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28 a 30 de outubro de 2015
Auditório do Prédio 32 – PUCRS
28 a 30 de outubro de 2015
PUCRS, Porto Alegre/RS – Brasil
Organizadores:
Maria da Glória Corrêa di Fanti
Pedro Theobald
Bernardo Kolling Limberger
Tamiris Machado Gonçalves
Vanessa Fonseca Barbosa
EDIPUCRS
Porto Alegre/RS
2016
Anais dos textos completos do DUO VII – Dialogue Under Occupation
CDD 418.2
Faculdade de Letras
Diretora da Faculdade de Letras
Profª. Drª. Regina Kohlrausch
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras
Profª. Drª. Maria da Glória Corrêa di Fanti
Coordenadora do Departamento de Estudos Linguísticos
Profª. Drª. Lilian Cristine Hübner
Coordenador do Departamento de Estudos Literários
Prof. Dr. Paulo Ricardo Kralik Angelini
Coordenadora do Departamento de Letras Estrangeiras
Profª. Drª. Heloísa Orsi Koch Delgado
Comitê executivo
Bernardo Kolling Limberger (Doutorando/CNPq)
Cécile Sidery (Doutoranda/Université Bordeaux 3)
Kelli da Rosa Ribeiro (Doutoranda/CNPq)
Milena Hoffmann Kunrath (Doutoranda/CAPES)
Patrick Holloway (Doutorando/CAPES)
Stéphane Rodrigues Dias (Doutoranda/CNPq)
Tamiris Machado Gonçalves (Doutoranda/CNPq)
Vanessa Fonseca Barbosa (Doutoranda/CNPq)
Apoio e realização
COMITÊ CIENTÍFICO
Adail Sobral (UCPEL)
Biagio D’Angelo (UnB)
Bruno Deusdará (UERJ)
Del Carmen Daher (UFF)
Diógenes Buenos Aires de Carvalho (UESPI)
Elise Seip Tønnesen (Universitetet i Agder, Noruega)
Fabiane Verardi Burlamaque (UPF)
Fátima Pessoa (UFPA)
Grenissa Stafuzza (UFG-CAC)
Jacqueline Penjon (Université de la Sorbonne Nouvelle, Paris 3)
Lawrence N. Berlin (Northeastern Illinois University, EUA)
Luciane de Paula (UNESP-Assis)
Maria Cleci Venturini (Unicentro)
Maria da Graça Lisboa Castro Pinto (Universidade do Porto)
Maria José Finatto (UFRGS)
Marilene Weinhardt (UFPR)
Marília Ferreira (UFPA)
Marília Rodrigues (Unifran)
Mauro Nicola Póvoas (FURG)
Rejane Pivetta de Oliveira (UniRitter)
Rosângela Hammes Rodrigues (UFSC)
Vania Pinheiro Chaves (Universidade de Lisboa)
Vera Lúcia de Albuquerque Sant’Anna (UERJ)
Zilá Bernd (Unilasalle/UFRGS)
PROGRAMAÇÃO GERAL
28 de outubro (quarta-feira)
Manhã:
8h30min-9h30min – Credenciamento
Auditório Térreo do Prédio 32
9h30min-10h – Abertura Oficial
10h-12h - Conferência Inaugural:
“Discurso político antirracista no Brasil”
Teun A. van Dijk (Universitat Pompeu Fabra, Espanha)
Debatedora: Diana Luz Pessoa de Barros (UPM/USP)
Tarde:
13h30min-15h30min
MESA DE EGRESSOS: 45 ANOS DO PPGL
“A sociolinguística variacionista no Brasil: uma proposta que deu certo”
Dermeval da Hora (UFPB)
“A escrita criativa e a universidade”
Luiz Antonio de Assis Brasil (PUCRS)
“O homem nasce na cultura: de uma antropologia da enunciação”
Valdir do Nascimento Flores (UFRGS)
“Minha formação: 44 anos de PPGL”
Vera Teixeira de Aguiar
Moderadora: Rejane Pivetta de Oliveira (UniRitter)
15h30min-16h30min – Lançamento de Livros
16h30min-18h30min - Mesa-Redonda:
EXPRESSÃO DE CONFLITOS: ABORDAGEM DISCURSIVA, LITERÁRIA E FILOSÓFICA
"Positioning the voices of conflict: language manipulation in the Diálogos de Paz"
Lawrence N. Berlin (Northeastern Illinois University, EUA)
"'Eu sofro', é melhor que: ‘Esta paisagem é feia'? A literatura diante do trauma"
Marcio Seligmann-Silva (Unicamp)
“Filosofia e violência”
Ricardo Timm de Souza (PUCRS)
Moderadora: Cristina Perna (PUCRS)
29 de outubro (quinta-feira)
Manhã:
8h-10h15min - Sessões de Comunicação
10h15min–10h30min - Intervalo
10h30min-12h30min – Painel:
DILEMAS INTERCULTURAIS: ALTERIDADE, MEMÓRIA E PRODUÇÃO DE SENTIDOS
“Le choc des cultures: la femme migrante dans le roman contemporain”
Janet Paterson (University of Toronto, Canadá)
“Compartilhar as Américas: ressignificando a Americanidade em uma perspectiva relacional”
Zilá Bernd (Unilasalle/UFRGS)
Debatedor: Patrick Imbert (Université d'Ottawa, Canadá)
Tarde:
14h-16h – Mesa-Redonda:
EXPRESSÃO DE CONFLITOS: IMPASSE, INTOLERÂNCIA E RESISTÊNCIA
“O olhar enviesado do outro: a falência da ajuda externa ao desenvolvimento”
Ricardo Seitenfus (UFSM)
“Estudos discursivos da intolerância na perspectiva semiótica: algumas reflexões sobre discursos políticos e
discursos na internet”
Diana Luz Pessoa de Barros (UPM/USP)
“Resistência ao Islã no poder: o (o)caso da Irmandade Muçulmana”
Silvia Ferabolli (UniRitter)
Moderador: Charles Monteiro (PUCRS)
16h-16h30min – Intervalo
16h30min-18h30min - Mesa-Redonda:
DIÁLOGO EM PERSPECTIVA: TRABALHO, LINGUAGEM E FORMAÇÃO
“Abordagem ergológica e necessidade de interfaces pluridisciplinares”
Yves Schwartz (Aix-Marseille Université, França)
“Práticas discursivas contemporâneas: o que se modifica no trabalho?”
Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva (PUC-SP)
“Educação e ergologia: diálogos pertinentes”
Maria Clara Bueno Fischer (UFRGS/Faced)
Moderadora: Maria da Glória Corrêa di Fanti (PUCRS)
20h – Jantar por adesão
30 de outubro (sexta-feira)
Manhã:
8h-9h45min - Sessões de Comunicação
9h45min–10h - Intervalo
10h-12h – Painel:
DILEMAS INTERCULTURAIS: REPRESENTAÇÃO SOCIAL, DIVERSIDADE E IDENTIDADE
“Las narrativas de resistencia”
Irene Vasilachis de Gialdino (CEIL-CONICET, Argentina)
“Reflexiones sobre los diálogos culturales en el contexto de las perspectivas culturales y a-culturales de la
modernidad”
Patrick Imbert (Université d'Ottawa, Canadá)
Debatedor: Antonio Hohlfeldt (PUCRS)
Tarde:
13h-16h - Sessões de Comunicação
16h10min-16h50min – Conferência: Memória e Linguagem
Jociane de Carvalho Myskiw (PUCRS/InsCer)
Debatedora: Lilian Cristine Hübner (PUCRS)
16h50min-17h30min – Deslocamento para a Feira do Livro
17h30min-19h30min
Painel de Encerramento na Feira do Livro de Porto Alegre
Local: Santander Cultural – Sala Leste
DIÁLOGO EM PERSPECTIVA: A LINGUAGEM NA ARTE E NA VIDA
“A linguagem é a vida da arte e a arte é linguagem da vida”
Adail Sobral (UCPEL)
“Experiência e linguagem”
Milton Hatoum (escritor, São Paulo)
Debatedor: Luiz Antonio de Assis Brasil (PUCRS)
SUMÁRIO
A prática do diálogo 11-18
Maria da Glória di Fanti, Pedro Theobald
Vestígios de cultura em testemunhos dos povos ameríndios 19-32
Adélia Maria Evangelista Azevedo
A ausência que seremos, de Héctor Abad: uma escrita para não esquecer 33-41
Amanda Oliveira
Caracterização acústica das fricativas sibilantes em português brasileiro: uma interface entre a Linguística e a Engenharia 42-48
Ana Paula Correa da Silva Biasibetti
Sentidos em conflito no discurso sobre o massacre de Curitiba 49-57
Antonia Zago, Gabriela da Silva Zago
Linguística e Neurociência em diálogo: o processamento de múltiplas línguas no cérebro 58-67
Bernardo Kolling Limberger
Interpretações do Supremo Tribunal Federal: a atividade responsiva e o ato responsável na decisão sobre o racismo 68-78
Bruna de Carvalho Chaves Peixoto
Relação entre produção discursiva, nível de escolaridade e declínio cognitivo 79-90
Bruna Tessaro, Ellen C. Gerner Siqueira, Fernanda Soares Loureiro, Lilian Cristine Hübner
Seres estranhos: personagens em desencontros em romances de Dulce Maria Cardoso 91-98
Bruno Mazolini de Barros
Literatura: uma performance inaugural 99-106
Camila Alexandrini
História, trauma e literatura: a posição do narrador em Os anéis de saturno, de W. G. Sebald 107-114
Carla Lavorati
Fenomenologia do imaginário e literatura: uma leitura de A desumanização, de Valter Hugo Mãe 115-124
Cássia Gianni de Lima, Regina Kohlrausch
O escopo da violência em Moçambique colonial retratado em Xefina, de Juvenal Bucuane 125-133
Chimica Francisco
Discursos de instituições financeiras: a cenografia e ethos nas manifestações da identidade e da cultura organizacional 134-147
Eliana Davila dos Santos
Benefícios de um inglês jurídico com mais clareza e simplicidade 148-162
Elisa Corrêa dos Santos Townsend, Christiane Heemann
A consciência metalinguística em crianças bilíngues 163-175
Ellen Cristina Gerner Siqueira, Talita dos Santos Gonçalves
Criativo ou padronizado: o fazer literário contemporâneo 176-188
Emir Rossoni
Espaços e formas de presença do outro na ficção de Dalton Trevisan 189-201
Eneida A. Mader
Maciste no inferno: o cinema na obra de Valêncio Xavier 202-208
Fernanda Borges
Produção discursiva na afasia bilíngue: enfoque nos padrões de recuperação das línguas 209-218
Fernanda Schneider
Maus – um roer pós-moderno do Holocausto 219-231
Gabriel Felipe Pautz Munsberg
O conflito e o trauma: memórias de uma realidade dolorosa em K. Relato de uma busca de Bernardo Kucinski 232-238
Gabriela de Oliveira Guedes
A consciência textual no processamento da compreensão leitora: fundamentos teóricos e instrumentos de aplicação 239-251
Gabriela Fontana Abs da Cruz, Gabrielle Perotto de Souza da Rosa, Leandro Lemes do Prado
Paul Auster, entre outros: interfaces interartísticas e convergências 252-262
Gabriela Semensato Ferreira
Bilinguismo na infância através do método Learning Fun 263-269
Gislaine Müller de Castro, Claus Dieter Stobäus
Gestão dos usos de si na atividade laboral: tensões evidenciadas nos discursos em editoriais de um jornal de empresa 270-280
Gislene Feiten Haubrich
Bóris e Dóris: algumas notas sobre o diálogo 281-287
Guilherme Azambuja Castro
Henry Lawson em português: dilemas interculturais em tradução de literatura 288-294
Gustavo Arthur Matte
Reflexões sobre modulação pedagógica no processo ensino/aprendizagem: um estudo de caso 295-308
Gustavo Giusti, Adail Sobral
Ausência da cultura: retratos da Linguística Aplicada brasileira 309-320
Hilário I. Bohn, Luiza Machado da Silva
Livros High Tech: reflexões sobre a nova experiência literária-tecnológica 321-331
Iuli Gerbase
Psique humana como expediente literário na primeira versão de Quincas Borba 332-340
Janaína Tatim
Um diálogo entre literatura e filosofia: a representação do Mal no romance O Morro dos Ventos Uivantes 341-354
João Pedro Rodrigues Santos
A metapragmática em foco: uma proposta de estruturação de protocolo para o estudo da consciência pragmática 355-369
Jonas Rodrigues Saraiva, Patrícia Martins Valente
Valoração do trabalho doméstico não-remunerado: diálogos filosóficos entre Hannah Arendt e Yves Schwartz 370-378
Joseane Laurentino de Brito Lira
Infância roubada nas vozes que se calam: uma leitura do conto de fadas Pele de Asno contrapondo ao miniconto Cicatriz 379-388
Juliane Della Méa, Luana Teixeira Porto
Reverberações épicas no contemporâneo: o diálogo entre Gonçalo Tavares e a epopeia camoniana 389-398
Kim Amaral Bueno
Cuidado! Não rotule! Siga adiante! Uma pedagogia cultural de autoajuda em fan pages do Facebook 399-408
Lauren Escoto Moreira, Angela Dillmann Nunes Bicca
The best of young Brazilian novelists: apoio à internacionalização da literatura brasileira 409-418
Lilia Baranski Feres, Valéria Silveira Brisolara
Efeitos colaterais do progresso: desenraizamento e exclusão social em O livro das impossibilidades, de Luiz Ruffato 419-430
Luciane Figueiredo Pokulat
Linguagem e cognição: a interface do processamento sintático através de um experimento de produção de sentenças do PB 431-445
Mariana Terra Teixeira
Contribuições da teoria dos blocos semânticos para o ensino da escrita acadêmica 446-454
Maristela Schleicher Silveira
Medianeras: Buenos Aires em tempos de globalização 455-459
Michele Neitzke
Alfred Andersch: reflexões sobre o conflito não resolvido entre biografia e obra à luz da estética da recepção 460-466
Milena Kunrath
Desafios na anotação automática morfossintática de corpus de língua falada 467-478
Mônica Rigo Ayres
A pulsão da escrita feminina: ensaio passos para a narrativa autoficcional 479-485
Olívia Scarpari Bressan
A consciência textual em diálogo com o ensino de uma compreensão leitora eficaz 486-494
Patricia de Andrade Neves, Danielle Baretta, Fernanda Schneider
Mães e filhos na Literatura Hispanoamericana: conflitos e (não) diálogos entre gerações 495-505
Pedro Afonso Barth, Rafaelly Andressa Schallemberger
Compreensão do sentido de discursos em tiras com base numa interface entre as concepções dialógica e argumentativa de 506-513
linguagem
Rafael S. Timmermann, Telisa Furlanetto Graeff
Projeto Balbúrdia: Escrita Criativa no espaço de fronteira 514-522
Renata Silveira da Silva, Sandro Martins Costa Mendes
A categoria de pessoa, o testemunho e a (im)possibilidade do diálogo entre culturas 523-536
Renata Trindade Severo
Sobre o que fazemos: diálogo de Bernardo Carvalho com Ramón Nieto sobre o processo de criação ficcional 537-550
Rodrigo Alfonso Figueira
A cultura e o comportamento linguageiro do líder como um discurso da identidade de marca 551-563
Rosana Vaz Silveira, Ernani Cesar de Freitas
A nostalgia do encontro: memória e fragmentação na obra Mamma, son tanto felice, de Luiz Ruffato 564-575
Roseli Bodnar
O estudo do humornonsense: das metarregras de coerência aos blocos semânticos 576-585
Roseméri Lorenz
Compreensão leitora e auditiva na afasia: uma revisão sistemática 586-599
Sabrine Amaral Martins
Diálogo literatura e cinema: o personagem Dorival, de Tabajara Ruas 600-609
Sandro Martins Costa Mendes
Insane Lucy: mental health in Charlotte Brontë’s Villette 610-620
Sophia Celina Diesel
Reasoning via dialogue: an illustrative analysis of deliberation 621-632
Stéphane Dias, Jane Rita Caetano da Silveira
Charges polêmicas: vozes sociais em tensão 633-642
Tamiris Machado Gonçalves
O papel da linguagem na fundação da singularidade do ser e da ação: diálogos filosóficos entre M. Bakhtin e H.Arendt 643-649
Thaís de Andrade Lima
Choque de culturas em Quarenta Dias 650-657
Tiago Dantas Germano, Laila Ribeiro Silva
A atividade de trabalho do revisor de textos: um fazer dialógico 658-673
Vanessa Fonseca Barbosa
História, Teoria e Ficção e a impossibilidade de narrar a história na obra Uma Viagem à Índia, de Gonçalo M. Tavares 674-683
Vanessa Hack Gatteli
Livro eletrônico em duplo formato: diálogo entre Psicolinguística, Pragmática, Educação e Computação 684-695
Vera Wannmacher Pereira, Thaís Vargas dos Santos
O sujeito pós-moderno e a impossibilidade da comunicação: uma análise de Reprodução, de Bernardo Carvalho 696-702
Virgínea Novack Santos da Rocha
A vida como ela é, segundo O olhar de Silviano Santiago 703-713
Wilson Ferreira Barbosa
Anais do DUO VII - 2016
Dialogue Under Occupation
Porto Alegre, RS, outubro de 2015
Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL)
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)
A PRÁTICA DO DIÁLOGO
1
Doutora pela PUC/SP, professora da PUCRS. E-mail: gloria.difanti@pucrs.br
2
Doutor pela UFRGS, professor da PUCRS. E-mail: perth@pucrs.br
3
Para maiores informações, consulte o site do Programa: http://www.pucrs.br/fale/ppgl/
apresentacao/. Acesso em 27 abr. 2016.
4
Sobre a avaliação trienal de 2013 (2010-2012) do PPGL/PUCRS, consultar o site:
http://conteudoweb.capes.gov.br/conteudoweb/ProjetoRelacaoCursosServlet?acao=detalham
entoIes&codigoPrograma=42005019009P1&descricaoGrandeArea=LING%DC%CDSTICA%2C+LE
TRAS+E+ARTES+++++++++++++++++++++++++++++++++&descricaoAreaConhecimento=LING%
DC%CDSTICA Acesso em: 10 out. 2015.
Referências
LETRÔNICA, Diálogos, Porto Alegre, EDIPUCRS, 2016 (no prelo). Disponível em:
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/letronica
[Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS]. Disponível em:
http://www.pucrs.br/fale/ppgl/apresentacao/ Acesso em 27 abr. 2016.
1
Doutora em Letras pelo PPGL – UFRGS. Docente efetiva da Universidade Estadual de Mato Grosso do
Sul. E-mail: adeliaevan@hotmail.com
2
O termo vestígio é utilizado por Benveniste, no estudo de 1956, por ocasião da reflexão do
procedimento metodológico do psicanalista quando da escuta do testemunho do paciente pelo analista.
Aqui, vestígio segue o direcionamento linguístico-enunciativo visto que interpreta o dado como
acontecimento empírico no e pelo discurso, sem o qual não há dimensão constitutiva nem para o
trabalho investigativo do analista, nem mesmo para a realidade do testemunho do sujeito.
3
O conceito de testemunho(s) é compreendido a partir do princípio enunciativo de Émile Benveniste,
mais propriamente, em parte do trabalho de 1970, O aparelho formal da Enunciação visto que primeiro
o termo é tomado pela realização individual de língua pelo sujeito. O segundo direcionamento para o
termo segue interpretações do filósofo italiano Giorgio Agamben (2008), com dois outros
desdobramentos: o primeiro no campo da subjetivação enquanto ato do acontecimento da palavra no
discurso. O segundo tem compreensão na dimensão filosófica de dessubjetivação enquanto
esvaziamento do indivíduo real “eu” para constituição do “eu” que se dá no discurso. Em síntese, o
testemunho é o ato do discurso que pressupõe a passagem de locutor a sujeito pela apropriação da
língua no discurso.
4
A sigla compreende o uso da palavra “redação” e faz parte do corpus de pesquisa disponibilizado pela
Comissão Permanente de Seleção – COPERSE. O material coletado deu origem aos dados que compõem
as análises e discussões na tese de doutorado: A experiência na e pela língua(gem) em testemunhos de
povos ameríndios: a instauração de lugares enunciativos. A pesquisa é de nossa autoria e foi defendida
em 2014, no PPGL∕UFRGS, na área de Teorias do Texto e do Discurso, por meio do Programa Dinter
Letras – Novas Fronteiras, convênio celebrado entre a UFRGS e a UEMS, com reconhecimento da CAPES.
5
Artigo de Chloé Laplantine disponível em: http:∕∕hiphilanggsci.net∕2013∕10∕02∕emile-benveniste-et-les-
langes-amerindiennes-4 (acesso em 10∕02∕2013).
6
Para Flores (2013, p. 190), a vasta produção científica de Benveniste pautada pela tríade epistêmica
favorece diálogos com outras áreas. Isso garante a profundidade teórica e a dimensão antropológica,
porque mantém o diálogo interdisciplinar e a renovação das reflexões. Outros importantes herdeiros,
entre eles Meschonnic (2009), Dessons (2006) e outros, compartilham dessa visão. No Brasil,
importantes teses surgem sob tal discussão antropológica, entre elas Silva (2013), Azevedo (2014) e
outras.
8
A compreensão de leitura dos estudos de Benveniste proposta por Ono (2014) encanta-nos pela
questão de que é uma prática, na qual o pesquisador∕leitor faz escavações, ou melhor, busca ler nas
profundidades, seguem por vestígios e orienta-se pela compreensão de sentidos. Vemos como
orientação de leitura para os testemunhos dos povos ameríndios.
Enunciação (FLORES et al., 2009, p. 197), o conceito para o termo referência volta-se à
“significação singular e irrepetível da língua cuja interpretação realiza-se a cada
instância de discurso contendo um locutor”. Essa noção é oriunda da característica do
uso do pronome “eu”, palavra que por excelência “expressa a fala instantânea e
efêmera do locutor.” Significa, assim, a própria enunciação.
Em Benveniste, o termo referência abrange muitas interpretações. Nesse
sentido, reconhecemos, novamente, o importante trabalho de Aresi (2012) ao realizar
todo um levantamento de variação epistemológica para o termo referência, nos
diferentes trabalhos publicados por Benveniste, no PLG I e II. Como contribuição à
ampliação do termo referência, acrescentamos, aqui, o interessante trabalho, A frase
nominal, de 1950, publicado para o Bulletin de la Société de Linguistique de Paris, XLVI.
A justificativa está em constatarmos que o termo nasce de discussões empreendidas
pelo experiente linguista A. Meillet, e pela necessidade em rediscutir o tema da frase
nominal no indo-europeu pelo caminho das línguas e da sintaxe quando os linguistas o
faziam pela morfologia, Benveniste surpreende a todos com o estudo de 1950
seguindo por outro percurso, e mesmo, projetando para um leque de outros caminhos
a serem problematizados pela Linguística.
Assim, entendemos que o termo referência é discutido por longos anos e sobre
diferentes ângulos até ser compreendido como parte do processo de simbolização e
de significação que se dá no e pelo uso que o locutor faz da língua(gem). A nossa
compreensão de referência é construída quando da passagem de locutor a sujeito, por
meio de experiências descritas, no interior da prática social, ou melhor, em
testemunhos de experiência de língua(gem), no sentido de projeção do sentido que
está na enunciação. Reportamo-nos à passagem do trabalho de Benveniste Níveis da
análise linguística, de 1964, em que o linguista francês conceitua a frase e com ela a
questão do sentido e da referência:
vezes, perigoso, ou seja, é interpretado como algo que inspire perigo sentimentos de
insegurança, ou mesmo, dúvidas em relação à representação do outro que fala ao
“eu”. Em B, a terceira pessoa do singular “ele”, professor, é simbolizado pela relação
de medo e desconfiança: “[...] chegou um professor chamado Mario ele era estranho
para nós tínhamos medo [...]”. O diálogo é marcado por desconfianças. Castro (2011,
p. 397) é quem descreve a respeito desse perigo latente instaurado pelas aparências e,
elas são mais comuns do que se imagina, principalmente, entre humanos. Dessa
forma, acreditamos que as escolhas realizadas pelo sujeito por meio da apropriação da
língua: “nós tinhamos medo dele” – primeira pessoa do plural, indique a presença
marcante do “eu” que amplia pela junção de objetos, “eu+não-eu (eles∕não subjetivo).
Reafirmando por meio da língua o medo das relações interlocutivas como algo
recorrente na alocução.
A reversibilidade entre as pessoas no simbolismo é sempre motivo de grave
desconfiança para os povos ameríndios. Na maioria das vezes, é preciso convocar a
presença do “ele”, não-pessoa do discurso, ou a pessoa presentificada pela relação de
poder. O “ele”, na cultura dos povos ameríndios, é ocupado pelo papel do xamã, ou
outra figura detém poderes capazes de dialogar com seres oriundos de diferentes
lugares. Este é quem salva o “eu” enfeitiçado, porque é o único que tem o
conhecimento necessário para transitar entre mundos distintos fazendo acordos e
resgatando o “eu”, enfeitiçado pelo “tu”, por meio do uso da palavra. Esse vestígio,
inscrito na capacidade de simbolizar pela língua, é recuperado no testemunho das
experiências de língua(gem) em B.
Na escola, por exemplo, quem cumpre o papel de mediador entre o aluno e o
professor, em alguns momentos, é o cacique de quem se tem a seguinte referência:
“[...] mas o cacique Juarez sabia falar muito bem a lingua portuguesa então ele nos
explicou [falou na língua materna sobre a importância do professor e do ensino de L2,
língua portuguesa] que o professor iria nos ensinar a falar outras línguas”.
A ausência re-presentada para a terceira pessoa “ele”∕cacique é fundamental
para amenizar a situação de desconfiança entre relação “eu” aluno e o “tu” (professor
não-indígena) na enunciação falada. O cacique, a exemplo, do xamã, no testemunho
tem poderes, porque domina a língua materna (L1) e a língua portuguesa (L2). Por isso,
o “ele”, 3ª pessoa do singular, no testemunho, é quem colabora com o coletivo
quando salva em situações de perigo, porque transita entre dois mundos, salvando, ou
resgatando ao fazer uso de língua(s). A língua, nesse caso, é mais do que instrumento é
forma de significação no processo de interlocução, detém os simbolismos próprios do
sujeito na cultura.
Outras realidades são referenciadas pelo sujeito para o professor, 3ª p.s., elas
estão relacionadas às realidades da prática do professor em sala de aula: “bons
modos” e a “[falar] o português corretamente”, isso denuncia o fato de que a
aprendizagem em sala de aula tem um peso maior em regras e normas da aquisição do
semiótico da enunciação escrita da língua. Para o locutor, a aquisição da língua
portuguesa, oportuniza revelar o simbolismo que é constituído de vivências
historicizadas entre o locutor e o alocutário, em dois momentos, a sala de aula e o
ambiente externo, fora da sala de aula, por conta do ato de enunciar, em sociedade,
de modo particular, inclui a passagem da fala a escrita.
A alocução é intermediada pela presença da 3ª p.s. “ele”, em casos, especiais,
alguém que possa transitar entre dois mundos, no testemunho B1, o cacique. Como
consequência, o “eu” está em alerta aos processos de interlocução com o “tu”,
principalmente, quando do uso da língua portuguesa, no caso, porque ela é a “outra
língua”.
Na enunciação, tem-se o uso de categorias pronominais que se alternam entre
o “nós”, ampliado e coletivo, e o “eu”, individual e singular: “Digamos que o português
era fascinante para nós principalmente para mim, porque eu não queria estuda e
muito menos falar outra língua.”. A alternância, entre o uso da 1ª p.p., nós, e a 1ª p.s.,
“eu”, revela a dialética da subjetividade na e pela linguagem, visto que o sujeito que dá
testemunho do não-homem quando instaura o “outro”. Ao fazer isso, mobiliza no ato,
o emprego da língua, e compartilha os sentidos com o “outro” (alocutário), por conta
da realidade distinta da aprendizagem da língua portuguesa, em sala de aula, marcada
pelas primeiras experiências de aquisição que estão na negação da língua do outro,
centrada na escrita.
As simbolizações realizadas pelo locutor em língua materna são mais fortes e
causam a recusa da aprendizagem da L2, ou seja, o não desejo em aprender a língua
portuguesa. Outro aspecto importante está na oscilação entre a necessidade de
adquirir a língua portuguesa e o fato de rejeitá-la por receio em perder-se. Para essa
situação, tem-se a interpretância de que se possa deixar de ser quem se é, no caso,
índio, ou esquecer a língua materna a ponto de não mais conseguir transitar entre os
dois mundos.
A representação simbólica do “medo”, ou da “desconfiança” de perder é algo
importante para a construção da significação na língua. Isso marca as diferenças e
inclui as especificidade inerentes às experiências de língua(gem), em sociedade. Os
simbolismos de desconfianças estão nos processos interlocutivos, entre as categorias
de pessoa. Eles são transportados para o ambiente de sala de aula, tendo em vista as
representações construídas pela interpretância que o sujeito faz de si e do outro. Essas
Considerações finais
Referências
FLORES, Valdir do Nascimento; BARBISAN, Leci Borges; FINATO, Maria José Bocorny;
TEIXEIRA, Marlene. Dicionário de Linguística da Enunciação. São Paulo: Contexto,
2009.
FLORES, Valdir do Nascimento. Introdução à Teoria Enunciativa de Benveniste. São
Paulo: Parábola, 2013.
LAPLANTINE, Chloé. ‘Emile Benveniste et les langues amérindiennes’. History and
Philosophy of the Language Sciences. 2012. Disponível em: http://hiphilangsci.
net/2013/ 10/02/emile-benveniste-et-les-langues-amerindiennes-4. Acesso em 10
de fevereiro de 2013.
ONO, Aya; SILVA, Carmem Luci da Costa; MILANO, Luiza. Sobre as relações entre a
linguagem e o homem: caminhos de leitura em Émile Benveniste. Tradução de
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Universidade de Passo Fundo, v. 2, n. 1, p. 71-83, jan∕jun. 2012.
A AUSÊNCIA QUE SEREMOS, DE HÉCTOR ABAD: UMA ESCRITA PARA NÃO ESQUECER
Amanda Oliveira1
Aquele que foi já não pode mais não ter sido: doravante, esse fato
misterioso, profundamente obscuro de ter sido é o seu viático para a
eternidade. (Vladimir Jankelevich)
1
Graduada em Letras Português/Espanhol pela Universidade Feevale, Especialista em Literatura
Brasileira pela UFRGS e Mestre em Teoria da Literatura pela PUCRS. Atualmente é doutoranda em
Teoria da Literatura pela PUCRS, bolsista integral CAPES.
E-mail: amanda.oliveira.002@acad.pucrs.br
2
O presente texto é uma breve resenha da obra de Héctor Abad, que está sendo estudada a partir do
pensamento de Paul Ricoeur, para futura publicação.
O menino Abad, sendo o único filho homem, era o preferido do pai. Descobriu
desde pequeno que, na falta de habilidade das irmãs na oratória, deveria recorrer à
escrita para ser ouvido: “acho que tive que aprender a escrever para poder me
comunicar de vez em quando, e desde muito pequeno mandava cartas a meu pai, que
as festejava como se fossem epístolas de Sêneca ou obras-primas da literatura” (p. 22).
Ao refletir sobre essa experiência vivida, através da memória, e sua condição atual de
escritor, complementa:
Quando vejo como meu talento para escrever é limitado (raras vezes
consigo que as palavras no papel soem tão claras quanto as ideias no
pensamento; o resultado me parece um balbucio pobre e canhestro
perto do que minhas irmãs poderiam ter dito), recordo a confiança
que meu pai tinha em mim. Então levanto a cabeça e sigo em frente.
Se ele gostava até das minhas linhas de garatujas, que importa se o
que escrevo não me satisfaz por completo? Acho que o único motivo
que, nesses anos todos, me levou a continuar escrevendo e a publicar
meus escritos foi a certeza de que meu pai, mais do que ninguém,
teria gostado muito de ler essas páginas que ele não pôde ler. Que
nunca lerá. Esse é um dos paradoxos mais tristes da minha vida:
quase tudo o que tenho escrito, foi escrito para alguém que não me
pode ler, e mesmo este livro não passa de uma carta para uma
sombra. (p. 22)
Mesmo que o desejoso destinatário dos escritos não atinja seus feitos, o livro-
carta de Abad corresponde, aqui, mais um elemento importante da produção literária:
o escrever para ser lido. O fazer literário do autor está sempre sendo questionado –
seu objetivo, seu resultado, seu fim –, assim como sua própria independência como
indivíduo (“aos vinte e oito anos, quando mataram meu pai, de vez em quando eu
ainda recebia ajuda dele ou da minha mãe” (p. 32)). No entanto, a angústia pelo
escrever é maior que as necessidades econômicas; talvez a maior das necessidades. É
ela que define o pertencimento identitário do autor.
A organização social latino-americana sempre foi pautada pela discussão acerca
de sua identidade. Através de uma formação cultural de combates, contrastes e
rupturas entre nativos e/ou estrangeiros, a mescla da nova cidade interage num
cenário plural e heterogêneo. Essa pluralidade essencial do ser latino-americano
resulta em dois aspectos: em primeiro, na questão cultural de uma imposição
dominadora espanhola/portuguesa; em segundo, na língua importada que agora
devem se utilizar para significar. São essas relações do eu-outro-(novo)mundo que a
história latino-americana possui, em que o espírito de luta revolucionária passa a ser a
exigência máxima para a aquisição de uma justa identidade.
No século XX, Rama enfatiza que a literatura foi um espaço prolífico para a
formação dos discursos de denúncia e revolta sociais: “no hubo caudillo revolucionario
que no fuera acompanhado de consejeros intelectuales [...]”. (p. 123). Para o autor,
“fueron ellos, como únicos ejercitantes de la escritura, quienes nos han llegado
nutridos y ácidos testimonios sobre la tormenta revolucionaria” (p. 123).
A ausência que seremos pode ser considerado, nesses termos de Rama, como
uma obra revolucionária. Na parte intitulada Um médico contra a dor e o fanatismo,
Abad relembra uma passagem sobre a desigualdade vivida em Medellín, apesar de
essa realidade estar tão distante de sua casa:
Meu primeiro contato com o sofrimento não foi com o meu próprio,
nem com o da minha família, mas com o dos outros. Isso porque meu
pai fazia questão de que nós, seus filhos, soubéssemos que nem todo
mundo era tão feliz e favorecido pela sorte, mostrando-nos, desde
pequenos, a penúria de muitos colombianos, quase sempre causada
por calamidades e doenças ligadas à pobreza. Alguns fins de semana,
como não havia aulas na universidade, ele os dedicava ao trabalho
social nos bairros pobres de Medellín. (2011, p. 45)
A perda da irmã, vítima de leucemia, no entanto, faz com que a fé do autor seja
questionada, e a identidade, definida:
Na dor sofrida pela perda da filha, o pai faz da militância pela justiça a todos
uma forma de tentar expurgar sua impotência frente à doença dela, mesmo sendo
médico, e com todos os recursos possíveis, inviáveis para curá-la. Nesse sentido, o
escritor, na sua posição de registrar as histórias alheias através das palavras tomadas a
esmo, na tentativa de significar, completa:
Gómez: ser lembrado, mesmo após a morte, pelo que acreditava, e na tentativa de
uma mudança social justa a seu país. Muito se tem mudado na América Latina, e isso
se deve sobretudo na literatura. Talvez como afirmava José Marmol, argentino exilado
no Rio de Janeiro dos anos 1845, a independência e o espírito progressista da América
só pode ocorrer por conta da juventude progressista, em que a pena e o papel sejam
as armas de militância. Se depender da obra de Héctor Abad, ainda podemos seguir
nesse valor da literatura: a mudança. Porque se as palavras não podem confessar tudo,
elas ainda podem ser a única forma de tentar eternizar.
Referências
ABAD, Héctor. A ausência que seremos. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
RAMA, Ángel. A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1984.
1
Doutoranda em Linguística na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bolsista CNPq.
E-mail: biasibetti.ana@gmail.com
sociais em etapas futuras deste estudo. Por ora, o objetivo é apresentar a metodologia
aplicada à caracterização acústica das sibilantes em dados de POA e FLO. Tal tarefa,
para tanto, demanda conhecimentos e instrumental teórico-metodológico que
extrapolam o campo da Linguística. Assim sendo, torna-se imprescindível tecer uma
interface entre a Linguística e a Engenharia de modo a apropriar-se de conhecimentos
e práticas específicos da área de Acústica.
Fricativas sibilantes
Fundamentação teórica
Metodologia
Resultados
co/S/tura 1.25
ba/S/tante 2.26
go/S/tava 1.55
su/S/ -2.40
FLORIANÓPOLIS/SC
ve/S/ -0.30
e/S/tá -0.64
os quais deverão ser tratados estatisticamente como uma variável aleatória. Prevê-se,
portanto, a utilização de um modelo de efeitos mistos a fim de que variáveis preditivas
e aleatórias sejam conjuntamente ponderadas em relação aos seus efeitos em relação
à variável dependente.
Anterior a esse tratamento estatístico, todavia, será necessário verificar as
estimativas espectrais dos segmentos sibilantes através de um método que ofereça
uma probabilidade de erro ainda menor que aquela oferecida pelo método Time
Averaging, pois, nas palavras de Menezes (2014, p. 71), “ (...) a aplicação das janelas no
domínio do tempo reduz a quantidade de informação do sinal, elevando, por sua vez, a
variância do estimador”.
Nesse sentido, Blacklock (2004) e Shadle (2006) sugerem a metodologia
Multitaper como a mais indicada para a análise das fricativas, uma vez que seu
estimador apresenta uma variância bastante reduzida em relação a outros métodos
comumente utilizados na análise acústica da fala:
Próximas etapas
Referências
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THOMAS, Erik R. Sociophonetics: an introduction. Basingstoke, UK/New York: Palgrave,
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Antonia Zago1
Gabriela da Silva Zago2
Introdução
Formação discursiva
1
Mestre em Letras pela UCPel. Professora da Faculdade IDEAU – Bagé.
E-mail: antoniazago@gmail.com
2
Doutora em Comunicação e Informação pela UFRGS.
E-mail: gabrielaz@gmail.com
O “massacre” de Curitiba
evento passou a ser chamado com expressões como “massacre do dia 29 de abril”,
“massacre de Curitiba”, e outros.
Sites de redes sociais como o Twitter foram utilizados para narrar e criticar o
episódio. Assim, os usuários da internet se valeram do potencial de espalhamento da
rede (JENKINS; FORD; GREEN, 2013) para dar visibilidade a seus posicionamentos sobre
o ocorrido. Mais do que manifestar opinião sobre o ocorrido, os sites de redes sociais
propiciam a fácil reprodução de conteúdos com os quais o usuário se identifica,
potencializando a circulação das informações (ZAGO, 2014).
No espaço das redes, ocorre uma disputa por visibilidade (RECUERO, 2009),
com diferentes atores sociais buscando dar destaque a seus pontos de vista sobre os
acontecimentos. Essa disputa por visibilidade guarda relação com uma economia do
retweet. Para Recuero e Zago (2012), ao reproduzir um conteúdo no Twitter (através
do botão de retweet), está-se aderindo a um determinado posicionamento e
contribuindo para dar visibilidade àquela versão do fato. Como há uma limitação de
espaço de até 140 caracteres em cada mensagem, escolher quem retuitar é uma
questão econômica – quando mais de um usuário ou entidade posta a mesma coisa, é
preciso selecionar aquelas às quais se dará visibilidade através do retweet. Assim,
mesmo o ato de retweet envolve uma escolha (quem retuitar / quem referenciar como
autor original da mensagem reproduzida), que traz implicações para os sentidos de um
determinado discurso.
Procedimentos metodológicos
Resultados e discussão
O segundo autor mais frequente é o “governo tucano”, como pode ser visto na
SD 471:
Mas há também tweets que atribuem a autoria do massacre aos policiais que
entraram em confronto direto com os professores, aos próprios professores (como na
SD 129, abaixo), e até mesmo a Dilma (SD 742) ou a um governo federal omisso.
Ainda que diferentes olhares tenham sido lançados sobre o evento, dentre
aqueles que tuitaram usando os termos “massacre” e “Curitiba” há um certo consenso
no sentido de que os professores foram “vítimas” de um “massacre” promovido por
“Beto Richa”. Esse resultado está diretamente ligado com as palavras-chave usadas
para fazer a coleta de dados (“massacre” e “Curitiba”).
Considerações finais
Referências
Introdução
O multilinguismo é cada vez mais frequente em países como o Brasil, onde são
faladas 216 línguas, segundo informações coletadas no Ethnologue: languages of the
world (LEWIS et al., 2015). Cada vez mais, fala-se que o multilinguismo (bem como o
bilinguismo) está se tornando a regra, não sendo mais a exceção (BIALYSTOK et al.,
2009; GROSJEAN, 2010). Sendo assim, é imprescindível estudar o fenômeno a partir de
várias perspectivas, de modo que os interessados na sua manutenção possam se
pautar nesse conhecimento. Para tanto, é preciso ultrapassar as fronteiras da
Linguística, rumo à interdisciplinaridade (MACKEY, 1972).
Neste trabalho, considera-se o multilinguismo de acordo com a Linguística e a
Neurociência Cognitiva. Os trabalhos que se situam nessa interface, com relação a
multilinguismo, se concentram, muitas vezes, em responder parcialmente às seguintes
perguntas: Como o cérebro se adapta à fascinante habilidade de processar duas, três
ou mais línguas? Há diferentes redes neurais para o processamento de cada língua? Há
diferenças entre o processamento de segunda língua (L2) em bilíngues e o
processamento de terceira língua (L3) em multilíngues? Essas questões estão entre as
mais desafiadoras da Neurociência e da (Neuro)linguística contemporâneas (ANDREWS
et al., 2013). Essa interface é, portanto, bastante prolífera e requer, ainda, muitas
investigações.
Este trabalho se concentra na pergunta sobre as redes de processamento de
múltiplas línguas. O seu objetivo é apresentar um panorama de estudos sobre o
processamento de múltiplas línguas no cérebro. Para tanto, discutem-se alguns
pressupostos da Linguística e, então, da Neurociência Cognitiva, com relação ao
processamento multilíngue. Trata-se, portanto, de uma pesquisa bibliográfica. Saliento
1
Mestre e doutorando em Letras (área de concentração: Linguística) pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq).
E-mail: bernardo.limberger@acad.pucrs.br
1 Multilinguismo na Linguística
2
Por exemplo, Ellis (1994), Rampton (1990) e Menezes (2014) discutem a terminologia pertencente à
Second Language Acquisition.
(VIDESOTT et al., 2010). Todos esses estudos foram consistentes no sentido de que
encontraram redes de ativação semelhantes para as três línguas. Houve ativação
principal na rede clássica da linguagem (PRICE, 2010), que abrange áreas do córtex
frontal (principalmente a região de Broca, ou giro frontal inferior esquerdo) e do
córtex temporoparietal do córtex (sobretudo a região de Wernicke, ou giro temporal
superior posterior). No entanto, como os estudos investigaram o processamento de
múltiplas línguas, essa rede não foi suficiente para descrever todo o mecanismo de
substratos neurais que estão relacionados a esse complexo processamento. Em alguns
estudos com multilíngues, foram encontrados também redes adicionais, no hemisfério
direito, especialmente nas regiões frontais do cérebro (VINGERHOETS et al., 2003;
ANDREWS et al., 2013) e, especificamente, pré-frontais (VIDESOTT et al., 2010).
Essa ativação homóloga à região de Broca pode ser interpretada no sentido de
processos cognitivos adicionais e necessários para o processamento da língua menos
proficiente; este engajamento também pode ser correlacionado com índices de
desempenho e velocidade de processamento (por exemplo, quanto mais acurado e
fluente a leitura, maior o engajamento de áreas pré-frontais). À medida em que o nível
de proficiência aumenta, a dependência da tradução da L1 pode diminuir; as redes que
subjazem o processamento da L2 convergem para as redes que subjazem o uso da
língua por falantes nativos. Pode haver, portanto, uma consequente convergência
entre representações semânticas encontradas, inclusive, na convergência de processos
neurais, hipótese já formulada por Green (2003) para bilíngues.
Além das regiões corticais envolvidas no processamento das línguas (sobretudo
a região de Broca e de Wernicke), Abutalebi et al. (2013) encontraram diferenças entre
multilíngues e monolíngues na ativação e no volume das estruturas subcorticais do
putâmen esquerdo. Os multilíngues teriam essa região mais desenvolvida e, também,
mais ativada. O putâmen é uma região do cérebro envolvida em processos
articulatórios na língua com menor nível de proficiência, ele faz parte dos gânglios
basais do cérebro e, em bilinguismo, está associado com o aprendizado de regras e
faria parte de um centro, ou hub, em inglês, controlador dos processos a serem
executados. Para o multilíngue, este controle sobre as diferentes línguas precisa estar
desenvolvido (BUCHWEITZ; PRAT, 2013). No multilinguismo, há um repertório
articulatório complexo, que desenvolve estruturas articulatórios como o putâmen.
Outra variável investigada nos estudos com multilíngues é a idade de aquisição,
assim como nos estudos com bilíngues, que demonstram, com frequência, que uma
língua adquirida tardiamente, em geral pode estar associada, em geral, com a ativação
de processos cognitivos adicionais àqueles da L1, mas com o desenvolvimento da
proficiência, mesmo em idade tardia, há um processo de convergência entre os
4
A expressão se refere à preocupação com a cientificidade dos métodos de pesquisa. Segundo
Bonfenbrenner (1979), uma investigação é considerada ecologicamente válida se é realizada em
configurações naturais e envolve objetos e atividades da vida cotidiana. Dependendo da investigação,
contudo, o laboratório pode ser um local totalmente apropriado para uma investigação, mas outros
ambientes da vida real podem ser inapropriados.
(como o discursivo), que são mais ecologicamente válidos. Desse modo, segundo esses
autores, os resultados poderiam ser mais robustos.
As lacunas na literatura nos fornecem demandas e hipóteses para pesquisas
futuras. Não há consenso quanto à ativação bilateral no processamento da L2 ou da L3,
que não foi encontrada por todos os pesquisadores. Categorias linguísticas como a
exposição às línguas, o status das línguas e a consistência ortográfica, no caso de
tarefas de leitura, podem ser mais investigadas e controladas nos estudos. Seria
interessante incluir grupos maiores e mais homogêneos nas pesquisas, como no
estudo de Videsott et al. (2010), que contemplou falantes de uma comunidade do Tirol
do Sul, falantes da língua ladina; entretanto, essa tarefa é de difícil execução, pois a
variabilidade dos falantes multilíngues é grande: uma miríade de fatores faz essa
experiência profundamente heterogênea e potencialmente altera as suas
consequências (BIALYSTOK et al., 2009). É necessário, ainda, mensurar
adequadamente o nível de proficiência em todas as línguas, de modo que o nível de
proficiência e a idade de aquisição não sejam confundidos. De um lado, estamos diante
desses enormes desafios (tanto no nível técnico quanto prático), de outro estamos
diante da demanda, uma vez que tais estudos podem fornecer, futuramente, um
melhor entendimento da interação entre as línguas no cérebro e subsídios para
práticas de ensino de línguas estrangeiras. Ademais, como afirma Videsott (2010), o
entendimento entre os estudos linguísticos e a neurobiologia da linguagem permite
avançar o conhecimento sobre processos de aprendizagem, como esses se dão, e
sobre processos de compreensão e produção, como esses interagem e convergem
entre as línguas.
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Introdução
3
O conceito de pravda em Bakhtin está relacionado à ideia de verdade como justiça.
4
Trata-se o acórdão de uma decisão de um órgão colegiado ou de um tribunal, prolatado seja por
desembargadores seja por ministros de tribunais superiores.
é uma abstração, e não um fato vivido. A lei não consegue dar conta de todas as
situações, devendo o intérprete verificar se determinado caso particular corresponde
ao dever ser objetivado pela lei.
Segundo sugere Bakhtin (1998), em Hacia una filosofia del acto ético, o objeto
do conhecimento teórico, que, no presente trabalho é representado pela lei, não
pode pretender ser suficiente em todas as situações, uma vez que é geral e abstrata,
pretendendo ser unificada e total. Contudo, em diversas situações, como esta do HC
82424 RS, a lei é irrompida pela singularidade. Sendo assim, diante dos fatores
extralinguísticos mencionados e das vozes sociais sobre preconceito, foi necessário se
distanciar da técnica e do formalismo, para julgar como realmente o fato da
publicação dos livros se deu, em sua particularidade realmente vivida e se esse fato,
de acordo com o contexto social, histórico e ideológico do momento julgamento,
estaria em consonância com o dever ser pretendido pela norma.
O ato de julgamento do STF é, pois, também, responsivo, uma vez que
considera as vozes sociais a respeito dos valores essenciais da sociedade, estando o
julgado, consequentemente, permeado por elas, opondo-se igualmente a outras vozes
formalistas, e é também um ato responsável, pois, para afastar o formalismo do
mundo teórico abstrato e geral, teve que considerar a singularidade do fato realmente
vivido, com o fito de se encontrar o que Bakhtin (1998) chama de pravda.
Eis o que afirma Bakhtin (1998, p. 51), em Hacia una filosofia del acto ético6:
O HC 82424
Feita uma breve análise das teorias que embasarão o estudo, segue um resumo
do caso concreto, da realidade de fato vivida, que foi objeto da decisão do Supremo, a
fim de explicar melhor o que fora dito acima.
O Supremo Tribunal Federal, em 2003, no Habeas Corpus 82424 RS, deparou-se
com a polêmica do racismo em uma de suas manifestações, até aquele momento não
discutida. O presente caso, consoante verifica-se a partir da ementa do processo
6
BAKHTIN, op. cit, p. 51.
7
http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=79052&tipo=AC&descricao=Inteiro%20Teor
%20HC%20/%2082424 acesso em: 27 de outubro de 2015, p. 524.
8
Constituinte é expressão que equivale a Poder Constituinte, que é o responsável pela elaboração da
Constituição.
9
BAKHTIN, op. cit, p. 14.
Conclusão
Finalmente, visto que a questão central que definiria o julgamento foi a colisão
entre o conceito teórico e a realidade particular do caso concreto, o dialogismo
bakhtiniano e os conceitos de atividade responsiva e ato responsável são
imprescindíveis para a interpretação da norma e construção de um Direito justo e
legítimo, com força normativa perante a sociedade. Não existe, pois, um conceito tão
definitivo e categórico que, para o alcance do significado, seja suficiente a mera leitura
e sua aplicação à realidade de maneira meramente formalista.
Dessa forma, a decisão, uma vez que o problema central seria a abrangência do
conceito teórico – a lei –, só poderia se dar se fosse elaborada dentro de seu contexto
social, histórico e ideológico, agindo o STF responsivamente em relação aos valores
que a sociedade considera essenciais, respeitando não só a responsabilidade formal (a
lei), ou seja, o produto cultural, como também a responsabilidade moral, adimplindo o
compromisso de garantir que o sentimento da norma seja respeitada, que o direito
dos judeus seja protegido.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Hacia uma filosofia del acto ético. Espanha: Anthropos Research &
Publication, 1998.
______. Estética da criação verbal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.
http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=79052&tipo=AC&descricao
=Inteiro%20Teor%20HC%20/%2082424 acesso em: 27 de junho de 2015.
Bruna Tessaro1
Ellen C. Gerner Siqueira2
Fernanda Soares Loureiro3
Lilian Cristine Hübner4
Introdução
Método
Participantes
5
Normas Urbanas Cultas: NURC/SP nº 338 EF, 331 D2 e 153 D2
I. Produção de uma notícia: Por favor, agora me conte uma notícia ou fato
recente que tenha ouvido no rádio, assistido na TV ou lido no jornal.
II. Produção de uma narrativa: Gostaria que o(a) senhor(a) me contasse uma
história engraçada que aconteceu com o(a) senhor(a), ou que o(a) senhor(a)
presenciou, ou que lhe contaram.
As coletas foram feitas em sessões individuais em ambiente silencioso. As
produções dos participantes foram gravadas em áudio e transcritas posteriormente.
Resultados
Notas: Em cada teste, os valores assinalados com a mesma letra não tiveram diferença estatisticamente
significante (p<0,05) entre eles. DA: Doença de Alzheimer; CCL: Comprometimento Cognitivo Leve; SB:
Saudáveis de baixa escolaridade; SA: Saudáveis de alta escolaridade. MMSE: Mini-Exame do Estado
Mental; GDS: Geriatric Depression Scale.
Discussão
CCL P: o avião que caiu... com... o... P: ma daí se eu for conta daí é
me esqueci o nome dele coisas feia né que eu vo
também... contaram pra mim daí não da pra
ACOMPANHANTE: Eduardo mim fala coisa feia
Campos... E: não magina...uma coisa
P: é... também... foi triste... achei engraçada....um fato uma
triste... situação engraçada...
E: sim... e a senhora sabe o que P: não que a minha irmã::
aconteceu?... poderia me contar quando eu vo lá a minha irmã
assim como é que... caiu... onde conto pra mim quando ela era
caiu... mais nova né...e ela foi corre
P: não sei... acho que o piloto ( atrás duma duma ambulista
)... ambulista é uns bichinho assim
E: e onde é que caiu... e onde é sabe...dai ela queria pega aquela
que caiu o avião... ambulista porque ambulista se
P: aonde?... lá em... São Paulo... se comia né o pai dizia que se
ou Pernambuco... eu não me comia né...e ela disse pra mim
lembro... só sei que ele nasceu que foi foi atrá da ambulista a
parece Pernambuco né... ambulista a ambulista era só
E: sim... e quem morreu nesse faixa ela correu e não conseguia
acidente?... pega a tar de ambulista pego foi
P: o... como é o nome mesmo?... lá e deu correu correu a
A: Eduardo Campos... ambulista fugiu dela e ela não
P: Eduardo Campos... conseguiu pega ela
E: e ele era o que?...
P: ( ) candidato... ele era...
presidente da República...
Fonte: As autoras.
Considerações finais
Referências
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Alzheimer’s Disease. Cortex, v. 42, p. 675-684, 2006.
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VARGAS, Rafaela Janice Boeff de. A referenciação na produção de narrativas
orais no envelhecimento sadio e na Doença de Alzheimer e sua relação com
a escolaridade e o tipo de estímulo. 2015. 250f. Tese (Doutorado em
Linguística) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015.
SERES ESTRANHOS:
PERSONAGENS EM DESENCONTROS EM ROMANCES DE DULCE MARIA CARDOSO
Assim é o trabalho de Dulce Maria Cardoso: ela ficcionaliza peças soltas. Seu
descrever não é um simples relato de características: é colocar sobre a tensão
romanesca todos os cacos de o que poderia, como um todo, ser denominado como
realidade, existências, seres complexos e sofridos.
Seus romances demonstram a força de sua inventividade e a ousadia de suas
escolhas criativas, seja pela forma como narra, seja pelas personagens que desenvolve.
Escreve de dentro das personagens, revelando seus mundos internos em conflito com
a realidade externa que as desafiam e tratando de temas como identidade, família,
traição, luto — todos eles subordinados à implacável ação do tempo.
No final da década de 1920, Virginia Woolf faz uma perspectiva de o que as
mulheres passarão a escrever:
1
Doutorando em Teoria da Literatura, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS,
bolsista CNPq. E-mail: brunomazolini@gmail.com
Com isso, não busca se dizer aqui que a escrita de Dulce Maria Cardoso seja uma
escrita “feminina” simplesmente. Cada um de seus romances são construídos com
linguagens e estruturas narrativas bem distintas, e todos realizam o que a romancista
inglesa colocou em questão: eles tratam dos destinos e sentidos que a vida pode ter.
Em contato com sua escrita de ruínas – ela cria ruinas de ser, de
relacionamentos, de famílias ou de um país —, tem-se acesso a seres que são, cada um
a sua maneira, desajustados no mundo em que vivem. São peças soltas de si mesmas
ou de um grupo que os percebe como estranhos de alguma maneira. No entanto, não
é somente a eleição de seres peculiares o mérito do romance de Dulce Maria Cardoso,
já que, o centro desta arte, como analisa Orham Pamuk, em O romancista sentimental
e o ingênuo, “não é a personalidade ou o caráter dos protagonistas, mas a maneira
como veem o universo dentro da história” (2011, p. 53).
Isso é perceptível desde o seu primeiro romance, Campo de sangue, de 2002.2
Nele, um inominado mentiroso, preguiçoso, fóbico a insetos, sustentado pela ex-
esposa e com “unhas de cão” leva quatro mulheres a uma sala de espera para
deporem devido a um assassinato. Esse homem que obtém conforto em cheiro de
inseticida e que rouba sem necessidade vive de mentiras, satisfaz-se com seu mundo
irreal:
Mas o que fez ficar, além da eficácia com que a senhoria exterminava
os insectos, foi o que tinha inventado ser. Tinha construído uma vida
que lhe agradava, cumpria um horário de trabalho, levantava-se
sempre à mesma hora, quando regressava contava histórias da
empresa (2005, p. 63).
2
As datas correspondem à primeira edição de cada uma das obras em Portugal.
Que ilha é essa? Quem estaria ilhado? O inominado com unhas de cão ou cada uma
das mulheres que testemunham cada uma das vidas que ele construiu? Sejam abrindo
as obras de Dulce Maria Cardoso como epígrafes ou aparecendo como citações
finalizando-os, os quatro romances trazem menções a escrituras de Loynaz, escritora
cubana.
Já em Os meus sentimentos, de 2005, uma “mostrenga” — como se
autodenomina a personagem Violeta, obesa, vendedora de cera em tempos de
depilação a laser, que pratica sexo casual com caminhoneiros — percebe que existe da
seguinte maneira:
sou uma obesa indecisa entre o tipo I e o tipo II, da tabela que os
profissionais da saúde tiveram o cuidado de elaborar, não fosse essa
tabela e o mais certo era andar perdida nesta vista, assim, ainda que
oscile entre o tipo I e o tipo II, sei a que tabela pertenço e em relação
a que categorias hesito (2012b, p. 33-34).
No entanto, estão todos unidos por essa busca de um futuro, nessa execução de
projetos que os tornam tão humanos e que, buscando a realização disto, submetem-se
a diferentes situações que poderiam ser entendidas como subornos em diferentes
níveis, com o uso de diferentes moedas.
Já em O retorno, de 2012, Dulce Maria Cardoso apresenta Rui, nascido em
Angola e que, em Portugal, descobre um novo local para sua vida, com o peso da
responsabilidade de ser o homem da família. Se nos três primeiros romances há
momentos de volta à infância e adolescência de algumas das personagens — os
conflitos e perdas, e as ligações e desconexões improváveis que eles desencadearam
—, em O retorno, temos a adolescência em si, na voz potente do jovem Rui. Nessa
obra, temas já abordados pela autora estão entremeados à derrocada portuguesa em
Angola e à vida dos retornados, portugueses e seus descendentes que precisaram
voltar a Portugal, ou ir pela primeira vez, na famosa ponte aérea de 1975.
O monólogo interior que revela angústias e descobertas do adolescente, que
sente a necessidade de assumir uma posição da qual acredita não dar conta. Além
disso, em Portugal, descobre que é alguém diferente: “Explicaram-nos, IARN quer dizer
Instituto de Apoio ao Retorno dos Nacionais. Agora somos retornados. Não sabemos
bem o que é ser retornado mas nós somos isso. Nós e todos os que estão a chegar de
lá” (2012a, p. 77).
Sua nova situação é estranha a ele mesmo, mas também o é para os outros: Rui
faz parte de um grupo que os portugueses locais descriminam. A maioria dos
retornados não possuíam o mínimo para assegurar uma noção digna de pertencimento
à Portugal: uma casa no país. Alojados em hotéis, eram comunidades ilhadas. Além
disso, para os angolanos da Angola independente, Rui é português. Para os
portugueses, Rui é africano.
Particulares como são, suas personagens acabam muitas vezes não se
entendendo, sejam consigo mesmas ou com as outras. Curiosamente, a poética de
Dulce Maria Cardoso parece explicitar-se na fala de uma de suas personagens. Alice, a
entediada milionária de O chão dos pardais, declara o seguinte: “O conhecimento é
uma extravagância em qualquer relacionamento e o entendimento uma extravagância
ainda maior” (2009, p. 72). As personagens desses romances, muitas vezes, não
reconhecem ou entendem umas as outras ou acabam entrando em conflito, já que
possuem expectativas frustradas em relação ao outro.
As dores das relações, dos conflitos, das perdas são tratadas habilmente, não
tornam o leitor um expectador sádico, visto que há uma proposta de reflexão em seus
romances, como a própria romancista afirma:
Em que raio de mundo vivia aquela mulher para pensar que Elisaveta
podia confiar nela. [...] Elisaveta sabia que não podia confiar em
ninguém, muito menos em quem soubesse o que a fome e o frio
faziam. Aquela mulher não sabia que a fome acorda o corpo e que o
frio o atordoa e que era só por isso que ela tinha sobrevivido (2019,
p. 99).
Essa mulher que Dora observa e de quem ouve parte da conversa é Eva, de O
campo de sangue, que “Cheirava a perfume caro e tabaco. [...] As mãos de Eva
estavam iguais, mãos magras de cera [...]. Eva finalmente falou, os lábios de romã”
(CARDOSO, 2005, p. 158-159). Em um jogo semelhante, a sequência do acidente de
carro sofrido por Violeta, de Os meus sentimentos, parece revelar-se no romance
seguinte, O chão dos pardais:
Referências
Camila Alexandrini1
1
Doutoranda em Teoria da Literatura (PUCRS).
E-mail: camilalexandrini@msn.com
2
Observações sobre essa ação artística podem ser encontradas na publicação Rastros, julho/agosto,
2013. Disponível em: <http://culturaebarbarie.org/rastros/n7.html> Acesso em 12 de novembro de
2015.
3
O teórico constrói uma diferença entre “é performance” e “como performance”. Segundo Schechner
(2013, p.38): “There are limits to what “is” performance. But just about anything can be studied “as”
performance. Something “is” performance when historical and social context, convention, usage, and
tradition say it is.”
UFVJM] e Estudos da Palavra Cantada [UFRJ]), os demais configuram-se no campo das Artes. Disponível
em: <http://lattes.cnpq.br/web/dgp> Acesso em 27 de julho de 2015.
palavra “texto” deve ser entendida no seu sentido semiológico, isto é, como um
conjunto de signos que podem ser simbólicos (verbais), icônicos (imagéticos) ou
mesmo indiciais (sombras, ruídos, fumaças, figuras delineadas por luzes etc)” (COHEN,
2011, p.29).
Com a explosão da cultura pop, os anos 80 foram marcados por uma série de
performances que iam dos shows de rock a manifestações em praça pública. Os
acontecimentos políticos do período, bem como a veiculação rápida de informação
através das novas tecnologias, impeliram artistas à discussão a respeito da
globalização, dos regimes de colonização, da sociedade do consumo. Por ser uma arte
jovem, embora de memória antiga, a performance permite se reinventar, sua tradição
é marcada em um tempo histórico altamente volátil e instável e seus participantes
interessados demais na contestação de seus princípios. Nesse sentido, performance e
literatura possuem um distanciamento profundo. Mesmo que possamos perceber o
empenho de certos escritores na inauguração de uma outra instituição literária, a
teoria ainda se debate para também renovar seu conjunto de noções. A renovação
da/na teoria literária é da ordem do urgente, e isso só me parece possível se ela estiver
disponível a abandonar-se, a repensar os objetos de análise da tradição literária, a
almejar não só o contato interartes, mas também a sua contaminação. Nesse sentido,
a performance aqui se insere primeiramente como um investimento à disponibilização
de outros espaços ao que chamamos de literatura e, desse modo, possibilitar que ela
seja entendida, lida e desenvolvida também de outras maneiras teóricas. Vejamos um
exemplo de como isso pode ser operado na teoria da literatura.
No ano passado, mulheres corriam nuas pela cidade de Porto Alegre. Gosto
muito dessa imagem e gostaria que vocês a imaginassem6. (a) Sob o ponto de vista das
leis que regem a nossa sociedade, tal ato poderia ter sido considerado inapropriado,
sob pena de detenção. (b) Já a partir do olhar que percebe essas mulheres
interrompendo a ordem cotidiana, ver uma mulher nua passar pela janela do ônibus
pode ser uma mais ou menos agradável surpresa. Diante dessas mulheres, que sem
pudores, exibem o corpo nu, (c) poderíamos cogitar também uma manifestação
artística. Até mesmo, (d) o discurso psiquiátrico, principalmente aquele que indica
estatutos de normalidade, foi uma das ferramentas de assimilação do
incompreensível. Eu as vi como palavras em fuga e – novamente, isso não é uma
metáfora.
6
Mais uma mulher é fotografada correndo nua em Porto Alegre, notícia publicada no Jornal Zero Hora,
em 09/11/14. Disponível em: <http://zh.clicrbs.com.br/rs/porto-alegre/noticia/2014/11/mais-uma-
mulher-e-fotografada-correndo-nua-em-porto-alegre-4639030.html> Acesso em 12 de novembro de
2015.
7
Mostra-se relevante informar, inclusive, que a aproximação dos campos da literatura e da performance
poderia ser pensada a partir do ponto de vista da linguagem, o qual, segundo Carlson (2009), emerge
com a teoria linguística de Chomsky, passa pelo dialogismo de Bakhtin, pela intertextualidade de
Kristeva, até tocar os fundamentos dos atos de fala de Austin, em How to do things with words (1975).
“Austin chamou a atenção para um tipo especial de fala, que ele denominou de “performativa”. Ao
emitir um “performativo”, simplesmente não se faz uma afirmação (o foco tradicional de análise
linguística que Austin rotula de “constativo”), mas performa-se uma ação como, por exemplo, quando
alguém batiza um navio ou realiza um casamento” (CARLSON, 2009, p.73).
8
Intervenção do grupo intitulada Ilha dos Amores - Um Diálogo Sensual com a Cidade, parte do 20º
Porto Alegre Em Cena, 2013. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=FAqCXNXG-JM >
Acesso em 12 de novembro de 2015.
Referências
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SCHECHNER, Richard. Performance Studies: an introduction. 3. ed. New York & London:
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ZUMTHOR, Paul. Recepção, performance, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
Carla Lavorati1
1
Doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. Bolsista
Capes/CNPq: início em março de 2014. E integrante do grupo de pesquisa Literatura e Autoritarismo,
coordenado pela professora Dra. Rosani Ketzer Umbach.
E-mail: ca_lavorati@yahoo.com.br
ação e do discurso2. Certo que está que esquecer representa um risco. Assim, assume
a tarefa de comunicar o que a tempestade do progresso apaga, e que impele os
indivíduos para o futuro, mesmo com toda crescente ruína do passado. O narrador de
Os Anéis de Saturno vence a força que o impele para futuro, e no olhar melancólico
que dirige ao passado, consegue, escapar do “vento” progresso, para voltar,
lentamente juntando os cacos da história da Europa pós-guerra. Nesse movimento,
revela o lado obscuro do “projeto” racionalismo humanista, que não conseguiu evitar a
banalização do mal. E nesse sentido, é possível nos referirmos a todos os personagens
que compõem as obras de W. G. Sebald de experiências incomunicáveis, advindas das
relações que mantém com os processos de destruição de massa. Na maioria, são
personagens que representam gerações posteriores a experiências diretas de trauma
(não são testemunhas oculares), mas estão ligados a experiências de
incomunicabilidade. O narrador de Sebald conta essa história sem ser testemunha
ocular dos fatos, mas sim no entrecuzamento de histórias que, de alguma forma,
sentiram as consequências, materiais e psicológicas, dos horrores das guerras.
No texto Posição do narrador no romance contemporâneo, Adorno (2003)
refere-se ao romance como um gênero que exige narração, num mundo onde a
capacidade de narrar está em decadência, tanto pelo declínio da experiência, que fica
prejudicado pelas relações traumáticas de esvaziamento de sentido - na incapacidade
da linguagem comunicar o incomunicável dos horrores da destruição em massa - como
também pelo próprio declínio da memória histórico-coletiva, em um mundo
capitalista, envolvido nas engrenagens do consumo intermitente, e, portanto,
sufocado pelo cotidiano alienante, pois “Contar algo significa ter algo especial a dizer,
e justamente isso é impedido pelo mundo administrado, pela estandardização e pela
mesmice” (ADORNO, 2003, p 56).
2
Hanna Arendt, na obra A condição humana (2005), fala sobre a relação entre discurso e ação, onde
observar-se a revelação do agente da ação. A ação, para existir, precisa estar inserida na sociedade dos
homens, pois depende da existência dos outros. Apenas nós, seres humanos, relacionados por aspectos
de igualdade e diferença podemos comunicar nossa subjetividade, nossa própria pluralidade e distinção.
Nesse sentido, na prática do discurso, o sujeito se mostra, pois é no discurso que ficam registradas as
marcas da ação. Portanto, o fundamental para existir narrativa é a presença de um agente que
impulsione a ação. Nesse sentido, o romance é uma categoria do gênero de ação, mais especificamente
da ação do homem em sociedade. A representação do indivíduo moderno, isolado, angustiado e de um
mundo sem deuses que muito bem se adequou a forma do romance. A literatura pode ser considerada,
desse modo, como uma expressão privilegiada do homem em sua relação com o mundo, com a
alteridade e consigo mesmo. No romance Os Anéis de Saturno, o narrador empreende a ação de juntar
os cacos do passado e contar a história a contrapelo. Portanto, além de uma postura de ação é também
uma postura ética, um trabalho em prol da recuperação da memória e da história dos vencidos. O que,
por sua vez, liga-se à própria consciência crítica do autor. Essa perspectiva relacional entre narrador e
autor será trabalhada, de modo mais específico, no desenvolvimento do artigo.
Seja como for, desde então tentei descobrir tudo que estivesse ligado
à guerra aérea. No inicio dos anos 50, quando estive em Lüneburg
com o exercito de ocupação, cheguei até aprender um pouco de
alemão, a fim de poder ler o que os próprios alemães, imaginei,
haviam escrito sobre a guerra [...] para minha surpresa, porém, logo
verifiquei que a busca por tais relatos nunca dava em nada. Ninguém
parece ter escrito a respeito na época nem se lembrar do fato mais
tarde. E mesmo se eu perguntasse diretamente às pessoas, era como
se tudo estivesse sido apagado de suas cabeças (SEBALD, 2010, p.
49).
3
O autor W. G. Sebald não denominava seus livros de romances, mas sim de prosa ficcional. No entanto,
justamente pelo romance ser um gênero que vem sofrendo constantes modificações, acreditamos ser
pertinente a referência ao gênero romance, não no sentido de estancar a obra dentro de uma categoria
(até porque nos parece que isso é o menos importante), mas para tornar possíveis as aproximações
observadas na composição de Anéis de Saturno em relação à forma de expressão individual e à função
catártica que o romance apresenta como “prosa do mundo”.
4
É interessante observar que os teóricos divergem quanto à gênese do romance. Bakhthin diz que tem
romance desde a antiguidade, Lukács diz que surge com a burguesia, Aurebach como subgêneros da
novela. Adorno (2003) e Benjamin (1983) relacionam o aparecimento do romance e a “decadência” dos
outros gêneros com o início da era burguesa.
Referências
O contato com a realidade pode suscitar muito mais do que uma experiência
imediata e passageira, muito mais do que uma busca, própria do ser humano, de
explicar objetivamente o visível. Há, em muitos casos, a necessidade de ultrapassar as
visões provocadas pelas primeiras impressões na relação com a matéria. A realidade é,
para o sonhador, uma porta de entrada para um universo complexo, subjetivo,
imaginado, sentido; provoca uma ação circunscrita para além da superfície, transcende
o visível. O homem que imagina é, usando as palavras de Bachelard (1994), antes um
pensativo que um pensador, embora os limites da distinção sejam difíceis de traçar.
A fenomenologia do imaginário desenvolveu-se como o campo de estudo que
pretende dar conta dessa imaginação, individual ou coletiva, nas diferentes maneiras
em que se manifesta. A literatura apresenta-se, nesse sentido, um campo fértil para a
interpretação das relações profundas entre o homem e o universo que o circunda.
Certos textos literários dão vida ao imaginário, contêm o que está para além das
imagens simbólicas da linguagem, para além do espaço, para além da estabilidade das
certezas.
É o que parece acontecer em A desumanização, último romance publicado pelo
escritor português Valter Hugo Mãe, que apresenta como narrador a personagem
Halldora, uma criança de onze anos que, após perder a irmã gêmea, conta sua árdua
1
Mestranda em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS),
com bolsa de incentivo CNPq.
E-mail: cassia.gianni@acad.pucrs.br
2
Professora titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
E-mail: regina.kohlrausch@pucrs.br
tarefa de buscar sentido à existência, refletindo sobre o amor, o ódio, a esperança, seu
crescimento, deus e, principalmente, sobre a morte e a solidão. Como todos os
enredos propostos por Valter Hugo, A desumanização, por tratar sobretudo do
humano, parece poder pertencer a qualquer lugar. Entretanto, não é por acaso que
tem como pano de fundo os fiordes islandeses. A protagonista vive em uma ilha
composta de vulcões, montanhas, rochas, mar e muita neve, onde é muito difícil
chegar e ainda mais improvável permanecer. É através das imagens da Islândia que as
personagens pensam sua condição e seus sentimentos. O espaço é o responsável por
dar vida à sua imaginação e aos seus sonhos.
Gaston Bachelard, que elabora sua fenomenologia do imaginário a partir da
compreensão dos devaneios materiais surgidos pelo contato com elementos da
natureza – fogo, água, ar e terra –, oferece interpretações que parecem permitir a
compreensão, também, dos devaneios de Halldora, suscitados por sua relação com o
ambiente terrível que a rodeia e pela necessidade de responder às questões de seu eu.
Procura-se fazer, neste trabalho, portanto, um diálogo entre a fenomenologia
proposta pelo teórico e a obra de Valter Hugo Mãe, interseccionando perspectivas e
possibilitando novo olhar sobre o texto.
A Islândia pensa. Em A desumanização, os fiordes islandeses funcionam como
um personagem que age constantemente, com gestos majoritariamente opressivos e
destruidores. O mar, os vulcões, as nuvens, as montanhas, o vento e as rochas,
agressivos e exuberantes, definem a vida das pessoas que circundam. Halldora ou
Halla, como é chamada a protagonista, tem uma relação profunda com o pai, que é
quem lhe ensina o seu lugar na imensidão confinadora dos fiordes. Sendo poeta,
parece ser capaz de compreender bem as armadilhas conjeturadas pela terra onde
vivem e, orientando as crianças sobre os perigos da Islândia, é o primeiro a fazer do
espaço alguém:
lugar onde é impossível estar sozinho. A solidão faz com que os homens percebam que
existe alguém em tudo que os rodeia. Halldora, a partir do momento em que perde a
irmã, ainda criança, passa a ter um contato profundo com o abandono e o isolamento,
não é capaz de encontrar-se nem consigo mesma, porque tem uma parte na morte,
pertence àquele óbito inteiramente, é a “menos morta” das duas meninas.
Sigridur, enterrada no alto de uma montanha, passa a ser visitada
constantemente pela irmã gêmea, que espera que, do túmulo, brote nova vida, nasça
uma árvore de folhas e unhas, que germine “a criança plantada”. Halla quer reviver e,
por isso, passa a ter uma relação de dependência com a terra. Na terra, está sua outra
metade, sufocada, com frio e sozinha. Nos momentos de pânico, cobre-se de terra e
de folhas até que se sinta capaz de resistir mais uma vez. A terra passa a ser o
elemento que a reconecta à irmã, fazendo com que se sinta completa novamente.
Gaston Bachelard afirma que, para o imaginário, enterrar os mortos é como
impedi-los de morrer completamente. Os enterrados ainda estão presentes, podem
ser visitados, permanecem perto. Sigridur é, para a irmã, ainda uma esperança, como
uma semente que é soterrada para tornar-se vida nova.
Poderia ser que brotasse dali uma rara árvore para o nosso canto
abandonado dos fiordes. Poderia ser que desse flor. Que desse fruto.
[...] Achei que minha irmã podia brotar numa árvore de músculos,
com ramos de ossos a deitar flores de unhas. (MÃE, 2014, p.9)
Mas a felicidade dura pouco nos sonhos dos habitantes da Islândia. Em muitos
momentos, é a queda a principal intérprete da imaginação. Cair parece condizer mais,
como porvir, para os que ali vivem. Nesse sentido, durante toda a narrativa, há
associação da morte, vivida ou imaginada, com a queda. Os fiordes islandeses são uma
terra repleta de montanhas rochosas que, entre si, produzem espaços enormes,
escuros e vazios. A boca de deus, como são chamados os precipícios, representam o
desconhecido, a queda infinita, a morte constante. Einar, personagem com quem
Halldora vive sua sexualidade, tem o pai assassinado com um empurrão de cima de
uma montanha e o filho depositado na mesma imensidão, depois de nascer morto.
Além disso, a protagonista imagina-se, muitas vezes, como sendo uma queda
constante, uma lágrima que cai incapaz de secar, “chorava por si só. Significava a
tristeza com seu corpo inteiro” (MÃE, 2014, p.85) e vê, no suicídio, que fica como
ambiguidade ao final da narrativa, um desejo, como aqueles que são feitos às estrelas
cadentes.
A imaginação material do ar, para Bachelard, tem essa dualidade de leveza
(voo) e peso (queda). Segundo ele, “a queda e o escuro preparam dramas fáceis para a
imaginação inconsciente” (BACHELARD, 2001, p.91). O que é mais interessante é que,
para ele, deve-se estudar a queda como sendo uma “espécie de doença da imaginação
da subida, como a nostalgia inexplicável da altura” (BACHELARD, 2001, p.95). As
muitas quedas no romance de Valter Hugo Mãe são mesmo uma impossibilidade, o
lado negro e infeliz da morte, a negação da subida.
As nuvens também são uma imagem aérea recorrente em A desumanização e,
para as personagens representam ora a leveza, ora o peso da morte. Para Halldora, as
nuvens são almas que cruzam o ar e são capazes de refletir a vida:
Einar, que passa a viver com Halldora após a gravidez e a perda do filho, torna-
se a personagem com quem a protagonista compartilha seus sonhos. Diferentemente
de Halla, ele sente ímpetos de destruir as nuvens, porque tem rostos e falam. Para
Einar, as nuvens são seus medos que “ficam a cobrir o céu e a fazer invernos e
tempestades” (MÃE, 2012, p.53).
As águas todas eram lágrimas. Eu gritava e meu pai pedia que ficasse
calma. Perguntava-lhe: pai, quem chorou o mar. Foram as baleias,
pai. Quem choraria tanta agua. E quem chorou dentro de mim. (MÃE,
2014, p.79-80)
O oceano é, portanto, a morada dos heróis, dos salvadores, dos bravos. Para
Halla, eles são uma possibilidade, um caminho em retirada.
O mar representa, também, a generosidade que tanto falta à natureza nos
fiordes. O mar dispersa as coisas pelas águas, leva embora o sofrimento, apaga o
sangue que jorra das ovelhas sacrificadas, do corpo da mãe que se corta, o mar, assim
como a chuva, limpa o sofrimento. Essa purificação que a água oferece é, segundo
Bachelard (2013, p.148), ao mesmo tempo ativa e substancial e o que garante a
participação do sonhador de uma força fecunda, renovadora. O sonho de limpeza e
purificação surge, também, para Halla, da capacidade que a água tem de
movimentação.
Referências
Chimica Francisco1
Introdução
Conceito de violência
Violência seja toda a forma que resultaria no mal-estar por parte da pessoa que a
sofreria a partir de outra pessoa que a exerceria.
Assim, importa sobremaneira a violência de âmbito político-social e psicológico
que se verifica em Xefina (1989) e que será o foco de interesse deste artigo.
Robbio, Mattencci e Pasquino (2008, p. 1291-1292) têm como conceito de
Violência o seguinte:
futuro. (...). Isto, porém, não muda o fato de que, por si só,
independentemente dos seus efeitos mediatos, a intervenção física é
Violência e não poder (ROBBIO, MATTENCCI e PASQUINO, 2008, p.
1292).
Este exemplo, por mais pacífico que pareça e pelo seu caráter sócio-político
com fim civilizacional, e com perspectiva de melhoramento da condição de vida do
“moleque velho”, pode constituir uma violência simbólica ao se pretender que o
moleque e sua família deixem seus hábitos e costumes, aquilo que lhes caracteriza,
que é sua essência que é habitar em palhotas para passar a habitar numa casa de
alvenaria. Assim se caracterizou o sistema colonial português que, de forma violenta se
impôs nas colônias, violentando os hábitos e costumes das populações, profanando os
mais sagrados ritos, tradições e modus vivendi de todo um povo, tudo em nome da
civilização.
O excerto acima transcrito também pode ilustrar bem a capacidade que o
colonialismo português teve de, a partir de alfabetização de alguns nativos, poder
através destes subjugar seus semelhantes em benefício de sua política administrativa
colonial. De forma indireta, o comandante Vossemecê pretendia dar a entender que só
se torna civilizado aquele que aceita as novas regras de jogo, regras por si impostas,
por exemplo, quem aceita viver na casa de alvenaria, como os furriéis militares, seus
subordinados. Uma boa estratégia de cativar ou alienar as mentes, segundo ilustra a
passagem seguinte dita pelo próprio comandante Vossemecê: “Mas eu não estou dizer
isto para os nossos furriel que estão aqui no meu gabinete, vossemecês são civilizados,
até estudaram até ser furriel (...) estou falar daqueles pé-descalço que anda aí, esses
restera que nem vale nada” (BUCUANE, 1989, p. 40). A palavra “restera” vem reforçar
ainda mais a ideia de subalternidade, daquilo que se encontra em nível mais baixo, na
superfície, que pode ser pisado porque “nem vale nada”.
Pode-se depreender que a alfabetização, a civilização equivaleria a uma posição
de superioridade, a do branco, enquanto o contrário, “restera”, corresponderia à
permanente selvajaria, indigenização, a falta de cultura na perspectiva do colonizador
branco.
Com efeito, a violência, que consiste em isolar o indivíduo do seu convívio com
os demais através de encarceramento no vulgo e sempre lembrado sete-e-meio, era
uma das preferências do comandante Vossemecê, cujas vítimas saíam do cativeiro
assim que ele se lembrasse de tirá-las ou quando cumprida a pena, sobrevivendo
durante os sete dias e meio que simbolizavam a designação “sete-e-meio”, à base de
pão e água. O exemplo a seguir confirma o que foi aludido: “até comandante meaça
mais, diz que se não tem cuidado ainda pode meter no sete-e-meio” (BUCUANE, 1989,
p. 30). Uma ameaça vinda da pessoa do comandante Vossemecê, com todo o
autoritarismo que emana da sua personalidade, torna-se violência contribuindo para
que os seus subordinados, entre o medo e a coragem que um e outro podiam ter,
procurem, de algum modo, vingar-se desse comportamento desumano.
No conto A Estória do Furriel Amadeu (BUCUANE, 1989, p. 25-33), narra-se a
história de um furriel Amadeu, mulato, conotado como um sujeito malandro, um
pervertido sexual pelo seu envolvimento amoroso com quase todas as mulheres da
ilha da Xefina Grande, até mesmo com as prostitutas, sem as pagar como se pode
constatar na citação: “- Diz que era malandro esse furriel Madeu, nenhuma que
escapava, até aquelas puta lá nas palhota, nenhuma se salvou, nem pagava nelas nada,
enganava elas dizer que lhes amava, que não se compra amor, é só dar e receber”
(BUCUANE, 1989, p. 28). Neste seu percurso de “amor sensível”, envolvera-se
intimamente com a filha do comandante Vossemecê, desonrando-a, segundo
testemunha, como se observa na seguinte passagem de um pequeno diálogo entre as
duas personagens-contadores (Alfredo e Jôta), confidentes da obra:
3
Perna-de-galinha refere-se, nesse contexto, a uma arma de tipo pistola.
Referências
Introdução
Definir o que é identidade e o que é cultura não é uma tarefa fácil. A realidade
remete às representações identitárias e ao próprio caráter transversal da cultura, que
perpassa diferentes campos da vida cotidiana. O dinamismo cultural revela que todas
as formas de manifestação da cultura têm vínculos com contextos sócio-históricos,
tendo recíprocas relações com as sociedades de que participam. Não há como pensar
em cultura sem ser levado à análise da forma como a linguagem é produzida e
interpretada em contextos da comunicação midiática corporativa. Essa prática
discursiva revela que a linguagem carrega em si valores e crenças dos ambientes
sociais e corporativos. Este estudo dá ênfase às manifestações culturais
organizacionais e é delimitado à análise do discurso corporativo por meio da
cenografia e do ethos – como imagem de si – apresentados nos sites de duas
instituições bancárias Citibank e Itaú Unibanco.
As manifestações culturais estão repletas de conteúdo e de significado que
instigam à reflexão e ao entendimento dos sentidos que ordenam as pessoas, tanto no
convívio social como no empresarial. Nessa linha de pensamento, é possível atender
ao objetivo do presente estudo, que visa compreender e mostrar como as
manifestações culturais e a identidade corporativa são reveladas no discurso
empresarial e apresentadas em documentos de circulação externa de instituições
financeiras, por meio de cenografias construídas no contexto da comunicação
organizacional.
A questão norteadora desta pesquisa é o fato de o discurso institucional
relacionado às políticas de gestão e perfil de pessoas revelar traços da cultura
organizacional e da identidade corporativa de instituições bancárias, que são
representados mediante cenografias das quais emergem imagens de si – o ethos
discursivo. Desse modo, este trabalho contribui para o entendimento dos princípios
1
Mestranda em Processos e Manifestações Culturais, Universidade Feevale.
E-mail: elianedavila@yahoo.com
que norteiam a construção da imagem de si, o ethos discursivo dos bancos Citibank e o
Itaú Unibanco. O objetivo é analisar os discursos desses agentes, em contextos
comunicacionais, que contribuem para a compreensão da cenografia e do ethos
discursivo corporativo, correlacionando a cultura organizacional e a construção da
identidade corporativa, no que diz respeito ao perfil profissional idealizado por essas
empresas.
Para compor os estudos, utilizam-se os ensinamentos de Geertz (2008), Morgan
(1996), Freitas (1991) e Schein (2009). O marco teórico principal de análise do discurso
é o da escola francesa, em especial de Dominique Maingueneau (1997, 2008) e Patrick
Charaudeau (2008, 2009). A metodologia utilizada é de uma pesquisa exploratória,
com abordagem qualitativa, mediante estudo de casos múltiplos. A análise das
informações direciona a resultados parciais da pesquisa: o ethos discursivo, como
imagem de si, é apoiado em cenografias enunciativas que auxiliam na compreensão de
discursos organizacionais, os quais revelam aspectos da identidade corporativa e o
perfil ideal de funcionários para trabalhar nas instituições analisada
As seções estão assim dispostas: primeiramente, um espaço dedicado às
questões de cultura organizacional e identidade. Na seção seguinte, apresentam-se
reflexões sobre o ato de linguagem. Na próxima seção abordam-se questões sobre a
cenografia e o ethos corporativo. Segue-se com as questões metodológicas e a seção
de resultados de cada caso em cada categoria selecionada; ao final, faz-se uma seção
de síntese das análises das duas instituições objetos de análise deste estudo.
2011, p. 5).
Para melhor entendimento, esclarece-se que a cena de enunciação é composta
por três cenas: englobante, genérica e a cenografia. A cena englobante atribui ao
discurso um estatuto pragmático. A cena genérica é a do contrato associado a um
gênero, como editorial, sermão, guia turís co, consulta médica etc. (MAIN UENEAU,
2013). ode-se dizer que “a cenogra a, com o ethos da qual ela par cipa, implica um
processo de enlaçamento desde sua emerg ncia, a fala é carregada de certo ethos,
que, de fato, se valida progressivamente por meio da pr pria enunciaç o […] ela
legitima o discurso” (MAIN UENEAU, 2008, p. 71). A constituiç o do ethos, segundo
Maingueneau (2011), relata um ponto de vista pré-discursivo desse mesmo ethos, que
trabalha como uma âncora do discurso. Articular o ethos à enunciação permite
diferenciar o ethos dito do ethos mostrado. O ethos é resultante de diversas
articulações entre os elementos do ethos pré-discursivo, do ethos discursivo, do ethos
dito, do ethos mostrado. Maingueneau (2011) acrescenta que, nesse espaço subjetivo,
encarnado, o “fiador” do discurso é construído a partir do processo de incorporaç o. O
“mundo ético” regula as representações socioculturais e a instância sub etiva n o é
percebida apenas como um estatuto, mas como uma “voz” associada a um “corpo
enunciador”.
O enunciador aciona os estereótipos, valores, princípios, um imaginário que
pode ser coletivo ou social, elevando o percentual de possibilidade de aderência do
enunciatário. Considera-se, a partir disso, que esses valores, princípios e o imaginário
est o relacionados à cultura organizacional, pois “a construç o discursiva de uma
imagem de si é suscetível de conferir ao orador sua autoridade, isto é, o poder de
influir nas opiniões e modelar atitudes” (AMOSSY, 2008, p. 142). O ethos permite
entrar em contato com a imagem do fiador que, por meio de seu dizer, legitima a si
próprio uma identidade equivalente ao mundo que está construindo em seu
enunciado. Nesse particular, este estudo, considerando a identidade corporativa,
possibilita a reflexão sobre qual tipo de perfil funcional os agentes financeiros
idealizam e selecionam para suas instituições. A seguir é abordada a questão
metodológica deste trabalho.
Metodologia
Resultados e análise
segmento, que está repleta de oportunidades para aqueles que querem fazer parte de
um banco global e sólido. A comunicação interpela o coenunciador a uma visão de
banco em que todos gostariam de trabalhar. Percebe-se, conforme Maingueneau
(2008), que o aspecto relativo ao ethos do banco Citibank permite aos enunciatários
entrar em contato com a imagem do fiador, que por meio do seu dizer, legitima a
identidade da instituição financeira.
pessoas, gosta de trabalhar em time e tem uma postura consultiva. O ethos dito
apresenta-se mediante a ênfase nas pessoas e no ambiente organizacional agradável
para se trabalhar. O ethos mostrado revela uma organização global, com mais de 105
mil funcionários que possui expertise para atender clientes externos e internos com
uma cultura sólida. A comunicação interpela o coenunciador a uma visão de banco em
que todos gostariam de trabalhar. Acredita-se que o ethos (MAINGUENEUAU, 2008) do
banco Itaú Unibanco, a partir das marcas discursivas evidenciadas, seja construído a
partir das representações culturais coletivas e individuais que legitimam o fiador na
enunciação e permitem a possibilidade de aderência do enunciatário ao discurso.
Depreende-se, em síntese, que as análises dos discursos nos sites das duas
instituições apresentam as informações constantes no Quadro 1, mediante os recortes
discursivos de textos selecionados nesse estudo.
.
Quadro 1- Síntese dos resultados do banco Citibank e Itaú Unibanco
CITIBANK ITAÚ UNIBANCO
RESUMO
Manutenção da cultura organizacional a partir de
Empresa com marca global e fins lucrativos,
dez atributos do nosso jeito de fazer.
CULTURA E mas que serve à sociedade e às nações.
Principal ativo do banco na comunicação
IDENTIDADE Valorização de aspectos da solidez empresarial.
institucional são as pessoas.
Identificação dos espaços sociais e de fala. Identificação dos espaços sociais e de fala.
EUc banco Citibank; EUe representação EUc banco Itaú Unibanco; EUe representação
ATO DE
discursiva do banco – ser de fala; TUd ser de discursiva do banco – ser de fala; TUd ser de fala
LINGUAGEM
fala idealizado – ser de fala; TUi, leitores ou idealizado – ser de fala; TUi, leitores ou possíveis
possíveis funcionários do banco. funcionários do banco.
Empresa agradável de se trabalhar, com uma
Banco sólido, global preocupado com seus
equipe unida e uma cultura organizacional
clientes, funcionários e stakeholders.
bastante sólida.
Ethos dito: banco sólido, tradicional, com
Ethos dito: apresenta-se mediante a ênfase nas
excelência no mercado global e ainda apoia a
pessoas e no ambiente organizacional agradável
diversidade cultural e a inclusão social.
CENOGRAFIA para se trabalhar.
Ethos mostrado: organização líder no
E ETHOS Ethos mostrado: organização global, com mais de
segmento que está repleta de oportunidades
105 mil funcionários que possui expertise para
para aqueles que querem fazer parte de um
atender clientes externos e internos com uma
banco global e sólido.
cultura sólida.
Visão de banco em que todos gostariam de
Visão de banco em que todos gostariam de
trabalhar.
trabalhar
O funcionário idealizado do banco deve ter O funcionário idealizado tem um perfil interessado,
PERFIL perfil de liderança e criatividade, procurando inventivo, imprevisível, gosta de pessoas, gosta de
FUNCIONAL DOS fazer uma carreira profissional na instituição trabalhar em time e tem uma postura consultiva.
BANCOS
Considerações finais
Referências
AMOSSY, Ruth. Da noção retórica de ethos à análise do discurso. In: AMOSSY, Ruth
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2008.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução: Maria Ermantina Galvão;
revisão da tradução Marina Appenzeller. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
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CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso: modos de organização. 2. ed. São Paulo,
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______. Discurso das mídias. São Paulo, SP: Contexto, 2009.
CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso.
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Programa de s- raduaç o em Letras da Universidade de Passo Fundo, v. 7, n. 2,
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GEERTZ, C. . Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos,
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sobre a organização. 2. ed. rev. e ampl. São Caetano: Difusão, 2011.
MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise de discurso. 3. ed.
Campinas: Cortez, 1997.
______. Cenas da . Organizaç o de Sírio Possenti e Maria Cecilia érez de
Introdução
1
Mestranda em Letras-UNISC e Advogada Pós Graduada-UFRGS. Country Representative for “Clarity
International”. Tradutora jurídica e Professora de ESL. UNISC-Bolsista Capes.
E-mail: elisacorrea@mx2.unisc.br
2
PhD em Letras-UCPel e Doutorado Sanduíche Univ. De Bath-UK. Professora da UNIVALI.
E-mail: cheemann@univali.br
5
Da Nashville Hispanic Chamber of Commerce, a autora Elisa recebeu o troféu “President’s Champion of
Excellence Award” pelos trabalhos de tradução realizados entre inglês e português e inglês e espanhol
com relação aos contratos e reuniões jurídicas das empresas membros da Câmara do Comércio (legal
English) para quem ela prestava serviços.
6
Fato notório em revistas como The Economist, jornais como The New York Times, Washington Post etc.
7
Nos EUA – e falamos das mais de trinta Fortune 500 às quais prestamos serviços – não há licença
o
maternidade: o tempo que a mãe falta ao trabalho não recebe. Não há 13 salário, nem FGTS, nem
indenização. Não há férias de 30 dias (salvo raras exceções, após senioridade na empresa). A proteção
ao consumidor não é tão tuitiva (protetiva) como no Brasil. Entre outras coisas. Isso, dizem os
economistas, é o que alavanca a economia deles.
8
Outra razão para a clareza no inglês jurídico, enfrentamos frequentemente entre 2014 e 2015.
Advogados norteamericanos atendem a seus clientes com filial no Brasil da mesma forma como estão
acostumados (i.e., de acordo com o FRCP – Federal Rules of Civil Procedure). Por exemplo, enviam uma
carta ao advogado brasileiro da parte contrária, no Brasil, para “citá-la”, por carta simples. Ainda que
válido nos EUA, esse procedimento é nulo no Brasil. Vale dizer, nos EUA qualquer um pode proceder ao
“Summons” (Chamamento ao Processo), mais especificamente, à citação (“process serving”). No Brasil
isso é ato privativo do Oficial de Justiça, funcionário público concursado. A respeito, escrevemos o artigo
“Summons in Brazil 101 for American Lawyers” no website de “networking” Linkedin.
9
Livre tradução, com comentários, da frase (…) “Law books are the largest body of poorly written
literature ever created by the human race” (LINDSEY, 1990, at 2).
Conforme as obras jurídicas dos últimos vinte ou trinta anos, a tendência antes
prevalente do uso do “legalese” arcaico parece sofrer limitações na atualidade em
termos de redação jurídica13, visto não ser inclusiva, para que todos possam ler,
entender e livremente contratar.
Consoante Kimble14 (1994-1995, p. 52)15, ao contrário do que dizem os que são
contra a “clareza da linguagem jurídica”, linguagem simples não significa linguagem
“anti literária, anti intelectual, não sofisticada, simplória, feia, infantil ou vulgar”. A
razão de ser da linguagem simples tem relação, nada mais nada menos, com a
comunicação clara e eficaz. E, por isso, requer adotar uma nova atitude e uma
mudança fundamental que quebra com as práticas do passado16. Kimble possui
inúmeras publicações, as quais tornaram “Clarity International” uma organização
conhecida mundialmente17.
O movimento pela clareza e simplicidade da linguagem aparenta difundir-se
proporcionalmente ao número de organizações e autores que trabalham com o tema e
que parece multiplicar-se diariamente tais como o “Center for Plain Language”, a
“PLAIN - Plain Language Association International”, a “Plain Language”, do governo
norte americano, a Plain Language Network18, entre outras.
13
De acordo com a ideia, Freedman (2007), Dickerson (1980, 1986, 1986b), Garner (2013), Gémar
(2005) e Hathaway (2015). Também no mesmo sentido, Jenkins (2006), Kimble (2000, 2006 e 2014),
Joseph (2015), Mellinkoff (1963), Wydick (2005) e Martineau (1996). Alguns destes são linguistas e
juristas.
14
Dr. Joseph Kimble é Professor Emeritus da Cooley Law School da Western Michigan University, autor
de várias obras sobre o tema. Um dos maiores ícones defensores da Clarity na atualidade, é aclamado e
premiado pela Bar Association (Ordem dos Advogados) e outras entidades dos EUA e do mundo.
Membro, ex-presidente e fundador da organização “Clarity International”, membro da PLAIN e outras
ONGs (Organizações Não Governamentais) do ramo, que se reúnem em congressos mundiais
periodicamente.
15
Esta obra de Kimble (1994-1995, p.52.) também foi publicada online pela “PLAIN – Plain Language
Association International”. Disponível em: www.plainlanguagenetwork.org/kimble/critics.html.
16
Tradução livre de: (...) “Plain language is not anti literary, anti intellectual, unsophisticated, drab, ugly,
babyish, or base” (...) “Plain language has to do with clear and effective communication -- nothing more
or less. (...) It does, though, signify a new attitude and a fundamental change from past practices (...)”
(Op. Cit p. 52).
17
Joh Kirby, da Austrália, é a atual Presidente Mundial da Clarity International. Enquanto Kimble
(supramencionado) é ex-presidente e atual tesoureiro. Entidade encontrável em: www.clarity-
international.net.
18
Encontráveis, respectivamente, em www.CenterForPlainLanguage.org, www.PLAIN2015.ie,
www.PlainLanguage.gov, www.plainlanguagenetwork.org etc.
O linguista e jurista David Mellinkoff é visto por parte dos profissionais da área
como o “pai” da Linguagem Clara (“Clarity”) e, antes disto, da Linguagem Jurídica nos
EUA. Para quem não prescinde de uma definição formal de clareza no inglês jurídico, é
nele que encontrarão uma das primeiras definições publicadas do que é e do que não
é. Mellinkoff (2004, p. 24) rejeita a linguagem arcaica – que considera sem clareza –
atribuindo-lhe as características de “wordy” (prolixa, com palavras em excesso), “não
clara”, “pomposa” e “aborrecedora”.
Vejamos o verbete da definição de Mellinkoff (1992, p.83) para “Clarity”
(clareza):
Clear. Clearly. Clearly, this adjective and adverb lack clarity. <‘I want
to make that perfectly clear.’> In a Micawberish hope that something
clearer will turn up, the law often teams them with other criteria,
e.g., clear and concise, clear and conspicuous, clearly and manifestly.
Yet lack of clarity, once recognized, need not be fatal. Where
flexibility is called for, clear and clearly have a legal role. (…)
1. (...) Clear nudges in the direction of clarity, as do its substitutes
intelligible, [lain, simple, understandable. <‘Written in a clear and
coherent manner using words with common and everyday
meanings’- NY Plain Language Law.> The essential in clarifying clear
and clearly, as well as their lack of independent clarity, is the
question ‘Clear to whom?’ <This instruction may have been clear to
lawyers, but it certainly wasn’t clear to the jury.>
2. Having a high degree of certainty (but not too high). a. Related to
evidence and proof - clear and compelling, clear and convincing:
weightier than the ordinary preponderance, though not necessarily
persuasive beyond reasonable doubt.” (…)19
19
Livre tradução do verbete e subverbetes do dicionário de Mellinkoff (falecido no fim do século XX),
sob análise: "Claro. Claramente. Claramente, este adjetivo e advérbio carecem de clareza. <'Eu quero
deixar isto perfeitamente claro."> Em uma esperança estilo Micawber (personagem de Charles Dickens
que foi acusado, mas era inocente) de que algo mais claro aparecerá, a lei muitas vezes se utiliza de
critérios adicionais, e.g., claro e conciso, claro e visível, clara e manifestamente. No entanto, a falta de
clareza, uma vez reconhecida, não necessita ser fatal. Onde for necessário flexibilidade, 'claro' e
'claramente' desempenham um papel jurídico. (...)
1. (...) 'Claro' se aproxima de 'clareza', assim como seus substitutos 'inteligível', 'descomplicado',
'simples', 'compreensível'. <(clareza é o que está) 'Escrito de forma clara e coerente usando palavras
com significados comuns e cotidianos.' - Lei da Linguagem Simples de Nova Iorque.> O essencial no
esclarecimento de 'claro' e 'claramente', bem como a sua falta de clareza independente, é fazer a
pergunta 'Claro para quem?' (Em relação às instruções dadas ao júri antes de decidir:) <Esta instrução
pode ter sido clara para advogados, mas certamente não o foi claro para o júri.>.
2. dotado de um grau de certeza bem alto (mas não demasiado alto). a. com relação a provas
processuais - claro e persuasivo, claro e convincente: mais forte do que a média preponderante, embora
não necessariamente convincente para além de qualquer dúvida razoável"(...) (sinais e caracteres
alfanuméricos originais mantidos).
“8. Indenização: (c) Prontamente após recebimento, pela parte indenizada, sob a égide
da Seção 1(g), 8(a) ou 8(b) em epígrafe, de notificação de propositura de qualquer
ação judicial, tal parte indenizada deverá24, se uma demanda a respeito do retro
mencionado for ser proposta contra uma parte indenizante sob a tutela da referida
seção, dar notificação à parte indenizadora quanto à propositura desta, mas a falta de
tal notificação à parte indenizadora não deverá isentá-la de qualquer responsabilidade
que possa porventura ter, de indenizar a qualquer parte indenizada, exceto até ao
limite de que a parte indenizadora possa provar que a defesa quanto à referida ação
tenha sido, destarte, prejudicada (...)”25.
the extent the indemnifying party demonstrates that the defense of such action is prejudiced thereby. If
any (...)"
24
Note-se as palavras que costumam apresentar problemas de compreensão e que, por isto, são
normalmente editadas. O vocábulo “deverá”, no original, é “shall”. Ressalte-se que no português usa-se
a palavra “deve” para designar tanto o termo “shall” (dotado de uma conotação mais cogente) como
para o termo “should” (cuja conotação é de mera faculdade, possibilidade), embora este último, em
português, normalmente apareça no pretérito imperfeito: “deveria”. Nota de Daly, op. cit.
25
Na exposição dos textos dos estudos de casos, ‘antes’ e ‘depois’ da aplicação das regras de clareza,
estaremos, excepcionalmente, e apenas quando necessário, quebrando as regras de formatação
prescritas pelas normas do presente trabalho acadêmico a fim de evidenciar o contraste entre o ‘antes’
e o ‘depois’ tal qual demonstrado no exemplo original. Dentre as regras de clareza o uso do espaço em
branco é crucial para uma melhor visualização, leitura e compreensão, conforme se constata lendo as
obras referidas.
26
No original, em inglês: “8.3 Legal Action Against Indemnified Party.
(A) Notice of the Action
A party that seeks indemnity under paragraph 1.7, 8.1 or 8.2 must promptly give the other
party notice of any legal action. But a delay in notice does not relieve an indemnifying party of
any liability to an indemnified party, except to the extent that the indemnifying party shows
that the delay prejudiced the defense of the action.
(B) Participating in or Assuming the Defense (...) ".
“8. Indenização
8.3 Ação Legal Contra a Parte Indenizada.
(A) Notificação (de Início da) Ação: A parte que buscar indenização sob o parágrafo
1.7, 8.1 ou 8.2 deve prontamente dar à outra parte notificação sobre qualquer ação
jurídica. Mas o atraso na notificação não libera a parte indenizante de qualquer
responsabilidade para com a parte indenizada, salvo se a parte indenizante provar
que tal demora prejudicou a possibilidade de defesa contra a ação.
Sem dúvida, o “depois” é mais agradável de ler, fácil de entender. Após ler o
‘antes’, evidencia-se por que Daly chamou tal cláusula de “infernal”. Ele passou horas
editando-a. Vejamos outros exemplos que, por limitação de espaço, serão mais
breves27:
27
Os dois exemplos abaixo encontram-se no www.plainlaguage.gov, sendo o primeiro do Departamento
de Saúde e Serviços Humanos e o segundo da Diretiva para a Pesca do Governo Americano. Alguns são
também encontrados no material disponível no sítio da American Society of Legal Writers.
Um dos objetivos pelos quais as leis são publicadas é para dar conhecimento ao
público a respeito de ato considerado como proibido pela lei (TIERSMA, 1999, p. 205).
Por isto a linguagem legal deve ser acessível ao público, especialmente se
considerarmos a tendência nacional e as políticas públicas pela ampla inclusão social.
Os contratos de massa fazem consumidores novos todos os dias. Esses, às
vezes, nem sabem que acabam de contratar um serviço por clicar no botão errado de
mensagem estilo “pop-up”29 em seu telefone celular, computador, tablete, nos
serviços de televisão, internet, entre outros. Desde a receita federal, em cujo sítio 30 há
ferramentas para fazer declaração de imposto de renda, passando por websites de
educação31, saúde32, notícias33, Correios34 e muitos outros serviços e produtos
oferecidos por empresas privadas ou públicas, do governo35 ou não36, ONGs37, e.g.,
28
Em livre tradução, “nenhuma pessoa deve obstruir esta via de passagem”.
29
Mensagens que aparecem espontaneamente nos telefones celulares e demais aparelhos sem o cliente
haver solicitado.
30
Disponível em www.receita.fazenda.gov.br/PessoaFisica/IRPF/2015/declaracao/download-
programas.htm. Acessado em 15 jul, 2015.
31
Por exemplo, UAB – Universidade Aberta do Brasil – disponível online em:
uab.capes.gov.br/index.php/cursos-274841/cursos-ofertados. Acessado em Abril de 2015.
32
Exemplificação: www.saude.gov.br.
33
Como os sites da BBC, Globo, Terra, Folha de São Paulo, Estadão etc.
34
Que se encontram em www.correios.com.br .
35
Exemplo: Governo Eletrônico: www.governoeletronico.gov.br.
36
Exemplo: CEEE: www.ceee.com.br/ .
37
Exemplo de ONG (Organização Não Governamental): Instituto Sócio Ambiental, em
www.socioambiental.org.
O dispositivo retro determina que seja tornado público, por meio eletrônico,
anualmente, em linguagem acessível ao cidadão um relatório das atividades dos
órgãos públicos, incluindo metas, resultados e óbices à sua obtenção.
Além disto, o Manual de Redação da Presidência da República de 2002 afirma:
“A clareza deve ser a qualidade básica de todo texto oficial39. Texto similar é
encontrado em outras websites e instrumentos legislativos, como o do Manual de
Padronização de Atos Administrativos Normativos, do Senado Federal40. De acordo
com o exposto, parece haver vários estudos, leis e projetos de lei surgindo sobre a
“clarity” (clareza) ou “plain language” (linguagem simples) nos textos de documentos,
jurídicos ou não, físicos ou eletrônicos, expandindo a tendência à previsão legal da
proteção à inclusão social.
38
Disponível para baixar em www.direitodoestado.com.br/leiorganica/anteprojeto.pdf e para visualizar
em ww.planalto.gov.br. Acessado e baixado em 20 de julho de 2015.
39
MENDES, Gilmar Ferreira e FORSTER, Jr., Nestor José. Manual de redação da Presidência da República.
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/manual/manual.htm . Acesso em 20/09/2015.
40
Manual de Padronização de Atos Administrativos Normativos. Diretoria Geral do Senado Federal.
Brasília: Ed. Preliminar, 2012. Disponível em:
www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496338/000960587.pdf?sequence=1. Acesso em:
10/09/2015.
Considerações finais
41
Para que não se omita o tema, vale comentar uma vantagem do ciberespaço em relação ao texto
impresso: aquele pode ser editado com mais facilidade e prontidão do que este. Nesse sentido, ver
Morkes & Nielsen (1998).
Referências
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WYDICK, R. C. Plain English for Lawyers. 5. Ed. Durham (NC): Carolina Academic Press,
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Introdução
1
Licenciada em Comunicação Social, bolsista BPA (PUCRS).
E-mail: ecgsiqueira@gmail.com
2
Doutoranda em Letras, bolsista CAPES (PUCRS).
E-mail: talita.goncalves@acad.pucrs.br
3
Conforme Diamond (2013), essas funções são responsáveis pelo jogo mental que o indivíduo realiza
com suas ideias, tornando possível o pensamento antes da ação, o enfrentamento de desafios
imprevistos, a resistência a tentações e a conservação do foco. Para a autora, dentre as principais
funções executivas encontram-se a inibição, a memória de trabalho e a flexibilidade cognitiva.
que divide os dois tipos de bilinguismo é arbitrária, uma vez que diferentes estudiosos
do tema discordam sobre a idade que definiria se a aquisição das línguas é simultânea
ou sucessiva. Baseada em Grosjean (2008), a autora define o bilinguismo simultâneo
como aquele em que a criança está exposta às duas línguas desde o nascimento,
fazendo uso de ambas regularmente durante a primeira infância, antes mesmo de
ingressar na pré-escola. Assim, a autora exclui da definição de bilinguismo simultâneo
as crianças expostas a duas línguas, mas que produzem apenas em uma delas.
Em termos de nomenclatura, os teóricos também divergem sobre as
classificações das línguas. Uma vez simultâneas, não poderiam ser definidas,
tradicionalmente, como L1 e L2, ou língua materna e segunda língua. Assim, tem-se
utilizado terminologia como Língua A e Língua B ou, ainda, Língua A e Língua α.
Já o conceito de bilinguismo sucessivo está presente nas teorias de aquisição de
linguagem relacionada a diversas idades, não somente à infância. Segundo Li (2013),
enquanto os termos “primeira língua” (L1) e “segunda língua” (L2) não são bem aceitos
no bilinguismo simultâneo, dada sua natureza sincrônica, nos estudos sobre
bilinguismo sucessivo os impasses surgem em relação à aquisição da segunda língua,
principalmente no que diz respeito à idade de aquisição e no impacto que isso traz à
produção do falante. No bilinguismo infantil sucessivo, segundo Wei (2000), o período
sensível para aquisição da segunda língua gira em torno dos cinco anos de idade.
O estudo da consciência metalinguística relacionada ao bilinguismo infantil é de
grande relevância, pois a literatura indica que processos metalinguísticos parecem
desenvolver-se precocemente em crianças bilíngues (BIALYSTOK, 1986, 1993). Essa
hipótese poderia ser explicada pelo uso de dois códigos linguísticos. A criança bilíngue
teria uma noção antecipada sobre a arbitrariedade da língua, porque entenderia que
um objeto do mundo teria uma representação em cada língua. Após essas
considerações breves sobre o tema, apresenta-se o método e, logo após, os resultados
e discussões.
2 Método
3 Resultados e discussão
Considerações finais
Através deste estudo, percebeu-se que não há artigos revisados por pares que
investiguem bilíngues falantes de português brasileiro ou línguas nativas do Brasil,
embora haja estudos desse tema, principalmente no sul do país. Tampouco se
verificaram investigações sul-americanas, sugerindo uma lacuna a ser preenchida por
estudos futuros com as diferentes línguas dessa região e as habilidades
metalinguísticas menos destacadas.
Estudos sobre metalinguagem, sob a perspectiva psicolinguística, são
necessários para identificar as habilidades que são afetadas pelo bilinguismo, pois isso
tem importante implicação na compreensão teórica da estrutura cognitiva e em uma
melhor aplicação prática das duas línguas do bilíngue em programas educacionais. A
partir desta revisão de estudos, espera-se contribuir com a discussão sobre a cognição
bilíngue na infância, com ênfase na questão da existência ou não da vantagem bilíngue
em termos da metalinguagem.
Referências
Emir Rossoni1
O artista, e aqui vamos nos ater a artistas escritores, está inteiramente ligado
ao objeto a que se dedica através de duas pontas. A primeira é o estímulo. A segunda é
o resultado. Muitos buscam esse estímulo através das mais variadas formas. Isso para
se chegar a um resultado mais próximo possível do esperado. Outros apenas seguem o
estímulo, o impulso criador. O resultado é a pura consequência.
Este texto não pretende canonizar uma maneira correta ou encontrar a melhor
forma de se alcançar um fazer literário. Mas servirá como reflexão do que se fez e do
que se vem fazendo nessa área tão fascinante e ao mesmo tempo tão sombria.
Barthes, em O grão da voz, apresenta dez razões para escrever, que cito abaixo:
1
Mestrando em Escrita Criativa, PUCRS, bolsista CAPES.
E-mail: emir.rossoni@acad.pucrs.br
2
BARTHES, Roland. O grão da voz. Lisboa: Edições 70, 1982.
Pretendo discutir o fazer literário. O fazer no sentido mais sujo. Mais operário.
Mais servil. Entre esse fazer, um aspecto que surge com muita significância, gerando
debates, formulando conceitos e incitando opiniões que vão do desconhecimento
sobre o tema a teses como é o caso do livro de José Hidelbrando Dacanal, Oficinas
literárias: fraude ou negócio sério?, estão exatamente as oficinas literárias. Um
estímulo à criação? Um fomento à leitura? Elas têm surgido com extremo vigor,
principalmente na cidade de Porto Alegre, e vêm se ramificando pelo Brasil.
Retomando Barthes, que, em suas dez razões, afirma que escrever não é uma
atividade normativa nem científica. E complementa: “não somos obrigados a imaginar
a escrita de amanhã... isso é revolucionário porque não está ligado a outro regime
político, porém a ‘uma outra maneira de sentir, uma outra maneira de pensar’.”
Mas por não sermos obrigados a imaginar a escrita de amanhã não significa que
não o façamos. Podemos imaginar como ela será produzida. E como chegará à outra
ponta. Ao leitor.
No artigo Criação literária na idade digital, Carlos Reis nos diz o seguinte:
Carlos Reis prossegue em seu artigo fazendo uma análise do objeto livro.
Analisa seu formato e, é claro, a dimensão econômica que isso começa a projetar.
O fato literário passou a ser uma mercadoria e o seu autor, para além
da responsabilidade estético-cultural que lhe era inerente, reclamou
para si um direito de propriedade, compartilhada ou discutida com
outros agentes: editor, livreiro, distribuidor, etc.4
Mas se este texto pretende discutir a forma como escreve, por que motivo
estaria eu agora falando de negócio do livro, da era digital e do jeito como as pessoas
leem, ou do jeito que não leem, que também vem ao caso.
Trago essa discussão, porque na forma como se produz literatura estão as
oficinas literárias. E elas estão no centro de uma discussão que envolve o negócio e o
3
REIS, Carlos. A oficina do escritor e a construção da memória: problemas éticos e responsabilidade
cultural. Cadernos do Centro de Pesquisas Literárias da PUCRS, Porto Alegre, v.4, n.1, p. 10-16, 1998.
4
Idem.
criar. Desse modo, acho interessantíssima a reflexão de Carlos Reis, no mesmo artigo,
que transcrevo abaixo:
Como elucida o texto, a tecnologia esteve, está e sempre estará ligada à criação
literária. Se não à criação propriamente dita, ao fazer literário. E já que o fazer
também é o ato de ler, Reis fala da circulação de textos, que com a era digital, tem se
dado com muita facilidade, para o bem e para o mal. Segundo ele, a circulação em
redes é ilimitada, em escala universal, sem limites espaciais e em tempo real.
Se parte do discutido acima é o processamento do texto, cito aqui a oficina
literária como um processamento de ideias. Ideias que se discutem, formulam-se,
misturam-se e, de certo modo, dissipam-se. De novo, para o bem e para o mal.
Ernest Hemingway, Prêmio Nobel de Literatura de 1954, tinha fama de escrever
em pé. No livro Escritores em ação: as famosas entrevistas à Paris Review, o autor
afirma escrever todas as manhãs. Isso por uma razão muito simples: o clima era mais
fresco, não havia barulho e a entrega ao trabalho era muito maior.
5
Ibidem.
E a disciplina em Hemingway era levada tão a sério que ele cita, na mesma
entrevista:
Leio o que escrevo e, como sempre paro quando sei o que irá
acontecer a seguir, parto do ponto em que parei. Escrevo até um
ponto em que ainda disponho de “sumo” e sei o que acontecerá em
seguida; então paro e procuro viver até o dia seguinte, quando me
entrego de novo à coisa.6
6
HEMINGWAY, Ernest. Escritores em ação: as famosas entrevistas à Paris Review. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1968.
7
DACANAL, José Hildebrando. Oficinas literárias: fraude ou negócio sério? Porto Alegre: SOLES, 2009,
p.17.
A primeira falácia
Coloca à venda um produto que nunca existiu, não existe nem
existirá enquanto a natureza humana for a mesma.
A segunda falácia
Não fornece o único produto autêntico que pode ser vendido por
quem dele dispuser e adquirido por quem dele carecer: o
conhecimento profundo da língua – no caso, da Língua Portuguesa –
e a leitura diuturna e a análise exaustiva das obras de seus peritos
mais sofisticados, isto é, os grandes clássicos.8
8
Ibidem, p. 20.
9
Idem, p. 22.
10
LEITE, D.M.; LEITE, R.M. (Orgs.). Psicologia e Literatura. Ed. rev. São Paulo: UNESP, 2002.
11
DACANAL, José Hidelbrando, op. cit., p. 27.
O quarto e último fator na avaliação de José Hildebrando Dacanal seria por ele
chamado de Causas histórico-literárias, sobre as quais diz o seguinte:
14
GONZAGA, Pedro. Em entrevista ao autor deste artigo. 2015.
15
NIETO, Ramón. A inspiração. In: ______. O oficio de escrever. São Paulo: Angra, 2001.
Pedro também menciona que o prazer da escrita, para ele, está na escrita. O
resultado final seria prazeroso num sentido de reconhecimento, de vaidade. “Mas
nada pode superar os instantes em que se está mergulhado nesse lugar onde o tempo
e a própria realidade transcorrem de maneira diferente”. Segundo ele, escrever é
conceber mundos. E isso, por si só, deveria fazer com que todos pudessem ter um
mínimo treinamento para ter esse prazer. Como tocar um instrumento pode trazer,
mesmo ao músico que nunca se apresentará. E segue: “Tento escrever alguma coisa
todos os dias. Achar alguma coisa que preste é, para mim, uma questão de
probabilidade. Quanto mais se escreve, mais chance tem de surgir alguma coisa boa
entre tantas coisas dispensáveis”. Então me lembrei de Ramon Nieto, que listou doze
tipos de estímulos, que iam dos espontâneos aos provocados. Não citei Ramon Nieto
ou sua lista de estímulos a Pedro Gonzaga. Mas provoquei-o sobre sua forma de
libertação.
E sobre as influências:
16
Idem.
17
Idem.
Sobre o ato de reescrever levando em conta leituras críticas, Pedro diz que
submete seus originais a uns três amigos que são leitores diferentes entre si. Diz saber
mais ou menos o que esperar de suas leituras. Assim, pode ver, por suas reações, se
alcançou aquilo que pretendia ou não, e ainda se seria possível ter chegado aonde
nem ele mesmo imaginara.
Olhando para o mercado literário, instiguei Pedro a responder se criava
pensando em atingir algum público específico ou por algum objetivo ou se escrevia
pela arte de escrever. “Penso em atingir leitores que estejam dispostos a sair um
pouco de seus centros de leitura, que estejam dispostos a melhorar o que escrevo.
Assim, meus leitores são sempre pessoas mais inteligentes do que eu. Escrever por
escrever sempre me pareceu meio frívolo”.
Para ir um pouco mais longe, e lembrando Barthes, em O rumor da língua, quis
saber de Pedro Gonzaga sobre este tema, um pouco mais acadêmico. E perguntei se
ele achava que o autor havia morrido. Se o importante era a obra. Ou hoje o autor
deve ser um ator com suas performances.
Acho que cada autor deve encontrar seu caminho, de acordo com
suas convicções. Quanto à morte do autor, ou da obra, isso é tralha
acadêmica que acadêmicos repetem por preguiça ou má-fé. De que
se possa encontrar belas ideias sobre isso em Barthes e Derrida não
deriva que seja assim na prática. As livrarias estão cheias de autores e
de obras de qualidade, escritas depois desses decretos bizantinos.19
18
Ibidem.
19
Idem.
A forma criativa de seus alunos muda conforme o andamento das aulas? “Creio
que eles vão descobrindo o tipo de escritores que são. Essa é a função de uma oficina,
permitir essa descoberta, então é natural que mudem”.22
Quais as semelhanças entre os alunos? E as principais diferenças? “Não vejo
muitas semelhanças, senão de interesses. São pessoas diferentes, que escrevem
diferente. Sempre acho que ensinar as técnicas, centrar o trabalho no aprendizado das
técnicas é uma maneira de respeitar essas diferenças”.23
Faulkner disse que o jovem escritor só aprende pelos próprios erros. Você
concorda? Por quê?
20
DACANAL, José Hidelbrando, op. cit, p. 59
21
GONZAGA, Pedro, op. cit.
22
Idem.
23
Idem.
Acho que o que ele quis dizer é que não adianta criticar os erros dos
outros, é preciso, como se fosse um músico no palco, tocar seu
instrumento. E quando toca se erra. Depois se pratica e se acerta, ou
transforma o erro em virtude.24
O erro é uma expressão que tem me fascinado. E o contato duplo com ela nas
últimas semanas me deu uma impressão, mesmo que possivelmente errada, de estar
no caminho certo. A possibilidade de transformar o erro em acerto, segundo Pedro
Gonzaga, é para mim libertadora. Então, tenho uma liberdade ao quadrado, pois
poucos dias antes, ouvira Bernardo Carvalho, em seu curso Desconfie de mim, no
espaço Delfos da PUCRS, mencionar que “a boa literatura é o entendimento dos seus
defeitos”.
Já o livro Oficinas literárias: fraude ou negócio sério?, de J. H. Dacanal, provoca,
num primeiro momento, uma discussão pertinente. No entanto, os argumentos ali
contidos tendem a ser incompletos, o que limita a discussão. Dacanal analisa a oficina
e sua produção literária de dentro para dentro. No momento em que fala de uma
padronização, não estuda a literatura como um todo, mas assim mesmo afirma que a
produção literária da oficina é padronizada. Estamos teorizando em cima da teoria.
Produzindo suposições sem conferir a prática. Talvez nos falte rever as razões de
Barthes. Talvez seja plausível estudar Ramon Nieto, mas também conectar seus
estímulos a obras literárias. Afinal, no começo, no meio e no fim disso tudo, o que nos
interessa é a literatura. E ela simplesmente não existe se faltarem os livros. Talvez
devêssemos tirar o rótulo de produção da oficina e analisar a literatura
contemporânea como um todo. A literatura é como a vida, e é composta de infinitas
redes, vivências e projeções. Quem sabe, com essa visão de conjunto, e somente com
ela, pudéssemos fazer a pergunta:
A literatura contemporânea está padronizada?
Referências
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BARTHES, Roland. O rumor da Língua. Trad. Mario Laranjeira. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
DACANAL, José Hildebrando. Oficinas literárias: fraude ou negócio sério? Porto Alegre:
SOLES, 2009.
GONZAGA, Pedro. Em entrevista ao autor. 2015.
24
Idem.
Eneida A. Mader1
1
Doutoranda em Teoria da Literatura na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, bolsista
CAPES.
E-mail: eneida.mader@gmail.com
guiados pelo instinto, vão para um lugar que só eles conhecem, no qual há abundância
de água, vegetação tenra, e onde estão os ossos dos antepassados. Ali, dispostos sobre
uma extensão de vários hectares, os paquidermes se deitariam para dormir o último
sono. Em geral, seriam esses recantos que acolheriam as manadas de paquidermes
velhos e doentes.
Essa simbologia, entre a lenda africana do espaço-santuário dos elefantes e a
praça na qual se encontram os personagens do conto, é empregada para aproximar as
criaturas humanas (os bêbados) e as humanizadas (os elefantes) que, embora oriundas
de espécies diferentes, encontram-se em igualdade de condições existenciais no
espaço ficcional: estão solidárias frente à morte. Dessa forma, elefantes e bêbados,
ambos se encontram relegados a um espaço reduzido, porém solidário, onde não
poderão perturbar o resto do mundo, uma vez que o mundo ao redor nem se importa
com a existência dos ‘pestilentos’.
Na passagem “quando ronca a barriga, a ponto de perturbar a sesta, saem do
abrigo e, arrastando os pesados pés, atiram-se à luta pela vida” (TREVISAN, 2009, p.
15), o conto remete às imagens trazidas pela lenda em que os elefantes idosos e
doentes, ao se tornarem mais lentos e se arrastarem, com isso atrasam toda a manada
em suas longas jornadas.
Mesmo velhos e doentes, os elefantes possuem o instinto de buscar um local
adequado para passar o final da sua existência e ali conviver com os animais de sua
espécie em igualdade de condições. Nesse sentido, o mesmo instinto de sobrevivência
dos bêbados de Trevisan está presente naquele da lenda dos elefantes: a luta solidária
pela sobrevida ou pela vida em defesa da morte.
Há muitos diálogos possíveis entre o conto “Cemitério de elefantes” com as
teorias da alteridade e identidade, pois a narrativa contemporânea dialoga com outras
linguagens artísticas e com outras áreas do saber. Desse modo, pretende-se destacar
também nesta pesquisa os aspectos que aproximam a obra de Dalton Trevisan de
teorias que tratam da alteridade e identidade, e que singularizam o autor no
panorama literário brasileiro.
O texto literário de Trevisan, ao abordar olhares oblíquos, trazendo para o
centro do espaço narrativo as representações de sujeitos que estão à margem da
sociedade, possibilita, assim, uma análise à luz de teorias filosóficas e culturais.
Uma vez que o conto focaliza os ‘bêbados’ como personagens num espaço
público – seres rotulados, posicionados à margem de um grupo de referência, que os
condena e despreza, é possível aproximar essa narrativa do estudo sociossemiótico
que Eric Landowski (2002) estabelece em Presenças do Outro.
encontrar um dia seu lugar admitido entre aqueles mesmos com que sua estranheza
estabelece contradição. E Landowski questiona-se: “eles conseguirão um espaço ‘entre
nós?’” (LANDOWSKI, 2002, p. 46).
É na metrópole conturbada que Trevisan reconstrói histórias próprias e alheias,
de personagens que representam os excluídos da sociedade, e que são transformados
pelo estranhamento da linguagem em “animais sagrados”, “elefantes malferidos” ao
se comparar homens bêbados com elefantes à beira da morte.
Para Maria Zilda Cury, “tal estranhamento, no entanto, não tira destes textos
um profundo sentido político e de reflexão sobre a realidade social urbana brasileira”
(CURY, 2007, p. 17).
Através desse espaço social e intersubjetivo proporcionado pela ficção do conto
de Trevisan, é possível aproximar o leitor dos problemas com os quais “o Outro é
confrontado enquanto sujeito coletivo diante do grupo dominante, este último
ocupando uma posição ‘espacial’ definida como centro de referência” (LANDOWSKI,
2009, p. 61).
O conto de Trevisan estabelece essa pertença identitária entre homens e
elefantes em condição terminal. Nessa microesfera social, os bêbados da metrópole de
Trevisan estão às margens e, nessa prática da marginalidade, o espaço animalesco dos
elefantes torna-se humanizado pela igualdade de condições que vivenciam os homens
velhos e bêbados. Enquanto experiência de uma alteridade concretamente vivida – os
bêbados e os elefantes à deriva –, pode-se remeter a uma espacialidade outra, a uma
topografia e a uma cinética identitárias que apresentam um grau maior de
complexidade.
Analisado sob o prisma da semiótica das relações intersubjetivas, o espaço
social que o narrador adota em “Cemitério de elefantes” não está distante
espacialmente de um ‘Nós’ de referência; ao contrário, é um local muito próximo,
situado no coração da metrópole – a praça –, um ponto em que normalmente ocorrem
os encontros. É nessa encruzilhada de todas as mundanidades sociais, artísticas e
culturais de qualquer parte do mundo que os ‘marginalizados’ vivenciam o mundo ao
seu redor.
Para Landowski,
Ali naquela praça do conto, cruzam-se diariamente universos que a priori não
se esperaria ver superpostos; de um lado, os pescadores e, de outro, os bêbados que
estão à deriva.
De um lado da margem do rio, encontra-se uma sociedade considerada ‘grupo
de referência’; do outro lado, vindo não se sabe bem de onde, tudo o que de
improvável de ser recuperado e que o Terceiro Mundo deposita em torno da capital: o
seu ‘entulho’ humano. Enquanto alguns atravessam a praça, os bêbados a ocupam,
formando uma comunidade ao ar livre. E de que modo eles serão rotulados? De
acordo com o microuniverso social, definido por Landowski, os bêbados não se
enquadrariam em nenhuma das qualificações – não são ursos, não são esnobes, nem
dândis, nem camaleões. É como se esses seres marginalizados “não jogassem o jogo
social” (LANDOWSKI, 2002, p. 62).
O espaço urbano do conto de Trevisan é desfigurado pelos “invasores” – os
bêbados. Eles perturbam os princípios de uma “sadia geometria urbana”, que foi
construída, muitas vezes, com o maior cuidado e transformado em verdadeiros
espaços-vitrinas, em que a cidade só oferece a melhor imagem de si mesma. Essa
sadia geometria urbana é a mesma que, segundo Landowski, “funda uma leitura
normal da cidade e o reconhecimento mútuo das identidades que ali coabitam”
(LANDOWSKI, 2002, p. 63).
Os bêbados e o seu ‘habitat’ são descritos pelo narrador de Trevisan de forma
nada ingênua, pois a linguagem do texto literário é endereçada a outrem e o invoca.
Emmanuel Lévinas (2010), em Entre nós, define o modo como essa invocação é dada
pela linguagem:
Desse modo, a alteridade que o homem partilha com tudo o que existe (no
conto, por exemplo, isso se aplica aos bêbados em relação ao espaço em que se
situam) e a distinção que ele partilha com tudo o que vive tornam-se unicidade. Então,
como diz Arendt, é por isso que “a pluralidade humana é a paradoxal pluralidade de
seres únicos”.
Assim, o homem tem o arbítrio de sua individualidade – os homens podem
viver do trabalho ou deixar que outros trabalhem por eles; podem simplesmente usar
e fruir do mundo das coisas sem lhe acrescentar um só objeto útil. As vidas podem ser
até injustas – alguns trabalham, outros só bebem – mas certamente são vidas
humanas.
Ao descrever não só o convívio dos bêbados, o espaço narrativo de “Cemitério
de elefantes” focaliza a morte dos personagens. É um espaço de morte, em que a vida
mostra a sua face mais frágil. Nesse aspecto, a escrita de Trevisan dialoga com a
doutrina da “Epifania do rosto”, descrita por Emmanuel Lévinas.
A epifania de que trata Lévinas consiste no “despertar para o outro homem na
sua identidade indiscernível para o saber; o rosto com a própria mortalidade do outro
homem”. É como se a Morte de cada personagem do conto remetesse para a
consciência de cada leitor – como se fosse sua a responsabilidade daquele indivíduo
(rosto) que falece às margens do rio. É um cemitério ficcional, criado para que se possa
também refletir que a morte do Outro homem põe em xeque e questiona a alteridade
de cada ser. Para Lévinas, a alteridade e esta separação absoluta manifestam-se na
epifania do rosto, no face a face:
assim classificada por Arendt, estava baseada na ilusão de que ‘o estar só’ levaria à
condição ideal para que se ‘produzisse’ algo no domínio dos assuntos humanos.
Assim, o homem isolado seria capaz de ‘produzir’ instituições ou leis, tal como
se produzem mesas e cadeiras; também seria capaz de ‘produzir’ “homens melhores
ou piores”. Essa crença da produção através do isolamento também pode expressar “a
desesperança consciente de toda ação, política e não política, aliada à esperança
utópica de que seja possível tratar os homens como se tratam outros ‘materiais’”.
(ARENDT, 2014, p. 233).
E, para se contrapor a tudo isso, o escritor tenta, através de seus escritos
ficcionais, modificar o leitor e, assim, transformar os severos transtornos da sociedade,
em especial a brasileira, uma das campeãs mundiais em desigualdades sociais e em
preconceitos de toda espécie.
A escrita de Dalton Trevisan, dando ênfase aos excluídos sociais, através dos
personagens de sua escrita ficcional, segue na intenção de responsabilidade social e
está dedicada ao destino último do homem – certamente, o de alcançar a plenitude e a
felicidade na Terra, contribuindo para dirimir as desigualdades e as diferenças de toda
ordem, a partir do exercício libertador decorrente do texto literário.
O texto literário de Trevisan conduz a uma abordagem humanizadora desses
“elefantes” (os bêbados), pois eles se juntam em comunidades. Juntos, sabem que
formam um grupo harmônico dos excluídos, dos marginalizados, dos párias – daqueles
que vivem de restos. E esperam o que é inevitável a todos – a morte. Aguardam a
morte com naturalidade e, enquanto esperam pelo decreto final, convivem em paz e
em ajuda mútua.
Após a leitura sociossemiótica de “Cemitério de elefantes”, não é mais possível
olhar para um bêbado com a mesma visão anterior; descobre-se que eles estão ‘entre
nós’, não são ‘mera paisagem’. Os bêbados de Trevisan, que representam o homem à
deriva, têm alma de elefante: eles são solidários e se respeitam.
Os bêbados ocupam o mesmo espaço do resto do mundo e é para essa reflexão
que o conto conduz, pois, os “bêbados-elefantes-humanizados-desprezados” optaram
viver por eles mesmos, com toda desenvoltura, apesar das normas e códigos sociais.
Eles são felizes em um local fétido e sujo, apesar de saberem que os outros seres
vivem “outramente”, no conforto de seus lares. E, por que não, um dia, os indivíduos à
margem estarão “conosco, se nós também, mudando nossas leis e nossas posturas,
quiséssemos um dia nos tornarmos nós mesmos, isto é, outros – um pouquinho?”
(LANDOWSKI, 2002, p. 66).
que permite refletir sobre as questões que englobam o humano, assim como as
abordadas no conto “Cemitério de elefantes”.
Naquele espaço da praça, onde estão os personagens à deriva, a existência
acaba, mas a condição humana, não: sobrevive por meio da narrativa, que lhe tira das
cinzas e lhe confere a ‘memorialidade’ – essa capacidade que a obra literária contém,
ou seja, a possibilidade de ficar permanentemente fixada na lembrança da
humanidade.
Dessa forma, o conto “Cemitério de elefantes”, como obra literária e artística,
proporciona um universo ficcional “artificial” de coisas, nitidamente diferente de
qualquer ambiente natural. Dentro de suas fronteiras, contudo, é abrigada cada ‘vida’
individual, embora esse mundo se destine a sobreviver e a transcender todas elas. É
por isso que a condição humana da obra é a sua mundanidade – a capacidade que o
homem possui de estar em pluralidade, sendo tão singular.
A ficção de Trevisan, em “Cemitério de elefantes”, comprova que a literatura é
a arte que promove a representação de todas as alteridades, o encontro com todas as
diferenças. Na representação da realidade da ficção, os espaços que jamais poderiam
ser mantidos juntos encontram abrigo na palavra, no texto, na criação subjetiva do
humano.
Na instância do texto literário, as palavras não carregam categorias de espaço,
nem de tempo, nem de lugar, mas a essência primordial de sua significação. Uma
significação que não cessa e que não se encerra, e que promove a revisão e a
diferença.
A reflexão de Landowski remete a outros planos semióticos, nos quais se
encontra a obra literária, ‘engajada’ implicitamente em um projeto político capaz de
repensar as diferenças e incluí-las, através das narrativas ficcionais. Nessas obras, tais
como o conto “Cemitério de elefantes”, de Dalton Trevisan, os narradores são
verdadeiros Robinsons à procura obstinada de vencer a alteridade que se lhes
configura. Assim que, para Landowski,
Referências
Fernanda Borges1
Valêncio Xavier nasceu em São Paulo, mas viveu durante grande parte de sua
vida no Paraná. Apelidado por Joca Reiners Terron de Frankenstein de Curitiba (em
paralelo a Dalton Trevisan, o Vampiro de Curitiba), escreveu uma série de narrativas
visuais, híbridas. Seus livros contêm fotografias, desenhos, mapas, anúncios
publicitários, excertos de jornal e, também, palavras e frases, claro. Sua sintaxe não é
apenas verbal, mas, sobretudo, visual. Valêncio Xavier foi um artista que trabalhou em
diversas áreas e transitou por inúmeros meios, o que permite que pensemos em uma
poética interartística. Ele faleceu em 2008, deixando-nos várias obras a serem lidas e
redescobertas, pois muitos de seus textos foram publicados em pequenas editoras e
diversas vezes financiados pelo próprio autor. Em 1998 a editora Companhia das Letras
publicou uma reunião de textos do escritor sob o título O mez da grippe e outros
livros2, os quais haviam sido publicados separadamente.
O cinema, além de estar presente na estrutura de muitos textos, também é um
tema abordado pelo autor. Em Maciste no Inferno, publicado primeiramente em 1983
e depois em O mez da grippe e outros livros, acompanhamos os pensamentos da
personagem no cinema e assistimos com ela a trechos da história. A narrativa intercala
imagens do filme de 1925, que dá título à obra, à descrição das cenas, bem como à
narração dos principais acontecimentos do enredo e do constrangimento do homem
que, excitado pelas personagens, pelas cenas que vê na tela e pelo contato com o
braço da moça ao seu lado, masturba-se e sai à francesa do cinema para ninguém
perceber a grande mancha em suas calças...
“Negro como o inferno até acostumar a vista fico em pé as mãos na mureta de
madeira que separa as fileiras de cadeiras da grande porta com cortinas de velludo que
separa a salla de exibições da salla de espera”.3 Um homem vai ao cinema e entra na
sala quando a sessão já iniciou. Ao invés de procurar um bom lugar para se acomodar e
apreciar o filme, como normalmente se costuma fazer com lentidão e cuidado na sala
1
Doutoranda em Teoria da Literatura na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Bolsista CNPq.
E-mail: fernanda_etc@hotmail.com
2
Essa publicação recebeu em 1999 o Prêmio Jabuti de Melhor Produção Editorial.
3
Não há numeração de páginas em Maciste no inferno.
escura, ele observa especialmente os lugares ocupados: quer se sentar ao lado de uma
mulher. O filme? Talvez não seja o mais importante para esse espectador: “Olho a tela
e nada vejo”, diz ele. Quem vê o filme é o leitor. Aliás, o leitor-espectador assiste a dois
filmes, ou melhor, a um filme somente, mas pensado em montagem paralela:
enquanto o narrador e a personagem assistem a Maciste no Inferno, nós assistimos ao
que se passa nas poltronas e na tela do cinema; vemos o narrador propor um jogo à
moça enquanto ela está mais interessada em descobrir o destino do herói do filme. E,
nós, no terceiro “enquanto”, queremos descobrir todos esses desfechos.
Maciste no inferno é um filme mudo italiano de 1925 dirigido por Guido
Brignone e protagonizado por Bartolomeo Pagano, um dos astros do peplum, gênero
épico italiano; é também um filme de 1962 dirigido por Riccardo Freda, realizador
famoso do gênero e, ainda, é um texto de Valêncio Xavier, de 1983, presente em O
mez da grippe e outros livros, de 1998.
4
Fontes: http://letterboxd.com/film/maciste-in-hell/
http://www.moviepostershop.com/maciste-in-hell-movie-poster-1931
http://produto.mercadolivre.com.br/MLB-718068049-raros-maciste-no-inferno-valncio-xavier-
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5
Para assistir ao filme: https://www.youtube.com/watch?v=DiGkUD6f_uc
tentações de Maciste no inferno, mas são a apresentação escolhida por Valêncio Xavier
para o texto que vamos ler.
Como quem não quer nada além de se divertir, Xavier testa os limites
de cada gênero, sempre à procura da forma mais adequada a cada
assunto, mas age como quem transita em um ambiente próprio, fora
da literatura reconhecida como tal, esforçando-se por nos fazer crer
que seu conhecimento é ‘de almanaque’, não erudito (ALEIXO, 1998,
p. 3).
Referências
AUMONT, Jacques ; MARIE, Michel. Peplum. In: Dicionário teórico e crítico do cinema.
Trad. Carla Bogalheiro Gamboa e Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições Texto &
Grafia, 2009.
MACISTE NO INFERNO (Maciste in hell). Produzido por Stefano Pittaluga. Escrito por
Riccardo Artuffo. Dirigido por Guido Brignone. Intérpretes: Bartolomeo Pagano,
Elena Sangro, Lucia Zanussi, Franz Sala et al. 87 min, 1925, mono, preto e branco.
XAVIER, Valêncio. O mez da grippe e outros livros. São Paulo: Companhia das Letras,
1998.
______. “Mez da grippe” revela escritor polígrafo. O Tempo, Belo Horizonte, p. 3, 3
out. 1998. Entrevista concedida a Ricardo Aleixo.
Fernanda Schneider1
Introdução
1
Doutoranda em Letras - Linguística, com ênfase em Neuropsicolinguística, na Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). É professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Rio Grande do Sul - Campus Ibirubá e bolsista da CAPES (Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).
E-mail: fernanda.schneider.001@acad.pucrs.br
Para refletirmos sobre essa questão, buscamos respostas nas investigações presentes
na literatura existente, mais especificamente nos estudos de Fabbro (2001), Obler e
Park (2012), Adrover-Roig, Marcotte, Scherer e Ansaldo (2012), Verreyt (2013) e
Ansaldo e Saidi (2014) e no resultado de uma revisão sistemática nas bases de dados
Scielo, Scopus e ScienceDirect. Para tanto, apresentamos, primeiramente, algumas
noções acerca da afasia bilíngue, e na sequência, resultados dos estudos. Por fim,
discutimos esses resultados e apresentamos alguns apontamentos para a questão aqui
abordada.
Diferencial Uma língua é recuperada de modo muito melhor do que a outra em comparação com as
(18%) habilidades anteriores à afasia.
Antagônica Uma língua está inicialmente disponível; à medida que a outra língua é recuperada, a
inicial é inibida.
Antagonismo Repetição do padrão anterior com as línguas alternando em disponibilidade. Isso pode
alternado ocorrer dentro de ciclos que variam de 24 horas a vários meses.
Mistura (7%) Mistura incontrolável de palavras e construções gramaticais de duas ou mais línguas,
mesmo quando há a tentativa de se falar em apenas uma delas (é diferente da prática
comum de code-switching).
Seletiva (5%) Perda de linguagem somente em uma língua sem déficit mensurável na outra.
discurso num determinado contexto – o que deve ser observado e considerado pelo
terapeuta.
Assim, ao avaliar o afásico bilíngue, no que diz respeito ao processamento
discursivo, faz-se necessária a observação desses aspectos e é fundamental a
verificação dos elementos indicativos da complexidade e da eficiência da compreensão
e da produção discursiva do paciente a ser avaliado. O que implica, dentre outras
questões, considerar a habilidade de inferenciação, coesão e coerência discursiva,
conteúdo comunicativo e intencionalidade, linguagem não verbal e gestualidade.
Hartsuiker, Pickering, Veltkamp (2004), e apoiam um controle com base nos diferentes
padrões de afasia bilíngue.
Por fim, os estudos de Obler e Park (2012) investigaram na literatura existente
qual língua retorna primeiro na afasia bilíngue e se essa é a L1 ou a língua mais usada,
e Adrover-Roig, Marcotte, Scherer e Ansaldo (2012) apresentam reflexões acerca da
representação em L1 e L2, focando a troca e a mistura na linguagem atípica. Os
estudos apresentados (OBLER, PARK, 2012) sugerem alguns apontamentos e aspectos
importantes a serem considerados, como o fato de que a língua mais usada próximo
ao AVC é mais facilmente recuperada (PITRES, 1895 apud OBLER, PARK, 2012). Outro
aspecto relevante é o apego emocional (MINKOWISK, 1963 e KRAPF, 1955 apud
OBLER, PARK, 2012) como fator ligado ao padrão de recuperação das línguas.
Os resultados dos estudos de Adrover-Roig et al. (2012) indicam que a
literatura aponta para o fato de que a terapia intensiva, especificamente com foco na
disfunção linguística, é a chave para a recuperação. Além disso, pressupõem que o
estudo de estimulação magnética transcraniana (TMS – transcranial magnetic
stimulation) e modelagem causal dinâmica (DCM – dynamic causal modelling)
permitirão focar o impacto da abordagem terapêutica como fator que pode modular a
transferência entre as línguas.
Na revisão sistemática, encontramos, a partir das palavras-chave (aphasia and
bilingual and recovery), 84 artigos. A busca foi realizada em 3 bases de dados: Scielo,
Pubmed e ScienceDirect. Ao aplicar os critérios de ano de publicação (2012 a 2015),
enfoque do estudo e excluindo revisões, textos repetidos e adaptações de testes,
chegamos a 5 artigos, conforme pode ser observado na Tabela 3.
Diante das investigações e resultados dos estudos, o que se pode afirmar é que
apesar do crescente número de pesquisas (ex. Tab. 2 e Tab. 3) sobre a afasia bilíngue,
ainda é difícil garantir se é vantajoso o paciente receber tratamento em apenas uma
ou nas duas línguas, ou se a opção por uma língua gera benefícios na recuperação da
língua não tratada.
Considerações finais
Agradecimentos: Ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul – IFRS
(Campus Ibirubá) pela concessão à primeira autora de afastamento total para capacitação e à
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, pela bolsa de estudos.
Referências
ADROVER-ROIG, D., et al. Bilingual aphasia: neural plasticity and considerations for
recovery. In.: GITTERMAN, M. R.; GORAL, M.; OBLER, L. K. Aspects of Multilingual
Aphasia. Bristol, UK: Multilingual Matters, 2012.
AMBERBER, A. M. Language intervention in French–English bilingual aphasia: Evidence
of limited therapy transfer. Journal of Neurolinguistics, v. 25, p. 588–614, 2012.
O resgate da história
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura, linha de Teoria, Crítica e
Comparatismo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com fomento do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
E-mail: gabriel_munsberg@yahoo.de
2
O uso de História, com H maiúsculo, ocorrerá neste artigo para realizar fácil distinção da história real,
conjunto de experiências vividas que envolvem o sujeito e que constituem seu passado e presente. Ao
grafarmos História com letra maiúscula pretendemos também conceder-lhe a classificação de ciência,
disciplina escolar, como o faz Norberto Luiz Guarinello, em seu artigo “História científica, história
contemporânea e história cotidiana” (2004), ao discutir os impasses da história contemporânea como
disciplina científica.
3
A Erfahrung, dentro dos conceitos benjaminianos, é o conhecimento obtido e acumulado através de
uma experiência empírica, como em uma viagem (o verbo erfahren, em alemão, pode significar "saber"
ou "sofrer"; quando adjetivado, significa "experimentado"), analisado sempre em confronto com
Erlebnis, o qual significa um conceito de vivência (erleben, em alemão, é o verbo que remete a "viver"
ou "presenciar").
4
Linda Hutcheon (1991) utiliza o termo “acontecimento” referente ao evento empírico, que aconteceu.
Ao relatar-se sobre determinado acontecimento, utiliza-se, então, o termo “fato”.
5
Toma-se aqui o conceito de Lyotard sobre poder: "este não é somente o bom desempenho, mas
também a boa verificação e o bom veredicto. O poder legitima a ciência e o diretor por sua eficiência, e
esta por aquelas. Ele se autolegitima como parece fazê-lo um sistema regulado sobre a otimização de
suas performances" (LYOTARD, 1986, p. 84).
Relatar o Holocausto
6
“Os chamados man made disasters [desastres produzidos pelo homem], como o Holocausto, a guerra e
as perseguições políticas e étnicas, objetivam a aniquilação da existência histórica e social do homem
através de diferentes maneiras de desumanização e destruição da sua personalidade. Pode não ser
possível para um indivíduo isolado inserir esse tipo de experiência traumática em um contexto narrativo
por meio de um ato idiossincrático, pois, para isso, é preciso também uma discussão social sobre a
verdade histórica do acontecimento traumático e sobre a negação e a defesa em face dele” (BOHLEBER,
2007, p. 169).
variações a partir das narrativas do sobrevivente, a fim de que o conjunto total seja
tomado como verossímil.
O psicanalista alemão Werner Bohleber, ao tratar da especificidade da
importância da reconstrução do passado no tratamento analítico, aborda também a
recordação coletiva do Holocausto e seus resultados ulteriores, assim como o
esquecimento encontrado nos relatos de seus sobreviventes:
Representar o Holocausto
comercial deste povo que supostamente era o responsável pelos males que a
Alemanha atravessava e que, como tal, deveria ser extirpado7.
O rato, conhecido por ser um animal sujo e de comportamento furtivo,
podendo viver em esgotos e invadir residências, acaba por representar uma etnia
considerada, tal qual o animal, como uma praga aos olhos do regime nacional-
socialista, exposto por gatos, predadores naturais dos camundongos. Este
antropomorfismo é reforçado também pela citação de Adolf Hitler como prefácio do
primeiro capítulo do livro: “Sem dúvida, os judeus são uma raça, mas não são
humanos” (SPIEGELMAN, 2009, p. 10). Ou seja, Spiegelman apropria-se em sua
narrativa da posição dada ao judaísmo na propaganda nazista, porém o que o leitor
encontrará é o rompimento com o ideário de que judeus sejam sempre mesquinhos e
sujos, mas que possuam variadas qualidades, tanto positivas quanto negativas, de
forma individual. O uso da propaganda nazista como forma de expressão na narrativa,
a qual pretende sobretudo indagar, é prova do (re)uso do centro, uma vez que a partir
da mesma linguagem do colonizador é possível questionar sua colonização. Esta
utilização do linguajar do colonizador também é encontrada na epígrafe do segundo
volume de Maus – E aqui meus problemas começaram, momento em que o autor traz
trechos de um artigo de jornal da região alemã da Pomerânia, datado de 1930, no qual
o judeu é novamente exemplificado como um rato, neste caso, Mickey Mouse8:
7
A pesquisadora Jeanne Marie Gagnebin analisa que, segundo tendências que Max Horkheimer defende
em seu artigo Die Juden und Europa (Os judeus e a Europa, 1939), “o anti-semitismo decorreria da
necessidade, para o capitalismo monopolista do Estado, de lutar contra formas de capital comercial e
financeiro independentes, tais quais os empreendimentos judeus” (GAGNEBIN, 2003, p. 90).
8
Sobre Mickey Mouse, Walter Benjamin escreve em seu breve artigo “Zu-Micky Maus” ([1931] 1991)
sobre como os seres humanos tinham, desde então, uma representação, através do camundongo de
Walt Disney, de como se poderia persistir no mundo sem a experiência. Tal ausência de experiência não
era definida necessariamente pelas guerras, mas sim pelo cotidiano com sua rotina que expropria o
pensamento e os valores humanos. Benjamin ressalta, em seu ensaio “A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica”, escrito entre 1935 e 1940, que nos filmes contemporâneos da Disney é
revelada uma “tendência a aceitar confortavelmente a bestialidade e a violência como aparições que
acompanham a existência” (BENJAMIN, 2013, p. 85). Poucos anos após estes textos, os prisioneiros de
guerra, principalmente os judeus, encontravam-se precisamente sem similitude ao humano nos campos
de concentração, sendo que as construções sociais eram banalizadas e, muitas vezes, inexistentes
durante o confinamento militar.
Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocês nós ganhamos;
ninguém restará para dar testemunho, mas, mesmo que alguém
escape, o mundo não lhe dará crédito. Talvez haja suspeitas,
discussões, investigações de historiadores, mas não haverá certezas,
porque destruiremos as provas junto com vocês. E ainda que fiquem
algumas provas e sobreviva alguém, as pessoas dirão que os fatos
narrados são tão monstruosos que não merecem confiança: dirão
que são exageros e propaganda aliada e acreditarão em nós que
negaremos tudo, e não em vocês. Nós é que ditaremos a história dos
Lager (LEVI, 2004, p. 9).
Narrar o Holocausto
apresenta também a visão do cartunista após o sucesso de sua obra, realizando assim
uma atividade metatextual, mais nítida e frequente em sua narrativa.
Logo na primeira página de E aqui meus problemas começaram, Spiegelman
retrata sua dúvida em como desenhar sua esposa francesa que se converteu ao
judaísmo:
Conclusão
Referências
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012.
BENJAMIN, Walter. Zu Micky-Maus. In: BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, [1931] 1991. p. 460-462.
BOHLEBER, Werner. Recordação, trauma e memória coletiva: a luta pela recordação
em psicanálise. Trad. Edith Vera Laura Kunze. Revista Brasileira de Psicanálise, São
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ZANGL, Veronika. Poetik nach dem Holocaust: Erinnerungen – Tatsachen –
Geschichten. Paderborn: Wilhelm Fink, 2009.
1
Mestranda em Estudos Literários na Universidade Federal Fluminense – UFF - bolsista CNPq.
E-mail: gabrieladeoguedes@gmail.com
O local da diferença
“O passado não é aquilo que passa, / é aquilo que fica do que passou”. As
palavras do escritor Alceu Amoroso Lima se encaixam aqui, pois a vida dos familiares
dos desaparecidos políticos foi marcada pelo trauma do sumiço de seus entes
queridos. K. Relato de uma busca possui como fio condutor da narrativa a busca
labiríntica de um pai por sua filha, uma professora universitária de Química. O autor do
livro, Bernardo Kucinski, é irmão de uma militante desaparecida que lecionava no setor
de Química na USP. Majer Kucinski, seu progenitor, foi um pai que buscou pistas
incessantes sobre o paradeiro de sua filha, Ana Rosa Kucinski.
Bernardo Kucinski foi um militante estudantil durante o regime militar e teve
que partir para o exílio depois de ser preso, podendo retornar à pátria amada apenas
após a anistia. Em diversas entrevistas, Kucinski fala sobre o impacto do regime em sua
vida. Destaco uma de suas respostas a uma entrevista dada ao jornal A Gazeta do
Povo:
2
BENJAMIN, Walter. “Über den Begriff der Geschichte”. In: Gesammelte Werke, vol. 1-2. Frankfurt/
Main: Suhrkamp, 1974, p. 695 e 701. Tradução de J.M.G.
Representando o conflito
Como narrar o inenarrável? Como descrever com palavras o drama vivido por
diversas famílias afetadas pelo trauma da busca incansável por respostas sobre o
paradeiro de seus entes queridos? Como contar ao outro as torturas psicológicas e
físicas vividas dentro dos quarteis e locais de tortura? E como não narrar? Cada autor
perpassará um caminho criativo que apontará a estratégia narrativa que virá a ser
utilizada para o relato do passado.
A narração fragmentada realizada a partir de diversos pontos de vista permite
ao leitor uma “visita” à mente dos personagens. A breve prosa preenche lacunas da
Conclusão
Referências
Introdução
1
Doutoranda em Letras (PUCRS); bolsista CAPES; docente do IFRS – Campus Restinga. E-mail:
gabriela.abs@gmail.com
2
Doutoranda em Letras (PUCRS); bolsista CAPES.
E-mail: gabiperotto@gmail.com
3
Doutorando em Letras (PUCRS); bolsista CNPq.
E-mail: professorleoprado@gmail.com
4
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas. Disponível em: <http://ideb.inep.gov.br/resultado>. Acesso
em: 30 mar. 2014.
5
Índice de Desenvolvimento da Educação Básica. Disponível em: <http://ideb.inep.gov.br/resultado>.
Acesso em: 30 mar. 2014.
Compreensão leitora
entendimento, o texto não deve ser visto como um simples conjunto de elementos
gramaticais, nem como um repositório de mensagens e de informações (KLEIMAN,
1996), e a leitura é vista como um processo cognitivo que pode ocorrer
interativamente de forma ascendente – bottom-up – e de forma descendente – top-
down (SCLIAR-CABRAL, 2008).
O processamento ascendente se realiza das unidades menores para as maiores,
com a atenção do leitor se dirigindo para as pistas visuais do texto. De modo geral,
esse processamento é utilizado em situações em que o leitor tem poucos
conhecimentos prévios sobre o conteúdo ou a linguagem do texto, que o objetivo da
leitura exija uma atenção a detalhes e que o texto a ser lido seja complexo, exigindo
uma leitura cuidadosa.
O processamento descendente se realiza das unidades maiores para as
menores, com o leitor se apoiando nas informações extratextuais. De modo geral, esse
processamento é utilizado quando o leitor tem conhecimentos prévios sobre o assunto
e a linguagem do texto, quando seu objetivo exige uma leitura geral e a densidade do
texto não oferece dificuldades grandes de compreensão.
A combinação dessas formas está baseada num conjunto de variáveis:
intervenientes no processamento da Leitura tais como: Conhecimentos prévios do
leitor e estilo cognitivo do mesmo; gêneros textuais literários e não literários com
predominância narrativa, descritiva, expositiva, argumentativa, injuntiva; além, é claro,
dos processos de Coesão, Coerência e Superestrutura, que dão unidade e sentido ao
texto.
De acordo com Soares (1991), a leitura não é uma atividade apenas de
decodificação, em que o leitor apreende a “mensagem” do autor, mas é processo
constitutivo do texto com base na interação autor-leitor. Ou seja: o texto não preexiste
à sua leitura, pois esta é construção ativa de um leitor que, de certa forma, “reescreve”
o texto, determinado por seu repertório de experiências individuais, sociais, culturais.
Durante a leitura, o leitor utiliza estratégias de leitura (PEREIRA, 2010), como
skimming (leitura geral e rápida para uma aproximação inicial ao texto); scanning
(leitura de busca de uma informação específica no texto); leitura detalhada (leitura
minuciosa dirigindo a atenção para todos os detalhes); predição (antecipação do
conteúdo do texto, com base nas pistas linguísticas e nos conhecimentos prévios);
automonitoramento (observação, pelo leitor, do próprio processo de leitura);
autoavaliação (verificação, pelo leitor, da adequação das hipóteses de leitura
levantadas); e autocorreção (alteração, pelo leitor, das hipóteses formuladas, caso
constate inadequações).
Atenção e consciência
Consciência textual
A consciência textual é uma atitude reflexiva que o indivíduo faz sobre o seu
objeto de análise, o texto, de forma deliberada, em que o foco atencional está no
próprio texto. Além disso, Gombert (1992) afirma que esse tipo de consciência está
centrado no monitoramento e na atenção a traços que constituem o texto e que os
determinam como pertencentes a um determinado gênero. Esses traços estão
relacionados à coesão, à coerência e à superestrutura.
A coesão é um componente que diz respeito às relações de sentido que existem
no interior do texto e que o definem como tal. Essas relações são estabelecidas por
mecanismos, os quais são denominados por Halliday e Hasan (1976) coesão gramatical
e coesão lexical. A coesão gramatical envolve a referência, a substituição, a elipse e a
conjunção.
A referência diz respeito a itens linguísticos que são “vazios” de significados,
mas que, no discurso, remetem a outros itens e, assim, são passíveis de serem
compreendidos. São itens linguísticos conhecidos como dêiticos e possuem como
principais exemplares os pronomes pessoais e demonstrativos.
A substituição é um mecanismo de relação interna no texto. Um elemento
(desde um simples nome a uma frase inteira) é colocado no lugar de outro, ocorrendo
sempre uma redefinição.
A elipse refere-se à omissão de um item lexical, ou até mesmo um enunciado,
visto que podem ser recuperados com muita facilidade a partir do contexto. Esse
mecanismo seria, pois, uma espécie de substituição, porém por zero, por um espaço
vazio.
A conjunção, também chamada de conexão, permite que relações significativas
entre elementos do texto sejam estabelecidas, como as que ocorrem por marcadores
formais, os quais correlacionam o que será dito ao que já o foi.
A coesão lexical, por sua vez, ocorre por meio de dois mecanismos: a reiteração
e a colocação. O primeiro refere-se à repetição, bem como ao uso de sinônimos e
hiperônimos. A colocação refere-se ao uso de palavras de um mesmo campo
semântico.
Projetos Celin
Em 1997, a ala pediátrica do Hospital São Lucas (HSL) da PUCRS ganhou uma
biblioteca a partir do projeto supracitado, através do qual bolsistas do curso de Letras
vêm promovendo diariamente a leitura junto às crianças internadas. Essa leitura se dá
por meio de contações de histórias no espaço da biblioteca ou em visitas aos quartos.
Em 2015, o projeto foi ampliado para a ala psiquiátrica do HSL e conta com
bolsistas que promovem a leitura de segunda a sexta durante uma hora com os
pacientes internados na ala.
Nestes espaços a literatura tem a função de humanização e seu papel é
estimular a imaginação e promover a transgressão do ambiente enfermo a partir das
histórias contadas. A leitura contribui para o bem-estar dos pacientes, ajudando-os em
seus tratamentos.
As dinâmicas realizadas promovem a compreensão leitora bem como a
consciência textual através das dinâmicas de contação das histórias. Os pacientes têm
momentos de entretenimento e entram em contato com diferentes gêneros textuais.
Conclusão
Referências
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Há algo, na obra de Paul Auster, que permite falar por entrelinhas. Falar de
invisibilidades, explorá-las através de imagens rasgadas, cheias de espectros ou
fantasmas. Nesses textos, a criação se dá a partir de ausências, por vezes. Nunca se diz
tudo, e por isso mesmo abre-se o caminho para muitos outros discursos em potência.
Literatura, portanto, já que aberta a um campo de sentidos vastíssimo sem que se
afirme a possibilidade de apreensão total do mundo, seja ele fictício ou não.
Aparente, ainda, é a relação entre sua obra literária, as artes visuais e o cinema.
Paul Auster produziu, além de romances e poesia, traduções, crítica de arte e roteiros
cinematográficos, além de atuar como diretor. Pode-se dizer, portanto, que o conjunto
de sua obra ultrapassa os limites do literário e explora sua visualidade, assim como o
que expõe de invisível, em jogo também nas artes visuais e audiovisuais.
Meu primeiro interesse por essa obra surgiu a partir da leitura de Invisível
(AUSTER, 2009). Eu já estudava literatura e metaficção em razão da pesquisa de minha
orientadora2 sobre poéticas contemporâneas. Havia ali, desde o início, algo que
aproximava os escritos do catalão Enrique Vila-Matas, como Bartleby e Companhia
(2000), daquele livro curioso de Paul Auster. Este último, Invsível, conta a história da
relação entre dois personagens escritores, um mais jovem, estudante, e outro mais
velho que, depois de um tempo, “desaparece”. Ele deixa apenas seu diário (ou
autobiografia), cujas últimas páginas são bastante fragmentadas. Cabe então ao jovem
escritor reescrevê-las. Só agora, anos depois, é que percebo o quanto estas poucas
linhas sobre o enredo dizem da obra de Paul Auster e, de muitas formas, da de Enrique
Vila-Matas também. Esse desaparecimento do escritor, afinal, não é novidade
nenhuma no meio literário. Vila-Matas, por exemplo, dedica diversos escritos a isso,
entre os quais o já citado Bartleby e Companhia. Neste, afirma-se que tudo que será
lido são notas de rodapé sobre um texto invisível acerca de escritores que pararam de
escrever. Ou seja, não há acesso a esse outro texto, já que invisível, suspenso. O texto
1
Mestra e doutoranda em Letras pela UFRGS e bolsista CAPES.
E-mail: gabisemensato@gmail.com
2
Professora Dra. Rita Lenira de Freitas Bittencourt, cujo projeto de pesquisa (de 2007 a 2012) se
intitulava Poéticas do presente: a narrativa de limiar de Enrique Vila-Matas.
3
Este movimento também se aproximava dos Cinco prefácios para cinco livros não escritos de Friedrich
Nietzsche, que, segundo o tradutor Pedro Süssekind, “possuem uma certa autonomia (...) indicando um
caminho a ser seguido”, como esboços dos textos que o sucederiam (2000, p. 12).
4
Este trabalho foi desenvolvido em minha dissertação de Mestrado em Letras, intitulada Paul Auster,
entre outros: sobre os limites da representação nas artes (2014), disponível em
http://hdl.handle.net/10183/102220.
está de costas para o espectador. Os modelos desse quadro (dentro do quadro) não
estão no centro do quadro maior, mas se podem entrever suas imagens pelo reflexo
no espelho pequeno ao fundo da sala: o rei e a rainha. Em vez disso, ao centro, vê-se,
ao lado do pintor, a infanta, acompanhada de aias, cortesãos, damas e anões, assim
como de um cachorro.
Outra foto que muito lembra esta é o Retrato de cinco ângulos de Marcel
Duchamp (1917)5, artista plástico cuja obra também questiona os limites do que se
considera arte. Esse tipo de retrato é aparentemente feito a partir do posicionamento
de espelhos ao redor do modelo, que é então multiplicado. Ou seja, esses espectros só
aparecem na foto, só são presentes naquele instante, fabricados em imagem.
5
Retrato de cinco ângulos de Marcel Duchamp. Fotógrafo: Henri-Pierre Roche. 1917. Fotografia por
processo da prata coloidal – National Portrait Gallery, Washington.
filme à obra literária, há fotos de família. No livro, elas são de outros personagens, mas
na obra fílmica aparecem como retratos do escritor Paul Auster e de sua família.
Apenas visíveis por alguns instantes, não são mais retomadas até o fim da narrativa.
Desaparecem de cena. São mais peças nesse jogo de esconde-esconde que indica
fantasmas, seres do além (da obra), mas logo os torna invisíveis, inventando nomes e
pensando as artes a partir de suas próprias construções discursivas.
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Mar, Portugal: Alma Films, Tornasol Films, Clap Films, Salty Features, 2007. 1 DVD
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VERDADES e mentiras. Direção. Orson Welles. Produção: François Reichenbach,
Dominique Antoine e Richard Drewitt. Roteiro: Orson Welles e Oja Kodar. França:
Janus Film e SACI, 1973. 1 DVD (89 min), son., color. Título original: Vérités et
mensonges.
1 Introdução
1
Mestranda em Educação PPGEDU/PUCRS, bolsista CNPq.
E-mail: gislaine.muller@acad.pucrs.br
2
Pós-doutor em Psicologia - Universidad Autónoma de Madrid, Doutor em Ciências Humanas/Educação,
professor titular dos Programas de Pós-Graduação em Educação e Gerontologia Biomédica da PUCRS.
E-mail: stobaus@pucrs.br
2 Referenciais teóricos
3 Metodologia
5 Considerações finais
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1
Doutoranda e mestra em Processos e Manifestações Culturais. Universidade Feevale. Pesquisa
realizada com incentivo da CAPES.
E-mail: gisleneh@gmail.com
contexto que envolve a troca linguageira. A ação desses sujeitos decorre do contexto
que contempla tanto as circunstâncias quanto a própria situação da comunicação, que
“é como um palco, com suas restrições de espaço e de tempo, de relações, de
palavras, no qual se encenam as trocas sociais e aquilo que constitui seu valor
simbólico” (CHARAUDEAU, 2012, p. 67).
Assim, as interações são orientadas por contratos ou acordos socialmente
instituídos que permitem e orientam a enunciação discursiva. Este contrato
comunicacional é composto por dados internos e externos. Os primeiros se referem ao
movimento de projeção realizado pelo EUc, através do diálogo entre EUe e TUd no
quadro propriamente discursivo. A eles vinculam-se quatro princípios de organização:
enunciar, descrever, narrar e argumentar. Os dados externos advêm da identidade dos
sujeitos, da finalidade e do propósito do discurso, além do dispositivo adotado para
mediar à interação. Charaudeau (2004) destaca que as finalidades discursivas implicam
as relações de força expressas por visadas comunicativas, das quais se destacam: 1)
visada de informação, cuja ação do EU é fazer-saber e a do TU dever saber, uma
tentativa de promover uma relação com a “verdade”; 2) visada de captação, sendo que
o EU almeja fazer sentir e o TU deve sentir por meio da persuasão.
A proposição charaudeana do jogo de intencionalidades motiva a inclusão da
noção de poder à análise discursiva. Nesse caso, opta-se por dois olhares diferentes,
mas que em apoio podem auxiliar na digressão que ora se propõe. A começar pela
argumentação de Galbraith (1989), que procura delimitar três formas de manifestação
do poder. As duas primeiras categorias da noção de poder, para esse autor,
aproximam-se, pois referem à rejeição da própria vontade em função da vontade do
outro. O que diferencia o poder condigno do compensatório é o percurso de
reconhecimento. Enquanto no primeiro há sofrimento e busca-se eliminá-lo, no
segundo, a gratificação ofertada justifica a renúncia aos interesses próprios. De fato, os
interesses se transformam. As duas primeiras, que se caracterizam pela objetividade,
diferem desta terceira forma, a do poder condicionado, que é subjetivo e cujo
exercício pode ser implícito.
Em apoio a essa perspectiva, recorre-se aos pressupostos metodológicos
apresentados por Foucault (2014) para análise do poder enquanto relação assimétrica
e dinâmica. Ele é algo que circula e que funciona em cadeia; é exercido em rede
perante relações de força estabelecidas no/pelo embate discursivo. Foucault (2014)
evidencia dois esquemas de análise do poder: contrato – opressão e dominação –
repressão. É sobre o segundo que se discorrerá brevemente, visto que traz
contribuições interessantes ao estudo em andamento. Nesta perspectiva, a
2
Dados de 04/11/2014. Sabe-se, entretanto, que no ano de 2015 a empresa Hera reduziu seu quadro de
trabalhadores em cerca de 50%.
dividida entre sede, fábrica e filiais em nove diferentes cidades brasileiras. Quanto à
escolaridade, a classe trabalhadora se mostra heterogênea: 39% possuem ensino
fundamental, médio ou técnico completo ou incompleto, enquanto 61% possuem
ensino superior ou pós-graduação completo ou incompleto. Salienta-se ainda que a
condição de enunciação construída pelo ato de linguagem visa oportunizar apenas à
organização a apresentação de saberes, além da restrição do diálogo e no interesse em
estabelecer uma hegemonia de valores e perspectivas.
O modo de organização discursivo argumentativo (CHARAUDEAU, 2010)
sustenta os enunciados por meio de explicações que encerram o processo
informacional e visam neutralizar as renormalizações inerentes ao ambiente
organizacional. Exemplifica-se tal asserção com um excerto dos editoriais, na edição
79, cujo modo enunciativo que sustenta a construção textual é o alocutivo, ou seja,
“com o seu dizer, o implica e lhe impõe um comportamento” (CHARAUDEAU, 2010, p.
82, grifo do autor). Em “por outro lado, nós mesmos devemos nos comportar de forma
a demonstrar nosso estado de espírito mais importante: estar de bem com a vida!” o
enunciador modaliza um estado de espírito, “estar de bem com a vida”, elemento
indiscutivelmente subjetivo e não passível de normalização. Esse uso de si pelo outro é
imposto ao trabalhador que tem seu processo de sujeição implicado.
Exemplo semelhante é encontrado na edição 78 que, entretanto, é
estabelecido perante a função elocutiva do modo enunciativo. Em “Hoje é necessário
colocar nossa inteligência dentro da máquina e a máquina dentro da indústria. É isso
que estamos fazendo na Unidade de Painéis [...]” fica evidente a intenção de
engajamento do outro, mediante a produção de um efeito de verdade que anula
novamente a subjetividade humana do processo laboral. No entanto, tal olhar não se
sustenta quando se toma como base a perspectiva da atividade humana do trabalho.
Na realização de seu fazer o trabalhador, corpo-si, “lócus de debate de normas”
(SCHWARTZ, 2014, p. 259), recebe a norma, a interpreta e a renormaliza, sem a
possibilidade de repeti-la, pois os elementos que compõem o contexto já não são os
mesmos. O oposto aparece como intenção daquele que enuncia.
O elevado volume de prescrições presente nos enunciados dos editoriais
analisados manifesta certa inflexibilidade ao investimento das competências
particulares no exercício da atividade laboral. Em contrapartida, a organização
determina como seus valores a inovação, o empreendedorismo e o conhecimento, por
exemplo, eventos que exigem a ação criativa do sujeito “para criar produtos que
surpreendam” (edição 83). Desse ponto, busca-se identificar a incitação ao uso de si
por si que é prestada pela Hera nas proposições divulgadas nos editoriais. Salienta-se
que dos oito editoriais analisados, quatro utilizam a expressão “profissionais altamente
qualificados” para caracterizar os trabalhadores. Por um lado, pode-se inferir que se
reconhece o potencial dos trabalhadores. Por outro lado, percebe-se a delimitação de
um perfil esperado pela organização mediante a qualificação profissional e acadêmica
dos sujeitos.
A gratidão também é modalizada a partir de enunciados que reconhecem a
relevância do investimento dos saberes do trabalhador no uso de que faz de si
(SCHWARTZ; DURRIVE, 2007). Exemplifica-se com excertos da edição 77 (“graças ao
trabalho de muitas pessoas que dedicaram entusiasmo, coragem e disposição”),
edição 79 (“mostrando espírito empreendedor”) e ainda na edição 80 (“O Brasil sabe
que a Hera é uma empresa extremamente competente [...] Aqui contamos com
profissionais qualificados que dedicam seu tempo na criação de soluções inovadoras
com tecnologia de ponta”). A construção enunciativa em evidência nestes trechos é
elocutiva (CHARAUDEAU, 2010), através da expressão do ponto de vista da
organização.
Em contrapartida, de forma explícita, apenas algumas áreas têm seu potencial
produtivo reconhecido, como é o caso do P&D. Nas edições 80 e 81, respectivamente,
afirma-se: “tudo isso não seria possível sem o trabalho duro de nosso P&D, que
desenvolveu um produto que entusiasmou o mercado internacional”; “as atualizações
da Série ABC, que continua a ser estudada e renovada em nosso processo de Pesquisa
& Desenvolvimento”. Percebe-se que o enfoque do jornal está em elevar o setor de
P&D ao patamar de diferencial da empresa no mercado, visto que, além dessas
asserções nos editoriais, a composição do canal (páginas 3 a 7) se constitui
fundamentalmente da apresentação de produtos e soluções em matérias escritas por
funcionários dessa área.
Nos exemplos das edições 80 e 81, fica evidente, ainda, a valorização do
trabalhador que “coloca-se por inteiro em atividade [que] põe em movimento a
energia de seu corpo, seus sentidos, sua experiência física e intelectual – o corpo em
relação ao meio, aos instrumentos e técnicas” (FÍGARO, 2009, p. 35). A ação
transgressora e criadora dos sujeitos (TRINQUET, 2010) é incentivada e atestada, o que
converge com os valores da organização. Entretanto, referência semelhante não é
aplicada aos trabalhadores da fábrica. Na edição 78, ao investir o olhar à fábrica de
painéis, o enunciador evidencia a produção de “painéis de automação [...] [que] são o
cérebro dos complexos sistemas de produção e infraestrutura”. O enfoque está no
produto, os sujeitos envolvidos na realização do processo são apagados e o potencial
de desenvolvimento é atribuído às máquinas.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins
Fontes, 2015.
CHARAUDEAU, Patrick. Visadas discursivas, gêneros situacionais e construção textual.
2004. Disponível em: <http://www.patrick-charaudeau.com/Visadasdiscursivas-
generos.html>. Acesso em: 10 jun. 2013.
______. Linguagem e discurso: modos de organização. Trad. Angela M.S. Corrêa e Ida
Lúcia Machado (coord. de tradução). São Paulo: Contexto, 2010.
______. Discurso das mídias. Trad. Angela M.S. Corrêa. São Paulo: Contexto, 2012.
DURRIVE, Louis. A atividade humana, simultaneamente intelectual e vital:
esclarecimentos complementares de Pierre Pastré e Yves Schwartz. Revista
Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, supl. 1, p. 47-67, 2011.
FAIRHUST, Gail T.; PUTNAM, Linda. As organizações como construções discursivas. In:
MARCHIORI, Marlene (Org.). Comunicação e organização: reflexões, processos e
práticas. São Caetano do Sul: Difusão, 2010. p. 103-148.
FÍGARO, Roseli. Comunicação e trabalho: binômio teórico produtivo para as pesquisas
de recepção. Mediaciones Sociales: Revista de Ciencias Sociales y de la
Comunicación, Madrid, n. 4, p. 23-49, 2009.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.
GALBRAITH, J. Kenneth. Anatomia do poder. São Paulo: Pioneira, 1989.
MORGAN, Gareth. Imagens da organização. São Paulo: Atlas, 2011.
SCHWARTZ, Yves. Trabalho e uso de si. Pró-Posições, Campinas, v.11, n. 2 (32), p. 34-
50, 2000.
______. Motivações do conceito de corpo-si: corpo-si, atividade, experiência. Letras de
Hoje, Porto Alegre, v. 49, n. 3, p. 259-274, 2014.
______. DURRIVE, Louis (Org.). Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade
humana. Niterói: EdUFF, 2007.
TRINQUET, Pierre. Trabalho e Educação: o método ergológico. Revista HISTEDBR On-
line, Campinas, número especial, p. 93-113, ago. 2010.
1
Doutorando em Letras, Escrita Criativa, PUCRS. Bolsista CAPES.
E-mail: guilherme.castro.001@acad.pucrs.br
juntas em meia página – sentimos que não é uma conversa desordenada, cada linha
falada exerce uma função na trama, um objetivo: um enfoque.
Graças à eficiente comunicabilidade das falas de Bóris e Dóris, portanto, é que
aos poucos vamos assimilando tudo que é necessário para acompanhar a história: os
traços físicos e psicológicos dos personagens, suas gradativas mudanças, o passar do
tempo, o espaço em que se situam etc. O cuidado de Luiz Vilela com o texto é
primoroso no sentido de, ao mesmo tempo em que preserva as vestes de
informalidade nas vozes dos protagonistas, conseguir dispô-las numa sequência tal
que, lendo-as uma após a outra, a fábula vai aos poucos se mostrando e fazendo
sentido na imaginação do leitor.
Bóris e Dóris
A história que ela vai contar teria ocorrido no dia anterior, no mesmo hotel. É
determinante na trama porque sugere uma possível traição com um funcionário do
hotel. O tal encontro só teria sido possível porque ela estava lá, no saguão, sem fazer
nada, enquanto Bóris tratava dos seus negócios.
Esse “nada a fazer” de Dóris gera o seguinte diálogo:
– A gente pensa em tudo quando a gente não está fazendo nada – ela
disse.
– É verdade – ele concordou.
– A gente pensa em tudo.
– Minha mãe dizia, citando um santo, que eu não lembro qual, que “a
ociosidade é a oficina do diabo”.
– É isso mesmo...
– Você não quis mais dar aula...
– Eu? Eu não quis? Você é que não quis que eu desse, Bóris.
(VILELA, 2006, p. 60)
Dóris conta que foi convidada pelo funcionário a ir tomar banho num lago, ali
perto, e que provavelmente fará isso em seguida, nua, porque é o costume por lá
tomar banho despido no lago.
Bóris mantém uma falsa despreocupação. E prossegue para a tal reunião, às
dez e meia em ponto.
No último capítulo, Bóris volta da reunião e a trama se resolve.
Vontadezinha de seguir
Cada capítulo do livro é uma cena entre Bóris e Dóris. Na primeira, Bóris e Dóris
estão no restaurante do hotel, ainda não são nove horas da manhã, Bóris está
esperando o motorista, que deverá passar às dez e meia para apanhá-lo. Bóris olha o
relógio a todo o momento, Dóris implica com isso. Aqui, o diálogo é bem humorado,
Bóris chega a ir cantando ao buffet para repetir a fatia de melão. Ele tem algo
importante a fazer, algo que ainda não contou. Esse dia “vai entrar para os anais da
história”, ele diz. Mas nada sabemos sobre isso. Sabemos por enquanto poucas coisas
sobre os personagens: a diferença de idades, por exemplo – Dóris tem 37, e Bóris, 60 –
e que há uma grande, porém oculta, expectativa em Bóris.
É preciso avançar, porque a conversa até aqui não foi capaz de mostrar muito
mais do que isso. Os primeiros diálogos diluem uma tensão mínima em pontuações
aparentemente despretensiosas, típicas de um começo de uma manhã ensolarada, e o
leitor vai permanecer na cena, primeiro, porque se diverte, e segundo, por efeito
dessas pequenas pontuações: “hoje vai ser um grande dia”, “vai entrar pra os anais da
história”, “depois eu conto”. O leitor, frente ao suspense, vai terminar a cena com uma
vontadezinha de saber o que Bóris quer tanto contar.
Monólogos travestidos
Até a metade do livro, como dissemos, é Bóris quem conduz a conversa. Dóris é
praticamente uma ouvinte. Mas a forma de diálogo não se desfaz porque Vilela é
especialista em travestir um verdadeiro monólogo em um aparente diálogo. Cenas
como esta, em que Bóris praticamente planeja o funcionamento inteiro de um negócio
para comercializar imagens de Nossas Senhoras, acontecem a toda hora no livro:
– Por falar em milhão – ele disse, – eu tive uma ideia, uma ideia
sensacional: criar uma loja de Nossa Senhora. Imagens, terços,
orações, o diabo, com perdão da palavra...
– Você está falando sério?
– Por que não? Religião é um prato cheio, minha filha. Religião...
Nossa Senhora, então, nem se fala: Nossa Senhora pode dar uma
mina de ouro.
– Hum.
(VILELA, 2006, p.18 )
Arengar
uma fala cotidiana, o leitor, já inserido no mundo onde o diálogo faz a história – se
aborreceria. É o que Francine Prose chama de “arengar”: “Arengar é outra coisa que
deveria ser feita com moderação em literatura, como na vida, com um olho em por
que e por quanto tempo um leitor vai permanecer interessado num personagem que
simplesmente fica falando e falando” (PROSE, 2008, p. 189). Bóris e Dóris em muitos
trechos falam sozinhos. Mas graças a um jogo de frases curtas, a dinâmica da leitura
não é interrompida. É a vestimenta de diálogo real (da vida) ao diálogo ficcional que
permite esse “arengar” amenizado dos personagens. E assim, arengando, Vilela expõe
com eficácia o caráter dos dois personagens.
Ambiguidade
Uma das diferenças entre o diálogo real e o ficcional é que o diálogo, no texto,
precisa refletir o caráter, a personalidade de quem fala, e suas intenções. É assim que
o autor chamará a atenção do leitor para esse outro mundo, um mundo simbólico, que
é a ficção. Na ficção, o diálogo não tem o direito de ser irrelevante, de dizer somente o
que na superfície diz. O diálogo precisa, sobretudo, deixar subentendido. Deixar pelo
menos uma pontinha de interrogação pululando na cabeça do leitor sobre os
personagens e suas intenções. Nesse sentido, Francine Prose diz que, quando falamos
leitor, e não para causar sensações, senão a de estar compreendendo algumas coisas.
Compreendemos, por exemplo, que se trata de um casal que o homem é vinte e três
anos mais velho; compreendemos que estão os dois no restaurante do hotel, numa
manhã ensolarada e que, em pouco tempo, o homem irá a uma reunião importante.
Porém, essas informações, ainda que ajudem ao entendimento da trama, não causam
sensações. Com elas, somos capazes de compreender, mas não de sentir os
personagens em sua substância humana abalada. No entanto, se bem colocadas no
meio de uma trama em que o fluxo de diálogo é a forma principal, se soarem naturais
e foram econômicas, essas indicações cumprem uma função narrativa e, por isso, são
bem-vindas.
Em uma novela como essa, é através do subtexto, de fala em fala, que
podemos perceber a complexidade interior dos personagens. A linguagem das vozes,
em seu rápido fluxo, em certos momentos se abre em ilhas de ambiguidades. A morte,
por exemplo, tema recorrente em cada cena (cada capítulo), é tratada por Bóris com
graça e humor, e então as palavras transcendem o significado literal:
As ambiguidades devem passar sutis aos olhos do leitor que, fascinado, sabe já
muito bem a essa altura que Bóris está na verdade zombando, mas zombando de algo
bastante sério. Pois a morte, para Dóris, é um tema mais necessário e presente do que
para ele, apesar dela ser muito mais jovem. Dos dois, é ela quem ali de fato representa
a perda, o luto pelos sonhos abandonados, enquanto ele ainda tem um objetivo na
vida: as Organizações Paternostro.
Referências
AMEND, Allison. Diálogo: hablarlo. In: Escribir ficción. Guía práctica de la famosa
escuela de escritores de Nueva York. Trad. Jessica J. Lockhart. Barcelona, ES: Alba
Editorial, 2012.
HOHLFELDT, Antonio. Conto brasileiro e contemporâneo. 2. ed. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1988.
PROSE, Francine. Para ler como um escritor: um guia para quem gosta de livros e para
quem quer escrevê-los. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
VILELA, Luiz. Bóris e Dóris. Rio de Janeiro: Record, 2006.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte,
literatura e tradução. São Paulo: Editora 34, 2005.
1 Introdução
1
Bacharel em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestrando em Teoria da
Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Bolsista CNPq.
E-mail: gustavo.matte@acad.pucrs.br
2
Conforme Bassnet e Lefevere (2001, p. 123), “what is studied is the text embedded in its network of
both source and target cultural signs”.
‘Rats’ “Rats”
WHY, there's two of them, and they're – Vejam só, tem dois, e estão brigando!
having a fight! Come on.’ Vamos lá!
It seemed a strange place for a fight — Era um lugar estranho para uma briga –
that hot, lonely, cotton-bush plain. And aquela planície quente, deserta, de pasto
yet not more than half-a-mile ahead pobre. Ainda assim, menos de meia milha
there were apparently two men adiante, parecia que havia dois homens
struggling together on the track. lutando no meio da estrada.
The three travellers postponed their Os três viajantes adiaram o descanso e
smoke-ho and hurried on. They were seguiram em frente. Eram shearers – um
shearers — a little man and a big man, pequeno e um grandão, conhecidos por
known respectively as ‘Sunlight’ and "Sunlight" e "Macquarie",
‘Macquarie,’ and a tall, thin, young respectivamente; e o outro, um jackaroo
jackeroo whom they called ‘Milky.’ alto e magro, que chamavam de "Milky"
Fonte: LAWSON, Henry. Publicação original em 1893. Tradução: Gustavo Arthur Matte, sob supervisão
do professor Ian Alexander, da UFRGS. Domínio público: disponível em
https://ebooks.adelaide.edu.au/l/lawson/henry/while_the_billy_boils/book2.8.html
3 O universo dos sindicatos é muito bem retratado no conto The Union Buries its dead.
4 O tipo de veículo através do qual o autor publicou originalmente seus contos também é um dado
importante para a reflexão tradutória. Tendo sido escritos inicialmente para veiculação em jornais
periódicos, os contos de Lawson apresentam forte diálogo com a realidade cultural imediata e com o
público leitor desses mesmos jornais, o que faz com que os textos sejam ainda mais culturalmente
específicos do que um conto que, por exemplo, tivesse sido produzido para ser consumido pelo
australiano urbano ou pelo inglês metropolitano. Conforme Bassnet e Lefevere (2001), “the material
conditions in which the text is produced, sold, marketed and read also have a crucial role to play” (p.
136).
3 Possibilidades
5 O uso de um glossário seria positivo no sentido de eliminar a repetição do paratexto, que ocorreria
com a nota de rodapé. Mas, ainda assim, seria um fator de ruptura na leitura, entrecortando-a.
Referências
Gustavo Giusti1
Adail Sobral2
Introdução
1
Doutorando em Letras. Universidade Católica de Pelotas.
E-mail: ggiusti@pelotas.ifsul.edu.br
2
Doutor em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela PUC-SP e professor da Universidade
Católica de Pelotas.
E-mail: adail.sobral@gmail.com
3
CHEVALLARD, Y. La transposition: Didactique du savant au savoir enseigné, 1998. In: ALMEIDA,
Transposição didática: por onde começar?, 2011.
Para que o saber científico possa atingir o ponto onde o professor julgue que
este conhecimento encontra-se apto a ser apropriado por seus alunos, alguns passos
são certamente necessários para transformar o saber cientifico em saber escolar.
Chevallard interpreta essa dinâmica didática como sendo composta por duas etapas de
transposições complementares: externa e interna. Segundo ele, a externa é
contemplada pelo currículo formal e livros didáticos, ou seja, todo material de apoio
que auxilie o aluno. Podemos incluir nessa lista quaisquer recursos tecnológicos hoje
disponíveis em grande número de nossas instituições de ensino. Já a transposição
interna é aquela que ocorre quando os conteúdos a serem ensinados são colocados
em sala de aula, é onde ocorre a ação do processo de aprendizagem.
Como forma de auxílio ou até mesmo em busca de um melhor embasamento
sobre a conceituação de Transposição Didática, temos Pereira (2012):
4
CHEVALLARD, Y. La transposition Didactique. Genoble: La pensée sauvage, 1991. In: POLIDORO;
STIGAR. A transposição didática: a passagem do saber científico para o saber escolar, 2010.
primeiro momento não foi criado com o objetivo de ser ensinado. É da natureza
humana gerar comparações, criar hierarquias, porém, mesmo havendo um
distanciamento entre os saberes, não há necessidade de um sobrepor o outro, uma
vez que ocorrem em situações distintas.
No âmbito da transposição externa, temos como agentes participantes do
processo desde instituições de pesquisa, instituições acadêmicas e escolares, e
também um mercado de livros didáticos e programas políticos ligados a currículo
escolares. Esse círculo que vivencia a educação foi nomeado por Chevallard como
Noosfera. O resultado desta “esfera pensante” (denominada assim por MATOS FILHO,
2008) são os documentos que regram as diretrizes curriculares e orientam o ensino de
uma determinada disciplina.
A passagem para o saber ensinado, que complementa então a transposição
didática, tem no professor o sujeito responsável por sua execução. E para que o saber
científico atinja os alunos, o próprio Chevallard em seus escritos já colocava que
eventuais “deformações” se fazem necessárias. Essas “deformações” não devem ser
compreendidas como perda de conhecimento, muito menos como um objeto a ser
ensinado equivocado. Durante a ocorrência da transposição interna, o conceito de
modulação inserido por Sobral (2009) destaca-se na literatura por permitir uma
excelente reflexão sobre as concepções dialógicas adotadas por docentes em sala de
aula, razão pela qual analisaremos com maior cuidado esse conceito, que talvez possa
complementar os termos da epistemologia proposta por Chevallard.
A modulação pedagógica
Resultados obtidos
outra especificidade, eles obtiveram êxito quase em sua totalidade, entre os 12 alunos.
Já o grupo B, que trabalhou circuitos pré-definidos ao longo do semestre, apenas dois
alunos (entre dez) conseguiram esboçar uma solução, sendo que um ainda não obteve
o desenvolvimento em tempo hábil.
Considerações finais
Para que possamos concretizar uma reflexão mais coerente, não nos
prendendo puramente aos resultados mensuráveis, faz-se pertinente refletir melhor
sobre os procedimentos. Partindo do raciocínio de que toda transposição didática
enfrenta dilemas acerca de sua construção prática, cabe pensar que
Referências
ALMEIDA, G. P. de. Transposição didática: por onde começar? 2. ed. São Paulo: Cortez,
2011.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
COSTA, F.; VISEU, S. Formação – Acção – Reflexão: um modelo de preparação de
professores para a integração curricular das TIC. As TIC na Educação em Portugal.
Concepções e práticas. Lisboa, 2008. p. 238-258.
MATOS FILHO, M. A. S. de. A transposição didática em Chevallard: as
deformações/transformações sofridas pelo conceito de função em sala de aula. In:
Congresso Nacional de Educação/Educere Curitiba: PUCPR, 8. 2008.
PEREIRA, P. R. B. A transposição didática como mediadora da transformação dos
saberes, 2012.
POLIDORO, L. de F.; STIGAR, R. A transposição didática: a passagem do saber científico
para o saber escolar. Ciberteologia – Revista de Teologia & Cultura, São Paulo, ed.
27, ano VI, p. 153-159, jan./fev. 2010.
Hilário I. Bohn1
Luiza Machado da Silva2
1 Introdução
Linguística Aplicada (AILA). A ALAB, em seu website, diz que a área da LA não é
“concebida como aplicação de teorias linguísticas, mas como um campo de
investigação de usos situados da linguagem nas diversas esferas do meio social”3. No
website da AILA, encontramos uma definição de LA que complementa aquela
encontrada na ALAB:
3
O link para o website está nas referências.
4
Idem ao 3.
Iniciamos a discussão com a afirmação de que este talvez seja um dos conceitos
mais fluidos da linguagem. Os conceitos de ética, valores (materiais, imateriais),
estética, arte, literatura, linguagem, todos fazem parte desse emaranhado de
significados que se concretizam na palavra cultura. Para não prolongar a discussão nos
limitamos ao conceito de cultura desenvolvido pela Escola de Frankfurt, pelo Marxismo
e pelos Estudos Culturais.
Para provocar, “o termo [cultura]5 denota o domínio estético, em particular o
domínio da arte e da literatura” (BOTTOMORE, 2012, p.138), mas limitar a cultura à
arte e literatura é desconsiderar a própria história da humanidade. Percorrendo as
páginas do mesmo livro encontramos as palavras de Lukács: (...) cultura “é o conjunto
de produtos e capacidades de valor que são dispensáveis em relação à manutenção
imediata da vida” (LUKÁCS apud BOTTOMORE, 2012, p.139). Nesses termos, Lukács
aproxima-se da definição de Freud (2014) que em seu livro O Mal Estar na Cultura
afirma que a cultura é tudo aquilo que é supérfluo (como a arte e a literatura, por
exemplo!), também é tudo aquilo que impede aproximar-nos do prazer, tudo aquilo
que inibe os impulsos biológicos. Por outro lado, a cultura é tão imprescindível à vida
humana, que não poderíamos reduzir a cultura apenas ao dispensável. Seria
extremamente interessante discutir a cultura a partir de todas as ciências, mas
precisaríamos de um livro, razão pela qual limitaremos as nossas discussões a alguns
autores que nos ajudam a compreender a importância da cultura no universo da LA.
Inicialmente, o termo cultura era tratado como um conceito ligado à
materialidade; cultura estava ligada ao cultivo de grãos e animais. A partir do século
XVI, o termo foi ganhando novos significados, passou a ser considerado o “cultivo da
5
Grifo nosso.
3 A nossa pesquisa
4 Considerações
Algumas considerações que finalizam este texto precisam ser feitas. Primeiro, é
importante deixar claro que não fazemos um julgamento de valor do trabalho
investigativo dos linguistas aplicados brasileiros (BOHN, 2015), lembrando a conhecida
frase de Jean P. Sartre, “Uma das coisas mais odiosas dos seres humanos é julgar os
outros”. E embora apresentemos os dados em números, não é um estudo com
tratamento estatístico, especialmente numa dimensão quantitativa materializada em
valores e medições numéricas.
Há indícios, nas buscas feitas, de uma forte concentração das pesquisas da LA
brasileira na sala de aula, na formação de professores, especialmente sobre o ensino e
a aquisição das línguas estrangeiras (adicionais), como dissemos anteriormente. Assim
a complexidade sociocultural, linguística, profissional e identitária da sociedade
Referências
Iuli Gerbase1
Introdução
Em 1995, o cinema fazia seu aniversário de cem anos desde a primeira projeção
pública feita pelos irmãos Lumière. Dos dez filmes desse ano com as maiores
bilheterias internacionais, quatro eram filmes de ação, dois de aventura, três infantis e
um thriller. (BOX OFFICE MOJO, 1995). Entre os oito filmes que não são animações,
1
Mestranda em Escrita Criativa no Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS. Bolsista CNPq.
E-mail: iuli.gerbase@acad.pucrs.br
Em 1960, já tivemos o suficiente! O filme havia sido maquiado até a morte, eles
diziam; porém desde então o uso de maquiagens tem estourado.
O objetivo “supremo” do filme decadente é enganar o espectador. É disso que
temos tanto orgulho? Foi isso que os “100 anos” nos trouxeram? Ilusões nas quais as
emoções podem ser comunicadas?… pela trapaça escolhida livremente pelo artista
individual?
Previsibilidade (dramaturgia) tornou-se o bezerro de ouro em volta do qual nós
dançamos. Ter a vida interior do personagem justificando a trama é muito complicado,
não é ‘alta arte’. Como nunca antes, a ação superficial e o filme superficial estão
recebendo todo o louvor.
O resultado é estéril. Uma ilusão de emoção e uma ilusão de amor.
Para o DOGMA 95, o filme não é ilusão!
Hoje, o resultado da furiosa tempestade de tecnologia é a elevação da
maquiagem a Deus. Com o uso da nova tecnologia, qualquer um a qualquer hora pode
lavar até o último grão de verdade na mortal adoção da sensação. As ilusões são onde
o filme pode se esconder.
DOGMA 95 contesta o filme de ilusão, apresentando um conjunto de regras
incontestáveis, conhecido como O VOTO DE CASTIDADE.
[Voto de castidade, apresentado e analisado adiante]
Além disso, eu prometo como diretor reprimir o gosto pessoal! Eu não sou mais
um artista. Eu prometo privar-me de criar ‘uma obra’, como eu considero o instante
mais importante que o todo. Meu objetivo supremo é forçar a verdade dos meus
personagens e da situação. Eu prometo fazer isso através de todos meios disponíveis e
ao custo de qualquer consideração sobre gosto e estética.
Deste modo, eu faço meu VOTO DE CASTIDADE.
Copenhagen, segunda-feira, 13 de março de 1995.
Em nome do Dogma 95
Lars von Trier, Thomas Vinterberg”
“Regra 1: A filmagem deve ser feita em uma locação. Objetos e cenários não
devem ser trazidos (se um objeto específico é necessário para a história, deve-se
escolher uma locação que o possua).”
Filmar “em locação” significa, ao contrário de montar um set, filmar em um
lugar que já existia antes da filmagem, seja uma cafeteria, casa, hospital, colégio, etc. A
filmagem em locação pode ser complicada devido aos ruídos da vizinhança e suas
restrições de horário e espaço. A principal vantagem de utilizar uma locação é usufruir
do seu realismo, da vivência que o lugar transparece. Na sua busca pela verdade, é
esperado que o Dogma exija que a história se adapte a um lugar real.
“Regra 2: O som nunca deve ser produzido à parte da imagem, ou vice-versa. (A
música não deve ser usada a menos que ocorra onde a cena está sendo filmada)”.
O que é proibido nesta regra é o que chamamos de “música extradiegética”, ou
seja, aquela que o espectador ouve, mas os personagens não. Primeiramente, se o
cinema desta corrente busca a realidade, é sabido que o céu não produz melodias
enquanto caminhamos na rua. Portanto, por que em um filme isto deveria acontecer?
Além disso, a música é um elemento forte e muito utilizado no cinema para
emocionar, conduzir a trama e adicionar ritmo às sequências. A música extradiegética
vai contra os ideais do Dogma 95 na medida em que é uma ferramenta que
automaticamente gera emoções no espectador por si só. O Dogma 95 repudia os
truques fáceis para criar sentimentos no público. A emoção deve vir somente da trama
e dos personagens, sem a ajuda de artimanhas.
“Regra 3: A câmera deve ser operada na mão. Qualquer movimento ou
mobilidade atingível com a câmera na mão é permitido. (O filme não deve acontecer
onde a câmera está; a filmagem deve acontecer onde o filme está).”
O uso da câmera estática, posta no tripé, cria um engessamento dos atores,
que acabam preocupando-se com o ponto em que estão em foco e os limites do
enquadramento. Para o Dogma 95, a câmera deve seguir o movimento dos atores, aos
quais é permitida a improvisação em cima do roteiro. Assim, a dramaturgia é
priorizada, não o enquadramento esteticamente perfeito.
“Regra 4: O filme deve ser em cores. Iluminação especial não é aceita. (Se não
houver luz suficiente, a cena deve ser cortada, ou uma lâmpada simples acoplada à
câmera).
“Regra 5: Efeitos especiais e filtros são proibidos.”
As regras 4 e 5 buscam diminuir a manipulação da imagem. O uso da imagem
em preto e branco, iluminação dramática, efeitos especiais e filtros afastariam o filme
vinte hortênsias? Se o leitor estiver com orçamento reduzido e tiver que limitar suas
despesas, qual dos dois compraria?
O mercado de livros infantil está se apropriando drasticamente de todas estas
ferramentas tecnológicas e interativas, o que provavelmente afetará o hábito dos
leitores das próximas gerações. Os livros costumavam ser obrigados a emocionar e
surpreender apenas com o uso das palavras distribuídas em uma trama bem
desenvolvida. Agora, os jovens leitores contam com jogos, músicas, vídeos e várias
outras ferramentas que suplementam o livro. Supõe-se que será difícil para as futuras
gerações contentarem-se apenas com o texto, visto que esse está virando apenas uma
parte do todo que conta a história. O prazer de imaginar personagens está sendo
substituído pela curiosidade de descobrir visualmente como eles são através de vídeos
e fotografias.
Sem falar nos livros que devem ser coloridos ou rasgados, supostamente com o
intento de trabalhar emoções negativas. Bons tempos em que o pagamento da terapia
era feita no consultório do psicólogo, não na livraria.
Para nós, já basta! Não podemos deixar o leitor perder sua capacidade de
imaginar livremente cenários e personagens. Não podemos deixar a narrativa
tradicional, que conta somente com a combinação de palavras de uma certa língua,
passar a ser vista como algo desinteressante e insuficiente.
O DOGMA LIT 2015 contesta o livro repleto de apêndices digitais, apresentando
um conjunto de regras incontestáveis, conhecido como O VOTO DE CASTIDADE
LITERÁRIO.
Além disso, prometo como escritor não ceder ao uso de tecnologias para a
suposta comercialização de minha obra, não importa o quanto meu editor insista!
Prometo cumprir minha abstinência do uso de outras plataformas, visto que
meu objetivo supremo é resgatar a essência da literatura.
Deste modo, eu faço meu VOTO DE CASTIDADE LITERÁRIO:
“Regra 1: O livro não deve sugerir ao leitor que ele faça alguma ação além de
folhear as páginas. Também não é permitido propor ao leitor comer, beber, ou escutar
algo específico enquanto folheia as páginas. Deixe o leitor em paz!
Regra 2: O livro não deve conter nenhuma imagem, seja esta desenho ou
fotografia. Isto inclui a capa, que deve conter apenas o título, o nome do autor e da
editora.
Regra 3: A fonte do livro deve se ater a um único tamanho e estilo do começo
ao fim da obra. A fonte deve ser preta.
Regra 4: O livro não pode direcionar o leitor a materiais adicionais, incluindo
músicas, vídeos, desenhos, fotografias, artes visuais, blogs, websites, outros textos ou
mapas.
Regra 5: O livro não deve conter nenhum recurso eletrônico como GPS,
conexão a rede wifi, CD, DVD, disquete, pen drive etc.
Deste modo, eu faço meu VOTO DE CASTIDADE LITERÁRIO.
Porto Alegre, 30 de maio de 2015.
Em nome do Dogma Literário 2015
Iuli Gerbase”
através do texto, quanto o conhecimento do autor de que vídeos serão feitos para
ilustrar certo trecho pode influenciar no seu modo de escrever?
O escritor tem consciência de que suas palavras provavelmente não causarão o
mesmo impacto que a sequência cheia de luzes, música e edição dinâmica do vídeo
que será produzido. Então, para que tentar? Encaramos o risco de o texto virar apenas
um instrumento de preparação para o leitor chegar ao vídeo. Afinal, quando a equipe
do digi-novel precisar escolher trechos para serem filmados, quais serão escolhidos:
diálogos comedidos entre os personagens ou o desarmamento de uma bomba? A
versão literária desta cena complicada passa a ser uma pequena amostra do que o
vídeo vai apresentar. Ela poderia ser acompanhada pela frase: “para deixar sua
experiência mais completa, assista ao vídeo no link…”. Que motivação, portanto, tem o
escritor para realmente dar o melhor de si na construção desta sequência, se depois
ele será humilhado pela versão audiovisual da mesma?
Outro elemento que pode afetar a escrita literária é a possibilidade de
adaptação da obra. Diversos bestsellers começam como livros tradicionais, mas são
seguidos de adaptações para cinema. Quando a adaptação para o cinema também é
um sucesso comercial, o mercado se amplia: o marketing cria inúmeros produtos
inspirados na obra: material escolar, roupas, louças, capas de celular, comidas,
brinquedos etc. O livro A culpa é das estrelas, de John Green, lançado em 2012,
vendeu 1.813.574 cópias até junho de 2014. O filme homônimo, lançado em 2014,
rendeu 271.613.643,00 dólares em bilheteria mundialmente. Bestsellers juvenis como
Harry Potter, Jogos vorazes e Crepúsculo geram contratos milionários com produtoras.
A escritora americana Annie Dillard escreve em seu livro The writing life: “Livros
escritos com contratos para o cinema em mente tem um odor leve porém óbvio e
nocivo. Não consigo nomear o que, no texto, alerta o leitor sobre os motivos
misturados do escritor; (...) Esses livros parecem ter medo de serem apenas livros;
parecem querer tirar seus disfarces e pular para as telas.”
Considerações finais
A criação literária também pode se tornar uma atividade menos solitária, seja
isso bom ou ruim. É possível escrever um livro tradicional sozinho e contar com outras
pessoas, como um editor e um agente, apenas no momento de publicar e lançar o
livro. Um digi-novel, entretanto, obriga o escritor a dialogar com uma equipe que
produzirá o vídeo que ilustrará um trecho da história. Talvez seja aconselhável que o
escritor aprenda sobre as novas tecnologias utilizadas na literatura para poder melhor
negociar e pensar a estratégia de interação de outras mídias.
Apontar um código no livro para uma webcam pode nos parecer estranho
agora, mas, num futuro não muito distante, as próximas gerações poderão sentir a
mesma estranheza ao ver alguém folheando simples páginas brancas com letras pretas
impressas. Portanto, é válida a reflexão de como o aumento dessas ferramentas
influenciará nos hábitos tanto dos leitores como dos escritores.
Referências
DILLARD, Annie. The writing life. New York: Harper Perennial, 1989.
HJORT, Mette; BONDEBJERG, Ib. The Danish directors. Dialogues on a contemporary
national cinema. Bristol: Intellect Books, 2001.
SIMONS, Jan. Playing the waves. Lars von Trier's game cinema. Amsterdam:
Amsterdam University Press, 2007.
SCHEPELERN, Peter. Ten years of Dogme. Film - Special Issue / Dogme. Copenhagen:
The Danish Film Institute, edição especial, primavera 2005.
COSTA, Cristiane. Admirável livro novo. Revista Bravo!, n. 152, p. 70-77, São Paulo,
abril, 2010.
LAURA, Benavides Carrera et al. Enough was enough! 111 f. Trabalho final do projeto
de pesquisa. Journalism and Computer Science, Roskilde University Center, 2005.
YALGIN, Emre. Dogma/Dogme 95: Manifesto for contemporary cinema and realism. 96
f. Monografia de conclusão do Master of Fine Arts. Institute of Fine Arts. Bilkent
University, 2003.
PUBLISHERS WEEKLY. The Best Selling Books of 2014. Disponível em:
<http://www.publishersweekly.com/pw/by-topic/industry-
news/bookselling/article/65171-the-fault-in-our-stars-tops-print-and-
digital.html>.
BOX OFFICE MOJO. 1995 Worldwide grosses. Disponível em:
http://www.boxofficemojo.com/yearly/chart/?view2=worldwide&yr=1995
IMDB. Internet Movie Data Base. Disponível em: <http://www.imdb.com>.
Janaína Tatim1
1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária do Instituto de Estudos da
Linguagem, UNICAMP, com bolsa de mestrado FAPESP.
E-mail: janaina@live.cuk
Rubião, depois de hesitar ainda, deu consigo dentro do tilburi que lhe
ficava à mão, e mandou tocar para Botafogo. Então lembrou-se de
um velho episódio esquecido, ou foi o episódio que lhe deu
inconscientemente a solução. Uma ou outra coisa, Rubião guiou o
pensamento, com o fim de escapar às sensações daquela noite.
Lá iam longos anos. Ele era então muito rapaz, e pobre. Um dia, às
oito horas da manhã, saiu de casa, [...] desceu a rua do Ouvidor até a
dos Ourives, não viu nem ouviu cousa nenhuma.
Na esquina da rua dos Ourives deteve-o um ajuntamento de pessoas,
e um préstito singular. Um homem, judicialmente trajado, lia em voz
alta um papel, a sentença. Havia mais o juiz, um padre, soldados,
curiosos. Mas, as principais figuras eram dois pretos. Um deles,
mediano, magro, tinha as mãos atadas, os olhos baixos, a cor fula, e
levava uma corda enlaçada no pescoço; as pontas do baraço iam nas
mãos de outro preto. Este outro olhava para a frente e tinha a cor
fixa e retinta. Sustentava com galhardia a curiosidade pública. Lido o
papel, o préstito seguiu pela rua dos Ourives adiante; vinha do Aljube
e ia para o largo do Moura.
Rubião naturalmente ficou impressionado. Durante alguns segundos
esteve como agora à escolha de um tilburi. Forças íntimas ofereciam-
lhe o seu cavalo, umas que voltasse para trás ou descesse para ir aos
seus negócios - outras que fosse ver enforcar o preto. Era tão raro ver
um enforcado! Senhor, em vinte minutos está tudo findo! - Senhor,
vamos tratar de outros negócios! E o nosso homem fechou os olhos,
e deixou-se ir ao acaso. O acaso, em vez de levá-lo pela rua do
Ouvidor abaixo até à da Quitanda, torceu-lhe o caminho pela dos
Ourives, atrás do préstito. Não iria ver a execução, pensou ele; era só
ver a marcha do réu, a cara do carrasco, as cerimônias... Não queria
ver a execução. De quando em quando, parava tudo, chegava gente
às portas e janelas, e o oficial de justiça relia a sentença. Depois, o
préstito continuava a andar com a mesma solenidade. Os curiosos
iam narrando o crime - um assassinato em Mata-porcos. O assassino
era dado como homem frio e feroz. A notícia dessas qualidades fez
bem a Rubião; deu-lhe força para encarar o réu sem delíquios de
piedade. Não era já a cara do crime; o terror dissimulava a
do romance, e quiçá em nossa memória histórica e social de nação. Pois, como sugere
Ernest Renan em seu ensaio O que é uma Nação: “Ora, a essência de uma nação é que
todos os indivíduos tenham muitas coisas em comum, e também que todos tenham
esquecido coisas”. Resta, talvez, ao âmbito da leitura, a tarefa de elaborar esquecidos
que fenômenos como a memória involuntária fazem ressurgir.
Referências
ASSIS, Machado de. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
________. Literatura Realista (O primo Basílio, romance do sr. Eça de Queirós, Porto,
1878). In: Obra completa em quatro volumes: volume 3. Org. Aluizio Leite Neto,
Ana Lima Cecilio, Heloisa Jahn. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.
BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Charles Baudelaire, um lírico
no auge do capitalismo. Trad. José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves
Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989.
PASSOS, José Luiz. Machado de Assis: o romance com pessoas. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo: Nankin editorial, 2007.
RENAN, Ernest. O que é uma Nação? Trad. Samuel Titan Jr. Plural; Sociologia, USP, São
Paulo, v. 4, p. 154-175, 1997.
O que é o mal? Por que ele existe? É possível definir o que é o bem e o que é o
mal? Essas são algumas das perguntas que acompanham os primórdios da civilização
humana. Desde que o homem toma conhecimento de sua existência, começa a
perceber que há uma dualidade entre mal e bem. Essa separação existe, mas é
propriamente, em sua essência, ambígua. Tal dicotomia pode ser estabelecida por uma
sociedade, por uma cultura, pela religião, pelas leis, etc. Historicamente, observamos
que cada época tem seus costumes e seus conceitos, implícitos e explícitos, do que é o
certo e do que é o errado, ou seja, do que é o bem e do que é o mal. Cada sociedade
cria ideias e representações do mal e do bem. Não responderemos o que é o mal.
Acreditamos que essa é uma questão incógnita, sem respostas, ou com respostas
relativas. O mal acontece na matéria e na não matéria. Há o mal palpável e o mal que é
metafísico e abstrato. O mal se aplica ao racional e ao irracional, ao sensorial, ao
material, ao imaterial, ao psíquico, ao linguístico, ao emocional. Compreendê-lo em
sua amplitude foge do nosso objetivo, pois a complexidade em que se encontra esse
tema tange a um mistério. Responder o que é o mal é um mistério. Descobrir o que é o
mal é como a questão que atormenta Alberto Caeiro (PESSOA, 2012). O heterônimo
pessoano deseja desvendar o mistério das coisas. Desvendar o mal é tão impossível
quanto desvendar o mistério das coisas. Ou, quando pensamos ter descoberto o que é
o mal, acomete-nos o mesmo “mal” que acometeu Bernardo Soares (PESSOA, 1999). O
outro heterônimo de Fernando Pessoa descobre que o único enigma que não tem
resposta é o porquê existem enigmas. Algo semelhante nos ocorre quando tentamos
responder o que é o mal.
O mal faz parte da natureza humana. Desde as culturas primitivas o homem
parece simbolizar essa dualidade entre bem e mal que perpassa a existência. Em quase
1
Mestrando em Teoria da Literatura na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Recebe
bolsa de incentivo da CAPES.
E-mail: jpsantosr@hotmail.com
2
Adolf Otto Eichmann foi um político da Alemanha nazista e tenente-coronel da SS. Ele foi responsável
pela logística de extermínio de milhões de pessoas no final da Segunda Grande Guerra. Organizou a
identificação e o transporte de pessoas para os diferentes campos de concentração, sendo por isso
conhecido freqüentemente como o executor-chefe do Terceiro Reich.
máquina da morte. Naquele momento e lugar, o ato de fazer o mal a outras pessoas
estava inserido num ritmo de atividade burocrática qualquer, sem que o agente
assumisse a responsabilidade pelo desdobramento de seu ato.
Retrocedendo ao século XIX, temos Friedrich Nietzsche. Ele postulou que os
seres humanos precisam ir além do bem e o do mal. Nossas percepções de bem e mal
fazem sentido em um mundo onde há um Deus, e não em um mundo sem Deus.
Quando sobrepujamos a ideia da existência de Deus tiramos a validade de conceitos
sobre como devemos viver. Nietzsche descrevia a si mesmo como um “imoralista”, não
alguém que faz o mal deliberadamente, mas alguém que acredita que precisamos ir
além de toda a moral. A morte de Deus abre novas possibilidades para a humanidade
que podem ser assustadoras ou construtivas. A vantagem, na perspectiva de
Nietzsche, era que os seres humanos, ao subtraírem Deus, podiam criar seus próprios
valores. Na obra Além do bem e do mal, ele propõe que “Não há quaisquer fenômenos
morais, mas apenas uma interpretação moral de fenômenos.” (NIETZCHE, 2014, p.97).
Voltando no tempo mais um pouco, encontramos Santo Agostinho. Ele foi um
dos pensadores que mais debateu e tentou entender o mal. Nascido em 354, ele
faleceu em 430. Em suas Confissões, Agostinho refletiu sobre alguns dos principais
alicerces do cristianismo. Ele foi um dos primeiros filósofos a ser posteriormente
transformado em santo pela igreja católica. Agostinho questionava-se sobre como
Deus e o mal podem coexistir. Para ele era um mistério entender por que Deus
permite que acontecimentos maus, ou seja, o mal aconteça. Se tudo vem de Deus e
por Deus, então como ele permite o mal? O mal vem de Deus também? Agostinho, no
início de sua vida, aderiu ao maniqueísmo para evitar a crença de que Deus queria,
fazia ou permitia o mal. Na concepção maniqueísta de mundo, Deus e Satã estão
imersos num combate eterno pelo poder. Em determinados espaços e certos tempos,
o mal sobrepujava o bem, mas nunca durante muito tempo. Os maniqueístas
refutavam a ideia de poder supremo do bem. O bem, nessa perspectiva, era
constantemente ameaçado pelas forças do mal. Já no fim da vida, Santo Agostinho
negou as proposições maniqueístas. Ele voltou a se debater com a problemática do
mal e conjecturou que na verdade o mal não existe por si. Ele não é substância, ele é
apenas a ausência do bem. O mal, então, é a privação, é o nada. Agostinho fornece
uma dimensão moral ao mal, pois nega que o mal tenha materialidade. Ele preconiza
que o mal é simplesmente uma privação do bem (AGOSTINHO, 2014).
Alguns filósofos contemporâneos rediscutem os conceitos e proposições sobre
o mal. Paul Ricoeur dedicou vários escritos à busca de desvelar o mal. Ele comunica
que o mistério do mal é semelhante ao mistério da morte. Nenhuma filosofia consegue
apreender a morte, pelo menos não completamente. Assim como a morte, apresenta-
se o mal, algo que beira o indizível (RICOEUR, 1988). Ricoeur refletiu em algumas de
suas teorias sobre a simbologia do mal, sobre a relação do mal com os mitos etc. Em
uma de suas últimas obras, O Mal - Um desafio à filosofia e à teologia, ele revê
algumas de suas posições anteriores sobre o mal e empreende a ideia de que o mal é
algo misterioso, inapreensível e indizível. O filósofo francês fala da necessidade de se
combater ética e politicamente o mal, o que normalmente causa também outro mal.
“Pela ação, o mal é antes de tudo o que não deveria ser, mas deve ser combatido.
Neste sentido, a ação inverte a orientação do olhar.” (RICOEUR, 1988, p. 48). Portanto,
“Todo o mal cometido por um ser humano, já vimos, é um mal sofrido por outro. Fazer
mal é fazer sofrer alguém.” (RICOEUR, 1988, p. 48).
A literatura nunca deixou o mal de lado. O mal é representado na literatura
desde Homero e as tragédias gregas, passando depois por muitas outras obras, como,
por exemplo, Dante Alighieri com a sua A Divina Comédia. A obra do poeta italiano
ajudou a criar o imaginário ocidental cristão sobre bem e mal, ao descrever “o
Inferno”, “o Purgatório” e “o Paraíso”.
Um estudo interessante sobre a relação do mal com a literatura é apresentado
no livro Monstros e monstruosidades na literatura, que foi organizado pelo professor e
pesquisador Julio Jeha. Nesse livro temos um capítulo, escrito por Jeha, chamado
“Monstros como metáfora do mal”. Nesse texto o pesquisador apresenta uma reflexão
sobre as representações do mal na literatura de forma ampla e depois faz uma análise
da corporificação do mal no monstro do romance Frankenstein, de Mary Shelley. Para
ele, “[...] o mal é a pedra na qual toda filosofia tropeça. Neste ponto tomamos
consciência que até o sofrimento carece de palavras para ser dito. Se é difícil definir o
mal, talvez seja possível discernir uma causa para ele.” (JEHA, 2007, p.10).
O autor do capítulo vai mostrando que a literatura parece oferecer uma
compreensão diferenciada sobre o mal através da fruição estética. A literatura
proporciona discussões pertinentes na tentativa de apreensão do mal. Ela nos ajuda a
compreender que o mal é parte de nossa existência e que devemos aprender a lidar
com ele.
Jeha, em seu texto, fala ainda da ambiguidade e da relatividade do mal.
“Algumas mulheres muçulmanas podem pensar que usar uma burca lhes confere
poder, enquanto ocidentais podem pensar que tal prática as degrada porque indica
opressão masculina e frequentemente oculta sinais de violência familiar.” (JEHA, 2007,
p.11). Então, o mal depende do olhar de cada um e da cultura em que cada um está
inserido. Cada sujeito carrega, de forma consciente ou inconsciente, noções e
conceitos do que é o bem e o mal. O autor do texto que estamos explanando discorre,
também, sobre a mudança na forma de pensar o mal em fins do século XIX:
De acordo com Karl Marx, o mal pode ser pensado em relação à luta de classes,
o mal para ele é que uns possuem mais riquezas e os outros menos, ou nada.
Nietzsche, de certo modo, postula o direito do mais forte sobre o mais fraco. Para ele
precisamos abandonar a moral para entender o mal. Já Freud fala que o mal é parte
inerente da raça humana. Para vivermos em sociedade precisamos passar por um
processo de castração e inibição de nossos impulsos primitivos. Relegamos ao
inconsciente nossa verdadeira natureza. Dessa forma, o preço da civilização é a
neurose, pois essa castração e recalcamento geram frustrações. Freud demonstrava
compaixão com os indivíduos e com a sociedade, pois ambos estão fadados à
destruição, como fica explicado em O mal-estar na cultura (FREUD, 2012). O mal para
Freud é que temos que oprimir e assassinar nossa verdadeira natureza para conseguir
viver em sociedade.
Na literatura a ambiguidade do mal parece ser atestada através de metáforas.
Parece que filósofos e teólogos tateiam ao representar ou entender o mal, desse
modo, “[...] escritores talvez sejam capazes de tornar o indizível visível. A serviço deles,
figuras do discurso, principalmente metáforas, podem dar corpo a noções abstratas
tais como existência negativa.” (JEHA, 2007, p.18). Ao tentarmos representar o mal,
normalmente criamos metáforas, relacionando seres e acontecimentos. Assim sendo,
vivendo na sociedade em que vivemos? Em Dr. Jekyll e Mr. Hyde, que também é
chamado de O médico e o monstro, já temos a questão da ambiguidade instaurada no
próprio título do romance. O médico e o monstro são a mesma pessoa, são o bem e o
mal dentro de cada um, são o duplo de todos nós. No romance A ilha do Dr. Moreau
temos a narrativa de um cientista que faz experiências de criação de seres humanos. O
romance propõe toda uma discussão sobre ética, religião, bem, mal etc. Em Drácula
avulta a metáfora de um ser humano que se alimenta do sangue de outros seres
humanos, a humanidade vampirizada. Ou seja, uma metáfora dos humanos que se
alimentam uns dos outros, usando disfarces sedutores. Falaremos agora da
personagem de Heathcliff.
3
Nelly é um dos narradores homodiegéticos do romance. Na verdade, predomina a voz dela na
narração, pois ela é que conta os acontecimentos para o sr. Lockwood.
fique feito um boneco a seu lado. Aliás, ele tem realmente cara de boneco.” (BRONTË,
2010, p. 73). A governanta completa: “Você é mais novo, mas juro que é mais alto que
ele e muito mais largo de ombros. Se quisesse, derrubava-o num abrir e fechar de
olhos. Não acha que pode?” (BRONTË, 2010, p.73). Heathcliff responde: “- Mas Nelly,
nem que eu derrubasse vinte vezes, isso não o tornaria menos bonito, nem mais bonito
a mim. Quisera eu ter cabelo louro e pele alva, andar bem vestido e ser bem
comportado como Linton e ter a sorte de possuir a riqueza que ele vai herdar.”
(BRONTË, 2010, p.74). Nelly, desse modo, arruma Heathcliff. Ela nos narra:
Depois disso, Linton, nessa mesma noite, faz um comentário zombeteiro sobre
o cabelo de Heathcliff ser crespo e diferente. A personagem não consegue tolerar a
suposta impertinência de alguém que, desde então, ele parecia odiar como a um rival.
De modo que ele apanha um recipiente com calda quente de maçã e atira no rosto e
no pescoço de Linton, iniciando uma confusão. Por isso, como punição, é espancado e
maltratado por Hindley. A partir desse incidente, Heathcliff percebe que não há
conciliação entre ele e esse mundo de Cathy. Ele jura para Nelly que irá se vingar de
Hindley, não importando quanto tempo ele terá que esperar. Heathcliff odeia Hindley,
mas, depois dessa noite de Natal, em determinado momento da narrativa, ele salva
Hareton, o filho de Hindley. Já observamos, então, como essa personagem é ambígua e
misteriosa.
Posteriormente, depois de ser humilhado muitas vezes, Heathcliff vai embora
do Morro dos Ventos Uivantes sem deixar vestígios, seu paradeiro é um mistério. Após
três longos anos ele volta rico e encontra Cathy casada com Linton. A personagem
explica sua vingança para Cathy:
O romance como um todo, de certa forma, trata dessa busca pelo reino perdido
de Heathcliff. Ele quer reencontrar seu mundo bucólico, estando disposto a fazer
qualquer maldade para reencontrá-lo. Há uma inadequação entre Heathcliff e o mundo
“normal”, ele pertence ao mundo da sua infância e quer desesperadamente voltar para
ele. Nelly comenta que o tratamento que Hindley deu ao menino cigano “seria capaz
de transformar um santo num demônio.” (BRONTË, 2010, p.85). Assim, a ambiguidade
de Heathcliff vai sendo construída. Depois dele retornar, seduzir Isabella, fugir com ela
e casar-se, eles retornam ao Morro dos Ventos Uivantes. Hindley está afundado em
dívidas por causa de jogos, por essa razão Heathcliff compra o Morro e vai morar nele
com Isabella. Ele permite que Hindley fique na casa, pois assim será a vez dele se
vingar. Em sua fúria, o protagonista começa a maltratar e agredir Isabella. Ele nunca a
amou. O casamento foi apenas parte de seu plano para se vingar, também, de Linton.
Quando Nelly visita Heathcliff e Isabella, ele conta para Nelly o seu desejo de
contemplar a destruição de Linton, “No momento em que a proteção dela
desaparecesse, eu lhe arrancaria o coração do peito e lhe beberia o sangue [...]”
(BRONTË, 2010, p.188). Na visita, a empregada percebe como Isabella está sendo
maltratada. Nós, leitores, ficamos assustados e estarrecidos com tudo que Heathcliff
faz. Contudo, aí é que está a ambiguidade, pois nos lembramos de tudo que ele sofreu
e, embora sintamos piedade das outras personagens, notamos um pouco de sentido
em sua vingança, mesmo repudiando seus atos. Sobre O Morro dos Ventos Uivantes e
Heathcliff, Ana Maria Machado confessa:
através do amor. Isso ocorre no fim do romance, quando há uma espécie de redenção
da personagem. Quando Catherine está no leito de morte ela se encontra com
Heathcliff, que consegue entrar furtivamente na casa. Ele e Cathy trocam acusações,
choram e se beijam. Ele diz:
- Agora você está mostrando o quanto foi cruel, quanto foi cruel e
falsa. Por que me desprezou? Por que traiu seu coração, seu próprio
coração, Cathy? Não tenho para lhe dar uma palavra de consolo.
Merece o que está sofrendo. Matou-me com suas mãos. Pode me
beijar e chorar... pode arrancar também de mim beijos e lágrimas: o
choro e os beijos só servirão para queimá-la melhor... para condená-
la mais... Você me amava... que direito tinha de me deixar? Que
direito, responda!, lhe dava o miserável capricho que sentiu por
Linton? Porque nem a desgraça, nem a miséria, nem a morte, nem
nada – nenhuma praga mandada por Deus ou satanás nos poderia
separar – você, por sua vontade, nos separou! Não lhe despedacei o
coração; você o despedaçou sozinha! E, com o seu, esmagou também
o meu. Pior para mim, que sou o mais forte. Quero por acaso viver?
Que vida será a minha quando você... Oh, Deus do céu! Quereria
você viver com a sua alma enterrada num túmulo? (BRONTË, 2010,
p.203)
feminino que a obra está impregnada. Esse sadismo é que chocou profundamente os
leitores na época do lançamento do romance, pois o mesmo tinha sido escrito por uma
mulher.
Desse modo, podemos aproximar a atmosfera do romance e as atitudes e
ideias de Heathcliff do niilismo de Nietzsche. Heathcliff é uma personagem “imoral”,
para ele só importa a sua vingança pelo amor perdido. Fica também sugerido em
vários momentos do romance o direito do mais forte sobre o mais fraco de que fala
Nietzsche. Northrop Frye, em seu estudo Anatomia da crítica (1973), já apregoa que
no romance de Brontë “algo de niilístico e indomável provavelmente se manterá a
irromper de suas páginas” (FRYE, 1973, p.299). À vista disso, a seguinte assertiva do
filósofo alemão talvez defina toda a grandeza e a atmosfera do romance O Morro dos
Ventos Uivantes: “O que é feito por amor, ocorre sempre além do bem e do mal.”
(NIETZSCHE, 2014, p.104).
Ao mesmo tempo, no final do romance, antes de Heathcliff morrer, acontece
uma espécie de redenção da personagem. Ele dá indícios de se arrepender de tudo
que fez, ele apenas quer encontrar a sombra de Cathy em um outro mundo.
Apontamos, por fim, que Emily Brontë constrói seu romance sobre essa ambiguidade.
Para ela o contraditório é harmônico, uma obra pode ser e não ser alguma coisa,
sendo duas coisas opostas ao mesmo tempo. Pensamos, então, que Heathcliff é uma
personagem ambígua, ambivalente. Ele está entre a escuridão e a luz, desconstruindo
as tipificações.
Referências
JEHA, Julio. Monstros como metáforas do mal. In: JEHA, Julio (Org). Monstros e
monstruosidades na literatura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos desde cedo. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2002.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Trad. Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM,
2014.
PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. 2. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1999.
PESSOA, Fernando. Poemas de Alberto Caeiro. Porto Alegre: L&PM, 2012.
RICOEUR, Paul. O Mal - Um desafio à filosofia e à teologia. Trad. Maria da Piedade Eça
de Almeida. Campinas: Papirus, 1988.
TWISS, Miranda. Os mais perversos da história. Trad. de Dinah de Abreu Azevedo. São
Paulo: Planeta do Brasil, 2004.
Considerações iniciais
1
Doutorando em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS. Bolsista CNPq.
E-mail: jonasrsaraiva@hotmail.com
2
Doutoranda em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS. Bolsista CAPES.
E-mail: paty_valente13@hotmail.com
a mente era ainda um conceito vago. A teoria dos atos de fala e a teoria das
implicaturas são dois aportes teóricos que podem auxiliar na produção de um
protocolo pragmático, embora não se relacionem diretamente, de maneira teórica,
com a cognição. Em outras palavras, pretendemos utilizar tais teorias, escolhidas,
como dito, arbitrariamente, como um caminho para chegar a uma análise cognitiva, a
consciência, que está vinculada à metacognição, embora não sejam elas teorias
propriamente cognitivas.
Antes de adentrar a cada uma delas especificamente, é importante abordar a
consciência metapragmática como um todo, para melhor compreender o campo que
estamos adentrando. Flôres (1994) apresenta uma definição importante: é a de que as
“habilidades pragmáticas permitem o uso efetivo da linguagem no seu contexto, e as
metapragmáticas possibilitam a compreensão e controle desse uso” (p.184).
Para Gombert (1992), o nível metapragmático daria conta somente do
sistema linguístico e seu contexto de uso, sendo reservados os aspectos
intralinguísticos para o nível metatextual, embora ele assuma a existência de um
campo semântico-pragmático que abarcaria o que não é estrutural na linguagem, pois,
para ele, seria difícil separar os dois campos. Essa visão certamente influenciou a
criação do Protocolo Pragmático de Flôres (1994). No caso do presente trabalho,
propomos considerar ao máximo a noção de uso e contexto como conceitos-chave
para o entendimento da pragmática, embora não neguemos suas relações inerentes
com a semântica. Essa visão está bastante presente nas teorias pragmáticas que serão
abordadas. Vamos, de maneira sintética, estudá-las.
A Teoria dos Atos de Fala, proposta por Austin, foi uma das primeiras
iniciativas de vinculação da língua, abstrata, com sua possibilidade de concretização,
propondo uma visão diferente da que, na época, pregava a linguagem somente como
descrição do mundo. Dessa forma, Austin (1962) propõe que os enunciados de
natureza apenas descritiva sejam denominados constatativos. Um exemplo de
enunciado constatativo é “Essa casa é grande”. Nesse enunciado, só se pode verificar a
relação da língua com o mundo e o valor de verdade existente nessa relação. Porém,
Austin propõe que não existem somente enunciados de natureza descritiva.
Apresenta, então, o conceito de enunciados performativos (performative utterance).
Um exemplo de enunciado performativo é “Feche a janela, por favor”. Esse enunciado,
como se pode verificar, não é passível de verificação de valor de verdade. Não apenas.
Verifica-se uma intencionalidade de agir (to perform) sobre o mundo físico por parte
do locutor. Para ser performativo, o enunciado precisa gerar, ou não, ações no mundo.
Quando de um enunciado resulta uma ação no mundo, diz-se que ele é um enunciado
TEXTO 1:
Carlinhos se justifica com a mãe por tê-la desobedecido e ido a uma festa dos colegas da turma
no dia em que ela tinha lhe dado um castigo:
- Mas mãe, você não fez nada, só disse que eu estava de castigo! E nem falou quando
começava.
A mãe, aos berros, responde:
- E desde quando precisa marcar hora ou fazer alguma coisa pra botar alguém de castigo?! Eu
falei: “tá de castigo”. É o bastante! E o senhor pode se considerar com o castigo dobrado,
mocinho!
TEXTO 2:
Após presenciar uma discussão da mãe com uma vizinha, a menina comenta:
- Muito simpática a nossa vizinha, né, mãe?!
- Sim, filhinha muuuuito simpática!
No caso da fala da mãe, está posto que ela não acredita no que está dizendo e
produz um efeito de ironia ao responder à filha. Essa ironia é o resultado da
TEXTO 3:
O garoto retorna das férias na casa dos avós e a mãe quer saber notícias:
- E aí, filho, me conta o que você fez, você brincou, jogou bola, conversou com a vovó e...
- … aham.
- E gostou de ir lá? Quando eu era pequena eu adorava passear no bairro e conhecer as amigas
da vovó e...
- … legal.
- O ano que vem, você pode convidar aquele seu amiguinho pra ir junto e...
- … é.
TEXTO 4:
Dois meninos conversam quase ao final de uma tarde juntos brincando:
- Eu gostei muito desse binquedo!
- Minha mãe não dexa eu empestá meus binquedos!
Na fala do segundo garoto (2), vê-se uma “quebra” da máxima de relação por
conta da aparente mudança de assunto. Entretanto, é possível ver que (2) entendeu
que a intenção do primeiro garoto (1), com sua fala, era a de expressar desejo pelo
carrinho, ao que (2) respondeu implicando não querer ou não poder emprestá-lo.
Por último, para a categoria de modo, o principal princípio é: seja claro. Veja-
se, por exemplo, o diálogo contextualizado a seguir:
TEXTO 5:
A professora pergunta para a turma sobre o trabalho para a feira de ciências e aponta para
Fernando:
- Fê, você trouxe o trabalho de ciências?
- Olha, professora, a senhora sabe como é, lá em casa a gente está se mudando agora, porque
a gente sempre se muda quase todo o ano, porque meu pai é militar e daí eu fiz, e ficou muito
legal, mas, quando saímos, eu pensei que minha mãe tinha dito pro meu pai pegar e ele disse
que não tinha visto, daí eu resolvi procurar e agora vai começar uma reforma na casa e eu
poderia...
- Já entendi tudo, Fê, não precisa falar mais nada. Paty, você trouxe...
Com base em Tomich (2007), apesar das críticas aos estudos que utilizam
protocolos, conclui-se que ainda são a melhor saída para a pesquisa em PL. Neste caso,
como se trata de uma interface dessa área com a Pragmática, uma estrutura possível
de instrumento de avaliação da consciência desse nível da linguagem é proposta a
seguir, tendo como referências os trabalhos de Pereira (2013, 2010) e de Flôres (1994).
3.1 Corpus
Sobre os princípios citados, cabe ressaltar que são, em certa medida, bastante
gerais para práticas científico-pedagógicas que envolvem crianças. Ou seja, não dizem
respeito exatamente e especificamente a um instrumento de avaliação da consciência
pragmática. Porém, são importantes para preparar o participante e delimitar o
conteúdo e a abrangência do teste. São, portanto, passos precedentes à verificação da
consciência em si, que virá a seguir por meio de questões (orais) que constituem a
“essência” do protocolo verbal.
que estão dispostas nos critérios, pois essa ordem apenas as caracteriza de acordo
com nossa visão:
1º Critério – Questões de contexto (Qctxt): são importantes para que a criança não tenha,
como empecilho, alguma dificuldade de compreensão da situação, tendo em vista que o foco
do instrumento é a consciência. A Pragmática está presente nessas questões por ser, como já
mencionado, uma área vinculada diretamente ao contexto que envolve a linguagem.
2º critério – Questões de conteúdo (Qctd): são importantes, após as de contexto, para
que a criança identifique, ainda que não explicitamente, o ponto central do conteúdo
abordado. Por conta da clareza nesse critério é que optamos pela elaboração ad hoc dos textos
utilizados.
3º critério – Questões de consciência (Qcons): são importantes para avaliar o processo
focalizado durante todo o texto. Podem ser dispostas mais ao final do conjunto de questões,
após as reflexões sobre o contexto e o conteúdo, tendo em vista que dependem de tais
raciocínios de maneira antecedente para expressarem a presença de consciência (ou não) do
caminho cognitivo percorrido, até então, pela criança por meio das subquestões.
Sobre o TEXTO 1: a) O que a mãe de Carlinhos fez com ele no dia da festa da turma?
(Qctxt); b) Como ela fez isso? (Qctxt / Qctd / Qcons); c) O que ela disse exatamente para o
menino nesse dia? (Qctxt); d) A mãe e Carlinhos estão conversando antes ou depois da festa?
(Qctxt); e) A mãe fez algo com Carlinhos ou só falou com ele? (Qctxt / Qctd / Qcons); f) O que
vai acontecer com Carlinhos segundo a mãe? (Qctxt); g) Como ela fez isso? (Qctxt / Qctd); h)
Você acha que só ao falar a mãe já estava colocando Carlinhos de castigo? (Qctd); i) Por que
você acha isso? (Qctd / Qcons); j) Você sabia que às vezes não precisamos agir, precisamos
apenas falar e já estaremos agindo? (Qcons); k) Vamos conversar sobre isso? Você pode dar
mais exemplos? (Qcons).
Sobre o TEXTO 2: a) A menina viu a mãe conversando com a vizinha? (Qctxt); b) Você
acha que a mãe da menina e a vizinha estavam brigando? (Qctxt); c) Você acha que a vizinha
pode ter sido simpática? (Qctxt / Qctd); d) Quando a mãe entrou, você acha que a menina
falou o que pensava sobre a vizinha? (Qctd); e) E a mãe da menina, falou o que pensava sobre
a vizinha? (Qctd); f) Por que você acha que a menina e a mãe falaram uma coisa boa em vez de
uma coisa ruim sobre a vizinha? (Qctd); g) O que você acha que a mãe e a menina queriam
dizer sobre a vizinha? (Qcons); h) Você percebeu que elas disseram uma coisa querendo dizer
outra coisa sobre a vizinha? (Qctd); i) Por que elas fizeram isso? (Qcons); j) Você acha que isso
pode acontecer em outras situações? (Qcons).
Sobre o TEXTO 3: a) A mãe e o menino estão conversando quando? (Qctxt); b) O que
a mãe quer saber do menino? (Qctxt); c) Como o menino está respondendo? (Qctxt); d) Você
acha que o menino está respondendo ao que a mãe está perguntando? (Qctd); e) E você acha
que a mãe está entendendo o que o menino quer dizer? (Qctd); f) Você acha que o menino
gostou do passeio na casa dos avós? (Qctd / Qcons); g) O menino disse o que queria dizer para
a mãe dele ou ficou escondendo o que queria dizer? (Qctd / Qcons); h) Por quê? (Qcons); i)
Como ele poderia ter respondido? (Qcons); j) Você percebeu que, mesmo respondendo, assim,
rápido, foi possível entender o que ele queria dizer? (Qcons).
Sobre o TEXTO 4: a) O que os dois meninos estavam fazendo? (Qctxt); b) Por quanto
tempo? (Qctxt); c) O que o primeiro menino pediu ao outro? (Qctxt); d) Como foi que ele pediu
isso? (Qctxt / Qctd); e) O menino vai conseguir o que queria com o brinquedo? (Qctxt); f) Você
acha que o primeiro menino estava mesmo pedindo isso, ou foi o outro menino que
entendeu? (Qctd / Qcons); g) Como você sabe isso? (Qctd / Qcons); h) O que você entendeu da
história? (Qcons); i) A mãe do menino estava junto no lugar? (Qctxt / Qcons); j) Por que o
segundo menino falou da mãe dele? (Qcons); k) O segundo menino disse “não” ao primeiro?
(Qcons); l) Como você entendeu o que ele quis dizer? (Qctd / Qcons).
Sobre o TEXTO 5: a) Quem são os personagens da história? (Qctxt); b) O que eles
estão fazendo? (Qctxt); c) Onde você acha que eles estão? (Qctxt); d) O que vai acontecer na
escola? (Qctxt); e) O Fernando respondeu ao que a professora perguntou? (Qctd); f) Como ele
respondeu? (Qctd); g) Você entendeu a resposta do Fernando? (Qcons); h) O que ele quis
dizer? (Qcons); i) A professora entendeu a resposta? (Qcons); j) O que a professora entendeu?
(Qcons); k) Por que ele respondeu assim? (Qctd / Qcons).
Considerações finais
de forma lúdica o corpus textual de cada questão e apresentar subquestões que levem
em conta a compreensão da situação/contexto do texto, o conteúdo (pragmático) e o
conceito de consciência.
Esse último ponto ajuda a responder à primeira questão de pesquisa. Assim,
por meio de questões que levem a criança a refletir sobre o fato e o contexto
apresentados na questão, no nível concreto e no nível linguístico, sugerimos uma
maneira para o uso da noção de consciência como ponto de contato com os estudos
pragmáticos.
Sobre as subquestões propostas para o instrumento, cabem algumas
observações. A sua construção e organização é, talvez, o ponto de maior complexidade
na elaboração do instrumento, tendo em vista ser bastante difícil demonstrar na
estrutura da questão somente um ponto dos muitos aspectos envolvidos. Ou seja, é
difícil fazer com que cada questão aborde objetivamente um aspecto apenas do
instrumento. Por isso, optamos por dispô-las sem divisão e sugerindo um foco ao lado
de cada uma (Qctxt ou Qctd ou Qcons), embora, em alguns casos, tenha sido
impossível delimitar apenas um. Consideramos, entretanto, que essa caraterística do
protocolo não o prejudica. Pelo contrário, por ser uma caraterística inerente à
linguagem a interação das partes que a formam, dá ao instrumento “veracidade” no
quesito abordagem do uso da língua.
Por fim, com base nos estudos já desenvolvidos sobre o assunto, parece-nos
importante apontar contribuições teórico-práticas advindas da interface proposta,
como forma de responder à terceira questão de pesquisa. Para a Psicolinguística, a
orientação referente à produção de instrumentos sempre é relevante tendo em vista
ser uma área de predominância de iniciativas empíricas. Nesse caso, a própria
estrutura proposta para o instrumento constitui-se como contribuição prática para a
PL. Para a Pragmática, como área predominantemente teórica e de origem filosófica, a
possibilidade de transposição prática é uma contribuição importante.
Teoricamente, a intersecção dos conceitos das duas áreas, PL e Pragmática,
aporta contribuições para ambas: para a primeira, no que se refere às possibilidades
de estudo dos processos com base em uso e contexto; para a segunda, no que se
refere às possibilidades de estudo processual (consciência) do âmbito prático da língua
(uso e contexto).
Nesse sentido, cabe ressaltar que, na interface proposta, a PL esteve presente
no conceito e na verificação da consciência, e a Pragmática, por sua vez, esteve
presente em dois aspectos: na observância de uma necessidade continuada de
contextualização do instrumento (sendo esse um aspecto de cunho metodológico), e
Referências
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leitora e ensino da leitura nos anos finais do Ensino Fundamental. In: CIPLOM
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9º Encontro CELSUL, 2010, Palhoça. Caderno de Programação e Resumos - 9º
CELSUL. Palhoça: UNISUL, 2010.
POERSCH, J. M. Contribuições do paradigma conexionista na obtenção de
conhecimento linguístico. In: LAMPRECHT, Regina (Org). Anais do IV Encontro
Introdução
1
Doutoranda em Linguística no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE. Pesquisadora
do grupo de pesquisa Linguagem, Sociedade, Trabalho e Saúde.
E-mail: josilaurec@gmail.com
O nosso objetivo aqui é discutir quais são as questões históricas e sociais que
levam a sociedade a não valorar o trabalho doméstico como qualquer outro trabalho
produtivo na escala econômica.
Para analisar melhor essa questão, trouxemos o pensamento de Hannah
Arendt, uma cientista política germânica de origem judia nascida em Linden, Hanôver,
Alemanha, consagrada como um dos grandes nomes do pensamento político
contemporâneo por seus estudos sobre os regimes totalitários e sua visão crítica da
questão judaica. No seu livro A condição humana, a autora diz que a condição humana
está relacionada às formas de vida que o homem impõe a si mesmo para a sua
sobrevivência. Segundo ela, as condições tendem a suprir a existência do homem e
variam de acordo com o lugar e o momento histórico no qual ele está inserido. Assim,
todos os homens são condicionados de duas maneiras: a primeira, pelos próprios atos,
pensamentos e sentimentos. A segunda, pelo contexto histórico no qual estamos
vivendo (cultura, amigos, família), elementos externos do condicionamento.
Para Arendt (2007), a condição humana estaria relacionada à Vida Ativa e,
assim, designa as três atividades humanas fundamentais, as quais correspondem às
condições básicas mediante as quais a vida foi dada ao homem na terra: o labor, o
trabalho e a ação. O labor seria o processo biológico necessário à sobrevivência do
indivíduo e da espécie humana. Já o trabalho produz um mundo artificial de coisas,
diferente de qualquer ambiente natural. Segundo a autora, a condição humana do
trabalho é a mundanidade, uma vez que tudo que é fabricado ou trazido ao mundo é
mundanizado. A ação, por sua vez, seria a atividade que é exercida entre os homens
sem a mediação de coisas ou de matéria. Ela estaria relacionada à condição humana da
pluralidade e seria, então, eminentemente social.
Segundo Arendt (2007), de acordo com o pensamento grego, a capacidade de
organização política é oposta à associação natural cujo centro é composto pela casa e
pela família. O surgimento da cidade-estado deu ao homem uma espécie de segunda
vida, uma vida política (bios politikos), na perspectiva de Aristóteles. Dentro dessa vida
política, estariam presentes duas atividades consideradas políticas: a ação (práxis) e o
discurso (léxis), no entanto, para aqueles que não viviam na polis – escravos e bárbaros
– esse discurso não era igual à faculdade de falar e sim, à capacidade de todos os
cidadãos em discorrer uns com os outros.
A esfera da vida privada (família) e a esfera da vida pública (política) eram
distintas e separadas a partir do surgimento da antiga cidade-estado, mas a
ascendência da esfera social, que não era nem privada e nem pública no sentido
restrito do termo é um fenômeno relativamente novo na era moderna. Para a
passaram a ser de interesse coletivo e assim essas duas esferas – pública e privada –
recaem uma sobre a outra (idem, ibidem, p.43). A esfera da polis era a esfera da
liberdade, mas, para estar nela, seria necessário vencer todas as necessidades da vida
em família pois “Ser livre significava ao mesmo tempo não estar sujeito às
necessidades da vida nem ao comando de outro e também não comandar” (idem,
p.41). Para ingressar na vida política era necessário ao homem arriscar a própria vida,
no entanto, a sobrevivência, a defesa da vida – possíveis apenas na vida privada – e o
amor à vida representavam um obstáculo à liberdade. É na vida pública em sociedade
que também se espera que os seus membros tenham determinados comportamentos
associados a inúmeras e variadas regras as quais tendem a normalizar esses indivíduos
e fazê-los comportarem-se de modo a reagirem diferentemente do modo como se
comportam em sua esfera particular.
Poderíamos dizer, então, com essa pensadora política, que a esfera pública se
apoia na esfera privada uma vez que os cuidados da vida doméstica – trabalho
doméstico não remunerado – relacionados à sobrevivência são imprescindíveis para a
sustentação da vida pública de qualquer homem. Seguindo esse raciocínio, ela vai
dizer que o trabalho se diferencia do labor a partir daquilo que é produzido levando-se
em conta a questão da durabilidade. Em outras palavras, tudo o que é produzido pelo
processo do trabalho é consumido, no entanto, no caso do labor, a coisa consumida
não tem a mesma permanência mundana dos produtos produzidos pelo homo faber.
Trazendo a questão daquilo que é produzido pelo labor, o qual está relacionado à
sobrevivência, poderíamos dizer então que o trabalho doméstico não remunerado,
cujo produto é consumido mais rapidamente, não seria valorado pelo fato de sua
durabilidade não ser a mesma de objetos como um sapato, por exemplo.
Arendt segue dizendo que, ao contrário do animal laborans, cuja vida é alheia
ao mundo e assim, é incapaz de habitar uma esfera pública e mundana, o homo faber é
perfeitamente capaz de ter a sua própria esfera pública, embora essa não seja uma
esfera política, no sentido da polis para os gregos. Essa esfera pública seria o mercado
de trocas, lugar onde aquilo que é produzido pelos artífices, por exemplo, é levado
para a exposição. É nesse mercado de trocas que os objetos recebem valor, uma vez
que podem ser negociados e permutados. A sociedade comercial, típica dos primeiros
estágios da era moderna ou do início do capitalismo manufatureiro, resultou dessa
produção ostensiva e o seu fim chegou com o enaltecimento do labor. Nela, o valor de
um determinado produto só poderia ser estimado não pelo seu processo de produção,
mas pela esfera pública na qual o objeto surge para ser estimado, exigido ou
desdenhado (idem, p.177).
O valor imputado às coisas passa a ser mais subjetivo quando trazido para a
relatividade da troca, na esfera pública. Segundo Arendt, foi esse conceito de valor que
Marx introduziu quando disse que as coisas, ideias ou ideais morais só têm valor
quando se relacionam com o social.
De acordo com Arendt (2007), não é de se surpreender que a distinção entre
labor e trabalho tenha sido ignorada na antiguidade clássica. A diferenciação entre a
casa privada e a esfera política pública, entre o doméstico que era um escravo e o
chefe da casa que era um cidadão, entre as atividades que deviam ser escondidas na
privatividade do lar e aquelas que eram dignas de vir a público, apagaram e
predeterminaram todas as outras distinções até restar somente um critério: é na
privatividade ou em público que se gasta a maior parte do tempo e do esforço?
Sem dúvida, a evolução histórica tirou o labor do seu esconderijo e o trouxe à
esfera pública onde ele pode ser organizado e dividido de acordo com a sua
produtividade. Contudo, um fato ainda mais relevante nesta questão, já pressentido
pelos economistas clássicos e claramente descoberto e expresso por Marx, segundo
Arendt, é que a própria atividade do trabalho (labor), independentemente das
circunstâncias históricas e de sua localização na esfera privada ou na esfera pública,
possui realmente uma produtividade por mais perene que seja a durabilidade dos seus
produtos. Para a pensadora política, a produtividade estaria relacionada à força
humana empreendida para a produção de qualquer coisa cuja intensidade não se
esgota depois que ela produz os meios de sua subsistência e sobrevivência, mas é
capaz de produzir um excedente, a qual não se extingue mesmo quando não
acrescenta novos objetos ao artifício humano. A sua preocupação maior são os meios
da própria reprodução. Essa força não produz outra coisa, senão vida.
Considerações finais
Referências
ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 7. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1995.
OLIVEIRA, Luciano. 10 lições sobre Hannah Arendt. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
RECAMAN, Marisol; OLIVEIRA, Suely (Orgs.). A mulher brasileira nos espaços público e
privado. São Paulo: Perseu Abramo, 2004.
SCHWARTZ, Yves. Trabalho e valor. Rev. Sociol. USP, S. Paulo, v. 8, n. 2, p. 147-158,
outubro de 1996.
______. Conceituando o trabalho, o visível e o invisível. Trab. Educ. Saúde, Rio de
Janeiro, v. 9, supl. 1, p. 19-45, 2011.
SORJ, Bila. Trabalho remunerado e trabalho não-remunerado. In: VENTURI, G.;
Disponivel em: <http://www.mundodosfilosofos.com.br/a-condicao-humana-
hannah-arendt>. Acesso em 30.11.2015.
Introdução
1
Graduada em Letras-Espanhol pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões –
URI – Campus de Frederico Westphalen. Professora da rede Pública e Privada do Estado do Rio Grande
do Sul. Especialista em Gestão Estratégica de Pessoas. Especialista em Literatura Brasileira. Mestranda
do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras pela Universidade Regional Integrada do Alto
Uruguai e das Missões – URI – Campus de Frederico Westphalen.
E-mail: dmjuli79@hotmail.com
2
Doutora em Letras e Professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras pela
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – Campus de Frederico
Westphalen.
E-mail: luana@.uri.br
(2005, p. 10), leis estas, que o tornam em sua estética e intensidade uma nova criação
do século atual, cuja tendência é mostrar e ou sugerir ao leitor que preencha as elipses
narrativas e entenda a história por trás da história em culminância as suas vivências,
experiências e posicionamentos.
A verossimilhança da literatura para com a realidade, existente na antiguidade,
reporta-se para a atualidade embora com formatação distinta, simplificada e
instigante. O que antes era tido como protótipo de conduta a ser seguida hoje permite
a liberdade de levantamento de hipóteses e conclusões mediante reflexões propostas
pela obra, pois essa é um fato plausível de exame. Por isso, propomos o cotejo de
narrativas distanciadas no tempo e que apresentam um tema em comum.
Esta análise comparatista envolve o exame de dois objetos literários: um conto
de fadas e um miniconto. Para isso, são cotejados o conto “Pele de Asno”, do escritor
francês Charles Perrault, e o miniconto “Cicatriz”, de Flora Medeiros, textos que
espelham a sexualidade, mais especificamente a questão do incesto. Sobre olhar
reflexivo acerca das narrativas e levando em consideração o impacto da violência
estrutural e conjuntural nas relações interpessoais e sociais, a qual interfere na
configuração dos textos literários, constata-se que as duas narrativas, em termos
estéticos e conteudísticos, problematizam a violência contra a criança e expressam um
valor social por possibilitar a ampliação da quebra do silêncio na literatura ao tratar de
abusos corporais e psíquicos projetados na infância, dando, assim, representatividade
à infância roubada e aos sujeitos-crianças cujas histórias são repletas de práticas de
violência.
Contar histórias é uma atividade que acompanha o homem desde sua origem.
Nos tempos primórdios, as gravações em pedras narravam a maneira como eram
concebidas as conquistas humanas. Com o uso da linguagem, o próprio homem
transmitia oralmente, histórias que eram perpassadas entre gerações, contando a
origem de determinado povo, de objetos, de lugares. Visto que a linguagem organiza,
valoriza e investiga, trazendo à superfície imagens, histórias e conceitos construídos ao
longo de um percurso pessoal, o ato de transmitir essas considerações ganha a
nomenclatura de narrativa.
Ambos os objetos analisados “Pele de Asno”, conto de fadas de Perrault e
“Cicatriz”, miniconto de Flora Medeiros, são narrativas que permeiam não apenas no
campo infantil; mas social, porque além de exibirem temática polêmica, apresentam
vozes caladas e sofredoras, relatos de amores e humilhações; aspectos relevantes para
uma análise detalhada no entorno do conceito humanitário; uma vez que, são vozes
infantis intimidadas por atitudes adultas de seus genitores.
Assim a Literatura Infantil ganha forma e espaço, concebendo, dentro da
sociedade uma nova classe social de características próprias, a infância. As histórias
elaboradas para crianças foram associadas a instrumentos de ensino para a pedagogia,
onde de certo modo, a sociedade impunha suas delimitações e condutas, onde livros
traduzem as mais variadas dicotomias.
Realidade essa que por deveras não é tão boa assim, que não permite a
intervenção de uma “fada madrinha” e nem ao menos o final feliz da história, fato que
persiste em muitos núcleos familiares, independente de padrão social ou econômico.
Como afirmam os autores Azevedo e Guerra (1988):
Desde que o mundo é mundo, a criança tem sido vítima de toda sorte
de explorações, inclusive e principalmente de natureza sexual
(princípio nº 9 da Declaração) no entanto, sua denúncia tem tido
pouco eco, abafado pelo „complô do silêncio‟ com que a sociedade
em geral e os especialistas, em particular, têm procurado encobrir
„temas impertinentes‟. Por sua vez, a própria ideia de exploração
sexual da infância é conquista recente, na medida em que se assenta
em um duplo reconhecimento – o da existência de um padrão
assimétrico de relações sociais entre gerações – o padrão
adultocêntrico e o da concepção da criança como cidadão, sujeito de
direitos, e não como menor de idade, passível de ser objeto do prazer
adulto. (AZEVEDO; GUERRA, 1988, p. 5-6)
casamento nasce uma menina “muito prendada, e assim sendo, o casal se consolava
de não ter outros filhos” (PERRAULT, s.d. p.39); algum tempo depois, a rainha fica
muito doente, e faz um último pedido ao seu esposo, de jurar casar-se apenas quando
encontrar outra mulher que tenha melhores talentos que ela. No miniconto Cicatriz,
observamos uma célula familiar, desconstituída, uma criança que diferente do conto
de fadas, encontra-se na maior parte do tempo sozinha “a casa vazia” (MEDEIROS,
s.d.), indagando o leitor sobre a real existência da mãe ou sua ausência temporária.
Ambas as narrativas são escritas em primeira pessoa, o que permite uma
subjetividade maior por parte do narrador e um envolvimento intenso por parte do
leitor. O narrador expressa seu ponto de vista, detalhado e com caráter utilitário; em
Pele de Asno, Perrault, ao fim do conto, expunha uma moral, segundo a sua convicção:
“Esta história mostra que é preferível expor-se aos maiores sofrimentos, a faltar a
cumprir o dever, pois a virtude pode ser desprezada e infeliz, mas sempre será
premiada.” (PERRAUT, s.d. p.55). Esse era um aspecto formal presente em seus contos.
O miniconto Cicatriz, por sua vez, não traz uma moral exposta de forma direta, mas
uma afirmação incisiva, que transmite ao leitor sentimento de repúdio, quando o
narrador relata “Eu pus de molho na cândida, mas a mancha não saiu.” (MEDEIROS,
s.d.), confirmando o que Walter Benjamin (1994, p. 200) afirma sobre a narrativa e seu
caráter utilitário: nela, o narrador expressa um ponto de vista, “seja num ensinamento
moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa forma de vida”.
Ao reportar o conto de fadas sobre uma óptica incestuosa, podemos citar como
fato maior o momento em que o rei pede a protagonista em casamento; a princesa
fica apavorada, percebendo que cometeriam um incesto se a união fosse realmente
consumada – na época o casamento era consumado pelo ato sexual propriamente dito
– o que a faz fugir de casa, seguindo o conselho da Fada Madrinha, depois de várias
tentativas falhas para evitar o pai. Preso ao juramento que fizera, o rei percebeu que
“só a Princesinha era mais bela e possuía certos lindos predicados, que a falecida mãe
não possuía. O próprio Rei o notou e loucamente apaixonado tomou a estranha
resolução de casar-se com ela” (PERRAUT, s.d. p. 42). A autoridade manifestada na
sociedade patriarcal, na qual ao homem é conferido o poder de decisão, escolha e
ação, se reflete na narrativa do miniconto: “Meu pai tirou a calça e me mandou deitar”
(MEDEIROS, s.d.).
A fragilidade e impotência da criança frente ao desejo do patriarca acabam por
suscitar novamente a representação de sistemas de valores, cujas “narrações em
primeira pessoa, as representações etnográficas da vida do cotidiano ou da política
também correspondem às necessidades e tendências da esfera pública” (SARLO, 2007,
p.115), fazendo com que conto e miniconto incisam a linha tênue entre o amor
fraternal e sexual em um deslocamento da noção de sujeito e hierarquia dos fatos,
destacando os pormenores cotidianos.
Para a criança, a manifestação de afeto por parte da família é algo de suma
importância, porém é traumática quando um adulto a assedia sexualmente, sendo
difícil a ela distinguir as manifestações de carinho fraternal, de obediência e de amor
às de carícias incestuosas, submissão e desejo. Isso abre precedentes para condutas de
desvio moral: casamento do rei com a princesa no conto de fadas e estupro do pai
para com a filha no miniconto.
Além desses aspectos, é pertinente destacar que Pele de Asno e Cicatriz
representam o caminho do amadurecimento e da construção da identidade feminina.
A princesa, ao fugir de casa como uma menina, no término do conto, demonstra
atitudes de mulher, ao casar-se e perdoar o pai que tanto lhe fez sofrer.
erótico sua própria filha. No miniconto Cicatriz, a mãe não é citada, o que expede a
dúvida de sua existência ou o desconhecimento dos fatos ocorridos durante a volta da
escola, em sua ausência.
Ainda sobre elementos narrativos das duas histórias, cabe registrar que Pele de
Asno se destaca por apresentar uma princesa fora dos padrões: ativa, corajosa e
vigorosa, que encara o mundo desconhecido, para não se submeter aos caprichos do
pai. Já o miniconto insinua a existência de uma criança que sofre humilhações e
posteriormente é condicionada a submeter-se àquela situação horrenda, de
submissão, perceptível na passagem em que a criança lava o próprio lençol,
permanecendo calada.
O miniconto Cicatriz transmite ao leitor um sentimento constrangedor e de
repúdio pela situação em que a criança se encontra no contexto familiar e, embora o
conto de fadas deixe explícito que ocorrências desse tipo não desaparecerão tão
breve, Perrault no último parágrafo de sua narrativa escreve: “Na história de Pele de
Asno é difícil acreditar. Mas, enquanto no mundo houver crianças, mães e avós,
sempre há de ser repetida” (PERRAUT, s.d. p. 55), sugerindo o que Sarlo (2007)
entende pela narrativa em primeira pessoa:
Considerações finais
Porém, o século XXI não brinda a sociedade com a fantasia e nem ao menos
com uma “Fada Madrinha” capaz de aconselhar e de certa forma proteger as crianças,
como em Pele de Asno. O miniconto Cicatriz, enfocando uma realidade contrária a
essa, demonstra a ausência de um entorno social, familiar, institucional e jurídico que
ampare a criança vítima de violência sexual.
Acordando com Antônio Cândido (2002), quando afirma que a função da
Literatura é humanizar o homem, abordar funções psicológicas, formadoras e sociais,
fazendo despertar no leitor emoções, sentimentos e até mesmo revolta, o que as duas
narrativas examinadas permitem reconhecer é que é doloroso pensar que a mesma
literatura com papel humanizador retrata com nitidez um problema social alarmante.
Através da leitura do conto Pele de Asno e do miniconto Cicatriz, além da
reflexão sobre um comportamento social impróprio e inaceitável, é possível se
sensibilizar diante de um fator de violência infantil, muitas vezes não denunciado e
escondido pelo sistema de organização social vigente.
Nessa perspectiva de que a Literatura contribui para a formação humana,
interpretar não é apenas entender o que o texto diz, mas extrair dele significância e
sentido para a própria vida. Partindo desse pressuposto, conclui-se com esse trabalho
que desde os tempos primórdios a violência sexual contra crianças já era simulada
através da Literatura, mesmo sendo camuflada dentro dos Contos de Fadas, e os
problemas familiares e as inquietações da alma afligiam a sociedade, demonstrando a
realidade vivenciada pelos seus membros.
Na atualidade, essa mesma realidade vem à tona, embora de forma mais clara,
direta e sucinta, colocando em xeque e choque as relações intrafamiliares e rompendo
a cumplicidade silenciosa estabelecida no núcleo familiar, para que a sociedade
imponha uma rede de comunicação, pela qual se possa ser capaz de pensar, ouvir,
denunciar e julgar o mais rápido possível esses atos de violência sexual infantil.
Referências
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ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. Trad. Sérgio P. Rouanet. São
Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-221.
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Waldemar Ferreira Netto, 1991.
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Cidades / Editora 34, 2002.
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Thereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1999.
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______. Arqueologia do saber. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
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Maria Adriana Veríssimo Veronese. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
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MEDEIROS, Flora. Cicatriz. s.d. Disponível em: <http://autoressaconcursosliterarios.
blogspot.com.br/2013/05/os-20-minicontos-classificados.html>. Acesso em: 12 de
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PAULINO, Graça et al. Tipos de textos, modos de leitura. Belo Horizonte: Formato
Editorial, 2001.
PERRAULT, Charles. A bela adormecida no bosque e outras histórias bonitas. São Paulo:
Brasil, s.d.
SARLO, Beatriz. Tempo passado: Cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução
Rosa Freire d’ Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, Belo Horizonte: UFMG,
2007.
ZILBERMAN, Regina; MAGALHÃES, Ligia Cademartori. Literatura infantil: Autoritarismo
e Emancipação. 3. ed. São Paulo: Ática, 19.
1
Doutorando em Teoria, Crítica e Comparatismo no PPG-Letras – UFRGS.
Email: kim.amaral@ymail.com
[...]
Mas falaremos ainda, Bloom, da ironia que muito
aplicaremos.
De que forma a catástrofe
traz perturbações ao velho método
de aplicar uma distância ao mundo?
quarenta e dois, não cita lugares como o faz Camões, mas situa a narração no tempo
através do mês de março. “Entretanto, em Março / alguém acerta com força nas sete
vidas de um gato, / matando-o de uma única vez / e poupando assim seis outros
movimentos / intensos.” (2010b, p. 39).
É notável o desejo de um esvaziamento de ação no texto. Este desejo é
concretizado por algumas artimanhas tais como a circularidade do narrado; a
compressão do tempo e do espaço, tal como na imagem de atingir “as sete vidas de
um gato / matando-o de uma única vez” (2010b, p.39); e, na formulação de uma
espécie muito particular de ação, que pode ser observada na trigésima nona estrofe.
Nela, o sujeito poético estabelece um paralelo entre duas formas de “avanço”, ou seja,
de movimento: aquele que “um homem faz entre dois mundos afastados. / Ou o
avanço, apenas, entre o peito e a camisa, / na respiração que, sem dar um único passo,
/ percorre uma distância mais individual e não visível / que no final se expressa por
uma decisão.” (2010b, p. 38).
Assim, aproximar o movimento de cruzar mundos afastados e o movimento de
um suspiro, e concluir que o escasso e quase inerte movimento da respiração pode
antever uma decisão, é revelador deste tipo de ação e de movimento que se constrói
pelo seu oposto, pela não-ação. Uma epopeia, tradicionalmente, é composta por
peripécias e deslocamentos, elementos dos quais o texto tavariano está esvaziado. O
narrador/sujeito poético reafirma o propósito do texto e dá claro indício do tipo de
“aventura” ele, em sua quase totalidade, se ocupará:
Bloom é movido por esta não-ação/inação, em uma narrativa que, neste ponto,
da conta da sua respiração, das suas elucubrações, do movimento de seus olhos,
enquanto seu par hipotextual, “Vasco da Gama, o forte Capitão / Que a tamanhas
empresas se oferece, De soberbo e altivo coração, / A quem Fortuna sempre favorece”
(2006, p. 82), navega no Índico e se aventura na ilha de Moçambique.
Bloom está na primeira etapa de sua viagem: está “em Londres, só e sem
dinheiro” (2010b, p. 40). Avista três homens, neste primeiro contato com os nativos
que o texto faz menção, agora numa aproximação mais explícita ao que acorre em Os
Lusíadas e o contato dos portugueses com os Mouros. Bloom nitidamente tem medo,
afinal “era individual e um” (2010b, p. 42).
Na quadragésima nona estrofe, há mais uma reflexão sobre o tempo e o
espaço: o tempo é comparado a uma “baleia absurda” sem corpo. O narrador/sujeito
poético fala em aniquilar os dias com um arpão, que para ele constitui um desejo
impossível. Parece-me apenas ser possível o aniquilamento dos dias pela ação,
justamente aquilo que praticamente não há no texto. A metáfora da “baleia sem
corpo” aludindo ao tempo é interessante porque revestida de contradições.
Bloom fala do ponto intermediário em que está sua viagem e ouve “os três
homens contarem infâncias, / repetindo cada um deles, duas vezes certos
acontecimentos / fúteis, o que muito [o] aborreceu [...].” (2010b, p. 43-44). Mesmo
“aborrecido” com os homens, Bloom aceita ser hospedado por eles. Na quinquagésima
nona estrofe, preparando-se para dormir na casa dos “homens redundantes”, surge o
pai destes três homens, que num paralelo ao texto camoniano pode ser entendido
como o régulo dos Mouros. O homem lhe oferece presentes que lhe parecem inúteis,
de modo que se lê na septuagésima sexta estrofe:
Bloom pressente que será traído pelos homens, percebendo a maldade nos
gestos, desconfiando da postura de seus anfitriões. Os quatro homens fazem planos
para roubar a mala que Bloom traz consigo. De modo surpreendente, Bloom reage e
bate nos homens, espancando o velho, e consegue fugir. Um dos filhos, ao arremessar
uma pedra em Bloom, acerta a cabeça do pai, matando-o. Os três filhos, em vingança,
chamam Thom C. para armar uma emboscada a Bloom. Três dias depois do ocorrido,
passada a excitação da luta, Bloom, caminhando pela cidade, encontra Thom C., com
quem ingenuamente simpatizou. Bloom pergunta ao estranho por “algum sítio / cujos
Referências
CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Org.: Emanuel Paulo Ramos. Porto: Porto Editora, 2006.
LOURENÇO, Eduardo. Uma viagem no coração do caos. Prefácio à Uma viagem à Índia:
melancolia contemporânea (um itinerário), de Gonçalo M. Tavares. São Paulo:
Leya, 2010a.
TAVARES, Gonçalo M. Uma viagem à Índia. São Paulo: Leya, 2010b.
1
Mestranda em Educação, Instituto Federal Sul-Rio-Grandense.
E-mail: lalauzinhaster@hotmail.com
2
Doutora em Educação, Instituto Federal Sul-Rio-Grandense.
E-mail: angela.bicca@hotmail.com
Pedagogia Cultural produzida por textos que não se afinam com as formas lineares de
escrita e leitura por que podem ser lidos/escritos sem que exista uma ordem
necessária. Aliás, muitos desses textos são postados em páginas de mídias sociais para
serem lidos e comentados de forma quase aleatória por internautas que “aprendem”
que são os grandes responsáveis por si mesmos.
Destacamos que a noção de Pedagogias Culturais (KELLNER, 2001; SILVA, 1999;
STEINBERG, 1997) possibilita discutir os modos como os artefatos midiáticos, na
contemporaneidade, têm exercido uma função pedagógica. As Pedagogias Culturais
apontam, dessa forma, para uma ampliação do que se compreendia como espaços
formativos na área de Educação. Aliás, uma ampliação que tem relação íntima com a
articulação entre o campo dos Estudos Culturais e a área de Educação e para a qual
não faz sentido uma dicotomia que colocava o conhecimento acadêmico e escolar de
um lado e as formas não acadêmicas de saber de outro.
Portanto, buscamos discutir, neste texto, os modos como textos curtos que se
assemelham às produções de autoajuda estariam “ensinando” os indivíduos
contemporâneos a viver mais e melhor à medida que enfatizam a dimensão de
responsabilidade que cada um teria por sua própria vida, situação que tem
consonância com a individualidade mais valorizada pela racionalidade neoliberal.
Procedimento de pesquisa
4
https://www.facebook.com/frasescurtasnet?fref=ts
5
https://www.facebook.com/frasescurtas?fref=ts
6
https://www.facebook.com/frasesparafaceoficial?fref=ts)
Figura 17
Figura 28
Assim como a anterior, essa postagem inicia com uma indagação questionando
o/a leitor/a sobre o que ele/a deseja, ambiciona ou tem vontade. Em segundo
7
Disponível em: <https://plus.google.com/+FrasescurtasNet1> Acesso em 31 mar. 2015.
8
Disponível em: <https://plus.google.com/+FrasescurtasNet1> Acesso em 31 mar. 2015.
Figura 39
Por isso, a indicação de ousar, arriscar, não desistir do que almeja e valorizar
aquelas pessoas que lhe amam. É dessa forma que se deve agir para que as pessoas
que lhe são importantes sintam-se valorizadas e respeitadas. O texto aponta, portanto,
que a felicidade pode ser plenamente alcançada no momento em que o indivíduo
separa o que é indispensável de todo o resto.
Uma mensagem que tem muito em comum com o que aparece na postagem
apresentada a seguir.
Figura 410
9
Disponível em: <https://plus.google.com/+FrasescurtasNet1> Acesso em 31 mar. 2015.
10
Disponível em: <https://plus.google.com/+FrasescurtasNet1> Acesso em 31 mar. 2015.
Essa postagem indica que a vida exige reconhecer os erros e recomeçar tantas
vezes quantas forem necessárias. Por isso a mensagem apresentada decorre do
entendimento de que é necessário lutar mediante os conflitos que surgem na vida.
Obstáculos que impediram alguém de ser feliz em algum momento poderão otimizar
seus objetivos de sucesso se forem tomados como aprendizagem, experiência de vida
ou sinalizadores do melhor caminho a seguir.
As postagens são atravessadas pelo discurso da autoajuda à medida que
afirmam a responsabilidade de cada indivíduo por si mesmo, um indivíduo que age
visando a sua própria felicidade, que persiste em seus propósitos de sucesso e que não
se preocupa em demasia com os outros.
Os discursos de autoajuda estariam, portanto, estreitamente relacionados a
uma forma de individualização voltada para a obtenção da prosperidade, do sucesso,
do crescimento pessoal e profissional. Ou ainda, um indivíduo que é o maior
responsável por todas as situações e circunstâncias em que se encontra, que tem de
ser proativo, que tem a si mesmo como uma forma de capital (capital humano) e que
por isso necessita acionar suas habilidades e competências individuais. Os discursos de
autoajuda estariam, dessa forma, requerendo uma forma de individualidade bastante
valorizada pelas sociedades neoliberais, uma individualidade produzida em torno da
possibilidade de que cada um faça investimentos sobre si mesmo.
Aliás, algo que só foi possível com a articulação de tecnologias de governo de si
e dos outros que vem, desde o surgimento das sociedades ocidentais modernas,
possibilitando formas de identificação permanentes que consolidam o que chamamos
de “eu”.
Como explicou Diaz (2012), o “eu” que os discursos da autoajuda presumem
existir não é um dado prévio, é o resultado das tecnologias de governo que se
desenvolveram como uma expressão da racionalidade de governamento liberal e que
mais tarde muda sua ênfase com o desenvolvimento das formas de governamento
neoliberal. Uma forma de jogo de identificação que, inicialmente, significou a
construção da identidade moderna orientada para que os indivíduos reconheçam a si
mesmos como individualidades e que precisam cada vez de menos controle, vigilância
e regulação externos e que, desde meados do século XX, tem sido levada a suas mais
altas expressões para colocar no centro os indivíduos que mais assumem o governo de
si mesmos.
Ao desenvolver a análise dos modos como se produziu o que chamamos de
indivíduo moderno, Foucault (1987) mostrou em detalhes como essa forma de
individualidade está relacionada aos mecanismos disciplinares que apareceram,
primeiramente nas escolas, hospitais, quartéis, prisões e hospitais entre os séculos XVI
e XVII.
São mecanismos que produzem a docilidade dos corpos à medida que se valem
das distribuições ou do princípio do quadriculamento que dispõe “cada indivíduo no
seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo” (FOUCAULT, 1987, p.123); da regulação do
tempo empregado na produção de qualquer tarefa evitando-se qualquer forma de
ociosidade; da decomposição de cada atividade em frações que devem ser executadas
de forma a garantir a qualidade do todo; da composição das forças empregadas para
que os corpos sejam eficientes enquanto partes de um todo complexo, assim como se
fosse uma engrenagem que precisa funcionar bem para que a máquina tenha a
eficácia esperada. “O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o
esquadrinha, o desarticula e o recompõe (FOUCAULT, 1987, p.119)”.
Os mecanismos disciplinares, com essas estratégias, possibilitaram que uma
forma de poder fosse aplicada “ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que
obedece, responde, se torna hábil cujas forças se multiplicam” (FOUCAULT, 1987
p.117). Um poder ininterrupto que visa gerir, controlar, reparar, utilizar, transformar,
hierarquizar e aperfeiçoar cada corpo. Ou seja, que visa aproximar cada indivíduo ao
desempenho considerado ótimo, ou ainda, que visa normalizar.
A disciplina ao possibilitar essa forma de ação sobre o corpo produz uma forma
de individualidade que é “celular (pelo jogo da repartição espacial), é orgânica (pela
codificação das atividades), é genética (pela acumulação do tempo), é combinatória
(pela composição das forças). E, para tanto, utiliza quatro grandes técnicas; constrói
quadros; prescreve manobras; impõe exercícios; enfim, para realizar a combinação das
forças, organiza ‘táticas’. A tática, arte de construir, com os corpos localizados,
atividades codificadas e as aptidões formadas, aparelhos em que o produto das
diferentes forças se encontra majorado por sua combinação calculada é sem dúvida a
forma mais elevada da prática disciplinar” (FOUCAULT, 1987, p.141).
Porém, as disciplinas não ficaram restritas ao âmbito das instituições de
sequestro, seus mecanismos foram expandidos para todo o corpo social. Dessa foram,
criou-se uma rede de dispositivos que percorria toda a sociedade, como mostrou
Foucault (1987). Isso teria ocorrido com a explosão demográfica que se iniciou no
século XVIII, na Europa. Dessa forma, o poder disciplinar teria passado a gerir, além do
corpo de cada indivíduo, a população.
Dessa forma, a individualidade moderna formou-se conectada não apenas com
a ação das disciplinas, mas também com a possibilidade de governar a população, ou
seja, conduzir a conduta dos indivíduos.
Dessa forma, foi possível que os Estados que existiam na Europa nos séculos
XVIII e XIX atentassem para a criação de condições infraestruturais com vistas a
permitir a autorregulação dos processos sociais, econômicos e pessoais. Segundo
Foucault (2008a, p. 87), o liberalismo se propõe a “produzir o necessário para tornar
você livre” ou agir “de tal modo que você tenha a liberdade de ser livre”, não significa,
portanto, que essa forma de governar seria mais tolerante e que outras formas seriam
mais autoritárias.
Como explicou Marín-Diaz emergiu a
Para finalizar
cotidiana. Textos esses que tem proliferado nas redes sociais, especialmente no
Facebook, reforçando o desenvolvimento do individualismo contemporâneo.
Referências
BRUNELLI, Anna Flora. Aforização no discurso de autoajuda. Revista do GEL, São Paulo,
v. 8, n. 1, p. 125-137, 2011.
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In: SILVA, Luis H. da; AZEVEDO, José C. de e SANTOS, Edmilson S. dos (Orgs).
Identidade social e a construção do conhecimento. Porto Alegre: SMED, 1997, p.
98-145.
1
Mestranda em Letras pelo UniRitter com apoio Fapergs/Capes. E-mail: liliabaranski@hotmail.com
2
Professora do Programa de Pós-graduação em Letras do UniRitter.
E-mail: valeria_brisolara@uniritter.edu.br
Países com maiores índices no âmbito das traduções também revelam dados
interessantes: há uma predominância de traduções de títulos em língua inglesa. Na
França, em 1985, 71% das versões provinham do inglês enquanto que na Alemanha,
em 1990, aproximadamente 65% eram oriundas da língua inglesa (VENUTI, 1995,
p.13,14). De acordo com um estudo realizado para o relatório mundial na UNESCO
sobre diversidade cultural (2009), 75% do total de livros cadastrados da ferramenta
Index Translationum (no período 1979-2007) foram traduzidos de apenas três línguas:
inglês, francês e alemão. Como língua-fonte, o inglês sozinho é responsável por 55%
dos livros traduzidos em todos os gêneros.
Outra estatística reveladora no tocante à assimetria desse tipo de troca cultural
é que das cerca de oitocentas línguas identificadas no Index Translationum, vinte (das
quais dezesseis tratam-se de línguas europeias) constituem-se como língua-fonte de
96% dos livros traduzidos. A mesma disparidade pode ser observada no que se refere
às línguas-alvo: 50% dos livros registrados foram traduzidos para apenas cinco idiomas:
alemão, espanhol, francês, inglês e japonês (BRISSET, 2011). Dados como os
apresentados configuram evidências contundentes: o fato de que “a cultura dominada
traduz incomparavelmente mais a cultura hegemônica do que vice-versa” (MELLO e
VOLLET, 2000, p.6). Tais informações vão ao encontro da teorização de Venuti (1995),
segundo o qual, editoras inglesas e americanas participam de feiras internacionais de
livros e lá vendem os direitos de tradução de diversos títulos em língua inglesa,
principalmente best-sellers. A contrapartida, entretanto, não é equilibrada. O mercado
americano “raramente compra os direitos para publicar traduções em língua inglesa de
livros estrangeiros”3 (VENUTI, 1995, p.14).
A tradução se apresenta, portanto, como um fenômeno (entre outros)
prevalecente de atuação internacional nos mercados literário e editorial. A demanda
por traduções cresceu exorbitantemente com o advento da globalização, entretanto,
de modo paradoxal, mascara a diversidade cultural em virtude da hierarquia
estabelecida pelos idiomas que participam dessa dinâmica. Um dos efeitos dessa
equação desigual é que tanto a língua quanto a cultura desses países chamados de
‘terceiro mundo’ são rigorosamente afetadas pelas línguas e culturas dos países
considerados de ‘primeiro mundo’. Portanto, dentro da dinâmica de trocas
interculturais, o Brasil apresenta-se como um país que mais importa do que exporta
cultura, no que tange à literatura.
3
Tradução das autoras. Citação original: “rarely buy the rights to publish English-language translations
of foreign books” (VENUTI, 1995, p.14).
dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que consiste em bolsas para editoras dos
países-membro da CPLP no valor de até R$ 6 mil concedidas a interessados em adaptar
textos brasileiros para as características do português falado em Portugal, em países
africanos onde o português é a língua oficial (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau,
Moçambique, São Tomé e Príncipe) e no Timor Leste; o Programa de Residência de
Tradutores Estrangeiros no Brasil, através do qual tradutores estrangeiros que estejam
trabalhando na tradução de livros brasileiros podem se candidatar a bolsas no valor de
até R$ 15 mil, para residência de até cinco semanas4; o Programa de Intercâmbio de
Autores Brasileiros no Exterior, que contempla editoras estrangeiras que promovam a
literatura brasileira por meio de palestras, sessões de autógrafos e entrevistas – o
edital estima pagamento de bolsas de até US$ 3 mil; e o Programa de Apoio à
Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros no Exterior.
A última ação governamental mencionada, que está em foco neste trabalho, foi
implementada pela Fundação Biblioteca Nacional, juntamente com o Ministério da
Cultura, com o objetivo de “difundir a cultura e a literatura brasileiras no exterior”
através do fornecimento de apoio financeiro a editoras estrangeiras que têm interesse
em traduzir (para qualquer idioma), publicar e distribuir (em forma de livro impresso
ou digital), no exterior, obras de escritores brasileiros que tenham sido previamente
publicadas em português no Brasil. Em virtude de uma parceria feita com o Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o programa pode apoiar
tanto projetos de obras técnicas ou científicas nas áreas de Ciências Humanas e Sociais
Aplicadas, Ciências da Vida, Engenharias, Ciências Exatas e da Terra quanto no campo
da literatura, em especial os gêneros romance, conto, poesia, crônica, infantil e/ou
juvenil, teatro, obra de referência, ensaio literário, ensaio de ciências sociais, ensaio
histórico, ensaio de vulgarização científica e antologias de poemas e contos, integrais
ou em parte. O auxílio pode ser concedido a propostas de traduções inéditas, novas
traduções ou reedições de obras já traduzidas no país e que tenham se esgotado ou
estejam fora de mercado por no mínimo três anos. Há também a previsão de
lançamentos de editais específicos da Fundação Biblioteca Nacional para regiões e/ou
idiomas particulares e efemérides.
4
Na primeira parte, os tradutores realizam uma imersão na cultura brasileira que supra as necessidades
específicas da obra a ser traduzida. Na segunda parte, os tradutores participam de oficinas e palestras
nas comunidades em que estiverem alojados e, também, em cursos ministrados em centros de estudos
de tradução que sejam parceiros do programa (como o da Universidade Federal Fluminense (UFF), Casa
Guilherme de Almeida, da Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo, e a Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC)).
Exterior está a edição 121 da revista Granta, cujo título é The best of young Brazilian
novelists. A revista em questão foi criada em 1889 por alunos da Universidade de
Cambridge e nomeada Granta em homenagem ao rio que cruza a cidade.
Originalmente, servia como veículo de notícias e chistes estudantis, mas quase cem
anos após sua criação (em 1979), sofreu uma grande reformulação e ganhou formato
de revista literária trimestral. Um pouco mais tarde, foram lançados os livros com selo
Granta, que rapidamente adquiriram status e prestígio, contribuindo para a sua
consolidação como editora literária independente. As edições da revista com os títulos
do tipo “Os melhores jovens escritores [...]”, publicadas a cada dez anos, se propõem a
apresentar os mais importantes nomes de cada geração. Foram lançados títulos
referentes aos melhores jovens escritores da Inglaterra, da América (do Norte), do
Brasil e da Espanha. A revista defende que suas edições têm “definido os contornos do
cenário literário desde 1983”5, embora alegue “não ter uma agenda política ou
literária”.
A edição sobre “os melhores jovens escritores brasileiros” foi primeiramente
lançada em português (Granta v.9) e posteriormente lançada em versão inglesa
(Granta v.121). Para a publicação da edição em português foram escolhidos vinte
autores, todos nascidos depois de 1972, que por meio de sua escrita “contribuem para
mudar o panorama das letras no país” (GRANTA EM PORTUGUÊS, 2012, p.5). Os textos
brasileiros compilados retratariam uma parcela significativa dos escritores em
atividade no Brasil. Todos eles têm idade inferior a 40 anos e possuem no mínimo um
conto publicado. A totalidade dos contos brasileiros compilados foi selecionada pelo
júri que acredita que “os textos compõem um mosaico surpreendente de estilos e
temas e chama atenção pelo vigor e apuro estilístico – o acerto nos detalhes, a busca
por uma linguagem coesa, o desenvolvimento cuidadoso de personagens” (p.6). O
comitê julgador, nas palavras da revista, foi composto por “uma equipe de jurados
altamente qualificada, editorialmente independente” (GRANTA EM PORTUGUÊS, 2012,
p.8) que contava com “pessoas de diferentes áreas da cena literária” (p.8). Foram sete
jurados: Beatriz Bracher, Cristovão Tezza, Samuel Titan, Manuel da Costa Pinto, Italo
Moriconi, Marcelo Ferroni e Benjamin Moser, o único estrangeiro (norte-americano),
cujo nome foi sugerido pela Granta inglesa, biógrafo de Clarice Lispector, tradutor e
escritor. A revista alega que a presença de um jurado estrangeiro “enriqueceu o
processo de escolha dos autores” com sua “visão ‘externa’” (p.9).
5
Tradução das autoras. Citação original: “defining the contours of the literary landscape since 1983” (<
http://granta.com/about/ >. Acesso em: 02 de jul. 2015).
Como justificativa para esse olhar alheio ao Brasil estar mais atento à literatura
emergente desse país, a revista defende que “o Brasil vive um momento especial na
literatura” (p.9). É enfatizado o fato de que nos últimos vinte anos houve poucos
escritores publicados e aclamados no cenário exterior. Inúmeros fatores estariam
contribuindo para uma mudança desse cenário de baixa contribuição dos escritores
brasileiros na literatura global. Entre eles, programas mais consistentes e duradouros
de apoio à tradução e ao intercâmbio de agentes do campo literário, um aumento do
interesse de editoras e agentes estrangeiros por escritores de língua portuguesa e o
Brasil como país homenageado em diferentes eventos literários ao redor do mundo6. É
importante, portanto, avaliar se as iniciativas em vigor estão sendo eficazes no que
elas se propõem a fazer. De igual modo, faz-se necessário atentar para seus próximos
desdobramentos.
Em relação à publicação da edição inglesa da revista literária Granta, excluindo
a questão da autoridade desempenhada por ela através de um discurso que dissemina
opiniões sobre o que é bom ou não e sobre o que merece ser lido ou não, o veículo
cumpre o papel de levar a outros países uma amostra dos trabalhos feitos por autores
brasileiros. Desconsiderando o fato de esses vinte nomes serem ou não “os melhores”
de sua geração, o importante é que há literatura brasileira sendo divulgada em outros
países. Além disso, por a Granta gozar de status privilegiado no cenário literário
mundial é bastante provável que seu discurso ecoe e repercuta em um interesse maior
pelos vinte nomes elencados; em última análise, para fins deste trabalho, em um
interesse maior pela literatura brasileira.
Pesquisas nos mostram que, tradicionalmente, as obras brasileiras têm pouca
representatividade no cenário literário mundial, principalmente no norte-americano
(FERNANDES e FERNANDES, 2015; FAVERI, 2015). O referencial teórico aqui levantado
corrobora a teoria de Even-Zohar (1990), que defende que países detentores de uma
literatura nacional forte e bem estabelecida tendem a ter na atividade tradutória um
papel mais marginal, como é o caso dos Estados Unidos. Embora a parca participação
da literatura brasileira no sistema literário traduzido norte-americano seja
representada por certa variação de autores e gêneros literários, em que Paulo Coelho,
Jorge Amado, Clarice Lispector e Machado de Assis são os recordistas de publicações
no período 2000-2014, é possível observar um acréscimo no número de traduções de
escritores contemporâneos, como João Paulo Cuenca e Milton Hatoum (FERNANDES e
FERNANDES, 2015). Tais informações parecem ser indícios de um aumento do
interesse por escritores menos prestigiados pelo público e pela crítica (pelo menos
6
A agenda na qual o Brasil está inserido até 2020 foi citada anteriormente.
Referências
bookcenterbrazil.wordpress.com/2012/09/11/in-egestas-mauris-et-erat-sed/.
Acesso em 06 ago. 2015.
VENUTI, Lawrence. The translator’s invisibility: a history of translation. London and
New York: Routledge, 1995.
1
Doutoranda em Letras pelo PPG UFRGS. Mestre em Letras pelo PPG URI-FW. Professora efetiva do
Instituto Federal Farroupilha-Campus FW.
E-mail: luciane@cafw.ufsm.br
A intensa e rápida expansão, que teve seu auge medido pela velocidade do
crescimento da população urbana entre os anos de 1950-1970, acabou sendo um
componente fundamental das mudanças estruturais na sociedade brasileira. Os
números demonstram essa aceleração: em 1920, o Brasil contabilizava uma população
de 27,5 milhões de habitantes; na década de 1950 esse número quase dobrou,
aumentando para 52 milhões; e, na década de 1960, a população urbana se tornava
superior à rural. Somente entre 1960 e o final dos anos 1980 estima-se que saíram do
campo em direção às cidades quase 43 milhões de pessoas, incluindo os efeitos
indiretos da migração, ou seja, os filhos tidos pelos migrantes rurais nas cidades
(BRITO, 2006, p. 2-3).
Os dados nos mostram um país que se urbanizou rapidamente e isso se deve ao
processo de industrialização do Brasil que aconteceu de uma forma bastante intensa,
causando uma série de deslocamentos humanos rumo às metrópoles e imprimindo
uma velocidade muito peculiar na modernização do país. As estatísticas referentes às
dinâmicas sociais impostas na segunda metade do século XX em diante nos permitem
levantar a hipótese de que o processo acelerado da urbanização ocorrida
principalmente em virtude da migração rumo às cidades provocou uma rapidez
tamanha nas transformações pelas quais o país passou e, talvez por consequência
dessa pressa e do modo desgovernado como se deu a modernização brasileira, muitos
pontos importantes ficaram sem a devida solução como a precariedade de moradias,
saneamento básico, saúde e educação, mas, principalmente, a adaptação dos sujeitos
migrantes nas grandes cidades. Essa pressa e a falta de um projeto definido para a
modernização do Brasil pode ser uma das raízes para aquilo que hoje é considerado
um dos piores problemas da nação brasileira: o aumento gradativo da vala da
desigualdade social, o que só faz aumentar o sentimento de iniquidade, injustiça e
insegurança, acarretando no aumento da violência urbana e na descrença no futuro e
no presente de nosso país.
O propósito desta comunicação é apresentar uma leitura do romance O livro
das impossibilidades (2008) como uma história a contrapelo nos termos
benjaminianos. O argumento da história a contrapelo se alicerça no fato de que, no
limiar do século XXI, Ruffato se propõe a passar em revista um importante momento
da história brasileira – a modernização nacional –, focalizando sua narrativa na versão
de uma personagem em geral ausente nas representações literárias brasileiras: o
operário urbano. É assim que as subjetividades e os cotidianos de sujeitos migrantes,
os trabalhadores de classe média baixa, ambientados nas metrópoles brasileiras das
décadas de 1980-1990, emergem do texto literário, proporcionando reflexões em
mais lhe faz falta no tempo presente. Ao assumir, durante a escrita da carta, que no
passado ele era feliz porque “fazia parte de um grupo”, o sentimento da personagem
só faz confirmar a teoria de Weil, para quem o ser humano necessita sentir-se
enraizado a algo, precisa fazer parte de uma comunidade, o que significa dizer que a
alma humana necessita da relação com outro humano com quem possa compartilhar
alguma coisa. Em seu livro escrito em 1943, intitulado O enraizamento (2001), ela
explica:
Referências
______. O livro das impossibilidades. (Inferno provisório; 4). Rio de Janeiro: Record,
2008.
______. Domingos sem Deus. (Inferno provisório; 5). Rio de Janeiro: Record, 2011.
WEIL, Simone. O enraizamento. São Paulo: EDUSC, 2001.
1
Mariana Terra Teixeira possui licenciatura em Letras Português/Espanhol pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS) e é mestranda em Linguística do Programa de Pós-Graduação da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) com bolsa CAPES.
E-mail: mariana.terra@acad.pucrs.br
funcionalista de Givón (1984, 1990), o sistema linguístico deve ser estudado dentro do
quadro das regras, princípios e estratégias que governam seu uso comunicativo
natural. Ao contrário do paradigma gerativo formal, no qual o estudo da competência
tem prioridade lógica e psicológica sobre o estudo do uso, do desempenho linguístico
dos falantes. Se a voz passiva é uma estrutura complexa, acreditamos que deve haver
uma relação entre o avanço da idade e/ou escolaridade das crianças e o uso de
passivas.
2
Por estruturas marcadas entendemos que a autora se referia a estruturas de uso mais restrito, a
depender de contextos específicos para o seu uso. (DEMUTH, 2007, p. 5).
coincidem nas línguas, Katehrine Demuth é uma das primeiras linguistas a postular que
o caminho do desenvolvimento de uma língua é sensível à frequência de estruturas
específicas dessa língua. No entanto, nos deparamos de novo com questões
fundamentais subjacentes à aquisição da linguagem: por que as crianças adquiririam
estruturas mais frequentes primeiro? Segundo Demuth (2007), uma possível resposta
seria a de que quanto mais frequentes são algumas estruturas das línguas, mais difícil
é para a criança ignorá-las. Segundo um ponto de vista que a autora admite ser
intuitivo, a criança seguiria a lógica de que, se uma estrutura acontece muito na língua,
ela tem de prestar atenção a esta estrutura, pois não pode ser somente “ruído” (noise)
do sistema da linguagem. Isto é, não deve ser interferência de algum outro sistema
cognitivo, deve ser uma propriedade da linguagem em específico, que ela precisa
saber.
Segundo a autora, a Teoria da Otimidade pode ajudar nessa sua visão de
aquisição. As restrições da linguagem devem ser mais “pesadas” de acordo com a sua
informação sobre frequência, pois é a frequência que determina o peso, quando e
como as restrições são ranqueadas. Segundo Demuth (2007), a Teoria da Otimidade já
está bem desenvolvida e é muito útil para as restrições fonológicas de alto nível das
línguas. E, pelo menos para a fonologia, parece haver algum efeito de frequência,
estruturas fonológicas mais frequentes são adquiridas primeiramente. Um exemplo
citado pela autora é a aquisição da estrutura das sílabas em língua inglesa e em língua
espanhola. Conforme o estudo de Demuth, Culbertson & Alter (2006), sílabas com
coda (com consoante ao final da sílaba, como em sílabas CVC – consoante, vogal,
consoante) são adquiridas mais rapidamente por crianças inglesas e posteriormente
por crianças espanholas, já que, em inglês, sílabas complexas são 60% das estruturas
das sílabas da língua e, em espanhol, somente 25%. Talvez a alta frequência de uma
forma particular force a criança a atender a essa estrutura gramatical particular
primeiro.
Estudos psicolinguísticos com adultos indicam que os efeitos de frequência não
ocorrem somente no desenvolvimento fonológico das crianças, mas também em sua
sintaxe. Através da técnica de priming, na qual adultos são previamente expostos a
certas construções sintáticas e, posteriormente, utilizam mais tais construções em seu
discurso, Brooks e Tomasello (1999) demonstraram que, sob circunstâncias
apropriadas de priming, é possível extrair sentenças passivas com verbos novos,
inventados, de crianças de três anos de idade. Esses resultados não são
surpreendentes para quem trabalha com experimentos psicolinguísticos com adultos,
mas eles são inovadores e pouco explorados no campo da aquisição da linguagem.
O objeto direto da voz ativa é quem se torna o sujeito passivo e o sujeito da voz
ativa é quem se torna o agente da passiva. Agente da passiva é uma classificação
semântica, sintaticamente é um sintagma preposicionado (SP), normalmente
introduzido pela conjunção por.
Há, ainda, quatro divisões das sentenças passivas que são importantes para o
entendimento das discussões acerca da aquisição de sentenças passivas ao longo de
nosso trabalho: passivas adjetivas x passivas verbais; passivas cheias x passivas
truncadas; passivas reversíveis x passivas não-reversíveis; passivas de verbos de ação x
passivas de verbos de não-ação. Estudos clássicos da literatura sobre sentenças
passivas atentam para o fato de passivas adjetivas serem adquiridas primeiramente
pelas crianças, principalmente as com verbo de ação, em detrimento da aquisição de
passivas verbais, que possuiriam uma estrutura mais complexa. Outros estudos
apontam que o processamento de sentenças passivas truncadas é mais fácil para as
crianças, por não incluir o sintagma preposicionado, o agente da passiva. E há, ainda,
estudos que postulam que passivas reversíveis são mais facilmente acessadas do que
passivas não reversíveis. Vejamos o que essas divisões representam.
Maratsos et al. (1979, 1985) e Pinker et al. (1987) falam da maior facilidade das
crianças em adquirir sentenças passivas adjetivas. Desta maneira, os autores dividem
as sentenças passivas em verbais, exemplo 2.a), e em passivas adjetivas, exemplo 2.b)
abaixo.
Nas passivas em 4.a) pode ocorrer a inversão dos papeis de agente e paciente
do verbo abraçar e ambas as sentenças são aceitáveis na língua, apesar de não terem o
mesmo significado. Em 4.b), se ocorrer a inversão dos papeis temáticos dos termos da
sentença gramatical, ela se torna uma sentença anômala, semanticamente ilógica.
As sentenças passivas típicas têm um agente e um paciente na sua estrutura
profunda, segundo Maratsos et al (1979, 1985). Segundo essa definição, as passivas
com verbos de ação, que exigem a presença do papel temático de agente e do papel
temático de paciente para seus complementos, são as passivas típicas. Já as sentenças
passivas com verbos de não-ação, verbos mentais, experimentais, perceptuais, que não
exigem papel temático de agente e paciente para seus argumentos, não seriam
passivas típicas. Em 5 abaixo, vemos exemplos de passivas com verbo de ação e com
verbo de não-ação. Em 5a), podemos identificar o papel de paciente do policial, e o
papel de agente do ladrão. Em 5b), o papel semântico do sujeito passivo é de tema e o
papel do agente da passiva é de experienciador.
5.1 Objetivos
6 Conclusões
Referências
BATES, E.; HARRIS, C.; MARCHMAN, V.; WULFECT, B.; KRITCHEWSKY, M. Production of
complex syntax in normal ageing and Alzheimer’s disease. Language and Cognitive
Processes, v. 10, n. 5, p. 487-539, 1995.
BORER, H.; WEXLER, K. The maturation of syntax. In: Roeper, T.; Willians, E. (Eds.)
Parameter Setting, ed. D. Reidel: Massachusetts, 1987. p. 123-172.
BROOKS, P.; TOMASELLO, M. Young children learn to produce passives with nonce
verbs. Developmental Psychology, v. 35, p. 29-44, 1999.
CHOMSKY, N. The logical structure of linguistic theory. Manuscript. Plenum Press, New
York, 1955.
______. Syntactic structures. The Hague: Mouton, 1957.
______. Aspects of the Theory of Syntax. MIT Press, Cambridge, 1965.
______. Lectures in Government and Binding. Dordrecht: Foris, 1981.
CLEEREMANS, A.; McCLELLAND, J. L. Learning the structure of event sequences. Journal
of Experimental Psychology: General, v. 120, p. 235–253, 1991.
DEMUTH, K. Maturation and the acquisition of the Sesotho passive. Language, v. 65, p.
56-80, 1989.
DEMUTH, K. The role of refrequency in language acquisition. In: Gülzow, I.; Gagarina,
N. (Eds.). Frequency effects in language acquisition. Studies on Language
Acquisition (SOLA) series, Berlin: Mouton De Gruyter, 2007.
DEMUTH, K.; MOLOI, F.; MACHOBANE, M. 3-Year-olds’ comprehension, production,
and generalization of Sesotho passives. Cognition, v. 115, p. 238-251, 2010.
DEMUTH, K.; CULBERTSON, J. & ALTER, J. Word-minimality, epenthesis, and coda
licensing in the acquisition of English. Language and Speech, v. 19, p. 137-174,
2006.
FOX, D.; GRODZINSKY, Y. Children’s passive: a view from the by-Phrase. Linguistic
Inquiry, v. 29, n. 2, p. 311–332, 1998.
GABRIEL, R. A aquisição das construções passivas em português e inglês: um estudo um
estudo translinguístico. Tese (Doutorado em Linguística). Programa de Pós-
Anexos
Introdução
1
Mestre em Letras pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões. Docente do
SENAI/SC.
E-mail: mari.silveira972@gmail.com
2
Do francês: portanto
3
Do francês: no entanto
palavra ao discurso. "... o emprego de uma palavra torna possível ou impossível uma
certa continuação do discurso e o valor argumentativo dessa palavra é o conjunto
dessas possibilidades ou impossibilidades de continuação discursiva..." (DUCROT,
1988, p. 51).
Os aspectos argumentativos representam um conjunto de encadeamentos.
Aldrovandi (2014) parafraseia Ducrot e destaca que por meio da mudança de um
conector DC em um PT e através da negação, é possível chegar a até oito aspectos
divididos em dois blocos semânticos com quatro aspectos cada. Ducrot (2005) afirma
ainda que cada bloco pode ser representado em um quadrado argumentativo. Um
quadrado teria os aspectos:
A DC B
A PT neg B
neg A PT B
neg A DC neg B
Texto A
Analisa-se primeiramente o texto publicado na revista E-tech. Apresentamos
cada parágrafo seguido dos encadeamentos argumentativos observados e depois
apresentamos a análise das relações estabelecidas.
Percebe-se neste texto a progressão das ideias por meio de uma abordagem
histórica sobre os problemas causados pelo esforço físico e como isso está sendo
resolvido. No primeiro parágrafo, percebemos que as palavras mudança e adaptação
têm uma função importante para o sentido do parágrafo. Também está claro que na
época retratada, o fato de o homem precisar se adaptar à máquina causou problemas
à saúde. Isso é representado pelo encadeamento normativo "2".
sobre os riscos ergonômicos. Além disso, a conjunção "e" da segunda linha, estabelece
uma relação transgressiva, enquanto a mesma conjunção na última linha do parágrafo
estabelece uma relação normativa. Percebe-se que na época retratada não havia
preocupação com a qualidade de vida dos trabalhadores, encadeamento "5".
Texto B
A trecho extraído para a análise do Texto A está organizado em quatro
parágrafos. Apresentaremos cada parágrafo e os encadeamentos argumentativos
observados.
Parágrafo 1: Nada mais prático que apertar um simples botão e se deslocar até
outro andar, sem nenhum esforço físico.
aos que necessitam de uma facilidade para acessos em certos lugares de difícil acesso,
seja ele residencial, público ou comercial. Visa atender à necessidade de garantir
acessibilidade a todos os locais por pessoas portadoras de deficiências ou com
mobilidade reduzida, suprindo assim de maneira prática e eficiente uma exigência
social e legal, possibilitando a integração social.
Considerações finais
Pela análise desses dois textos percebemos que o texto A está melhor
organizado e possui características de texto científico como por exemplo, a
fonte/autor da afirmação que no texto aparece parafraseada. Observamos que há
relação entre as ideias que compõem cada parágrafo e também entre parágrafos que
são organizados de modo a apresentar uma progressão das ideias.
O texto B apresenta muitos problemas e a nossa preocupação refere-se ao fato
de ser um texto que corresponde ao Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de um
egresso do Curso superior de Tecnologia em Manutenção Industrial. Os demais
textos/TCCs também apresentam problemas parecidos.
Acreditamos que a transposição didática da TBS contribuirá para a escrita dos
textos acadêmicos, pois se os estudantes perceberem as relações estabelecidas e até
mesmo os problemas que dificultam a compreensão, poderão, por meio da escrita e
reescrita, melhorar a qualidade de seus textos. Conforme abordamos, nossa proposta
ainda é uma tentativa e mais estudos e testes precisam ser realizados.
Referências
Michele Neitzke1
Introdução
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação Curso de Mestrado em Letras Área de concentração:
Literatura Comparada na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - Campus de
Frederico Westphalen.
E-mail: michele@neiztke.com.br
proporcionou o acr scimo de uide e intera es, assim como diminuiu ronteiras
entre os pa ses. progress o das tecnologias de comunica es, bem como as
disposições de deslocamento que permitem um aumento dos contatos de pessoas,
id ias, bens e signi cados causaram tamb m um maior encontro entre as mais di ersas
culturas.
Neste trabalho temos como objeto principal o filme argentino Medianeras:
Buenos Aires da era do amor digital, lançado no ano de 2011, pelo diretor Argentino
Gustavo Taretto. Sendo uma coprodução entre Argentina, Espanha e Alemanha, em
suas variáveis relacionadas ao estudo do sujeito, das identidades e da cultura latino-
americana, recebeu os prêmios de melhor filme estrangeiro e de melhor diretor no
Festival de Gramado do mesmo ano. O longa foi produzido a partir do curta de mesmo
nome, lançado no ano de 2005. A representação de vidas solitárias, do caos urbano e
da vida moderna na capital Argentina são apresentadas ao público, permitindo uma
leitura das identidades mostradas na obra e as consequências sofridas por elas em
decorrência da globalização.
constituid por los ídolos del cine hollywoodense y la música pop, los
heróes deportivos y los diseños de ropa (CANCLINI, 2015, sp).
que divide com os manequins da loja, sendo esses, às vezes, a sua única companhia,
fora seu amigo virtual. Tendo recentemente acabado um relacionamento de muito
tempo, ela evita contato com outras pessoas na vida real a fim de não demonstrar suas
fobias, como o medo de usar elevador. Desta forma, a internet serve como consolo e
também como fuga.
Ambos os personagens acabam sendo muito parecidos, ao refletirem a vida
moderna e as barreiras que ela impõe. E, mesmo que seus caminhos se cruzem
diariamente, eles demoram a se encontrar. A narrativa se passa na movimentada e
cosmopolita Buenos Aires de mais de três milhões de habitantes. A câmera mostra
como a urbanização tomou conta da cidade, tornando o que uma vez foi uma bela e
verde cidade, em um emaranhado cinza de prédios, cujas paredes laterais proibidas de
terem janelas servem para a publicidade de famosas marcas, janelas estas que são
chamadas de medianeras. E é, justamente, nessas paredes que ambos os personagens
irão, literalmente, procura uma luz, pois, mesmo sendo proibido, eles as rompem para
abrir janelas, que trarão um pouco mais de felicidade, cor e vida aos seus
apartamentos e permitindo assim um encontro que desde o inicio da obra filmica, é
esperado por todos.
Conclusão
Referências
Milena Kunrath1
1
Doutoranda em Teoria da Literatura da PUCRS, bolsista CAPES. E-mail: milena.kunrath@gmail.com
2
Die Kirschen der Freiheit - ein Bericht, no original, sem tradução para o português.
3
Mein Buch hat lediglich die Aufgabe darzustellen, daβ ich, einem unsichtbaren Kurs folgend, in einem
bestimmten Augenblick die Tat gewählt habe, die meinem Leben Sinn verlieh und von Achse wurde, um
die sich das Rad meines Seins dreht.
E completa, "Este livro não quer mais nada do que dizer a verdade, uma
verdade privada e subjetiva"4 (ANDERSCH, 2006, p. 54).
Na época de sua publicação, Andersch foi aclamado pela crítica pela sua
coragem na abordagem de um tema tabu (deserção); e o impacto da obra foi definido
por Heinrich Böll da seguinte forma: "Um golpe de trombeta no silêncio onipotente. 5"
O momento foi certeiro, já que abarcou a discussão pela remilitarização da Alemanha
da era Adenauer.
Tanto sucesso não foi, porém, unânime. Principalmente, o surgimento de
outras obras do autor e a sua postura implacável contra toda e qualquer crítica
colocaram seu trabalho em cheque. Um dos grandes questionadores do valor
intrínseco da obra de Andersch foi o escritor W. G. Sebald. Para Sebald, 2011, "(...) a
imigração interna de Andersch foi, na verdade, um processo de ajustamento às
circunstâncias dominantes que o comprometeu profundamente" (p. 103). Nos anos do
domínio do terceiro Reich, o aspirante a escritor trabalhou numa editora
reconhecidamente racista (lidava principalmente com teorias étnicas, higiene racial e
teoria das raças): Sebald (2011) questiona se um "imigrante interno" não poderia ter
escolhido um outro trabalho qualquer que não se coadunasse tão nitidamente com os
princípios do Führer.
Andersch foi um dos fundadores do grupo intelectual-literário "47". Ao
contrário de outros participantes desse grupo, como Günter Grass, não adotou o
argumento da culpa coletiva dos alemães. Pelo contrário, acreditou na inocência dos
soldados (inclusive ele) e coloca a responsabilidade pela guerra e suas sórdidas
consequências apenas nos altos mandatários do Reich. Para Sebald,
Sebald continua sua crítica, afirmando que a guerra foi para Andersch mais uma
excursão cultural pela Europa do que efetivamente o pesadelo dos que estiveram de
fato na frente de batalha. Quando ficou claro para Andersch que a Alemanha não iria
vencer a guerra, o impulso pela deserção começou a atormentá-lo.
4
Dieses Buch will nichts als die Wahrheit sagen, eine ganz private und subjektive Wahrheit.
5
"Trompetenstoβ in schwüler Stille."
A pergunta não é nova, nem foi dirigida a apenas uma obra. Existem diversos
exemplos, inclusive no presente, em que a arte ultrapassa os limites do aceitável em
nome de algo maior. As obras de Günter Grass, por exemplo, perdem seu valor pelo
passado nazista escondido pelo autor? E quanto ao gênio do cinema, Polanski,
criminoso confesso, devemos perdoá-lo, já que produz ótimos filmes? Cada caso é um
Mas – tal como afirmou Walther Bulst – "nunca nenhum texto foi
escrito para ser filologicamente lido e interpretado por filólogos"
nem – acrescento eu – para ser historicamente lido e interpretado
por historiadores. Ambos os métodos falham a compreensão do
leitor e de seu papel genuíno, compreensão imprescindível tanto
para o conhecimento estético como histórico: a do leitor como
aquele a quem primeiro é dirigida a obra literária (JAUSS, 1993, p.
56).
O texto não pode ser fixado nem à reação do autor ao mundo, nem
aos atos de seleção e da combinação, nem aos processos de
formação de sentido que acontecem na elaboração, nem mesmo à
experiência estética que se origina de seu caráter de acontecimento
(ISER, 1996, p. 13).
6
Ser um escritor aprovado pelo regime significava, consequentemente, desfrutar das vantagens e
concordar acriticamente com a ideologia e todas as atitudes do governo.
leitura para concretização total da obra. Não se pode, portanto, conceber a existência
do texto sem o ato da leitura. Então, segundo Iser (1996), "O efeito depende da
participação do leitor e sua leitura; contrariamente, a explicação relaciona o texto à
realidade dos quadros de referência e, em conseqüência, nivela com o mundo que o
surgiu através do texto ficcional." (ISER, 1996, p. 34)
Pergunto-me, então, se a biografia manchada do autor altera o valor de sua
obra. Sim e não. Não, pois o texto é, de fato, o mesmo e as informações externas não
alteram o texto escrito, segundo a teoria do efeito de Iser (1996). Acrescento ainda
que as questões sobre a biografia do escritor só vieram à tona muito depois da
publicação e do consequente sucesso do livro Die Kirschen der Freiheit. Não há dúvidas
de que o efeito da obra sobre o leitor, desejado ou não pelo autor, aconteceu. Se ainda
existem questionamentos a respeito da obra posterior do escritor, seu romance de
estreia foi capaz de abordar o tema proibido da deserção enquanto a Alemanha se
recuperava da guerra que destruiu física e moralmente o país e seus habitantes. As
reflexões sobre qual o caminho a nação, ainda ocupada pelas potências vencedoras,
seguiria dali para frente e qual espaço seus soldados ocupariam neste contexto
(alguns, recém-retornados dos campos de prisioneiros), ainda que literárias, foram
necessárias para transformação da Alemanha no país atual. Porém, após a estreia da
obra, seu sucesso e consequentes estudos, sabemos sobre a vida do autor e os
questionamentos feitos a respeito de sua idoneidade, e agora a nossa recepção está
ancorada não apenas no texto, mas estará condicionada também aos fatores externos.
Devemos então observar que não existe uma resposta absoluta para as questões
propostas e que os estudos das obras, neste caso, do trabalho de Alfred Andersch,
podem e devem oferecer múltiplos resultados.
Referências
1 Introdução
2 Linguística de corpus
1
Mestranda em Linguística na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
E-mail: monicarigoayres@hotmail.com
2
Esta pesquisa foi desenvolvida em meu trabalho de conclusão de curso de Licenciatura em Letras na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em parceria com a Universidade Federal do Ceará
(UFC).
3 Etiquetagem automática
3
Há outros tipos de etiquetagem, como a semântica e discursiva, por exemplo. Sobre as diversas
aplicações da Linguística de Corpus, remetemos o leitor a Garside, Leech & McEnery (1997), Berber
Sardinha, 2000a, 2000b, 2004a, 2004b, entre outros.
4 Ferramenta e corpus
4
O etiquetador Aelius pode ser “baixado” gratuitamente no site <http://aelius.sourceforge.net/
manual.html>.
O segundo quadro é uma amostra de como o texto fica após ser “limpo”, sem
as marcas que podem interferir na etiquetagem.
5
As entrevistas do Varsul estão disponíveis nas universidades participantes do projeto.
6
As etiquetas que aparecem neste trecho são as seguintes: ADJ adjetivo; ADJ-G adjetivo neutro; ADV
advérbio; C complemetizador; CONJ conjunção; CONJS conjunção; D demonstrativo; D-F demonstrativo
feminino; DEM demonstrativo; D-UM-F demonstrativo um feminino; N nome; NEG negação; NPR nome
próprio; SR verbo ser infinitivo; P preposição; P+D pronome + demonstrativo; PRO pronome; POR$
pronome possessivo; Q quantificador; QT aspas; SE se; SR-P verbo ser presente; VB verbo infinitivo; VB-P
verbo presente; VB-SR verbo futuro subjuntivo; e, WPRO pronome relativo ou interrogativo. A lista de
etiquetas original pode ser visualizada no endereço <http://www.tycho.iel.unicamp.br/~tycho/corpus/
manual/tags.html>.
nosso corpus. Apesar de sua acurácia ser considerada alta, sua eficiência é ainda maior
na análise de textos escritos: 96,3% de acurácia (cf. ALENCAR, 2013)7.
O Aelius foi projetado para analisar textos de língua escrita; por isso,
encontramos alguns problemas ao utilizá-lo para etiquetar textos de língua falada,
como esperado. Na língua falada temos ruídos, hesitações e truncamentos que
acabam gerando palavras desconhecidas pelo etiquetador, que precisa encontrar uma
solução em seu dicionário para gerar uma etiqueta para essas “pseudo-palavras”; há
algumas interjeições menos comuns e expressões que o anotador tem dificuldade de
etiquetar; e, além disso, há gírias e palavras típicas e específicas (de Porto Alegre, no
nosso caso), que acabaram sendo etiquetadas equivocadamente.
● Claro: ... muito/Q gaúcho/N ,/, claro/ADJ ,/, né/NPR ?/. (marcador
conversacional)
● Né: ... era/SR-D hoje/ADV o/D sem/P fio/N ,/, né/NPR ?/. (marcador
conversacional)
● Cans: ... tínhamos/TR-D cans/N-P calçamento/NPR e/CONJ não/NEG
(truncamento)
7
Para efeitos de comparação, o etiquetador LX-Tagger7 (uma ferramenta desenvolvida na Universidade
de Lisboa pelo NLX - Grupo de Fala e Linguagem Natural do Departamento e Informática) tem 96,2% de
acurácia em textos de língua escrita.
Para que o Aelius possa dar conta de todas as palavras do corpus analisado – e
futuramente, de outros corpora de língua falada –, pensamos que é necessário que
haja uma etiqueta que dê conta de casos muito específicos da fala, como as
onomatopeias e aféreses, e, além disso, o caso dos marcadores conversacionais. Para
fazermos implementações em um etiquetador, devemos utilizar um corpus já anotado
e revisado, para que se treine um algoritmo de aprendizagem de máquina. Os
algoritmos utilizam-se de regras estatísticas para aprender como as etiquetas se
relacionam entre si. Exemplificando, a frequência de determinantes antes de
substantivos é muito grande; por isso, há grandes chances de a palavra que esteja
antes de um nome ser um determinante e vice-versa, e o anotador adquire essa noção
através do que é “ensinado” a ele, com regras estatísticas e com a inserção de palavras
no dicionário do programa.
Para a inserção de novas etiquetas, é necessário o treinamento de um
algoritmo de aprendizagem de máquina com um corpus que tenha passado por
anotação e revisão com essas novas etiquetas, para que se arquitete um novo
etiquetador. Também aqui reside a importância de nosso trabalho: disponibilizamos
um corpus de língua falada etiquetado automaticamente e revisado manualmente.
Não só o Aelius poderá ser treinado com base nesse corpus anotado, mas também
qualquer outro etiquetador morfológico em língua portuguesa que pretenda etiquetar
corpora falados.
7.2 Aférese
Ãh, Ahã, Hum, Hum hum e Tarará foram os casos que ocorreram em nosso
corpus; por isso, sugerimos que eles sejam adicionados ao dicionário do etiquetador,
com a etiqueta MC, de marcador conversacional. Além dessas ocorrências, sugerimos
que sejam adicionadas palavras como Eh, Ahn e Uhn, que também podem aparecer
em corpora futuros.
Bom, Claro, Né, Olha, Tá, Tal e Tipo são ocorrências do nosso corpus; portanto,
sugerimos que essas palavras sejam adicionadas com a etiqueta MCL, de marcador
conversacional lexical. Aqui há de se tomar mais cuidado, pois, como todas são
palavras lexicais, têm mais possibilidades de significado; por isso, o algoritmo precisa
ser bem treinado, levando em conta as que aparecem mais no início, as mediais, e as
finais.
O estudo das posições dos marcadores é bastante importante. Por exemplo,
quando a ocorrência Bom acontece como primeira palavra da frase, seguida por uma
vírgula ou ainda, se acontece no meio da sentença mas entre vírgulas, a chance de ser
um adjetivo é muito pequena, e a chance de ser um marcador discursivo é muito
grande.
Em comunicação pessoal, o professor Sergio Menuzzi sugeriu que talvez os
marcadores conversacionais que aparecem em posição final podem estar sendo
confundidos com vocativo, por causa de sua posição na frase, ocorrendo sempre ao
final e geralmente após uma vírgula, seguida por um ponto de exclamação ou
8 Considerações finais
A Linguística de Corpus vem evoluindo cada vez mais ao longo dos últimos
anos, mas um problema frequentemente encontrado é que muitas vezes não há
ferramentas disponibilizadas gratuitamente para que os pesquisadores possam ter
mais eficiência e versatilidade em seus objetivos de pesquisa. Com a finalidade de
auxiliar pesquisadores em linguística, o Aelius foi criado, e a fim de aumentarmos seu
escopo de anotação automática morfossintática para além de língua escrita,
abrangendo também língua falada, fizemos este trabalho, analisando exaustiva e
cuidadosamente o corpus de língua falada anotado automaticamente.
Esperamos que nossa pesquisa possa contribuir de maneira satisfatória com a
melhoria desse programa que pode auxiliar muitas pesquisas em nossa área. Além
disso, esperamos que cada vez mais os profissionais da linguagem tenham
conhecimento dessas ferramentas que estão a nossa disposição e que efetivamente as
usem, pois são instrumentos valiosos para a pesquisa. A importância da Linguística de
Corpus, em conjunto com a Linguística Computacional, pode ser constatada na
“elaboração de teorias gramaticais formalmente mais consistentes e
psicolinguisticamente mais realistas [...] e, assim, testar, com um grau de sofisticação
que dificilmente poderia ser atingido por seres humanos, a adequação dos modelos
postulados” (ALENCAR; OTHERO, 2011, p. 9).
Desejamos que a ferramenta seja aperfeiçoada em uma próxima versão e, além
disso, que seja mais utilizada por linguistas, pois esperamos que o Aelius obtenha
maior número de acertos – não esquecendo que ele já tem uma acurácia alta – e que o
Varsul tenha à sua disposição um etiquetador automático morfossintático de
qualidade, para futuras pesquisas. Acreditamos que essas ferramentas computacionais
que auxiliam o estudo da língua poderiam ser ainda mais usadas por linguistas porque
há muitos corpora disponíveis e as ferramentas estão cada vez mais acessíveis,
tornando nossas pesquisas mais eficientes e confiáveis.
Referências
E por mais que queira me alhear, já não é mais possível. O pensamento retorna
em espiral. As cabeças de Medusa se multiplicam. Já não posso mais cortá-las, estão
por todos os lados. Esboço as primeiras linhas de um assunto que, como mulher,
sempre compreendi muito mais na vida vivida do que na vida escrita. E, mais ainda,
medrosa, pois em mim o assunto ressoa, pulsa e se debate, como um réptil que,
depois de cortado, ainda continua a se mover aspirando desesperado e por instinto
pelos movimentos involuntários de vida. As pequenas castrações que acontecem no
comezinho dos dias quando as relações entre macho e fêmea se dão pelo embate; nos
olhares lascivos na rua, nos sorrisos de ameaça do taxista, na expressão insultada da
amiga que ouve que já transei com mais de vinte caras, na cara de prazer dele quando
aceitei fazer sexo casual sem camisinha. A associação é rápida e inevitável: acabo por
lembrar das minhas primeiras leituras ao entrar no mestrado em Escrita Criativa. É
bom que as fontes literárias sejam mais contemporâneas, os colegas recomendam. E
então, nessa exata ordem, acompanhei o protagonista de “Um copo de cólera”, de
Raduan Nassar, chamar sua companheira de “jornalistinha de merda”, cenas de prazer
femininas em Dentes Guardados no conto “Intimidade” de Daniel Galera (“Ela catou o
cinzeiro de vidro e jogou na minha cara, acertou na testa. – Qual é a tua, imbecil? Dei
um tapa na cara dela. Tirei toda a roupa de Linda e deitei-a de bruços na cama. Ela
ainda chorava) e me dou conta de que, para além do escritor-artífice que, na literatura,
busca por um efeito estético, as ideias e posicionamentos ideológicos inscritos nessas
histórias me mostram que a literatura reflete, de fato, a vida.
...
Durante essas pesquisas, uma aula online sobre a obra de Clarice Lispector,
disponível no site do Instituto Moreira Salles, em que o professor de Literatura
Brasileira da USP, José Miguel Wisnik diz:
2
Minoria entre inscritos, mulheres vencem os dois Prêmio Sesc. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/raquelcozer/2015/06/1645160-minoria-entre-inscritos-
mulheres-vencem-os-dois-premio-sesc.shtml
3
É bastante provável que, ao comparar a criação literária a uma panaceia que cura resfriados e mal-
estar, Ueland quisesse dizer que o ato criador seria capaz de fazer as mulheres purgarem alguns males
provenientes da histeria. Assim imagino, pois, como conforme a professora de Letras da UFF, Eurídice
Figueiredo (2013), ao invés de criar, escrever, a mulher silencia: “a loucura na mulher manifesta-se
A postura coadjuvante da mulher nas artes também pode ser explicada pelo
fato de ela nunca ter sido alçada pelo homem à posição de produtora. Ela sempre
representou em nossa sociedade patriarcal, a figura da musa, isto é, modo de
intermédio do artista com o que há de mais elevado. Isso não estimula uma postura
mais ativa e corajosa por parte das mulheres de se colocar a público, de encontrar sua
própria voz para expressão, como explica Simone de Beauvoir em “O Segundo Sexo”:
Bem, que as mulheres estão em desvantagem nas produções artísticas sob uma
perspectiva histórica isso é ponto recorrente – e nem por isso menos relevante. Mas
proponho aqui contar um pouco de minha trajetória de ensaio na escrita para falar
sobre aspectos do trabalho que estou escrevendo de cunho, a um só tempo, pessoal e
ficcional.
A história começa com uma frase de Serge Doubrovsky (1977) citada para
entender a escolha pela autoficção como caminho possível para autoexpressão:
muito mais pela doença física, pela somatização, do que pelo delírio, ou seja, a mulher está silenciosa
(silenciada) mesmo na loucura.” (p. 87)
Para falar de coisas tão íntimas e discorrer sobre a matéria feminina sem tantas
amarras, expandi minha experiência em direção também a experiência do outro, das
outras, essa liberdade fabulatória de ser autobiográfica e biografar os outros a partir
de uma voz em eu; eus reais e inventados, realizados e imaginados. Assim, lançar mão
da paleta de cores oferecida pela autoficção foi a saída criadora que me permitiu
escrever, fabular e achar um caminho de liberdade.
Referências
Introdução
1
Mestranda em Linguística, PPGL-PUCRS. Bolsista CNPq. E-mail: andradeneves.patricia@gmail.com
2
Doutoranda em Linguística, PPGL-PUCRS. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Rio Grande do Sul – IFRS. Bolsista CAPES. E-mail: fernanda.schneider.001@acad.pucrs.br
3
Mestranda em Linguística, PPGL-PUCRS. Bolsista CAPES. E-mail: daniellebaretta@hotmail.com
1 Ensino
O trabalho com a leitura não tem, na maioria das vezes, vínculo com a
produção textual, mas sim com a gramática e com diversos gêneros textuais. Além
disso, mesmo após vários anos frequentando a escola, muitos saem dela apenas
decifrando o que está escrito, não conseguindo compreender, interpretar. Manguel
(2001) afirma que a metodologia utilizada para o aprendizado da leitura apenas se
utiliza das convenções sociais e limita a nossa capacidade leitora.
King (2007) propõe que a compreensão leitora pode ser literal (de forma mais
superficial, as informações que estão explícitas no texto) ou inferencial (de forma mais
profunda, estabelecendo inferências que necessitam do conhecimento prévio do
leitor). Sendo a inferencial o maior objetivo de ser ensinada na compreensão leitora
em sala de aula.
Há na alfabetização tradicional diversos equívocos de ensino e aprendizagem,
um deles é a maneira mecanicista de ensinar a escrita, focando nas letras de forma
sequencial, depois as agrupando de forma silábica. Não há uma descoberta do som da
letra pela criança, uma forma mais livre do manuseio de diversos livros em sala de
aula, combinação de linguagem verbal e não verbal e a relação entre língua oral e
escrita.
Nota-se que não é apenas no ensino escolar que se encontram falhas, pois o
papel da leitura, a função da escrita, o quanto e como são valorizadas, o que é
relevante para ser aprendido, também contribuem para o sistema falho do ensino e
aprendizagem da compreensão textual. Todo o contexto precisa ser avaliado, já que
ele determina os moldes educacionais vigentes.
Atualmente ainda se encontra, mesmo com a diversidade de textos
apresentados em sala de aula, o ensino baseado nos moldes de textos narrativos,
descritivos e dissertativos. Dessa forma, as aulas de Língua de Portuguesa se ancoram
num padrão dissociado ao ensinar leitura, escrita e gramática. Há que se levar em
conta também a diferença entre compreender (processo interno relacionado
exclusivamente com a mente do próprio indivíduo) e interpretar (deslocamento do
foco da atividade mental, interação com o texto e o mundo).
A partir de publicações de autores conhecidos no meio acadêmico e entre
professores da educação básica, temos o texto como uma unidade em que pode ser
aprendido e ensinado diversos aspectos no ensino de Língua Portuguesa além de
apenas a compreensão textual, por exemplo: coesão, coerência, estudo gramatical,
intertextualidade. Sendo assim, obtivemos na escola um crescimento do grupo de
professores que se interessam pela linguística e apoiam um ensino menos normativo.
Ou seja, para ler com gosto a pessoa tem de ter motivação para fazê-
lo, pois sem isso a leitura enfastia e aborrece. O surpreendente da
leitura é que ela afasta o leitor do aqui e agora justamente para
possibilitar-lhe melhor entender o seu entorno, as relações humanas,
os jogos de poder e muito mais.
3 Conclusão
Referências
1 Introdução
1
Mestrando do PPG em Letras da UPF na linha de Leitura e Formação do Leitor. Bolsista FAPERGS.
E-mail: pedroabarth@hotmail.com
2
Mestranda do PPG em Letras da UPF na linha de Constituição do Texto e do Discurso.
E-mail: rafaellyandressa@hotmail.com
a atuação restrita ao ambiente privado, dando mostras de submissão. Tita domina por
completo a cozinha – um espaço em que sua mãe não tem entrada – e é na cozinha
que a protagonista apresenta atitudes de transgressão. Quando cozinha e seus pratos
têm efeitos na realidade externa, Tita, inconscientemente, demonstra o anseio de sair
do espaço fechado e transitar também pelo espaço aberto.
Apesar de crescer em um ambiente patriarcal e ter de conviver subjugada às
tradições familiares, Tita não as aceita de forma passiva, mas as enfrenta. E,
sobretudo, reflete sobre elas. Quando sua mãe a impede de casar com Pedro, devido à
tradição da filha mais nova ter de dedicar sua existência aos cuidados com os pais
idosos, Tita não se conforma.
4 A ausência de alteridade
afirma que a maioria dos jovens tem grande dificuldade de encontrar um lugar neste
mundo, não só por razões econômicas, mas também afetivas, sociais, sexuais e
existenciais e Poilú parece estar neste dilema. Não sabe quem é, foi acostumada a
apenas sobreviver e, pela primeira vez, pensa, vivencia e se percebe como ser humano
apto a recorrer à sua capacidade e força interna, despertada pelas histórias que a
possibilitaram dar início a um processo de resiliência, tão importante em momentos de
dor e trauma. A fantasia contribui para que a criança reconheça e entre em contato
com seus sentimentos, entre eles a agressividade. No conto, o conflito entre mãe e
filha acontece, porque Anuncia não admite que sua filha tenha contato com tradições
pagãs. Ao impedir sua filha provoca sua morte. Da mesma forma quando a América ao
reproduzir ideias repressoras dos colonizadores e impedir as manifestações culturais
autóctones, provoca gradualmente a morte de sua própria identidade cultural.
O conflito de Como água para chocolate por sua vez tematiza o choque do
patriarcado com os direitos das mulheres. Mãe Elena e Tita parecem representar duas
posturas femininas: a primeira é a mulher que aceita o machismo e torna-se uma
agente da manutenção do poder patriarcal e a segunda é aquela que luta contra a
manutenção desse sistema.
Mãe Elena, em suma, era uma castradora, tinha prazer em dominar as filhas e
subjugá-las a sua vontade. Porém, durante a narrativa o leitor é informado de que
Elena escondia um segredo: durante a juventude viveu um amor proibido com um
negro, mas sua família descobriu e a casou à força com Juan de La Garza. Elena teve
que sufocar seus sentimentos, transformando-se em uma mãe e esposa exemplar. Ao
impedir a união de sua filha mais nova com Pedro, Elena está a condenando ao mesmo
destino que teve. Endureceu de tal maneira que se tornou incapaz de sentir empatia
pelos sentimentos de sua filha mais nova, e ao invés de utilizar a autoridade que tem
para promover a independência e o bem-estar das filhas, faz com elas o mesmo que os
seus pais fizeram no passado: submeter a um destino de infelicidade.
Nessa complexidade apresentada por Mamãe Elena percebemos o que
Bourdieu (2014, p. 54) define como a violência simbólica que as mulheres sofrem pela
dominação masculina. O autor aponta que a “primazia universalmente concedida aos
homens se afirma na objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas e
reprodutivas, [...] elas funcionam como matrizes das percepções, dos pensamentos e
das ações de todos os membros da sociedade, como transcendentes e históricos”.
Elena está condicionada a pensar que o lugar de uma mulher é obedecer aos preceitos
patriarcais. Por isso, mesmo tendo a oportunidade de promover um destino diferente
para suas filhas, não o faz. A personagem parece incapaz de reconhecer na filha os
dramas que viveu no passado. E assim condena a jovem a uma vida infeliz e sem
propósito.
Considerações finais
Referências
SAGUIER, Ruben. Augusto Roa Bastos e a Narrativa Paraguaia Atual. Curitiba: Letras,
1976.
Rafael S. Timmermann1
Telisa Furlanetto Graeff2
1
Doutorando em Letras no PPGL da Universidade de Passo Fundo - UPF. Bolsista CAPES.
E-mail: rafaelimmermann@yahoo.com.br
2
Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo – UPF, Doutora
em Linguística Aplicada pela PUCRS.
E-mail: telisa@upf.br
Tradução livre:
Quadro 1:
Hobbes: Que dia perfeito!
Quadro 2: Ø
Quadro 3: Ø
Quadro 4:
Calvin: Se alguma coisa não acontecer aqui logo, eu vou pirar.
Figura 3 – Argumento/Topos/Conclusão
Para garantir a passagem do argumento dia perfeito para cada uma das
conclusões, segundo a fase Standard Ampliada da ADL, seria necessário conhecer um
topos que não está na língua.
Para garantir (1), a crença/topos que se evoca do encadeamento (1) é a de que
um dia perfeito é aquele em que se pode apenas relaxar, sem compromissos e é
assumido, geralmente, por adultos e não por crianças. Pode-se dizer, então, que, para
um adulto, quanto menos coisas se tem para fazer, melhor é o seu dia.
No entanto, a garantia utilizada para justificar a passagem em (2) propõe que
um dia é perfeito, quando se podem realizar muitas coisas, geralmente jogos ou
brincadeiras que envolvem atividades físicas, por exemplo. Do ponto de vista de uma
criança, esse é um topos que justificaria a conclusão a ser tirada de dia perfeito, uma
vez que, para ela, quanto mais coisa para fazer, mais perto da perfeição o dia estará.
É nesse sentido que destacamos a interface possível entre as duas concepções
de linguagem, no movimento de construção do sentido dos enunciados que, a partir
do linguístico, busca-se um fator não expresso verbalmente, para que haja
Considerações finais
Referências
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. 6. ed. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2011.
CAREL, Marion. Pourtant: argumentation by exception. Journal of Pragmatics, v. 24, p.
167-188, 1995.
______; DUCROT, Oswald. La semántica argumentativa: una introducción a la teoría
de los bloques semánticos. Buenos Aires: Colihue, 2005.
DUCROT, Oswald. Polifonía y argumentación. Universidad del Valle. Cali, 1990.
GRAEFF, Telisa; TIMMERMANN, R. S. O encadeamento argumentativo como doador de
sentido na análise dialógica do discurso e na semântica argumentativa.
Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, v. 9, n. 1, p. 90-107, jan./jul. 2014.
VOLOSHINOV, V. N. Discourse in life and discourse in art: concerning sociological
poetics. In: VOLOSHINOV, V. N. Freudianism: a marxist critique. Tradução I. R.
Titunik. London: Verso, 2012. p. 151-196.
WATTERSON, Bill. [Dia perfeito]. 1. Il, p&b. Disponível em:
<http://www.gocomics.com/calvinandhobbes/1987/06/30#.U5dFinJdWCA>.
Acesso em: 07 jun. 2014.
PROJETO BALBÚRDIA:
ESCRITA CRIATIVA NO ESPAÇO DE FRONTEIRA
divulgação do evento, como para serem apresentados durante cada edição. Isso nos
levou a pensar o projeto como incentivo à criação. Por isso, no final de 2012, fizemos
um texto com esse tema, apresentado no I Encontro de Escrita Criativa3, realizado na
PUCRS.
O Balbúrdia teve desdobramentos em projeto de ensino: Balbúrdia no
português, jornal didático formado com os textos apresentados no Balbúrdia e com
propostas de aplicação na escola; e, em 2015, criou-se o Balbúrdia na Escrita Criativa.
Esses dois projetos fazem parte das atividades do PET Letras da Unipampa Câmpus
Jaguarão, coordenado pela professora Renata Silva e que tem a colaboração do
professor Sandro Mendes em alguns projetos.
A proposta do Balbúrdia na Escrita Criativa é de utilizar os moldes do
Balbúrdia original, de 2012, como provocação para oficinas de escrita criativa.
Escolhemos um tema trabalhado no Balbúrdia em 2012, realizamos em tempo menor
(30 a 45 minutos) e depois aplicamos dois ou três exercícios de escrita individual e um
de escrita coletiva (em grupos). Por isso, cada encontro tem um tema.
O tema do espaço apareceu para que se pudesse tratar da escrita de
fronteira. No Balbúrdia, o tema espaço foi um evento especial, único realizado em
2013, durante um evento de artes do município, o FALA (Feira Alternativa de Literatura
e Artes), criado e organizado por um grupo que continha representantes da Prefeitura,
universidade e grupos da sociedade civil relacionados com as artes. Naquela edição do
Balbúrdia, discutimos sobre espaço através de textos de David Harvey, Pierre Levy,
Gaston Bachelard. Mostramos fotografias que traziam distorção de espaço, vídeos
virais da internet e videoclipes que tinham algo de discussão e trabalho com o espaço.
Além de músicas e poemas.
Na edição de 2015, relatada neste trabalho, apresentamos material sobre
“espaço” e depois sobre o “espaço de fronteira”. Começamos com a música “Frontera”
do cantor e compositor uruguaio Jorge Drexler. Também apresentamos conceito de
fronteira, retirado de um artigo de colega professor da Unipampa, Carlos Rizzon
(2012). Exibimos um trecho do programa CQC (Custe o Que Custar/Emissora
Bandeirantes) que discutiu sobre a questão dos haitianos no Brasil, principalmente
sobre a discriminação realizada em um vídeo feito em um posto de gasolina em
Canoas. Também comentamos sobre o conceito de Mobilidade Linguística (PORTO,
2010) e apresentamos poema de Fabian Severo (2010), em portunhol. E, por fim,
3
XXVIII Seminário Brasileiro de Crítica Literária, XXVII Seminário de Crítica do RS e I Encontro Nacional
de Escrita Criativa, 2012, PUCRS.
comentamos sobre Topofilia, conceito de Yi-Fu Tuan (1980) que traz a percepção
aliada ao sentir o espaço, o lugar, a cidade.
Antes de iniciarmos o momento dos exercícios de criação, fizemos algumas
perguntas sobre a fronteira na opinião dos participantes. Alguns participantes, que
vieram de fora do Rio Grande do Sul, comentaram sobre suas percepções. As
perguntas feitas questionavam sobre o encontro de culturas, sobre a visão deles
acerca da fronteira e também de elementos culturais que esses estudantes vindos de
fora mantinham. Uma participante, vinda do interior do estado de São Paulo, e que
está há mais de três anos em Jaguarão, disse que não iria nunca usar o “tu” ou o “bah”.
Outra, vinda de Salvador há pouco mais de dois anos e meio, disse que já usa o “tu”.
Um aluno mineiro, já em seu sexto semestre na fronteira, relatou uma atividade do
curso em que trabalhou com uma “guria” (como ele disse) e se sentiu mal por usar o
“você” ao conversar com ela, mas que, ainda assim, não usou o “tu”.
Ainda respondendo sobre a vinda e a vida na fronteira, a Participante (P) 6,
uma estudante vinda de São Paulo, disse que ao chegar na fronteira falou algo como
ter percebido a existência de dois grupos (uns e outros), referindo-se aos habitantes de
Jaguarão (Brasil) e de Rio Branco (Uruguai) e ela não conseguia se sentir fazendo parte
nem do “uns”, nem do “outros”. Outra aluna vinda de São Paulo, a Participante 2, disse
que já sentiu um choque cultural ao chegar a Jaguarão, e acrescentou que andando
mais cinco minutos encontrou outro país e uma cultura ainda mais diferente. A aluna
de Salvador, P1, disse ficar impressionada que alguns falam em espanhol e os
brasileiros entendem (e vice-versa). Outra participante, P7, contou que vive em Río
Branco, e que não vê muita diferença, só que lá ela fala espanhol. Perguntaram a ela
como se sente quando vem para Jaguarão, a participante afirmou que só sentia que
iria sair de casa, nada mais.
Iniciando a oficina de criação, utilizamos Roland Barthes e as obras A
preparação do romance e Incidentes (2005). Barthes diz que tem certo problema com
o passado, que não tem boa memória e, por isso, se um dia fosse escrever um
romance, teria que ser texto no presente, como notas. Então Barthes se pergunta se
isso seria possível. Também nas aulas que ministrou sobre a preparação do romance,
Barthes trata do haicai definindo o tradicional terceto japonês explicando que sempre
havia uma menção ao tempo, à estação do ano. Partindo, de certa maneira, dos
haicais, Barthes chega a seus “Incidentes”. Os incidentes são caracterizados pela
brevidade, uso do presente, e pouca marca de subjetividade, pois pouquíssimas vezes
aparece ou está envolvido um eu, e menos ainda está expressa alguma opinião. É claro
que o eu muitas vezes está presente, porém é quase que elipsado, escondido. O
próprio Barthes, na obra Roland Barthes por Roland Barhes (2003), define como
“minitextos, recados, haicais, anotações, jogos de sentido, tudo o que cai, como uma
folha” (p. 167).
Foi pedido, então, aos participantes do Balbúrdia na Escrita Criativa, que
escrevessem um Incidente. A intenção é que usassem a memória para escrever o
texto, pois o espaço de sala de aula, utilizado para o projeto, não permitia muitas
possibilidades de observação que justificassem a nota. Praticamos os “incidentes” de
uma forma diferente a que Barthes imaginou, já que o autor reclamava de sua própria
memória. Ainda assim, pedimos que fosse usado o presente e todas as outras
características dos minitextos de Barthes. Valemo-nos então da tradicional acepção da
memória: “um mecanismo psíquico que torna presente alguma verdade referente ao
passado” (SOUZA, 2010).
No primeiro texto, não pedimos uma relação com a fronteira. Ainda assim,
alguns textos já apresentaram o contexto de fronteira, como as produções dos
participantes 8 e 14, respectivamente:
Outro texto (participante 10) pode ser encarado como “circulação urbana” ou
mesmo identificado com o conceito de “deslocamento”, apresentado por Elena
Palmero. A participante 10 criou o seguinte incidente:
4
Declaração dada por e-mail como resposta à entrevista realizada por Marjorie Mendonça de Campos
Fernandes, aluna do curso de Produção e Política Cultural, que está realizando TCC com o tema do
Processo criativo na Fronteira, orientado por Sandro Martins Costa Mendes.
5
Regionalismo: Rio Grande do Sullugar de nascimento; cidade, município, região natal; rincão,
querência.
Agora que cruzamos o marco zero desse imaginário, será que o devir
que existe ali irá unir-se para transformar o imaginário do mapa para
algo menos simbólico?
Como que se faz para ir ao outro lado? pergunta a menina. Mas não
há outro lado, responde ele. Ela percebe que não se deve delimitar o
lado.
Referências
BARTHES, Roland. A preparação do romance, [vol. I e II]. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
______. Incidentes. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
______. Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
LOPES, Cícero Galeno. Transnação. In: BERND, Zilá (org.) Dicionário das mobilidades
culturais: percursos americanos. Porto Alegre: Literalis, 2010.
PALMERO, Elena. Deslocamento. In: BERND, Zilá (org.) Dicionário das mobilidades
culturais: percursos americanos. Porto Alegre: Literalis, 2010.
PORTO, Maria Bernadete. Circulações urbanas. In: BERND, Zilá (org.) Dicionário das
mobilidades culturais: percursos americanos. Porto Alegre: Literalis, 2010.
RIZZON, Carlos Garcia. Outras geografias em literatura de fronteira. In: Para Onde!?, v.
6, n. 2, p. 114-124, jul./dez. 2012. Ins tuto de eociências, Programa de Pós
raduação em eogra a, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, RS, Brasil, 2012.
SCHAFER, Murray. O ouvido pensante. São Paulo: UNESP, 1991.
SEVERO, Fabián. Noite nu norte. Poemas em Portuñol. Montevideo: Ediciones del
Rincón, 2010.
SOUZA, Raquel Rolando. Memória e imaginário. In: BERND, Zilá (org.) Dicionário das
mobilidades culturais: percursos americanos. Porto Alegre: Literalis, 2010.
TUAN, Yi-Fu. Topofilia: Um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente,
1980.
Introdução
Esse texto apresenta algumas das reflexões que fazem parte da nossa tese de
doutorado, ainda em produção. Ao voltarmos nossa atenção para as enunciações
produzidas por sujeitos que são definidos a partir de sua relação com as religiões afro-
gaúchas2, fomos lançados em direções por nós até então inexploradas. O que vimos
chamando de “enunciação do sagrado” nos revela aspectos da enunciação que não são
geralmente objeto de seus estudiosos. Nesse texto, nosso foco é o que se compartilha
e o que não se compartilha d/nessa enunciação. Para tal abordagem, partiremos de
Benveniste, por meio da categoria de pessoa, alargaremos a noção de enunciação para
contemplar aspectos ligados ao sistema afetivo (LE BRETON, 1998) e nos valeremos do
conceito de testemunho de Agamben (2008) para falar sobre o que é testemunhável e
o que permanece intestemunhável.
1 A categoria de pessoa
1
Doutoranda do PPG-Letras – UFRGS. Professora de línguas portuguesa e inglesa IFRS – Campus Porto
Alegre. E-mail: renata.severo@poa.ifrs.edu.br
2
A expressão “religiões afro-gaúchas” se refere à Nação, à Umbanda e à Quimbanda. Para mais
informações, ver Oro, 2008.
alguém ou alguma coisa, mas não referida a uma 'pessoa' específica” (BENVENISTE,
2005, p. 250). Flores (2013) propõe três características que evidenciam as diferenças
entre pessoa (eu-tu) e não pessoa (ele):
(a) unicidade específica: eu e tu são sempre únicos: 'O 'eu' que enuncia, o
'tu' ao qual 'eu' se dirige são cada vez únicos. 'Ele', porém, pode ser uma
infinidade de sujeitos — ou nenhum' (PLG I: 253);
(b) inversibilidade: eu e tu são inversíveis entre si. O ele não pode ser
invertido com os dois primeiros;
(c) predicação verbal: ' A '3a pessoa' é a única pela qual uma coisa é
predicada verbalmente' (PLG I: 253). Tudo o que não pertence a eu-tu
recebe como predicado a forma verbal da 3a pessoa. (FLORES, 2013, p. 91).
Quando saio de 'mim' para estabelecer uma relação viva com um ser,
encontro ou proponho necessariamente um 'tu' que é, fora de mim, a única
'pessoa imaginável'. Essas qualidades de interioridade e de transcendência
pertencem particularmente ao 'eu' e se invertem em 'tu'. Poder-se-á, então,
definir o tu como a pessoa não subjetiva, em face da pessoa subjetiva que
eu representa (BENVENISTE, 1946, p. 255).
interpretação para o trecho “É 'ego' quem diz 'ego'”3: “É sujeito quem assume a
posição de 'eu'” (FLORES, 2013, p. 100). O linguista brasileiro propõe a noção de
sujeito como um efeito da enunciação. A subjetividade que advém do fato do locutor
se apropriar da língua e se enunciar é um efeito desse ato, a passagem de locutor a
sujeito é um efeito provocado pela enunciação. Nessa perspectiva, o sujeito resulta de
uma operação que se leva a cabo na e pela língua.
Se a subjetividade se estabelece a partir do momento em que “ego diz ego”, é
preciso voltarmos nossa atenção a esse momento. A enunciação é um acontecimento
no tempo e no espaço. Ela ocorre em uma instância discursiva (ID): um conjunto de
coordenadas que torna possível identificar o paradigma enunciativo eu-tu/aqui/agora.
É de “A natureza dos pronomes” que o Dicionário de Linguística da Enunciação
extrai a seguinte definição para “instância de discurso”: “ato de dizer a cada vez único
pelo qual a língua é atualizada em fala pelo locutor” (FLORES et. al., 2009, p. 142).
Nessa definição, o caráter de acontecimento é ressaltado. Interessam-nos, além desse
caráter, outros que o Dicionário aborda na nota explicativa e que são fortemente
baseados no trabalho de Aya Ono (2007) “La notion d'énonciation chez Émile
Benveniste”. Nessa obra, a autora chega à conclusão de que a noção de enunciação
está associada a outras três: frase, ato de fala e instância de discurso. Ao final de sua
análise das ocorrências de “instância de discurso” no corpus selecionado, a linguista
define três características dessa noção:
1. Ela se identifica com uma temporalidade que, tendo uma duração em que
se forma o discurso, contém as instâncias dos dêiticos;
2. Ela se prende ao momento inicial da sua produção de fala;
3. É pela ID que o locutor se torna sujeito. (ONO, 2007, p. 84 — tradução de
Daniel Costa da Silva).
3
Na obra citada, Flores chama atenção para a versão brasileira do PLG I que traduz “qui” por “que”
quando o correto seria “quem”. Empregamos a tradução proposta por Flores.
4
Referimo-nos à famosa asserção de Benveniste: “a linguagem serve para viver” (BENVENISTE, 2006, p.
222).
transcende, o que acreditamos ser um reflexo da subjetividade, uma vez que essa é
também uma categoria que se manifesta na e pela língua, mas que a transcende: “A
instalação da 'subjetividade' na linguagem cria na linguagem e, acreditamos,
igualmente fora da linguagem, a categoria de pessoa”(BENVENISTE, 2005, p. 290).
Como já dissemos, o cerne desse texto faz parte da nossa tese de doutorado.
Nela, observamos as enunciações produzidas por sujeitos definidos em sua relação
com religiões afro-gaúchas (ORO, 2008). O que denominamos “enunciação do
sagrado” diz respeito a uma enunciação que não se restringe à língua, mas que coloca
em evidência outros sistemas semiológicos5: “a linguagem tem como função 'dizer
alguma coisa'. O que é exatamente essa 'coisa' em vista da qual se articula a língua, e
como é possível delimitá-la em relação à própria linguagem? Está posto o problema da
significação” (BENVENISTE, 2005, p. 8). É à significação que precisamos relacionar a
linguagem para que possamos perceber que a enunciação não está restrita à língua6.
Relembramos: “a língua é uma forma, não uma substância”. Essa substância é a
própria significação, aquilo que se traduz em intentado7, o que se semantiza.
Considerar a linguagem de maneira abrangente, sem restringir sua expressão à
forma linguística é imprescindível para dar conta de uma enunciação que arrebata o
corpo todo, que vai além do aparelho fonador e da escrita para expressar e além da
audição e da visão para ser percebida, como é o caso da “enunciação do sagrado”.
Nossa necessidade de investigar a enunciação além da língua nos levou ao corpo, à
voz, à afetividade. Encontramos nos estudos de David Le Breton (1992; 1998; 2004;
2011) a reflexão que nos permite construir um arcabouço teórico que nos auxilia a
compreender o que está para além da língua na enunciação do sagrado. Acreditamos
que observar as interações humanas, invariavelmente mediadas pela linguagem, a
partir do ponto de vista do corpo nos permite ter uma visão compreensiva 8 do que
está em jogo na enunciação do sagrado. A Antropologia do corpo de Le Breton nos
auxilia a compreender como a rede de sentidos que envolve o humano funciona para
além da língua.
5
Nossa ideia de sistema semiológico está em consonância com a apresentada por Benveniste em
“Semiologia da língua” (BENVENISTE, 2006).
6
Abordamos esse tema de maneira mais aprofundada em “Língua e linguagem como organizadoras do
pensamento em Saussure e Benveniste” (SEVERO, 2013). Atualmente, trabalhamos com uma versão
aperfeiçoada das ideias apresentadas nesse artigo, o que não o invalida, mas o coloca sob um olhar
crítico.
7
Empregamos a tradução sugerida por Mello (2012).
8
Em lugar de uma visão interpretativa, a abordagem compreensiva está interessada nas relações de
sentido construídos.
9
Abordamos esse tema de forma mais aprofundada em “Linguagem e cultura: uma abordagem com
Benveniste” (FLORES e SEVERO, 2015).
10
“le corps n'existe pas à l'état naturel, il est toujours saisi dans la trame du sens” (LE BRETON, 1992, p.
37).
11
“(…) l'émotion n'est pas la conséquence d'une pensée appliquée au monde à la manière du cogito.
Tout processus de connaissance s'enracine dans un jeu subtil avec intelligence de l’événement.” (LE
BRETON, 1998, p. 103).
12
“Les sentiments ou les émotions participent donc d'un système de sens et de valeurs propres à un
groupe social dont elles confirment le bien-fondé, les principes qui organisent le lien social”. (LE BRETON,
1998, p. 9).
nascimento, todo ser humano é exposto aos sentimentos e emoções do outro — pais,
familiares e sociedade em geral — e, nessa relação, aprende as orientações afetivas do
grupo a que pertence. É na relação com o outro que as emoções são vivenciadas e
expressas. Le Breton (1998) aborda intensamente casos de “crianças selvagens” que
durante sua infância não tiveram contato com outros seres humanos e que, ao serem
reincorporadas à sociedade, desconhecem as emoções que seus captores esperam que
elas expressem. A Antropologia tem extensamente demonstrado como as emoções,
longe de serem “naturais”, são culturalmente construídas. O papel do outro é
imprescindível para essa construção. Le Breton afirma que jamais estamos sós em
nossos corpos e cita Artaud, dizendo que estamos em nossos corpos “como em uma
encruzilhada habitada por todo mundo”, para a seguir resumir em algumas frases toda
uma teoria da afetividade vivenciada por meio do outro:
Meu corpo é ao mesmo tempo meu, uma vez que ele carrega os traços de
uma história que me é pessoal, de uma sensibilidade que é a minha, mas ele
contém também uma dimensão que me escapa em parte e remete aos
simbolismos que dão corpo ao laço social, e sem a qual eu não seria. (LE
BRETON, 1998, p. 30, tradução nossa).13
13
Mon corps est à la fois le mien, en tant qu'il porte les traces d'une histoire qui m'est personnelle, d'une
sensibilité qui est la mienne, mais il contient aussi une dimension qui m'échappe en partie et renvoie aux
symbolismes qui donnent chair au lien social, mais sans laquelle je ne serais pas. (LE BRETON, 1998, p.
30).
A língua do testemunho é uma língua que não significa mais, mas que, nesse
seu ato de não significar, avança no sem-língua até recolher outra
insignificância, a da testemunha integral, de quem, por definição, não pode
testemunhar. (…) Assim, a impossibilidade de testemunhar, a “lacuna” que
constitui a língua humana desaba sobre si mesma para dar lugar a uma
outra impossibilidade de testemunhar — a daquilo que não tem língua.
(AGAMBEN, 2008, p. 48).
Até agora, nos referimos por meio do sintagma “enunciação do sagrado” a algo
que pode ser segmentado em duas partes. O que essas partes têm em comum é que
ambas dizem respeito ao sagrado, seja como tema ou como lugar de enunciação.
Quando falam sobre sua religião, sobre sua relação com seus Orixás e entidades, sobre
sua experiência com o sagrado, nossos sujeitos nos dão seu “testemunho do sagrado”.
Trata-se de momentos em que o sagrado é tema da enunciação, mas a enunciação não
acontece no lugar nem no momento do sagrado. Por “lugar do sagrado”
compreendemos não apenas a casa ou o terreiro de religião em si, mas o espaço
preparado para que o sagrado tenha lugar. Trata-se de um ponto no tempo e no
espaço dedicado ao sagrado, sacralizado; compreende um conjunto de circunstâncias
especiais que dizem respeito a tempo e a espaço, mas principalmente aos rituais que
devem ser observados para que esse lugar, nesse momento, seja sagrado. Mesmo que
o testemunho do sagrado aconteça dentro do terreiro, ele não se dá em um momento
do sagrado.
Enunciação do sagrado e testemunho do sagrado são dois momentos da
linguagem das relações dos sujeitos com seu sagrado. Quando o sagrado é um “ele”,
isto é, no testemunho do sagrado, dá-se uma travessia entre a linguagem da forma
como ela só se expressa no lugar do sagrado e fora dele. De outra forma, a enunciação
do sagrado é a própria expressão da linguagem do sagrado em movimento. Assim
como enunciar é se apropriar do aparelho de enunciação e dizer “eu”, enunciar no
sagrado é apropriar-se de um aparelho enunciativo específico para dizer “eu”. Esse
aparelho é da palavra, do corpo, dos sentidos e dos sentimentos. Quando a enunciação
tem origem no sagrado, nessa circunstância especial a que chamamos “lugar do
sagrado”, ela é enunciada por um eu específico do sagrado. Esse eu é tanto a entidade
que fala, não apenas em seu nome, mas em nome de todo um tecido sagrado que
inclui as hierarquias e as tradições observadas na casa em que esse lugar do sagrado se
materializa, quanto o cavalo que abre a boca para dizer “eu”. Esse eu é o próprio
sagrado se o entendermos como um valor dinâmico, como a relação singular que cada
sujeito estabelece com sua religião.
Recorremos à noção de instância discursiva (ID) para pensarmos essa dinâmica.
Vimos que a ID compreende as coordenadas que determinam o tempo, o espaço e as
pessoas (eu-tu) da/na enunciação. Quando pensamos a enunciação do sagrado, tempo,
espaço e pessoas evidenciam significados que não são perceptíveis sem se considerar a
simbólica específica da religião considerada. Se, superficial e aparentemente, o local e
a pessoa que enuncia no testemunho do sagrado são os mesmos da enunciação do
sagrado, simbolicamente, o que está em jogo é uma instância de discurso totalmente
diferente. Durante os momentos rituais, especialmente durante a possessão, há toda
uma preparação do espaço e das pessoas envolvidas que produz essa mudança
significativa:
A enunciação do sagrado não está restrita à língua; esse “eu” não é dito sempre
ou apenas com palavras. Ela se manifesta em todo o corpo do sagrado — que
compreende o corpo do filho de santo, mas também do lugar do sagrado. O sagrado se
enuncia no olhar, na dança, no caminhar, na fala, no silêncio, no beber e no comer, no
Considerações finais
Referências
SOBRE O QUE FAZEMOS: DIÁLOGO DE BERNARDO CARVALHO COM RAMÓN NIETO SOBRE O
PROCESSO DE CRIAÇÃO FICCIONAL
1 Introdução
Dentre todas as angústias que assaltam o escritor, possivelmente uma das mais
intensas seja a que se refere à inspiração. Faulkner (1956), quando questionado sobre
a importância da inspiração ao escritor, afirma que não sabe o que é a inspiração, pois
somente ouviu falar dela, mas nunca a viu.
da minha vida. Nada era mais importante. Então tudo era feito em função daquilo
(informação verbal2)”.
A partir do despertar desta paixão, Carvalho recorda que não escreveu nada
durante seis meses. Em seus romances posteriores, “Mongólia” e “O Sol se Põe em São
Paulo”, ele tentou reproduzir o mesmo processo: onde a escrita ainda não estava
presente, o mundo virava romance antes do romance propriamente existir
(informação verbal2). Neste início de processo criativo, onde a obra ainda não foi
transposta ao papel, e o que reside no escritor é ainda a ideia original e a vontade –
único momento de prazer conforme Nieto (2001, p. 67) – Carvalho utiliza a metáfora
de uma represa, onde todos estes inputs vão sendo armazenados em si para que, em
determinado momento, as comportas deste repositório se abram e, então, a história
passa a ser escrita, uma vez que está madura o suficiente para ser colocada no papel.
Porém, para que isso aconteça, o autor reforça a necessidade da pré-disposição: ele
passa a escrever a história porque já estava pré-disposto a escrevê-la. Em seu caso
específico, havia a motivação despertada pela matéria de jornal tratando do suicídio
de um antropólogo no interior do Brasil. Era a sua paixão. A obsessão. Contudo, ao
amadurecer a história, ao pensar nela durante todos os dias, como costumeiramente
fazem os amantes apaixonados, cria-se esta pré-disposição, força elementar que torna
o autor capaz de escrevê-la.
Quando da construção de Nove noites, Carvalho diz que, ao ler a matéria de
jornal sobre Buell Quain, havia uma frase que despertou nele o desejo de iniciar um
romance em torno deste personagem real. Questionado sobre que frase era essa,
Carvalho afirma:
2
Entrevista concedida por CARVALHO, Bernardo. Depoimento [13 mai. 2015]. Entrevistador: Rodrigo
Alfonso Figueira. Porto Alegre: PUCRS, 2015. 1 arquivo .mp3 (52 min). Entrevista concedida ao aluno.
2
Entrevista concedida por CARVALHO, Bernardo. Depoimento [13 mai. 2015]. Entrevistador: Rodrigo
Alfonso Figueira. Porto Alegre: PUCRS, 2015. 1 arquivo .mp3 (52 min). Entrevista concedida ao aluno.
O autor considera que este estado, aliado ao fato de estar sem compromisso
algum em nenhuma hora do dia é, sem dúvida, a situação ideal para o processo de
construção de uma obra. Ao mesmo tempo, pondera que circunstâncias como estas
são muito raras, praticamente não existindo em nossa rotina moderna. Ele cita que,
durante o período na Bélgica, especialmente em Bruxelas, o seu dia de trabalho era
marcado por inúmeras pausas, à medida em que a construção do texto era travada por
alguma impossibilidade narrativa.
Seu trabalho era intercalado por outras atividades (almoço, uma ida a uma
livraria, uma saída para jantar, etc.) que permitiam a ele voltar ao ponto de onde
parou com uma nova perspectiva, uma solução possível aos problemas encontrados no
momento da parada, ainda que o processo novamente travasse em uma nova
impossibilidade momentos depois. “E de repente, no meio da noite, vem uma ideia.
Como se aquele acúmulo de coisas que eu fiz durante o dia, todo aquele lixo - a noção
daquele lixo - explode em uma coisa certa e eu entendo o que eu tenho que fazer”
(informação verbal2). A completa ausência de obrigações durante o dia e o foco
exclusivo na criação ficcional, permite que o autor alcance o que ele chama de um
fluxo criativo ideal.
Carvalho cita que outro ponto alto da residência em uma cidade estranha, é a
solidão. O pouco contato social e o distanciamento da rotina comum a qualquer
pessoa em sua cidade de origem favorece a disciplina necessária para o trabalho na
obra. “Essa vida ideal [a da residência] permite fazer em muito menos tempo o que eu
passo meses tentando desenvolver” (informação verbal2, grifo nosso). Ele acrescenta
que, se estivesse em uma cidade onde mantivesse relações sociais, certamente faria
contato com seu círculo para provocar alguma atividade durante o seu processo (uma
ida a um bar, um jantar, uma atividade social qualquer), o que não acontece em uma
cidade estranha por não haver este meio social ao seu alcance. “Essa solidão é muito
importante para mim. Agora eu sei que eu poderia funcionar melhor – qualquer um
poderia funcionar melhor – se tiver isso. É uma disciplina à força, não tem como não
ter disciplina” (informação verbal2).
E em percebendo a possibilidade de se escrever muito mais em muito menos
tempo do que em seu ambiente de origem, é neste momento em que se inicia um
processo paradoxal de angústia: o escritor sabe que está correndo contra o tempo
restante da residência – que representa a vida ideal para a construção literária – e
precisa realizar algo antes de seu fim. Porém, segundo Carvalho, esta angústia também
força o escritor a ser colocado em um estado de medo que faz com que o escritor
sinta-se obrigado a produzir, ainda que ele esteja em um excelente apartamento em
uma cidade interessante e cheia de atrativos como Bruxelas (informação verbal2). E,
neste sentido, o isolamento do mundo é um dos fatores de grande contribuição para
que possa haver disciplina na criação de Carvalho.
Outro ponto favorável da residência, e que vem ao encontro de uma predileção
pessoal deste autor, é o seu desligamento do meio literário. Em sua rotina de criação,
o autor prefere estar fora dos círculos literários, frequentando outros meios, ainda que
ligado aos livros, mas não ligado aos seus autores. Utilizando o exemplo de sua
residência em Bruxelas, este distanciamento do círculo literário foi mais um ponto
favorável, já que não conhecia escritor belga algum, ao contrário do que ocorreria em
Paris, por exemplo, onde possui muitos amigos escritores. “Para fazer literatura eu
preciso achar que a literatura não existe” (informação verbal2), afirma, ainda que
pondere que existam autores que se alimentem da vivência destes círculos, e que
sejam influenciados positivamente por eles em seu processo criativo.
Por mais que Carvalho acredite que a residência contribua de forma
fundamental em seu processo criativo, por todas as razões já expostas anteriormente,
o escritor destaca a importância de se atentar para o momento da residência. Carvalho
cita uma residência que participou na Toscana, onde o autor José Luis Peixoto também
teve a oportunidade de frequentar, oferecida por uma baronesa italiana a escritores,
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Entrevista concedida por CARVALHO, Bernardo. Depoimento [13 mai. 2015]. Entrevistador: Rodrigo
Alfonso Figueira. Porto Alegre: PUCRS, 2015. 1 arquivo .mp3 (52 min). Entrevista concedida ao aluno.
em sua casa de campo. Os autores permanecem neste local majestoso que mais
parecia uma pintura clássica: havia uma torre renascentista, copas de árvores à janela
do quarto, paisagem ao redor deslumbrante. E Carvalho comenta que não foi capaz de
produzir uma linha sequer.
Carvalho acredita que, como ele havia publicado seu último livro havia muito
pouco, deveria ter aguardado mais tempo para ingressar em um novo processo de
residência. Em sua residência em Bruxelas, ao contrário, Carvalho já havia iniciado a
escrever sua obra, inclusive já tendo problemas ficcionais para resolver dentro do
texto a que se propunha, sem a necessidade de se inspirar pela realidade circundante.
A obra já estava em si, e necessitava ser expurgada de seu corpo como um processo
orgânico, fosse onde fosse.
Essa perspectiva é pessoal. Não há regra. Carvalho acredita que este processo
varia de pessoa para pessoa, sendo momentâneo e circunstancial. Porém, dentro de
sua perspectiva particular, este duplo isolamento – da rotina e da própria literatura – é
fundamental para o seu processo de construção ficcional (informação verbal2).
4 Um grão na engrenagem
A princípio eu diria que não tem [papel], porque o papel quem cria é
ele próprio [o escritor], diferentemente do padeiro, do advogado e
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Entrevista concedida por CARVALHO, Bernardo. Depoimento [13 mai. 2015]. Entrevistador: Rodrigo
Alfonso Figueira. Porto Alegre: PUCRS, 2015. 1 arquivo .mp3 (52 min). Entrevista concedida ao aluno.
Carvalho acredita que o fato de a literatura não ter função já atribuiria a ela
uma determinada função. Em sua perspectiva, uma sociedade que propõe atividades
não-funcionais torna-se um lugar menos automatizado, distanciando-se da figura de
um formigueiro, onde cada sujeito desempenha uma função específica, sufocando-os
por meio deste modelo mecanicista. Segundo Carvalho, o escritor deve ser um grão na
engrenagem azeitada desta máquina social cruel e opressora; um grão capaz de travá-
la e de colocar em evidência toda a sua fragilidade, dando ao homem um respiro nessa
sociedade carregada com toneladas de pressão sobre si.
Em sua própria fala, Carvalho comenta que, por vezes, a literatura, e a arte em
geral, pode ser procurada pelo homem para que se obtenha uma espécie de conforto.
Em um mundo com tamanha pressão, vivendo-se no fio da navalha tão violentamente
a cada fração de tempo, a literatura pode surgir como esta ilha de prazer e conforto
àqueles que já não encontram estes elementos no mundo. Ainda assim, o autor
acredita que não cabe ao escritor a manutenção deste conforto.
A preocupação manifestada acima por Carvalho diz respeito ao fato de, uma
vez institucionalizado o papel do escritor na sociedade, o único autor que funcionaria
neste ambiente é o de mercado, aquele capaz de gerar somas significativas com sua
produção e fazer com que a roda do mercado gire. Naturalmente, todo o escritor
espera ser lido, ter penetração com sua obra e receber direitos autorais – quiçá poder
desfrutar desses recursos para manter-se financeiramente somente através de sua
produção. Ao mesmo tempo, o que Carvalho também deseja com sua obra é ser um
grão na engrenagem social, um distúrbio, algo fora dessa estrutura. O escritor,
segundo ele, não pode operar como um funcionário de uma empresa. Ele
obrigatoriamente deve distanciar-se dos papéis profissionais tradicionais, definidos
pelas sociedades modernas.
Carvalho vê o escritor como este outsider, que observando tudo pelo lado de
fora do mundo, mirando esta engrenagem caótica, pode intervir com liberdade em sua
estrutura da forma como ele acredita que melhor lhe convenha. É um sujeito isento,
capaz de atuar de maneira contundente na sociedade exatamente por não ser
homologado por ninguém (informação verbal2).
5 Considerações finais
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Entrevista concedida por CARVALHO, Bernardo. Depoimento [13 mai. 2015]. Entrevistador: Rodrigo
Alfonso Figueira. Porto Alegre: PUCRS, 2015. 1 arquivo .mp3 (52 min). Entrevista concedida ao aluno.
Alfonso Reyes, buscando estabelecer a fórmula que Nieto (2001, p. 19) chamou de
“poção mágica da inspiração”, trabalhou com o estímulo como sendo o ponto de
partida da escritura, o marco zero do trabalho do escritor. Neste aspecto, as
considerações de Carvalho vem a complementar a fórmula de Reyes, em que a criação
passa a operar em um momento anterior ao instante de estimulação dos sentidos. Ao
tratar a vontade e a pré-disposição como elementos ativos no processo criativo,
Carvalho antecipa o momento do insight. Segundo sua análise, seria possível dizer que
é na pré-disposição do autor em sentir o mundo onde se inicia o processamento
original da obra: o autor ainda não possui consciência de que a obra existe, porém ela
já o habita e se desenvolve em seu subconsciente sem a sua autorização racional. É
através da vontade que o escritor põe-se em alerta para o mundo. Quando deseja, de
fato, uma obra, sua permeabilidade aumenta, mantendo-se neste estado de vigília
constante e inconsciente configurado na pré-disposição. A partir de então, misturados
estes elementos, os estímulos de Reyes podem encontrar guarida no escritor. De
qualquer forma, Carvalho destaca a questão do voluntarismo: não basta dispor da
vontade e da pré-disposição para escrever uma grande obra. Neste tocante, outros
escritores resolveriam a questão no lugar de Carvalho: é necessário talento e muito
trabalho. Contudo questiona-se: a poção mágica de Reyes, aliada à talento e trabalho,
seriam elementos suficientes nesta equação sem os outros dois citados por Carvalho?
O fato é que, a partir deste marco inicial que determina o início da criação
ficcional, Carvalho aponta um momento crucial para que o processo de escritura tenha
o seu início: é necessário que o escritor se sinta prenhe. A imagem de um ser humano,
ou ainda um animal, em processo de gestação definitivo é de grande relevância na
análise de constituição de uma narrativa. Trata-se de um momento crítico, onde todo
o resultado do trabalho inconsciente do autor tem a sua vazão material, deixando,
progressivamente, o estado de hipótese ou possibilidade para encarnar-se em uma
narrativa.
Carvalho aponta, de forma clara, o caminho ideal para a construção desta
narrativa buscada pelo escritor: isolamento da literatura e alguma solidão. Ainda que
na perspectiva do autor o processo se dê, em seu estado perfeito, através das
residências literárias – onde não há o compartilhamento do processo de escrita com os
problemas domésticos, com a rotina, com os acessos do círculo social e literário – o
fato de submeter-se a uma residência não é garantia de êxito no processo de
construção da obra.
Assim como não acredita no voluntarismo, o autor deixa claro em sua
abordagem que o desejado estado de prenhez em que o escritor deve se encontrar
Referências
CARVALHO, Bernardo. Nove noites. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
CARVALHO, Bernardo. Bernardo Carvalho: depoimento [13 mai. 2015]. Entrevistador:
Rodrigo Alfonso Figueira. Porto Alegre: PUCRS, 2015. 1 arquivo .mp3 (52 min).
Entrevista concedida ao aluno.
CARVALHO, Bernardo. Agradecimento [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por
<rodrigo.alfonsofigueira@gmail.com> em 21 mai. 2015.
FAULKNER, William. The Art of Fiction No. 12. Paris Review. Nova Iorque: 1956.
Disponível em: <http://www.theparisreview.org/interviews/4954/the-art-of-
fiction-no-12-william-faulkner>. Acesso em: 31 mai. 2015.
NIETO, Ramón. O ofício de escrever. São Paulo: Angra, 2001.
1 Introdução
1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais da Universidade
Feevale. E-mail: rosanavaz@feevale.br
2
Orientador do trabalho. Professor do Programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações
Culturais da Universidade Feevale. E-mail: ernanic@feevale.br
3
As palavras semelhante e diferente referenciadas pelo conceito de Charaudeau (2009) serão utilizadas
como itálico para fins de especificar que se trata do conceito e não da palavra propriamente.
4
Segundo a Wikipedia, “MasterChef é um talent show de culinária brasileiro exibido pela Rede
Bandeirantes, baseado no consagrado formato original de mesmo nome exibido pela BBC no Reino
Unido” (WIKIPEDIA, 2015a).
5
Disponível em: QUAL É A GÍRIA? Gíria: Manda Nudes. Disponível em:
<http://www.qualeagiria.com.br/giria/manda-nudes/>. Acesso em 18 out. 2015.
se dizer: não é para tanto, se contenha, não se exponha). O problema do ethos reflete
assim, a opinião da contradição pelo discurso da sinceridade, independente se é
semelhante em termos de afinidade: “[...] mesmo que o destinatário não saiba nada
antecipadamente sobre o ethos do locutor, o simples fato de um texto pertencer a um
gênero de discurso ou a certo posicionamento ideológico induz expectativas em
matéria de ethos” (MANGUENEAU, 2008, p. 60). Sendo assim, alguns blogs
comentaram a ação das marcas e os comentários se voltaram para a marca-mãe
Unilever:
6
Meme de internet é quando uma expressão popular é utilizada por vários internautas em comentários
e interações.
7
Disponível em: GQ GLOBO. Mercado de luxo sofre com a crise global, e marcas desvalorizam. 28 de
maio de 2015. <http://gq.globo.com/Videos/Moda/noticia/2015/05/mercado-de-luxo-sofre-com-crise-
global-e-perde-valor-de-mercado.html> . Acesso em 26 out. 15.
Figura 2 – O diretor criativo Tom Ford e o discurso linguageiro da marca Gucci em 2000,
apresenta identificação ao comportamento do seu líder
negócio. Porém, aqui se dedica ao diretor criativo como principal gestor de imagem, pois, neste caso, é
ele quem decide a representatividade da marca no discurso linguageiro.
Considerações
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Metodologia das ciências humanas. Trad. Paulo Bezerra. In: Estética
da comunicação verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 393-410.
CHARAUDEAU, Patrick. Identidade social e identidade discursiva, o fundamento da
competência comunicacional. In: PIETROLUONGO, Márcia. (Org.) O trabalho da
tradução. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2009. p. 309-326.
LINDSTROM, Martin. Pressão constante: O poder da opinião alheia. Trad. Rosemarie
Ziegelmaier. In: ______. Brandwashed. São Paulo: HSM Editora, 2012. p.130-158.
MAINGUENEAU, Dominique. O Problema do Ethos. In: POSSENTI, Sírio; SOUZA-E-SILVA,
Maria C. P. (Orgs.) Cenas da enunciação. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. p. 55-
73.
TUNGATE, Mark. El diseñador como marca. Trad. Belén Herrero. In: Marcas de moda.
Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2005. p.83-90.
Sites da Internet:
COLETIVO INSTALAÇÃO. 14 de set de 2010. Estilista da semana: Tom Ford. Disponível
em: <http://coletivoinstalacao.blogspot.com.br/2010/09/estilista-da-semana-tom-
ford.html>. Acesso em 18 out. 2015.
FFW. Fashion Foward. Alessandro Michele é o novo diretor criativo da Gucci
<http://ffw.com.br/noticias/moda/confirmou-alessandro-michele-e-o-novo-
diretor-criativo-da-gucci-147/>. Acesso em 24 out. 2015.
GQ GLOBO. Mercado de luxo sofre com a crise global, e marcas desvalorizam. 28 de
maio de 2015. <http://gq.globo.com/Videos/Moda/noticia/2015/05/mercado-de-
luxo-sofre-com-crise-global-e-perde-valor-de-mercado.html> . Acesso em 26 out.
2015.
Roseli Bodnar1
Introdução
1
Doutoranda em Teorias Críticas da Literatura – PPG – Letras, Pontifícia Católica do Rio Grande do Sul –
PUCRS e bolsista CAPES. Porto Alegre – RS, Brasil.
E-mail: roseliteratura@hotmail.com
2
BARTHES, R. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
3
Vide referências.
4
Neste artigo, usa-se esse termo para pensar a pluralidade de novas subjetividades que estão surgindo
no panorama da literatura brasileira contemporânea, questionando não apenas a forma e os temas por
meio dos quais as minorias aparecem representadas, mas dando-lhes voz própria.
5
No senso comum, a palavra multiculturalismo é utilizada de forma equivocada e, muitas vezes,
empregada para se referir a comidas típicas, vestuário, festas etc.
6
In this sense, fiction gives a voice to the other whose existence is denied by official discourses (IMBERT,
2008, p. 59).
7
Having defended this ideal of liberal multiculturalism in my own work-particulary my 1995 book
Multicultural Citizenship: A Liberal Theory of Minority Rights--I have been struck by the way it has come
to inform the work of many international organizations, and I would like to believe that is global
diffusion is desirable and beneficial. I have watched first-hand the processes by which a set of concepts
and discourses are circulating around the world (KYMLICKA, 2004, p. 07-08).
8
I am using multiculturalism as an umbrella term to cover a wide range of policies designed to provide
some level of public recognition, support or accommodation to non-dominant ethnocultural groups,
whether those groups are ‘new’ minorities (e.g. immigrant and refugees) or ‘old’ minorities (e.g
historically settled national minorities and indigenous peoples). This covers many different types of
Após fazer essas considerações teóricas, surge uma inquietação. Como analisar
a presença do multiculturalismo no discurso literário? Como aplicá-lo como uma teoria
ou crítica literária?
policies for different types of minority groups, and much of the book is concerned with examining how
international norms address these differences. What they all have in common, however, is that they go
beyond the protection of the basic civil and political rights guaranteed to all individuals in a liberal-
democratic state, to also extend some level of public recognition and support for ethnocultural
minorities to maintain and express their distinct identities and practices (KYMLICKA, 2004, p. 16).
9
Uma questão importante é a utilização de recursos gráficos no livro, há a alteração de fontes e de
formatação. Estes marcam os diálogos, os flashbacks e os fluxos de consciência.
10
O termo fábula, em sentido lato, significa uma história ficcional que se narra ou representa.
11
Provavelmente essas relações de parentesco se davam na colônia porque as famílias eram
descendentes de italianos e por isso se tratavam como parentes.
O estereótipo das filhas é marcante na narrativa, pois o pai deixa claro que elas
não serviam para o trabalho na roça e na lida com os animais, e o trabalho doméstico
não era valorizado, sendo totalmente desconsiderado. O casamento era arranjado, em
que as filhas eram dadas em matrimônio logo que sangrassem, pois o pai temia a
desonra pelo sexo e a possibilidade de gravidez enquanto solteiras.
Na sequência, a narrativa traz um personagem não imigrante, claramente um
brasileiro e carioca. Esse forasteiro trabalhava como caixeiro viajante e fugiu com a
filha mais velha de Michelotto, resultando numa tragédia. Michelotto, homem bestial
e violento, vai ao encalço da filha e a encontra numa pensãozinha em Astolfo Dutra,
uma cidadezinha na saída para o Rio de Janeiro. Diante da chegada de Michelotto, o
caixeiro salta pela janela e foge a nado pelo rio Pomba, “enquanto a moça, ele
arrancou de dentro do quarto, arrastou pelos cabelos, enlaçou numa corda e saiu
puxando, ele montado, ela, nem pio, a pé, olhos recurvos” (RUFFATO, 2005, p. 19).
Michelotto age como macho autoritário, rei absoluto na sua casa, remetendo a
uma sociedade patriarcal e de absoluto poder masculino. Diante da fuga, do ato
amoroso consumado, tem-se a morte trágica da moça sem nome:
Outra rememoração sob o foco de André descreve a vida dura que Chiara, sua
mãe, teve ao lado do pai:
Foi nesse dia que compreendi que já nada restava da família para
mim. Meus irmãos estavam chafurdando na pobreza e na
ignorância...E eu...mal e mal podia me considerar um privilegiado:
tinha um teto, comida, roupa lavada...estudava...ia ser padre. Ia ser
alguém na vida...Ilusão! Mal sabiam eles que aquilo era minha
perdição. Por que quanto mais conhecia, mais queria conhecer. E,
cultura do novo país; o segundo dos filhos e netos de imigrantes, que já são os
migrantes, que migram do campo para a cidade ou para regiões diferentes dos pais e
avós. Neste deslocamento, há um choque cultural, a não aceitação e os conflitos
familiares que os jogam para a margem cultural e social. A repetição e o cíclico
remetem à ideia de que a vida e os infortúnios desses imigrantes se reproduzem
primeiro com os pais na roça e depois com os filhos na cidade. A construção desses
personagens traduzem existências e denunciam vidas, dando voz a sujeitos
marginalizados e muitas vezes, esquecidos socialmente.
Referências
Roseméri Lorenz1
Introdução
1
Acadêmica do Doutorado em Letras da UPF. Mestre em Letras - Área de Concentração Estudos
Linguísticos/UPF. E-mail: lorenz@upf.br
obra A cantora careca, do dramaturgo francês Eugène Ionesco, clássica peça do teatro
do absurdo.
Com a pretensão de tornar o estudo mais claro e sistematizado, primeiramente
serão desenvolvidos os princípios e conceitos teóricos que fundamentam este trabalho
para, em seguida, proceder à referida análise.
1 Pressupostos teóricos
Segundo Michel Charolles (apud GALVES, 1997), para que um texto seja
reconhecido como bem formado por um receptor, ele deve atender a determinadas
condições, denominadas metarregras de coerência. São elas: metarregra de repetição,
de progressão, de não-contradição e de relação.
A primeira delas, a de repetição, estipula que, para um texto ser micro ou
macroestruturalmente coerente, deve conter, em seu desenvolvimento linear,
retomadas de elementos já enunciados. Tais retomadas são garantidas por meio de
inúmeros recursos linguísticos como as pronominalizações, as definitivizações, as
substituições lexicais, as recuperações pressuposicionais, as retomadas de inferências.
A segunda metarregra, a de progressão, diz respeito ao acréscimo de novas
informações ao que já foi dito. Assim, a progressão complementa a repetição, pois esta
garante a retomada de elementos, enquanto aquela garante que o texto não se limite
a repetir indefinidamente o que já foi colocado. Dessa forma, equilibra-se o que já foi
dito com o que se vai dizer, garantindo a continuidade do tema e a progressão
semântica (ou remática). Essas idas e vindas permitem construir textualmente a
coerência.
A metarregra de não-repetição, por sua vez, estabelece que, num texto
coerente, não deve ser introduzido “[...]nenhum elemento semântico que contradiga
um conteúdo posto ou pressuposto por uma ocorrência anterior, ou deduzível desta
por inferência” (CHAROLLES apud GALVES, 1997, p.59-60). Ou seja, o texto não deve
destruir a si mesmo, tomando com verdadeiro aquilo que já foi considerado falso, ou
vice-versa. As contradições podem ser enunciativas, inferenciais e pressuposicionais,
de mundo(s) e de representações do (ou dos) mundo(s).
Por fim, a metarregra da relação defende que, numa sequência ou num texto
coerente, os fatos e conceitos necessitam estar relacionados. Essa relação deve ser
suficiente para justificar sua inclusão num mesmo texto. Essa regra é também de
natureza pragmática, pois para que uma sequência seja reconhecida como coerente, é
necessário que as ações, estados ou eventos que ela denota sejam percebidos como
adequadas por um receptor. Tal reconhecimento de uma ligação de pertinência factual
depende das qualidades atribuídas ao mundo interpretado. Uma sequência pode ser
avaliada, assim, diferentemente, conforme o receptor se coloca num mundo ordinário
ou fictício.
É importante ressaltar que Charolles (apud GALVES, 1997, p.74) reconhece que
a aplicação das metarregras está sujeita a aspectos da situação de comunicação e que,
na realidade, sozinhas, não dão conta das condições que um texto deve satisfazer para
ser considerado como bem formado.
Ao retornarem para casa, após o trabalho, uma colega contava a outras duas
que, no dia anterior, havia-se perdido em uma rodovia, devido à ausência de
sinalização. Então, uma das ouvintes disse: “Por que você não me convidou para ir
junto?” Por sua vez, a outra ouvinte acrescenta: “É mesmo, assim você não se perderia
sozinha!” Obviamente, tal observação provocou o riso geral.
Essa cena não só ilustra o fato de que o humor constitui um fenômeno comum
no cotidiano dos usuários da língua, como também oferece uma boa oportunidade de
demonstrar que sua construção pode ser descrita linguisticamente pela TBS.
Considerando que a teoria defende que o sentido de uma entidade linguística advém
dos encadeamentos argumentativos que podem ser associados a ela, inicialmente, é
necessário apresentar algumas continuidades possíveis de ser planejadas pelo locutor
e/ou esperadas por qualquer interlocutor que, no contexto apresentado, ouvisse/lesse
a expressão “convidou para ir junto”. É possível citar, por exemplo: “portanto você
não se perderia”, “portanto auxiliaria a localizar-se”, “portanto mostraria o caminho”,
entre outras. Contudo, a sequência escolhida pelo interlocutor foi “portanto você não
se perderia sozinha”. Nesse caso, o humor surge por meio da inclusão de uma
continuidade absurda em relação ao que foi inicialmente programado, confirmando-
se, assim, as condições apresentadas por Ducrot, e anteriormente expostas, para um
enunciado ser considerado humorístico.
Mas e quando o humor brota de enunciados incoerentes? Seria possível à TBS
explicar linguisticamente o humor provocado por tal mecanismo semântico-
argumentativo? É justamente isso que se pretende investigar neste estudo. Mais
precisamente, o que se quer aqui é verificar como a TBS pode explicar o humor
advindo das várias formas de desrespeito às metarregras propostas por Charolles.
Para isso, serão analisados trechos da clássica peça do teatro do absurdo
A Cantora Careca, do dramaturgo francês Eugène Ionesco. Escrita em 1950, a comédia
criada a partir de um livro-texto para o ensino de língua inglesa, demonstra o desatino
da existência humana por meio do diálogo sem sentido entre os personagens.
De modo a sistematizar tal análise, primeiramente, foram selecionados, na
referida obra, segmentos que permitissem uma continuidade argumentativa, isto é, às
quais se pudessem associar discursos em DC ou PT. Após, buscou-se observar se o
segmento subsequente correspondia às expectativas de continuidade arroladas, ou se
violava uma das metarregras apresentadas por Charolles. A seguir, procurou-se
descrever a estrutura do humor nonsense a partir do modo de (des)constituição de
blocos semânticos decorrente de cada uma das possíveis formas de violação
encontradas.
SRA. SMITH: Veja, são nove horas. Tomamos sopa, comemos peixe, batatas com
toucinho e salada inglesa. As crianças beberam água inglesa. Comemos bem esta noite.
É porque moramos nos arredores de Londres e o nosso nome é Smith.
SR. SMITH (continua a ler, estala a língua.)
SRA. SMITH: As batatas vão muito bem com toucinho e o azeite da salada não estava
rançoso. O azeite do vendeiro da esquina é de melhor qualidade que o azeite do
vendeiro da frente; é até melhor que o azeite do vendeiro da esquina de baixo. Mas
isso não quer dizer que para eles o azeite seja ruim. (p.1)
A partir dos segmentos (1) “Tomamos sopa, comemos peixe, batatas com
toucinho e salada inglesa. As crianças beberam água inglesa” pode-se evocar “DC
comemos bem”. Também os segmentos (2) “As batatas vão muito bem com toucinho e
o azeite da salada não estava rançoso” conduzem à mesma continuidade (“DC
comemos bem”), a qual, inclusive, é explicitada no segmento seguinte “Comemos bem
esta noite”. Entretanto, os segmentos (3) “O azeite do vendeiro da esquina é de
melhor qualidade que o azeite do vendeiro da frente; é até melhor que o azeite do
vendeiro da esquina de baixo. Mas isso não quer dizer que para eles o azeite seja
ruim” não permitem a associação ao mesmo predicado.
É importante observar que nos segmentos (2) há retomada de elementos
enunciados nos segmentos (1), como “batatas”, “toucinho”, “salada” e “azeite”
(recuperado por pressuposição). Essa repetição de elementos garante a progressão da
cadeia coesiva e da cadeia tópica, mantendo o mesmo bloco semântico. Já as demais
ocorrências de “azeite”, nos segmentos (3), apesar de darem sequência à cadeia
coesiva, não mantêm a cadeia tópica, ou seja, não se permanece no mesmo bloco
semântico. Essa ausência de progressão semântica representa uma subversão às
metarregras da repetição e da progressão, levando a uma ruptura do bloco até então
desenvolvido, o que acaba produzindo o efeito de humor.
Agora, veja-se outra situação:
SR. SMITH (Ainda lendo o jornal): Ora veja, aqui diz que Bobby Watson morreu.
SRA. SMITH: Meu Deus, o pobrezinho! Quando foi que ele morreu?
SR. SMITH: Para que esse espanto? Você sabe perfeitamente. Ele morreu há dois anos.
Então não estivemos no enterro dele há um ano e meio? (p.3)
SR. MARTIN: Aquele que hoje vende um boi, amanhã terá um ovo
SRA. SMITH: Na vida é preciso olhar pela janela. (p.24)
Considerações finais
desacordo entre blocos, já que o segundo afirma o oposto do que havia sido
apresentado pelo primeiro; quando se transgride a metarregra da relação, por sua vez,
ele ocorre devido à ausência de blocos, uma vez que não há um todo de sentido cujos
predicados sejam interdependentes. Torna-se importante frisar que, em todas as
ocorrências estudadas, os referidos modos de constituição (ou não constituição) dos
blocos desencadearam o efeito cômico na medida em que ativaram, no leitor, a
percepção do ponto de vista absurdo por eles evocado. Assim, mantêm-se as
condições, propostas por Ducrot, para se considerar humorísticos os enunciados.
Cabe acrescentar que, considerando a complexidade do fenômeno estudado,
bem como a originalidade da obra tomada como corpus, os resultados aqui
apresentados não são decisivos, já que esta é uma pesquisa ainda incipiente. Espera-
se, entretanto, que as constatações explicitadas por este trabalho já possam vir a
contribuir, de alguma forma, para melhorar a prática pedagógica, pois compreendendo
melhor a produção da incoerência, pode-se evitá-la, por exemplo, em textos dos mais
diversos gêneros, produzidos pelos estudantes.
Referências
Introdução
1 Conceituando a afasia
caracterizada por um discurso normal, porém sem hesitações tampouco pausas, enfim,
um discurso de muito difícil entendimento. No caso da Afasia de Wernicke, em
especial, há um excesso de discurso fluente e espontâneo, de estruturas sintáticas
longas e complexas com velocidade, articulação e entonação normais, todavia, trata-se
de um discurso sem sentido e com parafasias, neologismos, pseudopalavras,
circunlóquios, problemas para encontrar palavras e dificuldade em fazer repetições de
palavras e/ou frases (AKBARI, 2014). Nas afasias não fluentes acontece uma fala e uma
escrita com dificuldade, centrada em palavras de conteúdo em detrimento das
funcionais, acompanhada de problemas no nível morfológico, como a falta de
conjugação verbal ou por problemas nas flexões de substantivos e escolhas de
determinantes.
Na afasia, todas as atribuições do sistema linguístico podem ser afetadas, em
níveis de acometimento distintos (AKBARI, 2014; ORTIZ, 2010). Em alguns casos, pode
haver o comprometimento de certos componentes ou modalidades da língua ou de
todos os níveis linguísticos, incluindo a fonologia, o léxico, a morfologia, a sintaxe e a
semântica e também o discurso. O déficit de compreensão é uma das habilidades que
podem ser prejudicadas com a ocorrência da afasia. Tanto a compreensão leitora
quanto a compreensão auditiva2 podem ser afetadas. Ortiz (2010) aponta que, nos
diferentes tipos de afasias, a compreensão pode estar danificada em níveis distintos tal
qual a produção oral. Nas afasias não fluentes, há dificuldade em compreender frases
complexas, textos e elementos gramaticais. Já nas fluentes, há déficits de
compreensão auditiva e leitora, sendo que esta última pode estar tão comprometida
quanto a auditiva. Há muito o que ser investigado sobre a leitura na afasia, por
exemplo sua relação com elementos cognitivos não linguísticos como a memória.
Moineau (2005) aponta que, apesar de haver muitas evidências empíricas sobre os
prejuízos advindos da afasia, as suas definições e caracterizações continuam bastante
modulares. Todavia, há dados sugerindo que esses déficits podem estar em um
continuum, tanto das habilidades menos para as mais prejudicadas.
2 Método
Foi feita uma busca nas bases de dados Proquest, ScienceDirect, Web of
Sciencee PubMed, incluindo abstracts de artigos publicados nos últimos 5 anos (de
2010 a 2015), sendo de periódicos de acesso livre. As palavras-chave <afasia>,
<afásico> <compreensão>, <compreensão leitora>, <compreensão auditiva> e seus
correspondentes em inglês podiam aparecer nos títulos dos artigos ou no corpo do
resumo ou abstract. Foram utilizadas as seguintes associações de palavras para a
busca: afasia AND compreensão AND afásico AND compreensão leitora AND
compreensão auditiva. Destaca-se que as palavras-chave foram selecionadas com base
no objetivo da discussão deste artigo. As buscas foram feitas com limites de língua
(inglês e português). A partir dessas buscas, foram encontrados 161 resumos, sendo 75
no Proquest, 11 no ScienceDirect, 46 no Web of Science e 29 no PubMed, dos quais
foram selecionados para a análise posterior os que atenderam aos critérios: a) ser um
estudo empírico b) tratar de compreensão linguística. Foram excluídos artigos a) que
se repetiam nas bases de dados, b) aqueles que não explicitavam precisamente os
instrumentos de avaliação da linguagem utilizados no estudo, d) aqueles que não
caracterizavam sua população e) aqueles em que não apresentavam nenhuma relação
com a linguagem f) aqueles que não apresentavam resumo ou abstract.
O fluxo de seleção de artigos pode ser visualizado na figura 1.
161 artigos
encontrados
147 excluídos
após a leitura do
resumo
14 artigos
selecionados
para leitura
3 Resultados
Após uma leitura avaliativa dos 14 textos encontrados nas bases acima, fez-se
necessário uma tabela resumo com objetivos e resultados dessas pesquisas. Destaca-
se que dentre os artigos, apenas 02 tiveram suas pesquisas realizadas no Brasil. Os
títulos dos artigos foram mantidos em seu idioma original, visto que, em algumas
bases não é possível localizá-los em língua portuguesa.
4 Discussão
acerca do tema. A maioria dos textos encontrados trata essas compreensões de forma
separada, deixando explícito em alguns que não há evidências suficientes para afirmar
que elas devem ser vistas conjuntamente.
Dada a gama heterogênea de artigos lidos, pode-se agrupar dois pontos a
serem discutidos: compreensão leitora e auditiva relacionando-se com diferentes
memórias e funções executivas, e outro, que se destacou em praticamente todos os
artigos, o déficit semântico. Todos os resultados têm importância, todavia nenhum dos
selecionados aborda uma teoria específica para a compreensão leitora e auditiva, nem
conjuntamente, nem separadamente.
O primeiro fator pode ser uma tendência das pesquisas atuais e ainda parece
valorizar a dinamicidade do processamento, pois aborda as limitações advindas da
afasia em correlações com memórias de trabalho, curto-prazo, episódica semântica,
atenção e funções executivas. A memória é a aquisição, a formação, a conservação e a
evocação de informações (IZQUIERDO, 2002). Não existe uma única maquinaria
cerebral que seja responsável pela formação, retenção e evocação das informações
aprendidas, existem várias redes neurais com milhões de interconexões que subjazem
os processos de aprendizagem e que podem ser danificadas com as doenças
cérebrovasculares. A memória é um sistema bastante dinâmico, sendo os eventos
passíveis de esquecimento, demonstrando que, em muitos casos, a retenção não é
estável. E, os fonoaudiólogos apontam a queda na eficiência da memória como uma
limitação advinda da afasia, principalmente a memória de trabalho.
A atenção se constitui de processos que focam, selecionam, dividem, mantém e
inibem um comportamento. Em conformidade com os estudiosos da área, quando os
indivíduos envelhecem, a dificuldade em manterem-se atentos aumenta, bem como
há uma facilidade de distração para informações irrelevantes, causando prejuízos no
desempenho das funções executivas (BRUCKI, 2004; CABEZA, 2004). De fato, idosos
queixam-se de que custam a lembrar-se de determinadas informações por causa dessa
queda na atenção e porque ela também está intimamente relacionada à memória. Os
textos abordados nesta revisão tratam o processamento da atenção, memória e
linguagem como processos que interagem e influenciam na execução das tarefas
linguísticas de modo geral. As pesquisas analisadas apontam o tratamento e
treinamento dos mecanismos da atenção como uma estratégia para um
aprimoramento das técnicas de tratamento da afasia.
As funções executivas são especialidades do lobo frontal, região que,
coincidentemente, está localizada a área de Broca, responsável pela fala. Elas
constituem-se de processos cognitivos de controle e integração com o intuito de
Considerações
Referências
1
Doutorando em Escrita Criativa, PUCRS. Trabalho apresentado como requisito final da disciplina
Seminário de Escrita Criativa I, ministrada pelo Prof. Dr. Luiz Antônio de Assis Brasil.
E-mail: sandromcm@gmail.com
de guarda no corredor e pede para tomar banho. O soldado diz que não pode. Dorival
promete fazer muito barulho e com isso o soldado vai pedir ajuda do cabo. A história
se repete e depois do cabo aparecem o sargento e o tenente. Todos tentam dissuadir
Dorival, dizendo que ele está proibido de tomar banho, ainda que nenhum militar
consiga explicar o motivo. Ao final, sem querer fazer silêncio e conformar-se, Dorival é
reprimido violentamente, com a entrada de vários soldados na cela momento em que
é espancado. Para limpar o sangue, é levado ao banheiro e consegue o banho que
tanto queria.
Todos os acontecimentos narrados no livro (referentes a Dorival) são
posteriores ao dia em que encarou a guarda. A marca desse dia está presente a todo o
momento, ainda que ele relute em contar, e não pareça se exibir. Boa parte de sua
participação no romance se dá no dia 11 de setembro de 1973, quando houve o golpe
contra Allende, no Chile, onde Dorival, sua companheira Ana Maria, Marcelo e Alemão,
passam dois dias dentro do apartamento de Dorival e Ana. Ana estava com Dorival há
dois anos. Antes disso, Ana havia tido o marido dentista e um filho pequeno torturados
e assassinados.
No romance O amor de Pedro por João, os fatos narrados estão relacionados
com um momento histórico importante2, porém bastante conturbado e oculto. As
personagens da obra, as situações vividas por elas e o pano de fundo presente, fazem
com que reforcem o sentimento no leitor de que muito do que há ali, na obra, seja
retrato fiel daquilo que se vivia, e se escondia, no Brasil e na América Latina. Ruas
contribui para esse sentimento que pode experimentar o leitor, ao afirmar em
entrevista ao jornal Zero Hora que O amor de Pedro por João
2
A obra foi escrita em período não muito longe dos fatos narrados, porém foi lançada apenas em 1982,
depois que Ruas voltou do exílio (1971 a 1981).
companheiros durante a ditadura. Ser “uma obra séria sobre a experiência” vivida não
quer dizer que Ruas autorize a leitura de maneira que se pense que tudo ali é real. O
autor começa dizendo que “é um livro de ficção”. Mas isso não impede de que a ficção
criada não seja um retrato de uma época, não a represente, não seja um
“testemunho”, como afirma Ruas.
Eco (2013) discute certa peculiaridade dos personagens históricos. O que
chama atenção do autor é o fascínio que certos personagens provocam nos leitores ao
ponto de se transferirem das páginas do romance para o imaginário histórico. Eco diz
ter recebido depoimentos de pessoas que dizem ter ido visitar o mosteiro cenário da
obra O nome da rosa, ou mesmo declaram terem conhecido o sebo onde Eco alega ter
encontrado o manuscrito que originou a obra. Sobre isso, Eco afirma:
algo parecido, ao comentar a pergunta recebida por um pesquisador alemão que tinha
encontrado um volume de Kircher em um alfarrabista de Buenos Aires e queria saber
se era o mesmo livro e a mesma loja. Eco (2013) afirma então que “assim, parece que
muitos leitores, a despeito de seu status cultural, são, ou passam a ser, incapazes de
distinguir entre fato e ficção. Eles levam a sério os personagens de ficção, como se
estes fossem seres humanos reais” (p. 64).
Voltando à questão da personagem histórica, Eco cita Alexandre Dumas que faz
uma reflexão sobre a questão.
Também Pamuk (2011) pensa essa questão quando aponta que o desafio e a
profunda alegria que o romance nos proporciona ocorre quando nos identificamos
com a personagem, pelo menos numa “parte de nossa alma” (p. 57) e assim,
“libertamo-nos de nós mesmos, tornamo-nos outra pessoa e vemos o mundo pelos
olhos de outra pessoa” (p. 57). Pamuk diz que nossa identificação com o protagonista
se baseia nas sensações que encontramos na personagem a maneira como ele reage
às muitas formas do mundo.
Não fazia nem uma semana, no seu dia de licença, tinha visto - e
ficara profundamente impressionado - o magnífico filme King Kong
(tão bem feito, parecia real!) onde um gorila gigantesco transforma
em picadinho uma baita duma cidade dos Estados Unidos da
América. O soldadinho recua um passo, apavorado. Tem a impressão
apavoradamente nítida de que o que se encontra dentro da cela é
nada mais nada menos que o King Kong, o brilho dos olhos do negrão
é o brilho dos olhos do King Kong e sua boca feroz é a boca mortal do
King Kong. Imagina, pensa - vê - (...) que de dentro da cela
desprende-se ruído de correntes, cheiro nauseante de selva, de carne
humana decomposta (RUAS, 1998, p. 239).
Com a passagem entre parênteses “(tão bem feito, parecia real!)” se estabelece
o imaginário da personagem que também estará presente nos outros militares.
Sempre haverá a relação com a arte.
Nesse primeiro pedido de Dorival ao militar, já aparece a difícil relação que ele
terá com o argumento de que “não pode” tomar banho e com a tentativa de ser
sempre diminuído em sua condição, de ser humilhado. Porém, Dorival não permite,
em nenhum momento, essa humilhação.
O cabo, segundo militar que tenta resolver a situação com Dorival, está lendo
uma historinha do Drácula e sente por ser interrompido pelo soldado justamente
quando a história estava ficando boa. No filme, o cabo está lendo quadrinhos de
“bang-bang italiano” Tex, e aparece ele vivenciando a historinha, tentando salvar a
mocinha presa pelo índio. Mas, igualmente no romance, ao sair para resolver a
questão, a personagem se sente como em um filme de faroeste, como “Clint Eastwood
em Por um punhado de dólares” (RUAS, 1998, p. 240) caminhando por Dodge City com
o sol caindo no horizonte.
Se a aproximação de arte e realidade para o soldado trouxe algo de medo
(quando ouviu pela primeira vez a voz de Dorival achou parecida com a do Sargento),
para o cabo a relação ficção realidade lhe trouxe segurança, pois ele se sentia o herói.
Quando está no embate direto com Dorival, ainda lembra-se de personagens policiais
da TV, imitando os trejeitos.
O terceiro militar a encarar Dorival é o Sargento. É a personagem que, de certa
forma, está mais identificado com Dorival, pois o Sargento também é negro (talvez por
isso o soldado relaciona a voz do sargento com a de Dorival) e sofre com o calor, pois
tem apenas um ventilador em cima do armário e não um ar-condicionado como tem o
tenente “Sargento tem é que se ralar. E se é preto, pior ainda” (RUAS, 1998, p. 242).
Todos os militares (soldado, cabo, sargento e depois tenente) vão se referir a Dorival
como “negrão desse tamanho” (p. 239), “Crioulo” (p. 241), “negro” (p. 245), refletindo
assim a intenção de subjugar Dorival, tentando aumentar ainda mais sua condição
desfavorável. Quando o cabo vai avisar o sargento sobre a confusão que Dorival estava
fazendo ele diz: “Sarja, o crioulo da cela 12 tá a fim de bagunçar o coreto. Digo,
desculpe sarja, o preso da cela 12” (RUAS, 1998, p, 242). Assim, fica bem claro o
respeito à hierarquia e que os adjetivos de raça são usados pejorativamente e para
forçar uma condição de superioridade.
A arte que acompanha o Sargento é a música, pois ele está ouvindo um radinho
de pilha e lembra, a todo instante, do ensaio na Mangueira que ele deveria estar
participando.
Já o Tenente estava lendo um livro sobre arte, iniciando o capítulo sobre
Gauguin. Como já adiantado pelo Sargento, na sala do Tenente, havia livros de capa
dura. O Tenente demonstra estar lendo o livro por querer entender aquela arte, o que
ainda não havia acontecido.
Com isso, o próprio Ruas, como já dito, apresenta personagens que se
identificam com personagens de outras obras. No momento final, no embate com
Dorival, os personagens e a arte voltam. “O praça de Santa Catarina” volta a lembrar
de King Kong. O cabo se vê como John Wayne em Rio bravo e o tenente ergue seu
livro, como uma bandeira. Logo após, vão todos entrar na cela de Dorival, junto com
outros quatro soldados, e espancá-lo. Após isso, o tenente manda limparem o sangue.
Os soldados carregam Dorival até o banho e ligam o chuveiro. O Sargento Marcão
acende dois cigarros, um cigarro para si e outro oferece a Dorival. A identificação
anunciada, na primeira vez que aparece o Sargento, confirma-se com a cena final.
Enquanto os outros militares em algum momento enxergaram Dorival como um
personagem (King Kong para o soldado, um bandido, macaco ou policial corrupto dos
filmes do Kojac para o Cabo, uma pintura de Picasso para o Tentente), o Sargento
nunca o identificou como um, apenas com o que ele realmente era (“um sindicalista,
Não tive acesso ao roteiro do curta O dia em que Dorival encarou a guarda,
apenas a seu texto final, onde aparece somente os diálogos. Esse texto final está
disponível no sítio de internet da Casa de Cinema de Porto Alegre, produtora do curta.
Porém, é possível criar um roteiro a partir do curta finalizado, ou pelo menos,
entender como ele seria.
O cinema tem peculiaridades que não encontramos em outros tipos de
narrativas. Quem aponta isto são os autores Gaudreault e Jost na obra Narrativa
cinematográfica (2009), e eles afirmam fazendo relação com narrativa oral e escrita.
Os autores exemplificam a narrativa oral com a narração de um paciente ao
seu psicanalista. Dizem que a narrativa, neste caso, é simples, pois trata de um único
narrador, um único narratário em uma única atividade de comunicação narrativa.
Poderíamos dizer que é uma narração imediata, tanto por ser em um aqui e agora,
como por não ter intermediário.
Já a narrativa escrita chega ao leitor com diferimento, pois “não é entregue no
mesmo momento em que é ‘emitida’” (p. 23) Além disso, é através de um
intermediário que o leitor toma conhecimento da narrativa. Esse intermediário pode
ser um livro ou um jornal, por exemplo.
3
METZ, 1968, p. 118.
Referências
BORDINI, Maria da Glória. Criação literária em Erico Veríssimo. 1991. Tese (Doutorado
Teoria da Literatura), Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 1991.
CUNHA, Renato. Cinematizações: ideias sobre literatura e cinema. Brasília: Círculo de
Brasília,, 2007.
ECO, Umberto. Confissões de um jovem romancista. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
GAUDREAULT, André; JOST, François. A narrativa cinematográfica. Trad. Adalberto
Müller, Ciro Inácio Marcondes e Rita Jover Faleiros. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 2009
PAMUK, Orhan. O romancista ingênuo e o sentimental. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011.
RUAS, Tabajara. Na terceira entrevista da série 'Obra Completa', Tabajara Ruas analisa
seus livros e revisita sua trajetória. Depoimento [6 nov. 2013]. Porto Alegre: Zero
Hora, entrevista concedida a Carlos André Moreira. Disponível em:
http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2013/07/na-terceira-
entrevista-da-serie-obra-completa-tabajara-ruas-analisa-seus-livros-e-revisita-sua-
trajetoria-4192246.html Acesso em: 5 dez. 2014.
______. O amor de Pedro por João. Rio de Janeiro: Record, 1998.
The nineteenth century in England is famous for its innovations in diverse fields
of human life. Guided by the advancement of industry, London is the living organism
that grows almost uncontrollably and brings with it entirely new economical and
human perspectives to the country. Society changes under the frenzy of modernity,
and both city and country have to deal with its marvels as well as its drawbacks.
Science develops like never before, rearranging previous understandings about life and
creating new. With the growing of medical science, the studies of the mind gain space,
which gives doctors the mission to unveil the mysteries of the human psyche in times
when the ghost of insanity looms large. Women, most of all, suffer from supposed
mental instabilities, like neurosis and monomania, and are easily considered insane.
They have but little chance to defend themselves, since by the Victorian era women
are considered little more mentally capable than children or idiots. It is in this period of
discoveries and scientific conflicts that Charlotte Brontë writes her most psychological
book, Villette, in 1853. She proves herself aware of the developments of science in the
conception of the shadowy heroine Lucy Snowe, who despite her apparently passive
personality, grieves the oppression imposed to the nineteenth century woman and
fights internal conflicts between mind and body, sanity and insanity to build her inner
self. In this essay I mean to discuss briefly the aspects of mental health and psychology
observed in Lucy, reflecting Charlotte Brontë’s own knowledge on subjects like
psychology and phrenology of the mid-Victorian period. I mean to draw a parallel
between the scientific knowledge of the period and Lucy’s struggle to keep control
over her own mind and not to be carried away by a society that frequently sees
madness as a natural state of women.
Lucy Snowe watches her life pass by. Without family, money or friends, since
very young she assumes the quality of spectator of her own life. Her passivity justifies
1
Mestre em Artes (MA) em Inglês – Literatura Vitoriana pela Universidade de Loughborough, UK.
Atualmente mestranda em Teoria da Literatura na PUCRS, bolsa CAPES. Orientador Professor Pedro
Theobald.
E-mail: sophia.diesel@acad.pucrs.br
her belief that she belongs to the worst lot of people, to whom life saves only denial
and privation. She tells herself that sunshine may soften even the worst lots
occasionally, but she does not see the reason why it would favour her2. Lucy seems
cruel to herself, but her self-denial reflects her psychological state before the society
that faces her, where the sense of identity is closely bound to the way one deals with
all the limitations it imposes. Brontë intended to tell the story of someone whose story
was not worth telling. She created a character who thinks herself inferior to others and
then explores the thoughts and the very weaknesses of the invisible Victorian woman.
Lucy prefers to tell the story of other people who are more interesting than herself:
Ginevra, Poly, Dr. John, etc, acting like a voyeur because her life, “her sense of herself,
does not conform to the literary or social stereotypes provided by her culture to define
and circumscribe female life”3. In a letter to W. S. Williams, Charlotte Brontë defends
the heroine of Villette, pointing that she agrees with his observations on Lucy’s
morbidity and weakness of character, and adding that “anyone living her life would
necessarily become morbid”. Sally Shuttleworth, in her book Charlotte Brontë and
Victorian Psychology, calls attention that in the nineteenth century the terms
weakness and morbidity designated specific mental diseases and that Brontë’s
explanation suggests that Lucy’s psychological instability can be caused by the
pressures of social circumstance4. Lucy eventually has a nervous breakdown and seems
sensible to hallucinations. Just like Brontë, Lucy is well-informed about psychological
contemporary studies, as we can notice in her inner monologues and the terms she
applies to analyse herself, like when she loses Dr John’s letter and refers to
monomania: “’Oh! They have taken my letter!’ Cried the grovelling, groping,
monomaniac”5. Lucy is aware of the disparity between her feelings and anxieties and
of what society expects from a woman like her. This conflict results sometimes in guilty
acquiescence or angry revolt and “becomes the source of Lucy’s feelings of unreality”6.
It is increased by the near impossibility of fulfilment for her ambitions and desires.
“There are obstacles everywhere, social and financial. The hard realities of the sexual
caste system frustrate her physically as well as mentally”7.
2
BRONTE, Charlotte. Villette. In: Brontë Sisters. London: Wordsworth, 2005. p. 345-694, p. 599.
3
GILBERT, Sandra M.; GUBAR, Susan. The buried life of Lucy Snowe. In: ______. The Madwoman in the
Attic. London: Yale, 2000. p. 339-440. p. 418.
4
SHUTTLEWORTH, Sally. Charlotte Brontë and Victorian psychology. Cambridge: Cambridge University
Press, 2004. Kindle digital edition. Position 3021.
5
BRONTE, p. 518.
6
GILBERT, GUBAR, p. 419.
7
MILLET, Kate. Sexual Politics in Villette. In: NESTOR, Pauline (Ed.). New Casebooks: Villette. London:
MacMillan, 1992. p. 32-41. p. 33.
We know little about Lucy’s story before she moves to Villette to become an
English teacher at Mme Beck’s pensionat for girls. Yet, we can infer a great tragedy in
her life, which we do not know of what kind, since she is completely evasive when it
comes to it, but that had the power to cut her from the social position she belonged to
and from whoever she loved. Lucy has a cultivated mind, although distant. Even when
she tells us about happy times when she used to visit her godmother and cousin John
in Bretton, the story is told as if she was not there. She observes and often judges, but
always from a distance. Whatever tragedy took place, it added further afflictions to the
naturally introspective girl.
The unreliable and evasive narrative is undermined by repression. Lucy struggles
and eventually collapses trying to deal with (and conceal) her inner turmoil. She hides
her emotions in order to keep the social mask of the impervious, calm and sexually
innocent woman. Lucy does not have any other choice but to comply with the social
code, and, as long as she is allowed her “inner subdued, overcast nature to be”, she
tries to remain composed8. Keeping the public persona is imperative in a society where
people are permanently watched. Mme Beck rules her school through espionage; she
and her staff of spies are responsible for eliminating any means of privacy. This
principle follows closely the emergence of the new economy of individual and social
life witnessed by the nineteenth-century industrialized England. Centred on the
regulation of the forces of the body and mind, surveillance was considered the key to
control.9 On escaping from the lecture pieuse, Lucy catches Mme Beck searching her
things in the dormitory, but knowing about Mme’s ways of surveillance, she turns
around silently and goes back to the schoolroom. Lucy thinks about the non-existent
love letter Mme was looking for and her feelings are contradictory, but she represses
herself: “soreness and laughter, and fire, and grief”. The hot tears shed are not
because of Mme’s distrust, but “for other reasons…Complicated, disquieting thoughts
broke up the whole repose of my nature. However, that turmoil subsided: next day I
was again Lucy Snowe”10.
Regulating and channelling England’s material resources gave rise to new
ideologies of selfhood, based on inner-regulation and self-control. John Connelly in An
Inquiry Concerning the Indications of Insanity, 1830, is one of the psychiatrists who
advocate that the key to mental sanity is a man’s control over the more primitive
instincts, adjusting himself to his station and demonstrating conformation to the
8
BRONTE, p. 555.
9
SHUTTLEWORTH, position 75.
10
BRONTE, p. 429.
status-quo. He adds that a man who cannot conform to what the generality of
mankind have agreed upon as the most convenient presents an eccentric behaviour,
that is, total or partial departure from sound judgement. He uses examples, like a
gentleman who communicates with his servants only through gestures; or the poor
woman who believed she would eventually marry a rich man and become a lady, to
argue that eccentricity may not be necessarily mental derangement, but once a man
escapes the rule of common sense, he has escaped reason and he may be insane. It is
commonly found that eccentric persons have defects or excess of one or more of their
faculties, associated to the loss of the comparing power, preventing them to know the
difference between right and wrong, and therefore, they are victims of actual
insanity11. Lucy supposes that Dr. John finds her eccentric when she finally addresses
him as Lucy Snowe, the cousin he did not recognise because he actually never paid
attention to her. Lucy holds her identity from him until the last minute because
knowing something he does not know is a form of power she holds over him. But
Reason (self-control) quickly punishes her for expecting his affection, and reminds her
that she was born “only to work for a piece of bread, to wait the pains of death”.
Lucy’s eccentricity is the fear of suffering, and so she retracts from people, answers Dr.
John’s letters scantly, does not return people’s interest in her, and wishes to be
forgotten, to have, as she says, “the pang over” at once12.
Villette was written in a time when the term insanity no longer defined a self-
evident disease, demarcating the sufferer from the rest of humanity, as it would be in
the eighteenth century. It was now an invisible, more complex threat. Mental
derangements could erupt in anyone, from any social class, but instead of a fixed
physiological state, it became a partial one, hence susceptible of medical treatment
and possible healing. The problem is that apart from the trained eye of the physician, it
became very difficult to distinguish the normal from the abnormal mind. Medical men
turned into the maximum authority committed in unveiling mental secrets and
dispositions through the rise of specific areas of study such as psychiatry, physiognomy
and phrenology. Theories of moral management gained space in the scientific field,
focusing all of them on the criteria of normality based on conformity and self-control.
Obedience and the acceptance of social and gender roles became the greatest index to
sanity13.
11
CONNOLLY, John. An Inquiry Concerning the Indications of Insanity, with Suggestions for the Better
Protection and Care of the Insane. London: John Taylor, 1830. 514p. Available at
<https://archive.org/details/inquiryconcernin00cono>, accessed on 29 July 2015.
12
BRONTE, p. 505.
13
SHUTTLEWORTH, position 458-78.
14
SHUTTLEWORTH, position 491.
15
ESQUIROL, J. E. D. Mental Maladies: a treatise on insanity. Translated by Ebenezer Kingsbury Hunt.
New York: Hafner, 1845. p. 54. Available at < https://archive.org/details/mentalmaladiestr00esqu>,
accessed on 18 july 2015.
16
BRONTE, p. 456.
17
BRONTE, p. 457.
and be accused of dreaming. Reading her from “a professional point of view”, the
doctor says to read in her everything she would conceal: “In your eye, which is
curiously vivid and restless; in your cheek, which the blood has forsaken; in your hand,
which you cannot steady”. Lucy confesses the apparition of the nun and he confirms
that “it is all a matter of the nerves”, “a case of spectral illusion”23.
Although being the only one “certificate” to read others, Dr John has a series of
amateur competitors. In the society based on surveillance and control, power resides
in the ability of unveiling others’ secrets while keeping oneself guarded from others’
eyes. M. Paul Emanuel spies on students and teachers from his “magic lattice”; other
teachers spy on each other and on the students; and even the Catholic priest never
loses sight of the protestant Lucy in order to bring her, according to him, to the true
creed. Lucy reads the priest’s face and sees in him a good man. Physiognomy was one
popular science focused on deciphering people’s character by their facial lines. Lucy
often judges people by their external appearance, like when she sees the king of
Labassecour: “A man of fifty, a little bowed, a little grey…the strong hieroglyphics
graven as with iron stylet on his brow, round his eyes, beside his mouth, puzzled and
baffled instinct…There sat a silent sufferer – a nervous, melancholy man”24.
Physiognomy had its origins in religious precedents; it was believed that the face
inscribed the nature of the soul. It lost filed in the nineteenth century to Phrenology,
which was less ideologist and more materialist. By laying its concern on the
physiological functioning of the brain, Phrenology had a great impact in social and
political matters25.
Phrenology was the science dedicated to decoding the mind through the cranial
bumps separated in faculties like benevolence, hope, spirituality, imagination,
intolerance, reasoning, self-interest, etc, and the size of each bump indicated the
strength of the correspondent organ. It developed from the theories of the Viennese
physician Franz Gall (1758-1828), but gained high popularity in England with the
famous works of George Combe, Constitution of Man, 1828, and Elements of
Phrenology, 1846. According to Combe, men are blessed with sentimental and moral
faculties beside the instinctive ones, which the animals are not, and therefore are
rational, accountable beings26. It would be common for an employee like Mme Beck to
23
BRONTE, p. 520-1.
24
BRONTE, p. 495.
25
SHUTTLEWORTH, position 781.
26
COMBE, George. Constitution of men considered in relation to external objects. Edinburgh:
Maclachlan, 1851. p. 16. Available at <https://archive.org/details/6thconstitutiono00combuoft>,
accessed on 16 July 2015.
ask for a phrenological test in order to know if the person who she was about to hire is
reliable and hardworking. This is what Paul Emanuel does at Lucy’s arrival. He reads
her skull, but the judgement is indefinite: “If good predominates in that nature, the
action will bring its own reward; if evil – eh, bien! Ma cousine, ce sera toujours une
bonne oeuvre”27. Paul Emanuel’s reading reinforces that Bronte was aware of the
greatest difference between Physiognomy and Phrenology: while the first searched for
a definite character, imprinted from the interior self, the latter was open and allowed
self-improvement. The faculties were given to men to be cultivated, exercised and
instructed before they yield their full harvest of enjoyment28. There would be no limits
to the human advancement to those who understood the laws of nature revealed by
Phrenology and learned to maximize their strengths and control their weaknesses. For
the first time in history, it was offered a new social classification, not based on rank
and privilege, but measured on innate endowment29. By attesting the independence of
the faculties, “Phrenology presented a new complex individual, whose different fluxes
of energy allowed internal contradictions and conflicts, and laid the foundations for
later nineteenth-century explorations into the complexities of unconscious”30. Lucy
mentions her faculties in some occasions, like when she is satisfied about her acting in
the school play. She remarks that “to cherish and exercise this new-found faculty
might gift me with a world of delight”. But again, she is checked by Reason and
reproaches herself with, “but it would not do for a mere looker-on at life”31.
This same tyrannical Reason which holds Lucy down in her inferiority also
prevents her from admitting her “warmer feelings” for Dr John. Lucy feels uneasy with
his examinations because besides interfering in her private world, he may also infer
those forbidden feelings. She is aware of being a mere object of study, and that she
will never have the necessary charms to be visible to him, like money or good looks. At
the moments when Lucy seems most excited about Dr John she sees the nun – the
ghostly figure of the dead nun who supposedly died after breaking her vow – which
clearly signals Lucy’s sexual repression.
Sexuality and the female mind remained a contradictory subject. The
psychological theories were applied differently when it came to women and tended to
reinforce dominant ideological strands of Victorian culture. Women were believed to
be more emotional and less capable of controlling their mental faculties than men. In a
27
BRONTE, p. 392.
28
COMBE, p. 18.
29
SHUTTLEWORTH, p. 846.
30
SHUTTLEWORTH, p. 821.
31
BRONTE, p. 445.
period in which self-control was the key to sanity, women figured in a difficult position
because their bodies remained a mystery and thence all the disturbances of their
minds seemed to be consequence of physical eruptions like menstruation, pregnancy,
menopause etc. Every single characteristic of a woman’s body should have a
consequence (usually a bad one) in her mind. It is common in Esquirol or Robert
Brudenell Carter (On the Pathology and Treatment of Hysteria, 1853) to see cases in
which women are considered to become maniacs with their first menses or after giving
birth. On the other hand, it was also believed that any obstruction or preventing of the
natural ways of the female body would have the same consequence. This is why
unmarried women were often diagnosed insane. Carter describes that hysteria
comprises in “women whose sexual propensities have been disappointed” or “those in
whom some form of envy or discontent is the predominant feeling”32. As Shuttleworth
remarks, it was unreasonable to demand self-control from women at the same time as
they were believed to be slaves of their bodies’ incongruities: “if the internal ‘excess’
of reproductive energy were suppressed or obstructed in its inward flow, then insanity
would issue. If, however, it were acted on, the resulting ‘immodest’ behaviour would
immediately call for the certification of insanity”33.
Lucy’s sexuality is never satisfied. The powerful performance of the actress
Vashti is to Lucy “a marvellous sight, a mighty revelation” and at the same time “low,
horrible, immoral”, for it wakes something hidden inside her, like the pleasure she
feels after her own timid presentation in the school play. Vashti is a fallen angel,
“insurgent, banished”, and so free but as well doomed in her freedom34. Another clear
example of sexual repression is when Lucy is at the art gallery gazing at the voluptuous
painting of Cleopatra. M. Emanuel again reproaches her and tells Lucy that the set of
paintings La vie d’une femme are much more appropriate to her. Lucy finds them “flat,
dead, pale and formal” in their hypocritical showing of how a woman should spend her
life – the perfect child, mother etc. “Insincere, bloodless, brainless nonentities!”35 Lucy
figures in the middle of contradiction: She cannot be sexually free like Vashti, but she
cannot submit to the pre-established standards of women either, because her mind
has gone beyond that. The result is that her desires remain unfulfilled. But the
common sense does not understand that. It does not matter how difficult it is, but to
society, at the age of twenty-four, Lucy is on her way to hysterical old-maidenhood.
32
CARTER, Robert Brudenell. On the Pathology and Treatment of Hysteria. London: J. Churchil, 1853.
p.34. Available at <https://archive.org/details/onpathologyandt00cartgoog> , accessed on 22 July 2015.
33
SHUTTLEWORTH, position 1217.
34
BRONTE, p. 531.
35
BRONTE, p. 487.
Lucy does not have the right to privacy, to love, to happiness, to social
advancement, because she does not have the strength to fight and defeat all the
drawbacks and contradictions that surround her. She is castrated by a world where
new ideas and ideologies flourish in the rise of a new civilization which was the
Victorian age, but still have not found voice for the upcoming changes. As a woman,
poor and friendless, she is displaced in a society which thinks her very existence
unnecessary, and this is why most of the other characters barely know what to make
of her and how to treat her. Insanity was an invisible threat to people like Lucy
because as a woman of instruction, she is aware of the world around her and that she
does not fit in it; but at the same time she is stuck with old ideologies and mentality
involving the social role of women which do not help her find an answer to her
displacement. The mind became a serious area of study in the nineteenth century and
psychiatrists developed several ways to try to understand the human brain and its
workings. Yet, there was much to change before the old systems of classification like
rank and family name opened space to people whose birth did not bring privilege but
who could prove their value through their mind. Maybe Lucy could be one of those,
were she given the choice to speak without restraint.
References
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Available at <https://archive.org/details/sensesintellectb00bain>. Accessed on 29
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6thconstitutiono00combuoft>, accessed on 16 July 2015.
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Villette. London: McMillan, 1992. p. 32-41.
SHUTTLEWORTH, Sally. Charlotte Brontë and Victorian psychology. Cambridge:
Cambridge University Press, 2004. Kindle digital edition.
Stéphane Dias1
Jane Rita Caetano da Silveira2
Introduction
1
Doutoranda em Linguística – Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS. Bolsista CNPq.
E-mail: stephanerdias@gmail.com
2
Doutora em Linguística e professora da Faculdade de Letras da PUCRS.
E-mail: jarcs@terra.com.br
3
There are many versions of the text written by Reginald Rose; even though the most famous one is the
adaptation for cinema, we will make use of the one written for television. You can access it here.
4
An analysis of the movie, based on a Relevance Theory approach (SPERBER and WILSON, 1986, 1995),
was published by Silveira (2007) on www.inf.pucrs.br/~lincog, the research group “Linguagem,
Comunicação de Cognição” (LINCOG), PUCRS.
separate the facts from the fancy”. More than just evaluating the evidence, they need
to reach a unanimous position.
5
There are other procedures for group decisions, such as majority voting, just as pointed out by
McBurney et al. (2007). link
The jurors did not know each other before the trial and had no information
about each other prior to deliberation; to each juror, they assigned a number of
identification, such as juror#8.
That set of twelve jurors constituted a newly formed institutional group with
short time duration. As we will illustrate with parts of the play, during the deliberative
process jurors’ individual goals and values, as well as collective assumptions and goals
interact. As a collective entity, the jury, its members had a final target, which they
must reach via deliberation: consensus about what is the best verdict. However, after
the preliminary vote, an assumption is added to the mutual cognitive environment of
the jurors: the collective goal is to discuss the evidence in order to form a collective
judgment based on detailed analysis.
The evidence
arguments that support a given conclusion. The next step of this paper is to address
dialogic and linguistic structures that reveal these moves in deliberation dialogues, like
the one we mention here. First, however, let us consider some aspects of deliberation
dialogues.
Deliberation dialogues
Dialogue-based approaches
6
As McBurney et al. point out (2007, p. 3), deliberation dialogues, such as described by Walton and
Krabbe, are focused on what is to be done by the agents, here a group of individuals or a collective
agent, the jury.
moves, as well as are used inside speech acts or moves; d) there is a structure of
interaction inside which the agents assume argumentative-dialogue roles (such as
questioners; see BLAIR & JOHNSON, 1987); e) the process starts and evolves by the
challenge of a position or assumption (or proposition, see BLAIR & JOHNSON,
1987a,b); f) each agent has a dialogue-goal concerning the process of argumentation,
centrally “to change or reinforce the propositional attitude”7 that agents are
committed to, by weakening or strengthening the plausibility of an assumption or
position8 (see WALTON & GODDEN, 2007).
Argumentation is, thus, understood as a dialogue-oriented activity and it can be
inside other types of dialogue-oriented activities, such as deliberations. Via
argumentation, we will put a position or assumption under consideration, and via
deliberation we will choose among the options made available.
The argumentative process is crucial because it starts by a question, or by any
expression of doubt (BLAIR & JOHNSON, 1987). For Walton et al. (2010), along with the
Amsterdam view, a dialogue-based argumentation has a three-stage structure: an
opening, an argumentation, and a concluding stage. Accordingly, in virtue of being
inside this dialogue structure, an argument is itself a process that goes through all
stages created by agents facing doubt or disagreement. It is a “social and verbal means
of trying to resolve a difference of opinion” (WALTON & GODDEN, 2007, p. 9).
Because of features like being communicative and reasoning moves made by
agents to put a position under dispute or evaluation inside a context of dialogue, we
can identify practical and cognitive roles of such uses of arguments. In deliberation
dialogues, besides the general aim of decision-making, we can have sub-structures,
stages or internal goals of the dialogue9. For example, we can assume that many
options are the case (stating them as true) and then we try to find the one that fits the
goals better; and/or we can create possible scenarios or courses of action; and/or we
can have a yes-no, in-out type of decision-making about a course-of action, among
other internal possibilities. In all these scenarios of dialogue, agents have a demand for
using reasons to choose one option and not the other, and then an argumentative
realm is open, since agents may or may not agree with each other.
In the plot, the jurors face a yes-no deliberation scenario, where they need to
decide if they present a position that there is or there isn’t a reasonable doubt
7
Please, see: Blair & Johnson, 1987.
8
We will assume that agents, especially in collective contexts, assume and are committed to positions
rather than have propositional attitudes of the type of believing. Dias (forthcoming) explores this point
in her work.
9
Please, see: McBurney et al., 2007.
regarding something being the case, i.e. the boy’s guilt. Thus, in order to decide their
course of action, the verdict, they first need to reach a consensus about states-of-
affairs, about what may or may have not happened (regarding the testimonies), and
about their propositional attitude regarding the body of evidence, as sufficient or not
for their purposes. Since they do not have the condition to access decisive evidence to
reach consensus about a proposition such as ‘the boy killed the man’, they can only
reach consensus about a propositional attitude of the type ‘there is (no) reasonable
doubt that the boy killed the man’10.
These considerations being made, let us assume, for our purposes, some
dialogic structures that seem to be default in such contexts. In the next section, we will
address the agents involved and their dialogic moves, which are calibrated via a
Principle of Relevance11 (SPERBER and WILSON, 1986, 1995).
Agency
10
Taking into account the typology of dialogue proposed by Walton & Krabbe (1995): “Moreover,
information seeking and inquiry dialogues involve a search for the true answer to some factual question,
either by one participant or by all. In such a search for truth, appeals to value assumptions (goals,
preferences, etc.) would be inappropriate. However, this is not the case for deliberations, where a
course of action may be selected on the basis of such considerations.” (MCBURNEY et al. 2007, p. 3)
However, this deliberation involves precisely factual questions.
11
The Cognitive Principle of Relevance states that “human cognition is geared to the maximisation of
relevance”, resulting in the Communicative Principle of Relevance: “that utterances create expectations
of optimal relevance” (WILSON and SPERBER, 2004, abstract).
12
We will not address institutions as agents here.
13
"In contrast to inquiry dialogues, deliberation dialogues have as their stated objective agreement on
some course of action, rather than a search for truth" (MCBURNEY et al. 2007, p. 22). We would say that
truth has a practical value here. "But how to judge the quality of a course of action? We are not given
antecedently a set of evaluative criteria (goals, constraints, considerations, etc) in terms of which one
could theoretically determine, given all the relevant factual circumstances, what is the “best” answer to
the governing question" (2007, p. 23). We can make a point here that a Principle of Relevance, or a cost-
benefit calculation, is central.
14
They work with an eight-stage dialogue model: Open, Inform, Propose, Consider, Revise,
Recommend, Confirm and Close.
15
“The DDF protocol was based on a model for deliberative reasoning taken from argumentation
theory, namely Harald Wohlrapp’s theory of Retroflexive Argumentation [84]. Moreover, we showed
that the protocol conforms to the majority of a set of normative principles proposed for rational mutual
inquiries between humans.” (MCBURNEY et al. 2007, p. 24)
16
“Staging: An inquiry dialogue should proceed by a series of stages, from initial clarification of the
question at issue and of the methods of resolving it, through data gathering and interpretation, to
formation of arguments.” (2007, p. 20)
Analysis
We will illustrate the above mentioned considering the witness number 1 (old
man who testified to have heard a discussion between the boy and the father) and the
witness number 2 (the neighbor who said to have seen the crime). These two
moments appear at different times in the narrative.
Evidence – Testimony 1
17
As we mentioned, each juror is identified by a number. We will use the number to identify them.
This sub stage of the dialogue starts with a presentation of evidence. (“Okay, let's
get to the facts. Number one (…)”). The next move is a follow up comment about the
evidence, adding information to the common ground (“And the coroner fixed the time of
death at around midnight.”). In the sequence, juror#3 makes clear that each contribution is
a move towards the decision-making process, where they need to decide in favor or not the
view that the boy was guilty; this juror was certain of the boy’s guilt (“Now what else do
you want?”). Juror#8, then, questions the evidence. As a reaction to this move, juror#3
questions juror#8’s conclusion (“What d'ya mean! Sure he could have heard it”). Juror#8
poses a doubt to juror#3 and the others (“Could he?”) instead of reasserting a conclusion.
This gives room to other agents’ manifestation (“I don't think he could have heard it”,
“Maybe he didn't hear it. I mean with the el noise”). Given these moves, juror#3 reacts
(“What are you people talking about? Are you calling the old man a liar?”). Juror#5, then,
observes that the conclusions other jurors reach is just a conclusion that follows from their
evaluation of the premises as stated to the group (“Well, it stands to reason”). Considering
these cognitive and dialogic effects, juror#5 changes his position to ‘not guilty’ (“I'd like to
change my vote to not guilty”).
Together, they evaluate the evidence, and some of them agree over the
insufficiency of time as declared by the testimony and the conditions for the man to
have heard the boy yelling at the father. Given the new evidence that weaken the old
man’ testimony, one juror changes his position.
Evidence – Testimony 2
NO. 10: Look, what about the woman across the street? If her testimony doesn’t prove
it, then nothing does.
[...]
NO. 12: (…) She looked into the open window and saw the boy stab his father. She saw
it. Now if that's not enough for you.... [...]
NO. 8: All right. Let's go over her testimony. What exactly did she say?
NO. 4: I believe I can recount it accurately. (…) As far as I can see, this is unshakable
testimony.
NO. 6: Well, I was thinking. You know the woman who testified that she saw the killing
wears glasses.
NO. 3: So does my grandmother. So what?
NO. 8: Your grandmother isn't a murder witness.
NO. 6: Look, stop me if I'm wrong. This woman wouldn't wear her eyeglasses to bed,
would she?
FOREMAN: Wait a minute! Did she wear glasses at all? I don't remember.
NO. 11: (excited). Of course she did! The woman wore bifocals. I remember this very
clearly. They looked quite strong.
NO. 9: That's right. Bifocals. She never took them off.
NO. 4: She did wear glasses. Funny. I never thought of it. [...]
NO. 8: Does anyone think there still is not a reasonable doubt? [...]
NO. 4: (quietly). No. I'm convinced.
NO. 3: Well, I told you I think the kid's guilty. What else do you want?
NO. 8: Your arguments. [They all look at NO. 3:] […]
NO. 3: (thundering). All right!
The above line of thought and action started with an opening state, in which
juror#10 manifests certainty about a witness’ testimony. That epistemic attitude is
endorsed by another juror, juror#12, who explicitly assumes the presentation of that
information as a dialogic / epistemic move endorsing a position to be chosen (“if that’s
not enough for you”). Juror#8 is the one who conducts the collective evaluation of the
evidence (“All right. Let's go over her testimony. What exactly did she say?”), implying
that they should not start from the presumed conclusion but from the premises’
evaluation. It opens space for a ‘thinking out loud’ process, where each one
contributes for the collective process (“Well, I was thinking (…)”). The reaction to it is a
request for clarification on the value of that information to the process (“So does my
grandmother. So what?”). The follow up moves are adequate reactions inside this
argumentative process (“Look, stop me if I'm wrong (…)”, “That's right (…)”), following
a chain of argumentative structures and cognitive effects (“(…) I never thought of it.”).
Given these effects, the agents could derive conclusions from the premises (“Does
anyone think there still is not a reasonable doubt?”). At the end of the process, one
agent changes his position (“No. I'm convinced.”). On the other hand, one of the
agents, juror#3, still claims that the boy is guilty (“Well, I told you I think the kid's
guilty. What else do you want?”). Juror#8, however, asks him about the reasons, in the
form of arguments, grounding his epistemic attitude (“Your arguments”). With no
reason to provide and in view of the reasons already provided throughout the dialogue
by the other jurors, the agent accepts the fact he has no evidence to justify his position
and then accepts the conclusion reached so far (“All right!”).
Via argumentation, each member had the chance to update their cognitive
environment, given the new information made available by each member by means of
the collective evaluation of the evidence. It was required the engagement of many
members in the process, by bringing reasons in the form of arguments as well as
questions; in this regard, juror#8 was central for the whole process, since he posited
doubt where there was certainty. The way he conducted the dialogue was extremely
helpful to bring those pieces of information together and to evaluate them in order to
ground the conclusion that there was reasonable doubt regarding the boy’s guilt. It is
worth noting that a knife found in the crime scene is another decisive piece of evidence.
Given the stated information that the knife was of an unusual type and difficult to find,
juror #8 shows a knife of the same type he had in his pocket. On the basis of this
counterevidence, some of the jurors changed their initial position to not guilty. This
reveals that the jurors changed their understanding about the evidence during that
dialogue exchange, as a result of cognitive changes made possible by communication.
Together, by bringing reasons and evaluating them, the agents, collectively,
composed a picture no one could privately see. Inside a scope of deliberative dialogue,
they constructed the required argumentative structure they needed to deliver a final,
justified position. Their decision-making was a result of reasoning via dialogue.
Consequently, 11 members of the group changed their initial position, thus reaching
consensus. The conclusion could not be proven, but only confirmed by premises. The
move made by a juror, suggesting that it was up to them to convince juror#8 about the
fact that they were right and he was wrong, can be read as an illustration of a claim of
the Argumentative Theory of Reasoning: that reasoning has an argumentative function,
where people, here taken as agents, reason better when trying to persuade others.
Conclusion
References
Introdução
1
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS, área de concentração Linguística.
Bolsista CNPq. E-mail: mtamiris@gmail.com
2
Recorte da dissertação de mestrado Vozes sociais em confronto: sentidos polêmicos construídos
discursivamente na produção e recepção de charges, defendida em 2015. Disponível em
http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/7160/1/000466609-Texto%2BCompleto-0.pdf
3
Em O discurso no romance, Bakhtin ([1929] 1998, p. 71) ressalta que o discurso é um fenômeno social.
4
Neste artigo, não se entra na discussão acerca da autoria dos textos considerados disputados. Assim
sendo, citamos os nomes conforme as referências consultadas apresentam. No caso de Marxismo e
filosofia da linguagem, por exemplo, temos um autor, mas a menção de dois nomes, por isso
Bakhtin/Volochínov. Como a questão autoral discute se um ou outro é o autor, não acreditando em
dupla autoria, os verbos são colocados no singular – a julgar pela própria apresentação do livro feita por
Roman Jakobson que traz verbos no singular.
nessa ótica, é que não há neutralidade porque o signo não só reflete, mas refrata a
realidade, dando vida a pontos de vista.
Morte trágica
5
Disponível em http://memoria.oglobo.globo.com/jornalismo/primeiras-paginas/o-horror-na-boate-
8978056. Acesso em 17 de maio de 2013.
6
Disponível em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2013/01/28/a-charge-do-chico-caruso-
484094.asp. Acesso em 17 de maio 2014.
7
Só no Blog do Noblat existem 252 comentários repudiando a publicação da charge.
8
Disponível em http://www.revistaforum.com.br/blogdorovai/2013/01/28/jornalismo-urubu-chico-
caruso-noblat-e-a-coragem-de-fazer-humor-com-santa-maria/. Acesso em 17 de maio 2014.
9
Disponível em http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/a_emocao_util_e_a_charge_
infeliz. Acesso em 18 de maio de 2013.
10
“Os que criticam a charge do Chico Caruso perderam o bom senso, a se levar em conta a violência
com que escrevem. O que a charge tem de chocante, de desrespeitosa com quem quer que seja? Dilma
pôr as mãos na cabeça e dizer ‘Santa Maria’? Isso é um absurdo? [...] Dilma não faz política quando grita
‘Virgem Maria’. Nem a charge sugere isso. Dilma revela seu desespero. Sua inconformidade. Que é
nossa também. Ela não tem culpa alguma pelo que aconteceu. Foi solidária com todos os que sofrem.
Esteve em Santa Maria. Sinceramente se comoveu com o que viu. O que tem mais na charge? A boate
transformada numa prisão? As janelas gradeadas? As mãos crispadas dos que ali ficaram retidos
clamando por ajuda? Mas não foi mesmo numa prisão em que a boate se transformou? Numa
armadilha? Numa ratoeira? Perdão, mas vocês não sacaram nada, nadinha” (extraído de Observatório
da imprensa).
valoração que ele faz do discurso ao qual está tomando uma atitude responsiva ativa.
Nessa perspectiva, essa seleção de discursos e as relações com ele feitas podem
originar leituras diferentes daquelas apontadas pelo projeto enunciativo do locutor
que o interlocutor responde, causando sentidos polêmicos, conforme foi discutido
durante as análises.
Considerações finais
Referências
Este ensaio tem por objetivo relacionar os construtos teóricos do ato ético e da
ação, estabelecendo um diálogo filosófico entre M. Bakhtin e H. Arendt, utilizando
como fundamento principal as discussões acerca do papel da linguagem na fundação
da singularidade do ser, desenvolvidas em suas respectivas obras: Hacia uma filosofía
del acto ético. De los borradores y otros escritos2 (BAJTIN, 1920-24/1997) e A condição
humana3 (ARENDT, 1958/2007).
Buscamos refletir sobre o lugar da linguagem na relação do Ser com o Outro e
na fundação da singularidade, que está sempre aliada à relação de alteridade,
tomando como referência a arquitetônica do ser proposta por Bakhtin e a visão de
ação política proposta por Arendt. Para esse fim, retomaremos a concepção
bakhtiniana de pensamento participativo, que envolve o componente emocional e
volitivo do ser único e singular, enquanto acontecimento concreto, que encontra seus
fundamentos no pensamento performativo, remetendo ao “eu como agente
singularmente responsável pelo seu ato” (BAJTIN, 1997, p. 52). Esse ato, por sua vez,
está sempre impregnado de posicionamento axiológico, que afeta a maneira pela qual
o sujeito imprime nele a sua assinatura, cujo processo passa, necessariamente, pelo
confronto do olhar do Outro.
Nesse contexto, examinaremos também a ação como condição humana
essencialmente relacionada à linguagem na vita activa, partindo da ideia de que é na
ação e no discurso que os homens revelam ativamente suas identidades pessoais e
singulares, mostrando quem são, uma vez que o discurso possui uma qualidade
1
Doutoranda em Linguística na Universidade Federal de Pernambuco, vinculada ao grupo do CNPq
Linguagem, memória, saúde de trabalho. E-mail: thaisdealima@hotmail.com
2
O original da obra deve ter sido escrito entre 1920 e 1924 e permaneceu como manuscrito inacabado e
sem título até ser publicado postumamente na Rússia em 1986. A versão utilizada neste trabalho é uma
versão espanhola de 1997, traduzida do russo por Tatiana Bubnova. As traduções em português que
aparecem neste trabalho foram feitas por mim. A data aparece em dois formatos (original e da edição
utilizada) apenas nesta primeira referência e no corpo do texto apenas a data da edição.
3
Livro publicado em inglês The human condition em 1958. A versão utilizada neste trabalho é a 10a
edição de uma tradução de Roberto Raposo, de 2007. As data aparece em dois formatos (original e da
dição utilizada) apenas nesta primeira referência e no corpo do texto apenas a data da edição.
reveladora no âmbito do quem é ele, enquanto homem, questão esta que vem à tona
na convivência e na interação dos seres humanos. Espera-se que os relações e
reflexões iniciadas neste estudo possam iluminar os caminhos trilhados por ambos os
pensadores acerca do papel da linguagem na fundação da singularidade do ser e da
ação.
Para entender a possibilidade deste diálogo, é importante localizar os
interesses de Bakhtin e Arendt dentro de um arcabouço epistemológico anterior
maior: a fenomenologia de Husserl. Para tanto, faremos uma breve inserção
biográfica, a fim de esclarecer os traços de uma filiação fenomenológica em ambos,
que se configura sobretudo no posicionamento frente às ciências modernas.
Bakhtin mergulhou nos estudos de filosofia alemã desde muito cedo e tomou
como fio condutor de suas reflexões os problemas formulados pelos neokantianos
(FARACO, 2009), encontrando respostas originais, posicionando-se de encontro ao
saber monológico preconizado pela exatidão das ciências modernas.
O filósofo traz em sua obra a distinção essencial entre mundo da vida e mundo
da cultura, discussão que foi amplamente desenvolvida por Husserl em termos de
diferenciação do mundo da vida e do mundo da ciência, para tratar da questão do
conhecimento e da verdade, sugerindo uma atenção especial para os fenômenos da
vida, da experiência vivida, uma vez que estes haviam sido deixados de lado no
arcabouço do cientificismo moderno. Arendt, por sua vez, foi aluna e amiga de Husserl
e Heidegger, o que localiza sua filosofia em um constante diálogo com esses
pensadores, sobretudo na forma como desenvolveu suas análises sistemáticas dos
fenômenos e seus modos de aparição na existência mundana, afastando-se, assim, de
um enquadramento em categorias de análise pré-fixadas.
Ela se interessou por política, designando-se ela mesma, não como filósofa,
mas como cientista política. Na busca pelo entendimento do ser humano nas relações
políticas, analisando as características da ação humana na vita activa4, avaliou a
insuficiência entre fatos e teorias tal como ocorre dentro das formas de conhecer do
quadro epistemológico da modernidade e da ciência que se estabelece nessa era,
discussão que aparece também em Bakhtin, quando reflete acerca da insuficiência do
mundo da cultura (do saber teórico) para abarcar a singularidade do ato ético
responsável.
4
Em A condição humana, Hannah Arendt utiliza a expressão vita activa para designar as três atividades
humanas consideradas por ela como fundamentais: labor, trabalho e ação. Segundo ela, “a cada uma
delas corresponde uma das condições básicas mediante as quais a vida foi dada ao homem na Terra”
(2007, p. 15). Neste trabalho nos deteremos a discutir apenas a condição da ação, uma vez que ela é
única da qual o homem não pode se abster do discurso.
mesma o homem deixaria de ser humano, situação que não ocorre em nenhuma outra
atividade da vita activa.
O ser humano é, assim, impelido a agir, tomar iniciativa. É a partir da ação que
se dá nossa inserção no mundo, ela é dependente das palavras e dos atos. A ação e o
discurso estão, pois, em relação de interdependência e uma ação iniciada por um ator,
agente de um ato, “é humanamente revelada a partir de palavras” (ARENDT, 2007,
p.191).
Em Bakhtin, a manifestação do eu é impregnada do posicionamento do sujeito.
A construção de sentidos elaborada pela/na linguagem constrói a sua própria visão de
mundo, a partir do posicionamento axiológico e da tonalidade afetiva, nas relações
múltiplas de vozes sociais heterogêneas, de onde emergem as singularidades.
Para o filósofo, o tom volitivo e emocional “que abarca e penetra o
acontecimento real do ser é uma orientação necessária da consciência, moralmente
significativa e responsavelmente ativa” (BAJTIN, 1997, p. 44). Sendo assim, a
consciência não é fruto da relação de um eu consigo mesmo, uma vez que a própria
consciência é dada à resposta e, portanto, pressupõe sempre o Outro.
É do caráter da responsabilidade da resposta, na relação com o Outro, que
procede o ato ético, também sempre procedente da experiência vivida e não repetível,
avaliável e imputável no contexto único da vida real e única do sujeito. O ato ético
responsável transcorre na historicidade vivente e em relações dialógicas.
Arendt esclarece que o caráter revelador da ação e do discurso está, da mesma
maneira, indissoluvelmente vinculado ao fluxo vivo da ação, que “só pode ser
representado e reificado mediante uma espécie de repetição” (2007, p. 199). Nesse
sentido, na inseparabilidade do ato e do fluxo vivo da ação, o ator (sujeito de um ato)
nunca é somente agente de uma ação, mas é, ao mesmo tempo, paciente, uma vez
que sempre se movimenta em relação a outros seres atuantes.
O pensamento participativo e ético apresentado por Bakhtin ocorre quando o
eu o toma para si como um ato de sua responsabilidade. O sujeito não pode, assim,
isentar-se ou eximir-se da responsabilidade de um ato a partir do que o filósofo chama
de não-álibi da existência.
Neste ponto observamos a convergência entre o ato ético bakhtiniano e a ação
arendtinana, no sentido de que, tanto o ato ético quanto a ação pressupõem a não
abstenção da responsabilidade ética na prática da alteridade. A participação do eu está
impressa no ato de pensar eticamente, com uma impossibilidade de neutralidade, uma
vez que ela é edificada na própria construção de sentidos.
5
O ensaio Que é liberdade? foi publicado no livro Between past and future: eight exercises in political
thought em 1954. A versão utilizada neste trabalho é uma tradução de Mauro Barbosa, cuja
reimpressão da 7a ed. de 2011 data de 2014. A edição faz parte da série debates; 64.
6
O texto Gêneros do discurso foi publicado em russo no livro Estética da criação verbal em 1979. A
versão utilizada aqui é uma tradução do russo de Paulo Bezerra, edição de 2003.
Referências
Agamben afirma que contemporâneo é aquele que não coincide com seu
tempo, mas é capaz de perceber e aprender com ele. Para Agamben, aquele que está
perfeitamente encaixado em sua época não seria capaz de compreendê-la,
sintetizando a ideia com a afirmação de que “ser contemporâneo é uma questão de
coragem” (AGAMBEN, 2010, p. 65).
Barberena (2015, p. 71) traz uma distinção interessante ao afirmar que a
“contemporaneidade não é atualidade”, e que ela se encontra hoje marcada pela
“fragmentação e pelo descentramento nas paisagens culturais de classe, raça, gênero,
nacionalidade”. As narrativas marginais mudam de perspectiva, conjugando as
matérias nacionais por intermédio da diferença, da não unicidade cultural, o que gera
a desestabilização os significados pré-concebidos de uma identidade anteriormente
entendida como hegemônica (Idem, p. 76). O autor ainda argumenta que ao falarmos
da identidade nacional que “carrega – no seu interior – a marca de uma diferença
cultural que rasura a antiga fantasia acerca da suposta correlação existente entre a
unicidade espacial e a unicidade cultural (Idem, p. 77). Erber (2014, p. 83) aponta que
o “primeiro problema que se coloca necessariamente a qualquer discussão do
contemporâneo é a pluralidade”.
“Escrever sobre o tempo em que habitamos tornou-se um dos principais
desafios dos escritores brasileiros contemporâneos” (SCHOLLHAMMER, 2014, p. 96),
desafio este aceito por Maria Valéria Rezende em seu romance Quarenta Dias,
publicado no ano de 2014 pela editora Alfaguara. Acreditamos que a autora tem
conseguido interpretar o nosso tempo, propondo uma obra que discute várias
1
Mestrando em Escrita Criativa pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq). E-mail: tiago.germano@acad.pucrs.br
2
Mestranda em Escrita Criativa pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
E-mail: laila.silva@acad.pucrs.br
O escritor, dizia Barthes (apud DALCASTAGNÈ, 2012), é aquele que fala no lugar
de outro. Dalcastagnè conceitua grupos marginalizados como “todos aqueles que
vivenciam uma identidade coletiva, que recebe valorização negativa da cultura
dominante”. O que Dalcastagnè advoga é que a diversidade de percepções do mundo,
que depende do acesso a voz e não é preenchida por aqueles que monopolizam os
lugares de fala. O controle do discurso é uma censura social velada, que silencia os
grupos dominados. E vale lembrar que não se trata apenas da possibilidade de falar,
mas da possibilidade de falar com autoridade (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 19).
E é interessante apreender que em Quarenta Dias não percebemos esse
preconceito comum em tantas obras. A autora conseguiu enxergar e transmitir para o
leitor os personagens sem qualquer bagagem deturpada, não de forma pejorativa.
Maria Valéria conseguiu ceder a voz para grupos silenciados, como os sem-teto e
imigrantes. Assim Quarenta dias pode ser compreendido como um lugar de fala para
os ausentes.
Ao aceitar o desafio de escrever um livro ambientado em uma cidade que não
conhecia, a autora fez o mesmo percurso de sua protagonista, vivenciando o choque
cultural e tentando compreender esse Outro nas ruas de Porto Alegre. Conheceu
diretamente a realidade de vários grupos pertencentes à sociedade porto-alegrense,
possibilitando uma maior compreensão dessas vivências e resultando na melhor
transposição para as páginas do livro.
Vale ressaltar que os dois autores deste trabalho se mudaram recentemente
para Porto Alegre, um vindo da Paraíba e outro de Minas Gerais, para cursar o
Mestrado de Letras, área de concentração Escrita Criativa. Esse deslocamento vivido
pelos autores possibilitou uma maior identificação com a personagem Alice, que
também lida com o choque cultural ao se deparar com uma cultura estranha a sua.
Augé (2012, p. 47) afirma que “a arte é medida por sua capacidade de
estabelecer relações”, sem o público, a arte se torna uma experiência de solidão. A
arte é social. Para Augé (Idem, p. 55), a literatura engajada pode ser considerada um
fator de mudança ou um posicionamento nas discussões que abarcam a sociedade.
Sendo assim, os autores se identificaram com a narrativa de Maria Valéria,
reconhecendo ali diversas situações que reconhecem no seu dia-a-dia, proporcionando
uma maior identificação com o texto. O choque cultural vivenciado é explicitado nas
páginas de Quarenta dias, aproximando assim o leitor.
São dois momentos relevantes que este estudo aponta: a migração da
personagem e seu choque cultural. Stuart Hall (HALL, 2006, p. 60) nos explica que o
paradoxo da globalização contemporânea trata-se de que as coisas pareçam
homogeneizadas culturalmente, mas concomitantemente emerge uma proliferação
das diferenças. Através da migração de Alice, percebemos esse elemento estranho em
um novo contexto e todos os conflitos que daí pode-se gerar. Acompanhar o
movimento e reflexões da personagem Alice é absorver parte do mundo intercultural
contemporâneo, abrindo o debate para os aspectos discursivos sobre o “Outro”. Homi
K. Bhabha (BHABHA, 1998, p. 80) afirma que no processo de identificação, o espaço do
Outro desenvolve uma especificidade cultural e histórica na cisão do sujeito migrante,
emergindo assim a possibilidade de enxergar o invisível. A identidade só pode ser
pronunciada quando se enxerga o Outro na posição de enunciador.
A autora se permitiu experienciar à alteridade, que é explicitada por Todorov
(2010), como o “eu” que só pode existir quando eu tenho uma visão do “outro” que
remeta a mim mesmo. De acordo com Sá (2010, p. 124), a “experiência da alteridade,
limiar é “uma passagem e ao mesmo tempo a barreira dessa passagem” (Idem, p. 102).
Devemos pensar o contemporâneo como espaço de contágio, de troca entre seus
componentes, levando ao raciocínio de que a literatura deve sim se permitir
“contagiar” pelas outras artes. Em Quarenta Dias apreendemos essa interação do
texto com as imagens e citações, em um movimento de interdisciplinaridade. E Maria
Valéria (REZENDE, 2015) afirma que essa absorção teve o propósito de oferecer fôlego
ao leitor, deixando a leitura mais cômoda e encorpada. Vale lembrar a afirmação de
Barthes (2004, p. 62), de que o texto é um “espaço de dimensões múltiplas, onde se
casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um
tecido de citações”.
3 Considerações finais
Referências
Introdução
1
Doutoranda em Letras/Linguística pelo Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (PUCRS). Bolsista CNPq. E-mail: vanessa.barbosa@acad.pucrs.br
2
O mencionado trabalho pode ser consultado na íntegra no seguinte endereço eletrônico: <
ftp://ftp.ufrn.br/pub/biblioteca/ext/bdtd/RisoleideRFO.pdf >. Acesso em 08 ago. 2013.
1 Referencial teórico
3
De modo geral, pode-se dizer que o taylorismo regime ao qual era preciso garantir que o maior
número de atividades possível fosse concretizado no menor espaço de tempo possível, visando a uma
produção em massa e, para que isso ocorresse, normas e regras eram aplicadas aos trabalhadores.
4
Tal exemplo pode ser encontrado na obra “Trabalho e Ergologia: conversas sobre a atividade humana”,
organizada pelos professores Yves Schwartz e Louis Durrive, traduzido pela editora da Universidade
Federal Fluminense (UFF).
autor de texto e de que modo constituem o resultado final do trabalho, posto que é
preciso ir além do prescrito para se chegar a uma aproximação do real da atividade.
Outra questão basilar da abordagem ergológica e que vem a somar com o
trabalho a ser desenvolvido diz respeito à relação intrínseca entre linguagem e
trabalho, já que as duas são atividades humanas fundamentais. Cabe, portanto, ao
pesquisador saber explorar esse ponto, principalmente considerando o poder de
verbalização sobre a atividade, uma vez que “a verbalização possibilita, sobretudo, a
reflexão sobre a vivacidade da atividade laboral e sobre o (re)conhecimento da sua
complexidade” (DI FANTI, 2012, p. 325).
3 Análise do material
Apresentação/Solicitação da Atividade:
“Olá Revisora, tudo bem? Sou orientanda de X na Instituição X. Estou no final do meu
doutorado. Preciso depositar os volumes até a data X. Estou fazendo os últimos acertos
sugeridos pela minha última banca. Na verdade, estou correndo contra o tempo. Já reescrevi,
reorganizei uma boa parte [...]. Gostaria de saber se poderia fazer a revisão para mim. Escrevi
para o [Fulano] e ele indicou você. Estou desesperada, pois a banca afirmou que tenho tese,
mas criticou muito a redação. Envio meu trabalho, do jeito que está, para você fazer um
orçamento. Não se assuste, pois ele ainda está bastante bagunçado. Tem muitas marcações de
outras cores, comentários da banca que anotei nos capítulos para não me esquecer, etc. Tem
muitas imagens e espaçamentos. Tem páginas só com anotações minhas. Nem queria enviar
para você não se assustar, mas como tenho pressa em saber se você poderá ou não fazer a
revisão e o valor, vai assim mesmo. Espero um retorno e torço para que aceite meu trabalho”
(Autor da Tese).
“Olá Fulana, tudo bem? Sou orientanda de X e trabalho com a atividade de Revisão há
bastante tempo. Primeiramente, gostaria de te explicar que tenho por hábito, quando realizo
as revisões, olhar o todo de um texto, ou seja, me posiciono como uma leitora crítica e procuro
observar não só as questões gramaticais (óbvias de qualquer revisão), mas trabalho sobretudo
com outras questões linguísticas (tais como progressão, informatividade, observo se os
períodos estão condizentes, se as seções estão bem organizadas, se cumprem o que prometem
na sua introdução etc.). Isso, porém, demanda certo tempo, até porque eu faço esse trabalho,
mas não altero as questões semânticas dos textos, sem antes esclarecer com os autores dos
trabalhos quais são as minhas dúvidas e as minhas opiniões e sugestões de
reescrita. Creio, [Fulana], que a resposta final do trabalho sempre tenha de ser do autor deste
e, por isso, o meu hábito de rechear os arquivos com comentários e observações.
Compreendo a Revisão Linguística como um trabalho cooperativo, construído através do
diálogo e do bom senso, pois, por exemplo, uma palavra que, para mim, pode parecer repetida,
sem necessidade, tem a possibilidade de representar um dado autor ou uma dada filiação
teórica específica. Nesse caso, não posso sair modificando o texto alheio, desrespeitando a
autoria, e denominando como "revisão".
Enfim, [Fulana], gosto de deixar claro ao solicitante o tipo de trabalho que desenvolvo, mesmo
porque poderás não te agradar da minha metodologia, porém, como te expliquei agora,
acredito ser a mais correta e ética. Assim, poderás decidir se queres que eu faça a revisão em
teu texto, certo? E, em caso afirmativo, digo-te, desde agora, que dei uma olhada em teu
arquivo e que será um imenso prazer revisá-lo, basta que me confirmes o quanto antes, para
que possamos correr contra o tempo, hehe. Abraços, Revisor” (Revisor da Tese).
verificação exclusiva de questões gramaticais, por alguns revisores por exemplo, até a
intervenção discursiva, por outros. Não ter uma compreensão comum quanto ao
revisor de textos, faz com que, por exemplo, o revisor solicitado para o trabalho ora
analisado necessite recuperar as normas antecedentes desse fazer, a fim de explicar de
que lugar ela fala, isto é, de que modo ela renormaliza o fazer em sua atividade
prática, tal como podemos perceber no seguinte enunciado: “Primeiramente, gostaria
de te explicar que tenho por hábito, quando realizo as revisões, olhar o todo de um
texto, ou seja, me posiciono como uma leitora crítica e procuro observar não só as
questões gramaticais (óbvias de qualquer revisão), mas trabalho sobretudo com outras
questões linguísticas (tais como progressão, informatividade, observo se os períodos
estão condizentes, se as seções estão bem organizadas, se cumprem o que prometem
na sua introdução etc.)” e “Creio, [Fulana], que a resposta final do trabalho sempre
tenha de ser do autor deste e, por isso, o meu hábito de rechear os arquivos com
comentários e observações”.
Schwartz (2014, p.264) discorre sobre a atividade de trabalho como um
constante debate de normas encaixados, já que “temos de agir num mundo que não
criamos, saturado portanto por inúmeras normas antecedentes de diversos níveis e
graus de proximidade com as existências do presente”, delas decorrem a nossa
necessidade de renormalizar, isto é, “de proporcionarmos normas parciais, reajustadas
no instante do agir, para lidar com ‘a’ situação” (idem, p.265). É justamente esse
debate de normas que se pode perceber no enunciado da revisora, quando define a
sua atividade através do entrelaçamento entre o que ela não significa como, por
exemplo, modificar o texto alheio, na opinião desse revisor, para poder dizer o que
constitui esse trabalho complexo, tal como revela o seguinte enunciado: “Compreendo
a Revisão Linguística como um trabalho cooperativo, construído através do diálogo e
do bom senso, pois, por exemplo, uma palavra que, para mim, pode parecer repetida,
sem necessidade, tem a possibilidade de representar um dado autor ou uma dada
filiação teórica específica. Nesse caso, não posso sair modificando o texto alheio,
desrespeitando a autoria, e denominando como "revisão". Enfim, [Fulana], gosto de
deixar claro ao solicitante o tipo de trabalho que desenvolvo, mesmo porque poderás
não te agradar da minha metodologia, porém, como te expliquei agora, acredito ser a
mais correta e ética”.
Para Bakhtin ([1963]/2015, p.209), “toda a vida da linguagem, seja qual for o
seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística, etc)
está impregnada de relações dialógicas” e elas não se reduzem às relações “lógicas ou
às concreto-semânticas, que por si mesmas carecem de momento dialógico”. Ao
Considerações finais
interesse de outros interlocutores para esse objeto tão complexo e com vasto campo
de investigação com vistas a manter o processo dialógico sobre a atividade de trabalho
do revisor textual e a refletir sobre o texto nesse câmbio laboral a partir do
imbricamento das vozes de ambos os atores do trabalho na elaboração do texto final.
Referências
Uma Viagem à Índia (2010) é uma epopeia que narra a viagem do personagem
principal, Bloom, de Portugal à Índia, assim como o retorno do mesmo a Lisboa. A
comparação com outras epopeias é inevitável. Por narrar uma viagem de Portugal até
Índia, e, por ser dividida exatamente no mesmo número de cantos e estrofes que Os
Lusíadas (2002), um paralelo com a epopeia portuguesa é inevitável. Da mesma
maneira, é evidente também o intertexto com a obra Ulysses (2012), de James Joyce,
já que, entre outros motivos, os protagonistas das duas narrativas têm o mesmo
nome: Bloom. Obviamente, uma epopeia do século XXI certamente é diferente da
epopeia clássica - como Os Lusíadas (2002) - e da epopeia antiga - como a Ilíada (2011)
e a Odisseia (2014).
É tentador esse exercício de colocar o texto de Camões ao lado do texto de
Tavares? Sim. Mas está longe de ser uma alegoria, como talvez aconteça em As Naus,
de Lobo Antunes. Pelo contrário, o “herói”, o protagonista da história sequer se chama
Camões ou Vasco da Gama. Seu nome é Bloom, é uma alusão muito clara ao
personagem principal do Ulysses de James Joyce. Por sua vez, Ulysses é totalmente
estruturado em cima da Odisseia de Homero. Da mesma forma, Tavares cria sua
estrutura em cima de outra epopeia, no caso, Os Lusíadas.
Com certeza o nome “Bloom” não é gratuito nessa epopeia. Quando James
Joyce dialoga com Homero, ele faz um contraponto. O Odisseu de Homero só
consegue vencer todos os obstáculos e adversidades porque sabe quem é para onde
vai. Quando o protagonista de Tavares se chama Bloom, ele representa não apenas o
herói moderno de James Joyce, mas também representa o herói clássico de Homero. O
herói grego é feito de identidade e de memória, diferente do Ulysses (Bloom) de James
Joyce, que sequer narra a própria história e se deixa ser narrado.
Aonde quer que vá, Odisseu sabe que é o rei de Ítaca, que foi um herói na
guerra de Troia e que precisa voltar para sua esposa Penélope. O Bloom de James
Joyce encarna um Ulysses moderno, que não sabe muito bem o que fazer e passa o dia
1
Mestranda em Literatura Comparada - UFRGS/CAPES. E-mail: vanessagatteli@gmail.com
autores como Hayden White, Fredric Jameson e Edward Said, dentre muitos outros,
(cito apenas aqueles que me são mais familiares),
seu relato. Pelo contrário, a obra de Daniel Defoe se tornou o arquétipo do espírito
pragmático do homem inglês.
A obra Foe, de J. M. Coetzee questiona essa “verdade” ao colocar uma mulher
narrando a história. Assim, a cultura pós-moderna abre a possibilidade de a história de
Robinson Crusoé ter sido narrada por uma mulher que foi apagada pela história. Linda
Hutcheon classifica essa obra dentro do que ela chama de metaficção historiográfica,
pois, ainda que não esteja lidando com fatos necessariamente históricos, ao
questionar um texto literário consagrado pela historiografia, considerado clássico, ela
aponta para o fato de que a própria história possa ter silenciado várias vozes ao longo
da história. Obviamente, essas vozes silenciadas são quase que sem exceção, as vozes
de minorias: mulheres, negros e homossexuais.
Dessa maneira, a produção ficcional de Coetzee vai ao encontro de diferentes
linhas teóricas de pensamento, como o feminismo, o pós-colonialismo e a
desconstrução. O exemplo do romance Foe é apenas uma dentre tantas obras que
através da ficção levantam problemas teóricos e que questionam o senso comum e as
verdades históricas que até pouco tempo se pensavam imutáveis.
Linda Hutcheon questiona o que haveria em comum entre o seriado Dallas e a
arquitetura de Ricardo Bofill? Ela defende que pós-modernismo não pode ser usado
como um simples sinônimo para o contemporâneo. Eu acredito que o pós-modernismo
guarde grandes afinidades com a contemporaneidade, mas concordo que os termos
não possam ser usados indiscriminadamente como sinônimos.
Linda Hutcheon ainda pondera que o pós-modernismo seja um fenômeno
cultural “basicamente europeu e (norte- e sul-) americano” (HUTCHEON, 1988, p. 20).
Tal afirmação, quase trinta anos após a publicação da obra, é uma das poucas
pinceladas do livro que soa obsoleta. Segundo a teórica, o termo “pós-modernismo”
teria sido reconhecido na arquitetura na Bienal de Veneza de 1980, cujo conceito seria
a “presença do passado”:
Curiosamente, é isso o que o Tavares faz, escreve uma epopeia, mas não é uma
narrativa-mestra. A meu ver, acredito que o autor, ao escrever Uma Viagem à Índia,
jamais se propôs a escrever um Lusíadas do século XXI. Seu objetivo não é trazer o
ufanismo e o nacionalismo do século XVI para o século XXI. Em síntese: não consigo
imaginar que em algum momento Tavares quis criar um “clássico” do século XXI,
diferente de James Joyce ao escrever Ulysses e diferente de Eliot ao escrever
Wasteland. As obras desses dois últimos autores, para mim, soam como tentativas de
se firmarem como obras-mestras do século XX – e realmente foram.
Hutcheon ainda observa que a teoria tenta questionar as narrativas-mestras do
liberalismo burguês, teóricos como Foucalt, Derrida, Habermas, Vattimo, Baudrillard
(ainda calcados nas ideias de Nietzsche, Heidegger, Marx, Freud) desafiaram
pressupostos totalizadores e empiricistas. (HUTCHEON, 1988, p.23)
Assim, não teríamos mais verdades absolutas, o consenso estaria em aceitar as
diferenças e admitir a concomitância de ideias plurais:
Será que a obra Uma Viagem à Índia seria aquilo que Linda Hutcheon chama de
paródia? Para ela, o conceito de paródia não tem aquele tom necessariamente
burlesco que o senso comum talvez possa ter. A paródia englobaria o seu hipotexto,
mas ao mesmo tempo o enfrentaria, o questionaria. Nesses termos, não resta dúvida
de que Uma Viagem à Índia é também um texto paródico.
Mais, arriscando cair em generalizações, me pergunto se nos anos 10 do séc.
XXI ainda haveria alguma obra canônica (literária ou de qualquer outra natureza) que
ainda não foi questionada. Talvez exista certo esgotamento dessa obstinação que
existe em questionar o passado e o cânone, como se já não existisse mais nada a ser
contestado, vide resenhas críticas que desvalorizam obras literárias por serem apenas
“mais um livro metaficcional”.
Gonçalo M. Tavares talvez esteja renovando a metaficção incorporando uma
estrutura (a épica) e cruzando com vários outros intertextos, sem necessariamente
apontar “erros” do passado nem sugerir alternativas, como, por exemplo, Coetzee faz
em Foe ao suscitar a suspeita de que Robinson Crusoé havia sido originalmente escrito
por uma mulher.
Talvez nossa sociedade continue sendo eurocêntrica, branca, masculina e
heterossexual, apesar dos esforços da literatura – e das artes em geral – de mostrar o
oposto. Existe a possibilidade de Uma Viagem à Índia estar mostrando que quando um
homem europeu, branco e heterossexual tenta consertar o seu passado fazendo uma
viagem em busca de conhecimento e retratação, o resultado é catastrófico, a história
se repete.
Tenho essa leitura devido à escalada de outros escritores que têm fugido dessa
tendência a que Linda Hutcheon chama de metaficção historiográfica, quando afirma
que o marginal não quer ser o novo centro. A autora afirma isso citando outro autor:
Referências
Introdução
O presente artigo traz o relato de um estudo que teve como objetivo examinar
comparativamente dois livros eletrônicos sobre conteúdos linguísticos teórico-práticos
para professores de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental, gerados,
respectivamente, em formato linear (FL) e em formato de mapa conceitual (FMC).
O trabalho esteve inserido nas diversas iniciativas do Centro de Referência para
o Desenvolvimento da Linguagem – CELIN da Faculdade de Letras da PUCRS para gerar
e investigar livros eletrônicos direcionados ao ensino da leitura nos diversos âmbitos
de aprendizagem – Fundamental, Médio e Superior.
Foi fundado teoricamente na Psicolinguística, especificamente no campo da
leitura e seu ensino, estabelecendo interfaces com a Pragmática, em relação aos
tópicos de inferência e relevância, com a Educação, quanto à leitura como aprendizado
em FL e em FMC, com a Computação, referente aos meios de geração virtual de
materiais científico-pedagógicos, promovendo assim um diálogo entre essas áreas.
Assim concebido, o texto está constituído sucessivamente dos fundamentos
teóricos, e da caracterização do estudo realizado com a apresentação dos resultados,
sendo finalizado com as conclusões e as referências.
1
Pós-doutora em Psicolinguística; Professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul –
PUCRS. E-mail: vpereira@pucrs.br
2
Bolsista de Doutorado do CNPq; Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. E-mail:
thais.vargas@acad.pucrs.br
1 Os fundamentos do estudo
Moreira (2006), em seu livro sobre mapas conceituais, exibe várias aplicações
dos mapas: como instrumento de ensino, como instrumento de avaliação da
aprendizagem e como instrumento para a análise e planejamento do currículo.
Com essas características, o formato mapa conceitual se opõe ao formato
dominante na escrita de textos de diversas extensões, estruturas e objetivos, que
seguem de forma continuada a linha vertical, de cima para baixo, a linha horizontal, da
esquerda para abaixo, e a linha sequencial de paginação, sendo por essa razão, aqui
denominado de formato linear.
Os quatro fundamentos expostos neste tópico conferem sustentação teórica e
metodológica ao estudo realizado e ao presente artigo.
2 O estudo
3
Disponível em http://www3.pucrs.br/portal/page/portal/edipucrs/Capa/PubEletrEbook.
refletir sobre suas respostas e escolhas. A partir dessa reflexão, ele escolheu uma das
alternativas a seguir ou fez a sua própria: conhecimentos na memória imediata;
processos de eliminação, descartando as alternativas absurdas, as pouco prováveis,
etc.; escolha aleatória; conhecimentos prévios (adquiridos ao longo da sua formação);
outro tipo de inferência (qual?). Assim, cada leitor pôde refletir sobre suas decisões e
inferências durante a atividade, de modo a realizar uma meta-avaliação. Nesse
processo, foi possível observar a ausência de homogeneidade entre as respostas dos
vinte sujeitos analisados. A maioria dos sujeitos marcou mais de uma alternativa (até
quatro alternativas, em alguns casos), enquanto aproximadamente 1/3 do restante
escolheu repetidamente a alternativa “conhecimento prévio”. Apenas 3 sujeitos (no
FMC e 1 no FL, respectivamente) informaram outros apoios de inferência.
A análise da satisfação dos sujeitos contou com o Instrumento de Satisfação (IS),
cujas respostas podem ser assim resumidas: a) para o FL, 60% dos sujeitos
classificaram seu nível de satisfação como 5 e 40% classificaram seu nível de satisfação
como 4, e para o FMC, 70% classificaram seu nível de satisfação como 4, 20%
classificaram seu nível de satisfação como 3 e 10% classificaram seu nível de satisfação
como 5, indicando resultado favorável ao FL; b) 90% dos sujeitos aprovaram o FL em
comparação ao livro em papel e 70% aprovaram o FMC em comparação ao livro em
papel; c) em relação a alguma dificuldade durante a leitura, no FL houve 60% de
indicações e no FMC 80%; d) quanto ao favorecimento da leitura, 80% das respostas
forma positivas nos dois formatos, valorizando o dinamismo dos processos; e) no que
se refere à letra utilizada, o tipo e o tamanho foram considerados adequados e
confortáveis por 80% no FMC e 90% no FL.
No que se refere à relevância, ou seja, à relação entre custo/dispêndio de
esforço cognitivo e benefício, foram considerados os dados sobre o tempo gasto pelos
sujeitos para a realização do conjunto de tarefas realizadas (leitura de capítulos do e-
book, atividades de leitura em Flash e preenchimento do TCL – Teste de Compreensão
Leitora) e os dados (ocorrência e tempo) sobre as estratégias de leitura utilizadas
durante a realização das tarefas, sendo, para isso, estabelecidas categorias. Em relação
ao tempo nas tarefas, foram os seguintes os dados: no FL – com base na média
aritmética de 2h11min48s, Cat 1 (abaixo) com 3 sujeitos, Cat 2 (intermediária) com 2
sujeitos, Cat 3 (acima) com 5 sujeitos; no FMC – com base na média de 1h46min30 seg,
Cat 1 com 5 sujeitos, Cat 2 com 3 sujeitos, Cat 3 com 2 sujeitos. Com base nessas
informações, houve no FL uso de um tempo maior, portanto um maior custo. Quanto
às estratégias utilizadas, o mesmo procedimento de obtenção de média aritmética foi
realizado. No FL a média foi de 225 ocorrências, com 3 sujeitos na Cat 1, 3 sujeitos na
Cat 2 e 4 sujeitos na Cat 3, e, no FMC, a média foi de 191 ocorrências, com 5 sujeitos
Conclusões
Referências
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Rinehart and Winston, 1978.
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LEFFA, V. J. Aspectos da leitura: uma perspectiva psicolingüística. Porto Alegre; Sagra-
Luzzatto, 1996.
Introdução
Dessa forma, mesmo com a suposta morte das narrativas mestras, esses
processos de exclusão ou de interdição, que em outros momentos estavam em maior
1
Mestranda em Literatura Comparada no Programa de Pós-graduação em Letras pela Universidade
Federal de Pelotas. E-mail: novack-virginea@gmail.com
evidência, como a efetiva retira do direito de voz desses sujeitos, como em regimes
autoritários, hoje supostamente esse direito seria assegurado a todos. No entanto, a
exclusão dos discursos não se apresenta apenas de modo exterior, mas também
internamente, isso significa que, embora todos tenham o direito à voz, nem todos
terão suficiente respaldo social para serem ouvidos.
A ideia de redemocratização dos anos 70/80 somada ao discurso da liberdade
tornam-se o cenário ideal para o desenvolvimento da globalização e, por conseguinte,
de um capitalismo tardio, nos termos de Jameson (2007), que busca refletir sobre
como cultura e economia se articulam na atualidade, reproduzindo e fortalecendo o
modo de produção capitalista. Nesse sentido, “o pós-modernismo não é a dominante
cultural de uma ordem social totalmente nova (...), mas é apenas reflexo e aspecto
concomitante de mais uma modificação sistêmica do próprio capitalismo” (JAMESON,
2007, p.16).
Analisando, portanto, em termos práticos, se outrora as minorias, como
mulheres, negros, LGBTs etc., não tinham acesso à voz, na atualidade, têm, sobretudo
com o advento das redes sociais, uma vez que tal espaço pode ser ocupado por
qualquer pessoa que disponha de uma conexão à internet. No entanto, ainda não se
obteve respaldo social o suficiente para ser ouvido. Dessa forma, a internet apresenta-
se ainda como o espaço de maior possibilidade de articulação política desses grupos
em segurança, o que, por outro lado, gera a revolta daqueles que não querem perder
sua posição privilegiada nessas relações de poder.
que se faça uma maior reflexão a partir das informações que tem ao invés da simples
reprodução da informação, como o narrador nos descreve a personagem:
“transformara os comentários anônimos na internet, em especial os hediondos, em
sua principal atividade diária” (CARVALHO, 2013, p.10).
Carvalho, como já comum da literatura contemporânea, usa a forma do seu
texto tanto para questionar a forma do romance quanto para auxiliar na construção de
sentido de seu próprio texto, assim, o narrador que é em 3ª pessoa faz alguns poucos
comentários sobre os motivos da narrativa, mas logo cede espaço para que as próprias
personagens, por meio de citação direta, contem suas versões dos fatos,
intrometendo-se esporadicamente com a marcação do texto entre colchetes, tendo,
portanto, como função principal: a de organizar o texto.
Nesse sentido, tanto Huctheon quanto Dalcastagné vêm a necessidade de
colocar essas personagens e narradores sob o signo da desconfiança, uma vez que “a
preocupação do século XVIII em relação às mentiras e à falsidade passa a ser uma
preocupação pós-moderna em relação à multiplicidade e à dispersão da(s) verdade(s),
verdade(s) referentes à especialidade do local e da cultura” (HUTCHEON, 1991, p.145),
pois “no lugar daquele indivíduo todo poderoso, que tudo sabe e comanda, vamos
sendo conduzidos para dentro da trama por um narrador suspeito” (DALCASTAGNE,
2005. pg.13), um narrador que só nos mostra um lado da história.
A suspeita se intensifica quando percebemos que o aspecto que se apresenta
como fundamental é que os enunciadores falam com alguém, ou seja, que a
mensagem tenha tanto dois emissores quanto dois receptores, visto que se trata de
um diálogo, porém o leitor tem acesso parcial a essas informações, ou seja, a de
apenas um enunciador, o que mais uma vez, enfatizada a comunicação “Então, é um
diálogo de surdos. Só um decide o que quer ouvir e o que o outro vai dizer”
(CARVALHO, 2013, p.153), esse é um importante reflexo da sociedade pós-moderna: a
reprodução de um discurso único e sem possibilidades de diálogo em inserção de
outros pontos de vista, um verdadeiro “diálogo de surdos”.
Nesse sentido, Lyotard, ao refletir sobre a pós-modernidade, entenderá que o
desenvolvimento da internet será crucial na formação desses sujeitos “é razoável
pensar que a multiplicação de máquinas informacionais afeta e afetará a circulação
dos conhecimentos do mesmo modo que o desenvolvimento dos meios de circulação
dos homens (transportes), dos sons e, em seguida, das imagens (media) o fez”
(LYOTARD, 1988, p.4), ele dirá ainda que “o cenário pós-moderno é essencialmente
cibernético, informático e informacional” (idem, p.viii).
Gay? Eu? Gay é a puta que pariu! Quem disse que perguntar não ofende?
2
Resende (2008) reflete sobre as possibilidades de escrita e circulação de textos literários na rede por
escritores contemporaneos. Nesse artigo, ampliamos essa ideia para a sociedade como um todo vendo
na internet uma ferramenta para propagação de suas vozes.
Dessa forma, os sujeitos que historicamente foram silenciados e que, por meio
das redes sociais adquiriram esse espaço, hoje buscam representação real, tanto ainda
na própria rede social, como nas outras mídias em geral e, principalmente, na política,
para que tenham seus direitos também assegurados. Assim, a partir das mobilizações,
principalmente a partir dos anos 70, sujeitos que antes tinham seus direitos negados
começam a perceber as contradições do discurso universalizante, fazendo com que os
movimentos sociais (movimento negro, feminista, LGBTTQ...) somem cada vez mais
indivíduos. Dessa forma, com a tomada de consciência das minorias e da efetiva luta
por direitos, o centro passa a ser enfrentado em uma disputa de poderes, o qual, por
sua vez, se atrelará a tradição e, mais do que isso, a um discurso da religião e da moral.
Sendo assim, a grande novidade do pós-moderno se dá por meio da constante
e repetida ironia das contradições auto-reflexivas e históricas, problematizando o
senso comum e o natural, mas nunca oferecendo respostas que ultrapassem o
provisório e o que é contextualmente determinado. Assim, o pós-modernismo é
entendido como “um fenômeno contraditório, que instala e depois subverte os
próprios conceitos que desafia” (idem, p.19).
Assim, a construção da personagem “estudante de chinês” como um mero
reprodutor de informações não refletidas poderia ser entendida como apenas mais um
espaço, agora o da própria literatura, em que poderia haver esse tipo de manifestação.
No entanto, Carvalho ironiza-o, apresenta repetidamente as lacunas que tem no
próprio discurso, como quando insiste que não é preconceituoso, pois é brasileiro,
como se isso garantisse a ele o direito de proferir qualquer discurso, uma vez que faria
parte do país da miscigenação.
Contudo, Hutcheon continua sua reflexão tomando como ponto de partida
“uma atividade cultural que pode ser detectada na maioria das formas de arte e em
muitas correntes de pensamento atuais, aquilo que quero chamar de pós-modernismo
é fundamentalmente contraditório, deliberadamente histórico e inevitavelmente
político” (HUTCHEON, 1991, p. 20), discurso que entra em acordo com a reflexão,
acerca do próprio livro, feita por Carvalho
Conclusão
Por fim, a partir de uma revisão bibliográfica e dos apontamentos que se fez no
desenvolvimento deste artigo, pode-se dizer que Reprodução não é apenas uma
narrativa que tem como objetivo a crítica da pós-modernidade por si só ou do uso da
internet como ferramenta de propagação dos discursos de ódio, mas sim o de refletir
as suas possibilidades de manifestação na cultura, em especial, na literatura. No
mesmo sentido, essa necessidade é alertada por Jameson:
Referências
Introdução
Era difícil para êle perceber – as brigas entre o pai e a mãe não eram
de hoje nem de ontem mas não eram tão frequentes achava até
calados demais como se trocassem as palavras necessárias exatas
medidas encontrando no exagero um pecado a ser punido
(SANTIAGO, 1974, p. 14).
1
Mestrando em Letras (Teoria da Literatura) – PUCRS/CAPES – E-mail: tetei42@hotmail.com
2
Vejamos o que é o “Complexo de Édipo” à luz da psicologia: “o menino se identifica com o pai, logo
passa a desejar o amor da mãe; esta [a mãe] lhe é “proibida” não tanto como objeto sexual [...] mas
como figura de amor incondicional, ou seja, aquela cuja posse afetiva daria ao menino todos os poderes
– tornando-o privilegiado, isento de quaisquer limites, uma espécie de tirano que não só escapará à
jurisdição das leis como cria a seu bel-prazer um código que obriga a todos, com sua exceção. [...] A
criança procura tornar-se sujeito absoluto, expulsando o pai de seu lugar junto à figura materna...”
(GOLDGRUB, Franklin. O complexo de Édipo. Série Princípios. São Paulo: Editora Ática, 1989).
Escondido colado à porta trancada que liga os dois quartos dos pais e
o dele escondido apenas nos gestos encolhidos tremendo apreensivo
temendo empolgado disposto a modificar posição vestir disfarce
aparentar bem-estar e espontaneidade sono até num estalar de
dedos ao som do comum girar da maçaneta ou ao escutar mesmo
vagamente seu nome vindo soprado da boca do pai ou da mãe
escondido apenas nos gestos porque é só curiosidade lobo na pele de
ovelha (SANTIAGO, 1974, p. 13).
O enredo se passa numa época em que o negro não é mais escravo no Brasil,
mas o preconceito e o racismo ainda permanecem de forma intensa. A mulher negra é
tratada como objeto, algo para ser usado e descartado a qualquer momento como
qualquer outro utensílio do lar: “A empregada [em O olhar é sempre negra] estava na
sua frente na cozinha outro utensílio móvel a mais entre outros utensílios fogão pia
mesinha prateleiras todo o vasilhame.” (SANTIAGO, 1974, p. 61).
Por ser considerada assim, como um objeto qualquer, servia também como
objeto sexual, pois a família, numa atitude irônica e hipócrita, demite a empregada (na
verdade expulsam-na) após ter sido flagrada com o filho mais velho, mesmo que este
seja chamado pelo próprio pai de “sem-vergonha descarado” (SANTIAGO, 1974, p. 79),
mas a culpa sempre recai na empregada negra:
Não sei bem como é que foi não titubeava no início com receio na
certa de mostrar intimidades de casa. Era o filho mais velho que
mantinha relações com a empregada (uma preta já passando dos
trinta de vestido largo e decotado sem manga mostrando braços
roliços). E ontem a mãe começou a dar uma esculhambação nele
porque tinha surpreendido os dois em flagrante. Não sabia bem
como tinha sido mas ia contando só viu que a cozinheira tido sido
despedida sem grandes considerações (SANTIAGO, 1974, p. 78).
3
SOUZA, Márcio. Galvez, imperador do Acre. 5. ed. Rio de Janeiro: Brasília/Rio, 1977. p. 24.
agindo por instinto e por necessidade...” (SANTIAGO, 1974, p. 25). E logo mais à frente,
o desejo dela em que esse pensamento se realize, a busca pela sua satisfação:
Ela é aquela que durante todo o tempo é restrita aos espaços da casa, não pode
sair para outros ambientes fora de casa. Esse enclausuramento, não voluntário, nos
leva a pensar, enquanto se lê o texto, que ao final da trama, a mulher, de alguma
forma, há de se libertar desse subjugo:
não era como as outras que casam porque não precisam tinha casado
porque tinha precisava de se casar caso contrário teria ficado virgem
na casa do pai.[...] Não se saber magoada não subjugá-lo isso nunca!
pois no fundo lhe agradava a condição de fêmea martirizava-se
quando tinha de chamá-lo (SANTIAGO, 1974, p. 23 e 46).
posto que ele não conseguia realizar os desejos sexuais dela, comparava-a com as
prostitutas com quem se divertia no passado, demonstrada numa fala dele:
Tudo pode acontecer com o herói aventuresco, e este pode ser tudo.
Ele também não é substância, mas mera função da aventura. O herói
aventuresco, como o herói de Dostoiévski, é igualmente inacabado e
não é predeterminado pela sua imagem (BAKHTIN, 2013, p. 116).
ocorre com a mulher que tem de casar por obrigação, por uma imposição e se sujeitar
às vontades do marido sem nenhum questionamento. O marido é aquele indivíduo
que comanda as situações do lar e tudo deve convergir para unicamente o seu bem
estar. Um menino que se encontra em situações em que tem que aprender as coisas
com os colegas porque não tem as devidas orientações na família. Entretanto, todos
apresentam características inacabadas, incompletas.
Assim, de acordo com Mikhail Bakhtin (2013), esses tipos de heróis (os heróis
de aventura) reúnem características que vão desde as ações mais nobres até as mais
vulgares. Reúnem em si todas as atitudes que “nem pelo caráter social dos heróis nem
pelo universo social em que eles poderiam ser realmente personificados” (BAKHTIN,
2013, p. 116) não lhes podem ser predeterminadas. Tudo lhes é permitido,
excetuando-se apenas o procedimento que faz parte dos romances biográficos e
familiares, que é “o comportamento socialmente bem educado”.
Um dos temas que é abordado no romance de Silviano Santiago, que corrobora
com os preceitos defendidos por Bakhtin, conforme acima descrito, é a presença do
“Complexo de Édipo”, relatado em vários momentos da narrativa. Através do olhar do
menino para sua mãe, pois ele sente ciúme da relação dos pais:
E fica triste triste por saber tantas coisas novas e sabia e deixava de
saber não pela boca dos pais mas daquela forma sórdida enojado
diante de fatos que se iam degradando apodrecendo à medida que
iam sendo revelados às escondidas. Tinha ódio dos pais por
A decisão veio mais tarde mas a idéia lhe veio na cama quando já
altas horas da madrugada acordou sofrendo o calor que castigava a
cidade e os habitantes desde o início do mês.
[...]
Lembrou-se do aniversário do filho no dia seguinte e pensou que
poderia fazer um jantar especial. Foi quando finalmente tomou a
decisão que executaria mais tarde.
[...]
Não não poderia mais aguentar esta situação revoltar-se não mais de
uma maneira calada escondida trair o marido apenas em
pensamento revoltar-se través de um ato que a justificasse e a
libertasse dos sofrimentos da vida atual. [...] Por um instante se
deixou intimidar...” (SANTIAGO, 1974, p.186 e 187).
No capítulo 24, página 189, cujo título “Olhar – 2”, o narrador coloca a
personagem-protagonista num cenário em que todos os temas do romance de
aventura, acima citado, estão presentes. É uma cena em que a mulher se vê diante do
pintor, contratado pelo marido dela para pintar toda a casa deles. Ela o deseja, e se
culpa ao mesmo tempo:
Considerações finais
Referências