conhecimentos adquiridos previamente pelo aluno, que se localizam na memória
declarativa e consciência procedimental.
Em sala de aula, devemos sempre considerar para qualquer atividade de
interpretação de texto a consciência textual. Além disso, é primordial a seleção do
texto, levando em conta a sociedade em que os alunos se encontram, de que gênero o
texto faz parte, ter objetivos em comum de compreensão com a proposta estabelecida
pelo professor e estar adequado para o ano em que se desenvolverá a atividade, pois
tal seleção guiará todo o trabalho pedagógico a ser desenvolvido. Outro aspecto
importante está relacionado aos elementos linguísticos que ajudarão na compreensão
textual, resultando num trabalho concomitante com a gramática.
A consciência textual auxilia no ensino da leitura a partir do momento que os
elementos linguísticos do texto chamem a atenção do aluno, ocorrendo assim uma

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explicação e justificativa do funcionamento textual. Tais conceitos fazem parte da


memória declarativa.
Nota-se também que a compreensão textual se torna mais eficiente com o
desenvolvimento da consciência procedimental, já que essa se relaciona com os
processos de leitura, resultando no reconhecimento e monitoramento pelo aluno
desses procedimentos se o ensino for eficaz. Há também uma relação entre a leitura
que será desenvolvida e o possível desenvolvimento posterior do processo de escrita.
Há que se considerar que a consciência textual ocorre de forma progressiva,
pois na classificação de gêneros textuais, por exemplo, a criança inicialmente não
possui critérios desenvolvidos relacionados à estrutura do texto, posteriormente é que
ocorre tal consciência organizacional do texto. Tal progressão varia com a
escolaridade, por volta dos oito anos de idade, sendo necessária a proposta de
atividades que desenvolvam a consciência textual em sala de aula, no caso a
experiência de leitura de diferentes gêneros textuais. Segundo Duarte (2008, p. 211),
em relação ao desenvolvimento da consciência textual:

No que respeita à consciência textual, a investigação mostrou que os


leitores usam o conhecimento estrutural que têm ao processar um
texto. Assim, por exemplo, o pararelismo entre a estrutura superficial
do texto e a estrutura conceptual da informação facilita a
compreensão [...].

Deve-se estar atento aos elementos motivadores que auxiliam em uma


compreensão leitora mais eficaz, segundo Flôres (2008, p.110):

Ou seja, para ler com gosto a pessoa tem de ter motivação para fazê-
lo, pois sem isso a leitura enfastia e aborrece. O surpreendente da
leitura é que ela afasta o leitor do aqui e agora justamente para
possibilitar-lhe melhor entender o seu entorno, as relações humanas,
os jogos de poder e muito mais.

Há a relação entre a habilidade de ler e o entendimento do que está escrito


pela criança, saber que atitudes envolvem a eficácia da leitura, possuir um bom
vocabulário e ter a noção do que precisa procurar para compreender o texto. Utiliza-se
o conceito dos diferentes tipos de memórias que envolvem o nosso cérebro no
processamento da leitura: memória de curto prazo (sobrevive apenas o tempo para a
informação ser utilizada, memória de trabalho), memória de longo prazo (depois que
uma determinada informação está armazenada) e memória declarativa (episódica ou
autobiográfica, neste caso é o armazenamento de fatos vividos pelo indivíduo).

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Os elementos sociais muito influenciam na compreensão leitora, mesmo com


os conhecimentos sobre consciência textual bem sedimentados, como por exemplo, o
fato de que a aceitação de uma determinada interpretação depende de cada
sociedade específica, já que cada uma possui seus valores e crenças específicos. Além
do fato de que dependendo da situação social se terá a exigência de um gênero textual
diferente, pois há níveis interpretativos diversos, não se pode classificar um
determinado texto apenas pelas suas características formais sem levar em
consideração o aspecto sociocultural, o contexto em que se insere.
A intertextualidade também é um fator que não deve ser esquecido no auxílio
da compreensão leitora, pois todo texto possui outros textos dentro dele, sendo tal
fator um padrão de textualidade relacionando-se com a produção e recepção de um
texto. Sempre nos utilizaremos de inferências, conhecimento prévio de mundo, para
um melhor entendimento e compreensão de diversos tipos de textos, sendo tais
características auxiliares no desenvolvimento da consciência textual.

3 Conclusão

A partir da relação entre os conceitos dos processamentos cognitivos - em


especial a consciência textual - com o ensino, podemos observar que fatores podem
ser mantidos ou mudados para uma maior eficácia da compreensão leitora nas aulas
de Língua Portuguesa. Não se esquecendo de que tal modificação ocorre tanto da
parte dos professores quanto da parte dos alunos. Atualmente é solicitada, no ensino
e aprendizagem da leitura, a interação do leitor com o texto e vice-versa, para
interpretar é necessário ir além do significado das palavras.
No ensino, os professores devem se colocar na situação dos alunos, pois dessa
forma fica mais fácil de identificar as dificuldades encontradas por eles, auxiliando
assim na compreensão textual e no desenvolvimento de uma opinião crítica,
concordando ou não com o ponto de vista de cada texto lido. Só assim obteremos
leitores de fato proficientes que preencherão os espaços em branco deixados pelo
autor no texto, construindo novos sentidos.
Conclui-se, portanto, que a língua escrita ganhou nos últimos tempos
dimensões variadas, ela cada vez mais faz parte do nosso cotidiano. Ser letrado
atualmente é muito mais do que decodificar palavras, é necessário compreender
aquilo que se escreve e se lê, sendo o ensino o fator preponderante para o
desempenho de tal habilidade. O leitor tem que se permitir transpor o limiar do texto,
desenvolvendo a leitura crítica e envolvendo o processo inferencial, pois a existência
do texto depende também do leitor.

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Impresso), v. 28, p. 381-388, 2012.

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MÃES E FILHOS NA LITERATURA HISPANOAMERICANA:


CONFLITOS E (NÃO) DIÁLOGOS ENTRE GERAÇÕES

Pedro Afonso Barth1


Rafaelly Andressa Schallemberger2

1 Introdução

Gerações diferentes, frequentemente, têm visões de mundo opostas, que em


algum momento podem entrar em conflito. Nessa instância, o diálogo e a tolerância
são os caminhos para a resolução de confrontos. A literatura, ao retratar as relações
humanas, possibilita a reflexão sobre a importância do diálogo e da alteridade na
mediação entre conflitos entre pais e filhos. Nesse artigo analisaremos duas obras de
autores hispano-americanos que tematizam tal conflito: o conto La rogativa do autor
paraguaio Augusto Roas Bastos e a novela Como água para chocolate da autora
mexicana Laura Esquivel.
Augusto Roa Bastos é um dos grandes escritores hispano-americanos surgidos
no século XX. O conto La rogativa trata da trajetória de uma menina chamada Poilú,
vítima da fome, da seca e da degradação, uma criança que não tinha o direito de
vivenciar sua infância até encontrar um adulto que a apresentou a um mundo de
lendas e magia. Porém, sua mãe se mostra intolerante com tais descobertas e impede
a filha de ter contato com as tradições e com o mundo oral. Por sua vez, Laura Esquivel
é uma autora contemporânea, localizada no pós-boom da literatura hispano-
americana. Sua novela retrata o confronto de uma mãe, intransigente e autoritária que
impede que a filha Tita faça suas próprias escolhas. É o choque do patriarcalismo com
a necessidade da mulher fazer suas próprias escolhas. Ambos os textos literários
oferecem um panorama para refletir sobre o diálogo.
O presente artigo justifica-se pela pertinência de estabelecer análises em obras
de autores hispano-americanos, tanto para valorizar a atualidade e excelência da obra
de Roa Bastos no cenário literário, quanto para dar uma maior visibilidade às
qualidades da obra de Laura Esquivel. Os autores, apesar de serem de países

1
Mestrando do PPG em Letras da UPF na linha de Leitura e Formação do Leitor. Bolsista FAPERGS.
E-mail: pedroabarth@hotmail.com
2
Mestranda do PPG em Letras da UPF na linha de Constituição do Texto e do Discurso.
E-mail: rafaellyandressa@hotmail.com

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diferentes, de épocas distintas, de retratar realidades distantes, têm obras que


convergem, à medida que retratam aspectos da subjetividade humana que nos ajudam
a entender certas relações nas sociedades latinas.
O artigo será dividido em três seções. Na primeira, contextualizamos a
importância da obra de Roa Bastos para a literatura Hispano-Americana e traremos
uma breve síntese do conto. Na seção seguinte tratamos da novela Como água para
chocolate, contextualizamos a obra e descreveremos o conflito entre mãe e filha. Em
seguida, na próxima seção, compararemos os conflitos das duas obras, apontando
quais as diferenças e convergências dos conflitos entre mães e filhos.

2 O grito de socorro em La rogativa

Nascido em 1917, em Assunção, Roa Bastos lutou na Guerra do Chaco com


apenas 14 anos e sempre defendeu a liberdade de expressão. Posicionamento esse
que fez com que vivesse mais da metade de sua vida exilado de sua terra natal. Porém,
Roa Bastos, mesmo exilado e expulso de seu país, tornou-se a principal voz paraguaia
no mundo, denunciando com contundência a violência do seu país por meio de sua
obra. O autor, de forma despretensiosa, deu luz e visibilidade à arte produzida no
Paraguai e para os paraguaios.
Além disso, os contos permitem observar uma característica que permeia toda
a obra de Roa Bastos: o bilinguismo. O Paraguai é o único país latino-americano
oficialmente bilíngue e, durante a década de 1950, menos de seis por cento da
população tinha o espanhol como língua materna. O autor constrói personagens que
falam Guarani, que mesclam o idioma com a língua oficial castelhana e, dessa maneira,
a importância da oralidade é sentida na constituição de suas narrativas.
Considerando o significado da obra de Roa Bastos para o Paraguai e para a
literatura hispano-americana, neste artigo analisaremos o conto La rogativa,
integrante da obra El trueno entre las hojas. La rogativa é um conto dividido em cinco
blocos numerados. Principia com a descrição da personagem Poilú, uma menina, ainda
na primeira infância, que vive com sua mãe em uma pequena povoação. O modo com
que a personagem é apresentada é de certa forma chocante: “Una pequeña larva
humana avanzando entre los amarillentos colgajos de las hojas” (ROA BASTOS, 1968, p.
153). Poilú é comparada a um animalzinho faminto, pois é retratada comendo terra,
remexendo o solo do bananal. Tal comportamento ocorre devido ao fato de não
chover há meses e consequentemente, a seca castiga fortemente o vilarejo. A fome é
tão devastadora que a criança precisa comer terra para aplacá-la.

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A segunda parte do conto apresenta a mãe de Poilú, Anuncia, e a realidade que


o povoado enfrenta – a seca de mais de seis meses que estava causando angústia e
desespero, que parecia renovar a fé da aldeia inteira. Todos os seus habitantes – até
mesmo os criminosos mais execráveis – estavam na capela, rezando, implorando a
Deus por chuva – La rogativa, a imploração. Anuncia cria a filha sozinha e vive da
colheita de mandioca e milho. Com a seca, não há trabalho, então, todos os dias, a
mulher fecha a cabana, deixa a filha sozinha e vai à capela e une sua voz na imploração
por chuva. Poilú, assim como outras crianças, corre solta nos bananais, tentando
aplacar o desespero da fome. Assim, a criança age como um animalzinho: “Las moscas
la seguían y se enredaban de tanto en tanto en las greñas queriendo llegar hasta los
granos. Poilú no hacía el más mínimo ademán de defenderse. El sol, las moscas, el
hambre eran partes de su mundo; no los sentía enemigos suyos”. (ROA BASTOS, 1968,
p.156).
A menina vai à busca de água, mas todos os poços estão secos. Instintivamente,
vai ao encontro de Felipe Tavy, um velho louco que morava em uma gruta, e que se
torna amigo de Poilú, a única pessoa que a trata como um ser humano, contando
histórias e dialogando de igual para igual. Felipe conversa com Poilú e apresenta à
menina um mundo de fantasia. De certa forma, o velho dá a atenção que a menina
precisa, atenção que teria de ser dada por sua mãe. Nos contos e lendas que ele conta
para a menina, afirma que apenas choverá quando certa flor nascer nas margens do
Arroio, pois a flor fará com que o tigre urine e, assim, choverá. Um ponto importante
que deve ser destacado na narrativa é que Felipe é o único adulto do vilarejo que não
se encontra na capela, rezando por chuva.
Um dia, Poilú pergunta a sua mãe o porquê de ir todo dia rezar na capela,
Anuncia responde que é para implorar a Deus por chuva. A menina, curiosa e de certa
forma motivada pelas histórias de Felipe questiona esta “verdade”. “Celipe dice que no
e’ allí donde hay que apretarle la verija al tigre” (ROA BASTOS, 1968, p. 157). Anuncia
se escandaliza com a resposta e reage de forma violenta, proibindo sua filha de falar
com o velho do arroio. Poilú argumenta que Felipe é o único que lhe conta histórias,
mas a mãe não cede. A mãe afirma que as histórias de Felipe entraram na cabeça da
menina como se fossem vermes e perturbaram seu juízo. Então, a ameaça e para que
suas palavras tenham um peso maior, diz que o próprio Deus amassará a cabeça da
menina como se fosse uma melancia se ela voltasse a falar com o velho Felipe. Mas a
menina, agora um ser pensante, mesmo calada, sem enfrentar sua mãe, questiona-se,
interroga-se e não aceita as palavras maternas como verdades absolutas. Porém, para
evitar o confronto, promete não falar mais com Felipe Tavy.

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Apesar da promessa, Poilú não consegue mais se desvincular do mundo de


fantasia e lendas a que foi apresentada. Segue curiosa e passa a se movimentar de
forma diferente: não é mais uma espécie de animalzinho faminto, a menina começa a
se sentir um ser humano. Mas sem dialogar com sua mãe, sem poder verbalizar suas
dúvidas e inquietações, a menina se sente perdida. Em certo ponto da narrativa se
debruça em um poço em busca da flor que fará o tigre urinar. E assim, acaba caindo e
morrendo. Dessa forma, o desfecho do conto é trágico: após buscas pelo paradeiro da
menina, Anuncia responsabiliza Felipe pela morte de sua filha e incita os habitantes do
povoado contra ele. Guiados por uma violência virulenta, a multidão apedreja o ancião
até a morte e não se dá conta que, no mesmo instante, uma chuva principia. O conto
encerra com a informação de que para agradecer a chuva, haverá em breve uma missa
em ação de graças na capela de Santa Clara.

3 O confronto entre mãe e filha em Como água para chocolate

Publicada originalmente em 1989 e adaptada para o cinema em 1992, a novela


Como agua para chocolate, de Laura Esquivel, obteve um grande êxito de vendas e
repercussão. A obra inscreve-se na tradição do gênero realismo fantástico da literatura
hispano-americana. Além disso, resgata o contexto histórico da época da revolução
mexicana – além de ser uma história sobre a natureza feminina e a condição da
mulher. A história narra a vida de Tita de La Garza, a mais nova filha de um clã
mexicano, impedida de casar com seu amado Pedro, por imposição de sua mãe, D.
Elena, que exigia de sua filha mais nova a obediência à tradição de jamais se casar
enquanto sua progenitora estiver viva, pois teria a obrigação de cuidar de sua mãe até
a hora de sua morte. Impedida de fazer suas próprias escolhas, Tita se refugia na
cozinha e os pratos que prepara são catalisadores dos seus desejos mais íntimos.
Cozinhando, exercendo sua feminilidade, a protagonista enfrenta a tradição patriarcal
imposta pela autoridade materna.
A obra é dividida em doze capítulos, correspondentes aos meses do ano
apresentados em ordem crescente. Cada capítulo possui dois subtítulos. O primeiro é
denominado “Ingredientes” e inicia com a descrição de uma receita tipicamente
mexicana e os ingredientes são relacionados. O segundo subtítulo é “Modo de Fazer”
onde são descritos os procedimentos do preparo de cada iguaria. Porém, as
explicações sobre o preparo dos pratos são mescladas à narração da história, e, a
partir de cada receita, são narrados fatos associados à memória do momento em que
o prato foi servido.

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A história é narrada por alguém do sexo feminino que não se apresenta


diretamente ao leitor. Sabemos apenas que é sobrinha-neta da protagonista da
história, Josefita De la Garza, chamada por todos de Tita, filha caçula de Elena. É a vida
de Tita o fio condutor da narrativa. Na primeira receita, a do mês de janeiro, a
personagem nasce, e na última, dezembro, encontra seu derradeiro destino. A história
inicia no ano de 1895 e grande parte da narrativa se passa em plena revolução
mexicana. O espaço da história é bem delineado: a família da protagonista vive no
rancho de sua propriedade, situado próximo à cidade de Piedras Negras, no estado
mexicano de Coahuila, norte do país e divisa com o estado norte-americano do Texas.
Após ter ficado viúva, a autoritária Mamãe Elena comanda o rancho, as três
filhas – Rosaura, Gertrudis e Tita - e os empregados com extrema rigidez, exigindo uma
obediência incondicional. Mesmo tendo a intenção de controlar tudo e todos, há
algumas coisas que escapam do controle da matriarca. Aos quinze anos, Tita se
apaixona por um jovem do vilarejo e é correspondida. Quando descobre o fato, Elena,
além de não consentir o casamento de sua caçula, obriga o rapaz a se casar com sua
filha mais velha, Rosaura. Elena impõe que Tita deveria cumprir a tradição familiar
segundo a qual a filha caçula era obrigada a permanecer solteira para cuidar da mãe
até o dia de sua morte. Rosaura, por ser a mais velha, deveria ser a primeira a casar.
Para a surpresa de Tita, Pedro, apesar de verbalizar que a ama, aceita se casar com sua
irmã. Tita tenta enfrentar a arbitrariedade de sua mãe, que a castiga obrigando-a a
fazer o bolo de casamento do seu amado com sua irmã. Após o enlace, Pedro passa a
viver com a família no rancho, perturbando o coração de Tita.
Após a morte da velha cozinheira Nacha, Elena incumbe Tita de assumir a
cozinha, pois ela tem um talento natural para a culinária. A partir deste momento,
começam a ocorrer fatos estranhos associados aos efeitos da comida preparada pela
nova cozinheira. O tempo passa e Pedro tem um filho com Rosaura, bebê que passa a
ser amado incondicionalmente por Tita, que inclusive passa a alimentá-lo em seu
próprio seio, mesmo sendo virgem. Percebendo que o amor entre Tita e Pedro ainda
se mantinha, Mamãe Elena manda o genro e a filha mais velha viverem no Texas.
No entanto, o bebê, longe de Tita, e do leite que o alimentava, acaba
falecendo. Ao saber da notícia, Tita se rebela contra a mãe e a culpa pela morte do
afilhado. Elena, que nunca havia sido enfrentada por ninguém, sente-se injuriada e
toma Tita por louca e pede ao médico John Brown que interne a filha num manicômio.
No entanto, sem que Elena saiba, John, que conhecia e admirava Tita, leva-a para sua
casa, onde lhe proporciona cuidados, carinho, paz e uma liberdade nunca antes vivida
por ela. Um laço de carinho surge entre os dois e Tita aceita ser esposa de John.

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A partir desse ponto da narrativa, vários acontecimentos sucedem: a morte de


mamãe Elena – que vira um fantasma que vigia Tita –, a volta de Pedro e Rosaura ao
rancho, o nascimento de outra filha do casal, Esperanza, e a aproximação entre Tita e o
cunhado. A protagonista sucumbe ao amor que sente por Pedro e, assim, desiste de
casar com John e inicia uma atribulada relação com sua irmã. Anos depois, Rosaura,
que sofria de graves problemas digestivos, falece, e finalmente Tita e Pedro são livres
para viver o seu amor. Esperanza se casa, e, logo após a festa de casamento, Tita e
Pedro morrem num incêndio – provocado pelas chamas do amor incontrolável – que
destrói totalmente o rancho. Desse incêndio, resta somente um livro de cozinha
escrito por Tita e herdado por Esperanza, cuja filha, anos mais tarde, usa para
recuperar e contar a história de sua tia-avó.
Apesar de sua condição de mulher, Mamãe Elena representa, no romance
Como água para Chocolate, a dominação masculina, o patriarcalismo das relações
familiares do início do século XX, uma vez que, após a morte do marido, torna-se a
responsável pelo rancho e pela família, sobre os quais exerce um poder arbitrário e
total. Elena parece ser uma personagem plana, sem maiores contornos, pois parece ter
uma única função: subjugar suas filhas, exercer sua autoridade. Podemos perceber tal
traço no trecho abaixo:

Mãe Elena era uma especialista em partir melancias: enfiava a ponta


de uma faca afiada de modo que penetrasse apenas até a parte
verde, sem tocar o miolo da fruta [...] Indubitavelmente, tratando-se
de partir, desmantelar, desmembrar, devastar, desfarretar, destruir,
desbaratar, devastar ou desmamar alguma coisa, Mamãe Elena era
mestra. Desde que Mamãe Elena morreu, nunca ninguém pode voltar
a realizar esta proeza - com a melancia (ESQUIVEL, 2014, p. 83-84).

Mesmo depois de sua morte, Elena continua aparecendo na história,


assombrando sua filha, lembrando a ela que o envolvimento com o cunhado era
indecoroso. Podemos relacionar tal fato com a atual existência do patriarcalismo no
mundo atual. Apesar de todos os avanços sociais, da libertação e independência da
mulher, o fantasma do machismo e da repressão sempre está à espreita, enraizado nas
estruturas sociais.
A protagonista Tita, desde a infância, se diferenciou das irmãs, Rosaura e
Gertrudis3. Elas, totalmente submissas às ordens da mãe, sempre se conformaram com
3
Gertrudis no início da história é totalmente submissa à mãe. Somente no decorrer da narrativa, após
provar uma receita de Tita, que ela tem um impulso de fuga e corre nua pelos campos até encontrar o
general e, após algum tempo, torna-se “generala”.

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a atuação restrita ao ambiente privado, dando mostras de submissão. Tita domina por
completo a cozinha – um espaço em que sua mãe não tem entrada – e é na cozinha
que a protagonista apresenta atitudes de transgressão. Quando cozinha e seus pratos
têm efeitos na realidade externa, Tita, inconscientemente, demonstra o anseio de sair
do espaço fechado e transitar também pelo espaço aberto.
Apesar de crescer em um ambiente patriarcal e ter de conviver subjugada às
tradições familiares, Tita não as aceita de forma passiva, mas as enfrenta. E,
sobretudo, reflete sobre elas. Quando sua mãe a impede de casar com Pedro, devido à
tradição da filha mais nova ter de dedicar sua existência aos cuidados com os pais
idosos, Tita não se conforma.

Dúvidas e ansiedade brotavam em sua mente. Em primeiro lugar ela


queria saber quem havia começado essa tradição familiar. Seria bom
se levasse ao conhecimento dessa criatura genial uma pequena falha
nesse plano de cuidados com a velhice das mulheres. Se Tita não
poderia casar e ter filhos, quem tomaria conta dela quando ficasse
velha? [...] E, além disso, Tita gostaria de saber que tipo de pesquisa
havia estabelecido que a filha mais nova, e não a mais velha, é a mais
apta para cuidar a mãe (ESQUIVEL, 2014, p. 14).

Apesar de confrontar e questionar a tradição, a menina de quinze anos não tem


meios de impedir o casamento da irmã e o destino de cuidadora de sua mãe. Além de
ter de aceitar resignada o destino que lhe é imposto, Tita recebe a ordem de fazer o
bolo de casamento. E mamãe Elena, cruelmente, impede-a de chorar. Porém, durante
o preparo da cobertura do bolo, a jovem chora e suas lágrimas alteram o sabor deste.
No dia do casamento, após os convidados e os noivos consumirem o bolo, todos
passam mal, atacados por uma tristeza implacável, e todos choram. Esta é apenas uma
das passagens de realismo fantástico – característica da ficção hispano-americana –
que aparece no romance. Porém, podemos fazer uma leitura muito significativa da
passagem. Sem ter como agir diretamente contra a violência que sofre – a violência
sutil de não poder escolher seu destino – Tita chora, e suas lágrimas operam uma
vingança contra o casamento de sua irmã. Durante a história, outras passagens
semelhantes ocorrem, momentos em que as comidas preparadas pela protagonista
transmitem sensações para quem as come, e provocam incidentes que modificam os
rumos dos acontecimentos. Assim, a culinária de Tita passa a ser uma espécie de
expressão de sua voz – uma voz calada pelo autoritarismo da mãe.

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4 A ausência de alteridade

As narrativas descritas nas seções anteriores possuem inúmeras diferenças,


tanto em relação ao gênero, uma sendo um conto, a outra uma novela, como em
relação a temática, estilo, ambientação entre outros aspectos. Nessa seção
destacaremos o que os textos possuem em comum: ambas as histórias retratam
ausências de alteridade em relações familiares. Porém, mais do que representar
conflitos internos de famílias, ambos os autores construíram enredos que possibilitam
leituras amplas: mais do que famílias a ausência de diálogos das obras retratam
aspectos culturais das sociedades latino-americanas.
O conto La Rogativa é uma leitura inquietante, não só por retratar a
animalização de uma menina e, em seguida sua chocante morte, mas por tematizar a
violência cometida contra as culturas autóctones e o seu modo de estar no mundo.
Poilú crescia como um animal, pois estava desprovida da atenção materna. Mais do
que isso, era negado à criança acesso ao mundo das palavras, da imaginação. Sem tal
acesso, a menina não construía sua subjetividade. O contato com o velho Felipe foi a
ponte da menina com si mesma. Mais do que histórias folclóricas e lendas indígenas, a
atenção que Poilú recebeu fizeram com que a garota tomasse consciência de sua
condição. Entretanto, a interferência nociva de sua mãe impossibilitou a continuação
desse processo. O desfecho da personagem Poilú, impreciso, indefinido, mas
indelevelmente trágico, é coerente com o tom de denúncia assumido pelo conjunto da
obra de Roa Bastos. A menina sonhadora, pensante e criativa não tem espaço para
florescer em uma sociedade agressiva, árida e violenta, uma sociedade que cala a voz
dos povos oprimidos e reprime manifestações culturais.
Anuncia, apesar de mãe, não consegue estabelecer um vínculo de carinho
incondicional por sua filha. Porém, isso não acontece por maldade ou má índole e sim,
pelas condições sociais a que estão submetidas: Anuncia deposita toda sua energia
para sobreviver, para trabalhar de sol a sol. No período de seca devastadora, a única
alternativa é ir à igreja e implorar. Assim, a personagem tem uma vida seca, sem
espaço para manifestações de afetividade. A influência da igreja é sentida nesse
comportamento árido. Assim, podemos afirmar que Anuncia parece representar a
América Latina domada, a região explorada que aceita a opressão passivamente, que
trabalha de sol a sol sem questionar. E quando privada de algo substancial, tem apenas
como opção rogar a Deus.
Por sua vez, Poilú representa uma outra América, um espaço de descoberta:
por meio de lendas e tradições indígenas vai buscando sua identidade. Petit (2008)

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afirma que a maioria dos jovens tem grande dificuldade de encontrar um lugar neste
mundo, não só por razões econômicas, mas também afetivas, sociais, sexuais e
existenciais e Poilú parece estar neste dilema. Não sabe quem é, foi acostumada a
apenas sobreviver e, pela primeira vez, pensa, vivencia e se percebe como ser humano
apto a recorrer à sua capacidade e força interna, despertada pelas histórias que a
possibilitaram dar início a um processo de resiliência, tão importante em momentos de
dor e trauma. A fantasia contribui para que a criança reconheça e entre em contato
com seus sentimentos, entre eles a agressividade. No conto, o conflito entre mãe e
filha acontece, porque Anuncia não admite que sua filha tenha contato com tradições
pagãs. Ao impedir sua filha provoca sua morte. Da mesma forma quando a América ao
reproduzir ideias repressoras dos colonizadores e impedir as manifestações culturais
autóctones, provoca gradualmente a morte de sua própria identidade cultural.
O conflito de Como água para chocolate por sua vez tematiza o choque do
patriarcado com os direitos das mulheres. Mãe Elena e Tita parecem representar duas
posturas femininas: a primeira é a mulher que aceita o machismo e torna-se uma
agente da manutenção do poder patriarcal e a segunda é aquela que luta contra a
manutenção desse sistema.
Mãe Elena, em suma, era uma castradora, tinha prazer em dominar as filhas e
subjugá-las a sua vontade. Porém, durante a narrativa o leitor é informado de que
Elena escondia um segredo: durante a juventude viveu um amor proibido com um
negro, mas sua família descobriu e a casou à força com Juan de La Garza. Elena teve
que sufocar seus sentimentos, transformando-se em uma mãe e esposa exemplar. Ao
impedir a união de sua filha mais nova com Pedro, Elena está a condenando ao mesmo
destino que teve. Endureceu de tal maneira que se tornou incapaz de sentir empatia
pelos sentimentos de sua filha mais nova, e ao invés de utilizar a autoridade que tem
para promover a independência e o bem-estar das filhas, faz com elas o mesmo que os
seus pais fizeram no passado: submeter a um destino de infelicidade.
Nessa complexidade apresentada por Mamãe Elena percebemos o que
Bourdieu (2014, p. 54) define como a violência simbólica que as mulheres sofrem pela
dominação masculina. O autor aponta que a “primazia universalmente concedida aos
homens se afirma na objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas e
reprodutivas, [...] elas funcionam como matrizes das percepções, dos pensamentos e
das ações de todos os membros da sociedade, como transcendentes e históricos”.
Elena está condicionada a pensar que o lugar de uma mulher é obedecer aos preceitos
patriarcais. Por isso, mesmo tendo a oportunidade de promover um destino diferente
para suas filhas, não o faz. A personagem parece incapaz de reconhecer na filha os

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dramas que viveu no passado. E assim condena a jovem a uma vida infeliz e sem
propósito.

Considerações finais

As narrativas analisadas retratam situações trágicas em todos os níveis:


familiar, social e cultural. Familiar, pois retratam famílias desestruturadas, mães que
não ouvem suas filhas, que por diferentes razões não permitem a instauração de um
diálogo. No conto de Roa Bastos, a mãe não envolve sua filha com a afetividade
necessária a uma criança em desenvolvimento. Na novela de Esquivel, a mãe impede
que a filha tenha liberdade e a subjuga a um sistema opressor que sufoca seus desejos
e suas vontades. Social, pois as narrativas representam alguns conflitos que provocam
grandes desigualdades nas sociedades Latino-americanas. Em La rogativa é a fome, a
desigualdade e a pobreza material e cultural que fazem com que a população seja
vulnerável e que em situações extremas responda com violência e brutalidade. Por sua
vez, em Como água para chocolate, é o machismo, o patriarcado, a opressão que
existe sobre a mulher. E finalmente, uma tragédia cultural: em La rogativa há
marginalização do patrimônio oral de um povo, um povoado que despreza a cultura
oral e perde assim sua identidade.
O objetivo desse artigo foi alcançado à medida que relacionamos duas
narrativas muito instigantes que têm como ponto de contato os modos de que a
ausência de diálogo e a dificuldade em se colocar no lugar do outro podem ser a
origem de problemas familiares e inclusive as raízes dos problemas sociais e políticos.
Todas as tragédias citadas poderiam ser evitadas se o diálogo e a alteridade
prevalecessem. Infelizmente, não é isso que ocorre sempre, e a literatura expõe esses
conflitos e assim nos dá meios de pensar sobre essas questões e de entender melhor a
sociedade em que estamos inseridos.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina: a condição feminina e a violência


simbólica. Tradução Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: BestBolso, 2014.
ESQUIVEL, Laura. Como água para chocolate: romance, receitas e sabores do México.
Tradução Mônica Maia. Rio de janeiro: BestBolso, 2014.
______. Como agua para chocolate. 14. ed. Buenos Aires: Debolsillo, 2009.
PETIT, Michèle. A arte de ler ou como resistir à adversidade. Editora 34, 2009
ROA BASTOS, Augusto. El trueno entre las hojas. Buenos Aires: Ed. Losada, 1968.

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SAGUIER, Ruben. Augusto Roa Bastos e a Narrativa Paraguaia Atual. Curitiba: Letras,
1976.

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COMPREENSÃO DO SENTIDO DE DISCURSOS EM TIRAS COM BASE NUMA INTERFACE


ENTRE AS CONCEPÇÕES DIALÓGICA E ARGUMENTATIVA DE LINGUAGEM

Rafael S. Timmermann1
Telisa Furlanetto Graeff2

Este trabalho tem o intuito de tratar da construção do sentido dos enunciados


através de análises da interação realizada nos discursos dos personagens em tiras de
Calvin & Hobbes, com vistas a uma interface entre as concepções dialógica e
argumentativa de linguagem. Tal interface, proposta por Graeff e Timmermann (2014),
dá-se no que tange ao movimento realizado para dar completude ao sentido dos
enunciados que, na concepção dialógica (VOLOSHINOV, 2012), parte de uma sequência
de avaliações e percepções exteriores ao discurso verbal, cujos dados omitidos são
compartilhados pelos participantes da interação, assemelhando o enunciado concreto
ao entimema.
Nesse movimento realizado, parte-se de uma materialidade linguística e
encontra-se no mundo uma justificativa para a conclusão do enunciado. Segundo
Graeff e Timmermann, percebe-se semelhança com a construção do sentido
apresentada por Ducrot (1990), na fase Standard Ampliada da ADL, uma vez que o
sentido do enunciado era, nessa fase, garantido por um topos, uma crença comum
encontrada no mundo da comunidade linguística e compartilhada pelos indivíduos
pertencentes a ela. Dessa forma, a compreensão do sentido de um enunciado é
garantida por fatores não expressos linguisticamente, encontrados no mundo
extraverbal, compartilhados pelos participantes da interação, tanto para Voloshinov
quanto na fase Standard Ampliada da ADL.
Fazemos, então, a exposição detalhada da proposta de interface entre as
concepções dialógica e argumentativa de linguagem, no que diz respeito ao
movimento de construção do sentido dos enunciados. Utilizamos uma tira de Calvin &
Hobbes para desenvolver a proposta. Passemos, então, à tira (Fig.1).

1
Doutorando em Letras no PPGL da Universidade de Passo Fundo - UPF. Bolsista CAPES.
E-mail: rafaelimmermann@yahoo.com.br
2
Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo – UPF, Doutora
em Linguística Aplicada pela PUCRS.
E-mail: telisa@upf.br

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Figura 1 – Dia perfeito

Fonte: Watterson (2014)

Tradução livre:
Quadro 1:
Hobbes: Que dia perfeito!
Quadro 2: Ø
Quadro 3: Ø
Quadro 4:
Calvin: Se alguma coisa não acontecer aqui logo, eu vou pirar.

Para mostrar o funcionamento da construção do sentido de enunciados com


base em procedimentos que constituem a interface entre as concepções dialógica e
argumentativa de linguagem, partimos da análise sugerida por Voloshinov
(1926/2012), em Discourse in life and discourse in art.
Os discursos que, de certa forma, são simples, na Fig. 1, permitem-nos
comparar a situação representada na tira com o exemplo proposto por Voloshinov
(1926/2012). Em seu texto, o autor sugere um enunciado composto apenas pelo
advérbio bem. Em sua discussão a respeito de como se poderia compreender esse
enunciado, o autor ressalta que é impossível um enunciado ser analisado e/ou
compreendido apenas por sua materialidade linguística. Sendo assim, havia a
necessidade de conhecer fatores extralinguísticos para que, então, o enunciado
pudesse ser entendido pelos colocutores (locutor e interlocutor), no momento da
enunciação. De acordo com o Voloshinov (1926/2012), os fatores externos são: o
horizonte espacial comum, o conhecimento/compreensão comum dos interlocutores e
a análise feita por eles.

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O movimento realizado, nesse sentido, para a construção do sentido, tem por


base o material linguístico, o enunciado verbal, e busca, exteriormente, o sentido real
para as palavras, uma vez que, em si, as palavras são apenas sinais de possíveis
sentidos a serem atribuídos, que, segundo Voloshinov (1926/2012), são fatores
conhecidos pelos participantes do diálogo, entretanto, estão, apenas, presumidos, fato
que assemelha o enunciado concreto ao entimema. Uma vez concretizadas no
enunciado, isto é, quando conhecidos os fatores presumidos, as palavras ganham seu
valor único, compreendido pelos envolvidos no diálogo através de uma avaliação
desses indivíduos, permitindo, então, após a conclusão de sobre o que trata a
enunciação, uma resposta por parte do interlocutor. Esse movimento de construção
do sentido pode ser representado pelo esquema que segue, conforme a Fig. 2:

Figura 2 – Enunciado/Fatores presumidos/Conclusão

Fonte: elaborada pelos autores

Na situação representada na Fig. 1, o horizonte comum (contexto imediato)


entre os personagens (Calvin e Hobbes) é estar sob a sombra de uma árvore, que
reflete a calmaria de uma tarde propícia para o descanso. No primeiro quadro, Hobbes
comenta a situação com o enunciado avaliativo “Que dia perfeito!”. Nesse momento,
ao realizar o enunciado, ele expressa sua satisfação em estar relaxando à sombra da
árvore.
Dois quadros não apresentam discursos verbais e transmitem a sensação de
passagem de tempo. Esse tempo, comum aos personagens, vai ser concretizado no
último quadro, quando Calvin expressa sua insatisfação a respeito da cena: “Se não
acontecer alguma coisa logo, eu vou pirar!”. Somente nesse momento, torna-se
compreensível a avaliação oposta dos dois personagens sobre a temática da narrativa.

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Para avaliar a situação, cada personagem, que está situado sócio-


historicamente, conta com os fatores referentes a determinado grupo ou comunidade
a que pertence. Por isso, ao dizer que iria enlouquecer caso nada acontecesse, o
menino avalia a situação negativamente, posto que um dia perfeito para uma criança é
um dia repleto de atividades; ao contrário de Hobbes, que compreende um dia
perfeito como um dia de descanso, atitude atribuída a adultos ou idosos, na maioria
dos casos.
De acordo com o que Bakhtin (1952-53/2011) explica sobre o valor social
atribuído aos signos, ressaltamos o entendimento diferente de dia perfeito, dos
personagens. Dia perfeito, reiteramos, é, para uma criança, uma situação que envolva
atividades. Já um adulto atribui a dia perfeito o valor de descanso. Tomemos por
exemplo uma reunião familiar durante as comemorações natalinas. As crianças ficam
animadas, pois encontram seus irmãos, primos, etc., ganham presentes, comem pratos
especiais e têm a possibilidade de brincar até que não tenham mais forças físicas para
tal. No entanto, para os adultos, a celebração, comumente, reúne familiares e amigos
para conversas, risadas e, por fim, o descanso, assim que as crianças dormem. Para as
crianças, a festa de natal é geralmente perfeita, assim como para os adultos, porém o
valor de perfeição é atribuído por fatores diferentes.
Assim, temos a situação extraverbal unida às enunciações expressas: um
ambiente comum, à sombra da árvore, no caso; a compreensão da situação por ambos
os locutores; e a avaliação oposta. A avaliação positiva atribuída pelo tigre e a
avaliação negativa realizada pelo menino. Pode-se perceber, dessa forma, que os
personagens avaliam o momento a partir de contextos sociais mediatos diferentes.
Enquanto o menino demonstra o tédio de uma criança de 6 anos ao permanecer
sentado/parado durante muito tempo, sem ter algo para fazer; o tigre fala de uma
posição adulta (mesmo sendo ele fruto da imaginação do menino, aqui percebemos
que ele assume uma personalidade de adulto em relação a Calvin), louvando o
momento de descanso sentado à sombra da árvore.
Com base nisso, percebemos uma grande semelhança no movimento de
construção do sentido da ADL Standard Ampliada e a proposta de análise dialógica: a
partir de um argumento (enunciado, segundo a concepção dialógica), busca-se um
topos exterior que garante a passagem para uma conclusão possível, já sugerida pelo
argumento. Vejamos o movimento da passagem do argumento para a conclusão,
garantida por um topos, no modelo, conforme a Fig. 3:

Dialogue Under Occupation 509


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Porto Alegre, RS, outubro de 2015
Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL)
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

Figura 3 – Argumento/Topos/Conclusão

Fonte: elaborada pelo autor

Como destacamos, o sentido de dia perfeito é diferente para Calvin e Hobbes,


pois este avalia a situação da Fig. 1 de maneira positiva, e aquele de forma negativa.
De acordo com Carel e Ducrot (2005), a entidade mínima portadora de sentido é um
encadeamento argumentativo, cujos predicados podem ser conectados por donc
(portanto) ou, segundo Carel (1995), pourtant (mesmo assim). Sendo assim, podem-se
constituir os seguintes encadeamentos:

(1) Dia perfeito DC nada para fazer


(2) Dia perfeito DC muito para fazer

Para garantir a passagem do argumento dia perfeito para cada uma das
conclusões, segundo a fase Standard Ampliada da ADL, seria necessário conhecer um
topos que não está na língua.
Para garantir (1), a crença/topos que se evoca do encadeamento (1) é a de que
um dia perfeito é aquele em que se pode apenas relaxar, sem compromissos e é
assumido, geralmente, por adultos e não por crianças. Pode-se dizer, então, que, para
um adulto, quanto menos coisas se tem para fazer, melhor é o seu dia.
No entanto, a garantia utilizada para justificar a passagem em (2) propõe que
um dia é perfeito, quando se podem realizar muitas coisas, geralmente jogos ou
brincadeiras que envolvem atividades físicas, por exemplo. Do ponto de vista de uma
criança, esse é um topos que justificaria a conclusão a ser tirada de dia perfeito, uma
vez que, para ela, quanto mais coisa para fazer, mais perto da perfeição o dia estará.
É nesse sentido que destacamos a interface possível entre as duas concepções
de linguagem, no movimento de construção do sentido dos enunciados que, a partir
do linguístico, busca-se um fator não expresso verbalmente, para que haja

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compreensão total do sentido. Enquanto Voloshinov (1926/2012) fala de um horizonte


espacial comum, uma compreensão e uma análise comuns da situação realizada pelos
interlocutores, e compara o enunciado ao entimema (cuja premissa principal não é
expressa), Ducrot (1990) propõe que a garantia de passagem de um argumento para
uma conclusão seja justificada por um princípio argumentativo não verbal, isto é, um
topos.
O topos, que serve como garantia de passagem no encadeamento dia perfeito
DC nada para fazer, contém os aspectos extraverbais omitidos, que Voloshinov
considerava. Não apenas contém, mas é baseado neles, pois, como se observa nesse
encadeamento, a crença geral de um grupo, de que um dia perfeito é aquele em que
não se tem nada para fazer. Assim, esses fatores são baseados na compreensão e na
avaliação da situação em que acontece a enunciação, bem como no contexto sócio-
histórico-ideológico dos participantes do diálogo que partilham um mesmo horizonte
espacial.
Da mesma forma, constrói-se o topos que garante o dia perfeito sob a ótica de
Calvin: observando a situação e compreendendo que, para Hobbes, trata-se de um dia
perfeito, o menino avalia a situação de forma contrária, pois sua crença parte de um
grupo que associa perfeição a atividades.
Assim, apontamos para uma colaboração que a ADL Standard Ampliada faz à
proposta dialógica de análise, agrupando os fatores omitidos pelo verbal em um topos
que garante a conclusão a ser tirada, dessa forma, explicitando a premissa oculta do
entimema, gerando a possibilidade de resposta do enunciado. O sentido de dia
perfeito, no caso da Figura 1, depende da continuação que terá, sendo que essa
continuação é garantida pelo topos construído a partir dos fatores apresentados por
Voloshinov (1926/2012).
Um enunciado, segundo Bakhtin (1952-53/2011), é concluído/compreendido
quando permite uma resposta ativa ou passiva, ou quando responde a algo. Nesse
caso, a resposta “Que dia perfeito!”, de Hobbes, a uma situação anterior, por exemplo,
de uma semana exaustiva de brincadeiras com o Calvin, é possível. A resposta do
menino é clara ao comentário do tigre, afirmando que não é um dia perfeito para ele,
pois nada acontece.
Nesse sentido, pode-se dizer que o encadeamento argumentativo, proposto
como unidade mínima portadora de sentido pela TBS, assemelha-se ao enunciado
concreto da concepção dialógica, uma vez que possibilita uma resposta. De acordo
com Ducrot (1990), apenas um dos segmentos não permite uma ideia total do que se
pretende com o enunciado, somente quando o encadeamento está completo se pode

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concluir algo. Na Fig. 1, percebe-se que Calvin compreendeu totalmente a proposição


de Hobbes em relação ao dia. Essa compreensão pode ser representada no
encadeamento dia perfeito DC nada para fazer, cujo topos foi reconhecido pelo
menino e, a partir dessa compreensão, ele foi capaz de dar uma resposta. No entanto,
como referimos, sua resposta partia de outra avaliação, baseada em outro topos.
Conforme Bakhtin (1952-53/2011, p. 410), um texto nunca morre totalmente,
ele renasce em outra situação, outro tempo, isto é, “reviverão em forma renovada (em
novo contexto)”, e é analisado de outra forma, visto que o leitor será diferente e
analisará esse texto baseado nos fatores que lhe são comuns e que o formam como
indivíduo, situando-o em um grupo, em uma sociedade.
Sendo assim, um leitor pode compreender a cena da seguinte maneira: um dia
em que se descansa durante horas e horas não é um dia que Calvin julgaria como
perfeito, o que causa uma certa antecipação na leitura, permitindo que o leitor já
compreenda que a avaliação da criança será diferente daquela proposta por Hobbes,
quando afirma que o dia em questão está perfeito. No último quadro da tira, é possível
perceber a cara de tédio do menino, o que acrescenta à sua fala um “peso” ainda
maior de crítica à situação. De uma forma melodramática, Calvin diz que vai
enlouquecer, se nada acontecer, e a antecipação realizada pelo leitor se confirma, pois
uma vez que se conhece o background do personagem, é possível prever tal conclusão.
Como um enunciado sempre convida o interlocutor a realizar uma resposta, o
leitor se identifica, ou com Hobbes, ou com Calvin, na avaliação de um dia de “sombra
e água fresca”. Mais uma vez é possível que retomemos a noção de topos e da
proposta dialógica de análise dos enunciados: se o leitor é uma criança, é bem possível
que se junte a Calvin na crítica à situação, pois sua resposta é garantida pelo mesmo
topos, o qual retrata que um dia perfeito é um dia cheio de atividades. Isso acontece
porque o topos comporta não só a situação representada, mas os valores sociais e
psicológicos que cada personagem (e cada pessoa) carrega consigo, aplicando-o às
avaliações que realiza; se o leitor é um adulto, compreenderá a postura de Calvin,
posto que entende o topos que garante tal postura, entretanto, possivelmente,
concordaria com Hobbes, uma vez que, para a maioria dos adultos, um dia de
descanso é raro e merecido devido às responsabilidades de trabalho, estudo, por
exemplo.

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Considerações finais

A partir dos discursos apresentados na tira, foram analisados e destacados os


contextos imediato (da situação) e mediato (de cada personagem), finalizando na
explicitação verbal dos fatores presumidos sob forma de topos. Assim, o movimento
de construção do sentido na interface é realizado com base nos discursos linguísticos e
nas justificações extraverbais que garantem as conclusões tomadas.

Referências

BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. 6. ed. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2011.
CAREL, Marion. Pourtant: argumentation by exception. Journal of Pragmatics, v. 24, p.
167-188, 1995.
______; DUCROT, Oswald. La semántica argumentativa: una introducción a la teoría
de los bloques semánticos. Buenos Aires: Colihue, 2005.
DUCROT, Oswald. Polifonía y argumentación. Universidad del Valle. Cali, 1990.
GRAEFF, Telisa; TIMMERMANN, R. S. O encadeamento argumentativo como doador de
sentido na análise dialógica do discurso e na semântica argumentativa.
Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, v. 9, n. 1, p. 90-107, jan./jul. 2014.
VOLOSHINOV, V. N. Discourse in life and discourse in art: concerning sociological
poetics. In: VOLOSHINOV, V. N. Freudianism: a marxist critique. Tradução I. R.
Titunik. London: Verso, 2012. p. 151-196.
WATTERSON, Bill. [Dia perfeito]. 1. Il, p&b. Disponível em:
<http://www.gocomics.com/calvinandhobbes/1987/06/30#.U5dFinJdWCA>.
Acesso em: 07 jun. 2014.

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PROJETO BALBÚRDIA:
ESCRITA CRIATIVA NO ESPAÇO DE FRONTEIRA

Renata Silveira da Silva1


Sandro Martins Costa Mendes2

Este trabalho apresenta os resultados de um projeto de extensão denominado


“Balbúrdia na Escrita Criativa”, realizado na Universidade Federal do Pampa
(UNIPAMPA) Câmpus Jaguarão. A cidade de Jaguarão está no extremo sul do Rio
Grande do Sul e faz fronteira com a cidade de Rio Branco, no Uruguai. O projeto traz
estímulos para a realização de textos de escrita criativa. Em cada encontro há um tema
em foco. No presente trabalho, vamos tratar da edição que teve como tema o espaço,
em que direcionamos para o tema do espaço de fronteira. Portanto, nos interessa
investigar sobre o processo de criação na fronteira e como os encontros e mobilidades
culturais interferem na criação. O Balbúrdia na Escrita Criativa é oriundo de outro
projeto de extensão, denominado “Balbúrdia”.
O projeto Balbúrdia teve origem em 2012. Foram 15 (quinze) edições no ano,
sempre realizadas às sextas-feiras (geralmente duas por mês). Cada edição discutia um
tema sobre o qual trazíamos conceitos teóricos de diferentes áreas, manifestações
artísticas e ditos populares apresentados através de textos, de vídeos, de fotos, de
músicas, de comentários e de dinâmicas com participação do público. O Balbúrdia não
pretendia esgotar o tema, apenas trazer pontos de vista em relação a ele, geralmente
através de fragmentos, quebras no ritmo, com mudanças rápidas de textos e formas
de apresentação, rupturas de ideias, e por vezes conceitos e visões opostas sobre o
tema, sem haver identificação com uma por parte dos apresentadores. A condução do
evento sempre foi coletiva, com os coordenadores se intercalando nas leituras e
comentários, juntamente com alunos voluntários e bolsistas do projeto também
participando. O espaço do evento costumava mudar, tanto de lugar como de
estrutura, tendo inclusive, apresentadores em diversos lugares da sala.
Aos poucos, os alunos que faziam parte da execução e planejamento do
Balbúrdia começaram a criar textos literários, esquetes teatrais e vídeos, tanto para a
1
Doutora pela UCPel, Professora Adjunta Unipampa.
E-mail: resilv@gmail.com
2
Doutorando em Escrita Criativa pela PUCRS, Professor Assistente Unipampa.
E-mail: sandromcm@gmail.com

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divulgação do evento, como para serem apresentados durante cada edição. Isso nos
levou a pensar o projeto como incentivo à criação. Por isso, no final de 2012, fizemos
um texto com esse tema, apresentado no I Encontro de Escrita Criativa3, realizado na
PUCRS.
O Balbúrdia teve desdobramentos em projeto de ensino: Balbúrdia no
português, jornal didático formado com os textos apresentados no Balbúrdia e com
propostas de aplicação na escola; e, em 2015, criou-se o Balbúrdia na Escrita Criativa.
Esses dois projetos fazem parte das atividades do PET Letras da Unipampa Câmpus
Jaguarão, coordenado pela professora Renata Silva e que tem a colaboração do
professor Sandro Mendes em alguns projetos.
A proposta do Balbúrdia na Escrita Criativa é de utilizar os moldes do
Balbúrdia original, de 2012, como provocação para oficinas de escrita criativa.
Escolhemos um tema trabalhado no Balbúrdia em 2012, realizamos em tempo menor
(30 a 45 minutos) e depois aplicamos dois ou três exercícios de escrita individual e um
de escrita coletiva (em grupos). Por isso, cada encontro tem um tema.
O tema do espaço apareceu para que se pudesse tratar da escrita de
fronteira. No Balbúrdia, o tema espaço foi um evento especial, único realizado em
2013, durante um evento de artes do município, o FALA (Feira Alternativa de Literatura
e Artes), criado e organizado por um grupo que continha representantes da Prefeitura,
universidade e grupos da sociedade civil relacionados com as artes. Naquela edição do
Balbúrdia, discutimos sobre espaço através de textos de David Harvey, Pierre Levy,
Gaston Bachelard. Mostramos fotografias que traziam distorção de espaço, vídeos
virais da internet e videoclipes que tinham algo de discussão e trabalho com o espaço.
Além de músicas e poemas.
Na edição de 2015, relatada neste trabalho, apresentamos material sobre
“espaço” e depois sobre o “espaço de fronteira”. Começamos com a música “Frontera”
do cantor e compositor uruguaio Jorge Drexler. Também apresentamos conceito de
fronteira, retirado de um artigo de colega professor da Unipampa, Carlos Rizzon
(2012). Exibimos um trecho do programa CQC (Custe o Que Custar/Emissora
Bandeirantes) que discutiu sobre a questão dos haitianos no Brasil, principalmente
sobre a discriminação realizada em um vídeo feito em um posto de gasolina em
Canoas. Também comentamos sobre o conceito de Mobilidade Linguística (PORTO,
2010) e apresentamos poema de Fabian Severo (2010), em portunhol. E, por fim,

3
XXVIII Seminário Brasileiro de Crítica Literária, XXVII Seminário de Crítica do RS e I Encontro Nacional
de Escrita Criativa, 2012, PUCRS.

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comentamos sobre Topofilia, conceito de Yi-Fu Tuan (1980) que traz a percepção
aliada ao sentir o espaço, o lugar, a cidade.
Antes de iniciarmos o momento dos exercícios de criação, fizemos algumas
perguntas sobre a fronteira na opinião dos participantes. Alguns participantes, que
vieram de fora do Rio Grande do Sul, comentaram sobre suas percepções. As
perguntas feitas questionavam sobre o encontro de culturas, sobre a visão deles
acerca da fronteira e também de elementos culturais que esses estudantes vindos de
fora mantinham. Uma participante, vinda do interior do estado de São Paulo, e que
está há mais de três anos em Jaguarão, disse que não iria nunca usar o “tu” ou o “bah”.
Outra, vinda de Salvador há pouco mais de dois anos e meio, disse que já usa o “tu”.
Um aluno mineiro, já em seu sexto semestre na fronteira, relatou uma atividade do
curso em que trabalhou com uma “guria” (como ele disse) e se sentiu mal por usar o
“você” ao conversar com ela, mas que, ainda assim, não usou o “tu”.
Ainda respondendo sobre a vinda e a vida na fronteira, a Participante (P) 6,
uma estudante vinda de São Paulo, disse que ao chegar na fronteira falou algo como
ter percebido a existência de dois grupos (uns e outros), referindo-se aos habitantes de
Jaguarão (Brasil) e de Rio Branco (Uruguai) e ela não conseguia se sentir fazendo parte
nem do “uns”, nem do “outros”. Outra aluna vinda de São Paulo, a Participante 2, disse
que já sentiu um choque cultural ao chegar a Jaguarão, e acrescentou que andando
mais cinco minutos encontrou outro país e uma cultura ainda mais diferente. A aluna
de Salvador, P1, disse ficar impressionada que alguns falam em espanhol e os
brasileiros entendem (e vice-versa). Outra participante, P7, contou que vive em Río
Branco, e que não vê muita diferença, só que lá ela fala espanhol. Perguntaram a ela
como se sente quando vem para Jaguarão, a participante afirmou que só sentia que
iria sair de casa, nada mais.
Iniciando a oficina de criação, utilizamos Roland Barthes e as obras A
preparação do romance e Incidentes (2005). Barthes diz que tem certo problema com
o passado, que não tem boa memória e, por isso, se um dia fosse escrever um
romance, teria que ser texto no presente, como notas. Então Barthes se pergunta se
isso seria possível. Também nas aulas que ministrou sobre a preparação do romance,
Barthes trata do haicai definindo o tradicional terceto japonês explicando que sempre
havia uma menção ao tempo, à estação do ano. Partindo, de certa maneira, dos
haicais, Barthes chega a seus “Incidentes”. Os incidentes são caracterizados pela
brevidade, uso do presente, e pouca marca de subjetividade, pois pouquíssimas vezes
aparece ou está envolvido um eu, e menos ainda está expressa alguma opinião. É claro
que o eu muitas vezes está presente, porém é quase que elipsado, escondido. O

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próprio Barthes, na obra Roland Barthes por Roland Barhes (2003), define como
“minitextos, recados, haicais, anotações, jogos de sentido, tudo o que cai, como uma
folha” (p. 167).
Foi pedido, então, aos participantes do Balbúrdia na Escrita Criativa, que
escrevessem um Incidente. A intenção é que usassem a memória para escrever o
texto, pois o espaço de sala de aula, utilizado para o projeto, não permitia muitas
possibilidades de observação que justificassem a nota. Praticamos os “incidentes” de
uma forma diferente a que Barthes imaginou, já que o autor reclamava de sua própria
memória. Ainda assim, pedimos que fosse usado o presente e todas as outras
características dos minitextos de Barthes. Valemo-nos então da tradicional acepção da
memória: “um mecanismo psíquico que torna presente alguma verdade referente ao
passado” (SOUZA, 2010).
No primeiro texto, não pedimos uma relação com a fronteira. Ainda assim,
alguns textos já apresentaram o contexto de fronteira, como as produções dos
participantes 8 e 14, respectivamente:

No entrelugar do gênero e do sexo, os corpos que subvertem tomam


a margem por meio de pancadas. “Tinha uma travesti no meio do
caminho. No meio do caminho tinha uma travesti”.

É primavera e no centro de uma cidade periférica uma árvore chove


flores rosadas. Será esse um incidente maravilhoso?

Depois da experiência do primeiro texto no gênero, pedimos, então, que


fossem pensados o contexto e o espaço da fronteira. Mais uma vez, pedimos que
usassem a memória para a escrita. Nesses textos, como havíamos previsto, foi possível
observar características das mobilidades culturais. Quando falamos nisso, estamos nos
referindo objetivamente ao Dicionário das mobilidades culturais: percursos
americanos, organizado por Zilá Bernd (2010). Durante o Balbúrdia, fizemos menção à
mobilidade linguística apenas, mas outros verbetes podem ser identificados nos
textos.
O primeiro que destacamos aqui é exatamente o da mobilidade linguística:

Ao cruzar a casa de meus avós, me deparo com o desconhecido. Mas


que é tão íntimo e tão enraizado que logo já me acostumo. Y lo que
antes era distinto ahora es mío. (P7)

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No conceito de mobilidade linguística, Valéria Brisolara identifica-o com o


exílio. O poeta anteriormente citado no Balbúrdia, Fabián Severo, natural da fronteira
entre Brasil/ Uruguai, começou a escrever sobre a fronteira e a utilizar o portunhol,
quando foi estudar em Montevidéu. Severo não saiu do país, porém o autor aponta 4 o
portunhol como sua língua materna. Assim, no âmago do autor, foi uma espécie de
exílio o que ele viveu em Montevidéu. A participante 7, que hoje vive em Río Branco,
relata, no citado incidente, o momento em que foi lá viver.
Dois textos retratam sobre a circulação urbana, verbete escrito por Maria
Bernadette Porto. A maior característica desse conceito consiste no transitar, e traz
valorização do fugaz, do transitório, do encontro fortuito. As circulações urbanas
problematizam então o caminhar, o locomover-se, de carro, de táxi, de ônibus, a pé.
Trabalha também com as percepções, a provocação de sentidos que a cidade faz,
dialogando, então, com o conceito de topofilia de Yi Fu Tuan, ainda que não o cite. O
texto abaixo é da participante 2.

Olha o momento, resolve então atravessar. Fica o tempo todo


pensativa, com as pessoas ao redor. Novos dialetos, novas paisagens,
outras impressões. Uma ponte que leva para outro lugar, novos ares.

Outro texto (participante 10) pode ser encarado como “circulação urbana” ou
mesmo identificado com o conceito de “deslocamento”, apresentado por Elena
Palmero. A participante 10 criou o seguinte incidente:

O mundo é diferente da ponte pra cá. Será?


Enquanto atravesso a rua, do outro lado escuto o vendedor de meias
em espanhol. Eu o entendo. Na troca de mate, percebo ser igual.

Esse texto é bastante rico em referências teóricas. Apresenta a circulação


urbana “enquanto atravesso a rua” que podemos também identificar com o conceito
de flaneur (presente também no texto de Porto). Além disso, trabalha com a paisagem
sonora, conceito de Murray Schaffer, que foi trabalhado no Balbúrdia Espaço, em
2013. Assim, os sons peculiares de uma zona de fronteira, voltada em grande parte ao
comércio, foram destacados nesse incidente. Também ressalta a particularidade da
comunicação na fronteira, que além do portunhol, pode apresentar diálogos onde

4
Declaração dada por e-mail como resposta à entrevista realizada por Marjorie Mendonça de Campos
Fernandes, aluna do curso de Produção e Política Cultural, que está realizando TCC com o tema do
Processo criativo na Fronteira, orientado por Sandro Martins Costa Mendes.

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alguém utiliza o espanhol e o outro o português, e ainda assim se entendem. E, por


fim, ao falar de “na troca de mate, percebo ser igual”, se enquadra em outro verbete,
que apesar de muito importante na fronteira em estudo, não foi abordado no
Balbúrdia: a Transnação (LOPES, 2010).
O verbete Transnação é desenvolvido no dicionário por Cícero Galeno Lopes,
que afirma que a Transnação se revela “pela construção de identidade social coletiva
que ultrapassa as fronteiras político-geográficas dos estados-nações em cujos
territórios essa cultura se mantém” (2010, p. 355). A transnacionalidade é trabalhada
em relação à cultura do gaúcho/gaucho no Rio Grande do Sul, Uruguai e parte da
Argentina. Música, vestimentas, hábitos alimentares, valores, crenças entre outros são
compartilhados. Além disso, estão inseridos em uma mesma paisagem geográfica, o
pampa. Segundo Lopes, a diferença da língua espanhola e portuguesa não é suficiente
para separar.
No texto criado no Balbúrdia, a frase final “Na troca do mate, percebo ser
igual” faz referência ao chimarrão, ou mate, bebida típica do gaúcho. Outro
participante (Participante 5) fez referência à cultura gaúcha:

Fronteira que une culturas separadas dentro do mesmo pago.

Nesse texto, a palavra que traz a referência à cultura gaúcha é “pago5”. Ao


mesmo tempo, a participante pensou a fronteira como lugar de união de culturas. Essa
ideia condiz com a citação apresentada do texto do professor Carlos Rizzon:

Caracterizando um território aberto à interferência e aos in uxos de


variadas contribuições culturais, a fronteira cons tui-se em um
entrelugar, onde a porosidade e o tr nsito que lhe são próprios
operam constantes movimentos de expansão e retração. Assim,
conforma um território híbrido, onde um mesmo aspecto –a
linguagem, por exemplo – pode proporcionar relações de
aproximação e distanciamento com o Outro. essa forma, é possível
compreender a noção de fronteira como um espaço múl plo, mes ço
e heterogêneo, marcado pelas presenças das diferenças que afirmam
lugares de contato e interrelação (RIZZON, 2012).

A fronteira não é então apenas uma linha, simbólica como na fronteira


Chuí/Chuy, onde há uma rua apenas que limita o Brasil do Uruguai, ou mesmo uma

5
Regionalismo: Rio Grande do Sullugar de nascimento; cidade, município, região natal; rincão,
querência.

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linha geográfica como a que cria o rio Jaguarão/Yaguarón e obriga a existência da


ponte entre Jaguarão e Rio Branco. O espaço da fronteira compreende, por exemplo,
no caso de Jaguarão/Río Branco, espaço que engloba as duas cidades. Traduzindo
graficamente, não seria uma linha, mas um espaço de intersecção, onde cada cidade
pertence ao seu “círculo”, mas, unidas, formam outra situação. Essa intersecção não é
fechada ou total. Talvez, para cada elemento cultural, há aspectos que estão em
intersecção e outros que permanecem identificados com o grande círculo. Pensamos,
então, que haveria um desenho para cada elemento cultural:

Essa ideia pode ser representada literariamente no incidente criado pelo


participante 9:

Na fronteira do branco com o preto


O cinza
Ou melhor: o marrom – eu!

A ideia de mobilidade cultural também foi desenvolvida no trabalho coletivo,


em que se exercitou a criação de um argumento. Os participantes se dividiram em dois
grupos, e cada grupo criou, coletivamente, um personagem que estivesse em alguma
fronteira e tratasse de mobilidades. Além de criar o perfil do personagem, pedimos
que descrevessem o espaço relacionado ao personagem. Assim, um grupo pensou em
personagem que trabalha com contrabando de alimentos, vive embaixo da ponte
Internacional Mauá, que une Jaguarão e Rio Branco. Outro grupo pensou em uma
mulher, passando por mudanças em seu casamento, mudando de cidade. Um
personagem, então, bem localizado na fronteira geográfica, outra vivendo mobilidades
e fronteiras psicológicas. Depois que os grupos pensaram em um conflito para esses
personagens e espaço, pedimos que trocassem de personagem, ou seja, o personagem
de cada grupo passou para o outro, e os grupos tiveram que adaptar personagem ao
novo local.
Foi realizado, neste trabalho, um exercício de observação teórica das criações
literárias da oficina. E os participantes, na oficina, fizeram um exercício de escrita
criativa à luz das pinceladas teóricas, literárias, audiovisuais propostas. Essa inter-

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relação entre estímulos, principalmente teóricos, e criação literária, foi o mote da


presente reflexão e da oficina de escrita criativa, centrada na temática fronteiriça.
Ao deixarmos de atentar os textos resultantes da oficina e focalizarmos os
estímulos à criação, percebemos que a escrita criativa, assim como a fronteira, foi
proveniente de deslocamentos, mobilidades entre linguagens e saberes de diferentes
ordens e culturas. O trabalho buscou descrever explicitamente uma experiência bem-
sucedida de estímulo à criação e, implicitamente, tematizou as fontes de produção
literária, revisitando a ideia de que teoria e efervescência criativa não se coadunam.
Concluindo, ressaltamos que, através das discussões empíricas e teóricas, dos
estímulos utilizados e sobre os quais se debateu, e, finalmente, dos textos criados, foi
possível perceber que o espaço de fronteira faz do habitante da fronteira um ser em
que a mobilidade cultural é presença marcante e, por isso, não causa estranhamento.
Para quem vem de outro lugar e chega à fronteira, este espaço, antes imaginado,
oferece fluidez, permeabilidade e o estranhamento da incerteza da não fixação, da
mobilidade. A participante 6, vinda do interior do estado de São Paulo, escreveu o
incidente abaixo que marca essa nossa afirmação:

Agora que cruzamos o marco zero desse imaginário, será que o devir
que existe ali irá unir-se para transformar o imaginário do mapa para
algo menos simbólico?

Assim, a fronteira, bem marcada no mapa estudado na escola, se confronta


com a fronteira real, onde, apesar do rio que separa as duas cidades e apesar da
necessidade da ponte para a melhor mobilidade, não há uma linha marcada, visível,
que consiga separar as culturas, os falares, ou mesmo a identidade de quem a ocupa. A
intersecção, ou a permeabilidade, como propomos, faz com que os pontos de contato
se multipliquem e façam das duas culturas em questão (brasileira e uruguaia), uma
terceira, permeada das outras duas.
Finalizamos com um incidente, criado pela Participante 1, vinda de Salvador.

Como que se faz para ir ao outro lado? pergunta a menina. Mas não
há outro lado, responde ele. Ela percebe que não se deve delimitar o
lado.

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A CATEGORIA DE PESSOA, O TESTEMUNHO E A (IM)POSSIBILIDADE DO


DIÁLOGO ENTRE CULTURAS

Renata Trindade Severo1

Introdução

Esse texto apresenta algumas das reflexões que fazem parte da nossa tese de
doutorado, ainda em produção. Ao voltarmos nossa atenção para as enunciações
produzidas por sujeitos que são definidos a partir de sua relação com as religiões afro-
gaúchas2, fomos lançados em direções por nós até então inexploradas. O que vimos
chamando de “enunciação do sagrado” nos revela aspectos da enunciação que não são
geralmente objeto de seus estudiosos. Nesse texto, nosso foco é o que se compartilha
e o que não se compartilha d/nessa enunciação. Para tal abordagem, partiremos de
Benveniste, por meio da categoria de pessoa, alargaremos a noção de enunciação para
contemplar aspectos ligados ao sistema afetivo (LE BRETON, 1998) e nos valeremos do
conceito de testemunho de Agamben (2008) para falar sobre o que é testemunhável e
o que permanece intestemunhável.

1 A categoria de pessoa

A categoria de pessoa é provavelmente um dos maiores legados do


pensamento de Émile Benveniste. Preocupado em propor a questão em termos mais
claros que os propostos na época, o linguista sírio partiu de uma perspectiva que
considerava a produção do discurso. Benveniste problematiza a ideia de pessoa que
era aceita largamente e que colocava no mesmo patamar “eu”, “tu” e “ele”. A primeira
diferenciação proposta, no texto “Estrutura das relações de pessoa no verbo”, de
1946, é a oposição entre pessoa e não-pessoa. Tomando as definições empregadas
pelos gramáticos árabes, para quem a primeira pessoa é “aquele que fala”, a segunda,
“aquele a quem nos dirigimos” e a terceira, “aquele que está ausente” (BENVENISTE,
2005, p. 250), Benveniste opõe o par “eu”-“tu” a “ele”, uma vez que esse está ausente,
não fala, não é implicado na fala e não corresponde necessariamente a uma pessoa: “A
forma dita de terceira pessoa comporta realmente uma indicação de enunciado sobre

1
Doutoranda do PPG-Letras – UFRGS. Professora de línguas portuguesa e inglesa IFRS – Campus Porto
Alegre. E-mail: renata.severo@poa.ifrs.edu.br
2
A expressão “religiões afro-gaúchas” se refere à Nação, à Umbanda e à Quimbanda. Para mais
informações, ver Oro, 2008.

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alguém ou alguma coisa, mas não referida a uma 'pessoa' específica” (BENVENISTE,
2005, p. 250). Flores (2013) propõe três características que evidenciam as diferenças
entre pessoa (eu-tu) e não pessoa (ele):

(a) unicidade específica: eu e tu são sempre únicos: 'O 'eu' que enuncia, o
'tu' ao qual 'eu' se dirige são cada vez únicos. 'Ele', porém, pode ser uma
infinidade de sujeitos — ou nenhum' (PLG I: 253);
(b) inversibilidade: eu e tu são inversíveis entre si. O ele não pode ser
invertido com os dois primeiros;
(c) predicação verbal: ' A '3a pessoa' é a única pela qual uma coisa é
predicada verbalmente' (PLG I: 253). Tudo o que não pertence a eu-tu
recebe como predicado a forma verbal da 3a pessoa. (FLORES, 2013, p. 91).

Além da oposição pessoa/não pessoa, há ainda uma oposição entre as pessoas,


“eu” e “tu”. Segundo Benveniste, a primeira diferença entre “eu” e “tu” é um
posicionamento de “eu” em relação ao enunciado e a “tu”: interno, no primeiro caso,
externo, no segundo; em outras palavras: “eu” só existe no enunciado em que se diz
“eu”; por outro lado, “tu” só existe a partir do momento em que “eu” se enuncia e
implica em sua fala um “tu”, real ou imaginado. Essa é a relação de transcendência de
“eu” em relação a “tu”. Acreditamos que essa relação não pode ser melhor explicitada
do que nas palavras do próprio Benveniste:

Quando saio de 'mim' para estabelecer uma relação viva com um ser,
encontro ou proponho necessariamente um 'tu' que é, fora de mim, a única
'pessoa imaginável'. Essas qualidades de interioridade e de transcendência
pertencem particularmente ao 'eu' e se invertem em 'tu'. Poder-se-á, então,
definir o tu como a pessoa não subjetiva, em face da pessoa subjetiva que
eu representa (BENVENISTE, 1946, p. 255).

Aqui Benveniste estabelece principalmente dois aspectos da categoria de


pessoa: a correlação de pessoalidade, que opõe o par “eu”/“tu” à não pessoa “ele”; e a
correlação de subjetividade, que opõe a pessoa subjetiva “eu” à pessoa não subjetiva
“tu”, ressaltando-se o caráter transcendente de “eu” em relação a “tu”, uma vez que
esse existe porque é proposto por “eu”. A subjetividade aparece nesse texto como
inerente ao “eu”, centro da enunciação. Nesse momento, não há, no entanto, uma
elaboração desse conceito, o que é feito no texto de 1958, “Da subjetividade na
linguagem”: “A 'subjetividade' de que tratamos aqui é a capacidade do locutor para se
propor como 'sujeito'. (…) não é mais que a emergência no ser de uma propriedade
fundamental da linguagem. É 'ego' quem diz 'ego'” (BENVENISTE, 2005, p. 286). Flores
faz uma análise belíssima desse texto e da passagem que engloba os trechos que
citamos. Dentre os importantes pontos ressaltados pelo autor, destacamos sua

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interpretação para o trecho “É 'ego' quem diz 'ego'”3: “É sujeito quem assume a
posição de 'eu'” (FLORES, 2013, p. 100). O linguista brasileiro propõe a noção de
sujeito como um efeito da enunciação. A subjetividade que advém do fato do locutor
se apropriar da língua e se enunciar é um efeito desse ato, a passagem de locutor a
sujeito é um efeito provocado pela enunciação. Nessa perspectiva, o sujeito resulta de
uma operação que se leva a cabo na e pela língua.
Se a subjetividade se estabelece a partir do momento em que “ego diz ego”, é
preciso voltarmos nossa atenção a esse momento. A enunciação é um acontecimento
no tempo e no espaço. Ela ocorre em uma instância discursiva (ID): um conjunto de
coordenadas que torna possível identificar o paradigma enunciativo eu-tu/aqui/agora.
É de “A natureza dos pronomes” que o Dicionário de Linguística da Enunciação
extrai a seguinte definição para “instância de discurso”: “ato de dizer a cada vez único
pelo qual a língua é atualizada em fala pelo locutor” (FLORES et. al., 2009, p. 142).
Nessa definição, o caráter de acontecimento é ressaltado. Interessam-nos, além desse
caráter, outros que o Dicionário aborda na nota explicativa e que são fortemente
baseados no trabalho de Aya Ono (2007) “La notion d'énonciation chez Émile
Benveniste”. Nessa obra, a autora chega à conclusão de que a noção de enunciação
está associada a outras três: frase, ato de fala e instância de discurso. Ao final de sua
análise das ocorrências de “instância de discurso” no corpus selecionado, a linguista
define três características dessa noção:

1. Ela se identifica com uma temporalidade que, tendo uma duração em que
se forma o discurso, contém as instâncias dos dêiticos;
2. Ela se prende ao momento inicial da sua produção de fala;
3. É pela ID que o locutor se torna sujeito. (ONO, 2007, p. 84 — tradução de
Daniel Costa da Silva).

Na nota explicativa do dicionário, além dessas características, salienta-se que “a


instância de discurso é também um lugar onde o sujeito e a linguagem se ligam”
(FLORES et al., 2009, p.143). Correndo o risco de tomar ao pé da letra uma palavra
empregada com sentido não tão restrito, gostaríamos de sublinhar o uso da palavra
“lugar” no trecho citado. É essa imagem de espaço em que a enunciação ocorre que
resume, para nós, o caráter da ID. A partir das características citadas por Ono e pelo
Dicionário, que para nós constituem algo dado, gostaríamos de retomar alguns
aspectos que decorrem daí e relacioná-los a passagens dos PLGs que os justificam:
a) na instância de discurso se definem os paradigmas de pessoa, espaço e tempo:

3
Na obra citada, Flores chama atenção para a versão brasileira do PLG I que traduz “qui” por “que”
quando o correto seria “quem”. Empregamos a tradução proposta por Flores.

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São, os indicadores da dêixis, demonstrativos, advérbios, adjetivos, que


organizam as relações espaciais e temporais em torno do "sujeito" tomado
como ponto de referência: "isto, aqui, agora" e as suas numerosas
correlações "isso, ontem, no ano passado, amanhã", etc. Têm em comum o
traço de se definirem somente com relação à instância de discurso na qual
são produzidos, isto é, sob a dependência do eu que aí se enuncia.
(BENVENISTE, 2005, p. 288).
o eu só pode ser identificado pela instância de discurso que o contém e
somente por aí (BENVENISTE, 2006, p. 278s);
Ora, esse "presente", por sua vez, tem como referência temporal um dado
lingüístico: a coincidência do acontecimento descrito com a instância de
discurso que o descreve”(BENVENISTE, 2005, p. 289s).

b) a instância de discurso torna possível a referência:

A presença do locutor em sua enunciação faz com que cada instância de


discurso constitua um centro de referência interno (BENVENISTE, 2006, p.
84).

c) ela se vincula ao intentado — à ideia — na medida em que esse é o gatilho que


coloca em movimento o acontecimento enunciativo:

Se o “sentido” da frase é a ideia que ela exprime, a “referência” da frase é o


estado de coisas que a provoca, a situação de discurso ou de fato a que ela
se reporta e que nós não podemos jamais prever ou fixar. Na maior parte
dos casos, a situação é condição única, cujo conhecimento nada pode suprir.
(BENVENISTE, 2006, p. 230).

Na ID, a enunciação passa à existência. É aqui que o eu se enuncia e coloca em


movimento a subjetividade e a intersubjetividade, a apropriação da língua, a criação
do discurso, o viver4. A ID dá as coordenadas para que se conheça a realidade da
enunciação: a categoria da pessoa, do espaço e do tempo.
No entanto, é o próprio Benveniste quem nos mostra que a ID não é
responsável apenas por essas coordenadas: “A instância de discurso é assim
constitutiva de todas as coordenadas que definem o sujeito e das quais apenas
designamos sumariamente as mais aparentes.” (BENVENISTE, 2005, p. 289). As
coordenadas mais aparentes apontadas no artigo “Da subjetividade na linguagem” do
qual extraímos essa citação são as categorias de pessoa, de espaço, de tempo — o
paradigma eu-tu-aqui-agora — e a dêixis relacionada a essas categorias. O que mais há
na ID, a que coordenadas Benveniste se refere e qual sua relevância para a
enunciação, para a significação e, portanto, para a comunicação humana?

4
Referimo-nos à famosa asserção de Benveniste: “a linguagem serve para viver” (BENVENISTE, 2006, p.
222).

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Acreditamos que as respostas a essas questões passem necessariamente pela


aceitação de que a enunciação não está restrita à língua, pelo contrário, de que ela
integra os sistemas semiológicos. Em “A natureza dos pronomes”, Benveniste fala em
apropriação da linguagem e em “construção linguística”, o que, a nosso ver, permite-
nos pensar na relação linguagem - língua na enunciação: “Quando o indivíduo se
apropria dela, a linguagem se torna em instâncias de discurso, caracterizadas por esse
sistema de referências internas cuja chave é eu, e que define o indivíduo pela
construção linguística particular de que ele se serve quando se enuncia como locutor.”
(BENVENISTE, 2005, p. 281, grifos em negrito nossos). Vemos nessa citação que é a
linguagem, como um todo, que se torna instância de discurso. Ainda que, aqui, essa
passagem se dê por meio de uma construção linguística, uma construção do indivíduo
que se enuncia como locutor e que faz de eu o centro referencial.
Em trabalho anterior (SEVERO, 2013), afirmamos que a linguagem, e não a
língua, serve de intermediária entre aquilo que Benveniste chamou de obscura volição
e Saussure, de massa amorfa e sua expressão. O intentado, aquilo que se quer
significar, encontra-se, em nossa opinião, no mesmo patamar dessa nebulosa a que
Saussure e Benveniste nomearam de forma tão vaga. Em nossa perspectiva, esse
querer significar a que corresponde o intentado é o que desencadeia a enunciação e
coloca em movimento modos de significar que se complementam e se informam
mutuamente, dos quais a língua é apenas o principal, não o único. Em virtude de um
intentado, sobre o tecido significativo da instância de discurso, instaura-se a categoria
da pessoa e, com ela, a intersubjetividade, por meio de uma semantização que não é
exclusiva da língua. O sujeito se vale de sistemas semiológicos cuja materialidade é
expressa pelo/no corpo, seja com a voz, com o olhar, com gestos e com formas ainda
mais sutis e específicas de determinada enunciação — o balanço do corpo, sua
vibração, por exemplo.
Acreditamos que o fato de que a enunciação é da linguagem e não apenas da
língua está no gérmen da própria enunciação: o eu, a categoria da pessoa. Até aqui,
tratamos apenas da primeira abordagem de Benveniste em relação a esse tema. Se
formos adiante, se nos aprofundarmos nos textos que desenvolvem essa noção,
veremos que é à linguagem que essa categoria se relaciona de forma profunda. Tal
estudo já foi empreendido por FLORES (2013) que, um parágrafo após citar a seguinte
passagem: “Essas definições visam eu e tu como uma categoria de linguagem e se
relacionam com a sua posição na linguagem” (BENVENISTE, 2005, p. 279, grifos de
FLORES, 2013, p. 94), afirma que o estudo dos pronomes realizado por Benveniste fala
de algo na verdade muito mais geral, visa à “posição que cada um é obrigado a ocupar
na linguagem”.
A categoria da pessoa diz respeito a algo que antecede a língua e que a

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transcende, o que acreditamos ser um reflexo da subjetividade, uma vez que essa é
também uma categoria que se manifesta na e pela língua, mas que a transcende: “A
instalação da 'subjetividade' na linguagem cria na linguagem e, acreditamos,
igualmente fora da linguagem, a categoria de pessoa”(BENVENISTE, 2005, p. 290).

2 A afetividade: um sistema semiológico

Como já dissemos, o cerne desse texto faz parte da nossa tese de doutorado.
Nela, observamos as enunciações produzidas por sujeitos definidos em sua relação
com religiões afro-gaúchas (ORO, 2008). O que denominamos “enunciação do
sagrado” diz respeito a uma enunciação que não se restringe à língua, mas que coloca
em evidência outros sistemas semiológicos5: “a linguagem tem como função 'dizer
alguma coisa'. O que é exatamente essa 'coisa' em vista da qual se articula a língua, e
como é possível delimitá-la em relação à própria linguagem? Está posto o problema da
significação” (BENVENISTE, 2005, p. 8). É à significação que precisamos relacionar a
linguagem para que possamos perceber que a enunciação não está restrita à língua6.
Relembramos: “a língua é uma forma, não uma substância”. Essa substância é a
própria significação, aquilo que se traduz em intentado7, o que se semantiza.
Considerar a linguagem de maneira abrangente, sem restringir sua expressão à
forma linguística é imprescindível para dar conta de uma enunciação que arrebata o
corpo todo, que vai além do aparelho fonador e da escrita para expressar e além da
audição e da visão para ser percebida, como é o caso da “enunciação do sagrado”.
Nossa necessidade de investigar a enunciação além da língua nos levou ao corpo, à
voz, à afetividade. Encontramos nos estudos de David Le Breton (1992; 1998; 2004;
2011) a reflexão que nos permite construir um arcabouço teórico que nos auxilia a
compreender o que está para além da língua na enunciação do sagrado. Acreditamos
que observar as interações humanas, invariavelmente mediadas pela linguagem, a
partir do ponto de vista do corpo nos permite ter uma visão compreensiva 8 do que
está em jogo na enunciação do sagrado. A Antropologia do corpo de Le Breton nos
auxilia a compreender como a rede de sentidos que envolve o humano funciona para
além da língua.

5
Nossa ideia de sistema semiológico está em consonância com a apresentada por Benveniste em
“Semiologia da língua” (BENVENISTE, 2006).
6
Abordamos esse tema de maneira mais aprofundada em “Língua e linguagem como organizadoras do
pensamento em Saussure e Benveniste” (SEVERO, 2013). Atualmente, trabalhamos com uma versão
aperfeiçoada das ideias apresentadas nesse artigo, o que não o invalida, mas o coloca sob um olhar
crítico.
7
Empregamos a tradução sugerida por Mello (2012).
8
Em lugar de uma visão interpretativa, a abordagem compreensiva está interessada nas relações de
sentido construídos.

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Postulamos que a linguagem compreende a língua e outros sistemas


semiológicos, dentre eles, a cultura. Ao estudarmos cultura em Benveniste,
defendemos que cultura e língua são sistemas cujo funcionamento é homólogo e entre
os quais não há uma hierarquia9. Por sua vez, a afetividade é um sistema semiológico
cujo funcionamento é análogo ao de língua e cultura ao mesmo tempo em que faz
parte da cultura. As trocas simbólicas, quer envolvam ou não a língua, são possíveis
porque há sistemas semiológicos em que o humano está mergulhado e que
estabelecem valores dinâmicos para tais trocas. Extrapolamos aqui o conceito de
enunciação e consideramos outras trocas que envolvem um sistema simbólico.
Conquanto a língua seja, claramente, o aparelho formal da enunciação, não
podemos dizer que ela seja a única responsável pela veiculação de sentido na
enunciação. Em outras palavras, se a enunciação não prescinde da língua, também não
se pode supor que ela seja suficiente na troca simbólica enunciativa: não disputamos a
primazia da língua frente a outros sistemas de significação, mas reivindicamos um
lugar na enunciação para outros sistemas simbólicos como a cultura e a afetividade. Se
assim o fazemos é por acreditarmos que a afetividade é um sistema simbólico que
também torna possível a comunicação humana. Ainda que a polissemia dos signos
afetivos seja maior do que a da língua — a falta de um semiótico per se contribui para
a dificuldade de uma univocidade — há uma troca de sentido possível por meio de
gestos, expressões faciais e corporais que dizem respeito ao sistema afetivo de uma
cultura.
Ao pensarmos em sistema afetivo, estamos pensando em corpo. Os signos do
corpo obedecem ao sistema de valores simbólicos dinâmicos que é a afetividade de
um grupo social. Se dizemos que a língua pertence ao domínio do logos, a afetividade
e o corpo estabelecem relações que não passam necessariamente pelo filtro do cogito.
Quando dizemos “afetividade”, nos referimos àquela abordada no trabalho de David
Le Breton, principalmente em sua obra Les passions ordinaires (1992) — em que
desenvolve o que chama de “antropologia das emoções”, um ramo de sua
Antropologia do corpo. O corpo é um significante cujos significados são inferíveis
culturalmente: “o corpo não existe em estado natural, ele é sempre tomado na trama
do sentido” (LE BRETON, 1992, p. 37, tradução nossa)10.
Acreditamos que a afetividade, assim como a cultura, relaciona-se com a
faculdade de simbolizar de uma forma análoga à língua. A comunicação humana só é
possível devido à simbolização, que não se limita aos processos que envolvem a língua.

9
Abordamos esse tema de forma mais aprofundada em “Linguagem e cultura: uma abordagem com
Benveniste” (FLORES e SEVERO, 2015).
10
“le corps n'existe pas à l'état naturel, il est toujours saisi dans la trame du sens” (LE BRETON, 1992, p.
37).

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A afetividade, veremos, abarca processos simbólicos cuja natureza é diferente da


linguística, mas não menos importante para o estabelecimento das relações humanas
no seio das sociedades. Ela é responsável por uma comunicação não verbal, que é
direta: sentimentos e emoções podem comunicar-se diretamente sem a intervenção
verbal.
O homem está afetivamente no mundo (LE BRETON, 1998): tal afirmação
carrega em si tudo que se quer dizer aqui sobre afetividade. Nela, está o fato de que o
homem não deixa nunca de ser um ente afetivo. Não há ato humano, por mais
solitário que pareça, que não esteja impregnado dessa verdade. A afetividade informa
todas nossas relações sociais e a nossa forma de ser no mundo. Ela funciona como um
conjunto de parâmetros nos quais nos baseamos para avaliar as situações em que nos
encontramos e decidir sobre como agir. Esses processos, de avaliação e de decisão,
não ocorrem necessariamente de maneira deliberada: “(…) a emoção não é a
consequência de um pensamento aplicado ao mundo à maneira de um cogito. Todo
processo de conhecimento se enraíza em um jogo sutil com o conhecimento do
acontecimento.” (LE BRETON, 1998, p. 103, tradução nossa)11.
Estar no mundo afetivamente significa não estar restrito a um cogito, mas
interpretar o mundo e a vida nele de formas não verbalizadas. Significa sentir o mundo
e as relações humanas segundo a forma como somos afetados por eles. Tal forma varia
culturalmente e individualmente: se cada cultura constrói um sistema afetivo, também
cada sujeito vive essa afetividade de maneira singular. No entanto, as emoções e os
sentimentos humanos, longe de serem puras expressões singulares, são respostas
individuais a orientações sociais mais ou menos claras que diferem de uma cultura a
outra. A partir de Bateson, Le Breton fala em sistemas afetivos socialmente
organizados: conjuntos de coordenadas estabelecidos pelos grupos sociais e que dão
origem a um ethos específico de cada cultura (BATESON apud LE BRETON, 1998). A
maneira como cada pessoa sente ou espera que o outro sinta é prevista por um
sistema de valores particular a cada grupo, nas palavras de Le Breton “Os sentimentos
ou as emoções participam portanto de um sistema de sentido e de valores próprios a
um grupo social cuja validade e princípios que organizam o laço social eles confirmam”
(1998, p. 9, tradução nossa)12.
Esses sistemas estão na cultura, são a cultura afetiva das sociedades. Desde o

11
“(…) l'émotion n'est pas la conséquence d'une pensée appliquée au monde à la manière du cogito.
Tout processus de connaissance s'enracine dans un jeu subtil avec intelligence de l’événement.” (LE
BRETON, 1998, p. 103).
12
“Les sentiments ou les émotions participent donc d'un système de sens et de valeurs propres à un
groupe social dont elles confirment le bien-fondé, les principes qui organisent le lien social”. (LE BRETON,
1998, p. 9).

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nascimento, todo ser humano é exposto aos sentimentos e emoções do outro — pais,
familiares e sociedade em geral — e, nessa relação, aprende as orientações afetivas do
grupo a que pertence. É na relação com o outro que as emoções são vivenciadas e
expressas. Le Breton (1998) aborda intensamente casos de “crianças selvagens” que
durante sua infância não tiveram contato com outros seres humanos e que, ao serem
reincorporadas à sociedade, desconhecem as emoções que seus captores esperam que
elas expressem. A Antropologia tem extensamente demonstrado como as emoções,
longe de serem “naturais”, são culturalmente construídas. O papel do outro é
imprescindível para essa construção. Le Breton afirma que jamais estamos sós em
nossos corpos e cita Artaud, dizendo que estamos em nossos corpos “como em uma
encruzilhada habitada por todo mundo”, para a seguir resumir em algumas frases toda
uma teoria da afetividade vivenciada por meio do outro:

Meu corpo é ao mesmo tempo meu, uma vez que ele carrega os traços de
uma história que me é pessoal, de uma sensibilidade que é a minha, mas ele
contém também uma dimensão que me escapa em parte e remete aos
simbolismos que dão corpo ao laço social, e sem a qual eu não seria. (LE
BRETON, 1998, p. 30, tradução nossa).13

A expressão social das emoções observa parâmetros sociais tácitos, porém


claros a todos os indivíduos. Segundo Le Breton, para que uma emoção ou sentimento
seja expresso, ele deve fazer parte do repertório de seu grupo, deve ser reconhecido
no ethos a que corresponde o sistema de emoções daquele grupo. Só expressamos as
emoções que aprendemos com o grupo a que pertencemos.
O corpo é o lugar das emoções. Os gestos, a expressão facial, a voz: os
sentimentos e as emoções são expressos no e pelo corpo. Longe de serem respostas
biológicas a estímulos externos, as emoções e sua expressão são índices de uma
cultura afetiva aprendida socialmente. Gestos, modulações vocálicas e expressões
faciais participam da interação e são significativos dentro do contexto cultural em que
são produzidos. Os sujeitos adquirem por meio das interações sociais toda uma
simbólica corporal que constitui uma espécie de inteligência do corpo: não é mais
necessário calcular o quanto levantar as sobrancelhas para demonstrar surpresa do
que quais palavras usar para expressar o mesmo sentimento. Assim como há uma
língua materna, há um corpo materno capaz de sentir e expressar naturalmente as
emoções e os sentimentos que fazem parte do sistema afetivo de determinado grupo
social.

13
Mon corps est à la fois le mien, en tant qu'il porte les traces d'une histoire qui m'est personnelle, d'une
sensibilité qui est la mienne, mais il contient aussi une dimension qui m'échappe en partie et renvoie aux
symbolismes qui donnent chair au lien social, mais sans laquelle je ne serais pas. (LE BRETON, 1998, p.
30).

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Nosso uso do corpo, a maneira como o ocupamos e movimentamos, é


informado pela afetividade — esse sistema simbólico que nos envolve e que dá sentido
às nossas interações. A simbólica corporal faz parte do nosso ser tanto quanto a língua.
As adquirimos e somos constituídos por elas: “o homem emocionado não se interroga
sobre sua emoção” (LE BRETON, 1998, p.36, tradução nossa). Nos relacionamos com o
mundo e com o outro por meio de signos faciais e corporais que são, ao mesmo
tempo, nossos e partilhados com a nossa comunidade. É porque compartilhamos tais
signos que podemos compreender as emoções alheias e termos nossas emoções
compreendidas. Trava-se então uma comunicação que pode prescindir do verbal: “o
homem não é jamais puramente uma expressão de seu cogito” (LE BRETON, 1998, p.
34, tradução nossa, grifo do autor).

3 As testemunhas e a impossibilidade de testemunhar

Em “O que resta de Auschwitz”, Giorgio Agamben constrói a noção de


testemunho a partir da problematização do posicionamento de Primo Levi em seus
relatos como sobrevivente de um campo de concentração. O químico italiano Primo
Levi, apesar de escrever seus relatos como um sobrevivente de Auschwitz, não se
considera uma testemunha integral justamente por ter sobrevivido. A lacuna que
denuncia em seu testemunho é percebida por outros sobreviventes-escritores —
Wiesel, citado por Agamben, afirma: “não somos nós, os sobreviventes, as autênticas
testemunhas” (WIESEL, 1975 apud AGAMBEN, 2008, p. 42). Para Agamben, no caso
extremo de Auschwitz, “o testemunho vale essencialmente por aquilo que nele falta;
contém, no seu centro, algo intestemunhável” (AGAMBEN, 2008, p. 43). A shoá é um
acontecimento sem testemunhas pois não é possível testemunhá-la de dentro — de
dentro da morte — nem de fora, pois quem está de fora está excluído do
acontecimento.
Dessa falta, desse algo que não pode ser testemunhado provém uma “não
língua que se fala sozinho” (AGAMBEN, 2008, p. 47). Para Agamben, “o testemunho é
o encontro de duas impossibilidades de testemunhar” (AGAMBEN, 2008, p. 48): a
verdadeira testemunha já não pode testemunhar — está morta ou impossibilitada de
falar — e a língua do testemunho é uma não-língua. Sobre a relação entre a
testemunha que não pode testemunhar e a não-língua, Agamben afirma:

A língua do testemunho é uma língua que não significa mais, mas que, nesse
seu ato de não significar, avança no sem-língua até recolher outra
insignificância, a da testemunha integral, de quem, por definição, não pode
testemunhar. (…) Assim, a impossibilidade de testemunhar, a “lacuna” que

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constitui a língua humana desaba sobre si mesma para dar lugar a uma
outra impossibilidade de testemunhar — a daquilo que não tem língua.
(AGAMBEN, 2008, p. 48).

Retornemos ao conceito de testemunha que será desenvolvido por Agamben.


Inicialmente, são trazidas à discussão as palavras testis e superstes. De testis, deriva o
termo testemunha, sua etimologia remete à *terstis, aquele que se coloca como um
terceiro em uma polêmica entre dois disputantes. Superstes é aquele que (sobre)viveu
e que testemunha em primeira pessoa. Nesse momento da discussão, Agamben afirma
que Levi não é um terceiro, alguém que testemunha apenas o que viu, mas um
superstes.
Mais tarde na obra, Agamben recorre a mais uma palavra latina que se
relaciona com testemunha: auctor. Trata-se agora de alguém que pode servir de fiador
à palavra de uma testemunha cuja condição não lhe garante credibilidade. A partir daí,
Agamben estabelece o terceiro elemento que complementará a tríplice noção de
testemunha. Reproduziremos um longo trecho da obra por acreditarmos que as
palavras do filósofo são insubstituíveis nesse momento:

Os três termos que em latim expressam a ideia do testemunho adquirem,


cada um deles, a sua fisionomia própria. Se testis indica a testemunha
enquanto intervém como terceiro na disputa entre dois sujeitos, e superstes
é quem viveu até o fundo a experiência, sobreviveu à mesma, e pode,
portanto, referi-la aos outros, auctor indica a testemunha enquanto o seu
testemunho pressupõe sempre algo — fato, coisa ou palavra — que lhe
preexiste, e cuja realidade e força devem ser convalidadas ou certificadas.
(AGAMBEN, 2008, p. 150).

Temos aí as três posições de testemunha com as quais trabalharemos.

4 Testemunho do sagrado e enunciação do sagrado

Até agora, nos referimos por meio do sintagma “enunciação do sagrado” a algo
que pode ser segmentado em duas partes. O que essas partes têm em comum é que
ambas dizem respeito ao sagrado, seja como tema ou como lugar de enunciação.
Quando falam sobre sua religião, sobre sua relação com seus Orixás e entidades, sobre
sua experiência com o sagrado, nossos sujeitos nos dão seu “testemunho do sagrado”.
Trata-se de momentos em que o sagrado é tema da enunciação, mas a enunciação não
acontece no lugar nem no momento do sagrado. Por “lugar do sagrado”
compreendemos não apenas a casa ou o terreiro de religião em si, mas o espaço
preparado para que o sagrado tenha lugar. Trata-se de um ponto no tempo e no
espaço dedicado ao sagrado, sacralizado; compreende um conjunto de circunstâncias
especiais que dizem respeito a tempo e a espaço, mas principalmente aos rituais que

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devem ser observados para que esse lugar, nesse momento, seja sagrado. Mesmo que
o testemunho do sagrado aconteça dentro do terreiro, ele não se dá em um momento
do sagrado.
Enunciação do sagrado e testemunho do sagrado são dois momentos da
linguagem das relações dos sujeitos com seu sagrado. Quando o sagrado é um “ele”,
isto é, no testemunho do sagrado, dá-se uma travessia entre a linguagem da forma
como ela só se expressa no lugar do sagrado e fora dele. De outra forma, a enunciação
do sagrado é a própria expressão da linguagem do sagrado em movimento. Assim
como enunciar é se apropriar do aparelho de enunciação e dizer “eu”, enunciar no
sagrado é apropriar-se de um aparelho enunciativo específico para dizer “eu”. Esse
aparelho é da palavra, do corpo, dos sentidos e dos sentimentos. Quando a enunciação
tem origem no sagrado, nessa circunstância especial a que chamamos “lugar do
sagrado”, ela é enunciada por um eu específico do sagrado. Esse eu é tanto a entidade
que fala, não apenas em seu nome, mas em nome de todo um tecido sagrado que
inclui as hierarquias e as tradições observadas na casa em que esse lugar do sagrado se
materializa, quanto o cavalo que abre a boca para dizer “eu”. Esse eu é o próprio
sagrado se o entendermos como um valor dinâmico, como a relação singular que cada
sujeito estabelece com sua religião.
Recorremos à noção de instância discursiva (ID) para pensarmos essa dinâmica.
Vimos que a ID compreende as coordenadas que determinam o tempo, o espaço e as
pessoas (eu-tu) da/na enunciação. Quando pensamos a enunciação do sagrado, tempo,
espaço e pessoas evidenciam significados que não são perceptíveis sem se considerar a
simbólica específica da religião considerada. Se, superficial e aparentemente, o local e
a pessoa que enuncia no testemunho do sagrado são os mesmos da enunciação do
sagrado, simbolicamente, o que está em jogo é uma instância de discurso totalmente
diferente. Durante os momentos rituais, especialmente durante a possessão, há toda
uma preparação do espaço e das pessoas envolvidas que produz essa mudança
significativa:

a religiosidade afro-brasileira, na linha cruzada, consegue, de certa forma,


manter esses espaços como espaços de práticas singulares e,
simultaneamente, que podem acontecer num mesmo espaço de terreiro
para as mesmas pessoas em momentos diferentes — na verdade, como
pessoas diferentes. É como se fosse um mesmo corpo para práticas
diferentes. (DOS ANJOS apud SANTOS, 2011).

A enunciação do sagrado não está restrita à língua; esse “eu” não é dito sempre
ou apenas com palavras. Ela se manifesta em todo o corpo do sagrado — que
compreende o corpo do filho de santo, mas também do lugar do sagrado. O sagrado se
enuncia no olhar, na dança, no caminhar, na fala, no silêncio, no beber e no comer, no

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tocar, na chegada e na saída das entidades. O sagrado se enuncia na voz que o


enuncia. A voz é uma das formas de expressão da singularidade desse eu. Ela não é
mais a voz do cavalo nem é única de cada entidade; ela é uma voz que nasce dessa
relação entre cavalo e entidade e só existe no lugar do sagrado. Todo movimento, todo
sopro de vento, todo calor, todos os sentimentos e sensações perceptíveis e
imperceptíveis — tudo isso está contido na enunciação do sagrado. A ela só chega
quem está no sagrado. Assim como a shoá, para Agamben, é um acontecimento
intestemunhável para quem está fora, o sagrado também o é. Da shoá ou do sagrado
só há testemunhos parciais.
Dessa forma, podemos dizer que, embora seja por meio de seu estudo que esse
trabalho tenha se desenrolado, a enunciação do sagrado é, de certa forma, inatingível.
Dessa enunciação, só há testemunhos. Tudo o que se pode fazer é tentar olhar por
todos os ângulos que nos são mostrados, mas não se pode esperar compreendê-la. No
entanto, nessa tentativa de compreensão é que percebemos nuances da língua e da
linguagem para as quais não havíamos nos voltado. A linguagem é muito maior do que
a língua. Enquanto essa nos permite tentar traduzir o mundo, aquela nos permite vivê-
lo da forma mais plena que um ser humano pode: sentindo-o. A língua é
imprescindível, mas não é tudo. A cultura e, com ela, os sistemas afetivos que
envolvem a língua, se alimentam dela e a alimentam. A língua serve para viver, sim,
mas apenas porque ela está impregnada de vida, da vida que vai além dela.

Considerações finais

Que a linguagem compreende sistemas semiológicos além da língua; que o


sistema afetivo relativo a uma cultura é um desses sistemas; que a enunciação integra
língua e afetividade para produzir sentido; que há uma enunciação singular nos
momentos e lugares do sagrado; que essa enunciação só é parcialmente acessível; que
o testemunho é a forma como essa acessibilidade se dá: eis o que esperamos ter
demonstrado em nossa exposição.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo, 2008.


BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral I. Campinas: Pontes, 2005.
____. Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes, 2006.
FLORES, Valdir do Nascimento. Introdução à teoria enunciativa de Benveniste. São
Paulo: Parábola, 2013.
____. et al. Dicionário de linguística da enunciação. São Paulo: Contexto, 2009.

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____; SEVERO, R. T. “Linguagem e cultura: uma abordagem com Benveniste”. Veredas


On-Line, Juiz de Fora, v. 19, n. 2, p. 310-330, 2015.
LE BRETON, D. La sociologie du corps. Paris: PUF, 1992 [2012].
____. Les passions ordinaires: Anthropologie des émotions. Paris: Armand Colin, 1998.
____. L'interactionnisme symbolique. Paris: PUF, 2004 [2012].
____. Éclats de voix: Une anthropologie des voix. Paris: Éditions Métailié, 2011.
MELLO, V. H. D. de. A sintagmatização-semantização: uma proposta de análise de
texto. Tese (Doutorado em Letras) − Instituto de Letras, UFRGS, Porto Alegre,
2012.
ONO. A. La notion d'énonciation chez Émile Benveniste. 2007.
ORO, A. P. As religiões afro-gaúchas. In: SILVA, Gilberto Ferreira da; SANTOS, José
Antônio dos; CARNEIRO, Luiz Carlos da Cunha (Orgs.). RS Negro. Cartografias sobre
a produção do conhecimento. Porto Alegre: Edipucrs, 2008. p. 123-133.
SANTOS, R. D.; SILVA, J. F. de S. S. da. Caminhos da Religiosidade Afro-Riograndense.
[Filme vídeo]. Produção de José Francisco de Souza Santos da Silva, direção de
Rafael Deròis Santos. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
2011. vídeo, 46 min. color. Son. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=_ao-lrP8TOo. Último acesso em 05/10/2015.
SEVERO, R. T. Língua e linguagem como organizadoras do pensamento em Saussure e
Benveniste. Entretextos, Londrina, v. 13, n. 1, p. 80-96, jan./jun. 2013.

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SOBRE O QUE FAZEMOS: DIÁLOGO DE BERNARDO CARVALHO COM RAMÓN NIETO SOBRE O
PROCESSO DE CRIAÇÃO FICCIONAL

Rodrigo Alfonso Figueira1

1 Introdução

Buscando refletir sobre o processo de criação ficcional, Nieto (2001) aborda


três questões cruciais ao escritor no seu labor de construção de uma obra: a
inspiração, como e onde se escreve, e o questionamento se a literatura possui alguma
utilidade. Chamamos aqui as questões de “cruciais” em razão de, invariavelmente, elas
permearem as discussões com escritores, estabelecendo-se como pontos de conflito
importantes àqueles que buscam na literatura uma forma de expressão, além de
objeto de análise e reflexão de autores, críticos literários e leitores. Muito já foi
debatido a respeito destes três aspectos, resultando em uma visão múltipla sobre as
mesmas questões, denotando a visão pessoal dos autores sobre o processo de
escritura de uma obra, bem como os seus objetivos individuais dentro do fazer
literário. A questão que angustia àqueles que se lançam ao processo de construção de
uma obra ficcional é encontrar uma resposta para cada um dos pontos levantados por
Nieto (2001).
Naturalmente, dentro de cada um desses três elementos, desdobram-se outras
questões relevantes, suscitando outros questionamentos não menos angustiantes ao
escritor e que se posicionam como um elemento perturbador no seu processo criador,
os quais poderiam ser: o que se escreve faz algum sentido para o mundo?; como
descobrir quando a ideia original está pronta para transformar-se em narrativa?; existe
forma prévia para um romance ou ela se desvenda durante o processo de escritura?;
há espaço para a espontaneidade em um texto literário?; existe um papel definido ao
escritor em uma sociedade em crise como a atual? Fácil seria afirmar que uma única
resposta poderia resumir cada uma destas questões, reduzindo séculos de literatura e
múltiplas visões sobre o labor ficcional a uma síntese teórica, canônica e
provavelmente questionável.
O fato é que, por trás de cada obra há uma matriz de motivações e pré-
disposições autorais, buscando sempre responder a alguma questão do mundo através
1
Mestrando em Escrita Criativa – PUCRS. Bolsista CAPES.
E-mail: rodrigo.figueira@acad.pucrs.br

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de um método nem sempre capaz de ser explicado através de uma equação


acadêmica, por não se mostrar equânime a todos os escritores. Por esta razão é que
Nieto (2001) busca exemplificar cada um dos três elementos com posicionamentos de
inúmeros escritores, apresentando a diversidade de pensamentos e lógicas que levam
o autor a alcançar seu produto artístico final. Possivelmente, não existe uma resposta
única e absoluta para cada uma das questões levantadas acima e, também, para tantas
outras que dizem respeito ao ofício de escritor. Porém, o que pode-se afirmar é que o
processo criativo de cada escritor, quando analisado, contribui com um pouco mais de
luz ao sinuoso (e por vezes amedrontador) caminho da produção ficcional.
Dentro desta perspectiva, a análise das motivações, gatilhos e trilhas
perseguidas pelos escritores contemporâneos em busca de sua obra ficcional se
mostra útil, em se considerando que esta análise poderá contribuir com o aumento do
arcabouço de conhecimento da escrita criativa. Ainda que os processos não sejam
homogêneos, pois representam a perspectiva individual de um artista, certamente
servem como ponto de reflexão para ampliar a perspectiva daquele que busca seu
próprio caminho em direção a uma obra ficcional.
Visando contribuir com os estudos contemporâneos da escrita criativa, sente-
se a necessidade de que o corpus de estudo de Nieto (2001) seja ampliado,
atualizando-o através de cores locais e modernas, capazes de proporcionar a análise
sobre os três pontos mencionados anteriormente a partir da visão de um autor
brasileiro contemporâneo. Desta forma, buscou-se contribuir com esta discussão
através das considerações do escritor brasileiro Bernardo Carvalho, obtidas em uma
entrevista onde o seu processo criativo foi explorado à luz das considerações de Nieto
(2001). É importante ratificar que, com esta abordagem, não se pretende definir
nenhuma verdade absoluta, ou trilha única a ser seguida em busca da criação ficcional.
Ao contrário, buscando compreender a dinâmica de trabalho e visão literária de um
escritor relevante na literatura brasileira contemporânea, busca-se ampliar a
perspectiva de trabalho de todo o escritor, utilizando estas considerações como mais
um input em seu processo criativo. A seguir, pode-se observar a análise deste autor
sobre seu próprio processo, utilizando a obra Nove Noites como objeto de referência.

2 Vontade, disposição e sentido do mundo

Dentre todas as angústias que assaltam o escritor, possivelmente uma das mais
intensas seja a que se refere à inspiração. Faulkner (1956), quando questionado sobre
a importância da inspiração ao escritor, afirma que não sabe o que é a inspiração, pois
somente ouviu falar dela, mas nunca a viu.

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Talvez essa angústia deva-se ao fato de que é a inspiração o ponto de partida


da obra ficcional, elemento primário a ser trabalhado pelo autor na busca de uma obra
que, até então, representa apenas uma hipótese. Neste tocante, Nieto (2001, p. 67)
abre da seguinte forma o capítulo A Inspiração:

Turgueniev dizia: “os poetas tem razão quando falam em inspiração.


É verdade que a Musa não desce do Olimpo para trazer-lhes as
estrofes já acabadas, mas chegam a sentir uma disposição de ânimo
especial que se parece com a inspiração. Esta disposição de ânimo é
chamada pelos poetas ‘proximidade com o deus’. Esses instantes
constituem o único deleite do artista. Se não existissem, ninguém
escreveria. Depois, quando é preciso colocar ordem em tudo aquilo
que se agita na cabeça, quando é preciso repousar tudo isso no
papel, é que começa o tormento”.

Além de compartilhar da opinião do autor russo, Carvalho acredita que o


escritor inicia o processo através do que chama de vontade (informação verbal2). O
escritor, ao possuir uma vontade, ficaria pré-disposto a ver e ouvir coisas do mundo
em um estado de permeabilidade, condição essencial para posicionar-se frente a este
mesmo mundo de forma mais sensível. O autor acredita que a partir do momento em
que o sujeito deseja ardentemente alguma coisa e se coloca à disposição dos
elementos do mundo, a realidade passa a operar como uma espécie de alucinação. O
escritor deseja tanto contar uma história, torna-se tão obstinado com aquele objeto
que, ao final deste processo de alinhamento com o real e o oculto, passa a ter uma
visão. No entanto, Carvalho não acredita na existência de uma espécie de
voluntarismo para que se inicie o processo de criação. Segundo ele, querer escrever
um grande livro não basta para poder escrevê-lo. E aqui, a vontade com alguma dose
de acaso, configura-se como a grande virada no processo de início da escritura
(informação verbal2).
Utilizando-se o seu romance Nove Noites como exemplo, Carvalho afirma que
este livro nasceu a partir de uma matéria lida por ele em um jornal sobre o
antropólogo americano Buell Quain, morto entre os índios brasileiros na década de
1930, exatamente conforme informado pelo narrador de seu romance (CARVALHO,
2002). Recordando o momento em que leu a matéria, Carvalho afirma: “Eu li aquele
negócio e eu tive uma paixão por aquela situação. Se tornou a coisa mais importante
2
Entrevista concedida por CARVALHO, Bernardo. Depoimento [13 mai. 2015]. Entrevistador: Rodrigo
Alfonso Figueira. Porto Alegre: PUCRS, 2015. 1 arquivo .mp3 (52 min). Entrevista concedida ao aluno.
2
Entrevista concedida por CARVALHO, Bernardo. Depoimento [13 mai. 2015]. Entrevistador: Rodrigo
Alfonso Figueira. Porto Alegre: PUCRS, 2015. 1 arquivo .mp3 (52 min). Entrevista concedida ao aluno.

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da minha vida. Nada era mais importante. Então tudo era feito em função daquilo
(informação verbal2)”.
A partir do despertar desta paixão, Carvalho recorda que não escreveu nada
durante seis meses. Em seus romances posteriores, “Mongólia” e “O Sol se Põe em São
Paulo”, ele tentou reproduzir o mesmo processo: onde a escrita ainda não estava
presente, o mundo virava romance antes do romance propriamente existir
(informação verbal2). Neste início de processo criativo, onde a obra ainda não foi
transposta ao papel, e o que reside no escritor é ainda a ideia original e a vontade –
único momento de prazer conforme Nieto (2001, p. 67) – Carvalho utiliza a metáfora
de uma represa, onde todos estes inputs vão sendo armazenados em si para que, em
determinado momento, as comportas deste repositório se abram e, então, a história
passa a ser escrita, uma vez que está madura o suficiente para ser colocada no papel.
Porém, para que isso aconteça, o autor reforça a necessidade da pré-disposição: ele
passa a escrever a história porque já estava pré-disposto a escrevê-la. Em seu caso
específico, havia a motivação despertada pela matéria de jornal tratando do suicídio
de um antropólogo no interior do Brasil. Era a sua paixão. A obsessão. Contudo, ao
amadurecer a história, ao pensar nela durante todos os dias, como costumeiramente
fazem os amantes apaixonados, cria-se esta pré-disposição, força elementar que torna
o autor capaz de escrevê-la.
Quando da construção de Nove noites, Carvalho diz que, ao ler a matéria de
jornal sobre Buell Quain, havia uma frase que despertou nele o desejo de iniciar um
romance em torno deste personagem real. Questionado sobre que frase era essa,
Carvalho afirma:

A frase dizia respeito ao suicídio do Quain, mais nada. O artigo era


uma resenha sobre a correspondência de um antropólogo alemão
que foi assassinado entre os índios. A resenhista, que também era
antropóloga, mencionava no primeiro parágrafo que, além do
alemão, o único outro caso que ela conhecia de morte violenta de
um antropólogo entre os índios no Brasil era o suicídio do Quain. Foi
só isso (CARVALHO, 2015).

Segundo o que podemos perceber, não há potencialmente nesta frase, sob o


ponto de vista da intensidade, nenhum elemento que se destaque a ponto de diversos
escritores se apaixonem pela história do antropólogo americano e de motivarem-se a
escrevê-la. Ainda assim, esta frase, segundo Carvalho, continha para ele todo um
romance que estava pronto inconscientemente dentro de si, esperando para ser

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escrito (informação verbal2). No momento da leitura da matéria de jornal o romance já


existia, mas estava adormecido no inconsciente do autor.
Após esta revelação mágica, que pode ter como ponto de partida os estímulos
mapeados por Alfonso Reyes em Nieto (2001, p. 67), quando o escritor passa ao
processo de transcrever esta história etérea, mapeada do mundo real por algum
estímulo, este processo anterior à escritura e ao despertamento vai se desvendando
lentamente. Porém ele, o romance, sem a intervenção autoral, já estava pronto desde
sempre. Carvalho associa este momento à imagem de uma cegueira psicológica no
autor, que irá se desfazendo à medida em que a obra passa a ser construída de fato
(informação verbal2). Ela, a obra, seria o próprio remédio a esta ausência de visão
parcial e temporária, que acaba no momento em que um dos estímulos de Reyes
encontra guarida no autor e passa a ser encubada pelo escritor.
E quando parte-se para o papel? Quando a história merecer ser escrita? Ao ser
questionado se existe um momento definido para escrevê-la, e se este momento é
consciente ao escritor, Carvalho afirma que no instante em que se está dentro da
história, e que o autor se sente prenhe, este seria o momento de início da escrita e,
portanto, um momento consciente. A partir de então, há o que Carvalho chama de
possessão pela história, o mergulho profundo na obra que almeja e a apropriação total
de seu movimento de construção (informação verbal2). Em mais uma metáfora, o
escritor compara o processo de escritura ao de bordar um tecido: ao longo desse
movimento, as imagens vão aparecendo, os personagens se revelando, assim como a
história vai se formando à medida em que o escritor se debruça sobre ela buscando
encontrar o seu fim, ou também o seu início.
E quando há o bloqueio? Quando o escritor, por mais que busque o mote de
sua obra, consciente ou inconscientemente, e mesmo assim não consiga encontra-lo,
pois nada o inspira? Quando os estímulos de Reyes em nada parecem contribuir de
forma eficaz para que alguma visão do mundo se reflita como possibilidade literária?
Quanto a este ponto, Carvalho acredita que o bloqueio tem uma relação direta com a
depressão.

A disponibilidade tem a ver com o sentido do mundo. Você acha que


aquilo [o que vai ser escrito] pode fazer sentido, então você faz a
coisa. Quando o autor bloqueia, entra em um círculo vicioso: ele [o
escritor] bloqueia porque, provavelmente, está deprimido e aquilo só

2
Entrevista concedida por CARVALHO, Bernardo. Depoimento [13 mai. 2015]. Entrevistador: Rodrigo
Alfonso Figueira. Porto Alegre: PUCRS, 2015. 1 arquivo .mp3 (52 min). Entrevista concedida ao aluno.

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aumenta a depressão dele porque há uma falta de sentido geral. Ele


não consegue ver sentido nas coisas. E o processo literário é essa
construção de sentido, e você lida com esta falta de sentido o tempo
inteiro. E esta falta de sentido é um germe da depressão: é o que
pode te dar tanto a obra quanto a morte (informação verbal2, grifo
nosso).

Segundo suas observações, como há no escritor a necessidade de estar


disponível para sentir o mundo, esta sensação de falta de sentido interpõe-se entre o
autor e o próprio mundo. A inviabilidade da obra ficcional pode partir desta condição
emocional do autor, onde não havendo disponibilidade para senti-lo e percebê-lo em
todas as suas sutilezas, irá desembocar em uma ausência de vontade para transformar
o estímulo do real em obra de ficção. Sem a disponibilidade, os estímulos de Reyes são
como uma gota de água para matar a sede de um deserto inteiro.

3 Afastamento como método

O processo de criação, como rotina e ambiente de trabalho, é tão múltiplo e


diverso que Nieto (2001, p. 16) afirma que:

Os escritores trabalham de forma anárquica: ao meio-dia, ao cair da


tarde, à noite, no calor, nos cafés, na cama, sentados, deitados, de
pé, passeando com o gravador, duas horas de vez em quando, 20
horas a fio... Nada de método, nada de receitas, nada que pareça
uma organização racional do trabalho (informação verbal2, grifo
nosso).

Alguns autores pregam que aqueles que se dedicam à literatura necessitam


escrever todos os dias, nem que seja apenas uma linha. Segundo Faulkner (1956), a
fórmula para o sucesso de um romancista é “noventa e nove por cento talento,
noventa e nove por cento disciplina, e noventa e nove por cento trabalho” –
atribuindo, dentro de sua matemática, somente um terço do peso ao talento, e o
restante ao rigor do processo de construção. Segundo estes autores, o labor diário é a
ferramenta capaz de forjar o escritor, como se a sua depuração dependesse de
trabalho diário, disciplinada e com alguma rigidez de persistência.
Quando questionado sobre a importância da disciplina no processo de
escritura, Carvalho confirma que a considera importante, porém comenta que

2
Entrevista concedida por CARVALHO, Bernardo. Depoimento [13 mai. 2015]. Entrevistador: Rodrigo
Alfonso Figueira. Porto Alegre: PUCRS, 2015. 1 arquivo .mp3 (52 min). Entrevista concedida ao aluno.

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enfrenta muita dificuldade em manter esta disciplina em sua rotina de trabalho,


afirmando categoricamente: “A [minha] rotina é totalmente irregular” (informação
verbal2, grifo nosso). Cita, como exemplo de sua experiência pessoal, o caso das
residências das quais participou, dentre elas uma na Bélgica, em 2014. Nesta
oportunidade, onde já estava escrevendo seu último romance (ainda não publicado),
residiu um mês em Bruxelas, e outro período idêntico em uma casa de campo, no
mesmo país.

O fato de estar em um apartamento que é só meu, sem ninguém do


meu lado, onde eu posso dormir e acordar a hora que eu quiser, no
meio da noite voltar a escrever sem ninguém perguntar ‘onde você
está indo?’, para mim é fundamental (informação verbal2).

O autor considera que este estado, aliado ao fato de estar sem compromisso
algum em nenhuma hora do dia é, sem dúvida, a situação ideal para o processo de
construção de uma obra. Ao mesmo tempo, pondera que circunstâncias como estas
são muito raras, praticamente não existindo em nossa rotina moderna. Ele cita que,
durante o período na Bélgica, especialmente em Bruxelas, o seu dia de trabalho era
marcado por inúmeras pausas, à medida em que a construção do texto era travada por
alguma impossibilidade narrativa.
Seu trabalho era intercalado por outras atividades (almoço, uma ida a uma
livraria, uma saída para jantar, etc.) que permitiam a ele voltar ao ponto de onde
parou com uma nova perspectiva, uma solução possível aos problemas encontrados no
momento da parada, ainda que o processo novamente travasse em uma nova
impossibilidade momentos depois. “E de repente, no meio da noite, vem uma ideia.
Como se aquele acúmulo de coisas que eu fiz durante o dia, todo aquele lixo - a noção
daquele lixo - explode em uma coisa certa e eu entendo o que eu tenho que fazer”
(informação verbal2). A completa ausência de obrigações durante o dia e o foco
exclusivo na criação ficcional, permite que o autor alcance o que ele chama de um
fluxo criativo ideal.
Carvalho cita que outro ponto alto da residência em uma cidade estranha, é a
solidão. O pouco contato social e o distanciamento da rotina comum a qualquer
pessoa em sua cidade de origem favorece a disciplina necessária para o trabalho na
obra. “Essa vida ideal [a da residência] permite fazer em muito menos tempo o que eu

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passo meses tentando desenvolver” (informação verbal2, grifo nosso). Ele acrescenta
que, se estivesse em uma cidade onde mantivesse relações sociais, certamente faria
contato com seu círculo para provocar alguma atividade durante o seu processo (uma
ida a um bar, um jantar, uma atividade social qualquer), o que não acontece em uma
cidade estranha por não haver este meio social ao seu alcance. “Essa solidão é muito
importante para mim. Agora eu sei que eu poderia funcionar melhor – qualquer um
poderia funcionar melhor – se tiver isso. É uma disciplina à força, não tem como não
ter disciplina” (informação verbal2).
E em percebendo a possibilidade de se escrever muito mais em muito menos
tempo do que em seu ambiente de origem, é neste momento em que se inicia um
processo paradoxal de angústia: o escritor sabe que está correndo contra o tempo
restante da residência – que representa a vida ideal para a construção literária – e
precisa realizar algo antes de seu fim. Porém, segundo Carvalho, esta angústia também
força o escritor a ser colocado em um estado de medo que faz com que o escritor
sinta-se obrigado a produzir, ainda que ele esteja em um excelente apartamento em
uma cidade interessante e cheia de atrativos como Bruxelas (informação verbal2). E,
neste sentido, o isolamento do mundo é um dos fatores de grande contribuição para
que possa haver disciplina na criação de Carvalho.
Outro ponto favorável da residência, e que vem ao encontro de uma predileção
pessoal deste autor, é o seu desligamento do meio literário. Em sua rotina de criação,
o autor prefere estar fora dos círculos literários, frequentando outros meios, ainda que
ligado aos livros, mas não ligado aos seus autores. Utilizando o exemplo de sua
residência em Bruxelas, este distanciamento do círculo literário foi mais um ponto
favorável, já que não conhecia escritor belga algum, ao contrário do que ocorreria em
Paris, por exemplo, onde possui muitos amigos escritores. “Para fazer literatura eu
preciso achar que a literatura não existe” (informação verbal2), afirma, ainda que
pondere que existam autores que se alimentem da vivência destes círculos, e que
sejam influenciados positivamente por eles em seu processo criativo.
Por mais que Carvalho acredite que a residência contribua de forma
fundamental em seu processo criativo, por todas as razões já expostas anteriormente,
o escritor destaca a importância de se atentar para o momento da residência. Carvalho
cita uma residência que participou na Toscana, onde o autor José Luis Peixoto também
teve a oportunidade de frequentar, oferecida por uma baronesa italiana a escritores,
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Entrevista concedida por CARVALHO, Bernardo. Depoimento [13 mai. 2015]. Entrevistador: Rodrigo
Alfonso Figueira. Porto Alegre: PUCRS, 2015. 1 arquivo .mp3 (52 min). Entrevista concedida ao aluno.

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em sua casa de campo. Os autores permanecem neste local majestoso que mais
parecia uma pintura clássica: havia uma torre renascentista, copas de árvores à janela
do quarto, paisagem ao redor deslumbrante. E Carvalho comenta que não foi capaz de
produzir uma linha sequer.

Eu tinha acabado de publicar um livro e fui para lá sem nenhuma


ideia, achando que ali, isolado – era a primeira vez que eu fazia isso
em uma residência - teria uma inspiração, e aquele lugar iria me
permitir pensar em um monte de coisas e eu ia começar a escrever
feito um louco. Foi a pior coisa que poderia ter acontecido comigo.
Tudo o que eu tentei escrever era um lixo (informação verbal2).

Carvalho acredita que, como ele havia publicado seu último livro havia muito
pouco, deveria ter aguardado mais tempo para ingressar em um novo processo de
residência. Em sua residência em Bruxelas, ao contrário, Carvalho já havia iniciado a
escrever sua obra, inclusive já tendo problemas ficcionais para resolver dentro do
texto a que se propunha, sem a necessidade de se inspirar pela realidade circundante.
A obra já estava em si, e necessitava ser expurgada de seu corpo como um processo
orgânico, fosse onde fosse.
Essa perspectiva é pessoal. Não há regra. Carvalho acredita que este processo
varia de pessoa para pessoa, sendo momentâneo e circunstancial. Porém, dentro de
sua perspectiva particular, este duplo isolamento – da rotina e da própria literatura – é
fundamental para o seu processo de construção ficcional (informação verbal2).

4 Um grão na engrenagem

Em um momento em que diversas transformações de ordem social, cultural,


ética e moral encontram-se em pleno curso, causando estranhamento e algum caos à
ordem estabelecida e ao status quo do mundo moderno, mais do que nunca se faz
relevante o seguinte questionamento: o escritor possui um papel definido em meio a
este novo paradigma social? Ou, ainda, indo ao encontro do questionamento
levantado por NIETO (2001): a literatura serve para alguma coisa? Atento a estas
questões, Carvalho possui posição muito clara, sendo absolutamente direto em sua
perspectiva sobre o papel do escritor:

A princípio eu diria que não tem [papel], porque o papel quem cria é
ele próprio [o escritor], diferentemente do padeiro, do advogado e
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Entrevista concedida por CARVALHO, Bernardo. Depoimento [13 mai. 2015]. Entrevistador: Rodrigo
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do médico, os quais sabemos qual é o seu papel. Mas eu acho que


uma sociedade sem arte é uma sociedade pior. É o lugar onde não há
a individualidade, onde não existe a ideia do individual como
possibilidade da diferença. É um coletivo funcional (informação
verbal2).

Carvalho acredita que o fato de a literatura não ter função já atribuiria a ela
uma determinada função. Em sua perspectiva, uma sociedade que propõe atividades
não-funcionais torna-se um lugar menos automatizado, distanciando-se da figura de
um formigueiro, onde cada sujeito desempenha uma função específica, sufocando-os
por meio deste modelo mecanicista. Segundo Carvalho, o escritor deve ser um grão na
engrenagem azeitada desta máquina social cruel e opressora; um grão capaz de travá-
la e de colocar em evidência toda a sua fragilidade, dando ao homem um respiro nessa
sociedade carregada com toneladas de pressão sobre si.
Em sua própria fala, Carvalho comenta que, por vezes, a literatura, e a arte em
geral, pode ser procurada pelo homem para que se obtenha uma espécie de conforto.
Em um mundo com tamanha pressão, vivendo-se no fio da navalha tão violentamente
a cada fração de tempo, a literatura pode surgir como esta ilha de prazer e conforto
àqueles que já não encontram estes elementos no mundo. Ainda assim, o autor
acredita que não cabe ao escritor a manutenção deste conforto.

A ideia de um escritor que, na verdade, fica cutucando a ferida e


tentando mostrar o caos, e a possibilidade de que esse cara exista
dentro dessa sociedade, que já é caótica e que já é insuportável; e
que esse cara não tenha função nenhuma e que a função dele em
fazer tudo isso não seja bem vista, por exemplo, isso faz essa
sociedade ser melhor. Que esse cara possa existir nesse lugar faz essa
sociedade ser mais livre, ser mais diversa, ser mais aberta
(informação verbal2).

Segundo Carvalho, sociedades onde tudo funciona perfeitamente e onde cada


indivíduo é limitado ao seu papel específico, constituem-se em sociedades mais
estreitas. Os habitantes de sociedades como estas não ampliam sua visão,
condenando-se a serem escravos de uma condição pré-determinada a elas, sobre a
qual nunca foram capazes de refletir. A visão de fora desta engrenagem, para o autor,
é fundamental. Não basta querer vê-la destacada para o respiro necessário: é preciso
compreendê-la, conhecer seu interior e sua dinâmica, pois somente assim será

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possível ao sujeito compreender a si mesmo – algo que parece distante deste


habitante do século XXI, imerso em tecnologia e múltiplos estímulos.

O papel do escritor é estar no lugar de outsider, onde a sua função é


a de ser outsider, no final das contas. E por isso me incomoda um
pouco a ideia do escritor profissionalizado. Os Estados Unidos
formam 40 mil escritores por ano nas universidades americanas.
Todo mundo quer ser escritor e todo mundo tem o direito disso,
claro. Mas há uma contradição aí. Porque quando eu dizia que
preciso estar longe da literatura, da vida literária, essa informação de
que 40 mil escritores são formados por ano nos Estados Unidos é
terrível, porque é como se eu tivesse me tornado um advogado
(informação verbal2).

A preocupação manifestada acima por Carvalho diz respeito ao fato de, uma
vez institucionalizado o papel do escritor na sociedade, o único autor que funcionaria
neste ambiente é o de mercado, aquele capaz de gerar somas significativas com sua
produção e fazer com que a roda do mercado gire. Naturalmente, todo o escritor
espera ser lido, ter penetração com sua obra e receber direitos autorais – quiçá poder
desfrutar desses recursos para manter-se financeiramente somente através de sua
produção. Ao mesmo tempo, o que Carvalho também deseja com sua obra é ser um
grão na engrenagem social, um distúrbio, algo fora dessa estrutura. O escritor,
segundo ele, não pode operar como um funcionário de uma empresa. Ele
obrigatoriamente deve distanciar-se dos papéis profissionais tradicionais, definidos
pelas sociedades modernas.
Carvalho vê o escritor como este outsider, que observando tudo pelo lado de
fora do mundo, mirando esta engrenagem caótica, pode intervir com liberdade em sua
estrutura da forma como ele acredita que melhor lhe convenha. É um sujeito isento,
capaz de atuar de maneira contundente na sociedade exatamente por não ser
homologado por ninguém (informação verbal2).

5 Considerações finais

Ao conceber a atividade do escritor sem a benção de uma deusa inspiradora


que, caso decida ausentar-se da vida do autor, sua obra estaria encerrada para
sempre, Carvalho compartilha da visão da maioria dos autores e pensadores do fazer
literário, para os quais a criação depende de um elemento fundador: o trabalho.

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Entrevista concedida por CARVALHO, Bernardo. Depoimento [13 mai. 2015]. Entrevistador: Rodrigo
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Alfonso Reyes, buscando estabelecer a fórmula que Nieto (2001, p. 19) chamou de
“poção mágica da inspiração”, trabalhou com o estímulo como sendo o ponto de
partida da escritura, o marco zero do trabalho do escritor. Neste aspecto, as
considerações de Carvalho vem a complementar a fórmula de Reyes, em que a criação
passa a operar em um momento anterior ao instante de estimulação dos sentidos. Ao
tratar a vontade e a pré-disposição como elementos ativos no processo criativo,
Carvalho antecipa o momento do insight. Segundo sua análise, seria possível dizer que
é na pré-disposição do autor em sentir o mundo onde se inicia o processamento
original da obra: o autor ainda não possui consciência de que a obra existe, porém ela
já o habita e se desenvolve em seu subconsciente sem a sua autorização racional. É
através da vontade que o escritor põe-se em alerta para o mundo. Quando deseja, de
fato, uma obra, sua permeabilidade aumenta, mantendo-se neste estado de vigília
constante e inconsciente configurado na pré-disposição. A partir de então, misturados
estes elementos, os estímulos de Reyes podem encontrar guarida no escritor. De
qualquer forma, Carvalho destaca a questão do voluntarismo: não basta dispor da
vontade e da pré-disposição para escrever uma grande obra. Neste tocante, outros
escritores resolveriam a questão no lugar de Carvalho: é necessário talento e muito
trabalho. Contudo questiona-se: a poção mágica de Reyes, aliada à talento e trabalho,
seriam elementos suficientes nesta equação sem os outros dois citados por Carvalho?
O fato é que, a partir deste marco inicial que determina o início da criação
ficcional, Carvalho aponta um momento crucial para que o processo de escritura tenha
o seu início: é necessário que o escritor se sinta prenhe. A imagem de um ser humano,
ou ainda um animal, em processo de gestação definitivo é de grande relevância na
análise de constituição de uma narrativa. Trata-se de um momento crítico, onde todo
o resultado do trabalho inconsciente do autor tem a sua vazão material, deixando,
progressivamente, o estado de hipótese ou possibilidade para encarnar-se em uma
narrativa.
Carvalho aponta, de forma clara, o caminho ideal para a construção desta
narrativa buscada pelo escritor: isolamento da literatura e alguma solidão. Ainda que
na perspectiva do autor o processo se dê, em seu estado perfeito, através das
residências literárias – onde não há o compartilhamento do processo de escrita com os
problemas domésticos, com a rotina, com os acessos do círculo social e literário – o
fato de submeter-se a uma residência não é garantia de êxito no processo de
construção da obra.
Assim como não acredita no voluntarismo, o autor deixa claro em sua
abordagem que o desejado estado de prenhez em que o escritor deve se encontrar

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para o início da escritura é ponto de partida, e não de chegada. Segundo Carvalho,


acreditar no fato de que, em se encontrando em condições ideais de ambiente e rotina
poderá o escritor ser favorecido a encontrar a obra que tanto procura, é como manter-
se a crença de que a musa inspiradora descerá do Olimpo e o abençoará com o núcleo
obsessivo de sua história. Nas palavras do autor, a condição ideal existe, desde que
esta gravidez literária já tenha sido consumada, e não o inverso. Ainda que se saiba das
dificuldades do autor moderno em conciliar as diversas atividades a que se dedica com
a sua literatura, é relevante considerar a perspectiva sublinhada por Carvalho,
mantendo permanentemente ativa a sua disponibilidade e atenção ao mundo. Estes
são os agentes capazes de engravidar o autor que, para materializar a obra, irá
encontrar a sua forma de melhor fazê-lo na ausência da condição ideal de isolamento
e tranquilidade que se traduz em uma residência literária.
E tudo isso para quê? Viver a experiência de uma residência, padecer da
angústia sobre o valor do que se escreve, as noites cruzadas pela insônia em busca da
solução dos conflitos estéticos e narrativos: qual o propósito? Afinal, para que serve o
que fazemos? Quando Carvalho afirma que a função do escritor é não ter função e que
sem papel definido ele é mais livre para “cutucar a ferida” da sociedade, pode-se
pensar que talvez desta forma atribua-se, sim, um papel ao escritor. Naturalmente,
não será o papel do médico ou do advogado, não será um papel institucionalizado ou
regulamentado pelos conselhos formais de uma sociedade caótica e burocratizada.
Entretanto, ao afirmar que este sujeito deve ser um outsider, alguém a cutucar a ferida
deste corpo doente, não se estaria, assim, subjetivamente lhe atribuindo um papel?
Afinal, o escritor não produz sua obra sem que suas motivações passem pelo
filtro dos valores que ele mesmo possui sobre o mundo. Se escreve sobre ele (ou para
ele), para cutucar a ferida, não estaria, de alguma forma, imprimindo em sua narrativa
a sua visão de mundo como instrumento para sua transformação? Ser o grão na
engrenagem não significaria importar-se, levantar-se contra o que vê de injusto, de
febril, de absolutamente opressivo? Escrever, neste aspecto, não seria entregar a este
mundo algo que faça parte de si e que represente o seu desejo de mudança? Qual
seria a razão de ser o grão na engrenagem se o escritor não acreditasse que suas
motivações e valores pudessem contaminar o mundo com uma nova cor?
O fato de ser um outsider, de possuir liberdade para observar a engrenagem do
lado de fora e intervir no mundo através da literatura, seria argumento suficiente para
negar um papel ao escritor? Entende-se perfeitamente que Carvalho deseja manter o
escritor livre de uma função pré-estabelecida e normatizante dentro da sociedade,
para que possa flanar abertamente sobre ela e intervir com livre-arbítrio. Porém,

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querer fazê-lo com liberdade implicaria necessariamente em sua institucionalização?


Em uma sociedade como a atual, em violenta transformação – ou necessitando desta
reciclagem moral – o escritor não teria, potencialmente e paradoxalmente, um papel
central no debate de um novo mundo, como influenciador positivo?
Sem dúvida, tratam-se de perguntas inacabadas que, no entanto, devem
permear as reflexões de todos aqueles que buscam dedicar-se à literatura. Carvalho
afirma que escrever demanda coragem, que a literatura deve ser uma atividade de
risco. Porém, mais do que correr riscos e ter a coragem de assumi-los, fazer literatura
não demandaria assumir uma enorme dose de responsabilidade para com o mundo? E
é pensando sob esta perspectiva que as considerações de Carvalho e as questões
anteriores podem servir como momento importante de avaliação sobre o ofício a que
se dedica todo o escritor.

Referências

CARVALHO, Bernardo. Nove noites. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
CARVALHO, Bernardo. Bernardo Carvalho: depoimento [13 mai. 2015]. Entrevistador:
Rodrigo Alfonso Figueira. Porto Alegre: PUCRS, 2015. 1 arquivo .mp3 (52 min).
Entrevista concedida ao aluno.
CARVALHO, Bernardo. Agradecimento [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por
<rodrigo.alfonsofigueira@gmail.com> em 21 mai. 2015.
FAULKNER, William. The Art of Fiction No. 12. Paris Review. Nova Iorque: 1956.
Disponível em: <http://www.theparisreview.org/interviews/4954/the-art-of-
fiction-no-12-william-faulkner>. Acesso em: 31 mai. 2015.
NIETO, Ramón. O ofício de escrever. São Paulo: Angra, 2001.

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A CULTURA E O COMPORTAMENTO LINGUAGEIRO DO LÍDER COMO UM DISCURSO DA


IDENTIDADE DE MARCA

Rosana Vaz Silveira1


Ernani Cesar de Freitas2

1 Introdução

A identidade e o ethos estão em constante formação devido ao aumento da


exposição do indivíduo nas redes sociais. O processo tecnológico do convívio deve ser
percebido como uma mudança de percepção cultural, e o desenvolvimento do
mercado comunicacional está em identificar as linguagens que formam o construto do
ethos. Com isto, há novas configurações de discursos das marcas que devem ser
percebidos enquanto linguagem.
A propagação das redes sociais possibilitou uma revolução no âmbito
comunicacional, uma vez que as decisões de investimento por parte das empresas
nesta área reduziram os custos daqueles praticados pelas mídias eletrônicas. O início
de um negócio, pode se dizer, que está em formação do seu discurso nas mídias, pois
se observa o desenvolvimento de projetos que, aparentemente, não possuem o
acompanhamento de um profissional do campo da comunicação. Há uma diversidade
de projeções linguageiras concebidas através de insights pessoais no discurso, como
comentários ideológicos, fotos autorais e concepções simbólicas influenciadas por
quem gere o negócio e sobre isto, refere-se ao sujeito (marca) e seu ethos (imagem de
si).
Este processo provocou um repensar das formações discursivas concebidas por
agências de comunicação para as grandes marcas, o que pode refletir em um novo
processo a ser percebido por empresas que trabalham com comunicação. Certamente,
a constituição da comunicação gerada pelo discurso vernacular nas redes, procura
estabelecer relações de proximidade (para não dizer intimidade), com seu público na
web. Esta aproximação evidencia a relação de persona que as marcas se projetam, no
sentido da representação, percebida não só no produto e no serviço, mas no ethos

1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais da Universidade
Feevale. E-mail: rosanavaz@feevale.br
2
Orientador do trabalho. Professor do Programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações
Culturais da Universidade Feevale. E-mail: ernanic@feevale.br

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constituído durante sua trajetória empresarial. Não obstante, ao observar a


construção discursiva desenvolvida por algumas marcas, percebe-se que há uma
relação do Eu (gestor) com o Outro (empresa), constituindo o ethos do líder na sua
comunicação do negócio.
Porém, o jogo discursivo pode, de certa forma, gerar afinidades (semelhante) ou
desenvolver atração que gera a aceitação ou o repúdio (diferente) e isso pode estar
diretamente relacionado ao discurso da sinceridade. Pelo discurso da sinceridade, a
decisão das estratégias comunicacionais estabelecidas, no sentido de perceber
linguagens que podem ser mais coerentes ou associáveis com a postura da imagem da
marca (quando refletida na abordagem do discurso), pode gerar o conflito do
diferente, causando não a aceitação, mas o estranhamento diante de um
comportamento que não confere ao da cultura da marca.
Nesse sentido, a projeção das marcas nas redes tende a se estabelecer por
modismos discursivos que podem corromper as relações que se estabelecem com a
imagem de marca. Por outro lado, ao associar o comportamento do gestor,
independente se há uma identificação (empatia) por parte do público, o discurso da
sinceridade pode ser o alicerce para a sustentação da marca.

2 A cultura e o comportamento do líder

A cultura do líder é entendida, neste artigo, como a relação que se estabelece


entre a identidade discursiva e a identidade social constituída pelo gestor. Charaudeau
(2009) entende a identidade discursiva pela existência de um sujeito, que se constrói
por uma identidade social ao qual se projeta para a formação do seu ethos: “a
identidade implica, então, a tomada de consciência de si mesmo.” (CHARAUDEAU,
2009, p. 1). No entanto, para que esta identidade se estabeleça é necessário que se
perceba a diferença perante o Outro. E ao perceber as diferenças e o contraste em
relação à consciência do Outro, mais se reconhece a própria identidade. Assim se dá o
princípio de alteridade: quando no intercâmbio de relações se apresenta a cada um, o
semelhante e o diferente3 um do outro (CHARAUDEAU, 2009).
No semelhante, o intercâmbio acontece no compartilhamento dos mesmos
interesses, e no diferente, quando se reconhece papéis distintos e ao que formam a
singularidade. Ao mesmo tempo, reflete-se a conjuntura de que há uma atração do
diferente percebido no outro, como um sinônimo de incompletude, como algo

3
As palavras semelhante e diferente referenciadas pelo conceito de Charaudeau (2009) serão utilizadas
como itálico para fins de especificar que se trata do conceito e não da palavra propriamente.

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inacabado, pois é da compreensão do outro, que se dá a aceitação ou a rejeição


(CHARAUDEAU, 2009). Transpondo este raciocínio para a formação cultural do líder, é
possível identificar as lacunas que regem o construto comportamental ao assumir ou
instituir um negócio. Necessariamente, a posição de liderança exige uma postura que
possua afinidade com a identidade do líder. No entanto, o julgamento de outros
influencia na identidade construída no ato do discurso, uma vez que para o Eu-existir é
preciso o Outro-confiar.
Se da identidade social percebe-se o diferente, uma vez que se é único com
características próprias, também se refere ao semelhante diante dos comportamentos
linguageiros aos quais o Eu-Outro se identifica por possuir afinidades ou atrações.
Sobre identidade social, Charaudeau (2009) denota que é a representatividade
reconhecida pelos outros, que a legitima perante sua exposição na sociedade. A
conjuntura da identidade social reflete sobre a discursiva como uma virtude, projetada
em um cenário que se representa através do comportamento planejado para ser
persuasivo:

Como a virtude não é considerada em todos os lugares nem por


todas as pessoas da mesma maneira, é em função de seu auditório
que o orador construirá uma imagem de si conforme o que é
considerado como virtude. A persuasão só é obtida se o auditório
constatar no orador o mesmo ethos que vê a si mesmo: persuadir
consistirá em fazer passar em seu discurso o ethos característico do
auditório, para dar-lhe a impressão de que é um dos seus que se
dirige a ele (MAINGUENEAU, 2008, p. 58).

No entanto, por mais que se identifiquem as características “reais” do orador,


ainda assim, o discurso é conduzido com restrições diante de quem está no auditório,
pois, para o fator empático ser eficiente, no sentido da afetividade, a imagem deve ser
projetada pelo orador e ser estrategicamente atuada utilizando elementos que
constituem sua virtude. A virtude (areté) é uma das três competências que inspiram a
confiança, e é nela que o orador poderá se promover, contanto que de forma
prudente (phronesis), respeitando o discurso da sinceridade e sendo benevolente
(eunoia) em seu posicionamento na enunciação. (MAINGUENEAU, 2009). A sua
identidade se constrói em seu ethos, porém o discurso deve ser adaptado aos
diferentes auditórios em que são recebidos os discursos:

Em última instância, a questão do ethos está ligada à da construção


da identidade. Cada tomada da palavra implica, ao mesmo tempo,
levar em conta representações que os parceiros fazem um do outro e

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a estratégia de fala de um locutor que orienta o discurso de forma a


sugerir através dele certa identidade (MAINGUENEAU, 2008, p. 59).

A constituição discursiva do ethos envolve-se na prerrogativa do caráter,


associado aos traços psicológicos e à corporalidade, correspondente aos aspectos
físicos e indumentária, a que Maingueneau denomina de “fiador”. O fiador reflete o
estereótipo cultural por meio de um comportamento, em que “o destinatário o
identifica apoiando-se em um conjunto difuso de representações sociais, avaliada
positiva ou negativamente, de estereótipos, que a enunciação contribui para reforçar
ou transformar” (MANGUENEAU, 2008, p.65). Nesse sentido, o destinatário, aquele
que interpreta, “incorpora”, ou seja, apropria-se deste ethos, estimulando a
correspondência de hábitos e corporalidade ao fiador, gerando assim, um corpo a ser
instituído na comunidade imaginária, aos quais compactua o gosto pelo mesmo
discurso (MAINGUENEAU, 2008).
Para tal pacto, é necessário haver uma compreensão efetiva no discurso, em que
Bakhtin (2003) entende como a constituição de um processo único que norteia a
autonomia semântica (de conteúdo) ideal de cada ato, evidenciado no ato prático da
sua fala. A percepção do signo físico (palavra, cor, logotipo) se consolida pelo
reconhecimento reprodutível na língua (som, pronúncia, gíria), como também na
compreensão do seu significado em um determinado ato, que promove a discussão ou
a concordância no contexto dialógico, sendo que é na profundidade (conceito) que se
dá a compreensão pelo elemento valorativo: “A imagem deve ser compreendida como
ela é e como o que significa. [...] Toda interpretação do símbolo permanece ela mesma
no símbolo, só que um tanto racionalizado, isto é, um tanto aproximado do conceito”
(BAKHTIN, 2003, p. 398).
A partir dessa reflexão, Bakhtin define sentido “em toda a profundidade e
complexidade de sua essência” (2003, p. 398, grifo do autor), ou seja, ao ser
racionalizado, se reflete e se julga diante dos fatos, mas também se aprofunda, quando
interage com outros sentidos que dão a sustentação filosófica para tal: “A
interpretação dos sentidos não pode ser científica, mas é profundamente cognitiva.
Pode servir diretamente à prática vinculada às coisas” (BAKHTIN, 2003, p. 399).
Consequentemente, a representação do comportamento do ethos pode
provocar diferentes sentidos, uma vez que o acontecimento e a realidade podem
alterar a composição real da linguagem, interferindo no discurso identitário da marca.
Mesmo que se trate de um dialogismo, cada texto se transfigura em um novo
contexto.

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3 Discurso da identidade de marca

A identidade discursiva, diferente da identidade social, constrói-se na formação


do discurso, seja na organização enunciativa, como na manipulação do outro
imaginário sócio-discursivo. Com isto, Charaudeau (2009) entende que deve haver três
atitudes capazes de persuadir e seduzir, norteando a condução discursiva identitária:
ser polêmico, no sentido contraditório de discurso com seu concorrente ou como
forma de questionamento de valores; ser sedutor, buscando uma imagem sobre
determinado assunto, que pode ser rejeitado ou aceito; e ser dramático, ao contar
histórias que relatam o drama da vida na tentativa de provocar sentimentos e
afinidades cotidianas. No entanto, “a credibilidade está ligada à necessidade, para o
sujeito falante, de que se acredite nele, tanto no valor de verdade de suas asserções,
quanto no que ele pensa realmente, ou seja, em sua sinceridade” (CHARAUDEAU,
2009, p. 3).
O discurso pela sinceridade (benevolente) na enunciação (virtude) estabelece um
paradoxo que o discurso publicitário sempre defendeu, que é a definição do público
receptor como parâmetro da construção do discurso de marca (prudente). No entanto,
as marcas, por estarem, de certa forma, relacionadas a uma persona, seu caráter e
corporalidade devem representar uma formação empresarial que se constitui através
do gestor. Independente da imagem e da reputação conquistada pela empresa, as
atitudes comportamentais nos diferentes auditórios (leia-se mídias), reflete um perfil
de gestão daquele momento e, dependendo da construção discursiva, mesmo que
certa enunciação tenha ‘funcionado’ satisfatoriamente para determinada marca, pode
soar como ‘falso’ se utilizado a mesma estratégia para outra, a que Maingueneau
(2008, p. 69) entende que o “ethos visado”, pode não ser exatamente o “ethos
produzido”:

E isso pode fracassar. Encontra-se aqui o problema da distância entre


o ethos que o texto, em sua enunciação, pretende que seja elaborado
por seus destinatários e aqueles que eles querem efetivamente
elaborar em função de sua identidade ou das situações em que se
encontram (MAINGUENEAU, 2008, p. 69, grifo do autor).

Para exemplificar o posicionamento de Maingueneau, na Fig. 01, apresenta-se


uma construção discursiva de uma empresa de caldos, sopas e temperos, a Knorr,
submarca da ‘gigante’ multinacional Unilever, em que, para estabelecer um diálogo

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amistoso e irreverente com os telespectadores do programa televisivo MasterChef 4,


utilizou-se de um comportamento que não representa o estereótipo construído pela
marca: “O problema é mais delicado se considerarmos que o ethos, por natureza, é um
comportamento que, enquanto tal, articula verbal e não verbal para provocar no
destinatário efeitos que não decorrem somente de palavras” (MANGUENEAU, 2008, p.
61, grifo do autor). A reflexão de Maingueneau reforça a prerrogativa de se
desestruturar o discurso pela sinceridade de Charaudeau, em que pode ser observado
na Fig. 1.

Figura 1 – Tweet da Knorr Brasil e sua participação no programa televisivo MasterChef

Fonte: Wiedemann (2015)

A Knorr Brasil, ao se comunicar na rede social Twitter, apostou no enunciado


popular “manda nudes”, gíria sarcástica criada em conversações na mídia social
Whatsapp para a troca de fotos nuas entre os participantes.5 Como reflexo desta
interação, a famosa marca de maionese Hellmann’s Brasil (também submarca da
Unilever) respondeu com caracteres simbólicos decorativos e uma frase com o texto
“Miga seje menas”, apoiando-se no dito popular “miga” (abreviação da palavra amiga)
e uma expressão vernacular, partindo de erros ortográficos, “seje menas” (como para

4
Segundo a Wikipedia, “MasterChef é um talent show de culinária brasileiro exibido pela Rede
Bandeirantes, baseado no consagrado formato original de mesmo nome exibido pela BBC no Reino
Unido” (WIKIPEDIA, 2015a).
5
Disponível em: QUAL É A GÍRIA? Gíria: Manda Nudes. Disponível em:
<http://www.qualeagiria.com.br/giria/manda-nudes/>. Acesso em 18 out. 2015.

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se dizer: não é para tanto, se contenha, não se exponha). O problema do ethos reflete
assim, a opinião da contradição pelo discurso da sinceridade, independente se é
semelhante em termos de afinidade: “[...] mesmo que o destinatário não saiba nada
antecipadamente sobre o ethos do locutor, o simples fato de um texto pertencer a um
gênero de discurso ou a certo posicionamento ideológico induz expectativas em
matéria de ethos” (MANGUENEAU, 2008, p. 60). Sendo assim, alguns blogs
comentaram a ação das marcas e os comentários se voltaram para a marca-mãe
Unilever:

Fogem completamente da verdade da marca, valores (duvido muito


que o envio de nudes esteja dentro dos valores da Unilever), do
posicionamento, da realidade do produto e muitas vezes vão longe
do target. Se não é pra vender mais, se não é pra ampliar o mercado,
se não é pra agregar valor à marca, então pra quê? (WIEDEMANN,
2015).

Possivelmente, a ligação entre as duas empresas, talvez por fazerem parte do


mesmo grupo corporativo, estabeleceu a reflexão de que as submarcas estão
construindo um discurso similar, baseado no gênero pastiche/debochado do meme de
internet6 disseminado nas redes sociais. Wiedemann (2015), ao escrever a matéria na
revista, cita a Unilever como referência de marca principal, mesmo que para o grande
público possa constar apenas duas marcas mundiais: a Knorr e a Hellman’s. As duas
marcas atuam na mídia como ingredientes essenciais para a cozinha da família,
construindo imagens e enunciados como “Knorr, para você fazer coisas
surpreendentes” e “Hellmann’s, combina com os momentos mais gostosos da vida”.
Diante do diálogo pejorativo construído pelo meme “Manda nudes”, a enunciação
defendida pelas marcas pode causar outros entendimentos, como o fálico, provocando
estranhamento do público. Em outro blog, vê-se a continuidade da polêmica sobre o
meme, quando a emissora Rede Record se utilizou da mesma estratégia em um post
no Twitter: “A imagem é realmente engraçada, mas acredito que o pedido e o meme
das nudes definitivamente não combine com a empresa – será que não entenderam o
meme? É estranho imaginar uma emissora querendo receber fotos de seus seguidores
pelados” (MAIA, 2015).
O sentido por trás da proliferação de memes e a ‘perda’ do discurso identitário
de marca parece corresponder ao que Lindstrom (2012) compara com a teoria dos

6
Meme de internet é quando uma expressão popular é utilizada por vários internautas em comentários
e interações.

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“sistemas adaptáveis complexos”, estudo que explica a conexão de comunicação de


seres irracionais, como o trabalho conjunto de cupins e voo sincronizados de pássaros,
em uma espécie de consciência coletiva: “em outras palavras, basta observar e imitar o
comportamento dos demais representantes da espécie para saber o que fazer”
(LINDSTROM, 2012, p. 132).
Isto explica a pesquisa da Leeds University em 2008, provando que a influência
de 5% de “indivíduos informados” poderia conduzir até duzentas pessoas a
acreditarem e a desenvolver a mesma atitude do seleto grupo. Estes indivíduos podem
ser considerados líderes na formação de opiniões. As redes sociais, certamente
projetaram o engajamento social em diversas ações, sendo que, este envolvimento é
atraído porque várias outras pessoas apoiam. (LINDSTROM, 2012). E é nesse sentido
que as marcas tendem a se comunicar. Dessa forma, pode-se deduzir que marcas,
possam estar incorporando as atitudes expressadas pelos consumidores para tentar
uma aproximação empática (semelhante). Porém, como observado, as ações
publicitárias baseadas no público podem comprometer a imagem da marca, por não
representar o estereótipo desenvolvido pela empresa, ou seja, não haver relação
direta com o discurso comportamental linguajeira: “Toda a interpretação é o
correlacionamento de dado texto com outros textos. O comentário. A índole dialógica
desse correlacionamento” (BAKHTIN, 2003, p. 400).
Inspirando-se na construção de marcas de moda, identifica-se uma prática de
revitalização de marca baseada nas tendências comportamentais dos consumidores,
como ocorreu em marcas centenárias, por exemplo, Prada e Cartier, estas que
enfrentaram crises de vendas e foram obrigadas a se reposicionar.7 É importante
entender que reposicionar marca não significa mudar estratégias de vendas, mas se
reconfigurar buscando uma parte de essência ordinária a fim de adaptá-la no contexto
contemporâneo e, de alguma forma, estabelecer uma comunicação compatível com o
gestor do negócio, como pode ser percebido no relato de Tungate (2005) sobre a
construção da marca Gucci, gerida pelo diretor criativo Tom Ford:

[...] durante grande parte de sua etapa em Gucci, a imagem pública


de Ford esteve especialmente vinculada a seu design. Ford se fundiu
de forma exitosa com a marca Gucci; como comentava um artigo na
Le Figaro, a “bandeira de Gucci (era) o próprio Tom Ford (...). A barba
de três dias, os trajes impecáveis, a camisa branca até o peito, o olhar

7
Disponível em: GQ GLOBO. Mercado de luxo sofre com a crise global, e marcas desvalorizam. 28 de
maio de 2015. <http://gq.globo.com/Videos/Moda/noticia/2015/05/mercado-de-luxo-sofre-com-crise-
global-e-perde-valor-de-mercado.html> . Acesso em 26 out. 15.

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ardente: Tom Ford desperta o desejo tanto em homens como em


mulheres (TUNGATE, 2005, p. 86 tradução nossa8).

O americano Tom Ford começou como estilista iniciante na Gucci e seu


crescimento na empresa possibilitou a compra da marca, sendo considerado aquele
que revitalizou a marca italiana, após desenhar uma coleção, considerada o
ressurgimento da marca em 1995. Assim, Ford é um dos exemplos cuja imagem
pessoal concretizou o crescimento da marca (TUNGATE, 2005; WIKIPEDIA, 2015b).
Pelas características sofisticadas e extremamente voltadas ao avanço monetário de
Tom Ford, Gucci se tornou uma marca referenciada pelo glamour e sua projeção
mundial é evidenciada até hoje, dez anos após a saída do diretor criativo da gestão.

Figura 2 – O diretor criativo Tom Ford e o discurso linguageiro da marca Gucci em 2000,
apresenta identificação ao comportamento do seu líder

Fonte: Coletivo Instalação, 2010; Gucci, 2000

Na Fig. 2, a condução e escolha do discurso na peça publicitária reflete os


elementos de sofisticação que compõem o cenário, com estilo sensual e provocativo
como foi observado por Tungate (2005). Embora as marcas de moda, obviamente,
sigam tendências comportamentais e estilísticas, percebe-se que há mudanças de
discurso no que tange à representatividade da marca nas peças publicitárias. Após a
saída de Tom Ford da gestão9 da Gucci, outros dois diretores assumiram: a Frida
8
[…] durante gran parte de su etapa en Gucci, la imagen publica de Ford estuvo estrechamente
vinculada en sus diseños. Ford se fusiono de forma exitosa con la marca Gucci; como comentaba un
artículo en Le Figaro, “el abanderado de Gucci (era) el propio Tom Ford (...). La barba de tries días, los
trajes impecables, la camisa blanca hasta el pecho, la mirada ardiente: Tom Ford despertaba el deseo
tanto en hombres como en mujeres” (TUNGATE, 2005, p. 86).
9
Sabe-se que na gestão de uma marca de moda, dificilmente há apenas um gestor no negócio. O
mercado das grandes marcas de luxo possui acionistas e diretores que controlam diferentes frentes do

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Giannini em 2011 e Alessandro Michele no início do ano de 2015. Dentre as mudanças


referidas na imprensa, faz-se referência em FFW (2015) sobre o discurso linguageiro do
novo gestor:

Sob a direção de Michele, a equipe redesenhou completamente a


coleção masculina em poucas semanas, criando looks andróginos,
sensuais e românticos. O desfile foi um divisor de águas, e muitas
pessoas do setor avaliaram que marcou um novo caminho na Gucci
(FFW, 2015).

Os elementos que constituem as características comportamentais do novo


gestor atribuem à marca um novo estilo, incorporado no perfil descrito acima como
androgenia, sensualidade e romantismo. No entanto, percebe-se a continuidade da
expressão cultural da marca, baseada na sofisticação, onde há o uso do brilho, e a
nobreza, adaptado no discurso imagético de nobreza (Fig. 2) e na aplicação de babados
na própria vestimenta (Fig. 3).

Figura 3 – O diretor criativo Alessandro Michele e o discurso linguageiro da marca


Gucci em 2015, apresenta identificação ao comportamento do seu líder

Fonte: Vogue; Gucci, 2015

Evidentemente, percebe-se que Ford, por ter características extravagantes, faz


com que as decisões discursivas da marca sejam extremamente sobrecarregadas de
elementos excêntricos. “Tomado pela leitura em um ethos envolvente e invisível,
participa-se do mundo configurado pela enunciação, acede-se a uma identidade de
certa forma encarnada” (MAINGUENEAU, 2008, p. 72). Ao se observar Michele, por

negócio. Porém, aqui se dedica ao diretor criativo como principal gestor de imagem, pois, neste caso, é
ele quem decide a representatividade da marca no discurso linguageiro.

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apresentar características mais simplistas e elegantes, conduz o discurso da marca


para um tom discursivo que evidencia o classismo. Partindo da análise, é evidente que
há relações na cultura e no comportamento do Eu-gestor para o Outro-empresa,
impulsionando o entendimento para o público de que a mudança da gestão constrói o
atributo do fiador, aquele que Maingueneau nomina como formador do estereótipo
social.

Considerações

De acordo com a proposta apresentada, percebe-se que a influência do Eu-


gestor na construção discursiva do Outro-empresa padece de uma condução no
linguajar que reflete características que evidenciam não só o modelo de gestão, mas o
estilo e a atitude do empresário que está à frente do negócio, podendo personificar
um ethos com características semelhantes a fim de conquistar um público ao qual se
identifica com este discurso. Ou seja, por este viés, o desenvolvimento da
comunicação não partiria do imaginado público-alvo, mas de uma representação
constituída de dentro para fora da organização. Neste sentido, esta ação promove o
discurso da sinceridade, visando à busca pela empatia de forma transparente, que, de
alguma forma, represente aquilo que a corporação se propõe enquanto marca.
Por outro lado, ao reparar o construto de uma comunicação instituída por
estratégias recorrentes em redes sociais ou na mídia em geral, esta pode comprometer
a imagem do ethos visado, daquela formada pelo público diante das representações
discursivas da marca, como logotipo, slogan, visão empresarial, comercial de TV, etc.
Nesse sentido, o ethos produzido se contradiz ao ethos visado, podendo estabelecer
uma relação com o diferente e causar um efeito de recepção de rejeição ao invés da
aceitação. Portanto, o estreito e indefinido caminho da alteridade pode representar
não só uma impotência do comunicador em testar discursos baseados em modismos,
como entender que a construção de uma marca tange no entendimento da essência
do negócio e é ela que dá sentido ao discurso.
As reflexões baseadas nos traços psicológicos e na corporalidade do fiador
podem traduzir a aplicação estabelecida pelo discurso da gestão em comunicação para
as mídias, que provocam a incorporação do público no sentido da identificação com a
enunciação. Assim, como referidos nos exemplos da marca Gucci os traços psicológicos
podem estar relacionados com o estilo aplicado no conteúdo discursivo e, a
corporalidade, envolvida na atitude dos personagens que representam a marca,
projetando um cenário com características específicas do gestor.

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No entanto, o dar sentido à essência da marca, deve ser evidenciada como um


item singular perante os atributos psicológicos e de corporalidade. No caso da Gucci, a
essência sempre retoma o luxo ostentatório inserido em elementos que refletem a
tradição da marca, como os móveis e modelagem da vestimenta. Inclusive as cores
entre as duas peças publicitárias podem estabelecer uma referência direta com as
características pessoais deste fiador. Se hipoteticamente a Gucci optasse por mudar
esta representação ordinária repentinamente, certamente provocaria efeitos de
alteridade que poderiam comprometer o percurso discursivo da marca. No entanto, a
cada novo gestor, o câmbio das representações discursivas diante dos traços
psicológicos e da corporalidade trata de identificar uma atualização no processo da
marca (benevolente), em que a mudança de gestor torna-se um ativo na enunciação
(virtude) que promove a construção do discurso de marca (prudente).

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Metodologia das ciências humanas. Trad. Paulo Bezerra. In: Estética
da comunicação verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 393-410.
CHARAUDEAU, Patrick. Identidade social e identidade discursiva, o fundamento da
competência comunicacional. In: PIETROLUONGO, Márcia. (Org.) O trabalho da
tradução. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2009. p. 309-326.
LINDSTROM, Martin. Pressão constante: O poder da opinião alheia. Trad. Rosemarie
Ziegelmaier. In: ______. Brandwashed. São Paulo: HSM Editora, 2012. p.130-158.
MAINGUENEAU, Dominique. O Problema do Ethos. In: POSSENTI, Sírio; SOUZA-E-SILVA,
Maria C. P. (Orgs.) Cenas da enunciação. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. p. 55-
73.
TUNGATE, Mark. El diseñador como marca. Trad. Belén Herrero. In: Marcas de moda.
Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2005. p.83-90.

Sites da Internet:
COLETIVO INSTALAÇÃO. 14 de set de 2010. Estilista da semana: Tom Ford. Disponível
em: <http://coletivoinstalacao.blogspot.com.br/2010/09/estilista-da-semana-tom-
ford.html>. Acesso em 18 out. 2015.
FFW. Fashion Foward. Alessandro Michele é o novo diretor criativo da Gucci
<http://ffw.com.br/noticias/moda/confirmou-alessandro-michele-e-o-novo-
diretor-criativo-da-gucci-147/>. Acesso em 24 out. 2015.
GQ GLOBO. Mercado de luxo sofre com a crise global, e marcas desvalorizam. 28 de
maio de 2015. <http://gq.globo.com/Videos/Moda/noticia/2015/05/mercado-de-
luxo-sofre-com-crise-global-e-perde-valor-de-mercado.html> . Acesso em 26 out.
2015.

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GUCCI. HomePage. Disponível em: <http://www.gucci.com/>. Acesso em 18 out. 2015.


HELLMANN’S. HomePage. Disponível em: <http://www.hellmanns.com.br/>. Acesso
em 18 out. 2015.
KNORR. HomePage. Disponível em: <http://www.knorr.com.br/>. Acesso em 18 out.
2015.
QUAL É A GÍRIA? Gíria: Manda Nudes. Disponível em:
<http://www.qualeagiria.com.br/giria/manda-nudes/>. Acesso em 18 out. 2015.
MAIA, Leo. BLUEBUS. 27 de maio de 2015. Tudo pela audiência nas redes sociais? A
Record pediu nudes! Disponível em: <http://www.bluebus.com.br/tudo-pela-
audiencia-nas-redes-sociais-record-pediu-nudes/>. Acesso em 18 out. 2015.
VOGUE. Media Vogue. Disponível em: <http://www.mediavogue.com/>. Acesso em 18
out. 2015.
WIEDEMANN, Eden. MEDIUM/Revista TRENDR. 15 de jun de 2015. A "imbecilização"
das marcas nas redes sociais ou MATEM AS CAPIVARAS! Disponível em:
<https://medium.com/trend-r/a-mongoliza%C3%A7%C3%A3o-das-marcas-nas-
redes-sociais-ou-matem-as-capivaras-a315bebed7b6>. Acesso em 18 out. 2015.
WIKIPEDIA. 17 de out de 2015. MasterChef (Brasil) Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/MasterChef_(Brasil)>. Acesso em 18 out. 2015a.
WIKIPEDIA. 31 de mar de 2015. Tom Ford. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Tom_Ford>. Acesso em 18 out. 2015b.

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A NOSTALGIA DO ENCONTRO: MEMÓRIA E FRAGMENTAÇÃO


NA OBRA MAMMA, SON TANTO FELICE, DE LUIZ RUFFATO

Roseli Bodnar1

Introdução

O artigo proposto surge de um desejo ontológico2, no sentido barthesiano, de


fazer um estudo do estereótipo e da identidade na construção das personagens da
obra literária Mamma, son tanto felice, de Luiz Ruffato3. A obra tematiza a
imigração/migração, a representação de estereótipos e a construção de identidade do
imigrante e sua descendência.
Parte-se da ideia, neste estudo, que para ler, com eficiência, a literatura,
devem-se fazer exercícios críticos que são definidos a partir de situações-problemas.
Portanto, problematiza-se a presença de personagens imigrantes/migrantes e lança-se
um olhar sobre essa representação4, partindo do pressuposto de que há presença de
traços estéticos na construção literária que podem ser discutidas a partir do
multiculturalismo. O pressuposto é que a busca da identidade é o fio condutor de
personagens em constante conflito existencial. Pode-se citar, por exemplo, Michelotto,
André e Francisco, figuras que serão estudadas ao longo do artigo, frutos de
problemáticas relações familiares e existenciais.
A teoria literária e correntes críticas da literatura receberam novos olhares e
vertentes a partir dos anos 90, dentre os quais os estudos culturais. Os teóricos dos
estudos culturais se dedicam a um conjunto de questões que abarcam desde os
estudos pós-coloniais até os estudos de gênero. Atualmente, os estudos culturais
privilegiam o discurso de minorias, em que se incluem vozes e sujeitos, que até então
eram marginalizados. Thomas Bonnici (2009, p. 280) discorre sobre o termo
multiculturalismo, ao frisar que “descreve o conjunto das diferenças culturais nas
sociedades contemporâneas. Define-se como o reconhecimento do diferente e o
direito à diferença, colocando em questão o tipo de tratamento que as identidades
tiveram e ainda têm nas democracias tradicionais”.

1
Doutoranda em Teorias Críticas da Literatura – PPG – Letras, Pontifícia Católica do Rio Grande do Sul –
PUCRS e bolsista CAPES. Porto Alegre – RS, Brasil.
E-mail: roseliteratura@hotmail.com
2
BARTHES, R. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
3
Vide referências.
4
Neste artigo, usa-se esse termo para pensar a pluralidade de novas subjetividades que estão surgindo
no panorama da literatura brasileira contemporânea, questionando não apenas a forma e os temas por
meio dos quais as minorias aparecem representadas, mas dando-lhes voz própria.

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Em sentido amplo, o multiculturalismo5 é a coexistência de múltiplas culturas


no mesmo país, cidade ou região. O teórico explica ainda que, “no contexto de um
mundo globalizado, pode assumir tantas facetas semânticas e tantas utilidades
filosóficas e políticas que muitas vezes se torna uma palavra tão equívoca que seu uso
põe o conceito em risco” (BONNICI, 2009, p. 280).
Patrick Imbert afirma que, “nesse sentido, a ficção dá voz àquele cuja existência
é negada pelo discurso oficial” (IMBERT, 2008, p. 59, tradução nossa)6. O
multiculturalismo pode ser visto pela ótica de direito das minorias e também como
uma política de Estado; segundo Bonnici “o multiculturalismo está intimamente ligado
à diversidade e à política do Estado, o qual, após a II Guerra Mundial, a derrocada do
Colonialismo, a fragmentação da União Soviética e a construção da Comunidade
Europeia, estabelece políticas de convivência no seu próprio país” (BONNICI, 2009, p.
280-281).
Will Kymlicka sobre essa questão afirma que:

Defendendo esse ideal de multiculturalismo liberal no meu trabalho


– particularmente no meu livro de 1995, Cidadania Multicultural:
Uma teoria liberal dos direitos das minorias – fiquei intrigado pelo
modo como este veio informar o trabalho de muitas organizações
internacionais, e eu gostaria de acreditar que a difusão global é
desejada e benéfica. Eu vi em primeira mão o processo pelo qual um
conjunto de conceitos e discursos está circulando pelo mundo
(KYMLICKA, 2004, p. 07-08, tradução nossa).7

Assim, o multiculturalismo possui esse viés político e de políticas públicas.


Como política, é um discurso de resistência à homogeneidade cultural. Todavia, há
uma distinção entre o multiculturalismo dos anos 80 e dos anos 90. Pois enquanto nos
anos 80 o multiculturalismo se volta para as políticas de ação afirmativa, nos anos 90
se incluem outros grupos minoritários, como os homossexuais.

de fato, a partir dos anos 1980, o termo “multiculturalismo” torna-se


uma palavra-código vinculada aos significantes que incluíam “ação
afirmativa” contra “raça” e racismo, enquanto nos anos 1990 o
significado se estende a questões de inclusão de homossexuais e
lésbicas. Portanto, o multiculturalismo é um conjunto de políticas
para a acomodação de povos diaspóricos (não brancos) e de

5
No senso comum, a palavra multiculturalismo é utilizada de forma equivocada e, muitas vezes,
empregada para se referir a comidas típicas, vestuário, festas etc.
6
In this sense, fiction gives a voice to the other whose existence is denied by official discourses (IMBERT,
2008, p. 59).
7
Having defended this ideal of liberal multiculturalism in my own work-particulary my 1995 book
Multicultural Citizenship: A Liberal Theory of Minority Rights--I have been struck by the way it has come
to inform the work of many international organizations, and I would like to believe that is global
diffusion is desirable and beneficial. I have watched first-hand the processes by which a set of concepts
and discourses are circulating around the world (KYMLICKA, 2004, p. 07-08).

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minorias, ou seja, uma resposta liberal para contornar a realidade


racializada destas sociedades e frequentemente para esconder a
existência do racismo institucionalizado (BONNICI, 2009, p. 281).

Verifica-se que há uma distinção entre a crítica multicultural radical e a


tradicional, pois “a crítica multicultural radical salienta o poder, o privilégio, a
hierarquia das opressões e os movimentos de resistência. [...] a crítica multicultural
tradicional analisa as teorias de diferença e da administração da diversidade
geopolítica nas antigas metrópoles coloniais e nas suas ex-colônias” (BONNICI, 2009, p.
281).
É, portanto, um discurso globalizado porque compreende a diáspora moderna,
os imigrantes e sua convivência, populações minoritárias e hegemonia cultural, e
problemas de gênero, raça, etnia e classe. A partir disso, compreende-se, então, que o
multiculturalismo ou o plurismo cultural é um conceito que se refere à existência de
várias culturas num determinado local.
O multiculturalismo ganha novos e diferentes contornos, em diferentes
contextos, cada país e suas especificidades, como o Brasil, o Canadá, os EUA, a
Espanha, a França etc. Ainda, segundo Homi Bhabha (1998, p. 25), “o multiculturalismo
deve ser acoplado ao hibridismo: a diferença cultural é dinâmica, mutante e aberta”.
Frisa-se que o Brasil é uma nação multicultural, embora não tenha uma política
de estado que reconheça o multiculturalismo como ação afirmativa. Dessa forma,
sabe-se que tanto o Brasil como a América Latina tem um longo caminho a trilhar em
busca de políticas e de vínculo aos direitos humanos que garantam voz e direitos às
minorias. Kymlicka, ao abordar essas minorias, diz:

Eu estou usando multiculturalismo como um termo geral para dar


conta de uma gama de políticas designadas para prover algum nível
de reconhecimento público, apoio ou acomodação para grupos
étnico culturais não dominantes, mesmo que esses grupos sejam
“novas” minorias (imigrantes e refugiados) ou “velhas” minorias
(minorias historicamente acomodadas e populações indígenas). Isso
dá conta de muitos tipos diferentes de políticas para diferentes tipos
de minorias, e muito do livro diz respeito ao exame de como normas
internacionais lidam com essas diferenças. O que todos eles têm em
comum, no entanto, é que vão além da proteção dos direitos civis
básicos e direitos políticos assegurados a todos os indivíduos num
Estado-liberal-democrático, para também se estenderem a um nível
de reconhecimento público e apoio para minorias étnicas culturais,
mantendo e expressando suas identidades distintas e suas práticas
(KYMLICKA, 2004, p. 16, tradução nossa).8

8
I am using multiculturalism as an umbrella term to cover a wide range of policies designed to provide
some level of public recognition, support or accommodation to non-dominant ethnocultural groups,
whether those groups are ‘new’ minorities (e.g. immigrant and refugees) or ‘old’ minorities (e.g
historically settled national minorities and indigenous peoples). This covers many different types of

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Após fazer essas considerações teóricas, surge uma inquietação. Como analisar
a presença do multiculturalismo no discurso literário? Como aplicá-lo como uma teoria
ou crítica literária?

Mamma, son tanto felice: ecos, fragmentos e memória

A representação ficcional do multiculturalismo não é expressiva na literatura


brasileira, todavia, percebe-se um aumento da temática nas obras literárias
contemporâneas que trabalham questões relativas à diversidade racial e à sexual. Uma
dessas obras é Mamma, son tanto felice, de Ruffato, que representa, ficcionalmente, a
cidade de Rodeiro e marca a presença de uma minoria, de imigrantes italianos e seus
descendentes.
Esse romance apresenta uma forma de construção literária experimental9 tanto
pela fragmentação textual como por sua não linearidade estrutural e narrativa. Divide-
se em seis histórias com títulos e epígrafes que dialogam com o texto. Essas histórias
apresentam ritmos narrativos e estruturas internas diversas. A linguagem utilizada é
coloquial, com um intenso refinamento linguístico, com invencionices verbais, uso de
neologismos e regionalismos. Constitui-se, por memórias fragmentadas e saltos
temporais, contendo personagens com rica dimensão psicológica. Quanto à questão
temática, defende-se que embora tematize a imigração, por meio de um resgate da
memória, ultrapassa seus limites, retratando um tema universal, a existência humana.
Pela impossibilidade de se trabalhar com todas as histórias, como recorte, opta-
se por enfocar apenas a primeira e a última narrativa, sendo, respectivamente, Uma
fábula e O segredo. A primeira história Uma fábula retrata uma pequena comunidade
italiana no interior de Minas Gerais: um pai vingativo e violento acompanha o
desmoronamento da família. Tem um título instigante, emergindo algumas questões:
O que é fábula10? Por que é intitulado de fábula? Pode-se pensar que o escritor quer
nos dar uma pista, desde a primeira história, de que se trata de uma ficção e que ela
deve ser lida como tal. Essa história é fragmentada e não linear, misturando memória e
tempo presente, dá saltos e retornos temporais, apresentando personagens que
entram e saem da história sem contextualização dos porquês. Os personagens são
estereotipados, tanto homens como mulheres e a sociedade retratada é patriarcal. O
homem é bruto, violento e impiedoso e a mulher é calada, submissa e vítima dos

policies for different types of minority groups, and much of the book is concerned with examining how
international norms address these differences. What they all have in common, however, is that they go
beyond the protection of the basic civil and political rights guaranteed to all individuals in a liberal-
democratic state, to also extend some level of public recognition and support for ethnocultural
minorities to maintain and express their distinct identities and practices (KYMLICKA, 2004, p. 16).
9
Uma questão importante é a utilização de recursos gráficos no livro, há a alteração de fontes e de
formatação. Estes marcam os diálogos, os flashbacks e os fluxos de consciência.
10
O termo fábula, em sentido lato, significa uma história ficcional que se narra ou representa.

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desmandos e do desamor masculino. Nessa história temos como personagem principal


Michelotto, um migrante descendente de italianos que sai do Piauí e vai morar num
lugarejo chamado Rodeiro - MG. Para marcar uma passagem de tempo na narrativa,
temos o personagem, posteriormente, chamado de Michelotto velho. O narrador é
onisciente na maior parte da narrativa, mas em alguns momentos esse foco é
deslocado para 1ª pessoa, para André, filho de Michelotto. O narrador faz uma
descrição física do migrante Michelotto, caracterizando-o como descendente de
italianos ao descrevê-lo: “[...] bigodes ruivos debruçados por sobre a boca, impregnava
os já ralos cabelos louros, os olhos azuis, a roupa de algodão ordinária [...]” (RUFFATO,
2005, p. 17), e fica-se sabendo que Michelotto compra as terras na roça de Minas
Gerais, com o dinheiro que ganhou no trabalho em cafezais, no Piauí, e que não tem
nenhum laço familiar, que é “[...] solto no mundo, desmamado de pai e mãe”
(RUFFATO, 2005, p. 16).
Michelotto, “sobrinho”11 de Antônio Finetto, comprou as terras, começou a
plantação e construiu um casebre com seis cômodos. Quando a casa ficou pronta, saiu
na colônia [...] caçando a eva que iria povoar aquele mundo virgem de vozes. Demorou
um nada para preferir uma menina-Bicio, Chiara, recém-moça, catorze anos, que, pela
largura das ancas, mostrava-se boa parideira, embora magra e intimidada, corpo
forrado de sardas, e fraca da cabeça, como descobriria depois, já fora-de-hora para
desfazer o negócio (RUFFATO, 2005, p. 17).
Michelotto ‘caçava’ a ‘eva’ que iria povoar aquelas terras. O nome próprio ‘eva’
está grafado com letra minúscula, denotando o papel subalterno da mulher e a
inscrevendo entre os substantivos comuns. Pela leitura sabe-se que Michelotto levou
Chiara para o casebre, prendeu-a em um quarto imundo e a engravidou,
consecutivamente, durante anos. Tiveram ao todo 13 filhos, oito filhas e cinco filhos.
No entanto, enquanto as filhas mulheres cresciam fortes e saudáveis, os filhos homens
iam morrendo por vários motivos e doenças. Dos cinco meninos só sobrevivem dois:
André e Pedro. É o parto difícil de André que abre a narrativa.
Michelotto velho costumava dar nomes de parentes aos filhos e, de certo
modo, profetizava os mesmos destinos:

[...] costumava apascentar os nenéns: seis, sete meses passados, se o


raio continuava a berrar na hora de mamar, encilhava o cavalo numa
sexta-feira, e terno-gravata, ia na Rua registrar o novo Michelotto,
nomes brincando na cabeça. Frente ao tabelião, à pergunta, “Como é
que vai chamar?”, acabrunhava-se, e, para não se vender de xucro,
sacava o primeiro parente e o homenageava aliviado (RUFFATO,
2005, p. 15).

O narrador descreve a relação de Michelotto com os filhos e a não nomeação


desses dentro do lar.

11
Provavelmente essas relações de parentesco se davam na colônia porque as famílias eram
descendentes de italianos e por isso se tratavam como parentes.

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E eram tantos nomes, tantos os rostos e tão pouca ciência, que


renunciou a singularizar a fisionomia de cada um daqueles bichinhos
que habitavam os corredores da casa. Quando necessitava, ordenava,
“Filho, isso assim e assim”, “filha, isso assim e assado”, e candeava
suas afeições, mais pelas criações e pela lavoura que pela prole, que
aquelas dão trabalho, mas alegrias, e essas decepções apenas
(RUFFATO, 2005, p. 16).

Cabe ressaltar que ao longo da narrativa, primeiro os filhos tinham nomes


repetidos, iguais aos parentes que eram “homenageados”, depois passaram a ser “sem
nomes” dentro do cotidiano familiar. É possível observar o cíclico, ou seja, os mesmos
nomes, os mesmos destinos. Assim, temos pistas de que André e Pedro irão repetir o
destino do velho Michelotto. Infere-se ainda que Michelotto demonstra alguma
afeição pela lavoura e pelos animais e nenhuma pelos filhos. Essa questão fica ainda
mais evidente quando se refere às filhas mulheres:

[...] as meninas, que não serviam para nada, essas engordava e


encaminhava para os casamentos, enjeitando-as logo que regravam,
receio das desgraças vindouras que toda mulher carrega escondidas
na intimidade das roupas, como aquela, cujo nome não se pronuncia,
mas cujo infortúnio até a poeira dos atalhos sussurra (RUFFATO,
2005, p. 19).

O estereótipo das filhas é marcante na narrativa, pois o pai deixa claro que elas
não serviam para o trabalho na roça e na lida com os animais, e o trabalho doméstico
não era valorizado, sendo totalmente desconsiderado. O casamento era arranjado, em
que as filhas eram dadas em matrimônio logo que sangrassem, pois o pai temia a
desonra pelo sexo e a possibilidade de gravidez enquanto solteiras.
Na sequência, a narrativa traz um personagem não imigrante, claramente um
brasileiro e carioca. Esse forasteiro trabalhava como caixeiro viajante e fugiu com a
filha mais velha de Michelotto, resultando numa tragédia. Michelotto, homem bestial
e violento, vai ao encalço da filha e a encontra numa pensãozinha em Astolfo Dutra,
uma cidadezinha na saída para o Rio de Janeiro. Diante da chegada de Michelotto, o
caixeiro salta pela janela e foge a nado pelo rio Pomba, “enquanto a moça, ele
arrancou de dentro do quarto, arrastou pelos cabelos, enlaçou numa corda e saiu
puxando, ele montado, ela, nem pio, a pé, olhos recurvos” (RUFFATO, 2005, p. 19).
Michelotto age como macho autoritário, rei absoluto na sua casa, remetendo a
uma sociedade patriarcal e de absoluto poder masculino. Diante da fuga, do ato
amoroso consumado, tem-se a morte trágica da moça sem nome:

[...] na subida da Serra do Onça, apeou, meinho do dia, amarrou o


cabresto num pé-de-pau e levou a madalena amarrada para o alto do
pasto, sol a pique, desatou o nó, Vai, desgraçada, vai embora, vai pra
bem longe, anda!, berrou, empurrando-a por entre touceiras de

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capim-gordura, ela, chorando, Pai, ele, apontando a espingarda, Vai,


desgraçada, estou mandando, ela, Pai, e pôs-se a correr,
desesperada, quando então a explosão de um tiro suspendeu os
barulhos da tarde e os dois empregados, assustados, viram o Pai
retrocedendo calmo na direção do cavalo, pegando o enxadão,
Façam uma cova bem funda, pros bichos não comerem, é carne
minha, e botem uma cruzinha em cima, é carne minha, espero na
Três Vendas, e quando lusco-fusco, lá aportaram, acharam bêbado o
Michelotto velho, escorado numa densa fumaça azulada de cigarro-
de-palha (RUFFATO, 2005, p. 20).

Nota-se a frieza e a crueldade do pai ao assassinar a filha e ao fato dele remeter


à figura feminina, Madalena (Maria Madalena - a prostituta), das escrituras sagradas.
Essa “madalena” é com letra minúscula como todas as referências as figuras femininas
na narrativa.
O leitor fica ciente do currículo de matador de Michelotto e dos motivos banais
das mortes, pelo foco narrativo de André:

Fosse somente essa a única morte inscrita na sua testa, já estaria


condenado para todo o sempre, mas não, afundou o punhal no peito
de um compadre litigante, que apaniguando um negro tirador de
lenha em terra sua, mostrou ele mesmo sua cobiça, e ainda outra,
um meeiro fuinhoso, que enquizilou na partilha de uma ressoca, ele
mais um filho graúdo, e vieram batendo cabeça estrada enfora até o
rapaz pegar um fueiro e acertar o flanco direito do Pai, que tirando a
garrucha, mandou dois tiros no homem e um no moço, que sumiu,
gotas escuras na poeirama (RUFFATO, 2005, p. 20).

Outra rememoração sob o foco de André descreve a vida dura que Chiara, sua
mãe, teve ao lado do pai:

Na tarde em que avistou, do alto do estreito caminhinho que,


abandonando a estrada de chão o que liga Rodeiro à Serra da Onça,
levava àquele fundo de grotão, a casa seis cômodos náufraga no
fundo da perambeira, a ampulheta da vida de Chiara Bicio, a
Michelotta velha, inverteu-se: ela começou a morrer. E esgotou-se
hora a hora, a saúde murchando na sangra estúpida de partos, e o
juízo escapando por entre as fímbrias das úmidas árvores que
uivavam nas noites intermináveis. De começo, pensava, pelo menos a
visitaria a família, mas, desatinou, o Pai rompeu com os Bicio,
assenhorando-se de que parente nenhum viria rondar coisas suas,
algemando-a desamparada, minguando num quarto de portas e
janelas trameladas por fora, de onde saiu, trinta e cinco anos, rija,
enrolada numa toalha-de-mesa, tão pássara que até o vento insistia
em carinhá-la em sua derradeira viagem de carro-de-boi contador até
a igreja de São Sebastião. (RUFFATO, 2005, p. 21).

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É o poder masculino subjugando a mulher e tratando-a como um ser inferior e


com as piores agruras por mais de vinte anos. Michelotto descreve Chiara como “fraca
da cabeça”, tentando justificar a motivação por tê-la mantido trancada num quarto
escuro e sujo, com abusos e privações.
A partir da morte de Chiara, Michelotto velho vai se desumanizando e abriga-se
entre os animais, reforçando a identidade de homem selvagem e sem nenhuma
compaixão com o sofrimento alheio “depois que enterraram a Louca, o Pai, besteiro,
concordando na diáspora dos sobrantes, dispersos aos quatro-cantos Michelottos e
Bicios, sitiou-se na fazendola, homiziando-se entre os animais, comendo, bebendo e
dormindo com eles, bicho-ele-mesmo [...]” (RUFFATO, 2005, p. 23).
Depois da morte de Chiara, há uma passagem de tempo e tem-se a
personagem André já moço, trabalhando nas fazendas, frequentando bordéis e
sonhando com a vida na cidade grande. A vida da mãe prisioneira e os maus tratos a
ele marcam-no profundamente. No final da história, numa quermesse de festa junina
de igreja, o irmão dele, Pedro, apresenta-lhe um homem desconhecido chamado
Salvador que contrataria a ambos para um serviço: “Pedro, Pedro, falou, sôfrego,
acompanhando com dificuldades os passos do irmão no meio do povo, Pedro, o quê
que esse Salvador fez que vai precisar tanto assim da gente? e o irmão, tentando não
perder de vista o homem, respondeu, apressado, ele não fez nada ainda...vai fazer
[...]” (RUFFATO, 2005, p. 25).
André, ainda na ausência de malícia da recém-saída adolescência, não
desconfia das intenções de Salvador em transformá-lo num matador como foi o velho
Michelotto. A história fecha seu ciclo numa repetição de infortúnios e violência, numa
cíclica roda viva de destinos.
Já, a última história, O segredo, narra a vida de homem que guarda um
“segredo” e num desatino encomenda a própria morte. Essa história compõe-se de
vinte e cinco fragmentos numerados em algarismos romanos. Possui riqueza vocabular
e um belo trabalho estético com a linguagem e com o formato do texto, inovando
graficamente a narrativa. Nessa narrativa, o personagem principal é Francisco ou Chico
- chamado de “o professor” - que ouve os compositores Bach e Beethoven, e
questiona-se qual das óperas ele deve escolher. Ao longo da leitura, descobre-se que
ele escolhe a trilha sonora de sua morte, ficando entre a cegueira de Bach ou a surdez
de Beethoven.
Essa história difere-se da primeira analisada, pois nessa a personagem se
desloca do campo para a cidade, por meio de um padre francês que convence o pai do
então menino Chico a mandá-lo para a escola e depois para o seminário. O professor
rememora o passado por meio de flashbacks e alguns fluxos de consciência. Fica no
limiar da memória e do delírio em várias passagens do texto.

Nosso divertimento eram aos sábados. À tarde, íamos jogar pelada


nalguma cafua. Voltávamos sempre estropiados: uma canela
derrancada, uma felpa na unha do dedão do pé, um tornozelo
inchado... E, de vez em quando, garrávamos no truco e invadíamos a
madrugada. E minha mãe fazia uma baciada de pipoca e uma chaleira

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de café à boca... chegava a engasgar de tanto rir das nossas


palhaçadas... Éramos tão inocentes...Tão ignorantes...Tão
...felizes...Ah!, os tempos felizes de minha miséria. [...] Um dia
apareceu por lá um padre, francês, o padre Marcel, Marcelo. Eu
estava de cama, tinha tido um febrão à noite, não me lembro por
quê, ele chegou de charrete, cumprimentou minha mãe, encostou a
barriga na meia-parede que separava a cozinha do quintal, comeu
broa de milho acabado de ser cozida, perguntou pelas criações, falou
do tempo, das suas expectativas em relação à comunidade e ficou
esperando meu pai descer do pasto (RUFFATO, 2005, p. 136 e 160).

Este trecho marca a presença do narrador em 1ª pessoa como sendo Francisco.


Por meio dele sabe-se de sua infância pobre e feliz, ao lado da mãe e irmãos.
Percebem-se alguns traços que vão marcar o olhar saudoso do menino e a conflituosa
vida do professor depois de adulto. Há um sentimento de pertencimento que o
menino tinha na infância, tanto com a mãe como com os irmãos, numa feliz vida
familiar. Essa identidade e o sentimento de pertencimento vão sendo perdidas ao
longo do texto. Aos poucos, a criança feliz vai se transformando num adulto solitário,
desconfiado e que não consegue se relacionar com outras pessoas. Esse é o caminho
que a personagem vai trilhando, primeiro como professor, depois escritor, para
finalmente ir desumanizando-se, ao se referir a si próprio como o terno-gravata.
Somente na metade da narrativa o nome do professor torna-se conhecido: Francisco
Pretti. Lê-se: “E o Meritíssimo Senhor Juiz prosseguiu: - Senhor Francisco Pretti: o
senhor se declara culpado ou inocente?” (RUFFATO, 2005, p. 154). O nome é
mencionado por um juiz durante um delírio de grandeza do professor, em que se
imagina julgado, condenado e morto pela sociedade, por motivos banais. Assim o
leitor fica sabendo que o professor é o menino Chico, descendente de italianos, que na
infância morava na roça em Rodeiro.
Chico perde aos poucos o contato com os pais e com os irmãos que, por não
terem estudado e por estarem em condições financeiras precárias, são desprezados
por ele, agora estudado, supostamente intelectualizado e “quase” padre. Esse fato
fica bem nítido na ocasião da morte da mãe: “alguns anos depois, morreu. Derrame...
Revi meu pai. Revi meus irmãos. Tive vontade de ficar por ali com eles, mas... Já não
pertencia àquele universo” (RUFFATO, 2005, p. 25).
Outra passagem marca ainda mais a perda das referências do personagem
Chico, um homem em conflito consigo mesmo e numa crescente crise existencial que
vai se incorporando à sua existência, ora com crises de identidade ora com psicoses
delirantes:

Foi nesse dia que compreendi que já nada restava da família para
mim. Meus irmãos estavam chafurdando na pobreza e na
ignorância...E eu...mal e mal podia me considerar um privilegiado:
tinha um teto, comida, roupa lavada...estudava...ia ser padre. Ia ser
alguém na vida...Ilusão! Mal sabiam eles que aquilo era minha
perdição. Por que quanto mais conhecia, mais queria conhecer. E,

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quando mais conhecia, mais infeliz me tornava...sou um homem


só...um homem só no mundo...Perdi minhas antigas referências, o
sítio, meus pais, meus irmãos, a paisagem da minha infância...E não
acrescentei nada a isso (RUFFATO, 2005, p. 162).

Há diálogo com as escrituras sagradas, com a via crucis de Cristo. E em um


surto de grandeza, acometido pelo terror de que descobrissem seu segredo, ele se
imagina julgado e condenado, igual a Cristo, percorrendo as ruas da cidade, com um
imenso madeiro nas costas. Neste cenário, aparece um desconhecido: Simão, o louco.
Ele socorre Chico quando este está caído no chão, humilhado e espancado.
A história dá saltos no tempo e faz retornos temporais por meio de flashbacks.
Assim, essa narrativa não necessita de uma leitura que, obrigatoriamente, siga a
numeração existente ou que seja sequencial, já que oferece diferentes possibilidades
de leitura. Por exemplo, o fragmento I é o final do texto, em que o professor contrata o
matador, primeiro para matar Silvana (sua companheira) e depois para ele mesmo. A
história toda é cíclica e o personagem repete os mesmos atos e hábitos, sendo possível
visualizar a rotina metódica, quase esquizofrênica dele.

6 horas – O professor acorda, ajoelha-se junto ao pequeno nicho


iluminado por uma luzinha azul, onde repousa uma imagem de São
José Operário, de quem era devoto. Após recitar o credo e o Pai-
Nosso, dirige-se ao quintal para lavar o rosto e escovar os dentes no
tanque de roupas. Depois, volta, veste um dos cinco ternos de tergal,
rigorosamente idênticos na cor, no uso, no caimento.
6h10min – Dona Conceição entra pela porta da cozinha, acende o
fogo, coloca a chaleira de água para ferver e arma o coador de café.
Enquanto, isso, estende a toalha xadrez sobre a mesa, espalha sobre
ela a manteigueira, a xícara, a leiteira e o cesto com dois pãezinhos
franceses que acabou de comprar na venda da esquina [...]
(RUFFATO, 2005, p. 128).

Francisco demonstra apego à rotina imutável e egocentrismo exacerbado. Ele


interage pouco, com as pessoas que o cercam, tanto nas relações familiares (pai, mãe
e irmãos) como nas sociais (dois amigos, o padre, Dona Conceição e Silvana). Nas
relações sociais são marcantes apenas duas relações estabelecidas por ele, com Dona
Conceição, sua empregada, por mais de 15 anos, que morre repentinamente. E,
decorrente dessa relação, se estabelece outra, com a menor Silvana (filha de
Conceição), que o professor conhece indo até a casa dela.

O senhor, que ali se encontra sentado agora, explorou durante


décadas uma pobre empregada doméstica, analfabeta, crente da
bondade de seu patrão, que, pensava ela, lhe acorreria no momento
de extrema necessidade. Qual o quê! No leito de morte, nada lhe foi
oferecido. Nada! Nenhum dos direitos – que todos temos – e
nenhuma assistência – a que até aos animais ofertamos – que foi

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dada. Mas, a maldade não se resumiria a esse ato. Vendo


sua...escrava...tomou a mão da filha, atordoada pela morte recente
da mãe, e conduziu-a aos porões do Inferno (RUFFATO, 2005, p. 154).

Não se sabe nada a respeito do caráter de Silvana e de seu comportamento, já


que todas as informações são de um narrador não confiável, em 1ª pessoa, que se
revela ser o próprio Francisco. Ele compara Silvana a uma cobra que se instalou na sua
cama e na sua vida. A partir disso, ele faz uma reminiscência a uma história da mãe, na
infância, quando encontrou um ninho de cobras debaixo da cama.
O professor conta seu “segredo” para Silvana, que aparentemente o espalha,
então o professor, por isso, decide contratar um matador para assassiná-la:

“Bem, então... Estamos conversados... É uma moça...” “Moça?


Mulher? De jeito nenhum, mulher eu não mato.” “Não?” “Não.
Mulher dá muito trabalho... De jeito maneira!” E deu a conversa por
finda. Ergue-se dirigiu-se ao balcão para suspender a coca-cola.
Suando copiosamente, o professor correu desajeitado atrás do rapaz.
“Espera ai, espera ai”, disse, agarrando o braço do homem jovem. Ele
olhou de cima em baixo, ‘O senhor não entendeu?” “Entendi,
entendi, claro que entendi... Mas é que tem uma...opção...”
“Opção?” “É, um outro jeito de resolver o problema... Vamos voltar,
vamos sentar de novo...conversar com vagar...” E ambos se dirigiram
de volta à mesa. O professor bebeu o resto do vinho num só gole. O
rapaz acendeu outro cigarro. “Que jeito?” “Essa moça...essa...que te
falei...ela...ela mora com um homem...um senhor...então...a gente
troca...ao invés de...de... de dar um jeito nela...a gente...pode...dar
um jeito nele...entende? A gente esquece ela...e...” “Por mim, tudo
bem. E assim o patrão também não perde a viagem, não é mesmo?”
“È verdade...é isso mesmo...não perco” (RUFFATO, 2005, p. 168).

O professor tenta contratar o serviço, mas diante da recusa do matador, ele


oferta outra solução, matar o homem que mora com Silvana, ou seja, ele próprio.
Diante disso, o professor orquestra sua morte, restando a ele escolher a trilha musical
para compor essa cena de morte. Para tal ele escolhe a “Chacona da Partita número 2
para violino Solo em Ré Menor (BWV 1004), obra do compositor alemão Johann
Sebastian Bach, nascido perto de Eisennach em 1685 e falecido em Leipzig em 1750.
Morreu cego” (RUFFATO, 2005, p. 130). Cabe aqui destacar a relação entre a cegueira
do músico (física) e a cegueira da personagem (emocional), e a total escuridão na hora
de sua morte, causada pela falta de luz. O professor não contava com esse imprevisto:
a chuva torrencial e a falta de luz, que tiraria o brilho do seu gran finale. Afinal, o
professor imaginava seu enterro com pompa e circunstância, num dia ensolarado, e
num sábado.
Para concluir, neste artigo, buscou-se analisar a presença do estereótipo e a
construção da identidade como marcantes em dois momentos: o primeiro dos
imigrantes, sua luta pela sobrevivência e a busca para se adequar aos costumes e

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cultura do novo país; o segundo dos filhos e netos de imigrantes, que já são os
migrantes, que migram do campo para a cidade ou para regiões diferentes dos pais e
avós. Neste deslocamento, há um choque cultural, a não aceitação e os conflitos
familiares que os jogam para a margem cultural e social. A repetição e o cíclico
remetem à ideia de que a vida e os infortúnios desses imigrantes se reproduzem
primeiro com os pais na roça e depois com os filhos na cidade. A construção desses
personagens traduzem existências e denunciam vidas, dando voz a sujeitos
marginalizados e muitas vezes, esquecidos socialmente.

Referências

BHABHA. Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998


BONNICI, Thomas. Teoria e crítica pós-colonialistas. In: _____; ZOLIN, Lúcia Osana
(orgs.) Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas.
Maringá: Eduem, 2009.
IMBERT, Patrick. Theories of inclusion and exclusion in knowledge-based societies:
Canada and the Americas. Ottawa: University of Ottawa, 2008.
KYMLICKA, Will. Multicultural odysseys. Oxford: University Press, 2004.
RUFFATO, Luiz. Inferno provisório. Volume I: Mamma, son tanto felice. São Paulo:
Editora Record, 2005.

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O ESTUDO DO HUMOR NONSENSE:


DAS METARREGRAS DE COERÊNCIA AOS BLOCOS SEMÂNTICOS

Roseméri Lorenz1

Introdução

O principal objetivo do ensino de língua portuguesa é o desenvolvimento da


competência linguística do aluno, tornando-o proficiente e autônomo na leitura e na
produção de textos. Para alcançar tal objetivo, revela-se essencial que o texto seja
tomado como unidade de sentido, como discurso. É fundamental refletir, em sala de
aula, sobre o funcionamento da linguagem. Essa contínua reflexão leva o aluno a
operá-la de modo global, ou seja, apropriar-se dos recursos de expressão linguística,
orais e escritos, e utilizá-los de forma consciente. E nada melhor do que tornar esse
processo atrativo e prazeroso, como por meio da análise de textos humorísticos.
A opção por adotar tal gênero de texto como objeto de estudo, entretanto, não
se restringe à mera busca por um recurso didático agradável, mas também se deve ao
fato de que, em sua produção, o fenômeno do humor vale-se de múltiplos
mecanismos linguísticos, cujo estudo ainda necessita aprofundamento. Esse é o caso
do humor advindo da incoerência, ou nonsense.
Sendo assim, este trabalho busca na Teoria dos Blocos Semânticos (TBS),
apresentada por Marion Carel, a partir dos fundamentos da Teoria da Argumentação
na Língua (ADL), desenvolvida por Oswald Ducrot e Jean Claude Anscombre, bases
teóricas para a compreensão e descrição linguística dos mecanismos de construção do
humor nonsense, tendo em vista a melhoria da qualidade do ensino de Língua
Portuguesa, principalmente no que se refere ao trabalho com a leitura, a interpretação
e a produção de textos.
Para isso, irá estabelecer uma interação com os estudos desenvolvidos por
Michel Charolles, de modo a demonstrar como a TBS pode explicar e descrever
linguisticamente cada forma de violação das metarregras de coerência, por ele
apresentadas. Tal procedimento será realizado por meio da análise de segmentos da

1
Acadêmica do Doutorado em Letras da UPF. Mestre em Letras - Área de Concentração Estudos
Linguísticos/UPF. E-mail: lorenz@upf.br

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obra A cantora careca, do dramaturgo francês Eugène Ionesco, clássica peça do teatro
do absurdo.
Com a pretensão de tornar o estudo mais claro e sistematizado, primeiramente
serão desenvolvidos os princípios e conceitos teóricos que fundamentam este trabalho
para, em seguida, proceder à referida análise.

1 Pressupostos teóricos

1.1 As metarregras de coerência

Segundo Michel Charolles (apud GALVES, 1997), para que um texto seja
reconhecido como bem formado por um receptor, ele deve atender a determinadas
condições, denominadas metarregras de coerência. São elas: metarregra de repetição,
de progressão, de não-contradição e de relação.
A primeira delas, a de repetição, estipula que, para um texto ser micro ou
macroestruturalmente coerente, deve conter, em seu desenvolvimento linear,
retomadas de elementos já enunciados. Tais retomadas são garantidas por meio de
inúmeros recursos linguísticos como as pronominalizações, as definitivizações, as
substituições lexicais, as recuperações pressuposicionais, as retomadas de inferências.
A segunda metarregra, a de progressão, diz respeito ao acréscimo de novas
informações ao que já foi dito. Assim, a progressão complementa a repetição, pois esta
garante a retomada de elementos, enquanto aquela garante que o texto não se limite
a repetir indefinidamente o que já foi colocado. Dessa forma, equilibra-se o que já foi
dito com o que se vai dizer, garantindo a continuidade do tema e a progressão
semântica (ou remática). Essas idas e vindas permitem construir textualmente a
coerência.
A metarregra de não-repetição, por sua vez, estabelece que, num texto
coerente, não deve ser introduzido “[...]nenhum elemento semântico que contradiga
um conteúdo posto ou pressuposto por uma ocorrência anterior, ou deduzível desta
por inferência” (CHAROLLES apud GALVES, 1997, p.59-60). Ou seja, o texto não deve
destruir a si mesmo, tomando com verdadeiro aquilo que já foi considerado falso, ou
vice-versa. As contradições podem ser enunciativas, inferenciais e pressuposicionais,
de mundo(s) e de representações do (ou dos) mundo(s).
Por fim, a metarregra da relação defende que, numa sequência ou num texto
coerente, os fatos e conceitos necessitam estar relacionados. Essa relação deve ser
suficiente para justificar sua inclusão num mesmo texto. Essa regra é também de

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natureza pragmática, pois para que uma sequência seja reconhecida como coerente, é
necessário que as ações, estados ou eventos que ela denota sejam percebidos como
adequadas por um receptor. Tal reconhecimento de uma ligação de pertinência factual
depende das qualidades atribuídas ao mundo interpretado. Uma sequência pode ser
avaliada, assim, diferentemente, conforme o receptor se coloca num mundo ordinário
ou fictício.
É importante ressaltar que Charolles (apud GALVES, 1997, p.74) reconhece que
a aplicação das metarregras está sujeita a aspectos da situação de comunicação e que,
na realidade, sozinhas, não dão conta das condições que um texto deve satisfazer para
ser considerado como bem formado.

1.2 O humor na perspectiva da teoria da argumentação na língua (ADL)

Em seus estudos sobre a polifonia linguística, Ducrot busca elaborar um


conceito geral do humor, conceito este que contribui para desvendar os
procedimentos linguísticos de tal fenômeno.
Reconhecendo uma multiplicidade de sujeitos no ato da enunciação, com
status linguísticos diferentes, Ducrot (1988, p.16-17) faz uma distinção entre sujeito
empírico, locutor e enunciador. O sujeito empírico (SE) é o produtor do enunciado; o
locutor (L), é o responsável pelo enunciado, ou seja, a pessoa a quem se atribui a
responsabilidade da enunciação no próprio enunciado; o enunciador (E) é o
responsável pelos pontos de vista apresentados no enunciado. Diante disso, o sentido
de um enunciado, segundo Ducrot (1988, p.16), “não é mais que o resultado das
diferentes vozes que ali aparecem”.
Ducrot (1988, p.66) acrescenta, ainda, que, para a constituição do sentido de
um enunciado, há três etapas. A primeira delas é a apresentação dos pontos de vista
dos diferentes enunciadores. A segunda, a indicação da posição do locutor em relação
à posição dos enunciadores que pode ser de identificação, de aprovação e de
oposição. A terceira etapa constitui a identificação do(s) enunciador(es) com o
alocutário.
Para ele, três condições são necessárias para que um enunciado seja
qualificado de humorístico:

1. Entre os pontos de vista representados em um enunciado, há pelo


menos um que é absurdo, insustentável (em si mesmo ou no
contexto).
2. O ponto de vista absurdo não é atribuído ao locutor.

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3. No enunciado não se expressa nenhum ponto de vista oposto ao


ponto de vista absurdo (não é retificado por nenhum enunciador).
Entre os enunciados humorísticos chamarei ‘irônicos’ aqueles em que
o ponto de vista absurdo é atribuído a um personagem determinado,
que se procura ridicularizar (DUCROT, 1988, p. 20-21).

Como se pode observar, Ducrot traz uma grande contribuição ao estudo


linguístico do humor, uma vez que – por meio das categorias de locutor e enunciador –
estabelece um princípio geral do fenômeno. Além disso, não se pode deixar de citar
aqui o posicionamento de Ducrot em relação à opinião dos linguistas que defendem
que o humor e a ironia não pertencem à língua, não passando de simples utilizações
desta. A despeito de tal postura, Ducrot (1988, p.22) observa que esses fenômenos são
universais, já que em todas as línguas é possível expressá-los. Nesse sentido, julga
necessário acrescentar, entre os conceitos gerais usados para descrever a significação
linguística, noções que admitam a possibilidade dessas utilizações humorísticas ou
irônicas. Assim, considera muito incompleta uma descrição da língua que não leve em
conta essa possibilidade.
Na atualidade, Ducrot continua estudando o fenômeno da polifonia,
juntamente com Marion Carel, o que representa uma nova fase denominada TAP
(Teoria da Argumentação Polifônica). Entretanto, ela não será aqui abordada, visto que
a análise proposta pretende centralizar-se na ADL/TBS, como será possível observar na
sequência.

1.3 Teoria dos blocos semânticos (TBS)

A teoria dos blocos semânticos (TBS), resultante da tese de doutorado de


Marion Carel (1992), teve sua origem alicerçada na teoria da argumentação na língua
(ADL), inicialmente desenvolvida por Oswald Ducrot e Jean Claude Anscombre. Por isso
mesmo, torna-se necessário tecer alguns comentários sobre esta a fim de entender
melhor aquela. Salienta-se, contudo, que serão aqui abordados apenas os conceitos
essenciais para as posteriores análises.
Desde seus primórdios, a ADL buscou opor-se ao que Ducrot (1988, p. 49-51)
chama de “concepção tradicional de sentido”, segundo a qual a denotação refere-se
aos aspectos objetivos (que representam a realidade), e a conotação, aos aspectos
subjetivos (atitude do locutor em relação à realidade) e intersubjetivos (relações do
locutor com os interlocutores). Para ele, essa separação não se sustenta. Exemplo
disso seria o enunciado “Faz bom tempo”, o qual, mais do que descrever o tempo no
momento (aspecto objetivo), expressa uma certa satisfação do locutor com tal

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situação (aspecto subjetivo) e até mesmo permite a ele propor ao interlocutor um


passeio (aspecto intersubjetivo). Assim, acreditando que a linguagem não possibilita
uma descrição objetiva da realidade, Ducrot suprime tal aspecto e reúne os outros
dois, subjetivo e intersubjetivo, sob a denominação de “valor argumentativo do
enunciado”, o qual está relacionado à orientação que as palavras dão ao discurso. Ou
seja, o emprego de uma palavra torna possível ou impossível determinada continuação
do discurso e o valor argumentativo das palavras constitui o conjunto dessas
possibilidades ou impossibilidades de continuação discursiva que seu emprego
determina. Para Ducrot (1988, p.51), o valor argumentativo é considerado “o nível
fundamental da descrição semântica”.
É justamente sobre essa concepção de continuação discursiva que se funda a
TBS. De acordo com Ducrot (2005, p.13), “a ideia central da teoria é que o próprio
sentido de uma expressão é dado pelos discursos argumentativos que podem
encadear-se a partir dessa expressão”. Surge, então, o conceito de “encadeamento
argumentativo”, fundamental para este estudo, o qual, nas palavras de Carel (2005,
p.80), é “qualquer sequência de dois segmentos que são, de certo modo,
dependentes”. Por isso mesmo, a designação “bloco semântico”, afinal o
encadeamento é concebido como um todo semântico cujos predicados são
interdependentes.
De acordo com Carel (2005), os encadeamentos argumentativos podem ser
normativos ou transgressivos. No primeiro caso, um segmento é unido, explícita ou
implicitamente, a outro por um conector do tipo “portanto” (em francês, donc= DC);
no segundo, a união entre os segmentos é realizada por um conector do tipo “mesmo
assim” (em francês, pourtant = PT). Desse modo, o enunciado (1) “Lucas é aplicado,
portanto foi aprovado no vestibular” é normativo, enquanto (2) “Lucas é aplicado,
mesmo assim não foi aprovado no vestibular” é transgressivo”. Cada um desses
aspectos, normativo e transgressivo, tem o seu recíproco: o exemplo (1) “Lucas é
aplicado, portanto foi aprovado no vestibular” tem como normativo recíproco (3)
“Lucas não é aplicado, portanto não foi aprovado no vestibular; por sua vez, (2) “Lucas
é aplicado, mesmo assim não foi aprovado no vestibular” apresenta o transgressivo
recíproco (4) “Lucas não é aplicado, mesmo assim foi aprovado no vestibular”. Ou seja,
um bloco semântico apresenta quatro aspectos: recíprocos, positivo e negativo e
conversos, normativo e transgressivo. Como é possível perceber em cada enunciado, a
ideia de aplicação e de aprovação são semanticamente interdependentes, ou seja, as
duas partes do encadeamento constituem um único sentido, desenvolvem o mesmo
bloco semântico. Dessa forma, evidencia-se que a argumentação não necessita

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recorrer a elementos externos à língua, pois o sentido de uma palavra ou expressão é


constituída linguisticamente pelo discurso, isto é, pelos encadeamentos
argumentativos evocados por tal palavra ou expressão (CAREL; DUCROT, 2005, p. 13).
É necessário considerar também que, como afirma Ducrot (2002, p.08), “[...]
um aspecto pode estar associado a uma entidade de modo interno ou externo”. A
argumentação externa refere-se à pluralidade dos aspectos constitutivos do sentido de
uma entidade linguística, ligados a ela de maneira externa. Em outros termos, diz
respeito aos encadeamentos argumentativos que antecedem ou seguem tal entidade.
A argumentação externa (AE) pode ser à direita ou à esquerda. Nos exemplos
anteriormente apresentados (1) “Lucas é aplicado, portanto foi aprovado no
vestibular” e (2) “Lucas é aplicado, mesmo assim não foi aprovado no vestibular”, os
encadeamentos “foi aprovado no vestibular” e “não foi aprovado no vestibular”
constituem a AE à direita de “aplicado”. Já em encadeamentos como “revisa os
conteúdos, portanto é aplicado” e “não revisa os conteúdos, mesmo assim é aplicado”,
os segmentos “revisa os conteúdos” e “não revisa os conteúdos” constituem a AE à
esquerda de “aplicado”. Não se pode deixar de observar que, na AE, a própria entidade
(no caso, “aplicado”) constitui um segmento do encadeamento.
Por sua vez, a argumentação interna de uma entidade, refere-se aos
encadeamentos em donc (DC) ou pourtant (PT) que parafraseiam essa entidade
(DUCROT, 2002, p.09). Dessa forma, entre as AI de “aplicado” pode-se ter, por
exemplo: “conteúdo complexo DC esforçar-se muito”, ou “ampliar conhecimentos DC
ler muito”. Como se vê, ao contrário do que ocorre na AE, os encadeamentos que
compõem a AI de uma entidade não contêm a própria entidade. Ressalta-se, também,
que a AI de uma entidade não pode conter dois aspectos conversos. Por exemplo,
“aplicado” contém o aspecto “conteúdo complexo DC esforçar-se muito”, mas não o
converso “conteúdo complexo PT não esforçar-se muito” (o qual constituiria a AI de
“inaplicado”).
Dessa forma, ao atrelar o sentido de uma entidade linguística aos
encadeamentos argumentativos a ela associados, a TBS reforça a ideia da ADL de que a
argumentação está na língua.

2 Análise do humor nonsense: uma interação entre metarregras e blocos semânticos

Ao retornarem para casa, após o trabalho, uma colega contava a outras duas
que, no dia anterior, havia-se perdido em uma rodovia, devido à ausência de
sinalização. Então, uma das ouvintes disse: “Por que você não me convidou para ir

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junto?” Por sua vez, a outra ouvinte acrescenta: “É mesmo, assim você não se perderia
sozinha!” Obviamente, tal observação provocou o riso geral.
Essa cena não só ilustra o fato de que o humor constitui um fenômeno comum
no cotidiano dos usuários da língua, como também oferece uma boa oportunidade de
demonstrar que sua construção pode ser descrita linguisticamente pela TBS.
Considerando que a teoria defende que o sentido de uma entidade linguística advém
dos encadeamentos argumentativos que podem ser associados a ela, inicialmente, é
necessário apresentar algumas continuidades possíveis de ser planejadas pelo locutor
e/ou esperadas por qualquer interlocutor que, no contexto apresentado, ouvisse/lesse
a expressão “convidou para ir junto”. É possível citar, por exemplo: “portanto você
não se perderia”, “portanto auxiliaria a localizar-se”, “portanto mostraria o caminho”,
entre outras. Contudo, a sequência escolhida pelo interlocutor foi “portanto você não
se perderia sozinha”. Nesse caso, o humor surge por meio da inclusão de uma
continuidade absurda em relação ao que foi inicialmente programado, confirmando-
se, assim, as condições apresentadas por Ducrot, e anteriormente expostas, para um
enunciado ser considerado humorístico.
Mas e quando o humor brota de enunciados incoerentes? Seria possível à TBS
explicar linguisticamente o humor provocado por tal mecanismo semântico-
argumentativo? É justamente isso que se pretende investigar neste estudo. Mais
precisamente, o que se quer aqui é verificar como a TBS pode explicar o humor
advindo das várias formas de desrespeito às metarregras propostas por Charolles.
Para isso, serão analisados trechos da clássica peça do teatro do absurdo
A Cantora Careca, do dramaturgo francês Eugène Ionesco. Escrita em 1950, a comédia
criada a partir de um livro-texto para o ensino de língua inglesa, demonstra o desatino
da existência humana por meio do diálogo sem sentido entre os personagens.
De modo a sistematizar tal análise, primeiramente, foram selecionados, na
referida obra, segmentos que permitissem uma continuidade argumentativa, isto é, às
quais se pudessem associar discursos em DC ou PT. Após, buscou-se observar se o
segmento subsequente correspondia às expectativas de continuidade arroladas, ou se
violava uma das metarregras apresentadas por Charolles. A seguir, procurou-se
descrever a estrutura do humor nonsense a partir do modo de (des)constituição de
blocos semânticos decorrente de cada uma das possíveis formas de violação
encontradas.

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Observe-se, então, o primeiro fragmento selecionado:

SRA. SMITH: Veja, são nove horas. Tomamos sopa, comemos peixe, batatas com
toucinho e salada inglesa. As crianças beberam água inglesa. Comemos bem esta noite.
É porque moramos nos arredores de Londres e o nosso nome é Smith.
SR. SMITH (continua a ler, estala a língua.)
SRA. SMITH: As batatas vão muito bem com toucinho e o azeite da salada não estava
rançoso. O azeite do vendeiro da esquina é de melhor qualidade que o azeite do
vendeiro da frente; é até melhor que o azeite do vendeiro da esquina de baixo. Mas
isso não quer dizer que para eles o azeite seja ruim. (p.1)

A partir dos segmentos (1) “Tomamos sopa, comemos peixe, batatas com
toucinho e salada inglesa. As crianças beberam água inglesa” pode-se evocar “DC
comemos bem”. Também os segmentos (2) “As batatas vão muito bem com toucinho e
o azeite da salada não estava rançoso” conduzem à mesma continuidade (“DC
comemos bem”), a qual, inclusive, é explicitada no segmento seguinte “Comemos bem
esta noite”. Entretanto, os segmentos (3) “O azeite do vendeiro da esquina é de
melhor qualidade que o azeite do vendeiro da frente; é até melhor que o azeite do
vendeiro da esquina de baixo. Mas isso não quer dizer que para eles o azeite seja
ruim” não permitem a associação ao mesmo predicado.
É importante observar que nos segmentos (2) há retomada de elementos
enunciados nos segmentos (1), como “batatas”, “toucinho”, “salada” e “azeite”
(recuperado por pressuposição). Essa repetição de elementos garante a progressão da
cadeia coesiva e da cadeia tópica, mantendo o mesmo bloco semântico. Já as demais
ocorrências de “azeite”, nos segmentos (3), apesar de darem sequência à cadeia
coesiva, não mantêm a cadeia tópica, ou seja, não se permanece no mesmo bloco
semântico. Essa ausência de progressão semântica representa uma subversão às
metarregras da repetição e da progressão, levando a uma ruptura do bloco até então
desenvolvido, o que acaba produzindo o efeito de humor.
Agora, veja-se outra situação:

SR. SMITH (Ainda lendo o jornal): Ora veja, aqui diz que Bobby Watson morreu.
SRA. SMITH: Meu Deus, o pobrezinho! Quando foi que ele morreu?
SR. SMITH: Para que esse espanto? Você sabe perfeitamente. Ele morreu há dois anos.
Então não estivemos no enterro dele há um ano e meio? (p.3)

No contexto em que se encontra, o segmento “Ele morreu há dois anos”


evocaria “DC ele foi enterrado há dois anos”. No entanto, o segmento seguinte “Então
não estivemos no enterro dele há um ano e meio?” pressupõe a informação de que ele

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morreu há um ano e meio. Ou seja, corresponderia ao encadeamento “estivemos no


enterro dele há um ano e meio DC ele morreu há um ano e meio”. Como se pode
perceber, há aí uma contradição enunciativa, uma violação à metarregra da não-
contradição, já que o segundo bloco semântico afirma o oposto do que havia sido
apresentado pelo primeiro. O humor, nesse caso, surge da percepção de tal desacordo
entre os blocos.
Já no trecho seguinte, a incoerência e, consequentemente, o humor
manifestam-se de outra forma:

SR. MARTIN: Aquele que hoje vende um boi, amanhã terá um ovo
SRA. SMITH: Na vida é preciso olhar pela janela. (p.24)

Nesse exemplo, é necessário considerar que o segmento “Aquele que hoje


vende um boi” poderia ter como continuidades “DC amanhã estará sem o boi”, “DC
terá dinheiro”, etc. Na sequência, porém, encontra-se o segmento “amanhã terá um
ovo”, o qual não possui relação com o fato relatado anteriormente, muito menos com
o apresentado posteriormente: “Na vida é preciso olhar pela janela”. Logicamente, a
situação seria outra se houvesse a formação de encadeamentos como: “Aquele que
hoje compra uma galinha DC amanhã terá um ovo”, ou “ amanhã terá um ovo DC fará
um omelete”. Nesse caso, houve uma subversão à metarregra da relação: não se
formou qualquer bloco semântico, uma vez que não há um todo de sentido cujos
predicados sejam interdependentes. É justamente essa ausência de blocos que produz
o efeito cômico.

Considerações finais

Conforme se observou, as análises desenvolvidas indicam que a interação entre


as perspectivas de Charolles e Carel revela-se bastante produtiva para a compreensão
e descrição linguística dos mecanismos de construção do humor nonsense.
Cumpre ressaltar que, de acordo com a TBS, o sentido de uma entidade
linguística encontra-se nos encadeamentos discursivos por ela evocados. Nessa
perspectiva, os exemplos selecionados evidenciaram que o humor decorrente da
incoerência está diretamente ligado ao modo de constituição (ou não constituição) dos
blocos semânticos que, por sua vez, variam de acordo com a metarregra violada. Na
ocorrência de subversão às metarregras de repetição e de progressão, constatou-se
que ele surge a partir de uma ruptura do bloco que vinha sendo apresentado pelas
sequências; no caso de violação à metarregra de não-contradição, é causado por um

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desacordo entre blocos, já que o segundo afirma o oposto do que havia sido
apresentado pelo primeiro; quando se transgride a metarregra da relação, por sua vez,
ele ocorre devido à ausência de blocos, uma vez que não há um todo de sentido cujos
predicados sejam interdependentes. Torna-se importante frisar que, em todas as
ocorrências estudadas, os referidos modos de constituição (ou não constituição) dos
blocos desencadearam o efeito cômico na medida em que ativaram, no leitor, a
percepção do ponto de vista absurdo por eles evocado. Assim, mantêm-se as
condições, propostas por Ducrot, para se considerar humorísticos os enunciados.
Cabe acrescentar que, considerando a complexidade do fenômeno estudado,
bem como a originalidade da obra tomada como corpus, os resultados aqui
apresentados não são decisivos, já que esta é uma pesquisa ainda incipiente. Espera-
se, entretanto, que as constatações explicitadas por este trabalho já possam vir a
contribuir, de alguma forma, para melhorar a prática pedagógica, pois compreendendo
melhor a produção da incoerência, pode-se evitá-la, por exemplo, em textos dos mais
diversos gêneros, produzidos pelos estudantes.

Referências

CAREL, Marion. O que é argumentar? Desenredo, Passo Fundo/RS, v. 1, n. 2, p. 77-84,


jul./dez. 2005.
CAREL, Marion; DUCROT, Oswald. La semántica argumentativa: uma introducción a la
teoria de los bloques semánticos. Edição literária de María Marta García Negroni e
Alfredo M. Lescano. Buenos Aires: Colihue, 2005.
CHAROLLES, Michel. Introdução aos problemas da coerência dos textos. In: GALVES,
Charlotte et al. O texto: leitura e escrita. 2. ed. Campinas: Pontes, 1997. p. 39-85.
DUCROT, Oswald. Polifonia y argumentación. Cali: Universidad del Valle, 1988.
_______. Argumentação Interna aos enunciados. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 37, n.
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COMPREENSÃO LEITORA E AUDITIVA NA AFASIA: UMA REVISÃO SISTEMÁTICA

Sabrine Amaral Martins1

Introdução

As doenças cerebrovasculares são causas prevalecentes de internações


hospitalares no Brasil, impactando sobre a saúde pública. O acidente vascular
encefálico (AVE) é derivado de uma “obstrução ou de uma ruptura de um vaso
sanguíneo que nutre uma determinada área do cérebro” (KANDEL et al, 2000, p. 47-
48), iniciando uma falta de oxigenação ou uma hemorragia naquela região.O AVE é a
segunda causa de morte em adultos e vale considerar que os distúrbios de linguagem,
como a afasia, ocorrem em aproximadamente 25% dos casos (ORTIZ, 2010). A afasia é
uma disfunção da linguagem que se manifesta em diferentes graus de
comprometimento tanto na modalidade expressiva (fala ou escrita), quanto na
receptiva (leitura e compreensão oral). Essa perturbação gera um acometimento
significativo na vida social e profissional dos indivíduos (ORTIZ, 2010). Como ela
compromete a qualidade de vida dos indivíduos, é importante atentar para fatores que
podem influenciar no aumento dessa qualidade, como a compreensão de leitura e de
texto auditivo.
A partir desses dados, o presente trabalho pretende realizar uma revisão
sistemática de pesquisas envolvendo a compreensão leitora e auditiva de afásicos, nas
bases de dados Proquest, ScienceDirect, Web of Science e PubMed. Assim, justifica-se
por contribuir para um maior detalhamento do tema, com o intuito também de
chamar a atenção para a necessidade de pesquisas em compreensão afásica.

1 Conceituando a afasia

A afasia pode ser caracterizada como uma alteração no conteúdo, na forma e


no uso da linguagem e de seus processos cognitivos subjacentes, tais como percepção
e memória (CHAPPEY, 1996). Ela pode ser classificada em fluente e não fluente. A
afasia fluente refere-se ao input ou recepção da linguagem, seguida de dificuldades de
compreensão, mas com output linguístico praticamente sem esforço. A afasia fluente é
1
Bolsista CAPES do Programa de Doutoramento em Letras – Linguística pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. E-mail: sabrine.martins@acad.pucrs.br

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caracterizada por um discurso normal, porém sem hesitações tampouco pausas, enfim,
um discurso de muito difícil entendimento. No caso da Afasia de Wernicke, em
especial, há um excesso de discurso fluente e espontâneo, de estruturas sintáticas
longas e complexas com velocidade, articulação e entonação normais, todavia, trata-se
de um discurso sem sentido e com parafasias, neologismos, pseudopalavras,
circunlóquios, problemas para encontrar palavras e dificuldade em fazer repetições de
palavras e/ou frases (AKBARI, 2014). Nas afasias não fluentes acontece uma fala e uma
escrita com dificuldade, centrada em palavras de conteúdo em detrimento das
funcionais, acompanhada de problemas no nível morfológico, como a falta de
conjugação verbal ou por problemas nas flexões de substantivos e escolhas de
determinantes.
Na afasia, todas as atribuições do sistema linguístico podem ser afetadas, em
níveis de acometimento distintos (AKBARI, 2014; ORTIZ, 2010). Em alguns casos, pode
haver o comprometimento de certos componentes ou modalidades da língua ou de
todos os níveis linguísticos, incluindo a fonologia, o léxico, a morfologia, a sintaxe e a
semântica e também o discurso. O déficit de compreensão é uma das habilidades que
podem ser prejudicadas com a ocorrência da afasia. Tanto a compreensão leitora
quanto a compreensão auditiva2 podem ser afetadas. Ortiz (2010) aponta que, nos
diferentes tipos de afasias, a compreensão pode estar danificada em níveis distintos tal
qual a produção oral. Nas afasias não fluentes, há dificuldade em compreender frases
complexas, textos e elementos gramaticais. Já nas fluentes, há déficits de
compreensão auditiva e leitora, sendo que esta última pode estar tão comprometida
quanto a auditiva. Há muito o que ser investigado sobre a leitura na afasia, por
exemplo sua relação com elementos cognitivos não linguísticos como a memória.
Moineau (2005) aponta que, apesar de haver muitas evidências empíricas sobre os
prejuízos advindos da afasia, as suas definições e caracterizações continuam bastante
modulares. Todavia, há dados sugerindo que esses déficits podem estar em um
continuum, tanto das habilidades menos para as mais prejudicadas.

1.1 A compreensão linguística na afasia

Há muitas teorias sobre como a linguagem se organiza. Para Gil (2012), a


linguagem se distribui em torno de dois polos: expressivo e receptivo. O polo
expressivo é como uma porta de saída que comporta não apenas a articulação, mas
2
Neste trabalho, adota-se a nomenclatura compreensão leitora e compreensão auditiva, embora haja
outras denominações para essas habilidades, como: compreensão de texto, escrita e gráfica
equivalendo à compreensão leitora, ou compreensão oral equivalendo à auditiva.

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também a escrita. Já o polo receptivo é o polo de entrada que compreende a audição


ou a compreensão da linguagem falada e a visão ou compreensão da linguagem
escrita. Aqueles indivíduos que apresentam afasia relacionada ao polo expressivo da
linguagem apresentarão dificuldades na articulação e na escrita das palavras, na
organização sintática das sentenças. Já aqueles que apresentarem danos relativos ao
polo receptivo da linguagem terão problemas de compreensão da mensagem
linguística, seja ela ouvida ou lida. Todas as afasias podem apresentar problemas de
compreensão.
Como na afasia a linguagem pode ser prejudicada em níveis e graus distintos,
pode-se afirmar que a compreensão poderá ter sido danificada de diversos modos
também. O afásico pode ter a surdez verbal pura, que pode estar ligada a um déficit de
discriminação fonêmica. Na afasia de Wernicke, a mais famosa afasia de compreensão,
há indícios de que ocorra um déficit de decodificação da linguagem falada advinda da
alteração de discriminação fonêmica ou de uma alteração no acesso à compreensão.
Além disso, afásicos de outros tipos podem apresentar um déficit de compreensão de
frases que pode ser originado de um déficit semântico, principalmente se forem
palavras abstratas (GIL, 2012). Podem acontecer problemas de compreensão de
categorias e de organização dessas categorias. Um exemplo muito comum é afásicos
encontrarem dificuldades em ir ao supermercado, pois os produtos costumam ser
organizados nas prateleiras e corredores segundo suas categorias. A anomia também
ocorre frequentemente nos afásicos e pode, associada ao déficit dos outros
componentes linguísticos, ser um dos fatores que dificultam a compreensão pelos
afásicos.

1.2 Relação compreensão leitora e auditiva

Sabe-se que, em indivíduos saudáveis, existe uma correlação entre a


compreensão auditiva e a leitora. Na década de 90, houve uma investigação sobre a
habilidade de ouvir narrativas, ler uma narrativa e compreender estórias somente com
figuras (GERNSBACHER, 1990). Participaram 270 universitários saudáveis, ouvindo e
compreendendo estórias de aproximadamente 700 palavras e respondendo a 12
perguntas sobre informações explícitas e implícitas. Os resultados apontaram que
quanto maior o nível da compreensão do texto escrito, maior era a compreensão do
texto oral. Esse dado sugere que esse mesmo resultado pode ocorrer com os
indivíduos acometidos de afasia. No Brasil, o estudo de Santos, Mac-Kay e Gagliardi
(2008) investiga a compreensão leitora e auditiva no nível das palavras e das frases. Os
pesquisadores utilizaram uma população de 60 indivíduos afásicos desempenhando

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tarefas de compreensão de palavras e frases escritas e orais contidas na versão Alpha


da Bateria Montreal Toulouse de Avaliação da Linguagem. Eles sugerem que quanto
melhor a compreensão de palavras faladas, melhor a de palavras escritas, da mesma
forma que quanto melhor a compreensão oral e escrita de frases simples, melhor é a
compreensão oral e escrita das frases mais complexas. O estudo também indica que há
uma relação entre a compreensão de palavras/ frases orais e escritas.
As pesquisas sobre compreensão auditiva e afasia exploram, na sua maioria das
vezes, o processamento de palavras isoladas e de frases, muito frequente nas baterias
para afásicos. O trabalho de Moineau, Dronkers e Bates (2005) aborda a
vulnerabilidade do processamento lexical nos pacientes acometidos de afasia de
Broca. Eles tratam esse sintoma como um continuum entre a compreensão linguística
e a compreensão auditiva. Após testarem 22 afásicos com uma tarefa envolvendo
identificação de figuras, os dados obtidos apontam que a acurácia e a eficiência do
processamento lexical estão intimamente ligadas aos processos da compreensão
auditiva. O estudo de Zipse et al (2011) investiga se há diferenças no M350, uma
marca eletrofisiológica de ativação lexical, comparando afásicos a saudáveis em uma
tarefa auditiva de decisão lexical. Os resultados mostram que os afásicos não tiveram
um desempenho semelhante ao dos controles, o que foi positivamente correlacionado
com a medida do prejuízo semântico advindo do distúrbio. Esses estudos corroboram,
assim, a ideia de que os déficits na afasia são um continuum.
As pesquisas sobre compreensão leitora também se preocupam com o
processamento das palavras e das frases na afasia. O estudo de Purdy e Newman
(2011) compara a performance de indivíduos com afasia fluente e não fluente em
dezenove subtestes da bateria Psycholinguistic Assesments of Language Processing in
Aphasia - PALPA. Os pacientes com afasia não fluente foram bem-sucedidos nas
tarefas de decisão auditiva e lexical, mas não nas tarefas fonológicas; ou seja, os
participantes com afasias fluentes demostraram prejuízos nas tarefas lexicais e tiveram
escores variados nas tarefas de leitura de palavras e não-palavras. Já a pesquisa de Kim
e Bolger (2012) examinou o efeito do contexto semântico no rastreamento ocular em
afásicos e controles durante a leitura de frases. Os movimentos oculares dos afásicos
diferiram significativamente em relação ao dos controles, os quais foram mais
eficientes quando liam frases mais contextualizadas. Também se observou que o
processamento top-down facilitou a leitura. O estudo de McNeil e colegas (2015)
comparou as compreensões leitora e auditiva de afásicos com as de controles no
Revised Token Test - RTT. Eles trabalharam nos níveis da palavra e da sentença.

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Concluiu-se que as diferenças intermodalidades foram pequenas e sensíveis aos


prejuízos advindos da afasia.

2 Método

Foi feita uma busca nas bases de dados Proquest, ScienceDirect, Web of
Sciencee PubMed, incluindo abstracts de artigos publicados nos últimos 5 anos (de
2010 a 2015), sendo de periódicos de acesso livre. As palavras-chave <afasia>,
<afásico> <compreensão>, <compreensão leitora>, <compreensão auditiva> e seus
correspondentes em inglês podiam aparecer nos títulos dos artigos ou no corpo do
resumo ou abstract. Foram utilizadas as seguintes associações de palavras para a
busca: afasia AND compreensão AND afásico AND compreensão leitora AND
compreensão auditiva. Destaca-se que as palavras-chave foram selecionadas com base
no objetivo da discussão deste artigo. As buscas foram feitas com limites de língua
(inglês e português). A partir dessas buscas, foram encontrados 161 resumos, sendo 75
no Proquest, 11 no ScienceDirect, 46 no Web of Science e 29 no PubMed, dos quais
foram selecionados para a análise posterior os que atenderam aos critérios: a) ser um
estudo empírico b) tratar de compreensão linguística. Foram excluídos artigos a) que
se repetiam nas bases de dados, b) aqueles que não explicitavam precisamente os
instrumentos de avaliação da linguagem utilizados no estudo, d) aqueles que não
caracterizavam sua população e) aqueles em que não apresentavam nenhuma relação
com a linguagem f) aqueles que não apresentavam resumo ou abstract.
O fluxo de seleção de artigos pode ser visualizado na figura 1.

Figura 1 – Fluxo de seleção de artigos

161 artigos
encontrados

147 excluídos
após a leitura do
resumo

14 artigos
selecionados
para leitura

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Observa-se um número mais expressivo de artigos encontrados na base de


dados Proquest. Todavia, apenas 5 desses artigos pertenciam ao período temporal
especificado. A base de dados PubMed, apesar do alto índice de estudos em afasia
(14350 resultados somente para afasia), somente 29 tratavam do foco escolhido e
desse montante, 7 textos se adequavam ao período estipulado. Dos 305 resultados das
combinações da base Web Of Science, 16 não apresentavam resumo nem abstract, 50
não se adequavam às palavras-chave. Portanto, dos 239 artigos restantes, foram
selecionados 46. A base ScienceDirect apresentou mais de 1300 resultados, dos quais
1064 não condiziam com o assunto e palavras-chave especificados. Então, dos 236
restantes, destacou-se 11 para análise. Ao final da leitura dos resumos e outros
detalhes dos textos, chegou-se ao número de 14 artigos completos para discussão. A
tabela 1 apresenta os artigos com as devidas descrições.

Tabela 1 – Textos selecionados


Título Autor Ano Objetivos Descrição Instrumentos utilizados
população
Short-term memory treatment: Salis, Christos 2012 Investigou o efeito de um 1 mulher com Digit Span, Token task,
Patterns of learning tratamento novo de afasia Test for the reception of
generalisation to sentence memória de curto prazo transcortical Grammar (TROG)
comprehension in a person with para a compreensão de motora
aphasia frases
Different patterns of spoken and Crutch et al 2011 Apresenta evidências 2 pacientes com Testes de compreensão de
written word comprehension neurológicas diferentes das afasia global palavras
déficit in aphasic stroke patients representações semânticas
da compreensão de
palavras faladas ou escritas
Effects of phonological and Mirman et al 2014 Investigou A dinâmica do 2 afásicos – 1 Matching task
semantic déficits on facilitative processo inibitório em com déficit
and inhibitory consequences of diferentes tipos de tarefa fonológico e
item repetition in spoken word de repetição em afásicos. semântico.
comprehension Controles
Production and comprehension 2013 Identificar as vantagens e 16 afásicos com Fábulas de Esopo
in aphasia: gains and pitfalls in Ulatowska et limitações no uso de afasia severa a
using macrostructures tasks in al tarefas de reconto de moderada
Aesop´s fables macroestrutura.
A MEG investigation of single- Zipse L et al 2011 Explorar se os afásicos 7 afásicos Tarefa de decisão lexical
word auditory comprehension in exibem diferenças no 9 controles auditiva.
aphasia M350, comparados a pareados por
controles. idade
10 controles
mais jovens.
Reading comprehension without Han Z 2010 Apresenta discussão sobre 1 afásico Tarefas de nomeação.
phonological mediation: further a compreensão visual de
evidence from a Chinese aphasic palavras ser ou não
individual acessada semanticamente

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Tabela 1 (continuação) – Textos selecionados


Título Autor Ano Objetivos Descrição Instrumentos utilizados
população
Production and comprehension 2012 Investiga os processos 2 pessoas com - Bilingual Aphasia Test
Malthy
of English and Hindi in linguísticos implícitos e afasia
et al
mulitlingual transcortical explícitos de dois afásicos transcortical
aphasia bilíngues
Training in rapid auditory Szelag et al 2014 Melhorar a compreensão 18 afásicos com Token test, Temporal-
processing ameliorates auditory auditiva de afásicos problemas de Order-Threshold
comprehension in aphasic seguindo um treinamento compreensão
patients: A randomized de percepção da ordem
controlled pilot study temporal dos eventos
The differential effects of direct Groenewol et 2015 Prover mais conhecimento 20 afásicos Dutch iPad-based Direct
and indirect speech on discourse al sobre os mecanismos que 19 controles Speech Comprehension
comprehension in Dutch and subjazem as diferenças (DISCO)
English listeners with and entre as construções de
without aphasia discurso diretas ou
indiretas em Holandês.
Profiling text comprehension Meteyard; et 2015 Avaliar os processos que 4 afásicos -
impairments in aphasia al compõem o
processamento de texto
em indivíduos com afasia
Text level Reading Webster et al. 2013 Descrever estudos de caso 4 afásicos
comprehension in aphasia: What investigando a eficácia dos
do we know about therapy and diferentes tipos de terapia
what do we need to know? para a compreensão leitora
de parágrafos
Production and comprehension 이지연 et al 2013 Examinou produção e 8 afásicos Matching task
of Time reference in Korean compreensão da referência 9 controles
nonfluent aphasia temporal através da
morfologia do verbo em
afásicos coreanos
Augmented input: The effect of 2012 Realizar uma avaliação 21 afasicos -
visuographic supports on the inicial da acurácia da
auditory comprehension of compreensão auditiva de
people with chronic aphasia afásicos ao receber um tipo
de input visual
Real-time processing in Reading Sung et al 2011 Investigar o nível de leitura 30 afásicos Revised Token Test
sentence comprehension for de sentenças online de 30 controles
normal adult individuals and afásicos e controles
persons with aphasia

3 Resultados

Após uma leitura avaliativa dos 14 textos encontrados nas bases acima, fez-se
necessário uma tabela resumo com objetivos e resultados dessas pesquisas. Destaca-
se que dentre os artigos, apenas 02 tiveram suas pesquisas realizadas no Brasil. Os
títulos dos artigos foram mantidos em seu idioma original, visto que, em algumas
bases não é possível localizá-los em língua portuguesa.

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Os artigos selecionados incluem estudos, na maioria, de estrangeiros,


concentrando-se nos Estados Unidos, utilizando equipes multidisciplinares nas ciências
da saúde, com testes, e baterias, de estudos de caso e de grupo. É possível observar,
apesar da amostra pequena, que os estudos mais recentes, a partir de 2012 podem
estar seguindo uma tendência de aumentar o número de participantes. Há pouco
tempo, os estudos de caso eram costumeiramente mais comuns, pois não havia
muitos dados nem parâmetros para a pesquisa daquele indivíduo afásico, assim,
preferia-se analisar seu caso individualmente. Vale destacar ainda que atualmente o
crescimento de grupos de convivência e associações de afásicos pode ter estimulado
essa mudança nos padrões das pesquisas.
Além disso, chamou a atenção a quantidade de terapias ou instrumentos de
reabilitação que se apoiam em tecnologia de ponta. Alguns são desenhados somente
para Ipads, fator que permite que o afásico ou seu familiar possa adquirir e dar
seguimento ao processo de recuperação em casa. Ao passo que a tecnologia ganhou
destaque nas pesquisas, notou-se que os testes utilizados, tanto para a seleção da
amostra como para a testagem dos participantes, são cheios de limitações. A presença
de indivíduos ou grupos controles ainda se mostra bastante comum e serviu como
parâmetro nessas pesquisas.
Por último, destaca-se que foi bastante heterogênea a amostra de textos sobre
compreensão leitora e auditiva. Acredita-se que haja um número expressivo de
investigações dos dois temas, porém separadamente. Acredita-se também que a
opção pelo indexador compreensão auditiva possa ter restringido a quantidade de
artigos, visto que, em muitas, compreensão auditiva tem sido tratada
semelhantemente à compreensão oral.

4 Discussão

A relação entre as compreensões leitora e oral na afasia ainda é motivo de


controvérsias. Há vertentes de pesquisadores que acreditam que essas habilidades
devam ser investigadas e tratadas individualmente, já outros acreditam que ao tratar
uma delas, a outra será beneficiada também. Acredita-se que desde a definição de
afasia, tem-se visto esse fenômeno de um modo bastante conservador (MOINEAU,
2005). Embora haja dados sugerindo que esses déficits possam estar em um
continuum, da mesma forma que seus padrões de recuperação, tanto das habilidades
menos para os componentes linguísticos mais prejudicados, poucos estudos
encorajam-se a unir compreensão leitora e auditiva em uma investigação. Portanto, é
preciso cautela tanto para afirmar qualquer relação quanto para realizar uma pesquisa

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acerca do tema. A maioria dos textos encontrados trata essas compreensões de forma
separada, deixando explícito em alguns que não há evidências suficientes para afirmar
que elas devem ser vistas conjuntamente.
Dada a gama heterogênea de artigos lidos, pode-se agrupar dois pontos a
serem discutidos: compreensão leitora e auditiva relacionando-se com diferentes
memórias e funções executivas, e outro, que se destacou em praticamente todos os
artigos, o déficit semântico. Todos os resultados têm importância, todavia nenhum dos
selecionados aborda uma teoria específica para a compreensão leitora e auditiva, nem
conjuntamente, nem separadamente.
O primeiro fator pode ser uma tendência das pesquisas atuais e ainda parece
valorizar a dinamicidade do processamento, pois aborda as limitações advindas da
afasia em correlações com memórias de trabalho, curto-prazo, episódica semântica,
atenção e funções executivas. A memória é a aquisição, a formação, a conservação e a
evocação de informações (IZQUIERDO, 2002). Não existe uma única maquinaria
cerebral que seja responsável pela formação, retenção e evocação das informações
aprendidas, existem várias redes neurais com milhões de interconexões que subjazem
os processos de aprendizagem e que podem ser danificadas com as doenças
cérebrovasculares. A memória é um sistema bastante dinâmico, sendo os eventos
passíveis de esquecimento, demonstrando que, em muitos casos, a retenção não é
estável. E, os fonoaudiólogos apontam a queda na eficiência da memória como uma
limitação advinda da afasia, principalmente a memória de trabalho.
A atenção se constitui de processos que focam, selecionam, dividem, mantém e
inibem um comportamento. Em conformidade com os estudiosos da área, quando os
indivíduos envelhecem, a dificuldade em manterem-se atentos aumenta, bem como
há uma facilidade de distração para informações irrelevantes, causando prejuízos no
desempenho das funções executivas (BRUCKI, 2004; CABEZA, 2004). De fato, idosos
queixam-se de que custam a lembrar-se de determinadas informações por causa dessa
queda na atenção e porque ela também está intimamente relacionada à memória. Os
textos abordados nesta revisão tratam o processamento da atenção, memória e
linguagem como processos que interagem e influenciam na execução das tarefas
linguísticas de modo geral. As pesquisas analisadas apontam o tratamento e
treinamento dos mecanismos da atenção como uma estratégia para um
aprimoramento das técnicas de tratamento da afasia.
As funções executivas são especialidades do lobo frontal, região que,
coincidentemente, está localizada a área de Broca, responsável pela fala. Elas
constituem-se de processos cognitivos de controle e integração com o intuito de

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executar tarefas específicas, precisando, de fato, dos subcomponentes desse sistema,


como programação e planejamento de sequências, inibição de processos, informações
concorrentes e monitoramento. Elas contam com a coordenação de outras funções
cognitivas importantes como o controle inibitório, além da memória de trabalho e da
atenção (KRISTENSEN, 2006).
O controle inibitório é responsável por suprimir ou inibir a resposta automática
quando um estímulo é oferecido. Ao lidar com tarefas que requerem a formulação de
um objetivo, especialmente se tratarem de atividades novas, planejamento e escolha
entre as alternativas de comportamento para se alcançar o objetivo, comparar
probabilidades de sucesso e eficiência são fatores em que o controle executivo é
indispensável (RABBITT, 1996). Além disso, ele também é responsável por interromper
uma resposta em curso, mesmo ela não sendo efetiva, fato que permite uma
reavaliação da atitude usada. Por último, ele inibe as informações que estão em
cooperação, permitindo o desempenho de uma delas. Indivíduos que sofreram AVE
apresentam também problemas no controle inibitório. Os artigos sugerem que uma
vez tratadas as funções executivas no seu todo, maior é a possibilidade de reabilitação
do paciente. Quanto mais fatores cognitivos forem observados, maior e melhor poderá
ser o desempenho do paciente para a recuperação.
O fator que mais se evidenciou nos textos selecionados foi a presença de
explicações semânticas para a dificuldade de compreensão, seja ela leitora ou auditiva.
Para eles, o déficit semântico recorrente em indivíduos com afasia, viria a prejudicar
não só a produção linguística dessas pessoas, bem como a recepção das mensagens
linguísticas. Ele trata-se da dificuldade de recuperação dos substantivos, também
chamado de anomia.
Sabe-se que a compreensão linguística, no nível das palavras e frases, requer
diversos processos como a identificação de letras e sons, integração desses segmentos
em palavras e sentenças e a adequação dessas na descrição de um evento. Todavia, no
nível discursivo, na leitura de um texto ou na compreensão de fala, o processamento
deve ser mais refinado (TRAXLER e GERNSBACHER, 2006). Historicamente, as pesquisas
sobre compreensão de afásicos já enfatizaram que o conteúdo do texto, suas
características de gênero e, por conseguinte, sua estrutura, tem impacto sobre o
indivíduo. Além disso, também têm sugerido que dicas advindas do léxico podem ser
fundamentais para que o afásico se aprofunde na abstração desse texto. Essas pistas
lexicais representam sinais conceituais e relações lógicas entre ideias e argumentos,
enfatizando conceitos importantes. Por isso, o déficit semântico pode ser um grande
complicador na análise da compreensão afásica.

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O déficit semântico é um sintoma tão frequente em afásicos que os testes para


a avaliação da afasia o consideram como um quesito para determinar o grau de
severidade do distúrbio. Essa avaliação informa a acurácia na denominação de figuras
apresentadas, as inadequações feitas como as parafasias e circunlóquios e a
capacidade de responder a pistas fornecidas. A partir da performance da pessoa, pode-
se sugerir que esse déficit semântico é mais ou menos assolador. É importante levar
em conta aspectos como a frequência, a extensão, a familiaridade, a animacidade e a
imageabilidade das palavras ao executar tarefas e sobre a comparação do
desempenho nas diferentes tarefas e modalidades (input visual ou auditivo). O auxílio
de input visual ajuda o afásico a recuperar a informação semântica. Pessoas saudáveis
também apresentam erros de ordem semântica ao nomearem objetos (LAINE,
MARTIN, 2006). Todavia, a proporção de cada tipo de erro pode não ser a mesma para
pessoas normais e afásicas. Nos afásicos, estão entre as manifestações de ordem
semântica, comprometimentos semântico-sintáticos de categoria específica (e.g.,
abstrato vs. concreto; animado vs. inanimado) ou de classe específica de palavras (e.g.,
substantivos vs. verbos; palavras de função vs. palavras de conteúdo). Podem ocorrer
comprometimentos morfológicos (e.g., palavras compostas; derivações; flexões) e
déficits semânticos de categoria específica (e.g., animal vs. vegetal vs. artefatos) na
produção de palavras.
O déficit semântico proporciona divergências entre os pesquisadores, sendo o
objetivo de duas teorias que tentam explicar esse fenômeno. A primeira afirma que a
dinâmica das ativações cerebrais para o acesso lexical é afetada em certos tipos de
afásicos, e a segunda assegura que acesso lexical está intacto, pois os problemas
ocorrem no nível de integração lexical pós acesso ao léxico (SWAAB, HAGOORT, 1997).
Embora resultados de estudos com afásicos de Broca possam indicar que a dinâmica
das ativações esteja danificada, corroborando com a primeira teoria, pesquisas como a
de Hagoort (1990) sugerem que pode haver um prejuízo na integração da informação
lexical e não no acesso propriamente dito. A segunda teoria está em consonância com
a premissa de continuum destacada anteriormente nesta revisão. Pode-se hipotetizar
que tanto a compreensão leitora quanto a auditiva encontram-se integradas entre elas
e, segundo os artigos revisados, com o armazenamento de representações lexicais,
fazendo com que, dessa forma, a investigação de um desses aspectos englobe os
outros e não permita que os elementos linguísticos na afasia sejam pesquisados
isoladamente.

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Considerações

A presente revisão teve como objetivo apresentar dados de pesquisas sobre a


compreensão leitora e auditiva, agrupando os fatores analisados em elementos de
discussão. A partir dessa revisão pode-se inferir que é indispensável o aumento das
pesquisas sobre essas compreensões, especialmente no que tange ao relacionamento
entre elas. Até agora, foi sugerido que há um processamento contínuo para a análise e
tratamento dessas habilidades linguísticas na afasia, indicando inclusive, sua estreita
relação com outros construtos cognitivos não linguísticos, como memória, funções
executivas e atenção. Embora a maioria dos textos selecionados tenha destacado o
déficit semântico como uma explicação para os déficits de compreensão, ainda é
muito prematuro assegurar que só exista essa hipótese. É preciso mais investigações,
bem como uma ciência que veja todas as facetas do distúrbio, a cognitiva,
neuropsicológica, neurológica, fonoaudiológica, linguística e farmacológica. Para isso, é
evidente que as mais diversas áreas precisam dialogar mais sobre o tema.

Referências

AKBARI, M. A Multidimensional Review of Bilingual Aphasia as a Language Disorder.


Advances in Language and Literary Studies, v. 5, n. 2, p. 73–86, abr. 2014.
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DIÁLOGO LITERATURA E CINEMA:


O PERSONAGEM DORIVAL, DE TABAJARA RUAS

Sandro Martins Costa Mendes1

O presente trabalho analisa o romance O amor de Pedro por João de Tabajara


Ruas em especial o personagem Dorival. A escolha se deu por esse personagem ter
sido retratado no curta-metragem O dia em que Dorival encarou a guarda, de Jorge
Furtado e José Pedro Goulart. Dessa forma, além de pensar a criação do personagem
no romance, reflito sobre a adaptação (ou cinematização) para o cinema.
A reflexão sobre criação conta com o pensamento de Umberto Eco e Orhan
Pamuk. A escolha do referencial teórico se deu por serem escritos teóricos de autores
que se dedicam à escritura de romance. Dessa forma, tenho o pensamento teórico ao
mesmo tempo que conto com a perspectiva de escritor criativo.
Em praticamente todos os momentos em que o personagem Dorival, um
“mulato escuro” (RUAS, 1998, p. 41), aparece no romance, sempre há alguma
referência ao episódio em que ele encarou a guarda. Em alguns momentos é pedido a
ele que comente sobre o fato (como o faz, por algumas vezes o Alemão, a quem ele
conta no capítulo 8), ou então é uma qualificação de seu nome, uma indicação de
quem ele é: “aquele que encarou a guarda”. Acontece dessa forma quando ele está
sendo liberto de sua prisão política, pois os policiais falam um para o outro sobre o
episódio. Em outros momentos, Dorival vai lembrar-se do episódio, e quase sempre,
lembra-se dos olhos azuis do Tenente Otílio e/ou da cusparada que deu em seu rosto.
O capítulo 8 começa com Dorival e Alemão conversando e este pede a Dorival
que conte o dia em que ele encarou a guarda. Dorival cede à insistência e começa a
contar, porém logo o narrador se apropria da história. A sinopse é:
No meio da noite, Dorival, que está preso no cárcere de um quartel, quer tomar
banho, coisa que há dez dias não faz. No romance, logo no início, a informação de
quem proibiu o banho de Dorival é dada ao leitor. No audiovisual, essa informação é
dada aos militares, e também ao espectador, apenas no final. No romance, os militares
recebem a informação também no final da cena. Dorival interpela o soldado que está

1
Doutorando em Escrita Criativa, PUCRS. Trabalho apresentado como requisito final da disciplina
Seminário de Escrita Criativa I, ministrada pelo Prof. Dr. Luiz Antônio de Assis Brasil.
E-mail: sandromcm@gmail.com

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de guarda no corredor e pede para tomar banho. O soldado diz que não pode. Dorival
promete fazer muito barulho e com isso o soldado vai pedir ajuda do cabo. A história
se repete e depois do cabo aparecem o sargento e o tenente. Todos tentam dissuadir
Dorival, dizendo que ele está proibido de tomar banho, ainda que nenhum militar
consiga explicar o motivo. Ao final, sem querer fazer silêncio e conformar-se, Dorival é
reprimido violentamente, com a entrada de vários soldados na cela momento em que
é espancado. Para limpar o sangue, é levado ao banheiro e consegue o banho que
tanto queria.
Todos os acontecimentos narrados no livro (referentes a Dorival) são
posteriores ao dia em que encarou a guarda. A marca desse dia está presente a todo o
momento, ainda que ele relute em contar, e não pareça se exibir. Boa parte de sua
participação no romance se dá no dia 11 de setembro de 1973, quando houve o golpe
contra Allende, no Chile, onde Dorival, sua companheira Ana Maria, Marcelo e Alemão,
passam dois dias dentro do apartamento de Dorival e Ana. Ana estava com Dorival há
dois anos. Antes disso, Ana havia tido o marido dentista e um filho pequeno torturados
e assassinados.
No romance O amor de Pedro por João, os fatos narrados estão relacionados
com um momento histórico importante2, porém bastante conturbado e oculto. As
personagens da obra, as situações vividas por elas e o pano de fundo presente, fazem
com que reforcem o sentimento no leitor de que muito do que há ali, na obra, seja
retrato fiel daquilo que se vivia, e se escondia, no Brasil e na América Latina. Ruas
contribui para esse sentimento que pode experimentar o leitor, ao afirmar em
entrevista ao jornal Zero Hora que O amor de Pedro por João

é um livro de ficção, embora baseado na experiência pessoal. As


pessoas que estão ali, algumas eu conheci. Algumas das histórias me
foram contadas, outras testemunhei de longe, mas, de certa
maneira, é um testemunho daquela época. E me consola que os
meus camaradas da época até hoje considerem o livro uma obra
séria sobre a experiência que a gente viveu, de enfrentar uma
ditadura, de padecer o exílio, circular pelo mundo sem
documento (RUAS, 2013).

Importante ressaltar o sentimento de satisfação, expresso por Ruas, de que seu


romance seja visto como documento das experiências vividas por ele e seus

2
A obra foi escrita em período não muito longe dos fatos narrados, porém foi lançada apenas em 1982,
depois que Ruas voltou do exílio (1971 a 1981).

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companheiros durante a ditadura. Ser “uma obra séria sobre a experiência” vivida não
quer dizer que Ruas autorize a leitura de maneira que se pense que tudo ali é real. O
autor começa dizendo que “é um livro de ficção”. Mas isso não impede de que a ficção
criada não seja um retrato de uma época, não a represente, não seja um
“testemunho”, como afirma Ruas.
Eco (2013) discute certa peculiaridade dos personagens históricos. O que
chama atenção do autor é o fascínio que certos personagens provocam nos leitores ao
ponto de se transferirem das páginas do romance para o imaginário histórico. Eco diz
ter recebido depoimentos de pessoas que dizem ter ido visitar o mosteiro cenário da
obra O nome da rosa, ou mesmo declaram terem conhecido o sebo onde Eco alega ter
encontrado o manuscrito que originou a obra. Sobre isso, Eco afirma:

É inútil dizer que inventei tanto a planta quanto a localização da


abadia (embora muitos dos detalhes se tenham inspirado em lugares
reais); que o início de uma obra de ficção em que se alega encontrar
um velho manuscrito representa um venerável topos literário, a
ponto de eu ter chamado essa introdução de “Um manuscrito,
naturalmente”; e que o misterioso livro de Kircher e o ainda mais
misterioso sebo são criações minhas (ECO, 2013, p. 64) [grifos do
autor].

A característica que Eco apresenta, também é compartilhada na observação de


outros autores que relatam situações de imbricação entre ficção e realidade mesmo
em personagens não históricos. Pamuk (2011) comenta sobre as diversas vezes em
que foi interpelado com a pergunta “Sr. Pamuk, tudo isso aconteceu realmente com o
senhor?” (p. 29). Pamuk diz ser comum esse questionamento e inclusive apresenta
duas respostas a isso, diz que não é o herói e por isso nada daquilo aconteceu com ele;
mas diz também que não há como convencer os leitores de que não é o herói. Para a
segunda afirmação, Pamuk recorre a certa vez em que caminhava e conversava com
um amigo professor discutindo exatamente sobre o tema, algo que, aliás, eles já
haviam comentado anteriormente e tinham a mesma percepção. Discutiram então
sobre questões de leitor, lembrando-se de Foucault, Iser e Eco. Porém, em
determinado momento da caminhada, o amigo para diante de um prédio. Pamuk não
entende e então o amigo diz que achava que ele estivesse indo para casa, o que Pamuk
respondeu que sim, que estava indo, mas que não morava ali. O amigo então percebe
seu engano, pois era o prédio do herói do romance de Pamuk e com isso, achou que
também o autor tivesse se mudado para lá. O amigo não era um leitor ingênuo, ainda
assim, caiu na mesma armadilha de outros leitores. Eco (2013) também se refere a

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algo parecido, ao comentar a pergunta recebida por um pesquisador alemão que tinha
encontrado um volume de Kircher em um alfarrabista de Buenos Aires e queria saber
se era o mesmo livro e a mesma loja. Eco (2013) afirma então que “assim, parece que
muitos leitores, a despeito de seu status cultural, são, ou passam a ser, incapazes de
distinguir entre fato e ficção. Eles levam a sério os personagens de ficção, como se
estes fossem seres humanos reais” (p. 64).
Voltando à questão da personagem histórica, Eco cita Alexandre Dumas que faz
uma reflexão sobre a questão.

É prerrogativa de romancistas criar personagens que matam aqueles


dos historiadores. A razão é que os historiadores evocam meros
fantasmas, enquanto os romancistas criam gente de carne e osso
(DUMAS, 2002 apud ECO, 2013, p. 66).

Ainda que seja possível encontrar a mesma confusão em personagens não


históricos, talvez sejam os históricos que aticem mais a miscelânea no imaginário do
leitor.
Eco (2013) comenta sobre o motivo de chorarmos por um personagem mesmo
sabendo que ele é de ficção. Em resposta a essa questão, Eco afirma:

Podemos nos identificar com os personagens de ficção e com seus


atos porque, de acordo com um pacto narrativo, passamos a viver no
mundo possível de suas histórias como se fosse nosso próprio mundo
real. Mas isso não ocorre apenas quando lemos ficção.
Muitos de nós às vezes pensamos na morte de um ente querido, o
que nos afeta com muita intensidade e chega a nos levar às lágrimas,
mesmo quando sabemos que não se trata de um evento real, mas
imaginado. Tais fenômenos de identificação e projeção são
absolutamente normais e (repito) assunto para a psicologia (ECO,
2013, p. 67).

Também Pamuk (2011) pensa essa questão quando aponta que o desafio e a
profunda alegria que o romance nos proporciona ocorre quando nos identificamos
com a personagem, pelo menos numa “parte de nossa alma” (p. 57) e assim,
“libertamo-nos de nós mesmos, tornamo-nos outra pessoa e vemos o mundo pelos
olhos de outra pessoa” (p. 57). Pamuk diz que nossa identificação com o protagonista
se baseia nas sensações que encontramos na personagem a maneira como ele reage
às muitas formas do mundo.

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O interessante é que a identificação do leitor com o protagonista aparece, de


certa forma, no próprio romance aqui analisado. O capítulo em que Dorival encarou a
guarda apresenta personagens que o tempo todo estão relacionando fato e ficção.
Já na primeira interação de Dorival com a guarda, a personagem soldado
identifica Dorival com a personagem King Kong, visto pelo soldado uns dias antes no
cinema.

Não fazia nem uma semana, no seu dia de licença, tinha visto - e
ficara profundamente impressionado - o magnífico filme King Kong
(tão bem feito, parecia real!) onde um gorila gigantesco transforma
em picadinho uma baita duma cidade dos Estados Unidos da
América. O soldadinho recua um passo, apavorado. Tem a impressão
apavoradamente nítida de que o que se encontra dentro da cela é
nada mais nada menos que o King Kong, o brilho dos olhos do negrão
é o brilho dos olhos do King Kong e sua boca feroz é a boca mortal do
King Kong. Imagina, pensa - vê - (...) que de dentro da cela
desprende-se ruído de correntes, cheiro nauseante de selva, de carne
humana decomposta (RUAS, 1998, p. 239).

Com a passagem entre parênteses “(tão bem feito, parecia real!)” se estabelece
o imaginário da personagem que também estará presente nos outros militares.
Sempre haverá a relação com a arte.
Nesse primeiro pedido de Dorival ao militar, já aparece a difícil relação que ele
terá com o argumento de que “não pode” tomar banho e com a tentativa de ser
sempre diminuído em sua condição, de ser humilhado. Porém, Dorival não permite,
em nenhum momento, essa humilhação.
O cabo, segundo militar que tenta resolver a situação com Dorival, está lendo
uma historinha do Drácula e sente por ser interrompido pelo soldado justamente
quando a história estava ficando boa. No filme, o cabo está lendo quadrinhos de
“bang-bang italiano” Tex, e aparece ele vivenciando a historinha, tentando salvar a
mocinha presa pelo índio. Mas, igualmente no romance, ao sair para resolver a
questão, a personagem se sente como em um filme de faroeste, como “Clint Eastwood
em Por um punhado de dólares” (RUAS, 1998, p. 240) caminhando por Dodge City com
o sol caindo no horizonte.
Se a aproximação de arte e realidade para o soldado trouxe algo de medo
(quando ouviu pela primeira vez a voz de Dorival achou parecida com a do Sargento),
para o cabo a relação ficção realidade lhe trouxe segurança, pois ele se sentia o herói.

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Quando está no embate direto com Dorival, ainda lembra-se de personagens policiais
da TV, imitando os trejeitos.
O terceiro militar a encarar Dorival é o Sargento. É a personagem que, de certa
forma, está mais identificado com Dorival, pois o Sargento também é negro (talvez por
isso o soldado relaciona a voz do sargento com a de Dorival) e sofre com o calor, pois
tem apenas um ventilador em cima do armário e não um ar-condicionado como tem o
tenente “Sargento tem é que se ralar. E se é preto, pior ainda” (RUAS, 1998, p. 242).
Todos os militares (soldado, cabo, sargento e depois tenente) vão se referir a Dorival
como “negrão desse tamanho” (p. 239), “Crioulo” (p. 241), “negro” (p. 245), refletindo
assim a intenção de subjugar Dorival, tentando aumentar ainda mais sua condição
desfavorável. Quando o cabo vai avisar o sargento sobre a confusão que Dorival estava
fazendo ele diz: “Sarja, o crioulo da cela 12 tá a fim de bagunçar o coreto. Digo,
desculpe sarja, o preso da cela 12” (RUAS, 1998, p, 242). Assim, fica bem claro o
respeito à hierarquia e que os adjetivos de raça são usados pejorativamente e para
forçar uma condição de superioridade.
A arte que acompanha o Sargento é a música, pois ele está ouvindo um radinho
de pilha e lembra, a todo instante, do ensaio na Mangueira que ele deveria estar
participando.
Já o Tenente estava lendo um livro sobre arte, iniciando o capítulo sobre
Gauguin. Como já adiantado pelo Sargento, na sala do Tenente, havia livros de capa
dura. O Tenente demonstra estar lendo o livro por querer entender aquela arte, o que
ainda não havia acontecido.
Com isso, o próprio Ruas, como já dito, apresenta personagens que se
identificam com personagens de outras obras. No momento final, no embate com
Dorival, os personagens e a arte voltam. “O praça de Santa Catarina” volta a lembrar
de King Kong. O cabo se vê como John Wayne em Rio bravo e o tenente ergue seu
livro, como uma bandeira. Logo após, vão todos entrar na cela de Dorival, junto com
outros quatro soldados, e espancá-lo. Após isso, o tenente manda limparem o sangue.
Os soldados carregam Dorival até o banho e ligam o chuveiro. O Sargento Marcão
acende dois cigarros, um cigarro para si e outro oferece a Dorival. A identificação
anunciada, na primeira vez que aparece o Sargento, confirma-se com a cena final.
Enquanto os outros militares em algum momento enxergaram Dorival como um
personagem (King Kong para o soldado, um bandido, macaco ou policial corrupto dos
filmes do Kojac para o Cabo, uma pintura de Picasso para o Tentente), o Sargento
nunca o identificou como um, apenas com o que ele realmente era (“um sindicalista,

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provavelmente não um terrorista”). Assim, a identificação de Marcão foi com o


homem Dorival.
No filme, na cena em que Dorival é espancado, há insert das imagens de King
Kong, do mocinho de Tex e dos tambores da escola de samba, identificando cada
insert com a personagem militar correspondente.
Além do diálogo fato/ficção e o diálogo das ações dos personagens do romance
e do curta cinematográfico com os personagens de outras obras artísticas, apresento
também o diálogo intersemiótico entre literatura e cinema.
Para analisar as obras em questão, utilizo Renato Cunha (2007) que entende
que é possível (ou preferível) realizar uma adaptação (que ele chama de
cinematização) de tal forma que a obra literária e audiovisual tenham suas linguagens
respeitadas. Segundo Renato Cunha,

antes de literários ou cinematográficos, tanto o cinema quanto a


literatura se instauram por um olhar receptivo, que é estimulado pela
realidade e pela fantasia, tal como o pensamento - responsável pela
capacidade (sensitiva e cognitiva) de montar e desmontar a estrutura
do sistema ficcional – o é pelo consciente e pelo inconsciente
(CUNHA, 2007, p. 52).

Não tive acesso ao roteiro do curta O dia em que Dorival encarou a guarda,
apenas a seu texto final, onde aparece somente os diálogos. Esse texto final está
disponível no sítio de internet da Casa de Cinema de Porto Alegre, produtora do curta.
Porém, é possível criar um roteiro a partir do curta finalizado, ou pelo menos,
entender como ele seria.
O cinema tem peculiaridades que não encontramos em outros tipos de
narrativas. Quem aponta isto são os autores Gaudreault e Jost na obra Narrativa
cinematográfica (2009), e eles afirmam fazendo relação com narrativa oral e escrita.
Os autores exemplificam a narrativa oral com a narração de um paciente ao
seu psicanalista. Dizem que a narrativa, neste caso, é simples, pois trata de um único
narrador, um único narratário em uma única atividade de comunicação narrativa.
Poderíamos dizer que é uma narração imediata, tanto por ser em um aqui e agora,
como por não ter intermediário.
Já a narrativa escrita chega ao leitor com diferimento, pois “não é entregue no
mesmo momento em que é ‘emitida’” (p. 23) Além disso, é através de um
intermediário que o leitor toma conhecimento da narrativa. Esse intermediário pode
ser um livro ou um jornal, por exemplo.

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Gaudreault e Jost tentam responder o que é uma narrativa cinematográfica


considerando o plano como equivalente a um enunciado, autorizando assim a analisar
o plano nos mesmos termos que qualquer outra narrativa. Mas os autores
acrescentam que é difícil determinar quais enunciados há numa imagem. “Para a
imagem cinematográfica, é muito difícil significar um único enunciado por vez, como
podemos verificar quando tentamos anotar as informações visuais veiculadas por um
plano” (p. 32). O problema, segundo os autores, é que a imagem mostra, mas não diz.
Assim, os autores se perguntam como o plano cinematográfico significa, como ele
narra. Metz, no entanto, diz que o prioritário é compreender como a imagem móvel –
que pode estar aquém da narrativa – significa. Segundo Gaudreault e Jost, Metz se
esforça em “demonstrar que nenhum plano é equivalente a uma simples palavra e
que, inversamente, em toda imagem existe pelo menos um enunciado: ‘a imagem de
uma casa não significa casa, mas sim eis uma casa” (METZ3 apud Gaudreault e Jost, p.
37). Os autores ainda dizem que essa tradução apresentada por Metz não é assim tão
simples e tão direta. Vai depender dos acontecimentos para que eis uma casa se
transforme em eis minha casa, por exemplo.
No cinema, como explica Cunha, a ideia está diretamente ligada à de imagem
em movimento e que é a sucessão de imagens que constrói o narrar. Uma só imagem,
pode narrar, mas o encadeamento delas (a montagem) narra estruturalmente,
intencionalmente.
Assim, o narrador, presente no romance, é dispensado no curta, deixando para
a própria ação contar a história. Um exemplo claro dessa troca, e talvez o mais
importante exemplo, acontece quando é inserida no curta a conversa via telefone do
Sargento com sua esposa. As informações que no romance fazem parte do
pensamento do Sargento são agora explicitadas pela conversa no telefone. Sabemos
que a esposa do Sargento está no ensaio. No romance o narrador diz “Perdeu o ensaio
na Escola porque logo hoje caiu de serviço” (p. 241). No filme, a informação aparece
logo no início da conversa, logo que aparece o Sargento.

SARGENTO: Não vai dar, eu tô de serviço a noite toda.


ANA NEUSA: Não vai dar? Mas tu não falou com o tenente?
SARGENTO: Não adianta, eu peguei serviço, são ordens (O DIA, 1986).

E mais adiante aparece “Lá na Mangueira, pensou o sargento, melancólico. Lá


na Mangueira a coisa tá animada. E eu aqui, agüentando estes imbecis” (RUAS, 1998,

3
METZ, 1968, p. 118.

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p. 243). Essa informação, no curta metragem, é dada através da ação, da imagem do


ensaio da escola de samba e da esposa do Sargento no telefone público. A todo o
momento o Sargento e Ana Neusa tinham dificuldade de ouvir um ao outro.
E por fim, destaco como exemplo trecho do romance que mais uma vez
apresenta o pensamento do Sargento: “Falta pouquinho pro Carnaval. Não posso mais
perder ensaio, tem nego de olho grande na minha vaga. Não dá pra dormir no ponto”
(p. 243) que no curta é fala de Ana Neusa: “Mas o Ademar falou que tu já perdeu
muito ensaio. Ele vai ter que botar outro no surdo” (O DIA, 1986). Durante todo o
tempo da fala de Ana Neusa, aparece um homem a observando, e no final da conversa
Ana Neusa olha para o homem também. Nesse caso, a imagem reforça a situação em
que se encontra o Sargento de ser substituído, na bateria da escola e também na
relação com sua esposa.
A importância do roteiro é destacada por Cunha

A escrita do roteiro permite a reestruturação das ações dramáticas e


construções de narrador, personagem, tempo e espaço, que dão
corpo ao universo literário, fazendo com que as traduções imagéticas
se manifestem previamente (CUNHA, 2007, p 68).

Portanto, é nesse momento que aparecem as estratégias para substituição do


narrador, como a criação de novos personagens, e também outras soluções que levam
em conta o meio audiovisual, como aproveitar imagens do filme King Kong, ou mesmo
do filme Casablanca, utilizado para compor a personagem do Tenente. É através de
Casablanca que há outra relação ficção realidade ainda não mencionada. Enquanto o
Sargento ainda dialogava com Dorival, aparecia a imagem do filme, como se as
palavras dos dois fossem parte do diálogo do filme.
Uma particularidade desse curta é que os quatro roteiristas fazem parte da
produção e pós-produção do filme. Jorge Furtado e José Pedro Goulart são diretores.
Ana Luiza Azevedo é assistente de direção e Giba Assis Brasil é também o montador.
O texto de Ruas permaneceu quase intacto nos diálogos. As maiores mudanças
foram as já apontadas, e uma parte do diálogo entre o Sargento e o Tenente em que
fica explicitado, no romance, que Dorival era líder sindical.
Ao escolher a personagem Dorival, eu pude destacar elementos que acredito
serem importantes na construção da personagem, seja ela literária ou
cinematográfica. O texto de Tabajara Ruas é, por si só, bastante cinematográfico, mas
além disso, a cena escolhida apresenta grande riqueza na construção das próprias
personagens, pois elas se relacionam com outras manifestações artísticas. Assim, pude

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também, discutir sobre a questão da intersecção realidade e ficção, inclusive sobre a


ótica do leitor.
Por fim, a obra baseada em um momento histórico importante na América
Latina, permitiu traçar, ainda que superficialmente devido às limitações desse
trabalho, pequenas notas sobre questões de preconceito racial, autoritarismo e
violência. O episódio narrado apresenta ironias através das quais se pode sentir a
crítica aos aparelhos da ditadura, sejam na covardia de seus atores, seja na tentativa e
na falha de perpetrar humilhação no homem que já estava confinado, seja na
obediência cega a uma ordem vinda não se sabe de onde, ou mesmo seja na proibição
de uma ação (o preso tomar banho) e depois de usarem a violência, pela falta de
argumentos, acabarem dando ao preso exatamente aquilo que ele pediu: o banho.

Referências

BORDINI, Maria da Glória. Criação literária em Erico Veríssimo. 1991. Tese (Doutorado
Teoria da Literatura), Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 1991.
CUNHA, Renato. Cinematizações: ideias sobre literatura e cinema. Brasília: Círculo de
Brasília,, 2007.
ECO, Umberto. Confissões de um jovem romancista. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
GAUDREAULT, André; JOST, François. A narrativa cinematográfica. Trad. Adalberto
Müller, Ciro Inácio Marcondes e Rita Jover Faleiros. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 2009
PAMUK, Orhan. O romancista ingênuo e o sentimental. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011.
RUAS, Tabajara. Na terceira entrevista da série 'Obra Completa', Tabajara Ruas analisa
seus livros e revisita sua trajetória. Depoimento [6 nov. 2013]. Porto Alegre: Zero
Hora, entrevista concedida a Carlos André Moreira. Disponível em:
http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2013/07/na-terceira-
entrevista-da-serie-obra-completa-tabajara-ruas-analisa-seus-livros-e-revisita-sua-
trajetoria-4192246.html Acesso em: 5 dez. 2014.
______. O amor de Pedro por João. Rio de Janeiro: Record, 1998.

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INSANE LUCY: MENTAL HEALTH IN CHARLOTTE BRONTË’S VILLETTE

Sophia Celina Diesel1

The nineteenth century in England is famous for its innovations in diverse fields
of human life. Guided by the advancement of industry, London is the living organism
that grows almost uncontrollably and brings with it entirely new economical and
human perspectives to the country. Society changes under the frenzy of modernity,
and both city and country have to deal with its marvels as well as its drawbacks.
Science develops like never before, rearranging previous understandings about life and
creating new. With the growing of medical science, the studies of the mind gain space,
which gives doctors the mission to unveil the mysteries of the human psyche in times
when the ghost of insanity looms large. Women, most of all, suffer from supposed
mental instabilities, like neurosis and monomania, and are easily considered insane.
They have but little chance to defend themselves, since by the Victorian era women
are considered little more mentally capable than children or idiots. It is in this period of
discoveries and scientific conflicts that Charlotte Brontë writes her most psychological
book, Villette, in 1853. She proves herself aware of the developments of science in the
conception of the shadowy heroine Lucy Snowe, who despite her apparently passive
personality, grieves the oppression imposed to the nineteenth century woman and
fights internal conflicts between mind and body, sanity and insanity to build her inner
self. In this essay I mean to discuss briefly the aspects of mental health and psychology
observed in Lucy, reflecting Charlotte Brontë’s own knowledge on subjects like
psychology and phrenology of the mid-Victorian period. I mean to draw a parallel
between the scientific knowledge of the period and Lucy’s struggle to keep control
over her own mind and not to be carried away by a society that frequently sees
madness as a natural state of women.

Lucy Snowe watches her life pass by. Without family, money or friends, since
very young she assumes the quality of spectator of her own life. Her passivity justifies
1
Mestre em Artes (MA) em Inglês – Literatura Vitoriana pela Universidade de Loughborough, UK.
Atualmente mestranda em Teoria da Literatura na PUCRS, bolsa CAPES. Orientador Professor Pedro
Theobald.
E-mail: sophia.diesel@acad.pucrs.br

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her belief that she belongs to the worst lot of people, to whom life saves only denial
and privation. She tells herself that sunshine may soften even the worst lots
occasionally, but she does not see the reason why it would favour her2. Lucy seems
cruel to herself, but her self-denial reflects her psychological state before the society
that faces her, where the sense of identity is closely bound to the way one deals with
all the limitations it imposes. Brontë intended to tell the story of someone whose story
was not worth telling. She created a character who thinks herself inferior to others and
then explores the thoughts and the very weaknesses of the invisible Victorian woman.
Lucy prefers to tell the story of other people who are more interesting than herself:
Ginevra, Poly, Dr. John, etc, acting like a voyeur because her life, “her sense of herself,
does not conform to the literary or social stereotypes provided by her culture to define
and circumscribe female life”3. In a letter to W. S. Williams, Charlotte Brontë defends
the heroine of Villette, pointing that she agrees with his observations on Lucy’s
morbidity and weakness of character, and adding that “anyone living her life would
necessarily become morbid”. Sally Shuttleworth, in her book Charlotte Brontë and
Victorian Psychology, calls attention that in the nineteenth century the terms
weakness and morbidity designated specific mental diseases and that Brontë’s
explanation suggests that Lucy’s psychological instability can be caused by the
pressures of social circumstance4. Lucy eventually has a nervous breakdown and seems
sensible to hallucinations. Just like Brontë, Lucy is well-informed about psychological
contemporary studies, as we can notice in her inner monologues and the terms she
applies to analyse herself, like when she loses Dr John’s letter and refers to
monomania: “’Oh! They have taken my letter!’ Cried the grovelling, groping,
monomaniac”5. Lucy is aware of the disparity between her feelings and anxieties and
of what society expects from a woman like her. This conflict results sometimes in guilty
acquiescence or angry revolt and “becomes the source of Lucy’s feelings of unreality”6.
It is increased by the near impossibility of fulfilment for her ambitions and desires.
“There are obstacles everywhere, social and financial. The hard realities of the sexual
caste system frustrate her physically as well as mentally”7.

2
BRONTE, Charlotte. Villette. In: Brontë Sisters. London: Wordsworth, 2005. p. 345-694, p. 599.
3
GILBERT, Sandra M.; GUBAR, Susan. The buried life of Lucy Snowe. In: ______. The Madwoman in the
Attic. London: Yale, 2000. p. 339-440. p. 418.
4
SHUTTLEWORTH, Sally. Charlotte Brontë and Victorian psychology. Cambridge: Cambridge University
Press, 2004. Kindle digital edition. Position 3021.
5
BRONTE, p. 518.
6
GILBERT, GUBAR, p. 419.
7
MILLET, Kate. Sexual Politics in Villette. In: NESTOR, Pauline (Ed.). New Casebooks: Villette. London:
MacMillan, 1992. p. 32-41. p. 33.

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We know little about Lucy’s story before she moves to Villette to become an
English teacher at Mme Beck’s pensionat for girls. Yet, we can infer a great tragedy in
her life, which we do not know of what kind, since she is completely evasive when it
comes to it, but that had the power to cut her from the social position she belonged to
and from whoever she loved. Lucy has a cultivated mind, although distant. Even when
she tells us about happy times when she used to visit her godmother and cousin John
in Bretton, the story is told as if she was not there. She observes and often judges, but
always from a distance. Whatever tragedy took place, it added further afflictions to the
naturally introspective girl.
The unreliable and evasive narrative is undermined by repression. Lucy struggles
and eventually collapses trying to deal with (and conceal) her inner turmoil. She hides
her emotions in order to keep the social mask of the impervious, calm and sexually
innocent woman. Lucy does not have any other choice but to comply with the social
code, and, as long as she is allowed her “inner subdued, overcast nature to be”, she
tries to remain composed8. Keeping the public persona is imperative in a society where
people are permanently watched. Mme Beck rules her school through espionage; she
and her staff of spies are responsible for eliminating any means of privacy. This
principle follows closely the emergence of the new economy of individual and social
life witnessed by the nineteenth-century industrialized England. Centred on the
regulation of the forces of the body and mind, surveillance was considered the key to
control.9 On escaping from the lecture pieuse, Lucy catches Mme Beck searching her
things in the dormitory, but knowing about Mme’s ways of surveillance, she turns
around silently and goes back to the schoolroom. Lucy thinks about the non-existent
love letter Mme was looking for and her feelings are contradictory, but she represses
herself: “soreness and laughter, and fire, and grief”. The hot tears shed are not
because of Mme’s distrust, but “for other reasons…Complicated, disquieting thoughts
broke up the whole repose of my nature. However, that turmoil subsided: next day I
was again Lucy Snowe”10.
Regulating and channelling England’s material resources gave rise to new
ideologies of selfhood, based on inner-regulation and self-control. John Connelly in An
Inquiry Concerning the Indications of Insanity, 1830, is one of the psychiatrists who
advocate that the key to mental sanity is a man’s control over the more primitive
instincts, adjusting himself to his station and demonstrating conformation to the

8
BRONTE, p. 555.
9
SHUTTLEWORTH, position 75.
10
BRONTE, p. 429.

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status-quo. He adds that a man who cannot conform to what the generality of
mankind have agreed upon as the most convenient presents an eccentric behaviour,
that is, total or partial departure from sound judgement. He uses examples, like a
gentleman who communicates with his servants only through gestures; or the poor
woman who believed she would eventually marry a rich man and become a lady, to
argue that eccentricity may not be necessarily mental derangement, but once a man
escapes the rule of common sense, he has escaped reason and he may be insane. It is
commonly found that eccentric persons have defects or excess of one or more of their
faculties, associated to the loss of the comparing power, preventing them to know the
difference between right and wrong, and therefore, they are victims of actual
insanity11. Lucy supposes that Dr. John finds her eccentric when she finally addresses
him as Lucy Snowe, the cousin he did not recognise because he actually never paid
attention to her. Lucy holds her identity from him until the last minute because
knowing something he does not know is a form of power she holds over him. But
Reason (self-control) quickly punishes her for expecting his affection, and reminds her
that she was born “only to work for a piece of bread, to wait the pains of death”.
Lucy’s eccentricity is the fear of suffering, and so she retracts from people, answers Dr.
John’s letters scantly, does not return people’s interest in her, and wishes to be
forgotten, to have, as she says, “the pang over” at once12.
Villette was written in a time when the term insanity no longer defined a self-
evident disease, demarcating the sufferer from the rest of humanity, as it would be in
the eighteenth century. It was now an invisible, more complex threat. Mental
derangements could erupt in anyone, from any social class, but instead of a fixed
physiological state, it became a partial one, hence susceptible of medical treatment
and possible healing. The problem is that apart from the trained eye of the physician, it
became very difficult to distinguish the normal from the abnormal mind. Medical men
turned into the maximum authority committed in unveiling mental secrets and
dispositions through the rise of specific areas of study such as psychiatry, physiognomy
and phrenology. Theories of moral management gained space in the scientific field,
focusing all of them on the criteria of normality based on conformity and self-control.
Obedience and the acceptance of social and gender roles became the greatest index to
sanity13.

11
CONNOLLY, John. An Inquiry Concerning the Indications of Insanity, with Suggestions for the Better
Protection and Care of the Insane. London: John Taylor, 1830. 514p. Available at
<https://archive.org/details/inquiryconcernin00cono>, accessed on 29 July 2015.
12
BRONTE, p. 505.
13
SHUTTLEWORTH, position 458-78.

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Jean Etienne Dominique Esquirol’s Mental Maladies: a treatise on insanity,


1838 (translated into English in 1845), was one of the most influential works of the first
half of the nineteenth century on the studies of the mind. The French psychiatrist
continued the studies of his master Philippe Pinel, and wrote under the shadow of the
French Revolution, defending community principles against the utopic individual rights
of the revolutionaries14. According to Esquirol, the moral affectations are greatly
provoked by giving away to unbridled passions, forgetting one’s rightful place and
duties. Based on his long experience in asylums in the treatment of the insane, he saw
them as egotist people, whose meditation upon their own passions isolated them from
the common sense. Selfish feelings like pride, fear, and ambition interfered on the
individual’s comparing ability – like in Connelly’s theory – and unless treated and
guided into voluntary restraint of their passions, they would result in mania,
monomania (the obsession with one fixed idea) and dementia15.
At the first part of the long vacation Lucy has “the crétin” as her only company
in the empty school: a student with apparent mental problems whose behaviour
reflects popular beliefs of egotism attributed to the insane. The girl demands attention
every minute and seems happy in her inert aloofness, displaying a “vague bent of
mischief” and “aimless malevolence”16. Later, Paul Emanuel calls Lucy egotist when
she tells him that it was terrible to be alone with the crétin and that it was a great
relief when she left. Paul reproaches Lucy and says that as a woman she should be able
to attain such duties better.
But Lucy’s actual nervous crisis takes place afterwards, when she is left alone in
the “lifeless building”. She feels her “nervous system could hardly support what it had
for many days and nights to undergo in that huge empty house”. The change of the
weather and the beating rain crushes Lucy with “a deadly paralysis” which she had not
experienced while the air was serene17. Lucy feels lonely, unhappy and hopeless, and
so the “agonising depression” takes over her and it is succeeded by physical illness. She
cannot sleep for days, but when sleep comes, it comes vengefully. In the night of her
breakdown, Lucy feels her whole frame wrung, conferring a nameless experience of
mien, terror and “the very tone of a visitation from eternity”:

14
SHUTTLEWORTH, position 491.
15
ESQUIROL, J. E. D. Mental Maladies: a treatise on insanity. Translated by Ebenezer Kingsbury Hunt.
New York: Hafner, 1845. p. 54. Available at < https://archive.org/details/mentalmaladiestr00esqu>,
accessed on 18 july 2015.
16
BRONTE, p. 456.
17
BRONTE, p. 457.

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Indescribably was I torn, racked and oppressed in mind. Amidst the


horrors of that dream I think the worst lay here. Methought the well-
loved dead, who had loved me well in life, met me elsewhere,
alienated: galled was my inmost spirit with an unutterable sense of
despair about the future. Motive there was none why I should try to
recover or wish to live; and yet quite unendurable was the pitiless
and haughty voice in which Death challenged me to engage his
unknown terrors.18

Esquirol highlights physical paralysis as a common complication of the insane


mind, as well as other cerebral lesions such as convulsions, epilepsy, hypochondria and
hysteria, “either because these latter maladies have preceded insanity, and ceased at
its incursion, or proceed simultaneously, or alternate with it”19. Lucy’s breakdown can
be easily associated with the symptoms of lypemania: an abnormal tendency toward
deep melancholy. “Bursting forth without any assignable cause, lypemania has its roots
in concealed moral affection” and assaults some of its victims with the fear of night
and darkness. The malady takes a slow course and complicates with a multitude of
symptoms, like delirium, violent passion, producing diversion of thoughts, provoked by
fright or fear20. Even the change of weather and thunder-storms suggest a disturbed,
irritated condition of the body. Alexander Bain in The Senses and the Intellect, 1855,
mentions that in some states the influence of the weather “is supposed to kindle a
general glow in the human frame, while in other states the effect is painful and
depressing”21.
Dr John diagnoses Lucy’s breakdown as “nervous fever”. Lucy admits being
dreadfully low-spirited and he recommends her looking for cheerful society, avoiding
being alone, and taking plenty of exercise. He tells her that there are no pills or potions
to help low spirits; that his “art halts at the threshold of Hypocondria: she just looks in
and sees a chamber of torture, but can neither say nor do much”22. Although Lucy
understands his explanation and often uses the same kind of vocabulary to express her
mental torments, she refuses to submit to his male professed judgement. As a medical
man, Dr John is the skillful detective, able to unlock every secret from her by reading
the signs of the body, which makes Lucy uncomfortable. After the first appearance of
the ghostly nun, Lucy “trembles like a leaf”, but does not want to tell him what she saw
18
BRONTE, p. 458
19
ESQUIROL, p. 66.
20
ESQUIROL, p. 279.
21
BAIN, Alexander. The Senses and the Intellect. London: John W. Parker, 1855. p 138. Available at
<https://archive.org/details/sensesintellectb00bain>, accessed on 29 July 2015.
22
BRONTE, p. 474.

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and be accused of dreaming. Reading her from “a professional point of view”, the
doctor says to read in her everything she would conceal: “In your eye, which is
curiously vivid and restless; in your cheek, which the blood has forsaken; in your hand,
which you cannot steady”. Lucy confesses the apparition of the nun and he confirms
that “it is all a matter of the nerves”, “a case of spectral illusion”23.
Although being the only one “certificate” to read others, Dr John has a series of
amateur competitors. In the society based on surveillance and control, power resides
in the ability of unveiling others’ secrets while keeping oneself guarded from others’
eyes. M. Paul Emanuel spies on students and teachers from his “magic lattice”; other
teachers spy on each other and on the students; and even the Catholic priest never
loses sight of the protestant Lucy in order to bring her, according to him, to the true
creed. Lucy reads the priest’s face and sees in him a good man. Physiognomy was one
popular science focused on deciphering people’s character by their facial lines. Lucy
often judges people by their external appearance, like when she sees the king of
Labassecour: “A man of fifty, a little bowed, a little grey…the strong hieroglyphics
graven as with iron stylet on his brow, round his eyes, beside his mouth, puzzled and
baffled instinct…There sat a silent sufferer – a nervous, melancholy man”24.
Physiognomy had its origins in religious precedents; it was believed that the face
inscribed the nature of the soul. It lost filed in the nineteenth century to Phrenology,
which was less ideologist and more materialist. By laying its concern on the
physiological functioning of the brain, Phrenology had a great impact in social and
political matters25.
Phrenology was the science dedicated to decoding the mind through the cranial
bumps separated in faculties like benevolence, hope, spirituality, imagination,
intolerance, reasoning, self-interest, etc, and the size of each bump indicated the
strength of the correspondent organ. It developed from the theories of the Viennese
physician Franz Gall (1758-1828), but gained high popularity in England with the
famous works of George Combe, Constitution of Man, 1828, and Elements of
Phrenology, 1846. According to Combe, men are blessed with sentimental and moral
faculties beside the instinctive ones, which the animals are not, and therefore are
rational, accountable beings26. It would be common for an employee like Mme Beck to

23
BRONTE, p. 520-1.
24
BRONTE, p. 495.
25
SHUTTLEWORTH, position 781.
26
COMBE, George. Constitution of men considered in relation to external objects. Edinburgh:
Maclachlan, 1851. p. 16. Available at <https://archive.org/details/6thconstitutiono00combuoft>,
accessed on 16 July 2015.

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ask for a phrenological test in order to know if the person who she was about to hire is
reliable and hardworking. This is what Paul Emanuel does at Lucy’s arrival. He reads
her skull, but the judgement is indefinite: “If good predominates in that nature, the
action will bring its own reward; if evil – eh, bien! Ma cousine, ce sera toujours une
bonne oeuvre”27. Paul Emanuel’s reading reinforces that Bronte was aware of the
greatest difference between Physiognomy and Phrenology: while the first searched for
a definite character, imprinted from the interior self, the latter was open and allowed
self-improvement. The faculties were given to men to be cultivated, exercised and
instructed before they yield their full harvest of enjoyment28. There would be no limits
to the human advancement to those who understood the laws of nature revealed by
Phrenology and learned to maximize their strengths and control their weaknesses. For
the first time in history, it was offered a new social classification, not based on rank
and privilege, but measured on innate endowment29. By attesting the independence of
the faculties, “Phrenology presented a new complex individual, whose different fluxes
of energy allowed internal contradictions and conflicts, and laid the foundations for
later nineteenth-century explorations into the complexities of unconscious”30. Lucy
mentions her faculties in some occasions, like when she is satisfied about her acting in
the school play. She remarks that “to cherish and exercise this new-found faculty
might gift me with a world of delight”. But again, she is checked by Reason and
reproaches herself with, “but it would not do for a mere looker-on at life”31.
This same tyrannical Reason which holds Lucy down in her inferiority also
prevents her from admitting her “warmer feelings” for Dr John. Lucy feels uneasy with
his examinations because besides interfering in her private world, he may also infer
those forbidden feelings. She is aware of being a mere object of study, and that she
will never have the necessary charms to be visible to him, like money or good looks. At
the moments when Lucy seems most excited about Dr John she sees the nun – the
ghostly figure of the dead nun who supposedly died after breaking her vow – which
clearly signals Lucy’s sexual repression.
Sexuality and the female mind remained a contradictory subject. The
psychological theories were applied differently when it came to women and tended to
reinforce dominant ideological strands of Victorian culture. Women were believed to
be more emotional and less capable of controlling their mental faculties than men. In a

27
BRONTE, p. 392.
28
COMBE, p. 18.
29
SHUTTLEWORTH, p. 846.
30
SHUTTLEWORTH, p. 821.
31
BRONTE, p. 445.

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period in which self-control was the key to sanity, women figured in a difficult position
because their bodies remained a mystery and thence all the disturbances of their
minds seemed to be consequence of physical eruptions like menstruation, pregnancy,
menopause etc. Every single characteristic of a woman’s body should have a
consequence (usually a bad one) in her mind. It is common in Esquirol or Robert
Brudenell Carter (On the Pathology and Treatment of Hysteria, 1853) to see cases in
which women are considered to become maniacs with their first menses or after giving
birth. On the other hand, it was also believed that any obstruction or preventing of the
natural ways of the female body would have the same consequence. This is why
unmarried women were often diagnosed insane. Carter describes that hysteria
comprises in “women whose sexual propensities have been disappointed” or “those in
whom some form of envy or discontent is the predominant feeling”32. As Shuttleworth
remarks, it was unreasonable to demand self-control from women at the same time as
they were believed to be slaves of their bodies’ incongruities: “if the internal ‘excess’
of reproductive energy were suppressed or obstructed in its inward flow, then insanity
would issue. If, however, it were acted on, the resulting ‘immodest’ behaviour would
immediately call for the certification of insanity”33.
Lucy’s sexuality is never satisfied. The powerful performance of the actress
Vashti is to Lucy “a marvellous sight, a mighty revelation” and at the same time “low,
horrible, immoral”, for it wakes something hidden inside her, like the pleasure she
feels after her own timid presentation in the school play. Vashti is a fallen angel,
“insurgent, banished”, and so free but as well doomed in her freedom34. Another clear
example of sexual repression is when Lucy is at the art gallery gazing at the voluptuous
painting of Cleopatra. M. Emanuel again reproaches her and tells Lucy that the set of
paintings La vie d’une femme are much more appropriate to her. Lucy finds them “flat,
dead, pale and formal” in their hypocritical showing of how a woman should spend her
life – the perfect child, mother etc. “Insincere, bloodless, brainless nonentities!”35 Lucy
figures in the middle of contradiction: She cannot be sexually free like Vashti, but she
cannot submit to the pre-established standards of women either, because her mind
has gone beyond that. The result is that her desires remain unfulfilled. But the
common sense does not understand that. It does not matter how difficult it is, but to
society, at the age of twenty-four, Lucy is on her way to hysterical old-maidenhood.

32
CARTER, Robert Brudenell. On the Pathology and Treatment of Hysteria. London: J. Churchil, 1853.
p.34. Available at <https://archive.org/details/onpathologyandt00cartgoog> , accessed on 22 July 2015.
33
SHUTTLEWORTH, position 1217.
34
BRONTE, p. 531.
35
BRONTE, p. 487.

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Lucy does not have the right to privacy, to love, to happiness, to social
advancement, because she does not have the strength to fight and defeat all the
drawbacks and contradictions that surround her. She is castrated by a world where
new ideas and ideologies flourish in the rise of a new civilization which was the
Victorian age, but still have not found voice for the upcoming changes. As a woman,
poor and friendless, she is displaced in a society which thinks her very existence
unnecessary, and this is why most of the other characters barely know what to make
of her and how to treat her. Insanity was an invisible threat to people like Lucy
because as a woman of instruction, she is aware of the world around her and that she
does not fit in it; but at the same time she is stuck with old ideologies and mentality
involving the social role of women which do not help her find an answer to her
displacement. The mind became a serious area of study in the nineteenth century and
psychiatrists developed several ways to try to understand the human brain and its
workings. Yet, there was much to change before the old systems of classification like
rank and family name opened space to people whose birth did not bring privilege but
who could prove their value through their mind. Maybe Lucy could be one of those,
were she given the choice to speak without restraint.

References

BAIN, Alexander. The Senses and the Intellect. London: John W. Parker and Son, 1855.
Available at <https://archive.org/details/sensesintellectb00bain>. Accessed on 29
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GILBERT, Sandra M.; GUBAR, Susan. The buried life of Lucy Snowe. In: ______. The
Madwoman in the Attic. London: Yale, 2000. p. 339-440.
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Villette. London: McMillan, 1992. p. 32-41.
SHUTTLEWORTH, Sally. Charlotte Brontë and Victorian psychology. Cambridge:
Cambridge University Press, 2004. Kindle digital edition.

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REASONING VIA DIALOGUE: AN ILLUSTRATIVE ANALYSIS OF DELIBERATION

Stéphane Dias1
Jane Rita Caetano da Silveira2

Introduction

This paper is an attempt to present a pragmatic account of the construction of


an explicitly mutual cognitive environment via dialogue. It addresses linguistic
structures of a deliberation dialogue (in an institutional decision-making scenario)
whose members are required to evaluate an evidential body. We will illustrate these
assumptions with an analysis of scenes of the play 12 Angry Men3, since this piece of
art makes clear the relation between reasoning aiming at a practical decision-making –
and ultimately an action – and reasoning aiming at an evaluation of evidence.
Aristotle, for example, explored a Socratic question-answer model as the way
of reaching the truth, once we could reason together, watching each other’s steps and
pointing out falsities. This kind of goal may be entertained by agents in a deliberation
dialogue, since reasons are brought up by the participants of the deliberation.
In the plot of 12 Angry Men,4 an eighteen-year-old man from the ghetto is
accused of killing his abusive father, thus being on trial for that crime. The movie
explored the perspective of the jury, in its decision-making regarding the verdict. The
practical goal assigned to the group of jurors that compose the jury is to deliberate in
order to deliver a final position: either that the boy is “guilty” (which means there is
‘no reasonable doubt’ that the accused committed the crime) or “not guilty” (which
means that the members agree that there is a ‘reasonable doubt’ on their minds as to
the guilt of the accused). As the Judge states, “it’s now your duty to sit down and try to

1
Doutoranda em Linguística – Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS. Bolsista CNPq.
E-mail: stephanerdias@gmail.com
2
Doutora em Linguística e professora da Faculdade de Letras da PUCRS.
E-mail: jarcs@terra.com.br
3
There are many versions of the text written by Reginald Rose; even though the most famous one is the
adaptation for cinema, we will make use of the one written for television. You can access it here.
4
An analysis of the movie, based on a Relevance Theory approach (SPERBER and WILSON, 1986, 1995),
was published by Silveira (2007) on www.inf.pucrs.br/~lincog, the research group “Linguagem,
Comunicação de Cognição” (LINCOG), PUCRS.

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separate the facts from the fancy”. More than just evaluating the evidence, they need
to reach a unanimous position.

The context of deliberation

The jury adopts a summative method of deliberation (judgment aggregation),


such that the decision is given by counting the vote of each member of the group,
where each vote has the same weight5, so that the consensus is obtained when all
members vote accordingly, thus reaching the verdict. They must take into
consideration that if the boy is considered guilty, the death sentence is mandatory in
the case (there is a possibility of a recommendation for mercy by the part of the court,
though). On the other hand, if the jury assumes that there is a reasonable doubt, the
boy is free. On the “jury room”, there is a foreman, one of the jurors, who conducts
the deliberation process.
There is an assumption, made explicit by the Judge, that the jurors will state
their group position by an adequate evaluation of the evidence disposed to them; in
the best scenario, by evaluating the evidence collectively, not just by manifesting
disconnected positions with no appeal to an analysis of the evidence and of each
other’s arguments. Clearly, these are the epistemic goals involved in the deliberation,
which embraces an adequate evaluation of the evidence, presentation of
counterevidence against a conclusion/argument/inferential step by other members,
use and acceptance of trustable data by them all, and good reasons in the process of
evaluation and information-sharing (manifestability).
Even though the individuals in interaction shared these common goals as jurors,
as individuals and as members of other groups (practical pressures) most of them were
primarily concerned about the decision-making, the practical outcome, and not about
the process, the cognitive goals involved.
By an initial dialogue among members of the group, we learn some of the
individuals’ goals and expectations. They stated practical reasons for not extending the
jury’s meeting ‘more than necessary’ – “We've probably all got things to do here”, “We
can all get out of here pretty quick. I have tickets to that ball game tonight”; “I called
the Weather Bureau this morning. This is gonna be the hottest day of the year”. It is
worth noting that they were in a small room with no ventilation system.

5
There are other procedures for group decisions, such as majority voting, just as pointed out by
McBurney et al. (2007). link

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The jurors did not know each other before the trial and had no information
about each other prior to deliberation; to each juror, they assigned a number of
identification, such as juror#8.
That set of twelve jurors constituted a newly formed institutional group with
short time duration. As we will illustrate with parts of the play, during the deliberative
process jurors’ individual goals and values, as well as collective assumptions and goals
interact. As a collective entity, the jury, its members had a final target, which they
must reach via deliberation: consensus about what is the best verdict. However, after
the preliminary vote, an assumption is added to the mutual cognitive environment of
the jurors: the collective goal is to discuss the evidence in order to form a collective
judgment based on detailed analysis.

The evidence

We will consider here two pieces of evidence: an eyewitness’ testimony,


testifying that the boy was the murderer, and an old man’ testimony, testifying that he
has heard the boy yelling at his father and after that the noise of a body falling on the
ground.
For all the jurors but one, it was not necessary to evaluate the evidence, just to
rely on the testimonies and on further evidence, to accept the conclusion that that
knife presented was precisely the boy’s knife, the one he used in the murder. Since the
ritual in the court mandated a preliminary vote, by this vote the jurors learned that
one among them was not certain that the boy was guilty; from that time on, many
agents revise their own cognitive environment, coming to realize they had no good
reasons basing that certainty. The deliberation process then goes to another level, to
one which mutually manifest cognitive goals and collective reasoning will be central.
As we can see, this plot exemplifies the claim of the Argumentative Theory of
Reasoning, by Mercier & Sperber (2011), according to which reasoning has a social
function of producing and evaluating reasons to convince others in dialogue. Their
hypothesis is that the function of reasoning is precisely argumentative. The
evolutionary claim is that the mechanism has probably evolved from argumentative
needs/constraints; as recognized by the Ancient Greeks, humans seem to reason
better when they need to argue with one another, thus forming, in most cases,
collective agents by ‘reasoning-together’ via argumentation. As already pointed out,
agents have goals, and they calibrate their decisions in view of their goals via
information-sharing and revision of the evaluation of reasons; centrally, they calibrate
the process by convincing one another of (doing) something and by looking for

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arguments that support a given conclusion. The next step of this paper is to address
dialogic and linguistic structures that reveal these moves in deliberation dialogues, like
the one we mention here. First, however, let us consider some aspects of deliberation
dialogues.

Deliberation dialogues

Deliberation dialogues can be stated as dialogues aimed at decision-making


about a course of action6. The target is to make a decision about what (is the best) to
do – just as the jury in 12 Angry Man needs to reach consensus about assigning (or
not) culpability to the individual in trial.
Deliberation is a central epistemic process, given that we have the chance to
update our own cognitive environment via other people’s input and evaluation, as well
as the chance to evaluate more carefully the evidence and our own treatment of the
evidence, thus enabling people to reach better reasoning, and even understanding
among them. Likewise, it is a relevant practical process, given it enables collective
actions and good outcomes.
Let us consider that agents assume deliberations as producing a common
commitment for action; this commitment to a particular course of action may guide or
constitute (such as in the case of a speech act like a verdict) agents’ actions concerning
other agents, institutions, resources. For that, cognitive resources may be required and
applied. In short, as a result of the type of goals involved, agents can reach consensus
because of practical goals (they are required by the State to make a decision within a
timeframe, and they want to fulfill the requirement) or/and because of cognitive goals
(in fact they agree upon what is the best option in the case).

Dialogue-based approaches

We are considering a deliberative scenario in which agents will make use of


argumentation to advocate for their positions. Dialogue-based approaches of
argumentation, or a ‘pragmatic conception of argument’, will centrally assume that: a)
argumentation is a dialogic process (JOHNSON & BLAIR, 1980); b) as such, arguments
are dialogue-moves, thus being evaluated as part of these structures and not as
independent objects; c) arguments are composed by speech-acts or by dialogue-

6
As McBurney et al. point out (2007, p. 3), deliberation dialogues, such as described by Walton and
Krabbe, are focused on what is to be done by the agents, here a group of individuals or a collective
agent, the jury.

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moves, as well as are used inside speech acts or moves; d) there is a structure of
interaction inside which the agents assume argumentative-dialogue roles (such as
questioners; see BLAIR & JOHNSON, 1987); e) the process starts and evolves by the
challenge of a position or assumption (or proposition, see BLAIR & JOHNSON,
1987a,b); f) each agent has a dialogue-goal concerning the process of argumentation,
centrally “to change or reinforce the propositional attitude”7 that agents are
committed to, by weakening or strengthening the plausibility of an assumption or
position8 (see WALTON & GODDEN, 2007).
Argumentation is, thus, understood as a dialogue-oriented activity and it can be
inside other types of dialogue-oriented activities, such as deliberations. Via
argumentation, we will put a position or assumption under consideration, and via
deliberation we will choose among the options made available.
The argumentative process is crucial because it starts by a question, or by any
expression of doubt (BLAIR & JOHNSON, 1987). For Walton et al. (2010), along with the
Amsterdam view, a dialogue-based argumentation has a three-stage structure: an
opening, an argumentation, and a concluding stage. Accordingly, in virtue of being
inside this dialogue structure, an argument is itself a process that goes through all
stages created by agents facing doubt or disagreement. It is a “social and verbal means
of trying to resolve a difference of opinion” (WALTON & GODDEN, 2007, p. 9).
Because of features like being communicative and reasoning moves made by
agents to put a position under dispute or evaluation inside a context of dialogue, we
can identify practical and cognitive roles of such uses of arguments. In deliberation
dialogues, besides the general aim of decision-making, we can have sub-structures,
stages or internal goals of the dialogue9. For example, we can assume that many
options are the case (stating them as true) and then we try to find the one that fits the
goals better; and/or we can create possible scenarios or courses of action; and/or we
can have a yes-no, in-out type of decision-making about a course-of action, among
other internal possibilities. In all these scenarios of dialogue, agents have a demand for
using reasons to choose one option and not the other, and then an argumentative
realm is open, since agents may or may not agree with each other.
In the plot, the jurors face a yes-no deliberation scenario, where they need to
decide if they present a position that there is or there isn’t a reasonable doubt

7
Please, see: Blair & Johnson, 1987.
8
We will assume that agents, especially in collective contexts, assume and are committed to positions
rather than have propositional attitudes of the type of believing. Dias (forthcoming) explores this point
in her work.
9
Please, see: McBurney et al., 2007.

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regarding something being the case, i.e. the boy’s guilt. Thus, in order to decide their
course of action, the verdict, they first need to reach a consensus about states-of-
affairs, about what may or may have not happened (regarding the testimonies), and
about their propositional attitude regarding the body of evidence, as sufficient or not
for their purposes. Since they do not have the condition to access decisive evidence to
reach consensus about a proposition such as ‘the boy killed the man’, they can only
reach consensus about a propositional attitude of the type ‘there is (no) reasonable
doubt that the boy killed the man’10.
These considerations being made, let us assume, for our purposes, some
dialogic structures that seem to be default in such contexts. In the next section, we will
address the agents involved and their dialogic moves, which are calibrated via a
Principle of Relevance11 (SPERBER and WILSON, 1986, 1995).

Let us reason via dialogue: moves and their relevance

Agency

We assume that in social interactions agents have epistemic and practical


12
goals , i.e. that agents aim both to improve their cognitive environment as well as to
choose the course of actions that will fulfill their interests, values, desires, judgments
and other cognitive states or that will give outcomes valuable to that agent welfare or
maintenance. We also assume that the same person can stand for different agents in
different contexts of interaction or institutional contexts, such as at home, at work, at
school, at a store, at the church, at the parliament, and so on, and that 'status-
functions' (using Searle's terminology, 1995, 2010) will regulate the cost-benefit
calculation of an agent (DIAS, forthcoming). That is to say that human beings have a
social cognitive capacity to stand for roles and that is a crucial mechanism to regulate
decision-making and interactions, not to say conceptualization itself. According to Dias’
proposal (forthcoming), human agents stand for 3 main types of agents: Individuals,

10
Taking into account the typology of dialogue proposed by Walton & Krabbe (1995): “Moreover,
information seeking and inquiry dialogues involve a search for the true answer to some factual question,
either by one participant or by all. In such a search for truth, appeals to value assumptions (goals,
preferences, etc.) would be inappropriate. However, this is not the case for deliberations, where a
course of action may be selected on the basis of such considerations.” (MCBURNEY et al. 2007, p. 3)
However, this deliberation involves precisely factual questions.
11
The Cognitive Principle of Relevance states that “human cognition is geared to the maximisation of
relevance”, resulting in the Communicative Principle of Relevance: “that utterances create expectations
of optimal relevance” (WILSON and SPERBER, 2004, abstract).
12
We will not address institutions as agents here.

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Members of groups and Groups (when representing collectives). As we already pointed


out, during the deliberative process presented in the plot of 12 Angry Man, jurors’
individual goals and values (as individual agents), as well as collective assumptions and
goals, interact. As a collective entity, though, the jury must deliver a verdict. As jurors,
they must reach consensus via deliberation.
In a context of collective agency, information is more or less manifest via a
default dialogic basis. By questions, answers, comments, replies, members of the
group construct a common ground of assumptions and evaluate their individual ones.
In the context of 12 Angry Man, an assumption is added to the mutual cognitive
environment of the jurors: they face the need to reach an agreement by changing a
member's mind or eleven members' mind, since one of them disagrees about the
certainty of the boy’s guilt. The collective epistemic goal then – before taken simply as
a practical goal imposed by institutional pressures – turns to be the evaluation of data
in order to find either decisive evidence of the boy’s culpability (represented by the
position of the majority of the jurors) or a reasonable doubt (represented by the
dissonant opinion of the juror number 8). They thus will reason aiming ultimately at a
verdict, via reasoning aiming at finding a reasonable doubt13.
We will make use of the conceptions behind the Deliberation Dialogue
Framework14 developed by McBurney et al. (2007), a protocol for deliberation
dialogues between computational agents, discussed by authors such as Douglas
Walton (see WALTON et al., 2010), on whose work the model is partially based 15. We
will assume, in view of McBurney et al.'s work (2007), some fixed norms that govern
the use of the locutions in the dialogue, such as: the order of dialogue stages16,
restrictions over content that is not functionally optimal to the decision-making

13
"In contrast to inquiry dialogues, deliberation dialogues have as their stated objective agreement on
some course of action, rather than a search for truth" (MCBURNEY et al. 2007, p. 22). We would say that
truth has a practical value here. "But how to judge the quality of a course of action? We are not given
antecedently a set of evaluative criteria (goals, constraints, considerations, etc) in terms of which one
could theoretically determine, given all the relevant factual circumstances, what is the “best” answer to
the governing question" (2007, p. 23). We can make a point here that a Principle of Relevance, or a cost-
benefit calculation, is central.
14
They work with an eight-stage dialogue model: Open, Inform, Propose, Consider, Revise,
Recommend, Confirm and Close.
15
“The DDF protocol was based on a model for deliberative reasoning taken from argumentation
theory, namely Harald Wohlrapp’s theory of Retroflexive Argumentation [84]. Moreover, we showed
that the protocol conforms to the majority of a set of normative principles proposed for rational mutual
inquiries between humans.” (MCBURNEY et al. 2007, p. 24)
16
“Staging: An inquiry dialogue should proceed by a series of stages, from initial clarification of the
question at issue and of the methods of resolving it, through data gathering and interpretation, to
formation of arguments.” (2007, p. 20)

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(irrelevancies, interruptions, and transitions to other types of dialogues). Equally, we


will consider pre-conditions of the dialogue: decision-procedures assumed as constant,
weighting of votes, power of the participants in relation to one another, as well as
consequences of the utterances put forward by each agent inside the dialogue:
consequences of alternative courses of action, revision, inference-making. For us here,
when an agent publicly asserts a locution in this game he is explicitly committed with
it. The dialogue game here is constructed by interactions among 12 jurors. Each
locution uttered inside this dialogue is considered a “move” of this dialogue game. The
point is that a “move” is an action or a reaction to a previous move inside and
composing a dialogue framework (see WEIGAND, 2009, 2010).

Analysis

We will illustrate the above mentioned considering the witness number 1 (old
man who testified to have heard a discussion between the boy and the father) and the
witness number 2 (the neighbor who said to have seen the crime). These two
moments appear at different times in the narrative.

Evidence – Testimony 1

NO.317: Okay, let's get to the facts. Number one, (…).


FOREMAN: And the coroner fixed the time of death at around midnight.
NO.3: Right. Now what else do you want?
NO. 8: An el takes ten seconds to pass a given point or two seconds per car. That el
had been going by the old man's window for at least six seconds and maybe more, before
the body fell, according to the woman. The old man would have had to hear the boy say
"I'm going to kill you", while the front of the el was roaring past his nose. It's not possible
that he could have heard it.
NO. 3: What d'ya mean! Sure he could have heard it.
NO. 8: Could he?
NO. 3: He said the boy yelled it out. That's enough for me.
NO. 9: I don't think he could have heard it.
NO. 2: Maybe he didn't hear it. I mean with the el noise....
NO. 3: What are you people talking about? Are you calling the old man a liar?
NO. 5: Well, it stands to reason.
[...]
NO.5: I'd like to change my vote to not guilty.

17
As we mentioned, each juror is identified by a number. We will use the number to identify them.

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This sub stage of the dialogue starts with a presentation of evidence. (“Okay, let's
get to the facts. Number one (…)”). The next move is a follow up comment about the
evidence, adding information to the common ground (“And the coroner fixed the time of
death at around midnight.”). In the sequence, juror#3 makes clear that each contribution is
a move towards the decision-making process, where they need to decide in favor or not the
view that the boy was guilty; this juror was certain of the boy’s guilt (“Now what else do
you want?”). Juror#8, then, questions the evidence. As a reaction to this move, juror#3
questions juror#8’s conclusion (“What d'ya mean! Sure he could have heard it”). Juror#8
poses a doubt to juror#3 and the others (“Could he?”) instead of reasserting a conclusion.
This gives room to other agents’ manifestation (“I don't think he could have heard it”,
“Maybe he didn't hear it. I mean with the el noise”). Given these moves, juror#3 reacts
(“What are you people talking about? Are you calling the old man a liar?”). Juror#5, then,
observes that the conclusions other jurors reach is just a conclusion that follows from their
evaluation of the premises as stated to the group (“Well, it stands to reason”). Considering
these cognitive and dialogic effects, juror#5 changes his position to ‘not guilty’ (“I'd like to
change my vote to not guilty”).
Together, they evaluate the evidence, and some of them agree over the
insufficiency of time as declared by the testimony and the conditions for the man to
have heard the boy yelling at the father. Given the new evidence that weaken the old
man’ testimony, one juror changes his position.

Evidence – Testimony 2

NO. 10: Look, what about the woman across the street? If her testimony doesn’t prove
it, then nothing does.
[...]
NO. 12: (…) She looked into the open window and saw the boy stab his father. She saw
it. Now if that's not enough for you.... [...]
NO. 8: All right. Let's go over her testimony. What exactly did she say?
NO. 4: I believe I can recount it accurately. (…) As far as I can see, this is unshakable
testimony.
NO. 6: Well, I was thinking. You know the woman who testified that she saw the killing
wears glasses.
NO. 3: So does my grandmother. So what?
NO. 8: Your grandmother isn't a murder witness.
NO. 6: Look, stop me if I'm wrong. This woman wouldn't wear her eyeglasses to bed,
would she?
FOREMAN: Wait a minute! Did she wear glasses at all? I don't remember.

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NO. 11: (excited). Of course she did! The woman wore bifocals. I remember this very
clearly. They looked quite strong.
NO. 9: That's right. Bifocals. She never took them off.
NO. 4: She did wear glasses. Funny. I never thought of it. [...]
NO. 8: Does anyone think there still is not a reasonable doubt? [...]
NO. 4: (quietly). No. I'm convinced.
NO. 3: Well, I told you I think the kid's guilty. What else do you want?
NO. 8: Your arguments. [They all look at NO. 3:] […]
NO. 3: (thundering). All right!

The above line of thought and action started with an opening state, in which
juror#10 manifests certainty about a witness’ testimony. That epistemic attitude is
endorsed by another juror, juror#12, who explicitly assumes the presentation of that
information as a dialogic / epistemic move endorsing a position to be chosen (“if that’s
not enough for you”). Juror#8 is the one who conducts the collective evaluation of the
evidence (“All right. Let's go over her testimony. What exactly did she say?”), implying
that they should not start from the presumed conclusion but from the premises’
evaluation. It opens space for a ‘thinking out loud’ process, where each one
contributes for the collective process (“Well, I was thinking (…)”). The reaction to it is a
request for clarification on the value of that information to the process (“So does my
grandmother. So what?”). The follow up moves are adequate reactions inside this
argumentative process (“Look, stop me if I'm wrong (…)”, “That's right (…)”), following
a chain of argumentative structures and cognitive effects (“(…) I never thought of it.”).
Given these effects, the agents could derive conclusions from the premises (“Does
anyone think there still is not a reasonable doubt?”). At the end of the process, one
agent changes his position (“No. I'm convinced.”). On the other hand, one of the
agents, juror#3, still claims that the boy is guilty (“Well, I told you I think the kid's
guilty. What else do you want?”). Juror#8, however, asks him about the reasons, in the
form of arguments, grounding his epistemic attitude (“Your arguments”). With no
reason to provide and in view of the reasons already provided throughout the dialogue
by the other jurors, the agent accepts the fact he has no evidence to justify his position
and then accepts the conclusion reached so far (“All right!”).

Via argumentation, each member had the chance to update their cognitive
environment, given the new information made available by each member by means of
the collective evaluation of the evidence. It was required the engagement of many
members in the process, by bringing reasons in the form of arguments as well as

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questions; in this regard, juror#8 was central for the whole process, since he posited
doubt where there was certainty. The way he conducted the dialogue was extremely
helpful to bring those pieces of information together and to evaluate them in order to
ground the conclusion that there was reasonable doubt regarding the boy’s guilt. It is
worth noting that a knife found in the crime scene is another decisive piece of evidence.
Given the stated information that the knife was of an unusual type and difficult to find,
juror #8 shows a knife of the same type he had in his pocket. On the basis of this
counterevidence, some of the jurors changed their initial position to not guilty. This
reveals that the jurors changed their understanding about the evidence during that
dialogue exchange, as a result of cognitive changes made possible by communication.
Together, by bringing reasons and evaluating them, the agents, collectively,
composed a picture no one could privately see. Inside a scope of deliberative dialogue,
they constructed the required argumentative structure they needed to deliver a final,
justified position. Their decision-making was a result of reasoning via dialogue.
Consequently, 11 members of the group changed their initial position, thus reaching
consensus. The conclusion could not be proven, but only confirmed by premises. The
move made by a juror, suggesting that it was up to them to convince juror#8 about the
fact that they were right and he was wrong, can be read as an illustration of a claim of
the Argumentative Theory of Reasoning: that reasoning has an argumentative function,
where people, here taken as agents, reason better when trying to persuade others.

Conclusion

In this paper, we addressed dialogic moves in deliberative dialogues. Juror #8


was the one who showed greater argumentative ability, not only for bringing about
evidence, but also for his cognitive ability in the conduction of the dialogue, by asking
key questions and presenting answers such as “I don’t know” for questions like “Do
you think he’s guilty?” or even comments such as “I don’t want to change your mind. I
just want to talk for a while”. The following conclusions were based on premises
evaluated by members of the group; the final product, a practical move, was not
reached by previous imposition of a conclusion. The reasoning path constructed via
dialogue led them to a unanimous decision.

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CHARGES POLÊMICAS: VOZES SOCIAIS EM TENSÃO

Tamiris Machado Gonçalves1

Introdução

Reflexões em torno da linguagem têm marcado distintas áreas do saber. Em


quadros teóricos diversificados, com princípios e métodos diferentes, compreender a
linguagem é fascinante. Centrando o olhar na construção dos sentidos no discurso,
ancorando-se nos pressupostos do Círculo de Bakhtin, neste artigo é colocada a
questão de como se dá a construção dialógica dos sentidos no discurso chargístico 2.
A charge é um gênero que se constitui a partir de acontecimentos sociais que
sejam contemporâneos a ela. Assim sendo, faz-se oportuno o questionamento de
como se dá a construção dialógica de sentidos, considerando a produção e recepção
do discurso, em charges tidas como polêmicas por tratarem sobre mortes trágicas.
Nessa perspectiva, os objetivos desse trabalho são (a) examinar de que forma
diferentes vozes sociais que atravessam charges polêmicas sobre morte trágica se
engendram e refletem e refratam sentidos no discurso e (b) discutir sobre discursos-
resposta que emergem a partir das charges polêmicas em questão. Delimitou-se como
recorte de pesquisa uma charge de Chico Caruso e discursos-resposta a ela
relacionados, todos veiculados em meio digital em 2013 e que fizessem referência a
fatos divulgados pela mídia brasileira também nesse ano.
A fim de obter uma análise dialógica que envolva o material discursivo sob um
viés sociológico, como embasamento teórico, recorre-se às ideias postuladas por
Bakhtin e seu Círculo, especialmente os conceitos de gêneros discursivos, enunciado,
signo ideológico, acento de valor e vozes sociais.
Quanto à organização deste artigo, após estas considerações iniciais, será
apresentada uma explanação dos conceitos bakhtinianos, sobretudo das noções de

1
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS, área de concentração Linguística.
Bolsista CNPq. E-mail: mtamiris@gmail.com
2
Recorte da dissertação de mestrado Vozes sociais em confronto: sentidos polêmicos construídos
discursivamente na produção e recepção de charges, defendida em 2015. Disponível em
http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/7160/1/000466609-Texto%2BCompleto-0.pdf

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gêneros do discurso, enunciado, signo ideológico, acento de valor e vozes sociais.


Depois, será feita a análise do recorte de pesquisa, com vistas a compreender a
produção de sentidos em circulação. Ao final, serão apresentadas as considerações
finais que visam expressar a conclusibilidade necessária para dar lugar à atitude
responsiva de outros pesquisadores que desejarem dialogar com esse material de
estudo.

Teoria dialógica do discurso

O Círculo de Bakhtin é uma das teorias que possibilita problematizar a


produção, circulação e recepção do discurso nos mais variados campos de atuação
humana. Questões como a unicidade e a eventicidade do Ser, a relação eu/outro, a
axiologia inerente ao ato humano, conceitos elaborados pelos estudos bakhtinianos,
ajudam a compreender e conceber a linguagem e a partir daí construir um ponto de
vista – lembrando o que disse Saussure, em Curso de Linguística Geral, que o ponto de
vista é que faz o objeto.
O discurso, conforme as ideias do Círculo, é tomado como a língua/linguagem
concreta e viva. Por meio das enunciações, o discurso constitui-se como um fenômeno
social3 complexo, advindo das relações humanas mais variadas. Amparado no curso do
tempo, o discurso está em diálogo com já-ditos, discursos passados, bem como com a
projeção de discursos-resposta, discursos futuros solicitados pela situação enunciativa.
Sua complexidade está na diversidade de vozes que o constituem. Essas vozes são as
apreciações, os pontos de vista, as valorações que o sujeito exprime frente ao mundo
que a ele se coloca diante de seus parceiros na comunicação discursiva. Isso significa
dizer que o discurso nutre-se de enunciados concretos produzidos por sujeitos
históricos sempre em relação dialógica e sob posições avaliativas que movimentam a
permanente renovação dos sentidos (BAKHTIN [1929] 2008, p. 71; 86-89).
Em seu caminho até o objeto, o discurso encontra-se com discursos outros que
lhe antecedem e lhe sucedem. Essa orientação dialógica é característica de todo
discurso e acontece necessariamente na enunciação concreta. A charge, o objeto de
estudo deste artigo, é um gênero que se origina de fatos sociais e os (re)significa para
construir seu próprio discurso que, engendrado pela posição avaliativa de seu locutor
situado em um tempo e espaço definidos, irá colocar-se como único na cadeia
discursiva.

3
Em O discurso no romance, Bakhtin ([1929] 1998, p. 71) ressalta que o discurso é um fenômeno social.

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O discurso, portanto, é composto de uma multiplicidade de vozes advindas das


diferentes experiências de interação humana. É essa diversidade de vozes, pois, que
leva o Círculo a considerar que a linguagem não é reflexo direto da realidade dos fatos
da vida, mas materializa-se como construção discursiva dos fatos sociais e deixa
entrever, a partir dos signos ideológicos, as apreciações valorativas sobre o mundo em
que o ser humano está inserido.
Os signos ideológicos não são um decalque da realidade – porque esta é uma
construção semiótica –, eles a refletem (reverberam a realidade a que apontam) e
refratam (são interpretados pelo locutor de acordo com suas múltiplas vivências). A
esse respeito, Faraco (2009, p. 50-53) observa que os signos podem apontar para a
materialidade do mundo, sua realidade externa, mas esse processo acontece de modo
refratado. Explica o autor que a noção de refração diz respeito às valorações que se
inscrevem no signo, são os múltiplos modos de semantização dos fatos da vida social,
gerados a partir das experiências humanas com base na carga história que carregam,
devido à heterogeneidade de sua práxis. Em vista disso, no processo de constituição
dos sentidos, então, temos dois movimentos imbricados: o reflexo e a refração.
Nessa perspectiva, o sentido do signo não é imanente, não é dado por si. Os
sentidos, pois, são construções humanas experienciadas a partir de grupos
socialmente organizados e só podem ser plenos na enunciação. Devido à
multiplicidade e heterogeneidade das relações humanas, os signos estão sempre
carregados das interpretações do mundo que se produzem na e por meio da
enunciação. As relações dialógicas alimentam essas interpretações do mundo,
atualizando, no discurso, o que as relações lógicas (fenômenos sintáticos, semânticos e
lexicais) sinalizam como possibilidade de sentido.
A experiência social, a cultura, é o que preenche o signo – daí essa
especificação (ideológico) que faz toda a diferença ao demarcar que não mantém
relação com o conceito saussuriano de signo, ao qual, em Marxismo e filosofia da
linguagem, o Círculo tece critica fundamentando que essa identidade imutável e
sistemática lhe confere caráter de sinal ([1929] 2009, p. 96). Como na natureza nada é
ideológico por si, são as relações sociais, e as valorações construídas nessas relações,
que dão a valência dos signos. Nas palavras de Bakhtin/Volchínov ([1929 ] 2009, p. 32-
33)4:

4
Neste artigo, não se entra na discussão acerca da autoria dos textos considerados disputados. Assim
sendo, citamos os nomes conforme as referências consultadas apresentam. No caso de Marxismo e
filosofia da linguagem, por exemplo, temos um autor, mas a menção de dois nomes, por isso
Bakhtin/Volochínov. Como a questão autoral discute se um ou outro é o autor, não acreditando em

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[...] todo o produto natural, tecnológico ou de consumo pode tornar-


se signo e adquirir, assim, um sentido que ultrapasse suas próprias
particularidades. Um signo não existe apenas como parte de uma
realidade; ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer
essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista
específico, etc. Todo o signo está sujeito aos critérios de avaliação
ideológica (isto é, se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom,
etc.). O domínio ideológico coincide com o domínio dos signos: são
mutuamente correspondentes. Ali onde o signo encontra-se,
encontra-se também o ideológico.

Dessa maneira, o conceito de signo ideológico implica o de acento de valor, isto


é, um juízo crítico expresso por um sujeito circunscrito em determinada cultura.
Quando a ideologia atravessa um objeto (concreto ou abstrato), tem-se um signo
ideológico.
Ocorre que a construção dos objetos é ela própria delineada pelo traço
axiológico porque essa é uma característica de todo discurso. Como o aspecto social é
o eixo norteador da teoria dialógica do discurso, a linguagem edifica-se a partir da
noção de relações sociais, que advinda de sujeitos situados em um tempo e um espaço
definidos, constituem o que o Círculo chama de índices de valor, que justamente é esse
acento de valor compartilhado socialmente.
Assim, todos os enunciados que compõem a entidade maior que é o discurso,
são atravessados por um acento de valor – que na teoria aparece com distintos nomes:
valoração, ideologia, acento de valor, expressividade. O importante é saber que o
adjetivo ideológico que acompanha o termo signo lembra que tudo o que é ideológico
é um signo. Como o discurso é permeado de signos ideológicos, não há discurso
neutro, isento de uma valoração – nessa lógica não existem signos, nem palavras, nem
enunciados neutros. A explicação está fixada na constituição social da linguagem.
Outro argumento é que todo signo encontra-se na cultura imaterial, ou seja,
em alguma das instancias superestruturais como a religião, a filosofia, as artes, a
política, etc. “[...] Cada campo da criatividade ideológica tem seu próprio modo de
orientação para a realidade e refrata a realidade à sua própria maneira”
(BAKTHIN/VOLOCHÍNOV [1929] 2009, p. 33). Isso significa dizer que cada campo forma
seu teor axiológico, compondo índices de valor social determinados e, justamente

dupla autoria, os verbos são colocados no singular – a julgar pela própria apresentação do livro feita por
Roman Jakobson que traz verbos no singular.

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nessa ótica, é que não há neutralidade porque o signo não só reflete, mas refrata a
realidade, dando vida a pontos de vista.

Morte trágica

Trazemos para discussão uma charge de autoria de Chico Caruso, publicada na


primeira página do jornal O Globo5 do dia 28 de janeiro de 2013. A charge também foi
veiculada no mesmo dia, na seção humor, pelo Blog do Noblat6, um espaço do
colunista do jornal O Globo, Ricardo Noblat.
Sob a forma de um quadro, temos uma cena que dialoga com o incidente da
cidade de Santa Maria. Na charge vemos uma figura humana feminina vestida com
camisa vermelha, calça preta e sapatos de salto. Ela leva as mãos à cabeça em alusão
ao sentimento de espanto. A sua frente está um quadrado de ferro com grades, que
nos remete a uma jaula, tomada por fogo. Desse espaço saem mãos humanas
posicionadas para cima como que pedindo ajuda e bocas abertas como de pessoas que
gritam. Centralizada na parte inferior da charge, há uma voz que exclama: – Santa
Maria!

Figura 1 – extraída do Blog do Noblat em 17/05/2014

5
Disponível em http://memoria.oglobo.globo.com/jornalismo/primeiras-paginas/o-horror-na-boate-
8978056. Acesso em 17 de maio de 2013.
6
Disponível em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2013/01/28/a-charge-do-chico-caruso-
484094.asp. Acesso em 17 de maio 2014.

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Com base na observação da charge, podemos perceber que há signos


ideológicos que refletem a situação do incêndio na boate gaúcha e refratam
sentimentos como agonia e tristeza. Essa apreciação dá-se em razão de as pessoas
estarem presas em um quadrado de ferro, o que simboliza a não possibilidade de fuga.
Também a julgar pelos signos ideológicos mãos levantadas pedindo ajuda e bocas
abertas como de pessoas que gritam. Tudo isso nos leva a concluir, a partir do valor
que esses signos têm na sociedade em que estamos inseridos, que as pessoas pediam
por socorro.
Nessa cena, temos ainda um marcador de diálogo, centralizado na parte
inferior da charge, que diz “Santa Maria!”. Introduzida por um travessão, essa marca
de diálogo expressa uma voz social que pode refletir e refratar três entonações
distintas, mas sobrepostas: a) interjeição de espanto que reforça os elementos não
verbais (figura humana leva as mãos à cabeça em sinal de susto, assombro), b)
interjeição de temor expressa pela invocação de nomes santos (a exemplo de outras
expressões fixadas na língua com a mesma valoração: “santo Deus”, “meu Deus”,
“minha nossa Senhora”) e c) referência à cidade gaúcha Santa Maria.
Outro signo ideológico que podemos perceber são as cores da vestimenta da
figura humana que aparece na charge. As cores preto e vermelho podem refletir o
Partido dos trabalhadores (PT) e refratar um possível envolvimento deste no incêndio
da boate em Santa Maria. Esse signo ideológico pode também refratar questões
políticas de diferentes instâncias porque o Partido dos Trabalhadores, em teoria, tende
a ideias de esquerda, é o partido do presidente do Brasil, e o jornal e o blogue em que
a charge foi publicada podem ser compreendidos como tendo uma orientação de
direita.
Assim, a charge pode constituir uma crítica ao partido que está no poder e que,
em tese, teria controle de situações como esta e é negligente em não fiscalizar os
estabelecimentos – seja na instância que for, afinal, os governos federal e estadual
eram na época da tragédia dirigidos por petistas. A própria capa do jornal O Globo em
que a charge foi publicada nos dá subsídio para essa valoração. Com a manchete
“Descaso mata 231 jovens no sul”, conforme podemos ver na figura 2, a capa
apresenta diferentes discursos sobre a tragédia na boate gaúcha.

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Figura 2 – extraída do jornal O Globo em 18/04/2014.

As orientações de esquerda e de direita no que tange à política formam um


tenso confronto ideológico. O jornal O Globo, assim como o Blog do Noblat, é
vinculado à Rede Globo que, por sua vez, pelo teor de suas publicações, podemos
entender que tem orientação política de direita. Isso significa dizer que, de alguma
forma, a publicação da charge nesse espaço pode sugerir o envolvimento do PT no
incêndio da boate, seja de maneira indireta pela não fiscalização, por exemplo, das
licenças de funcionamento da casa noturna, seja por razões de omissão de socorro por
parte das autoridades competentes.
Isso pode se justificar pelo fato de a figura humana que aparece na charge estar
apenas observando a situação. As mãos e bocas que aparecem refletem e refratam um
pedido de ajuda, mas a pessoa na ilustração observa com espanto a situação de longe.
Não age em prol das vítimas. Além disso, no plano gráfico, ela está posicionada
levemente acima da perspectiva de enquadramento da jaula pegando fogo,
configurando afastamento da situação.

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Na leitura inicial dessa charge, com base em seus elementos verbo-visuais,


poderíamos dizer que a figura humana que aparece assombra-se com a situação da
tragédia. Assim, teríamos uma leitura linear sobre o incêndio na Boate Kiss. Essa seria
uma interpretação possível, mas não estaríamos considerando questões como: quem
essa pessoa representa, por que essa figura humana foi assim retratada; por que a
tragédia foi ilustrada dessa perspectiva; onde foi publicada a charge etc.
Ao relacionar os elementos da charge ao contexto histórico da enunciação e
considerando as demais possíveis vozes que atravessam o discurso, em uma leitura
crítica, podemos pensar que talvez o incidente tenha sido um motivo para manifestar,
de modo velado, confrontos ideológicos de esferas discursivas diferentes (orientação
partidária), conforme apresentamos em nossa apreciação. Assim, a partir dessas
reflexões, podemos perceber na charge vozes referentes ao incêndio da boate em
Santa Maria, vozes acerca do discurso político e também vozes que entoam um
discurso religioso.
A publicação da charge de Caruso foi alvo de comentários7, em alguns sites,
como é o caso do Portal Fórum, que através de um espaço intitulado Blog do Rovai
veiculou no dia 28 de janeiro de 2013 uma matéria intitulada Jornalismo urubu: Chico
Caruso, Noblat e a canalhice de fazer humor com Santa Maria8. O autor do texto
menciona que a charge é vista como um insulto. Acrescenta, ainda, a indignação de ter
no Blog do Noblat a charge vinculada à palavra humor e que sua publicação foi “uma
tentativa barata de agredir a presidente e politizar a tragédia”.
O site Observatório da imprensa9, por sua vez, publicou no dia 29 de janeiro um
artigo intitulado “A emoção útil e a charge infeliz”. Nele podemos ler que:

Não há dúvida de que qualquer discurso comporta mais de uma


interpretação, mas exatamente por isso o argumento de Noblat10 não

7
Só no Blog do Noblat existem 252 comentários repudiando a publicação da charge.
8
Disponível em http://www.revistaforum.com.br/blogdorovai/2013/01/28/jornalismo-urubu-chico-
caruso-noblat-e-a-coragem-de-fazer-humor-com-santa-maria/. Acesso em 17 de maio 2014.
9
Disponível em http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/a_emocao_util_e_a_charge_
infeliz. Acesso em 18 de maio de 2013.
10
“Os que criticam a charge do Chico Caruso perderam o bom senso, a se levar em conta a violência
com que escrevem. O que a charge tem de chocante, de desrespeitosa com quem quer que seja? Dilma
pôr as mãos na cabeça e dizer ‘Santa Maria’? Isso é um absurdo? [...] Dilma não faz política quando grita
‘Virgem Maria’. Nem a charge sugere isso. Dilma revela seu desespero. Sua inconformidade. Que é
nossa também. Ela não tem culpa alguma pelo que aconteceu. Foi solidária com todos os que sofrem.
Esteve em Santa Maria. Sinceramente se comoveu com o que viu. O que tem mais na charge? A boate
transformada numa prisão? As janelas gradeadas? As mãos crispadas dos que ali ficaram retidos
clamando por ajuda? Mas não foi mesmo numa prisão em que a boate se transformou? Numa

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se sustenta: porque a desqualificação de seus interlocutores ao final


– “vocês não sacaram nada, nadinha” – supõe um sentido único e, a
rigor, muito improvável, dada a sistemática postura do jornal contra
o governo petista. (Comentário 1)

A declaração de que “[...] qualquer discurso comporta mais de uma


interpretação [...]” faz referência ao comentário do colunista Noblat, veiculado em seu
endereço eletrônico Blog do Noblat, em razão das críticas à publicação da charge de
Caruso.
As charges que dialogam com o incêndio da boate em Santa Maria foram alvos
de críticas por terem sido vinculadas em um momento delicado em que a população
brasileira sofria por conta da tragédia na cidade gaúcha. Muitas pessoas sensibilizadas
com a dor das famílias que perderam filhos, conhecidos, amigos, pessoas que lhes
eram próximas tomaram as charges como agressivas, como uma forma de insulto.
As charges dialogam com o incidente, refletem a situação vivida pelas vítimas.
Por outro lado, refratam sentidos diferentes porque cada indivíduo aproximou-se de
alguma forma da dor causada pela tragédia. Assim, as críticas apareceram sobre o
entendimento de que a charge é um gênero de humor e não cabe humor frente à
morte. No horizonte social em que nos encontramos enquanto sociedade brasileira, a
morte é normalmente valorada como um período de sofrimento e condenação. As
vozes que estão “autorizadas” pelos valores fixos que conduzem os comportamentos
sociais são aquelas que ressoam pêsames, condolências e sentimentos de lamento
frente às perdas.
Após analisarmos os discursos que colocamos em questão, foi possível
perceber que a produção do sentido não está somente em um dos parceiros
comunicativos, isto é, não é de domínio do locutor (embora ele tenha um projeto
enunciativo, o sentido não é de sua exclusividade), tampouco responsabilidade única
do interlocutor, no entendimento de que ele não pode realizar qualquer interpretação
do discurso que lhe chega. O sentido, pois, é edificado na relação entre locutor, objeto
e interlocutor sempre com base nas relações dialógicas que se apresentam na cadeia
discursiva. Isso quer dizer que o ouvinte, por exemplo, não pode tomar isoladamente o
discurso que recebe, tem de compreendê-lo na continuidade dos discursos já-ditos.
De toda forma, a relação dialógica que promove a produção dos sentidos em
circulação pode se dar com os discursos selecionados pelo interlocutor, devido à

armadilha? Numa ratoeira? Perdão, mas vocês não sacaram nada, nadinha” (extraído de Observatório
da imprensa).

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valoração que ele faz do discurso ao qual está tomando uma atitude responsiva ativa.
Nessa perspectiva, essa seleção de discursos e as relações com ele feitas podem
originar leituras diferentes daquelas apontadas pelo projeto enunciativo do locutor
que o interlocutor responde, causando sentidos polêmicos, conforme foi discutido
durante as análises.

Considerações finais

Charges que abordam a temática da morte tendem a serem polêmicas: ou são


vistas como insulto ou entendidas como homenagem às vítimas. Como a charge é um
gênero que se constitui a partir de acontecimentos sociais que sejam contemporâneos
a ela, fez-se oportuno o questionamento de como se dá a construção dialógica dos
sentidos, considerando a produção e recepção do discurso, em uma charge tida como
polêmica por tratar sobre morte trágica.
Nessa perspectiva, este trabalho visou (a) examinar de que forma diferentes
vozes sociais que atravessam charges polêmicas sobre morte trágica se engendram e
refletem e refratam sentidos no discurso. Para tanto, analisou-se como recorte de
pesquisa uma charge de Chico Caruso em diálogo com discursos-resposta a ela
relacionados, todos veiculados em meio digital em 2013 e que fazem referência a fatos
divulgados pela mídia brasileira também nesse ano. Como embasamento teórico,
recorreu-se às ideias postuladas pelo Círculo de Bakhtin.
Destacamos, quanto às considerações finais, que charges que dialogam com
incidentes trágicos, geralmente, são alvos de críticas por serem veinculadas em um
momento delicado. Assim, sublinhamos que não só os elementos culturais são
importantes para a valoração que se faz da charge como o momento histórico da
enunciação em que ela é edificada importa para compreendê-la, bem como entender a
polêmica de sua recepção.

Referências

BAKHTIN, M/VOLOCHÍNOV, V.N. Marxismo e filosofia da linguagem (1929). Trad.


Michel Laud e Yara Frateschi. São Paulo: Hucitec, 2009.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de
Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2009.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. Trad. Antônio Chelini, José Paulo
Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1999.

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O PAPEL DA LINGUAGEM NA FUNDAÇÃO DA SINGULARIDADE DO SER E DA AÇÃO:


DIÁLOGOS FILOSÓFICOS ENTRE M. BAKHTIN E H. ARENDT

Thaís de Andrade Lima1

Este ensaio tem por objetivo relacionar os construtos teóricos do ato ético e da
ação, estabelecendo um diálogo filosófico entre M. Bakhtin e H. Arendt, utilizando
como fundamento principal as discussões acerca do papel da linguagem na fundação
da singularidade do ser, desenvolvidas em suas respectivas obras: Hacia uma filosofía
del acto ético. De los borradores y otros escritos2 (BAJTIN, 1920-24/1997) e A condição
humana3 (ARENDT, 1958/2007).
Buscamos refletir sobre o lugar da linguagem na relação do Ser com o Outro e
na fundação da singularidade, que está sempre aliada à relação de alteridade,
tomando como referência a arquitetônica do ser proposta por Bakhtin e a visão de
ação política proposta por Arendt. Para esse fim, retomaremos a concepção
bakhtiniana de pensamento participativo, que envolve o componente emocional e
volitivo do ser único e singular, enquanto acontecimento concreto, que encontra seus
fundamentos no pensamento performativo, remetendo ao “eu como agente
singularmente responsável pelo seu ato” (BAJTIN, 1997, p. 52). Esse ato, por sua vez,
está sempre impregnado de posicionamento axiológico, que afeta a maneira pela qual
o sujeito imprime nele a sua assinatura, cujo processo passa, necessariamente, pelo
confronto do olhar do Outro.
Nesse contexto, examinaremos também a ação como condição humana
essencialmente relacionada à linguagem na vita activa, partindo da ideia de que é na
ação e no discurso que os homens revelam ativamente suas identidades pessoais e
singulares, mostrando quem são, uma vez que o discurso possui uma qualidade

1
Doutoranda em Linguística na Universidade Federal de Pernambuco, vinculada ao grupo do CNPq
Linguagem, memória, saúde de trabalho. E-mail: thaisdealima@hotmail.com
2
O original da obra deve ter sido escrito entre 1920 e 1924 e permaneceu como manuscrito inacabado e
sem título até ser publicado postumamente na Rússia em 1986. A versão utilizada neste trabalho é uma
versão espanhola de 1997, traduzida do russo por Tatiana Bubnova. As traduções em português que
aparecem neste trabalho foram feitas por mim. A data aparece em dois formatos (original e da edição
utilizada) apenas nesta primeira referência e no corpo do texto apenas a data da edição.
3
Livro publicado em inglês The human condition em 1958. A versão utilizada neste trabalho é a 10a
edição de uma tradução de Roberto Raposo, de 2007. As data aparece em dois formatos (original e da
dição utilizada) apenas nesta primeira referência e no corpo do texto apenas a data da edição.

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reveladora no âmbito do quem é ele, enquanto homem, questão esta que vem à tona
na convivência e na interação dos seres humanos. Espera-se que os relações e
reflexões iniciadas neste estudo possam iluminar os caminhos trilhados por ambos os
pensadores acerca do papel da linguagem na fundação da singularidade do ser e da
ação.
Para entender a possibilidade deste diálogo, é importante localizar os
interesses de Bakhtin e Arendt dentro de um arcabouço epistemológico anterior
maior: a fenomenologia de Husserl. Para tanto, faremos uma breve inserção
biográfica, a fim de esclarecer os traços de uma filiação fenomenológica em ambos,
que se configura sobretudo no posicionamento frente às ciências modernas.
Bakhtin mergulhou nos estudos de filosofia alemã desde muito cedo e tomou
como fio condutor de suas reflexões os problemas formulados pelos neokantianos
(FARACO, 2009), encontrando respostas originais, posicionando-se de encontro ao
saber monológico preconizado pela exatidão das ciências modernas.
O filósofo traz em sua obra a distinção essencial entre mundo da vida e mundo
da cultura, discussão que foi amplamente desenvolvida por Husserl em termos de
diferenciação do mundo da vida e do mundo da ciência, para tratar da questão do
conhecimento e da verdade, sugerindo uma atenção especial para os fenômenos da
vida, da experiência vivida, uma vez que estes haviam sido deixados de lado no
arcabouço do cientificismo moderno. Arendt, por sua vez, foi aluna e amiga de Husserl
e Heidegger, o que localiza sua filosofia em um constante diálogo com esses
pensadores, sobretudo na forma como desenvolveu suas análises sistemáticas dos
fenômenos e seus modos de aparição na existência mundana, afastando-se, assim, de
um enquadramento em categorias de análise pré-fixadas.
Ela se interessou por política, designando-se ela mesma, não como filósofa,
mas como cientista política. Na busca pelo entendimento do ser humano nas relações
políticas, analisando as características da ação humana na vita activa4, avaliou a
insuficiência entre fatos e teorias tal como ocorre dentro das formas de conhecer do
quadro epistemológico da modernidade e da ciência que se estabelece nessa era,
discussão que aparece também em Bakhtin, quando reflete acerca da insuficiência do
mundo da cultura (do saber teórico) para abarcar a singularidade do ato ético
responsável.

4
Em A condição humana, Hannah Arendt utiliza a expressão vita activa para designar as três atividades
humanas consideradas por ela como fundamentais: labor, trabalho e ação. Segundo ela, “a cada uma
delas corresponde uma das condições básicas mediante as quais a vida foi dada ao homem na Terra”
(2007, p. 15). Neste trabalho nos deteremos a discutir apenas a condição da ação, uma vez que ela é
única da qual o homem não pode se abster do discurso.

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É importante acrescentar aqui que, para Arendt, o campo da política não é o da


razão pura de Platão, nem o da razão prática de Kant, “pois em ambos os casos os
modos de asserção do conhecimento têm [...] uma estrutura monológica” (LAFER,
1952 apud ARENDT, 2014, p.17). Assim, Arendt aponta para um lugar de inserção da
política que extrapola os preceitos da ética ocidental, em que a consciência está
relacionada à concordância consigo mesmo. O campo da política é, na perspectiva
apontada por ela, o campo do pensamento plural, o que significa justamente um
deslocamento da consciência fixada em conformidade com o eu para a capacidade de
pensar no lugar e na posição dos outros.
O diálogo entre Bakhtin e Arendt se configura, assim, a partir do foco na
questão da alteridade, ponto nodal para o desenvolvimento das ideias tanto de
Bakhtin quanto de Arendt, a partir do qual consideram essencialmente a relação com o
Outro como elemento central na fundação do ser humano – considerado aqui para
além da mera existência corpórea.
Arendt sugere que o diálogo com os outros fundamenta uma filosofia da
humanidade, na qual a verdade não está de pronto instaurada, mas se constitui dentro
do caráter dialógico da política. Esse caráter confere à sua obra uma abertura que a
distancia de atribuições dogmáticas e a aproxima da própria teoria dialógica
desenvolvida por Bakhtin, na qual a arquitetônica do pensamento ético participativo
não leva a um lugar de conceituações prontas, de definições acabadas, mas que se
constrói na própria interação humana.
A linguagem, como ponto de encontro do eu com o Outro é, assim, considerada
em termos da própria constituição humana através da alteridade, em relação
dialógica, sempre dinâmica e situada. É nessa relação, construída na/pela linguagem,
que os homens são capazes de se identificar e se distinguir, segundo a condição básica
do discurso sob o duplo aspecto da igualdade e da diferença.
Nesse sentido, de acordo com Arendt (2007), a distinção singular entre os
homens se configura para além da mera diferenciação. Ela vem à tona no discurso e na
ação, na alteridade partilhada que, assim, torna-se singularidade, uma vez que “a
pluralidade humana é uma pluralidade de seres singulares” (p.189).
A manifestação de todo eu na ação política se dá através da qualidade
reveladora do discurso, já que os homens mostram quem são quando estão com
outras pessoas. Essa manifestação, que supera a distinção dos homens como meros
objetos físicos, depende da iniciativa, que é considerada por Arendt como uma
iniciativa da qual nenhum ser humano pode se abster, uma vez que, em abstenção da

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mesma o homem deixaria de ser humano, situação que não ocorre em nenhuma outra
atividade da vita activa.
O ser humano é, assim, impelido a agir, tomar iniciativa. É a partir da ação que
se dá nossa inserção no mundo, ela é dependente das palavras e dos atos. A ação e o
discurso estão, pois, em relação de interdependência e uma ação iniciada por um ator,
agente de um ato, “é humanamente revelada a partir de palavras” (ARENDT, 2007,
p.191).
Em Bakhtin, a manifestação do eu é impregnada do posicionamento do sujeito.
A construção de sentidos elaborada pela/na linguagem constrói a sua própria visão de
mundo, a partir do posicionamento axiológico e da tonalidade afetiva, nas relações
múltiplas de vozes sociais heterogêneas, de onde emergem as singularidades.
Para o filósofo, o tom volitivo e emocional “que abarca e penetra o
acontecimento real do ser é uma orientação necessária da consciência, moralmente
significativa e responsavelmente ativa” (BAJTIN, 1997, p. 44). Sendo assim, a
consciência não é fruto da relação de um eu consigo mesmo, uma vez que a própria
consciência é dada à resposta e, portanto, pressupõe sempre o Outro.
É do caráter da responsabilidade da resposta, na relação com o Outro, que
procede o ato ético, também sempre procedente da experiência vivida e não repetível,
avaliável e imputável no contexto único da vida real e única do sujeito. O ato ético
responsável transcorre na historicidade vivente e em relações dialógicas.
Arendt esclarece que o caráter revelador da ação e do discurso está, da mesma
maneira, indissoluvelmente vinculado ao fluxo vivo da ação, que “só pode ser
representado e reificado mediante uma espécie de repetição” (2007, p. 199). Nesse
sentido, na inseparabilidade do ato e do fluxo vivo da ação, o ator (sujeito de um ato)
nunca é somente agente de uma ação, mas é, ao mesmo tempo, paciente, uma vez
que sempre se movimenta em relação a outros seres atuantes.
O pensamento participativo e ético apresentado por Bakhtin ocorre quando o
eu o toma para si como um ato de sua responsabilidade. O sujeito não pode, assim,
isentar-se ou eximir-se da responsabilidade de um ato a partir do que o filósofo chama
de não-álibi da existência.
Neste ponto observamos a convergência entre o ato ético bakhtiniano e a ação
arendtinana, no sentido de que, tanto o ato ético quanto a ação pressupõem a não
abstenção da responsabilidade ética na prática da alteridade. A participação do eu está
impressa no ato de pensar eticamente, com uma impossibilidade de neutralidade, uma
vez que ela é edificada na própria construção de sentidos.

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Segundo Arendt, a ação e o discurso constituem a própria vida humana, uma


vez que, vivida fora do discurso e da ação a “vida deixa de ser uma vida humana, uma
vez que já não é vivida entre os homens” (2007, p. 189). Nesse sentido, a qualidade
reveladora do discurso, a partir do qual os homens revelam suas identidades pessoais
e singulares, é essencialmente imprevisível e sem precedentes.
Sobre a questão do próprio pensamento, Bakhtin afirma que o ato ou momento
de “realização do pensamento, do sentimento, da palavra, da ação, é minha
orientação ativamente responsável” (1997, p. 44) e, sendo essa orientação ativamente
responsável, isto significa dizer que o próprio pensamento é entendido dentro da
cadeia de relações dialógicas na qual transcorre o ato ético.
Além disso, o filósofo considera, discutindo o construto dos gêneros do
discurso (BAKHTIN, 2003)5, que o pensamento se torna pela primeira vez um
pensamento real a partir da construção de um enunciado para o outro, que nunca é
um ouvinte passivo, já que se pressupõe a espera de uma ativa compreensão
responsiva.
Arendt (2014)6 faz menção ao pensamento considerado pela filosofia
tradicional em como uma atividade no âmbito da introspecção, em que o eu se abriga
do mundo. Para tratar do pensamento em termos de pluralidade e alteridade, Arendt
defende justamente a ação política, que se situa no campo do pensamento plural, no
sentido de uma liberdade ética que se assemelha ao ato ético bakhtiniano, uma vez
que o ser não pode se abster de sua responsabilidade vivendo com outros homens. É
nesse entendimento que ela afirma que “o espaço interior onde o eu se abriga do
mundo não deve ser confundido com o coração e a mente, ambos os quais existem e
funcionam somente em inter-relação com o mundo” (ARENDT, 2007, p. 192).
O ato ético e a ação são vistos dentro de uma perspectiva de processo, pois
abarcam o inacabamento do ser. Arendt afirma que a ação age em cadeia e tem a
capacidade de ser convertida em reação, causando novos processos. Nesse sentido, a
ação, “além de ser uma resposta é sempre uma nova ação com poder próprio de
atingir e afetar os outros” (p. 203). Sobre a dinamicidade do ato, Bakhtin explica que o
diálogo aparece como o confronto entre os posicionamentos dos sujeitos, onde se
estabelecem as construções de sentido em processo dinâmico, sempre único, singular
e não repetível, isto é, pertencente ao mundo da vida experimentada, vivida.

5
O ensaio Que é liberdade? foi publicado no livro Between past and future: eight exercises in political
thought em 1954. A versão utilizada neste trabalho é uma tradução de Mauro Barbosa, cuja
reimpressão da 7a ed. de 2011 data de 2014. A edição faz parte da série debates; 64.
6
O texto Gêneros do discurso foi publicado em russo no livro Estética da criação verbal em 1979. A
versão utilizada aqui é uma tradução do russo de Paulo Bezerra, edição de 2003.

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Assim, dentro da perspectiva de processo e de reação em cadeia, Bakhtin


desenvolve a teoria dialógica, que perpassa toda sua obra, a partir da ideia de que o
enunciado é “um elo na cadeia da comunicação discursiva e não pode ser separado
dos elos precedentes que o determinam, gerando nele atitudes responsivas diretas e
ressonâncias dialógicas” (2003, p. 300).
Uma vez que o sentido não é pré-dado, mas se constrói em relações dialógicas,
o conteúdo semântico é, em Bakhtin, o pensamento enquanto juízo de valor universal
e está associado à singularidade do ato ético e à historicidade, como um
acontecimento do ato que é irreversível e não repetível.
Arendt também considera a irreversibilidade da ação, mas vai além em uma
proposição que resolve o problema do risco inerente às relações que a
irreversibilidade nos impõe. Para ela, o risco é resolvido na teia dos negócios humanos
porque existe o perdão, a capacidade de prometer e cumprir promessas na esfera
pública, uma vez que, não fosse o perdão, estaríamos para sempre aprisionados na
culpa e no risco de errar uns com os outros. O perdão e a promessa são, portanto,
faculdades que dependem da pluralidade, pois não podem ter realidade na solidão e
no isolamento.
Assim, apesar do risco da irreversibilidade, o ser humano não pode se abster da
ação e do discurso, nem mesmo quando o seu conteúdo é exclusivamente objetivo,
voltado para o mundo das coisas no qual os homens se movem, pois é desse mundo
que procedem os interesses específicos, objetivos e mundanos que estão entre as
pessoas e, portanto, as interliga.
Bakhtin considera, nesse âmbito, a relação dialógica do próprio ser com o
mundo, uma vez que o pensamento emerge de uma concepção do acontecimento
concreto e “remete ao eu [a partir de seu lugar único] enquanto agente singularmente
responsável pelo seu ato” (1997, p. 52; grifo meu). A participação singular do ser é,
pois, orientada em uma arquitetônica do mundo real do ato ético a partir de “um
plano concreto do mundo ato único e singular, dos momentos principais concretos de
sua estruturação e disposição recíproca” (1997, p. 61), que são o eu para mim, o outro
para mim e o eu para o outro. Em torno deles estão distribuídos e estruturados todos
os valores do mundo da vida e do mundo da cultura.
Nesse sentido, a dúvida e a abertura permanentes, fruto do confronto do “eu”
com “outro” na arquitetônica do ser a partir de um ato ético responsável procede do
pensamento participativo, e é justamente a partir da abertura para o confronto pelo
olhar da alteridade que o sujeito assume sua participação valorativa, afastando-se do
pensamento teórico fixado pelo mundo da cultura.

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Nesta reflexão, esperamos que o entendimento sobre o papel da linguagem na


fundação da singularidade do ato ético e da ação humana possa aclarar um longo
caminho de trabalhos acerca das relações do ser com a linguagem, tendo em vista que
trabalhar com linguagem com base nesses valores implica lidar com valores não
previstos e não mensuráveis previamente. Assim, pensar participativamente em um
trabalho com linguagem que considera a relação com Outro é ir além das evidências
gerais, opondo-se à razão pura em prol da dúvida e da abertura, para uma construção
no processo, em relações dialógicas, na vida vivida.

Referências

ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. São Paulo


Perspectiva, 2014.
_____. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2007.
BAJTIN, Mijail. Hacia uma filosofía del acto ético. De los boradores y otros escritos.
Trad. Tatiana Bubnova. Rubi (Barcelona): Anthropos, 1997.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do círculo de
Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
LAFER, C. Prefácio. 1972. In: ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W.
Barbosa. São Paulo Perspectiva, 2014.

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CHOQUE DE CULTURAS EM QUARENTA DIAS

Tiago Dantas Germano1


Laila Ribeiro Silva2

1 Por que Quarenta Dias?

Agamben afirma que contemporâneo é aquele que não coincide com seu
tempo, mas é capaz de perceber e aprender com ele. Para Agamben, aquele que está
perfeitamente encaixado em sua época não seria capaz de compreendê-la,
sintetizando a ideia com a afirmação de que “ser contemporâneo é uma questão de
coragem” (AGAMBEN, 2010, p. 65).
Barberena (2015, p. 71) traz uma distinção interessante ao afirmar que a
“contemporaneidade não é atualidade”, e que ela se encontra hoje marcada pela
“fragmentação e pelo descentramento nas paisagens culturais de classe, raça, gênero,
nacionalidade”. As narrativas marginais mudam de perspectiva, conjugando as
matérias nacionais por intermédio da diferença, da não unicidade cultural, o que gera
a desestabilização os significados pré-concebidos de uma identidade anteriormente
entendida como hegemônica (Idem, p. 76). O autor ainda argumenta que ao falarmos
da identidade nacional que “carrega – no seu interior – a marca de uma diferença
cultural que rasura a antiga fantasia acerca da suposta correlação existente entre a
unicidade espacial e a unicidade cultural (Idem, p. 77). Erber (2014, p. 83) aponta que
o “primeiro problema que se coloca necessariamente a qualquer discussão do
contemporâneo é a pluralidade”.
“Escrever sobre o tempo em que habitamos tornou-se um dos principais
desafios dos escritores brasileiros contemporâneos” (SCHOLLHAMMER, 2014, p. 96),
desafio este aceito por Maria Valéria Rezende em seu romance Quarenta Dias,
publicado no ano de 2014 pela editora Alfaguara. Acreditamos que a autora tem
conseguido interpretar o nosso tempo, propondo uma obra que discute várias

1
Mestrando em Escrita Criativa pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq). E-mail: tiago.germano@acad.pucrs.br
2
Mestranda em Escrita Criativa pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
E-mail: laila.silva@acad.pucrs.br

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questões contemporâneas. Sendo assim, este trabalho se propôs a compreender


alguns pontos da narrativa do livro Quarenta Dias, detendo o olhar na discussão do
choque de culturas.
Maria Valéria Rezende nasceu em 1942, em Santos, São Paulo. Em 1965 entrou
para a Congregação de Nossa Senhora Cônegas de Santo Agostinho. É graduada em
Língua e Literatura Francesa pela Universidade de Nancy e em Pedagogia pela PUC-SP.
Fez mestrado em Sociologia. Sua primeira publicação foi em 2001, o livro de contos
“Vasto mundo”. Também publicou o romance “O Voo da guará vermelha” em 2014.
Escreveu livros infanto-juvenis, e recebeu os prêmios - Altamente Recomendável,
FNLIJ, 2007, por “Modo de apanhar pássaros à mão”, o Prêmio Jabuti em 2009, por
“No Risco do Caracol”, foi Finalista do Prêmio Jabuti em 2009, por “Conversa de
Passarinhos” e o terceiro lugar do Prêmio Jabuti de 2013 por “Ouro Dentro da
Cabeça”.
A motivação inicial para o desenvolvimento do livro Quarenta Dias foi o convite
que a autora recebeu para participar do projeto intitulado Redescobrindo o Brasil,
produzido pela Motirô, Planejamento e Gestão Ltda. Semelhante ao projeto Amores
Expressos, o projeto consistia na viagem de 14 escritores brasileiros para 14 cidades de
diferentes estados, com o objetivo de escrever um livro (COZER, 2011). O projeto
Redescobrindo o Brasil foi abandonado, mas a autora Maria Valéria Rezende já estava
envolvida com a ideia e resolveu arcar sozinha com as despesas de viagem para
escrever seu livro ambientado na capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
O romance é narrado por Alice, personagem que encontrou na escrita sua única
forma de ter voz. Alice é uma professora aposentada que vive em João Pessoa, na
Paraíba, e é pressionada pela filha a se mudar para Porto Alegre, no Rio Grande do Sul,
com o intuito de ajudar na criação de um futuro neto. O relato em primeira pessoa, em
forma de diário, remonta ao percurso da protagonista pela metrópole gaúcha, após
uma querela familiar que a leva a viver nas ruas durante o período de quarenta dias
mencionado pelo título. Trazendo o mote dos imigrantes, dos sem-teto, o processo de
perdão nas relações íntimas e principalmente, o encontro com a humanidade em um
contexto social cada vez mais asséptico.

2 Decifrando Quarenta Dias

Dalcastagnè (2012) afirma que reconhecer-se em uma representação artística,


ou reconhecer o outro, faz parte de um processo de legitimação de identidades. Em
sua pesquisa, Dalcastagnè percebeu a ausência de grandes grupos nos romances

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contemporâneos brasileiros, e essa ausência costuma ser creditada a invisibilidade


destes grupos na sociedade brasileira como um todo.
Incorporada ao escopo do “mapa de ausências” analisado por Dalcastagnè,
Maria Valéria Rezende convive diariamente com os grupos que são pouco vistos na
literatura brasileira. A autora tem experiência com trabalho de educação junto a
organizações e movimentos populares, assim compreendemos que a autora usou sua
experiência de vida para desenvolver sua narrativa. O contato com a Educação Popular
em diversos estados e países proporcionou à autora um conhecimento que a impede
de cair na descrição de personagens estereotipadas, além de não incentivar a
vitimização. Por suas linhas passam a descrição de personagens de todas as classes
sociais, apresentados de forma consistente, agregando maior autenticidade ao texto.
Em sua pesquisa, Dalcastagnè concluiu que existem vários problemas na
narrativa contemporânea brasileira, sendo levantadas resumidamente da seguinte
forma: as personagens femininas mantêm menos relações de amizade que os homens,
o candomblé e a umbanda são apresentados como religiões de negros incultos, o
oriental é visto como trabalhador. Ateus e agnósticos têm maior possibilidade de se
suicidar. Personagens negras e mestiças têm possibilidades um pouco maior de
morrerem por assassinato. Todas essas observações apontam para o preconceito
presente nas linhas dos romances contemporâneos brasileiros.

Quando entendemos a literatura como uma forma de representação,


espaço onde interesses e perspectivas sociais interagem e se
entrechocam, não podemos deixar de indagar quem é, afinal, esse
outro, que posição lhe é reservada na sociedade, e o que seu silêncio
esconde (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 17).

O escritor, dizia Barthes (apud DALCASTAGNÈ, 2012), é aquele que fala no lugar
de outro. Dalcastagnè conceitua grupos marginalizados como “todos aqueles que
vivenciam uma identidade coletiva, que recebe valorização negativa da cultura
dominante”. O que Dalcastagnè advoga é que a diversidade de percepções do mundo,
que depende do acesso a voz e não é preenchida por aqueles que monopolizam os
lugares de fala. O controle do discurso é uma censura social velada, que silencia os
grupos dominados. E vale lembrar que não se trata apenas da possibilidade de falar,
mas da possibilidade de falar com autoridade (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 19).
E é interessante apreender que em Quarenta Dias não percebemos esse
preconceito comum em tantas obras. A autora conseguiu enxergar e transmitir para o
leitor os personagens sem qualquer bagagem deturpada, não de forma pejorativa.
Maria Valéria conseguiu ceder a voz para grupos silenciados, como os sem-teto e

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imigrantes. Assim Quarenta dias pode ser compreendido como um lugar de fala para
os ausentes.
Ao aceitar o desafio de escrever um livro ambientado em uma cidade que não
conhecia, a autora fez o mesmo percurso de sua protagonista, vivenciando o choque
cultural e tentando compreender esse Outro nas ruas de Porto Alegre. Conheceu
diretamente a realidade de vários grupos pertencentes à sociedade porto-alegrense,
possibilitando uma maior compreensão dessas vivências e resultando na melhor
transposição para as páginas do livro.
Vale ressaltar que os dois autores deste trabalho se mudaram recentemente
para Porto Alegre, um vindo da Paraíba e outro de Minas Gerais, para cursar o
Mestrado de Letras, área de concentração Escrita Criativa. Esse deslocamento vivido
pelos autores possibilitou uma maior identificação com a personagem Alice, que
também lida com o choque cultural ao se deparar com uma cultura estranha a sua.
Augé (2012, p. 47) afirma que “a arte é medida por sua capacidade de
estabelecer relações”, sem o público, a arte se torna uma experiência de solidão. A
arte é social. Para Augé (Idem, p. 55), a literatura engajada pode ser considerada um
fator de mudança ou um posicionamento nas discussões que abarcam a sociedade.
Sendo assim, os autores se identificaram com a narrativa de Maria Valéria,
reconhecendo ali diversas situações que reconhecem no seu dia-a-dia, proporcionando
uma maior identificação com o texto. O choque cultural vivenciado é explicitado nas
páginas de Quarenta dias, aproximando assim o leitor.
São dois momentos relevantes que este estudo aponta: a migração da
personagem e seu choque cultural. Stuart Hall (HALL, 2006, p. 60) nos explica que o
paradoxo da globalização contemporânea trata-se de que as coisas pareçam
homogeneizadas culturalmente, mas concomitantemente emerge uma proliferação
das diferenças. Através da migração de Alice, percebemos esse elemento estranho em
um novo contexto e todos os conflitos que daí pode-se gerar. Acompanhar o
movimento e reflexões da personagem Alice é absorver parte do mundo intercultural
contemporâneo, abrindo o debate para os aspectos discursivos sobre o “Outro”. Homi
K. Bhabha (BHABHA, 1998, p. 80) afirma que no processo de identificação, o espaço do
Outro desenvolve uma especificidade cultural e histórica na cisão do sujeito migrante,
emergindo assim a possibilidade de enxergar o invisível. A identidade só pode ser
pronunciada quando se enxerga o Outro na posição de enunciador.
A autora se permitiu experienciar à alteridade, que é explicitada por Todorov
(2010), como o “eu” que só pode existir quando eu tenho uma visão do “outro” que
remeta a mim mesmo. De acordo com Sá (2010, p. 124), a “experiência da alteridade,

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motor do alcance de outras vozes, possibilidade infinita e aberta pelo discurso


literário. Na alfândega do valor cultural, o passaporte literário permite a viagem ao
encontro de novas possibilidades”.
Sá (Idem, p. 133) ressalta que o escritor da América Latina viaja para escrever
livros. Cria romances de aprendizagem ao sair da zona de conforto, dando a vez para o
mundo subjetivo. “A viagem formaliza a saída do espaço mediático habitual” (Idem, p.
133). Para Sarlo (2007, p. 24), “a narração da experiência está unida ao corpo e à voz, a
uma presença real do sujeito na cena do passado”. Saindo de sua zona de conforto,
Maria Valéria materializou o cenário de sua narrativa através de uma viagem a Porto
Alegre, vivenciando os passos que sua personagem Alice daria em sua narrativa.
Conheceu a capital gaúcha em suas nuances para enfim colocar no papel sua
imaginação aliada a suas impressões.
Calvino (2009, p. 192) afirma que “escrevemos romances para um leitor que
finalmente terá compreendido que já não deve ler romances”. Lembra ainda que a
“contribuição da literatura é apenas indireta, como exemplo, recusando toda solução
paternalista”. Calvino (Idem, p. 194) informa que a literatura não é escola, “é preciso
que a literatura reconheça quão modesto é seu peso político”. E Maria Valéria admite
em várias entrevistas (REZENDE, 2015) a sua necessidade de contribuir com a realidade
social, ajudando o leitor a focalizar algum tema que ela acredite ser relevante.
Interessante que mesmo desejando ser uma espécie de agente de mudança, Maria
Valéria compreende que quando entrega o livro ao público, ele deixa de ser seu e cabe
ao leitor decidir o que fazer com aquelas palavras e reflexões.
Resende (2008) aponta que os recursos usados no discurso anti-hegemônico é
a apropriação irônica de ícones de consumo, irreverência diante do politicamente
incorreto, violência explícita, dicção bastante pessoalizada, memória individual
traumatizada, arrogância de uma juventude excessiva, maturidade altamente
intelectualizada, escrita acadêmica, entre outros. Maria Valéria proporcionou a
reflexão ao ironizar nas páginas de Quarenta Dias e, como exemplo, cito este trecho:
"E cá estou de novo metida nesta cozinha alheia, 'showroom' de móveis modernosos,
com minha angústia e meu desacerto..." (REZENDE, 2014, p. 23). Nesta frase
percebemos seus questionamentos sobre a vida moderna, sobre a humanidade
perdida nesse ambiente frígido. Divergindo da consonância no ambiente estéril da
classe média, Maria Valéria propõe ao longo do texto vários momentos de reflexão,
possibilitando ao leitor questionamentos da nossa realidade.
Behrens (2010, p. 96) advoga que o limiar é um “entremundo da periferia que,
de maneira alguma, se encontra no centro, mas na margem do acontecimento”. O

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limiar é “uma passagem e ao mesmo tempo a barreira dessa passagem” (Idem, p. 102).
Devemos pensar o contemporâneo como espaço de contágio, de troca entre seus
componentes, levando ao raciocínio de que a literatura deve sim se permitir
“contagiar” pelas outras artes. Em Quarenta Dias apreendemos essa interação do
texto com as imagens e citações, em um movimento de interdisciplinaridade. E Maria
Valéria (REZENDE, 2015) afirma que essa absorção teve o propósito de oferecer fôlego
ao leitor, deixando a leitura mais cômoda e encorpada. Vale lembrar a afirmação de
Barthes (2004, p. 62), de que o texto é um “espaço de dimensões múltiplas, onde se
casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um
tecido de citações”.

3 Considerações finais

A ilusão de universalidade é mais fácil de construir do que a empatia


com a dor do outro. (GINZBURG, 2012, p. 50)

De acordo com Dalcastagnè (2012), a produção literária das mulheres ainda


recebe o rótulo de literatura feminina, sendo que cada escritora tende a ser vista como
representante de uma dicção feminina típica, em vez de ser reconhecida como dona
de uma voz autoral própria. Vale ressaltar que em sua pesquisa, Dalcastagnè percebeu
que além de serem minoritárias nos romances, as mulheres têm menos acesso à voz e
ocupam menos as posições de maior importância. Dalcastagnè concluiu que a menor
presença das mulheres entre os produtores se reflete na menor visibilidade da mulher
nas obras produzidas.
Neste cenário compreendemos a grande contribuição do livro Quarenta Dias
para a literatura contemporânea. Maria Valéria Rezende deu voz para diversos grupos
marginalizados, de forma coerente e dignificante. Escrito por uma mulher,
protagonizado por uma mulher e idosa, que sofre o choque cultural ao se mudar para
o outro lado do país, conhecendo a realidade das ruas e resgatando a humanidade
nesse mundo asséptico.
Para finalizar, afirmamos que este estudo não objetivou esgotar a discussão
sobre o choque cultural apresentado na obra Quarenta Dias, já que seu conteúdo é
vasto e com diversas possibilidades ainda inexploradas, mas esperamos que este
trabalho possa contribuir com um tema tão significativo e interessante, trazendo
apenas pontuações que acreditamos ser de maior relevância.

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Disponível em: <http://www.agenciariff.com.br/site/AutorCliente/Autor/29>.
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na contemporaneidade. In: DALCASTAGNÈ, Regina; AZEVEDO, Luciene (Org.).
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ilustrissima/994149-o-romance-brasileiro-na-era-do-marketing.shtml> Acesso em:
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CALVINO, Italo. Para quem se escreve? (A prateleira hipotética). In: CALVINO, Italo.
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REZENDE, Maria Valéria. [18 de maio de 2015]. Entrevista concedida a Laila Ribeiro
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TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: A questão do outro. São Paulo: Martins
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A ATIVIDADE DE TRABALHO DO REVISOR DE TEXTOS: UM FAZER DIALÓGICO

Vanessa Fonseca Barbosa1

Introdução

O presente trabalho apresentará o recorte de uma pesquisa de tese em


andamento, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, que tem por objeto de estudo a atividade
de revisão textual realizada em textos acadêmicos. Sabe-se que a revisão de textos
costuma ser uma atividade de trabalho solicitada com frequência, sobretudo no
universo acadêmico, todavia as investigações científicas sobre o tema ainda não são
frequentes, o que evidencia a importância de estudos sobre esse fazer complexo e
com pouca documentação científica para auxiliar tanto o profissional que a desenvolve
quanto o sujeito que a solicita. Por essa razão, buscar-se-á, na concretização da tese,
evidenciar a importância discursiva da atividade desempenhada pelo revisor de textos,
bem como a presença e relevância da voz desse profissional e sua influência no
resultado final de produções textuais revisadas, potencializando-as. E, neste texto, a
partir de um pequeno recorte desse trabalho maior, pretendemos conseguir expor um
embrião da mencionada discussão.
Quanto a trabalhos acadêmicos sobre o fazer do revisor de textos, torna-se
importante destacar que, ao realizar uma pesquisa no banco de Teses e Dissertações
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) com as
seguintes palavras-chave: revisão textual, revisor ou revisão de textos, é possível
encontrarmos uma vasta lista de estudos acadêmicos que tratam especificamente da
atividade de revisão textual. No entanto, a maioria desses trabalhos considera
contribuições advindas da Linguística Textual ou da Linguística Cognitiva como aporte
teórico-metodológico para as análises realizadas, o que evidencia que, na área dos
estudos discursivo-enunciativos, por exemplo, ainda há amplo campo de investigação
e contribuição com o trabalho de revisão de textos; a esse encontro, portanto, é que
se encaminha esta pesquisa.

1
Doutoranda em Letras/Linguística pelo Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (PUCRS). Bolsista CNPq. E-mail: vanessa.barbosa@acad.pucrs.br

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Ademais, o estudo realizado no banco de Teses e Dissertações da CAPES


permite constatar também que, embora o interesse de pesquisa pela atividade de
revisão textual seja foco de vários trabalhos, a maioria deles tem por objeto de
investigação o trabalho de revisão do professor (normalmente, o de produção textual)
em textos de alunos, ou seja, abordagens que demonstram a revisão como atividade
circunscrita ao universo escolar da educação básica. Somente uma tese encontrada
tratou da atividade de revisão sob o ponto de vista profissional do revisor, em uma
perspectiva enunciativo-discursiva da linguagem, e teve nos pressupostos do Círculo
de Bakhtin sua principal ancoragem, intitulada “Um olhar dialógico sobre a atividade
de revisão de textos escritos: entrelaçando dizeres e fazeres2”, é da autoria de Risoleide
Rosa Freire de Oliveira e foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Estudos da
Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) no ano de dois mil
e sete. A pesquisa teve por objetivo principal “investigar a atividade de revisão de
textos no que se refere à prática do revisor, a partir do discurso de profissionais”
(OLIVEIRA, 2007, p. 24)”.
Faz-se importante salientar que há proximidade entre o trabalho de Oliveira
(2007) e a proposta de pesquisa ora desenvolvida, a qual se concretiza em razão não
só do recorte de pesquisa, mas também quanto ao destaque à relevância do papel do
revisor como um profissional da linguagem e à sua relação com o autor dos textos
revisados. No entanto, percebe-se que o âmago trabalho de Oliveira está na ênfase a
dizeres sobre a atividade, não na atividade em si, o que acaba dando muitas pistas
sobre o trabalho realizado, mas traz poucas evidências de como ocorre a atividade e
não demonstra as relações estabelecidas no imbricamento da voz do revisor e do autor
de textos na versão final de produções textuais revisadas, mais especificamente de
teses acadêmicas, tal como se pretende comprovar.
Desse modo, neste trabalho, através de um recorte do material de uma
pesquisa de tese em andamento, objetiva-se apresentar uma análise de uma atividade
de revisão textual realizada em uma tese no ano de 2011, com vistas a problematizar o
trabalho do revisor de textos e, principalmente, a demonstrar relações dialógicas
constitutivas desse fazer. Para tanto, serão analisadas algumas das trocas linguageiras
estabelecidas entre o revisor e o autor do texto nesse câmbio laboral e o
imbricamento das vozes de ambos os atores do trabalho na elaboração do texto final,
vislumbrando sentidos estabelecidos e, além disso, a constituição dialógica da
atividade de trabalho do revisor de textos.

2
O mencionado trabalho pode ser consultado na íntegra no seguinte endereço eletrônico: <
ftp://ftp.ufrn.br/pub/biblioteca/ext/bdtd/RisoleideRFO.pdf >. Acesso em 08 ago. 2013.

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Este estudo ancora-se em reflexões advindas dos pensadores do Círculo de


Bakhtin e estabelece interface com a perspectiva ergológica para tratar da relação
entre linguagem e atividade de trabalho. Dentre as principais noções bakhtinianas que
subsidiam a pesquisa, citam-se as de palavra, signo ideológico, enunciado e relações
dialógicas. Do ponto de vista da Ergologia, são contemplados principalmente os
conceitos de atividade de trabalho, norma e renormalização.
Com essa ancoragem, torna-se possível vislumbrar reflexos e refrações das
vozes que constituem os discursos em movimento e as posições valorativas assumidas
pelo revisor e pelo autor de textos em situações reais de uso da linguagem e de
estabelecimento do trabalho de revisão textual. Espera-se, com esta investigação,
oferecer contribuições aos estudos discursivos da linguagem e à compreensão da
atividade do revisor de textos.

1 Referencial teórico

1.1 Alguns princípios basilares de uma visão enunciativo-discursiva da linguagem

Para os estudiosos do Círculo de Bakhtin, não há uma língua separada do uso,


da enunciação, e uma linguagem que seja apenas uso, pois, para este grupo de
teóricos, o uso é a realidade da língua/linguagem (BARBOSA, 2012). A esse respeito, é
possível afirmar ainda que o Círculo aceita o fato de que existe um sistema de regras
de combinação (gerador da significação) e um sistema de uso (gerador do tema), mas
só se conhece a linguagem em alguma língua e só se conhecem as línguas como
linguagem, e não como código (cf. SOBRAL, 2006). Nessa perspectiva, a palavra
configura-se como um “fenômeno ideológico por excelência” e como “o modo mais
puro e sensível de relação social” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, [1929]/2010a, p.36) (grifos
do autor).
Embora não sejam palavras inéditas que pronunciemos – uma vez que são
habitadas sempre de palavras-outras, já proferidas a outros, prevendo possíveis
respostas, comprovando o princípio dialógico por excelência da linguagem – “a língua
não conserva formas e palavras neutras, que não pertencem a ninguém, ela [a palavra]
torna-se como que esparsa, penetrada de intenções, totalmente acentuada”
(BAKHTIN, [1975]/2010b, p.100). Desse modo, procurar-se-á desvelar, na pesquisa
proposta, as relações que advêm de um trabalho com palavras e os acentos axiológicos
a elas atribuídos no processo de revisão textual.

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Decorre do pensamento bakhtiniano também a associação da palavra a signo


ideológico por natureza, o qual “não existe apenas como parte de uma realidade; ele
também reflete e refrata uma outra” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, [1929]/2010a, p.32).
Assim, tratar dos signos ideológicos em perspectiva bakhtiniana pressupõe um
necessariamente ir além das formas da língua, considerando a linguagem em uso,
empregada por determinados sujeitos sócio-historicamente situados em uma dada
situação comunicativa, a partir de certo projeto de dizer etc. E, nessa rede, “as
palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a
todas as relações sociais em todos os domínios” (BAKHTIN/VOLOCHINOV,
[1929]/2010a). É nesse “jogo complexo de claro-escuro que penetra o discurso,
impregnando-se dele, limitando suas próprias facetas semânticas e estilísticas”
(BAKHTIN, [1975]/2010b, p.86).
Tais apreensões permitem compreender porque, para os autores, a essência da
língua e, consequentemente dos estudos linguísticos, deve debruçar-se sobre a
linguagem, voltando-se inevitavelmente para as situações reais de uso das quais ela
advém e onde se manifesta, resultante da (inter)ação constante entre interlocutores
autênticos, constituídos por experiências variadas e diversos modos de apreensão e
posição axiológica do mundo. Sujeitos estes responsáveis pela concretização de atos
éticos, tendo em vista que “o princípio arquitetônico supremo do mundo real do ato é
a contraposição concreta, arquitetonicamente válida, entre eu e o outro” (BAKHTIN,
[1920/1924]/2012, p.142).
A linguagem, então, é carregada de diálogos esse eu e outro (locutor e
interlocutor) e, consequentemente, permeada de posições axiológicas, já que “os
elementos abstratos da língua, idênticos entre si, carregam-se de diferentes conteúdos
semânticos e axiológicos, ressoando de diversas maneiras no interior destas diferentes
perspectivas” (BAKHTIN, [1975]/2010b, p.96) e, a partir da ressignificação dada pelo
locutor, ao utilizar a linguagem, entram na cadeia dialógica dos enunciados, formando
diversas redes de sentidos. Tais valorações evidenciam o vai e vem continuum da
linguagem e demonstram a enunciação inserida em uma cadeia discursiva, refutando
dizeres, antecipando-os, afirmando-os, opondo-se aos já emitidos etc., o que compõe
o princípio dialógico da enunciação e demonstra as razões pelas quais os pensadores
do Círculo não tomam apenas as unidades linguísticas isoladas para dar conta da
reflexão sobre o fenômeno linguagem em sua amplitude e densidade.
Têm-se, portanto, para a teoria bakhtiniana, o enunciado como a unidade
básica e real de análise da língua, a qual, opositivamente à frase, é “uma unidade real,
precisamente delimitada da alternância dos sujeitos do discurso, a qual termina com a

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transmissão da palavra ao outro” (BAKHTIN, [1952]/2011, p.275). Desse processo


decorre a natureza dialógica do enunciado, uma vez que comporta dizeres outros,
tanto os proferidos como os a proferir, seja para antecipá-los, refutá-los ou ratificá-los,
sendo, por isso, um elo na cadeia da comunicação discursiva (BAKHTIN, [1952]/2011,
p.300) composto por três particularidades: a alternância dos sujeitos discursivos; a
conclusibilidade específica do enunciado; e a relação do enunciado com o próprio
locutor (autor do enunciado) e com os parceiros da comunicação verbal
(interlocutores, reais ou presumidos).
A dialogia que organiza a relação eu/outro não conta necessariamente com
uma compreensão definida de um destinatário em específico como, por exemplo, no
caso de um artigo submetido à uma revista científica, que tem uma ideia de perfil dos
seus interlocutores, entretanto, seja mais ou menos concreto, há sempre um
interlocutor presumido que organiza a enunciação e que tem a responsabilidade da
resposta. Em consequência, as relações dialógicas (semânticas) estabelecidas entre os
interlocutores nas diversas situações enunciativas em que se encontram vão refletir e
refratar as vozes sociais que penetram e compõem a unidade do discurso, conforme
afirmou Bakhtin ([1963], 2015, p.211), as relações dialógicas, para existir, “devem
como já dissemos, materializar-se, ou seja, devem passar a outro campo da existência,
devem tornar-se discurso, ou seja, enunciado, ganhar autor, criador de dado
enunciado cuja posição ele expressa”. Em outras palavras, é do imbricamento das
relações dialógicas resultantes das inúmeras enunciações que advêm essas vozes
reveladoras das posições valorativas dos interlocutores, formando o todo dialógico do
discurso. Este, por sua vez, “penetra nesse meio dialogicamente tenso de discursos de
outrem, de julgamentos e de entonações” (BAKHTIN, [1952]/2011, p. 86).
As relações dialógicas concretizadas nos enunciados são, portanto,
constituídas pelo plurilinguismo (BAKHTIN, [1952]/2011, p.82) que se fundamenta a
partir de duas forças opostas, as quais atuam como centralização (forças centrípetas) e
descentralização (forças centrífugas) de valores que organizam e perpassam todo o
discurso. Isto significa que o enunciado concreto comporta não só posições valorativas
comuns sob determinado objeto, mas também o agrupamento de visões destoantes
que o compreendem.
Em suma, ainda que de modo muito resumido, como pudemos verificar neste
item, adotar um olhar dialógico para a compreensão de língua/linguagem significa ter
como ponto de partida a consideração de situações reais de uso da língua, nas quais é
possível observá-la em sua heterogeneidade, em seu caráter intrinsecamente múltiplo,
complexo e social. Essa concepção permite melhor compreender o “fenômeno

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linguagem, que não se esgota no estudo das características internas à língua, em


termos de propriedades formais do sistema linguístico, mas se abre para outras
abordagens que considerem o contexto, a sociedade, a história” (PETTER, 2011, p.22-
23). Caso contrário, conforme destacou Yaguello (2010), no prefácio da edição
francesa de Marxismo e Filosofia da Linguagem, “um sistema que estanca perde sua
vitalidade, seu dinamismo dialético” (p.17). O olhar dialógico, por sua vez, pode-se
aproximar do modo de compreensão ergológica da atividade de trabalho, tal como
demonstraremos na sequência.

1.2 Perspectiva ergológica

Com relação à Ergologia, destaca-se o fato de que é uma ciência


pluridisciplinar, nascida na França por volta dos anos 80, a partir da inquietação de um
grupo de professores universitários, dentre eles Yves Schwartz (considerado o seu
fundador) e Louis Durrive (um Doutor em Ciências da Educação), que buscavam
melhor compreender o mundo do trabalho, sobretudo diante das modificações nas
atividades econômicas do mercado advindas das transformações tecnológicas e,
consequentemente, dos modos de produzir e se relacionar do homem em sociedade.
Nas palavras de Schwartz, durante um curso ministrado na PUCRS – nos dias 26 e 27
de outubro, em atividade relacionada ao VII Dialogue Under Occupation (DUO VII),
ocorrido na PUCRS de 28 a 30 de outubro de 2015, intitulado “Ergologia: Trabalho e
Produção de Saberes” – a Ergologia se caracteriza pelo “estudo da atividade humana,
uma ligação entre a atividade e a vida”.
O principal enfoque da Ergologia está, portanto, na busca pela compreensão da
complexidade envolta no trabalho humano, mais especificamente na atividade de
trabalho, em oposição a um pensamento que compreende o trabalho como um fazer
mecânico e que vê no ser humano um simples executor de tarefas. Na verdade, a
ergologia “não é uma nova disciplina das ciências humanas, já que é pluridisciplinar.
Trata-se de um método ou de uma metodologia inovadora” (TRINQUET, 2010, p.94).
Conforme destacou a professora Vera Sant’anna, os estudos ergológicos se interessam
pela relação entre “meio de vida e trabalho, munindo-se de conceitos em diversos
níveis de formalização, considerando sempre uma sinergia entre os saberes da
ação/experiência, os acadêmicos e o debate de valores” (SANT`ANNA, 2008, p.02) que
permeiam e constituem toda a atividade de trabalho.
Nesse sentido, a ergologia lida com saberes advindos de varias áreas do
conhecimento, tais como a medicina, psicologia, sociologia, linguística, etc., com vistas
a vislumbrar não só as situações de trabalho como também as práticas linguageiras

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delas emergentes a fim de “compreender como as atividades de trabalho transformam


continuamente os espaços da vida, as maneiras de conceber a vida social”
(SCHWARTZ, 2002, p.113), o que só pode ser concretizado através de uma
aproximação com situações reais de desenvolvimento do trabalho, ao invés do
privilégio dado em muitos cursos de formação às reflexões teóricas apenas, em
detrimento de experiências e diálogos sobre as situações práticas dos contextos em
que os mais variados trabalhos se desenvolvem e se (trans)formam. Preocupar-se com
as situações de linguagem em uso em detrimento de abstrações demonstra muita
aproximação entre os pressupostos bakhtinianos e ergológicos, pois ambas as teorias
estão centradas em questões do mundo da vida, ao invés da exclusividade ao mundo
da teoria.
Ainda quanto às origens do pensamento ergológico, o professor Yves Schwartz
destacou, no curso ministrado na PUCRS, a relação da Ergologia com a Ergonomia da
Atividade, que foi muito importante para definir o próprio conceito de atividade para a
Ergologia. A Ergonomia da atividade debruçou-se sobre situações de trabalho
taylorizadas3, verificando o cumprimento (ou não) do trabalho prescrito e as maneiras
como os trabalhadores executavam as tarefas que lhes cabiam. Durante o curso,
Schwartz mencionou um estudo4 realizado pelos ergonomistas da equipe do professor
Wisner, no Conservatório Nacional de Artes e Ofícios (CNAM), em Paris, entre 1971 e
1972, em uma empresa de montagem de televisores. Resumidamente, esse exemplo
ilustra que o trabalho prescrito pelos Engenheiros fora renormalizado pelas
operadoras durante a montagem de determinada peça, pois elas invertiam a ordem
das gavetas prescritas, reorganizavam o tempo, conseguiam diminuir o diagrama
previsto para a concretização da atividade etc.
A partir desse exemplo emblemático, foi possível chegar a quatro proposições
que são basilares para a compreensão de atividade humana (e, consequentemente,
das atividades de trabalho) que fundamentam a Ergologia e foram retomados pelo
professor Yves Schwartz na PUCRS: i) há uma distância entre o trabalho prescrito e o
real, isto é, o trabalho pressupõe um vai e vem entre o conhecimento teórico sobre
determinado fazer e um conhecimento prático; ii) o conteúdo da distância entre o
trabalho prescrito e o realizado é sempre parcialmente ressingularizado, o que significa

3
De modo geral, pode-se dizer que o taylorismo regime ao qual era preciso garantir que o maior
número de atividades possível fosse concretizado no menor espaço de tempo possível, visando a uma
produção em massa e, para que isso ocorresse, normas e regras eram aplicadas aos trabalhadores.
4
Tal exemplo pode ser encontrado na obra “Trabalho e Ergologia: conversas sobre a atividade humana”,
organizada pelos professores Yves Schwartz e Louis Durrive, traduzido pela editora da Universidade
Federal Fluminense (UFF).

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considerar o universo de valores da dimensão humana do trabalho; iii) essa distância


relaciona-se à atividade do corpo-si, o qual, segundo palavras do professor durante o
curso, “grosseiramente falando, corresponde à concepção de sujeito da Ergologia, isto
é, uma entidade que racionaliza”; e iv) a distância remete a um debate sobre os
valores, em outras palavras, há sempre diversos jogos de valores que entram em
debate na execução da atividade.
Conforme Schwartz (2007), toda a atividade de trabalho é perpassada por um
debate contínuo entre as normas antecedentes (as quais preexistem toda a atividade e
englobam o conhecimento das práticas diárias mais comuns e também as teóricas) e
as renormalizações (resultantes da capacidade humana de ressignificar a prática, a
partir das situações concretas em que atua). Se a atividade de trabalho envolve debate
entre normas já impostas, contempla também um encontro de saberes, mais
especificamente, entre “saberes acumulados nos instrumentos, nas técnicas, nos
dispositivos coletivos e os saberes advindos da prática, da experiência cotidiana do
fazer” (afirmação de Schwartz durante o curso ministrado).
Daí a importância de o universo acadêmico, por exemplo, buscar maneiras de
se tornar o mais próximo possível do mundo do trabalho, preocupação basilar da
Ergologia, a saber: “Compreender para transformar”, ao invés de, como dissemos,
apenas se perpetuarem as formações que se voltam totalmente ao acúmulo de
informações técnicas, não proporcionando momentos de reflexão e vivências sobre o
universo do trabalho prático também. O equilíbrio entre os saberes tem de ser uma
busca constante pelos responsáveis pelas formações acadêmicas, segundo destaque
dado pelo professor Schwartz.
Outro importante conceito da Ergologia é o Dispositivo Dinâmico de Três Polos
(DD3P): polo dos saberes constituídos, nesse polo estão, por exemplo, os saberes
advindos de um patrimônio conceitual das disciplinas acadêmicas; o segundo é o polo
dos mercados, ou seja, os saberes investidos no desenvolvimento das atividades; e o
último é o “polo das exigências ergológicas” (DI FANTI, 2014, p.254), isto é, aquele que
contempla uma postura ética e epistemológica que trata da dimensão dialógica entre
os outros dois polos como possibilidade para avançar na constituição dos saberes e
lidar com os valores institucionais impostos socialmente, valores da justiça, da saúde,
dentre outros. Evidentemente, os preceitos da Ergologia são muito mais complexos e
numerosos dos que mencionados brevemente neste texto, todavia, em razão do
espaço de que dispomos e do objetivo deste trabalho, tentamos demonstrar algumas
das compreensões basilares para se analisar a atividade de trabalho do revisor de

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textos acadêmicos, objeto da tese que desenvolveremos no PPGL da PUCRS, através


dos pressupostos bakhtinianos e ergológicos.
Diante dessas breves constatações, compreendemos porquê a atividade para a
ergologia e, consequentemente, o trabalho é visto, portanto, como algo complexo,
industrioso e enigmático, já que envolve um constante debate entre as normas
antecedentes –aquelas socializadas pela história da atividade, pela memória do
trabalhador e pelos conceitos teóricos adquiridos na sua formação – e as
renormalizações advindas do fazer prático da atividade, invocando tomada de
decisões, mais ou menos conscientes, do ator do trabalho. Esse debate é representado
pela Ergologia através das Dramáticas do uso de si (por si e pelos outros) e revelam a
dimensão histórica da atividade. Com relação a estas, cabe ainda fazer uma ressalva
para explicar que o conceito de dramática de uso do corpo-si, segundo Schwartz (2014,
p.260), surgiu em razão de buscar uma compreensão mais completa da atividade de
trabalho do que a advinda do conceito uso de si (por si e por outros), já que dramática
recupera “a ideia de sequências de vida em que aparece o inantecipável, a história, e
não necessariamente, uma provocação, uma tensão dificilmente suportável, embora
este possa ser de fato o caso” (SCHWARTZ, 2014, p.261) e “uso de si” representa “esse
corpo vivo [que é] ao mesmo tempo um ser psíquico e social” (idem, p.261). Em outras
palavras, o conceito de dramáticas de uso do corpo-si possibilita olhar de modo mais
atento para a dialética existente entre dizível e não dizível do trabalho, norma e
renormalização.
Através do intercâmbio entre os pressupostos bakhtinianos e os estudos
ergológicos, pretendemos tratar da relação entre linguagem e trabalho, tão
importante na atividade de revisão textual. Ao tomá-la como um fazer complexo e
enigmático, buscaremos problematizar o trabalho do revisor de textos e,
principalmente, demonstrar relações dialógicas constitutivas desse fazer. Para tanto,
todos os conceitos brevemente mencionados neste texto serão imprescindíveis, pois
permitirão vislumbrar algo tão caro à Ergologia: o elemento humano em foco.
Ademais, as colocações expostas permitem vislumbrar a aproximação entre a
compreensão dialógica da linguagem com os postulados ergológicos do trabalho,
tendo em vista que ambos privilegiam o enfoque ao ser humano em situações reais e
concretas de realização – seja linguística ou da atividade, as quais, evidentemente,
estão intimamente relacionadas. Isto demonstra a importância da filiação teórica
selecionada para a realização da pesquisa que se pretende desenvolver, haja vista que
se busca compreender a atividade de trabalho de revisão a partir de situações reais de
seu desenvolvimento, assim como analisar as relações estabelecidas entre revisor e

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autor de texto e de que modo constituem o resultado final do trabalho, posto que é
preciso ir além do prescrito para se chegar a uma aproximação do real da atividade.
Outra questão basilar da abordagem ergológica e que vem a somar com o
trabalho a ser desenvolvido diz respeito à relação intrínseca entre linguagem e
trabalho, já que as duas são atividades humanas fundamentais. Cabe, portanto, ao
pesquisador saber explorar esse ponto, principalmente considerando o poder de
verbalização sobre a atividade, uma vez que “a verbalização possibilita, sobretudo, a
reflexão sobre a vivacidade da atividade laboral e sobre o (re)conhecimento da sua
complexidade” (DI FANTI, 2012, p. 325).

3 Análise do material

Conforme destacamos, este trabalho apresentará o recorte de uma análise


maior e mais abrangente que constitui o material de uma tese em desenvolvimento na
PUCRS. O material de análise exposto aqui representa o recorte de uma interação via
e-mail entre revisor e autor de tese revisada, ocorrida no ano de 2011. O conjunto das
relações interlocutivas entre os dois atores do trabalho ora investigados é constituído
por vinte e uma trocas de correspondências eletrônicas, excertos de comentários nos
textos que representam versões da tese em debate por eles, nos quais há propostas de
reelaboração da escrita, e respostas de questões expostas em entrevistas a ambos os
atores do trabalho em foco: autor e revisor da tese.
Todavia, neste texto, faremos o recorte e análise de apenas um dos momentos de
interação estabelecidos via e-mail, denominado: apresentação/solicitação da atividade
em razão do espaço de que dispomos para esta comunicação, o que dará pistas das
questões levantadas anteriormente e do diálogo maior que constitui a reflexão de uma
tese em desenvolvimento. O recorte selecionado permite demonstrar, portanto, a
primeira interação entre autor da tese revisada e o profissional da revisão, refletindo e
refratando as compreensões advindas dos centros de valores desses sujeitos sobre o
que entendem quanto à atividade de trabalho revisão textual e, consequentemente, a
respeito do que significa olhar para a linguagem a partir de situações concretas de seu
desenvolvimento, tal como preconizam os estudos bakhtinianos.
Na sequência, apresentaremos os enunciados trocados durante a primeira
interação estabelecida entre autor e revisor da tese e, a seguir, uma breve análise do
material transcrito.

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 Apresentação/Solicitação da Atividade:

“Olá Revisora, tudo bem? Sou orientanda de X na Instituição X. Estou no final do meu
doutorado. Preciso depositar os volumes até a data X. Estou fazendo os últimos acertos
sugeridos pela minha última banca. Na verdade, estou correndo contra o tempo. Já reescrevi,
reorganizei uma boa parte [...]. Gostaria de saber se poderia fazer a revisão para mim. Escrevi
para o [Fulano] e ele indicou você. Estou desesperada, pois a banca afirmou que tenho tese,
mas criticou muito a redação. Envio meu trabalho, do jeito que está, para você fazer um
orçamento. Não se assuste, pois ele ainda está bastante bagunçado. Tem muitas marcações de
outras cores, comentários da banca que anotei nos capítulos para não me esquecer, etc. Tem
muitas imagens e espaçamentos. Tem páginas só com anotações minhas. Nem queria enviar
para você não se assustar, mas como tenho pressa em saber se você poderá ou não fazer a
revisão e o valor, vai assim mesmo. Espero um retorno e torço para que aceite meu trabalho”
(Autor da Tese).

“Olá Fulana, tudo bem? Sou orientanda de X e trabalho com a atividade de Revisão há
bastante tempo. Primeiramente, gostaria de te explicar que tenho por hábito, quando realizo
as revisões, olhar o todo de um texto, ou seja, me posiciono como uma leitora crítica e procuro
observar não só as questões gramaticais (óbvias de qualquer revisão), mas trabalho sobretudo
com outras questões linguísticas (tais como progressão, informatividade, observo se os
períodos estão condizentes, se as seções estão bem organizadas, se cumprem o que prometem
na sua introdução etc.). Isso, porém, demanda certo tempo, até porque eu faço esse trabalho,
mas não altero as questões semânticas dos textos, sem antes esclarecer com os autores dos
trabalhos quais são as minhas dúvidas e as minhas opiniões e sugestões de
reescrita. Creio, [Fulana], que a resposta final do trabalho sempre tenha de ser do autor deste
e, por isso, o meu hábito de rechear os arquivos com comentários e observações.
Compreendo a Revisão Linguística como um trabalho cooperativo, construído através do
diálogo e do bom senso, pois, por exemplo, uma palavra que, para mim, pode parecer repetida,
sem necessidade, tem a possibilidade de representar um dado autor ou uma dada filiação
teórica específica. Nesse caso, não posso sair modificando o texto alheio, desrespeitando a
autoria, e denominando como "revisão".
Enfim, [Fulana], gosto de deixar claro ao solicitante o tipo de trabalho que desenvolvo, mesmo
porque poderás não te agradar da minha metodologia, porém, como te expliquei agora,
acredito ser a mais correta e ética. Assim, poderás decidir se queres que eu faça a revisão em
teu texto, certo? E, em caso afirmativo, digo-te, desde agora, que dei uma olhada em teu
arquivo e que será um imenso prazer revisá-lo, basta que me confirmes o quanto antes, para
que possamos correr contra o tempo, hehe. Abraços, Revisor” (Revisor da Tese).

Conforme podemos observar neste pequeno recorte, a atividade de trabalho é


altamente complexa e lida constantemente com normas e renormalizações do fazer
assim como com os acentos de valor advindos dos atores da atividade diretamente
envolvidos com a compreensão e definição do fazer que desenvolvem. Nas palavras de
Schwartz (2014, p.261): “[...] toda sequência de atividades industriosas envolve
arbitragens, debates, imersos num mundo social em que a comunidade de destino é

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sempre eminentemente problemática, [que está] em permanente reconstrução”.


Percebemos esse debate de valores nos enunciados que compõem o diálogo entre
autor da tese e revisor transposto, principalmente no que diz respeito ao embate entre
o que recebe ênfase na solicitação do trabalho, a saber: a necessidade de vencer o
tempo para o autor da tese: “Na verdade, estou correndo contra o tempo” (Autor da
Tese); e o destaque para a definição de revisão textual por parte do trabalhador
solicitado, que, conforme expõe, necessita de tempo para ser desenvolvida, tal como
se pode perceber através do enunciado: “Isso, porém, demanda certo tempo” (Revisor
da Tese).
Bakhtin/Volochínov ([1929]/2010, p.31) nos afirma que “Tudo o que é
ideológico possui significado e remete a algo situado fora de si mesmo”, pois são
justamente esses signos ideológicos que se revelam nesses enunciados formando a
cadeia dialógica discursiva ora recortada e que nos possibilitam vislumbrar reflexos e
refrações estabelecidos nesse processo dialógico ininterrupto em que se insere a
linguagem. Bakhtin ([1952]/2011, p.281) nos afirma também que em todo o enunciado
“sentimos a intenção discursiva ou a vontade discursiva do falante”. Quando ambos os
atores do trabalho (autor e revisor) em foco se apresentam, por exemplo, podemos
perceber pistas das suas vontades discursivas desde o primeiro contato, no momento
em que eles destacam o nome de seus orientadores – os quais, evidentemente, foram
suprimidos para manter sigilo quanto aos participantes da pesquisa, todavia, não
podem ser ignorados, tendo em vista o fato de que sabemos não existir nada por acaso
ou sem sentido na linguagem – o que nos possibilita conjecturar que se trata de um
argumento de autoridade utilizado, primeiramente pelo autor da tese, provavelmente
para auxiliar no aceite da solicitação do trabalho pelo revisor, tal como apresenta o
seguinte enunciado: “Olá Revisora, tudo bem? Sou orientanda de X na Instituição X” e,
em resposta a essa postura, o enunciado do revisor: “Olá Fulana, tudo bem? Sou
orientanda de X e trabalho com a atividade de Revisão há bastante tempo”. O revisor
responde à colocação do orientador, mas, ao invés de falar da instituição, menciona a
sua experiência com a atividade de revisão textual, ou seja, filtra o que, na sua opinião,
merece a réplica da saudação e direciona o restante de seu projeto de dizer para expor
o seu lugar de fala: aquele de quem conhece o trabalho há tempo e tem vasta
experiência com esse fazer.
Na introdução deste trabalho, destacamos que a atividade de revisão de textos
apresenta pouca investigação científica, principalmente no que diz respeito a uma
compreensão enunciativo-discursiva, o que explica o fato de haver muitos modos de
compreender esse fazer e da variação nas maneiras de realizá-lo, que abarca desde a

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verificação exclusiva de questões gramaticais, por alguns revisores por exemplo, até a
intervenção discursiva, por outros. Não ter uma compreensão comum quanto ao
revisor de textos, faz com que, por exemplo, o revisor solicitado para o trabalho ora
analisado necessite recuperar as normas antecedentes desse fazer, a fim de explicar de
que lugar ela fala, isto é, de que modo ela renormaliza o fazer em sua atividade
prática, tal como podemos perceber no seguinte enunciado: “Primeiramente, gostaria
de te explicar que tenho por hábito, quando realizo as revisões, olhar o todo de um
texto, ou seja, me posiciono como uma leitora crítica e procuro observar não só as
questões gramaticais (óbvias de qualquer revisão), mas trabalho sobretudo com outras
questões linguísticas (tais como progressão, informatividade, observo se os períodos
estão condizentes, se as seções estão bem organizadas, se cumprem o que prometem
na sua introdução etc.)” e “Creio, [Fulana], que a resposta final do trabalho sempre
tenha de ser do autor deste e, por isso, o meu hábito de rechear os arquivos com
comentários e observações”.
Schwartz (2014, p.264) discorre sobre a atividade de trabalho como um
constante debate de normas encaixados, já que “temos de agir num mundo que não
criamos, saturado portanto por inúmeras normas antecedentes de diversos níveis e
graus de proximidade com as existências do presente”, delas decorrem a nossa
necessidade de renormalizar, isto é, “de proporcionarmos normas parciais, reajustadas
no instante do agir, para lidar com ‘a’ situação” (idem, p.265). É justamente esse
debate de normas que se pode perceber no enunciado da revisora, quando define a
sua atividade através do entrelaçamento entre o que ela não significa como, por
exemplo, modificar o texto alheio, na opinião desse revisor, para poder dizer o que
constitui esse trabalho complexo, tal como revela o seguinte enunciado: “Compreendo
a Revisão Linguística como um trabalho cooperativo, construído através do diálogo e
do bom senso, pois, por exemplo, uma palavra que, para mim, pode parecer repetida,
sem necessidade, tem a possibilidade de representar um dado autor ou uma dada
filiação teórica específica. Nesse caso, não posso sair modificando o texto alheio,
desrespeitando a autoria, e denominando como "revisão". Enfim, [Fulana], gosto de
deixar claro ao solicitante o tipo de trabalho que desenvolvo, mesmo porque poderás
não te agradar da minha metodologia, porém, como te expliquei agora, acredito ser a
mais correta e ética”.
Para Bakhtin ([1963]/2015, p.209), “toda a vida da linguagem, seja qual for o
seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística, etc)
está impregnada de relações dialógicas” e elas não se reduzem às relações “lógicas ou
às concreto-semânticas, que por si mesmas carecem de momento dialógico”. Ao

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contrário, elas “Devem personificar-se na linguagem, torna-se enunciados, converter-


se em posições de diferentes sujeitos expressas na linguagem para que entre eles
possam surgir relações dialógicas” (idem). O diálogo entre revisor e autor de tese
revisada, do qual trouxemos apenas um recorte neste trabalho, revela enunciados que
se constituem por relações dialógicas (superando as relações lógicas), signos
ideológicos em relação numa teia discursiva de sentidos, que refletem e refratam os
posicionamentos de autor da tese e revisor desta quanto à atividade de revisão
textual. No decorrer da interação ora recortada há outras pistas discursivas que dão
evidência do entrecruzamento de vozes do revisor e do autor da tese na versão final
do texto revisado e que trazem à tona a própria constituição multifacetada de um
texto acadêmico, ao revelar outros atores do trabalho até então silenciados.
Sabemos que toda a enunciação sintetiza uma série de relações complexas e
múltiplas que organizam os projetos de dizer dos locutores e a troca estabelecida com
os interlocutores em dada situação comunicativa. Nesse processo não há palavra
monológica, neutra, tendo em vista que “em cada palavra há vozes às vezes
infinitamente distantes, anônimas, quase impessoais (as vozes dos matizes lexicais, dos
estilos, etc.), quase imperceptíveis, e vozes próximas, que soam concomitantemente”.
(BAKHTIN [1959-1961], 2011, p. 330). Nossa pesquisa busca resgatar algumas dessas
vozes, problematizando a tensa relação entre autor e revisor de teses acadêmicas,
tratando das dramáticas do uso de si na constituição da atividade para a Ergologia, a
saber: “uma sinergia problemática e enigmática dos heterogêneos que há em nós”
(SCHWARTZ, 2014, p.267), tal como tentamos demonstrar neste pequeno recorte de
análise exposto anteriormente.

Considerações finais

Neste trabalho, a partir do recorte de uma pesquisa de doutorado em


desenvolvimento, discutimos a respeito da atividade de trabalho de revisão textual em
contexto acadêmico, mais especificamente do realizado em teses, e problematizamos
esse fazer com base em alguns postulados da teoria bakhtiniana em interface com os
estudos ergológicos da atividade de trabalho. Por meio de uma breve análise de um
diálogo entre revisor e autor de tese revisada, buscamos ter conseguido vislumbrar
reflexos e refrações das vozes que constituem os discursos em movimento e as
posições valorativas assumidas pelo revisor e pelo autor de textos em situações reais
de uso da linguagem e de estabelecimento do trabalho de revisão textual.
Ademais, ao problematizar o trabalho do revisor de textos e, principalmente,
demonstrar relações dialógicas constitutivas desse fazer, almejamos ter despertado o

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interesse de outros interlocutores para esse objeto tão complexo e com vasto campo
de investigação com vistas a manter o processo dialógico sobre a atividade de trabalho
do revisor textual e a refletir sobre o texto nesse câmbio laboral a partir do
imbricamento das vozes de ambos os atores do trabalho na elaboração do texto final.

Referências

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HISTÓRIA, TEORIA E FICÇÃO E A IMPOSSIBILIDADE DE NARRAR A HISTÓRIA NA OBRA


UMA VIAGEM À ÍNDIA, DE GONÇALO M. TAVARES

Vanessa Hack Gatteli1

Uma Viagem à Índia (2010) é uma epopeia que narra a viagem do personagem
principal, Bloom, de Portugal à Índia, assim como o retorno do mesmo a Lisboa. A
comparação com outras epopeias é inevitável. Por narrar uma viagem de Portugal até
Índia, e, por ser dividida exatamente no mesmo número de cantos e estrofes que Os
Lusíadas (2002), um paralelo com a epopeia portuguesa é inevitável. Da mesma
maneira, é evidente também o intertexto com a obra Ulysses (2012), de James Joyce,
já que, entre outros motivos, os protagonistas das duas narrativas têm o mesmo
nome: Bloom. Obviamente, uma epopeia do século XXI certamente é diferente da
epopeia clássica - como Os Lusíadas (2002) - e da epopeia antiga - como a Ilíada (2011)
e a Odisseia (2014).
É tentador esse exercício de colocar o texto de Camões ao lado do texto de
Tavares? Sim. Mas está longe de ser uma alegoria, como talvez aconteça em As Naus,
de Lobo Antunes. Pelo contrário, o “herói”, o protagonista da história sequer se chama
Camões ou Vasco da Gama. Seu nome é Bloom, é uma alusão muito clara ao
personagem principal do Ulysses de James Joyce. Por sua vez, Ulysses é totalmente
estruturado em cima da Odisseia de Homero. Da mesma forma, Tavares cria sua
estrutura em cima de outra epopeia, no caso, Os Lusíadas.
Com certeza o nome “Bloom” não é gratuito nessa epopeia. Quando James
Joyce dialoga com Homero, ele faz um contraponto. O Odisseu de Homero só
consegue vencer todos os obstáculos e adversidades porque sabe quem é para onde
vai. Quando o protagonista de Tavares se chama Bloom, ele representa não apenas o
herói moderno de James Joyce, mas também representa o herói clássico de Homero. O
herói grego é feito de identidade e de memória, diferente do Ulysses (Bloom) de James
Joyce, que sequer narra a própria história e se deixa ser narrado.
Aonde quer que vá, Odisseu sabe que é o rei de Ítaca, que foi um herói na
guerra de Troia e que precisa voltar para sua esposa Penélope. O Bloom de James
Joyce encarna um Ulysses moderno, que não sabe muito bem o que fazer e passa o dia
1
Mestranda em Literatura Comparada - UFRGS/CAPES. E-mail: vanessagatteli@gmail.com

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perambulando pela cidade de Dublin, devolvendo um livro na biblioteca, passando no


correio, indo a um velório, entrando em um pub, até que finalmente, no fim do dia,
volta para sua esposa, Molly Bloom.
No momento em que declara que aquela será a epopeia de um homem só e
que esse homem será Bloom, já estamos cientes: essa será a epopeia de um herói que
não sabe exatamente quem é e nem o que quer. Quando batiza seu protagonista de
Bloom, Gonçalo M. Tavares anuncia que ainda que essa epopeia retome Os Lusíadas,
ela não irá questionar apenas a identidade portuguesa, irá questionar também a tal
fragmentação do sujeito contemporâneo.
No entanto, diferente do Bloom de James Joyce, cujo pai cometera suicídio, o
Bloom de Gonçalo M. Tavares assassinou o próprio pai, pois esse havia mandado
matar sua amada, Mary, dialogando com a história de Inês de Castro. O fato de ter
dado cabo à vida do pai com as próprias mãos, certamente traz implicações e talvez
explique suas ações (ou talvez justifique a falta de lógica aparente de seus atos).
O fato de Bloom refazer a viagem iniciática do Ocidente em busca de sabedoria
e esquecimento sinaliza apenas a necessidade da travessia, não é possível termos
outra certeza além desta. Ao escrever sua “poética do pós-modernismo” Linda
Hutcheon parte de autores como Jameson e Lyotard. Ela tenta não tomar partido de
um ou de outro, nem enaltecer ou ridicularizar seu objeto, antes prefere articulá-lo em
uma “estrutura conceitual flexível” (HUTCHEON, 1988, p. 11).
Segundo a autora canadense, a arte pós-moderna é, em geral, auto reflexiva e
paródica, o que seria um entrave para o mundo histórico, pois a paródia seria
“desistoricizante”, algo que a teórica contesta. O argumento é de que, ao final da
Primeira Guerra Mundial, o fracasso do modernismo em ser algo inovador já era
visível. Nesse contexto, o pós-modernismo (ao menos na arquitetura), já questionaria
esse ideal modernista totalizante, por isso, não poderia ser “desistoricizante”.
Por ser auto reflexivo e autorreferente, o pós-modernismo poderia ser
introspectivo por falar de si mesmo – mas não é isso que ocorre. Paradoxalmente, seu
discurso problematiza os limites entre os discursos da história, da ficção e da teoria.
Cabe aqui uma das tantas contradições do pós-modernismo: mesmo sendo paródica e
auto reflexiva, a literatura pós-moderna se preocupa com a história:

E, embora a corajosa afirmativa de que o pós-moderno é


“desistoricizado” tenha contribuído para que se desse uma grande
atenção a esses críticos e também a certos críticos marxistas, trata-se
de uma afirmação que pouco se relaciona com aquilo que venho
chamando de metaficção historiográfica, pois esse termo se refere a

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romances cuja auto-reflexividade atua em conjunto com o que


parece constituir seu oposto (a referência histórica) tendo por
objetivo revelar os limites e poderes do conhecimento histórico. O
desafio à história ou a sua escrita não é a negação de nenhuma das
duas. (HUTCHEON, 1988, p. 280)

Obviamente, essas não são prerrogativas da literatura pós-moderna, a


novidade ficaria por conta da ironia associada a essas contradições, além de, claro, sua
presença obsessivamente repetitiva.
A obra de Linda Hutcheon é de 1988, portanto, mais de um quarto de século se
passou desde sua primeira publicação. Até 1988, a quantidade de obras consideradas
dentro da estética do que a autora chamou de metaficção historiográfica (ou que pelo
menos flertam com ela) era enorme. Ainda que seja arriscado fazer generalizações,
acredito que de lá para cá, principalmente durante os anos 90, várias obras de estética
semelhante foram publicadas, em diferentes línguas e países. Por essa razão, acredito
que usar a autora como suporte teórico seja válido, pois se mostra atual e produtiva.
Além disso, me interessa também partir da teoria de Linda para expandi-la,
talvez atualizá-la. Não tenho pretensões aqui de me equiparar a teórica, mas acho que
dentro do recorte a que me proponho, minhas leituras e reflexões realizadas durante
os dois anos de mestrado me permitem fazer algumas afirmações. Além disso, a
própria autora já previu essa possibilidade e propôs essa prática em sua obra Poética
do Pós-Modernismo (1988):

Precisamos, mais do que de uma definição estável e estabilizante, é


de uma “poética”, uma estrutura teórica aberta, em constante
mutação, com a qual possamos organizar nosso conhecimento
cultural e nossos procedimentos críticos. Não seria uma poética no
sentido estruturalista da palavra, mas ultrapassaria o estudo do
discurso literário e chegaria ao estudo da prática e da teoria culturais.
(HUTCHEON, 1988, p. 31-32)

Percebo que a problematização da história, da teoria e da ficção ainda é muito


forte na literatura dos últimos 15 anos (portanto, relativamente já distante dos anos
80 em que Linda Hutcheon escreveu sua teoria). É também já afastada dos anos 90,
nos quais ainda é possível perceber algum fôlego da produção de romances a que
chamamos de metaficção historiográfica.
Na primeira parte do livro, a autora discute seu principal argumento: a
problematização da história pelo pós-modernismo. Em linhas mais gerais, acredito que
seja aqui que eu tenha mais afinidades de raciocínio com a autora. Segundo ela,

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autores como Hayden White, Fredric Jameson e Edward Said, dentre muitos outros,
(cito apenas aqueles que me são mais familiares),

levantaram a respeito do discurso histórico e de sua relação com o


literário as mesmas questões levantadas pela metaficção
historiográfica: questões como as da forma narrativa, da
intertextualidade, das estratégias de representação, da função da
linguagem, da relação entre o fato histórico e o acontecimento
empírico, e, em geral, das consequências epistemológicas e
ontológicas do ato de tornar problemático aquilo que antes era
aceito pela historiografia – e pela literatura – como uma certeza.
(HUTCHEON, 1988, p. 14)

Obras pós-modernas discutiriam a história ao questionar a linearidade de um


suposto “eu unificado” postulado por uma ideologia dominante a que
simplisticamente se coloca o rótulo de “humanismo liberal” (HUTCHEON, 1988, p. 15).
Por isso, Uma Viagem à Índia não pode ser lido apenas como paralelo de Os Lusíadas –
ainda que ele seja inevitável. Do contrário, o protagonista se chamaria Vasco da Gama
ou Camões. No entanto, seu nome é Bloom, o personagem de James Joyce que remete
a Odisseu. Ou seja, ele é uma ressonância literária universal, não apenas portuguesa. O
fato de um personagem que tanto busca respostas sobre si mesmo remeter a um
personagem tão único em sua identidade como Odisseu (ao chamar-se Bloom ele
automaticamente também é uma referência a Odisseu) é uma questão que será
discutida ao longo de toda a dissertação.
Ainda no prefácio de sua Poética do Pós-Modernismo, Linda lembra que a
cultura pós-moderna sabe que não tem como escapar de tendências econômicas e
ideológicas, o capitalismo tardio e o humanismo liberal, respectivamente. Nada do que
a cultura pós-moderna fizer não será feito senão de dentro desse contexto, não existe
ponto de vista externo. Nas palavras da autora, “O presente estudo é uma tentativa de
verificar o que ocorre quando a cultura é desafiada a partir de seu próprio interior:
desafiada, questionada ou contestada, mas não implodida”. (HUTCHEON, 1988, p.16).
Em síntese, diferente de outros contextos histórico-culturais, o pós-
modernismo não apresenta ruptura. Linda Hutcheon arrisca a falar em “nenhuma
ruptura” (HUTCHEON, 1988, p.16). Não sei se eu iria tão longe assim em uma
afirmação, mas é interessante pensarmos sob esse ponto de vista. O pós-modernismo
antes questiona aquilo que sempre se tomou como verdade, que sempre fez parte do
senso comum. Ninguém nunca havia questionado as palavras de Robinson Crusoé em

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seu relato. Pelo contrário, a obra de Daniel Defoe se tornou o arquétipo do espírito
pragmático do homem inglês.
A obra Foe, de J. M. Coetzee questiona essa “verdade” ao colocar uma mulher
narrando a história. Assim, a cultura pós-moderna abre a possibilidade de a história de
Robinson Crusoé ter sido narrada por uma mulher que foi apagada pela história. Linda
Hutcheon classifica essa obra dentro do que ela chama de metaficção historiográfica,
pois, ainda que não esteja lidando com fatos necessariamente históricos, ao
questionar um texto literário consagrado pela historiografia, considerado clássico, ela
aponta para o fato de que a própria história possa ter silenciado várias vozes ao longo
da história. Obviamente, essas vozes silenciadas são quase que sem exceção, as vozes
de minorias: mulheres, negros e homossexuais.
Dessa maneira, a produção ficcional de Coetzee vai ao encontro de diferentes
linhas teóricas de pensamento, como o feminismo, o pós-colonialismo e a
desconstrução. O exemplo do romance Foe é apenas uma dentre tantas obras que
através da ficção levantam problemas teóricos e que questionam o senso comum e as
verdades históricas que até pouco tempo se pensavam imutáveis.
Linda Hutcheon questiona o que haveria em comum entre o seriado Dallas e a
arquitetura de Ricardo Bofill? Ela defende que pós-modernismo não pode ser usado
como um simples sinônimo para o contemporâneo. Eu acredito que o pós-modernismo
guarde grandes afinidades com a contemporaneidade, mas concordo que os termos
não possam ser usados indiscriminadamente como sinônimos.
Linda Hutcheon ainda pondera que o pós-modernismo seja um fenômeno
cultural “basicamente europeu e (norte- e sul-) americano” (HUTCHEON, 1988, p. 20).
Tal afirmação, quase trinta anos após a publicação da obra, é uma das poucas
pinceladas do livro que soa obsoleta. Segundo a teórica, o termo “pós-modernismo”
teria sido reconhecido na arquitetura na Bienal de Veneza de 1980, cujo conceito seria
a “presença do passado”:

de forma paradoxal, em sua paródia histórica – mostra como a


arquitetura tem repensado o rompimento purista do modernismo
com a história. Não é um retorno nostálgico; é uma reavaliação
crítica, um diálogo irônico com o passado da arte e da sociedade, a
ressurreição de um vocabulário de formas arquitetônicas
criticamente compartilhado. (HUTCHEON, 1988, p. 20)

Mais adiante alguns tópicos sobre a relação entre o pós-modernismo e


arquitetura serão retomados. Não por acaso que o termo surgiu a partir da

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arquitetura. É justamente nela que se consegue enxergar com mais clareza e


compreender melhor as contradições do pós-modernismo.
Segundo a autora, as contradições pós-modernistas se manifestam nas mais
diversas formas da arte e da cultura, mas no romance elas se sobressairiam,
particularmente naquela forma que a teórica batiza de “metaficção historiográfica”,
cuja definição, nas palavras dela, é a seguinte:

Com esse termo, refiro-me àqueles romances famosos e populares


que, ao mesmo tempo são intensamente auto-reflexivos e mesmo
assim, de maneira paradoxal, também se apropriam de
acontecimentos e personagens históricos: A Mulher do Tenente
Francês, Midnight’sChildren (Os Filhos da Meia-Noite), Ragtime, a
Lenda de “Legs”, G., FamousLastWords (As Famosas Palavras Finais).
Na maior parte dos trabalhos de crítica sobre o pós-modernismo, é a
narrativa – seja na literatura, na história ou na teoria – que tem
constituído o principal foco de atenção. A metaficção historiográfica
incorpora todos esses três domínios, ou seja, sua autoconsciência
teórica sobre a história e a ficção como criações humanas
(metaficção historiográfica) passa a ser a base para seu repensar e
sua reelaboração das formas e dos conteúdos do passado.
(HUTCHEON, 1988, p. 21-22)

Ou seja, a metaficção historiográfica de Linda Hutcheon se refere


especificamente a romances com as características descritas na citação acima, que
incorporam literatura, história e teoria. Contudo, mais adiante, veremos que mesmo
quando aplicada aos romances, esse conceito é flexível. Partindo desse pressuposto, já
podemos diferenciar a metaficação historiográfica da poética do pós-modernismo: a
metaficção historiográfica é pós-moderna, mas o pós-modernismo não se reduz
apenas à metaficção historiográfica: ele se manifesta em outras áreas da arte e da
cultura.
Com esse conceito em mente, é interessante pensar em uma Uma Viagem à
Índia. A obra certamente envolve os três domínios da metaficção: literatura, teoria e
história. Literatura, pois dialoga com toda uma tradição literária universal, como já
mencionei anteriormente, desde Os Lusíadas, passando por Ulyssess, Odisseia e
infinitas outras referências intertextuais. Uma Viagem à Índia explora a teoria, não só
por incorporar todos esses intertextos, mas também por fazer uso de um gênero
literário que muitos acreditavam morto – a epopeia – renovando o gênero na pós-
modernidade.

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Ao se declarar uma epopeia, Uma Viagem à Índia é um tratado teórico. A épica


de Gonçalo M. Tavares, como analisarei em detalhes mais adiante, não é a mesma
épica clássica. Essa, por sua vez, é diferente da épica antiga. Os problemas e
questionamentos que essas diferenças acarretam serão também observados mais
adiante, quando faço alguns apontamentos acerca da obra A poética, de Staiger, assim
como também analiso outras particularidades do gênero épico.
A cultura pós-moderna teria uma relação contraditória com nossa cultura
dominante – predominantemente “humanista liberal”, para usar os termos da
canadense. Nesse sentido, modernistas como T. S. Eliot e James Joyce eram
considerados extremamente humanistas, pois buscavam atingir valores estéticos e
morais estáveis. Coincidência ou não, os dois foram altamente ambiciosos ao escrever
narrativas, quase megalomaníacos.

O pós-modernismo se distingue disso, não em suas contradições


humanistas, mas no caráter provisório de sua reação a elas: ele se
recusa a propor qualquer estrutura ou, como denomina Lyotard
(1984a), qualquer narrativa-mestra – tal como a arte ou o mito – que
serviria de consolo para esses modernistas. (HUTCHEON, 1988, p. 23)

Curiosamente, é isso o que o Tavares faz, escreve uma epopeia, mas não é uma
narrativa-mestra. A meu ver, acredito que o autor, ao escrever Uma Viagem à Índia,
jamais se propôs a escrever um Lusíadas do século XXI. Seu objetivo não é trazer o
ufanismo e o nacionalismo do século XVI para o século XXI. Em síntese: não consigo
imaginar que em algum momento Tavares quis criar um “clássico” do século XXI,
diferente de James Joyce ao escrever Ulysses e diferente de Eliot ao escrever
Wasteland. As obras desses dois últimos autores, para mim, soam como tentativas de
se firmarem como obras-mestras do século XX – e realmente foram.
Hutcheon ainda observa que a teoria tenta questionar as narrativas-mestras do
liberalismo burguês, teóricos como Foucalt, Derrida, Habermas, Vattimo, Baudrillard
(ainda calcados nas ideias de Nietzsche, Heidegger, Marx, Freud) desafiaram
pressupostos totalizadores e empiricistas. (HUTCHEON, 1988, p.23)
Assim, não teríamos mais verdades absolutas, o consenso estaria em aceitar as
diferenças e admitir a concomitância de ideias plurais:

Agora, todas as narrativas ou sistemas que já nos permitiram julgar


que poderíamos definir. De forma não problemática e universal, a
concordância pública foram questionados pela aceitação das

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diferenças – na teoria e na prática artística. Em sua formulação mais


extrema, o resultado é o de que o consenso se transforma na ilusão
de consenso, seja ele definido em termos da cultura de minoria
(erudita, sensível, elitista) ou da cultura de massa (comercial,
popular, tradicional), pois ambas são manifestações da sociedade do
capitalismo recente, burguesa, informacional e pós-industrial, uma
sociedade em que a realidade social é estruturada por discursos (no
plural) – é isso que o pós-modernismo procura ensinar. (HUTCHEON,
1988, p. 24)

Será que a obra Uma Viagem à Índia seria aquilo que Linda Hutcheon chama de
paródia? Para ela, o conceito de paródia não tem aquele tom necessariamente
burlesco que o senso comum talvez possa ter. A paródia englobaria o seu hipotexto,
mas ao mesmo tempo o enfrentaria, o questionaria. Nesses termos, não resta dúvida
de que Uma Viagem à Índia é também um texto paródico.
Mais, arriscando cair em generalizações, me pergunto se nos anos 10 do séc.
XXI ainda haveria alguma obra canônica (literária ou de qualquer outra natureza) que
ainda não foi questionada. Talvez exista certo esgotamento dessa obstinação que
existe em questionar o passado e o cânone, como se já não existisse mais nada a ser
contestado, vide resenhas críticas que desvalorizam obras literárias por serem apenas
“mais um livro metaficcional”.
Gonçalo M. Tavares talvez esteja renovando a metaficção incorporando uma
estrutura (a épica) e cruzando com vários outros intertextos, sem necessariamente
apontar “erros” do passado nem sugerir alternativas, como, por exemplo, Coetzee faz
em Foe ao suscitar a suspeita de que Robinson Crusoé havia sido originalmente escrito
por uma mulher.
Talvez nossa sociedade continue sendo eurocêntrica, branca, masculina e
heterossexual, apesar dos esforços da literatura – e das artes em geral – de mostrar o
oposto. Existe a possibilidade de Uma Viagem à Índia estar mostrando que quando um
homem europeu, branco e heterossexual tenta consertar o seu passado fazendo uma
viagem em busca de conhecimento e retratação, o resultado é catastrófico, a história
se repete.
Tenho essa leitura devido à escalada de outros escritores que têm fugido dessa
tendência a que Linda Hutcheon chama de metaficção historiográfica, quando afirma
que o marginal não quer ser o novo centro. A autora afirma isso citando outro autor:

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O questionamento do universal e do totalizante em nome do local e


do particular não envolve automaticamente o fim de todo consenso.
Como nos lembra Victor Burgin: "É claro que as moralidades e as
histórias são “relativas”, mas isso não quer dizer que não existam”
(1986), 198). O pós-modernismo tem o cuidado de não transformar o
marginal num novo centro, pois sabe – nas palavras de Burgin – que
“[o que] expirou foram as garantias absolutas oferecidas por sistemas
metafísicos tiranizantes” (198). (HUTCHEON, 1988, p. 30)

Linda Hutcheon busca um argumento interessante na obra Mitologias (1973) de


Roland Barthes, no qual ele sugere que há a necessidade de questionar, desmistificar
primeiro para depois trabalhar pela mudança. Desvirtuando um pouco o contexto em
que Hutcheon cita o autor, acredito que talvez estejamos vivendo esse segundo
momento de “trabalhar pela mudança”. A metaficção historiográfica talvez tenha se
esgotado enquanto subgênero literário para dar lugar a obras diferentes, mas que
ainda assim se sustenta no questionamento de ideias. Explico.
A obra Beloved de Toni Morrison é citada como um dos tantos exemplos de
metaficção historiográfica por Linda Hutcheon. Porém, em sua mais recente obra, God
Help the Child (2015), já é possível perceber uma série de diferenças. Beloved é o
clássico exemplo de metaficção historiográfica.
Em God Help the Child, apesar de toda uma problematização de raça e gênero
que existe, já há um novo conceito de personagem: uma mulher negra, bem-sucedida
e empoderada. Não existe o questionamento da história através de uma tentativa de
reescrever a história como observamos na obra Beloved. No entanto, ao colocar uma
mulher negra como executiva (e não, necessariamente, como marginal, como
acontece em outras obras), há uma implicação demandada por teorias feministas e de
estudos culturais.
Na mesma direção, estão autoras como Chimamnda Adichie e Tayie Selasi,
cujas obras, sim, ainda apresentam narrativas de guerra, de trauma, também mostram
mulheres empoderadas e mostram uma áfrica para além da fome e miséria. Essas
obras não estão mais tentando reconstruir ou questionar um passado. Elas parecem
estar mais focadas em mudanças no presente, mudanças essas que só foram
permitidas porque esse passado já foi questionado.
Por mais distante que pareça, Gonçalo M. Tavares está na mesma esteira. Sua
obra tem um diálogo com a literatura e a história, mas em nenhum momento ele se
propõe a reescrevê-la. Diferente, no entanto, de escritoras como Chimamanda e Toni
Morrison, não há uma tentativa de mostrar o empoderamento de gênero, classe ou
raças desfavorecidas. Pelo contrário, mostra um homem branco europeu

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completamente em crise, perseguido por todas as barbáries que cometeu. Em síntese,


é uma metáfora do imperialismo das nações hegemônicas. Bloom carrega todo o peso
da tradição em suas costas. Ele é Portugal, ele é a Europa que hoje sofre as
consequências das atrocidades que cometeu em seu passado.

Referências

ANTUNES, António Lobo. As naus. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.


CAMÕES, L. Os Lusíadas. São Paulo: Nova Cultural, 2002.
COETZEE, J. M. Foe. London: Penguin Books, 1986.
DEFOE. D. Robinson Crusoé. Trad. De Domingos Demasi. Rio de Janeiro: Record, 2004.
HOMERO. Ilíada. Tradução e introdução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Hedra,
2011.
_____. Odisseia. Tradução e introdução: Christian Werner. Colagens: Odires Mlászho,
1. ed., São Paulo: Cosac Naify, 2014.
HUTCHEON, L. Poética do Pós-Modernismo – História, Teoria, Ficção. Tradução de
Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1988.
JOYCE, J. Ulysses. Tradução de Caetano W. Galindo. São Paulo: Penguin Classics
Companhia das Letras, 2012.
MORRISON, T. Beloved. New York: Vintage Books, 1987.
_____. God Help the Child. London: Penguin Random House UK, 2015.
TAVARES, G. M. Uma Viagem à Índia: melancolia contemporânea (um itinerário). São
Paulo: Leya, 2010.

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LIVRO ELETRÔNICO EM DUPLO FORMATO:


DIÁLOGO ENTRE PSICOLINGUÍSTICA, PRAGMÁTICA, EDUCAÇÃO E COMPUTAÇÃO

Vera Wannmacher Pereira1


Thaís Vargas dos Santos2

Introdução

O presente artigo traz o relato de um estudo que teve como objetivo examinar
comparativamente dois livros eletrônicos sobre conteúdos linguísticos teórico-práticos
para professores de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental, gerados,
respectivamente, em formato linear (FL) e em formato de mapa conceitual (FMC).
O trabalho esteve inserido nas diversas iniciativas do Centro de Referência para
o Desenvolvimento da Linguagem – CELIN da Faculdade de Letras da PUCRS para gerar
e investigar livros eletrônicos direcionados ao ensino da leitura nos diversos âmbitos
de aprendizagem – Fundamental, Médio e Superior.
Foi fundado teoricamente na Psicolinguística, especificamente no campo da
leitura e seu ensino, estabelecendo interfaces com a Pragmática, em relação aos
tópicos de inferência e relevância, com a Educação, quanto à leitura como aprendizado
em FL e em FMC, com a Computação, referente aos meios de geração virtual de
materiais científico-pedagógicos, promovendo assim um diálogo entre essas áreas.
Assim concebido, o texto está constituído sucessivamente dos fundamentos
teóricos, e da caracterização do estudo realizado com a apresentação dos resultados,
sendo finalizado com as conclusões e as referências.

1
Pós-doutora em Psicolinguística; Professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul –
PUCRS. E-mail: vpereira@pucrs.br
2
Bolsista de Doutorado do CNPq; Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. E-mail:
thais.vargas@acad.pucrs.br

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1 Os fundamentos do estudo

Os fundamentos teóricos do estudo abrangem leitura como processamento


cognitivo, estratégia de leitura, inferência, relevância e mapa conceitual, de modo a
dar sustentação ao design da pesquisa.
Iniciando pelo processamento cognitivo, ler significa realizar
fundamentalmente dois processamentos – bottom-up e top-down. O processamento
bottom-up caracteriza-se como ascendente, fazendo o movimento das partes para o
todo. Constitui-se numa leitura linear, minuciosa, vagarosa, em que todas as pistas
visuais são utilizadas. É um processo de composição, uma vez que as partes
gradativamente vão formando o todo. O processo top-down, defendido especialmente
por Goodman (1976, 1991) e por Smith (1999), caracteriza-se como um movimento
não linear que faz uso de informações não visuais. Desse modo, dirige-se da
macroestrutura para a microestrutura, da função para a forma.
Ainda segundo Goodman (1991), o processo cognitivo de leitura se altera, a
partir de algumas variáveis: objetivo da leitura, conhecimento prévio do conteúdo,
condições de produção do texto, tipo de texto e estilo cognitivo do leitor. Tais variáveis
determinam o processo de leitura – ascendente ou descendente. Smith (2003), que
assume o processo de leitura como de busca do caminho desenvolvido pelo escritor,
considera que a informação não visual é de grande importância, uma vez que o
significado, que é indispensável para o leitor, não está nas marcas superficiais do texto,
mas nos conhecimentos prévios sobre o assunto e sobre a linguagem que o leitor traz,
que podem fazê-lo perceber determinados aspectos visuais do texto.
As propostas de leitura como um processo interativo não se constituem em
negação do modelo cognitivista. Procuram, na verdade, explicar a inter-relação dos
processos ascendente e descendente durante a leitura.
O processamento cognitivo da leitura ocorre através de dois grupos básicos de
estratégias – cognitivas (ECL) e metacognitivas (EMCL) (LEFFA, 1996), segundo
fundamento basilar deste estudo. As ECL caracterizam-se pelos traços intuitivo e
inconsciente, enquanto as EMCL caracterizam-se pela consciência, pela intenção de
monitoramento do próprio processo. Constituem-se em exemplos de ECL
pressuposições intuitivas do leitor, tais como a de que o texto é, a priori, coerente, a
de que determinadas ordenações são impossíveis e a de que a escrita, em nossa
cultura, ocorre da esquerda para a direita. São exemplos de EMCL situações de
monitoramento do processo com o objetivo de garantir a compreensão, tais como a
definição e o controle do objetivo da leitura, a identificação de segmentos

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importantes, a distribuição da atenção, a avaliação da qualidade da compreensão, a


tomada de medidas corretivas.
O exame dessas EL expõe os elementos que internamente as constituem e que
estão distribuídos nos planos constitutivos da língua – fônico, mórfico, sintático,
semântico e pragmático. Estudos realizados sobre esse tópico apresentam diferentes
categorizações, sendo, no entanto, recorrentes: a leitura detalhada – o leitor percorre
o texto realizando uma leitura linear que perpassa toda a extensão do texto e se
destina à busca de informações completas e detalhadas sobre um dado assunto; o
skimming – o leitor percorre o texto, para tomar conhecimento da forma e do
conteúdo do texto de forma geral e abrangente; o scanning – o leitor percorre o texto
de modo direcionado, buscando alguma pista, alguma informação específica; o
automonitoramento – o leitor observa seu próprio processo leitor, controlando os
processos que está realizando; a seleção – o leitor escolhe o segmento a focalizar; a
autoavaliação – o leitor verifica se os processos que está realizando estão sendo
produtivos para sua compreensão; a autocorreção – o leitor corrige suas rotas de
leitura, com base na avaliação da produtividade das rotas percorridas; a predição – o
leitor faz antecipações em relação ao que está por vir na sequência do texto, utilizando
seus conhecimentos prévios e as pistas linguísticas (PEREIRA & PICCINI, 2006; PEREIRA,
2002).
A construção de inferências por parte do ser humano, terceiro fundamento
deste estudo, está presente em todos os atos comunicativos. Conforme Peirce (1975),
a inferência científica é um ato voluntário que culmina na adoção controlada de uma
crença como consequência de um outro conhecimento.
Em particular, para o tema desta pesquisa, pode ser considerado o modelo de
Trabasso & Maggliano (MAGLIANO et al., 1999; NARVAEZ, 1999), em que são sugeridos
sete tipos de inferências que um indivíduo pode realizar, quando do momento da
leitura. Em outras palavras, o leitor realiza uma série de ações em sua mente na busca
da interpretação de um texto, isto é, ao ler um texto, a mente do leitor seleciona o que
lhe interessa, o que lhe parece mais relevante, para realizar suas próprias inferências
em relação ao texto.
As inferências classificadas por Trabasso & Maggliano são: associações
(associações de conhecimento anterior e associações linguísticas); explicações
(explicações de conhecimento anterior e explicações baseadas no texto); predições
(inferências ditas avançadas); avaliações (comentários sobre o conteúdo do texto,
sobre a escrita do texto ou sobre o estado do leitor); quebras de coerência baseadas
no texto (declarações sobre a coerência do conteúdo do texto); quebras de coerência
baseadas em conhecimento (declarações sobre a incapacidade do leitor de entender

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devido à falta de conhecimento ou experiência); repetições (repetições de palavras ou


frases do texto).
Cabe destacar como caso importante de inferência, o que Sperber e Wilson
(1986, 1995), no caminho aberto por Grice (1975, 1991), chamaram de inferência não
demonstrativa. Este tipo de inferência não pode ser provado e significa que qualquer
informação disponível para o receptor da mensagem pode ser usada como uma
premissa nesse processo inferencial.
No estudo aqui relatado, são também importantes os estudos desenvolvidos
por eles na interface comunicação-cognição, conhecida como Teoria da Relevância
(TR), quarto fundamento deste estudo, sustentada por dois princípios básicos: o
Princípio Cognitivo de Relevância e o Princípio Comunicativo de Relevância, de acordo
com Costa (2005) e Costa (in CAMPOS & RAUEN, 2008). Segundo o primeiro, a
comunicação humana tende a ser dirigida para a maximização da relevância. Conforme
o segundo, todo estímulo ostensivo (intenção informativa e comunicativa) comunica a
presunção de sua própria relevância ótima e o grau de relevância é diretamente
proporcional à relação entre esforço de processamento e efeito cognitivo positivo. Isso
significa que, em contextos idênticos, quanto menor o esforço e maior o efeito
cognitivo positivo, mais relevante o estímulo.
Na continuidade da exposição dos fundamentos, o quinto se refere a um
formato de organização compreensiva da linguagem, em que os demais fundamentos
anteriores estão presentes - o mapa conceitual. É uma representação gráfica,
semelhante a diagrama, que indica relações entre conceitos ligados por palavras
chamadas palavras de enlace. Representa uma estrutura que vai desde os conceitos
mais abrangentes até os menos inclusivos, sendo utilizado para auxiliar a ordenação e
a sequenciação hierarquizada dos conteúdos do objeto de estudo.
Para Cañas (2003), o mapa conceitual é uma representação do conhecimento,
formada de conceitos e das relações entre eles. É uma regularidade percebida em
eventos ou objetos, ou um registro de eventos ou objetos, marcados com um rótulo.
Segundo Moreira (1980, 1999), o mapeamento conceitual é uma técnica de
análise que pode ser usada para ilustrar a estrutura conceitual de uma fonte de
conhecimentos.
O mapa conceitual foi criado por Novak (1996) em seu programa de pesquisa
sobre o papel central da Teoria de Aprendizagem em uma Teoria de Educação. Sua
origem é a Teoria de Aprendizagem Significativa desenvolvida por Ausubel (AUSUBEL
et al., 1978), uma teoria cognitiva que busca explicar o processo de aprendizagem
segundo a ótica do cognitivismo. A ideia central da teoria sobre aprendizagem
significativa é a de que esta aprendizagem é um processo em que uma nova

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informação é vinculada a um aspecto relevante, já existente, da estrutura de


conhecimento de um indivíduo. Segundo Ausubel, o armazenamento da informação no
cérebro humano é uma hierarquia conceitual, na qual os elementos específicos do
conhecimento são ligados (e assimilados) a conceitos mais gerais e inclusivos.
No processo de aprendizagem significativa, a interação entre ideias é essencial,
as quais podem ser expressas simbolicamente, de modo não arbitrário e substantivo,
isto é, não literal, com aspectos específicos já presentes na estrutura cognitiva do
indivíduo. Assim, o conhecimento que o aluno/leitor possui - conhecimentos prévios -
é o fator isolado mais importante que influenciará a aprendizagem subsequente
(AUSUBEL, 2003). Os conhecimentos prévios, subsunçores, constituem conceitos
bastante integrados à estrutura cognitiva, são elementos centrais para estruturação e
construção do conhecimento, com os quais a nova informação interage, resultando
numa mudança tanto da nova informação quanto do subsunçor ao qual se relaciona.
Se os subsunçores são elementos preponderantes para que haja aprendizagem
significativa, da mesma forma o material oferecido ao aluno deve ser potencialmente
significativo, isto é, relacionável aos conceitos já existentes na sua estrutura cognitiva.
A aprendizagem significativa pressupõe que as informações a serem
apresentadas ao aprendiz sejam potencialmente significativas, isto é, relacionáveis
com os conceitos subsunçores já existentes na sua estrutura cognitiva, e que o mesmo
deve manifestar disposição de relacionar essas novas informações aos conceitos já
existentes. De acordo com esta teoria, a aprendizagem pode ser facilitada através dos
seguintes princípios: diferenciação progressiva e reconciliação integrativa (MOREIRA e
MASINI, 2006).
Em oposição à aprendizagem significativa está a aprendizagem mecânica, em
que novas informações são acrescentadas à base de conhecimento do indivíduo com
pouca, ou nenhuma, associação a conceitos relevantes já existentes na estrutura
cognitiva, ou ainda, quando não há um esforço para a ocorrência da associação.
Não há regras gerais fixas para o traçado de mapas conceituais. O importante é
que o mapa seja um instrumento capaz de evidenciar significados atribuídos a
conceitos e relações entre conceitos no contexto de um corpo de conhecimentos, de
uma disciplina, de uma matéria de ensino. Por exemplo, se o indivíduo que faz um
mapa une dois conceitos, através de uma linha, ele deve ser capaz de explicar o
significado da relação que vê entre esses conceitos.
Os dois conceitos mais as palavras-chave formam uma proposição, e esta
evidencia o significado da relação conceitual. Por essa razão, o uso de palavras-chave
sobre as linhas, conectando conceitos, é importante e deve ser incentivado na
confecção de mapas conceituais.

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Moreira (2006), em seu livro sobre mapas conceituais, exibe várias aplicações
dos mapas: como instrumento de ensino, como instrumento de avaliação da
aprendizagem e como instrumento para a análise e planejamento do currículo.
Com essas características, o formato mapa conceitual se opõe ao formato
dominante na escrita de textos de diversas extensões, estruturas e objetivos, que
seguem de forma continuada a linha vertical, de cima para baixo, a linha horizontal, da
esquerda para abaixo, e a linha sequencial de paginação, sendo por essa razão, aqui
denominado de formato linear.
Os quatro fundamentos expostos neste tópico conferem sustentação teórica e
metodológica ao estudo realizado e ao presente artigo.

2 O estudo

Neste tópico, é apresentado o estudo realizado – seu delineamento, os dados


coletados e os resultados obtidos. Teve como objeto de estudo um livro eletrônico
gerado em dois formatos (mapa conceitual e linear), constituído de conteúdos
linguísticos importantes para professores de Língua Portuguesa. O objetivo do estudo
foi examinar esse livro eletrônico em duplo formato, comparativamente, no que se
refere à compreensão, ao processamento cognitivo, ao uso de estratégias de leitura,
ao uso da inferência, à satisfação do usuário e à relevância. Diante desse objetivo, as
questões de pesquisa consideraram as seguintes variáveis:
V1 - formatos do e-book: formato A – apresentação do e-book em mapa
conceitual; formato B – apresentação do e-book em texto linear;
V2 - compreensão leitora: escores decorrentes de aplicação de um teste
constituído de questões de escolha simples, escolha múltipla e associações;
V3 - estratégia de leitura: procedimentos de leitura utilizados pelo leitor – tipos,
frequência e tempo;
V4 – inferência: raciocínio que permite chegar a uma conclusão a partir de um
conjunto de premissas;
V5 - tempo: minutos e segundos utilizados pelo no percurso da leitura;
V6 - satisfação: escores decorrentes de aplicação de um instrumento de
satisfação com o e-book;
V7 - relevância: índice decorrente dos escores de estratégias de leitura,
compreensão leitora e satisfação.
Constituíram-se em sujeitos 20 professores de Língua Portuguesa do Ensino
Fundamental, tendo sido organizados em dois grupos – um para leitura do formato
linear (FL) e um para leitura do formato mapa conceitual (FMC).

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Os dados foram coletados individualmente por meio dos seguintes


instrumentos: um Teste de Compreensão Leitora (TCL), um software de captura do
processamento dos sujeitos durante a leitura dos livros, um Instrumento de Satisfação
(IS).
Considerando a extensão do livro Leitura e Cognição: teoria e prática nos anos
finais do Ensino Fundamental3, a equipe de pesquisa decidiu por centrar sua
investigação em três dos capítulos – Leitura: tipos e gêneros textuais, Leitura: planos
linguísticos e Leitura: compreensão, processamento e estratégias –, pois apresentam
atividades práticas de leitura e oferecem, também, grande parte da fundamentação
teórica necessária para o ensino da leitura em sala de aula. Assim, a investigação teve
como foco a leitura desses três capítulos, antecedida pelos elementos pré-textuais
(capa, folha de rosto, ficha catalográfica), pelo capítulo Abertura, pelo capítulo Mapa
de Navegação, e seguida pela leitura do capítulo final, Fechamento.
Ao final da leitura, nos dois formatos, o formulário eletrônico do TCL foi
disponibilizado pelo monitor ao usuário. Finalizada a parte registrada pelo software de
captura SnagIt, o usuário passou ao preenchimento do Instrumento de Satisfação. O
procedimento, em sua totalidade, teve duração de duas horas, em média.
O formulário eletrônico do TCL, composto por doze questões (máximo de 49
pontos), distribuídas em grupos de quatro questões contemplando os temas gêneros
textuais, planos linguísticos e compreensão, processamento e estratégias de leitura, foi
desenvolvido em linguagem C++, no ambiente Visual Studio, gerando um documento
de extensão .rtf com o percurso do usuário durante o preenchimento do mesmo de
modo a disponibilizar o tempo de duração do preenchimento do formulário (tempo de
compreensão), as respostas corretas, as respostas incorretas, a porcentagem de
acertos e toda a sequência de movimentação do usuário pelo formulário, como
respostas marcadas e desmarcadas.
Ao final de cada uma das questões, o leitor foi solicitado a escolher entre
quatro alternativas ou prover a sua própria, considerando o tipo de raciocínio ou
inferência utilizada para responder à questão. Essas informações foram utilizadas para
análise dos processos inferenciais, conforme exposição mais adiante.
A análise dos dados do TCL evidenciou diferenças pequenas de média
aritmética e percentual entre os dois grupos de leitura: grupo 1 (FTL) – 28,8 / 58,77%;
grupo 2 (FMC) – 28,9 / 58,98%. Evidenciou também que o escore do Grupo 1 (entre 22
e 37 acertos) não demonstrou maior ou menor homogeneidade em relação ao escore
do Grupo 2 (entre 20 e 36 acertos). Estes intervalos entre os escores de acertos

3
Disponível em http://www3.pucrs.br/portal/page/portal/edipucrs/Capa/PubEletrEbook.

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correspondem a uma diferença percentual de 8,33% entre os sujeitos do Grupo 1 – FTL


e a uma diferença de 7,84% entre os sujeitos do Grupo 2 – FMC; ou seja, a diferença
entre os escores de acertos entre os dois formatos foi inferior a 0,50 pontos
percentuais, o que representa diferença muito pequena. Não houve ainda diferenças
importantes no escore de acertos, considerando o número total de estratégias de
leitura por sujeito durante a leitura e o preenchimento do TCL. Isso indica que os
sujeitos que mais realizaram procedimentos a partir das estratégias intencionadas não
obtiveram melhores resultados do que aqueles que usaram um número inferior de
estratégias.
Para que fosse possível explanar sobre o tipo de processamento cognitivo
predominante utilizado pelos leitores durante a aplicação do teste, foi necessário,
primeiramente, considerar as estratégias de leitura aí utilizadas, pois foi a partir delas
que foi possível observar a aplicação de um ou outro tipo de processamento, ou,
ainda, a utilização dos dois conforme a tarefa solicitada.
A primeira análise das estratégias de leitura considerou os sujeitos como um
todo, apresentando o total de estratégias utilizadas e também o tempo em que foram
utilizadas. Nessa análise, não estão apenas consideradas as estratégias utilizadas
durante a leitura, mas também durante a realização das atividades práticas de leitura e
do preenchimento do TCL. Assim, as estratégias mais utilizadas foram as de leitura
detalhada, com número de ocorrências de 2260 e tempo de utilização de 95,578
segundos, de autoavaliação, com número de ocorrências de 606 e tempo de utilização
de 15,586 segundos, e de autocorreção, com número de ocorrências de 341, enquanto
as estratégias menos utilizadas foram as de seleção (27 ocorrências), de skimming (33
ocorrências) e de automonitoramento (34 ocorrências).
Em relação às características do processamento cognitivo utilizado pelos
sujeitos durante a leitura do e-book, nos dois formatos, pode-se afirmar que houve a
predominância do processamento bottom-up – apoiado na utilização da estratégia
leitura detalhada – que se constitui numa leitura ascendente e linear, minuciosa,
vagarosa, em que todas as pistas visuais são utilizadas.
Retomando as nove estratégias de leitura previamente selecionadas – leitura
detalhada, skimming, scanning, seleção, automonitoramento, autoavaliação,
autocorreção, predição, inferência –, pode-se identificar a utilização de sete delas
através dos procedimentos aplicados durante a leitura. Isso se deu em razão de que
estratégias como predição e inferência são de difícil observação (o que se apresenta
são as decisões já tomadas), escolha de respostas, etc.
A estratégia de inferência recebeu, desse modo, caminho próprio de análise.
Após o preenchimento de cada uma das questões do TCL, o leitor foi solicitado a

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refletir sobre suas respostas e escolhas. A partir dessa reflexão, ele escolheu uma das
alternativas a seguir ou fez a sua própria: conhecimentos na memória imediata;
processos de eliminação, descartando as alternativas absurdas, as pouco prováveis,
etc.; escolha aleatória; conhecimentos prévios (adquiridos ao longo da sua formação);
outro tipo de inferência (qual?). Assim, cada leitor pôde refletir sobre suas decisões e
inferências durante a atividade, de modo a realizar uma meta-avaliação. Nesse
processo, foi possível observar a ausência de homogeneidade entre as respostas dos
vinte sujeitos analisados. A maioria dos sujeitos marcou mais de uma alternativa (até
quatro alternativas, em alguns casos), enquanto aproximadamente 1/3 do restante
escolheu repetidamente a alternativa “conhecimento prévio”. Apenas 3 sujeitos (no
FMC e 1 no FL, respectivamente) informaram outros apoios de inferência.
A análise da satisfação dos sujeitos contou com o Instrumento de Satisfação (IS),
cujas respostas podem ser assim resumidas: a) para o FL, 60% dos sujeitos
classificaram seu nível de satisfação como 5 e 40% classificaram seu nível de satisfação
como 4, e para o FMC, 70% classificaram seu nível de satisfação como 4, 20%
classificaram seu nível de satisfação como 3 e 10% classificaram seu nível de satisfação
como 5, indicando resultado favorável ao FL; b) 90% dos sujeitos aprovaram o FL em
comparação ao livro em papel e 70% aprovaram o FMC em comparação ao livro em
papel; c) em relação a alguma dificuldade durante a leitura, no FL houve 60% de
indicações e no FMC 80%; d) quanto ao favorecimento da leitura, 80% das respostas
forma positivas nos dois formatos, valorizando o dinamismo dos processos; e) no que
se refere à letra utilizada, o tipo e o tamanho foram considerados adequados e
confortáveis por 80% no FMC e 90% no FL.
No que se refere à relevância, ou seja, à relação entre custo/dispêndio de
esforço cognitivo e benefício, foram considerados os dados sobre o tempo gasto pelos
sujeitos para a realização do conjunto de tarefas realizadas (leitura de capítulos do e-
book, atividades de leitura em Flash e preenchimento do TCL – Teste de Compreensão
Leitora) e os dados (ocorrência e tempo) sobre as estratégias de leitura utilizadas
durante a realização das tarefas, sendo, para isso, estabelecidas categorias. Em relação
ao tempo nas tarefas, foram os seguintes os dados: no FL – com base na média
aritmética de 2h11min48s, Cat 1 (abaixo) com 3 sujeitos, Cat 2 (intermediária) com 2
sujeitos, Cat 3 (acima) com 5 sujeitos; no FMC – com base na média de 1h46min30 seg,
Cat 1 com 5 sujeitos, Cat 2 com 3 sujeitos, Cat 3 com 2 sujeitos. Com base nessas
informações, houve no FL uso de um tempo maior, portanto um maior custo. Quanto
às estratégias utilizadas, o mesmo procedimento de obtenção de média aritmética foi
realizado. No FL a média foi de 225 ocorrências, com 3 sujeitos na Cat 1, 3 sujeitos na
Cat 2 e 4 sujeitos na Cat 3, e, no FMC, a média foi de 191 ocorrências, com 5 sujeitos

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na Cat 1, 3 sujeitos na Cat 2 e 3 sujeitos na Cat 3, demonstrando um custo maior no FL,


pois uma frequência maior no uso de estratégias. Considerando os escores de acertos
no TCL, as exposições anteriormente estabelecidas também se aplicam a estes dados.
Demonstram que, apesar de uma diferença de 2 pontos, os sujeitos que realizaram a
leitura através do FMC otimizaram seu processamento da informação, pois a média
aritmética do grupo foi definida em 29 acertos, enquanto no FL foi de 27 pontos.
Ademais, 80% dos sujeitos do FMC distribuem-se entre as categorias 2 e 3, acima de 28
acertos; já no FL, 60% dos sujeitos distribuem-se entre as categorias 2 e 3, acima de 26
acertos. Em relação à variável satisfação, as notas foram entre 1 e 5, sendo 1 a mais
baixa avaliação e 5 a mais alta. Os 20 sujeitos participantes atribuíram notas entre 3 e
5, disso decorrendo o estabelecimento de três categorias da seguinte forma: Cat 1 –
nota 3, Cat 2 – nota 4 e Cat 3 – nota 5. Individualmente, o FL foi mais bem avaliado –
dos 10 sujeitos, 6 atribuíram nota 5 (nota máxima) ao formato – , já o FMC recebeu da
maioria dos sujeitos (7 dos 10) a nota 4. Finalizando esse tópico sobre a variável
relevância, considerando tempo de leitura, estratégias utilizadas, satisfação e escore
de compreensão leitora, cabe registrar tendência para maior relevância no FMC.
Sendo esses os dados coletados e os resultados obtidos, são apresentadas a
seguir as conclusões do estudo aqui exposto.

Conclusões

Considerando os resultados positivos obtidos por meio dos instrumentos


aplicados, é possível afirmar que o estudo em questão trouxe contribuições
importantes para o ensino, para o paradigma de livros eletrônicos e para a pesquisa
em Psicolinguística.
Os e-books gerados em duplo formato – FL e FMC – constituem-se em produtos
digitais que contêm conteúdos linguísticos para professores de Língua Portuguesa do
Ensino Fundamental. Sua implantação no site da EDIPUCRS torna-o disponível para seu
uso sem custos para os usuários, conferindo-lhe valor pedagógico e social. Ao acessá-
los esses profissionais têm disponíveis informações teórico-práticas para uso na
organização de suas aulas. Além disso, têm a possibilidade de contato com formatos
digitais inovadores que se constituem em estímulo para trabalho com tecnologias
digitais.
Sendo esses produtos de caráter inovador, a EDIPUCRS e as diversas editoras
acadêmicas têm a possibilidade de examinar a hipótese de uso dos formatos utilizados
como paradigmas possíveis para livros eletrônicos. Os resultados sobre compreensão,

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satisfação e relevância colocam-nos como possibilidades produtivas a serem


estimuladas em seus espaços.
O design utilizado para investigação do uso desses livros eletrônicos gerados
está fundado teoricamente na Psicolinguística e nas interfaces com a Pragmática
quanto aos tópicos de inferência e relevância, com a Educação, no que se refere a
mapas conceituais, com a Computação, em relação à geração virtual de formato linear
e de formato em mapa conceitual, o que possibilitou a inovação de um material
científico-pedagógico produtivo.
Desse modo, o trabalho aqui relatado traz em seus processos e produtos
contribuições importantes para a evolução dos estudos psicolinguísticos e suas
interfaces, dos paradigmas de livros eletrônicos e dos materiais científico-pedagógicos
de ensino da leitura, tendo sido essa evolução possibilitada pelo diálogo entre
Psicolinguística, Pragmática, Educação e Computação.

Referências

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O SUJEITO PÓS-MODERNO E A IMPOSSIBILIDADE DA COMUNICAÇÃO:


UMA ANÁLISE DE REPRODUÇÃO, DE BERNARDO CARVALHO

Virgínea Novack Santos da Rocha1

Introdução

Os discursos de machismo, racismo, homofobia e xenofobia disfarçados de


liberdade de expressão são cada vez mais presentes na sociedade contemporânea,
sobretudo a partir das redes sociais. O atual cenário cultural, por sua vez, corrobora
com a criação desses discursos, mesmo que pareça contraditório a priori na era da
inclusão, que ainda muito se reivindique a tradição, como verdade suprema, ou seja,
sem qualquer possibilidade de questionamento.
No entanto, esse movimento logo se justifica socialmente, uma vez que o novo
é aquilo que nos desaloja dos rótulos confiáveis, ou seja, ameaça as relações de poder
exercidas por meio das narrativas mestras (LYOTARD, 2013). Dessa forma, o
fundamentalismo religioso (especialmente das Igrejas Neopentecostais), ampliado à
esfera, inclusive, da representação política, tem se apresentado como uma narrativa
absoluta em defesa de uma suposta moral, apresentando-se, contudo, como um dos
principais propagadores do discurso de ódio na sociedade, em ferrenha oposição aos
discursos de inclusão, incertezas e das pluralidades de narrativas da pós-modernidade
ou mesmo com a própria democracia.
Nesse sentido, portanto, fica em evidência, como já alertava Foucault, o valor
do discurso na consolidação do poder na organização social, pois como afirma o autor

Em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo


controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número
de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e
perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e
temível materialidade (FOUCAULT, 2011, p.8-9).

Dessa forma, mesmo com a suposta morte das narrativas mestras, esses
processos de exclusão ou de interdição, que em outros momentos estavam em maior

1
Mestranda em Literatura Comparada no Programa de Pós-graduação em Letras pela Universidade
Federal de Pelotas. E-mail: novack-virginea@gmail.com

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evidência, como a efetiva retira do direito de voz desses sujeitos, como em regimes
autoritários, hoje supostamente esse direito seria assegurado a todos. No entanto, a
exclusão dos discursos não se apresenta apenas de modo exterior, mas também
internamente, isso significa que, embora todos tenham o direito à voz, nem todos
terão suficiente respaldo social para serem ouvidos.
A ideia de redemocratização dos anos 70/80 somada ao discurso da liberdade
tornam-se o cenário ideal para o desenvolvimento da globalização e, por conseguinte,
de um capitalismo tardio, nos termos de Jameson (2007), que busca refletir sobre
como cultura e economia se articulam na atualidade, reproduzindo e fortalecendo o
modo de produção capitalista. Nesse sentido, “o pós-modernismo não é a dominante
cultural de uma ordem social totalmente nova (...), mas é apenas reflexo e aspecto
concomitante de mais uma modificação sistêmica do próprio capitalismo” (JAMESON,
2007, p.16).
Analisando, portanto, em termos práticos, se outrora as minorias, como
mulheres, negros, LGBTs etc., não tinham acesso à voz, na atualidade, têm, sobretudo
com o advento das redes sociais, uma vez que tal espaço pode ser ocupado por
qualquer pessoa que disponha de uma conexão à internet. No entanto, ainda não se
obteve respaldo social o suficiente para ser ouvido. Dessa forma, a internet apresenta-
se ainda como o espaço de maior possibilidade de articulação política desses grupos
em segurança, o que, por outro lado, gera a revolta daqueles que não querem perder
sua posição privilegiada nessas relações de poder.

E por que não escreve reclamando? [...] Cria um blog!

Assim, situamos nossa discussão a partir de Reprodução (2013), de Bernardo


Carvalho. A narrativa que vai nos apresentar as consequências do encontro no
aeroporto rumo à China do “estudante de chinês” com sua professora desaparecida.
Dividido em 3 capítulos, sendo o primeiro a versão do estudante sobre o
interrogatório; o segundo, o relato da delegada e o terceiro a volta do estudante.
O primeiro capítulo, o qual gera um misto de raiva e riso no leitor, uma vez que
a personagem é uma alegoria do sujeito pós-moderno individualista ao extremo e
embriagado pelos discursos conservadores que circulam, principalmente, nas redes
sociais, ou seja, um reprodutor de pré-conceitos. No entanto, o personagem reitera
durante toda a narrativa que é informado, pois busca na rede todas as informações
que precisa para compreender o mundo, representando-se como uma das figuras mais
comuns da pós-modernidade: o comentarista da internet, ou seja, aquele que tem
uma opinião sobre quase todos os assuntos partindo, porém, do senso comum, sem

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que se faça uma maior reflexão a partir das informações que tem ao invés da simples
reprodução da informação, como o narrador nos descreve a personagem:
“transformara os comentários anônimos na internet, em especial os hediondos, em
sua principal atividade diária” (CARVALHO, 2013, p.10).
Carvalho, como já comum da literatura contemporânea, usa a forma do seu
texto tanto para questionar a forma do romance quanto para auxiliar na construção de
sentido de seu próprio texto, assim, o narrador que é em 3ª pessoa faz alguns poucos
comentários sobre os motivos da narrativa, mas logo cede espaço para que as próprias
personagens, por meio de citação direta, contem suas versões dos fatos,
intrometendo-se esporadicamente com a marcação do texto entre colchetes, tendo,
portanto, como função principal: a de organizar o texto.
Nesse sentido, tanto Huctheon quanto Dalcastagné vêm a necessidade de
colocar essas personagens e narradores sob o signo da desconfiança, uma vez que “a
preocupação do século XVIII em relação às mentiras e à falsidade passa a ser uma
preocupação pós-moderna em relação à multiplicidade e à dispersão da(s) verdade(s),
verdade(s) referentes à especialidade do local e da cultura” (HUTCHEON, 1991, p.145),
pois “no lugar daquele indivíduo todo poderoso, que tudo sabe e comanda, vamos
sendo conduzidos para dentro da trama por um narrador suspeito” (DALCASTAGNE,
2005. pg.13), um narrador que só nos mostra um lado da história.
A suspeita se intensifica quando percebemos que o aspecto que se apresenta
como fundamental é que os enunciadores falam com alguém, ou seja, que a
mensagem tenha tanto dois emissores quanto dois receptores, visto que se trata de
um diálogo, porém o leitor tem acesso parcial a essas informações, ou seja, a de
apenas um enunciador, o que mais uma vez, enfatizada a comunicação “Então, é um
diálogo de surdos. Só um decide o que quer ouvir e o que o outro vai dizer”
(CARVALHO, 2013, p.153), esse é um importante reflexo da sociedade pós-moderna: a
reprodução de um discurso único e sem possibilidades de diálogo em inserção de
outros pontos de vista, um verdadeiro “diálogo de surdos”.
Nesse sentido, Lyotard, ao refletir sobre a pós-modernidade, entenderá que o
desenvolvimento da internet será crucial na formação desses sujeitos “é razoável
pensar que a multiplicação de máquinas informacionais afeta e afetará a circulação
dos conhecimentos do mesmo modo que o desenvolvimento dos meios de circulação
dos homens (transportes), dos sons e, em seguida, das imagens (media) o fez”
(LYOTARD, 1988, p.4), ele dirá ainda que “o cenário pós-moderno é essencialmente
cibernético, informático e informacional” (idem, p.viii).

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Assim, a linguagem, também tema corriqueiro de narrativas contemporâneas,


aparece não apenas como forma de reforçar a impossibilidade da linguagem de
retratar o real, mas também, e refletindo os tempos atuais, de, de fato, efetuar-se
enquanto sua função primordial: a de comunicar. Assim, a narrativa se inicia já
deixando claro que “isso ocorre justamente quando ele passa a achar que sua própria
língua não dá conta do que tem a dizer (CARVALHO, 2013, p.9), ou seja, parte da ideia
de que o estudante por si só já se percebe como incapaz de comunicação em sua
própria língua. No entanto, mesmo em chinês, ao final da narrativa, a personagem
ainda se questiona sobre a necessidade de aprender chinês “E pra quê? Pra falar com
quem? Veja isso aqui. Posso repetir tudo que decorei, mas pra falar com quem?”
(idem, 159).

Gay? Eu? Gay é a puta que pariu! Quem disse que perguntar não ofende?

A rede não apenas representa um local de busca de informações, mas também


um espaço em que, como aponta Resende (2008)2, todos têm o direito à voz. Assim, se
outrora para divulgar determinado conhecimento era necessário, de certa forma, um
comprometimento com um método, hoje o cenário é outro, evidencia-se a retirada de
um filtro que antes existia entre o conhecimento produzido e o divulgado (o que se
tem acesso). Sendo assim, para o bem ou para o mal, agora fica a critério do leitor
imerso em um mar de informações definir o que faz sentido para ele e o que não faz.
Dessa forma, contemporaneamente, sabe-se que, graças ao fato de a internet
acolher todas as individualidades, a pluralidade se instaura e com ela a marcação da
diferença, ou seja, “o outro”.
Convém, contudo, questionar, visto que a diferença sempre existiu, o porquê
de ser esse o exato momento em que o conflito de ideias, especialmente, na rede,
acaba se intensificando tanto. Nesse sentido, ao discutir o fenômeno da pós-
modernidade e sua descentralização Linda Hutcheon afirmará que

Quando o centro começa a dar lugar às margens, quando a


universalização totalizante começa a descontruir a si mesma, a
complexidade das contradições que existem dentro das convenções
[...] começam a ficar visíveis (HUTCHEON, 1991, p.86).

2
Resende (2008) reflete sobre as possibilidades de escrita e circulação de textos literários na rede por
escritores contemporaneos. Nesse artigo, ampliamos essa ideia para a sociedade como um todo vendo
na internet uma ferramenta para propagação de suas vozes.

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Dessa forma, os sujeitos que historicamente foram silenciados e que, por meio
das redes sociais adquiriram esse espaço, hoje buscam representação real, tanto ainda
na própria rede social, como nas outras mídias em geral e, principalmente, na política,
para que tenham seus direitos também assegurados. Assim, a partir das mobilizações,
principalmente a partir dos anos 70, sujeitos que antes tinham seus direitos negados
começam a perceber as contradições do discurso universalizante, fazendo com que os
movimentos sociais (movimento negro, feminista, LGBTTQ...) somem cada vez mais
indivíduos. Dessa forma, com a tomada de consciência das minorias e da efetiva luta
por direitos, o centro passa a ser enfrentado em uma disputa de poderes, o qual, por
sua vez, se atrelará a tradição e, mais do que isso, a um discurso da religião e da moral.
Sendo assim, a grande novidade do pós-moderno se dá por meio da constante
e repetida ironia das contradições auto-reflexivas e históricas, problematizando o
senso comum e o natural, mas nunca oferecendo respostas que ultrapassem o
provisório e o que é contextualmente determinado. Assim, o pós-modernismo é
entendido como “um fenômeno contraditório, que instala e depois subverte os
próprios conceitos que desafia” (idem, p.19).
Assim, a construção da personagem “estudante de chinês” como um mero
reprodutor de informações não refletidas poderia ser entendida como apenas mais um
espaço, agora o da própria literatura, em que poderia haver esse tipo de manifestação.
No entanto, Carvalho ironiza-o, apresenta repetidamente as lacunas que tem no
próprio discurso, como quando insiste que não é preconceituoso, pois é brasileiro,
como se isso garantisse a ele o direito de proferir qualquer discurso, uma vez que faria
parte do país da miscigenação.
Contudo, Hutcheon continua sua reflexão tomando como ponto de partida
“uma atividade cultural que pode ser detectada na maioria das formas de arte e em
muitas correntes de pensamento atuais, aquilo que quero chamar de pós-modernismo
é fundamentalmente contraditório, deliberadamente histórico e inevitavelmente
político” (HUTCHEON, 1991, p. 20), discurso que entra em acordo com a reflexão,
acerca do próprio livro, feita por Carvalho

Há uma coisa engraçada sobre o discurso de ódio. Não tenho bem


certeza do que o livro representa, mas é algo político como nunca fiz,
tem um humor que nunca tive. Sempre fui contra a literatura política,
atrelada, mas dessa vez tinha urgência. O livro não busca uma
solução. É uma visão trágica das camadas de possibilidades
(CARVALHO, entrevista 21/09/2013, Folha de São Paulo).

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Conclusão

Por fim, a partir de uma revisão bibliográfica e dos apontamentos que se fez no
desenvolvimento deste artigo, pode-se dizer que Reprodução não é apenas uma
narrativa que tem como objetivo a crítica da pós-modernidade por si só ou do uso da
internet como ferramenta de propagação dos discursos de ódio, mas sim o de refletir
as suas possibilidades de manifestação na cultura, em especial, na literatura. No
mesmo sentido, essa necessidade é alertada por Jameson:

Em vez de cair na tentação de denunciar a complacência do pós-


modernismo como uma espécie de sintoma final da decadência, ou
de saudar as novas formas como precursoras de uma nova utopia
tecnológica e tecnocrática, parece mais apropriado avaliar a nova
produção cultural a partir da hipótese de uma modificação geral da
própria cultura, no bojo de uma reestruturação do capitalismo tardio
como sistema (JAMESON, 2007, p.87).

Dessa forma, Carvalho elege uma personagem tão comum da pós-


modernidade para que conte sua história: o comentarista de blog, o qual está sempre
conectado e tem uma opinião sobre tudo, mas que não busca refletir sobre o que
consome, uma vez que está situado dentro da própria pós-modernidade, ou seja,
preso a ideias cada vez mais individualizantes e consumistas, o que se reflete em seu
discurso de preconceito em relação às mais variadas minorias.
O autor buscou, contudo, relacionar o tema com a forma, nessa narrativa,
assim construiu monólogos disfarçados de diálogos, que refletem os diálogos na pós-
modernidade, principalmente nas redes sociais, em que duas ou mais pessoas falam
sem levar em consideração o que o outro diz, apenas lançando uma pirâmide de
informação não refletida sobre determinado assunto.
Portanto, uma personagem que não poderia contar sua própria história, uma
vez que não considera que “a própria língua não dá conta do que tem a dizer”
(CARVALHO, 2013, p.9), mas que, ao mesmo tempo, após estudar seis anos de chinês
também não é capaz de se comunicar na língua estrangeira, mesmo que a tenha
adotado como sua – “mas eu sou chinês” (idem, p.42) –, chega ao final da narrativa
cansado de falar sem ser ouvido, depois de passar por esse “diálogo de surdos”, ele
comenta “Mas estou exausto, como nunca estive. Não tenho vontade de fazer mais
nada. Não tenho vontade de dizer mais nada”.(idem, p.152).

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Referências

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Editora, 2001.
CARVALHO, Bernardo. Reprodução. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
COZER, Raquel. 'Você acha que usa a internet, mas está sendo usado por ela', diz
Bernardo Carvalho. Jornal Folha de São Paulo: São Paulo. 21/03/2013. Disponível
em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/09/1344976-voce-acha-que-
usa-a-internet-mas-esta-sendo-usado-por-ela-diz-bernardo-de-carvalho.shtml.
Acesso em: 20 jun. 2015.
DALCASTAGNE, Regina. Personagens e narradores do romance contemporâneo no
Brasil: incertezas e ambiguidades do discurso. Diálogos Latinoamericanos,
Dinamarca, n. 3, p. 114-130, 2001.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro:
Imago, 1999.
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. 2. ed. São
Paulo: Ática, 2007.
LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Trad. de Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1986.
CARVALHO, Bernardo. Reprodução. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
RESENDE, B. Contemporâneos: Expressões da literatura brasileira do século XXI. Rio de
Janeiro: Casa da Palavra: Biblioteca Nacional, 2008.

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A VIDA COMO ELA É, SEGUNDO O OLHAR DE SILVIANO SANTIAGO

Wilson Ferreira Barbosa1

Introdução

Narrado em terceira pessoa, com um narrador que é apenas um observador


dos fatos, o romance publicado em 1974, O olhar, de Silviano Santiago, apresenta ao
leitor uma família que pertence à classe social abastada, tipicamente do início do
século XX, ou seja, é o quadro de uma família com característica patriarcal, composto
pelo pai, a mãe e o filho. A tríade perfeita do exemplo familiar católico-burguês.
As personagens não apresentam nomes: um casal em crise conjugal e um filho
que está com idade entre oito e dez anos, que se vê em meio às discussões dos pais, o
que para ele não era nenhuma novidade:

Era difícil para êle perceber – as brigas entre o pai e a mãe não eram
de hoje nem de ontem mas não eram tão frequentes achava até
calados demais como se trocassem as palavras necessárias exatas
medidas encontrando no exagero um pecado a ser punido
(SANTIAGO, 1974, p. 14).

Ele também apresenta problemas relacionados ao “Complexo de Édipo2”.


O romance apresenta uma particularidade que é de ser escrito sem os sinais
gráficos de pontuação (de acordo com a norma padrão da língua culta), causando, por
isso, estranhamento no leitor, o que faz com que crie certa dificuldade para se
compreender a narrativa, se não for feita uma leitura com bastante atenção. Também
há parágrafos ou início de períodos que são grafados com palavras inicias em
minúsculas:

1
Mestrando em Letras (Teoria da Literatura) – PUCRS/CAPES – E-mail: tetei42@hotmail.com
2
Vejamos o que é o “Complexo de Édipo” à luz da psicologia: “o menino se identifica com o pai, logo
passa a desejar o amor da mãe; esta [a mãe] lhe é “proibida” não tanto como objeto sexual [...] mas
como figura de amor incondicional, ou seja, aquela cuja posse afetiva daria ao menino todos os poderes
– tornando-o privilegiado, isento de quaisquer limites, uma espécie de tirano que não só escapará à
jurisdição das leis como cria a seu bel-prazer um código que obriga a todos, com sua exceção. [...] A
criança procura tornar-se sujeito absoluto, expulsando o pai de seu lugar junto à figura materna...”
(GOLDGRUB, Franklin. O complexo de Édipo. Série Princípios. São Paulo: Editora Ática, 1989).

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Escondido colado à porta trancada que liga os dois quartos dos pais e
o dele escondido apenas nos gestos encolhidos tremendo apreensivo
temendo empolgado disposto a modificar posição vestir disfarce
aparentar bem-estar e espontaneidade sono até num estalar de
dedos ao som do comum girar da maçaneta ou ao escutar mesmo
vagamente seu nome vindo soprado da boca do pai ou da mãe
escondido apenas nos gestos porque é só curiosidade lobo na pele de
ovelha (SANTIAGO, 1974, p. 13).

A tessitura do texto se dá como um emaranhado, em que um capítulo se


completa em vários outros antes ou depois, num entrelaçamento como na vida, um
eterno devir. Pois é assim que acontece com as vidas das personagens de Silviano
Santiago, através do recurso dos fluxos de consciência. Uma movimentação de idas e
vindas, felicidades e tristezas, liberdade e escravidão, amor e ódio numa situação
paradoxal e constante luta pela felicidade. Para exemplificar: o início da trama é
relatado na página 21, portanto o segundo capítulo, e a continuação deste se dá no
capítulo 1, página 11. Em seguida o leitor deverá ir para o capítulo 3, na página 29.
Assim é o fluxo normal da vida (idas e voltas). O capítulo 19, página 147, relata a morte
do pai da protagonista, essa parte do livro pode ser lida antes ou depois de qualquer
outra do livro, sua posição na história não é fixa.
Este trabalho tem como subsídios teóricos principais Mikhail Bakhtin, com seus
estudos sobre a polifonia, justificados nos romances que ele classificou como
“romance de aventura” em Problemas da poética de Dostoiévski (1981). Veremos que
o narrador em suas diversas falas dá oportunidade para que cada personagem se
manifeste, dando espaço aos sentimentos com o propósito de que cada uma perceba a
sua própria existência e se realize enquanto ser humano. Também nos embasaremos
nos estudos sobre o “discurso no romance”, da obra Questões de literatura e de
estética: a teoria do romance (2010), de autoria também do teórico russo. Posto que é
muito importante entendermos que “O romance é uma diversidade social de
linguagens organizadas artisticamente, às vezes de línguas e de vozes individuais”
(BAKHTIN, 2010, p. 74).

1 O olhar de Silviano Santiago

O enredo se passa numa época em que o negro não é mais escravo no Brasil,
mas o preconceito e o racismo ainda permanecem de forma intensa. A mulher negra é
tratada como objeto, algo para ser usado e descartado a qualquer momento como
qualquer outro utensílio do lar: “A empregada [em O olhar é sempre negra] estava na

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sua frente na cozinha outro utensílio móvel a mais entre outros utensílios fogão pia
mesinha prateleiras todo o vasilhame.” (SANTIAGO, 1974, p. 61).
Por ser considerada assim, como um objeto qualquer, servia também como
objeto sexual, pois a família, numa atitude irônica e hipócrita, demite a empregada (na
verdade expulsam-na) após ter sido flagrada com o filho mais velho, mesmo que este
seja chamado pelo próprio pai de “sem-vergonha descarado” (SANTIAGO, 1974, p. 79),
mas a culpa sempre recai na empregada negra:

Não sei bem como é que foi não titubeava no início com receio na
certa de mostrar intimidades de casa. Era o filho mais velho que
mantinha relações com a empregada (uma preta já passando dos
trinta de vestido largo e decotado sem manga mostrando braços
roliços). E ontem a mãe começou a dar uma esculhambação nele
porque tinha surpreendido os dois em flagrante. Não sabia bem
como tinha sido mas ia contando só viu que a cozinheira tido sido
despedida sem grandes considerações (SANTIAGO, 1974, p. 78).

O romance faz uma denúncia a respeito do preconceito racial e relega aos


negros um papel socialmente inferior assim como a mulher, seja ela negra ou branca.
A mulher é relegada a um segundo plano, sua tarefa é cuidar da família e sentir-se feliz
com essa situação.
O casamento é mais uma conveniência familiar, ao invés de ser uma atitude
humana, de escolha, de sentimento, a mulher tem de casar para que tenha seu futuro
assegurado financeiramente, pois “o ideal do seu pai [era garantir] a comodidade no
futuro” (SANTIAGO, 1974, p.101), há, então, uma relação de subserviência. A mulher é
posta como aquela que deve satisfazer as exigências do marido; e ela se vê, assim,
obrigada a cumprir o papel de esposa para o qual foi criada, ela é “como uma vítima
estóica dos matrimônios de conveniência.”3

Quando o marido aparecia adquiria vida subitamente e fazia um


esforço sobrehumano ganhava forças e displicência e surgia
aparentando naturalidade. Era difícil interpretar duplo papel. Ou se
entregava demais ao que fazia ou as coisas a exigiam demais mas se
habituando a fingir notou que se sentia mais ela fingindo do que
confessando aparência passando a dirigir com segurança seus passos
(SANTIAGO, 1974, p. 97-98).

3
SOUZA, Márcio. Galvez, imperador do Acre. 5. ed. Rio de Janeiro: Brasília/Rio, 1977. p. 24.

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A condição da mulher em submeter-se ao homem é sempre reafirmada em


praticamente todos os capítulos do romance. É uma mulher que se sente solitária,
abandonada pelo marido que a procura somente quando quer satisfazer-se
sexualmente, razão pela qual ela vive a sonhar com outros homens (primeiro um
bombeiro e depois um pintor, ambos trabalharam em sua casa), na intenção de
realizar também os seus desejos: o “bombeiro parado na soleira da porta [...]
aproximando-se da porta abaixando-se procurando enxergá-lo pelo buraco um só
momento em toda sua nudez / o pintor / camisa sendo tirada pele bronzeada...”
(SANTIAGO, 1974, p. 48). Mas tudo não passa apenas de um desejo retraído, que
procurará realizá-los assim que houver uma oportunidade.
A “via crucis” dessa mulher é iniciada realmente na lua-de-mel (capítulo 8,
página 67), o narrador declara que “já então casada mesmo assim se assustou com a
violência do corpo pesado balançando sobre ela sem que ao menos sentisse prazer só
dor...” (SANTIAGO, 1974, p.71-72). A mulher se sente violentada sexualmente pelo
próprio marido.
“Só um negro é capaz de te satisfazer” (SANTIAGO, 1974, p.13). Essa é a frase
proferida pelo marido quando percebe que não consegue dar prazer a sua mulher,
consequência do seu comportamento enquanto pertencente a uma sociedade
patriarcal que menospreza a necessidade sexual das mulheres:

A grosseria mesmo. Talvez sobretudo a superioridade do homem do


macho sôbre a fêmea condição animal como se ele não fosse capaz
de se abaixar por um momento mesmo que fosse só para satisfazer a
mulher. [...] Escuta só a voz do pai não chega a apanhar as palavras
apenas a diferença de tons grossa áspera autoritária viril que se
impõe pela força. (SANTIAGO, 1974, p.14 e 16).

E o motivo daquela frase do marido nos remete à condição do negro nos


séculos passados: a de ser considerado aquele que nasceu para os serviços braçais,
como se fosse um animal irracional. Considerando esse pensamento, o marido ao dizer
“Só um negro é capaz de te satisfazer”, sua intenção é pôr os dois (a esposa e o negro)
em condições inferiores à sua, pois, sua posição de homem austero e conservador, não
permite que ultrapasse os seus limites, a sua vontade, o seu desejo, em favor de
satisfazer a esposa. Logo, só um “animal” como um negro poderia realizar os desejos
“animalescos” da mulher (que na voz do marido a compara com uma prostituta).
O narrador muito nos revela sobre essa necessidade da mulher, ela confessa
para si mesma o que está acontecendo: “O marido tem razão. Mas como foi ele
descobrir que só um negro mesmo sem requintes sem falso pudor simplesmente

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agindo por instinto e por necessidade...” (SANTIAGO, 1974, p. 25). E logo mais à frente,
o desejo dela em que esse pensamento se realize, a busca pela sua satisfação:

Caminha devagarzinho chegar por trás surpreendê-lo com abraço e


braços e amá-lo no susto. Percorrer com a boca o ombro tatear cega
olhada na rua como depravada sem-vergonha que atraiçoa o marido
com um crioulo. Ririam dela alguns até cuspiriam no rosto dizer que
nada daquilo a atingia era impossível! pois vivia apesar de tudo deles
do pouco que a cerceava (SANTIAGO, 1974, p. 27).

Ela é aquela que durante todo o tempo é restrita aos espaços da casa, não pode
sair para outros ambientes fora de casa. Esse enclausuramento, não voluntário, nos
leva a pensar, enquanto se lê o texto, que ao final da trama, a mulher, de alguma
forma, há de se libertar desse subjugo:

não era como as outras que casam porque não precisam tinha casado
porque tinha precisava de se casar caso contrário teria ficado virgem
na casa do pai.[...] Não se saber magoada não subjugá-lo isso nunca!
pois no fundo lhe agradava a condição de fêmea martirizava-se
quando tinha de chamá-lo (SANTIAGO, 1974, p. 23 e 46).

O narrador dá voz a todas as personagens, clarificando a todo o momento a


visão do casamento pelo olhar da mulher. Pelo olhar dela é revelado que esta
instituição (o casamento) não é assim tão perfeita como as pessoas imaginavam:
existia a falta de compreensão e conversa, e principalmente, falta de sensibilidade do
marido. O menino também tem voz retratando seu mundo conturbado diante das
brigas constantes na família e suas descobertas enquanto adolescente.
Silviano Santiago também desnuda para o leitor a significação da morte do
marido no final do romance, é o início de uma nova vida para a mulher e seu filho, é a
libertação daqueles que estavam aprisionados durante os doze anos de casamento. É
como se a voz da mulher se alastrasse dando grito de liberdade. Embora o leitor não
faça ideia de quem vai morrer, mas o final da história já é anunciado no capítulo 8,
“Lua-de-mel”: “sentiu-se aliviada como se aquela morte aquele ato de covardia a
redimisse do que tinha sofrido mais cedo” (SANTIAGO, 1974, p. 73).
O herói de aventura é aquele que a qualquer momento pode mudar sua
personalidade. A mulher que era aquela submissa ao marido, conformada com a sua
situação de esposa e mãe, que vivia unicamente para a família, toma nova consistência
no decorrer da trama. A mulher fora rebaixada pelo marido à condição de prostituta,

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posto que ele não conseguia realizar os desejos sexuais dela, comparava-a com as
prostitutas com quem se divertia no passado, demonstrada numa fala dele:

(satisfazê-la satisfazê-la satisfazê-la como? se exigia como um


cobrador impertinente. As prostitutas da juventude indiferentes
longínquas quase sempre porém vez ou outra exigentes reclamando
todos os esforços desde os mais imperceptíveis até o entrecerrar dos
lábios.[...] Mulher inatingível para ele alta montanha destinada a
privilegiados. Revoltou-se (SANTIAGO, 1974, p. 24).

Então, após doze anos de humilhação e sofrimento, resolve finalmente dar um


basta nessa situação: “Pelas circunstâncias no entanto ela se viu agora amando mais a
si mesma do que ao próprio homem com quem vivia.” (SANTIAGO, 1974, p. 193). A
cena final mostra a sua libertação, ela sentada indiferente, enquanto o marido agoniza,
num derradeiro ato de sobrevivência.
Agora, finalmente ela está livre. É uma metáfora da libertação feminina.
Somente “matando”, calando, a voz do machismo é que ela poderá se realizar
enquanto mulher, ser provido de sentimentos e desejos. O medo que a cercava, o
tradicionalismo e o pudor que revestia o marido já não mais existem. Ela tem a chave
para ser feliz juntamente com seu único filho e com o (provável e sonhado) homem
que a fará feliz.

2 O olhar de Mikhail Bakhtin

Em Problemas da poética de Dostoiévski (1981), o crítico literário Mikhail


Mikhailovich Bakhtin (1875-1975), analisando as obras daquele escritor russo, afirma
que o herói presente em seus romances é aquele que ainda está em processo de
construção, ou seja, esse herói não possui características que possam determinar sua
personalidade, seu caráter.

Tudo pode acontecer com o herói aventuresco, e este pode ser tudo.
Ele também não é substância, mas mera função da aventura. O herói
aventuresco, como o herói de Dostoiévski, é igualmente inacabado e
não é predeterminado pela sua imagem (BAKHTIN, 2013, p. 116).

Transpomos as ideias de Bakhtin para a obra de Silviano Santiago (1974), seu


herói, ou heróis, apresenta(m) características frágeis e débeis fruto de uma sociedade
irônica e hipócrita, personagens que absorvem os comportamentos e pensamentos
que a sociedade impõe como únicos, como se fossem verdades absolutas. É o que

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ocorre com a mulher que tem de casar por obrigação, por uma imposição e se sujeitar
às vontades do marido sem nenhum questionamento. O marido é aquele indivíduo
que comanda as situações do lar e tudo deve convergir para unicamente o seu bem
estar. Um menino que se encontra em situações em que tem que aprender as coisas
com os colegas porque não tem as devidas orientações na família. Entretanto, todos
apresentam características inacabadas, incompletas.
Assim, de acordo com Mikhail Bakhtin (2013), esses tipos de heróis (os heróis
de aventura) reúnem características que vão desde as ações mais nobres até as mais
vulgares. Reúnem em si todas as atitudes que “nem pelo caráter social dos heróis nem
pelo universo social em que eles poderiam ser realmente personificados” (BAKHTIN,
2013, p. 116) não lhes podem ser predeterminadas. Tudo lhes é permitido,
excetuando-se apenas o procedimento que faz parte dos romances biográficos e
familiares, que é “o comportamento socialmente bem educado”.
Um dos temas que é abordado no romance de Silviano Santiago, que corrobora
com os preceitos defendidos por Bakhtin, conforme acima descrito, é a presença do
“Complexo de Édipo”, relatado em vários momentos da narrativa. Através do olhar do
menino para sua mãe, pois ele sente ciúme da relação dos pais:

A mãe estava na cozinha dando uma mãozinha preparando um ou


outro prato especial pra na certa dizer quando o pai chegasse feito
pra você só pra você porque conhecia o gosto dele enquanto ele o
terceiro ficava relegado ao esquecimento. Odiava os dois na
incapacidade que tinham de viver a três. Quando brigavam porém
ficava contrariado e satisfeito pois sabia que após a discussão a mãe
procuraria oferecendo a êle maneira de fazer ciúme o que seria pro
pai. Via-os discutindo e antegozava sofria os momentos futuros
quando sentiria sobre seu corpo toda sensibilidade nervosa e então
aguçada da mãe (SANTIAGO, 1974, p. 38).

Ainda na linha das características das personagens que possuem uma


personalidade não nobre, está no comportamento do menino que fica atrás da porta,
num momento de intimidade dos pais, tentando entender o que os pais fazem no
quarto: capítulo 1, intitulado “Noite – 7”, p.11. Assim como aprende coisas na escola
por meio de seus colegas:

E fica triste triste por saber tantas coisas novas e sabia e deixava de
saber não pela boca dos pais mas daquela forma sórdida enojado
diante de fatos que se iam degradando apodrecendo à medida que
iam sendo revelados às escondidas. Tinha ódio dos pais por

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momentos não sabia bem porque e tentava descobrir a razão ódio


simples (SANTIAGO, 1974, p. 56).

Em outra passagem, no capítulo 7, com o título “Almoço”, p. 59, novamente


uma atitude também vulgar do menino, ele deseja sexualmente a empregada negra.
Para mostrar que a personagem do romance de aventura não é nem um pouco
parecida com os romances familiares, a cena em que o menino está entrando na
puberdade, capítulo 21, “Prazer”: “acordou à noite aflito com o travesseiro preso entre
as pernas a fronha úmida aparentando sujeira assim também estavam a calça do
pijama e o lençol. As mãos crispadas seguravam o travesseiro e mesmo elas pareciam
sujas.” (SANTIAGO, 1974, p. 167-168).
Bakhtin ao analisar as obras de Dostoiévski enquadra-o como um romancista da
polifonia, uma vez que há em seus textos a voz do narrador que se realiza
simultaneamente com as vozes das diversas personagens; no entanto nenhuma é
superior às demais. Podemos notar essa característica também em Silviano Santiago,
pois as vozes do narrador e das personagens cruzam-se de maneira recíproca. Assim, a
consciência de cada personagem do romance vai se constituindo ao longo da narrativa.

Por isso, o autor do romance polifônico não define as personagens e


suas consciências à revelia das próprias personagens, mas deixa que
elas mesmas se definam no diálogo com outros sujeitos-consciências,
pois as sente a seu lado e à sua frente como “consciências
equipolentes dos outros, tão infinitas e inconclusíveis” como a dele,
autor (BEZERRA, 2012, p. 195).

Nota-se, por exemplo, que no excerto abaixo, na voz da personagem há uma


decisão que será tomada; entretanto, o leitor não é capaz de saber o que acontecerá, a
consciência da personagem veio se formando no decorrer da trama sem que o leitor
soubesse disso, tendo sempre em vista que a personalidade é algo ainda em
construção:

A decisão veio mais tarde mas a idéia lhe veio na cama quando já
altas horas da madrugada acordou sofrendo o calor que castigava a
cidade e os habitantes desde o início do mês.
[...]
Lembrou-se do aniversário do filho no dia seguinte e pensou que
poderia fazer um jantar especial. Foi quando finalmente tomou a
decisão que executaria mais tarde.
[...]

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Entrou mercado indo direto à farmácia (SANTIAGO, 1974, p. 183 e


187).

Em Dostoiévski, há o “herói da família casual” e se relaciona com outros


gêneros e outra base temática e composição na evolução do romance. A voz desse
herói parte de um discurso polêmico, que é sua característica. Uma voz controversa,
autônoma e que possui conhecimento e posicionamento peculiar perante o mundo. A
heroína de O olhar é uma representante dessa voz polêmica e contraditória:

Não não poderia mais aguentar esta situação revoltar-se não mais de
uma maneira calada escondida trair o marido apenas em
pensamento revoltar-se través de um ato que a justificasse e a
libertasse dos sofrimentos da vida atual. [...] Por um instante se
deixou intimidar...” (SANTIAGO, 1974, p.186 e 187).

No capítulo 24, página 189, cujo título “Olhar – 2”, o narrador coloca a
personagem-protagonista num cenário em que todos os temas do romance de
aventura, acima citado, estão presentes. É uma cena em que a mulher se vê diante do
pintor, contratado pelo marido dela para pintar toda a casa deles. Ela o deseja, e se
culpa ao mesmo tempo:

Agora estava disposta a ousar ir até o final do caminho que tinha


começado a trilhar como pássaro atraído pela arapuca sente desde o
primeiro grão de alpiste bicado se pressente já preso. Reconhecia
que a felicidade deveria vir de uma forma baixa de viver de gozar de
uma transgressão às ordens estabelecidas. [...] Quando chegou
porém em frente da porta ficou indecisa. [...] Tentou
desesperadamente enxergar o pintor na sua esplêndida cor negra nu
ali na sua frente trocando de roupa. Nada conseguiu somente os
mesmos objetos perseguiam sua vista (SANTIAGO, 1974, p. 194-195).

Assim, de acordo com Bakhtin (2013, p. 119), o romance de aventura trata de


um herói que pode mudar a qualquer momento e para a maneira que preferir. Suas
ações não nos são antecipadas, mas também não são totalmente imprevisíveis. Os
temas de aventura são totalmente reflexos das ações do ser humano, pois o homem
pode ter atitudes que requeiram “sede de vitória e criação”, “sede de posse e pelo
amor sensual”. Em outras palavras, os romances de aventura refletem o homem que é
portador de virtudes e defeitos ao mesmo tempo, é o homem em seu estado de

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espírito natural. É a personagem que representa “um homem carnal e carnal-


espiritual”. Silviano Santiago realiza todas essas características em O olhar.

Considerações finais

Silviano Santiago compôs uma narrativa como se montasse um mosaico, os


capítulos são dispostos de maneira que o leitor penetra no mundo de O olhar, através
do fluxo de consciência das personagens, num vai e vem constante que aos poucos vai
descortinando a personalidade de cada personagem. São as diversas vozes que
retratam suas angústias, seus sofrimentos, seus sonhos.
É a voz de uma mulher que se vê aprisionada primeiro pelo pai que a obriga a
se casar, como no excerto a seguir, e depois pelo marido: “[...] o pai concedeu
depressa o casamento porque se via livre de uma das filhas e ao mesmo tempo porque
sabia [que estava] em boas mãos abastadas [...]” (SANTIAGO, 1974, p. 101). Sua prisão
enquanto esposa é devido ao ato de que não realiza seus desejos sexuais, o marido
não se importa com o que ela pensa e sente. Ela sofre assim, um tipo de repressão.
Busca libertar-se por meio de sonhos e pensamentos com um pintor e um bombeiro,
ambos negros.
“Lembrou-se do aniversário do filho no dia seguinte e pensou que poderia fazer
um jantar especial. Foi quando finalmente tomou a decisão que executaria mais tarde”
(SANTIAGO, 1974, p. 187). É no jantar de comemoração do aniversário do filho que a
mulher adquire sua “liberdade”, quando o marido morre, provavelmente por meio de
envenenamento que ela mesma provocou.
A voz do menino é o pedido pela atenção que os pais não dão a ele, é a voz
daquele que se vê envolto em tantos problemas e que não consegue ajuda. A única
solução é depender dos amigos da escola que o ensinam, mas “não chegava a
compreender tudo de resto tinha muitas mentiras exageros...” (SANTIAGO, 1974, p.
55).
E por fim, o escritor utiliza sua voz para retratar uma época em que o negro era
considerado um ser inferior, assim como a mulher. Ambos, “traduzindo” a fala do
marido, se mereciam, a mulher por querer sempre mais (e que ele como marido não
conseguia satisfazê-la) por isso a comparava a uma prostituta. Ambos (marido e
mulher) se “libertaram” e se viram livres de suas “algemas”.
Como podemos concluir, a polifonia, segundo Bakhtin, não é apenas parte da
enunciação, mas é essencial dentro de um texto, pois todas as vozes que aparecem na
obra são importantes e nenhuma delas é superior às demais. Cada voz representa um
determinado grupo social e que se vê representado no romance.

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O olhar é um romance de aventura, em formato de uma exposição de quadro


que são contemplados por uma plateia apática (a sociedade), que acredita que tudo
que acontece ao redor é plenamente normal e aceitável. Observemos o que é sugerido
por alguns “nomes dos quadros”, ou os capítulos, para exemplificar:

Quadro 1 – Sugestão dos nomes para os quadros


Título do capítulo Sugestão de “legenda”
“Lua-de-mel” a mulher deve fazer as vontades do marido
“Noite – 6” mulher não pode ter desejos sexuais
“Aniversário” a morte também pode trazer alegrias

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense-


Universitária, 2013.
_____. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 6. ed. São Paulo:
Hucitec Editora, 2010.
BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo:
Contexto, 2012.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa.
4. ed. Curitiba: Positivo, 2009.
SANTIAGO, Silviano. O olhar. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1974.

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