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ISSN: 2238-9091 (Online)

O Social
em Questão 43

Famílias, cuidados e políticas públicas

Número 43
Primeiro quadrimestre de 2019
Publicada em janeiro de 2019

Revista do Programa de Pós-graduação em Serviço Social


Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Rua Marquês de São Vicente 225 - Vila dos Diretórios, casa 209
Gávea, Rio de Janeiro, RJ – Brasil - CEP 22453-900
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Fax: (55-21) 3527-1292
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Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
ISSN: 2238-9091 (Online)

Reitor: Profº Pe. Josafá Carlos de Siqueira, S.J.


Vice-Reitor: Profº Pe. Álvaro Mendonça Pimentel, S.J.
Vice-Reitor Acadêmico: Profº José Ricardo Bergmann
Coordenador Central de Pós-Graduação e Pesquisa: Profº Paulo Cesar Duque Estrada
Decano do Centro de Ciências Sociais: Profº Luiz Roberto Azevedo Cunha
Coordenador Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa: Profº Augusto César Pinheiro da Silva
Departamento de Serviço Social
Diretora: Profª Andreia Clapp Salvador
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação: Profª Inez Terezinha Stampa
O Social em Questão
Editor científico: Profº Rafael Soares Gonçalves

O Social em Questão é uma publicação quadrimestral, fundada em 1997, do Programa


de Pós-graduação em Serviço Social, vinculado ao Centro de Ciências Sociais da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Este periódico tem como públicos-alvo, além dos profissionais da área, professores,
pesquisadores e representantes de movimentos sociais e políticos de áreas correlatas.
O objetivo deste veículo é contribuir com a produção de conhecimento, o debate acadêmico
e a capacitação docente nas áreas de Serviço Social e afins, e com a construção de agendas
em diversas instâncias da sociedade civil, com vistas a influenciar a construção de políticas
públicas que busquem a redução das desigualdades sociais.

O Social em Questão está inserido nas seguintes bases indexadoras de periódicos científicos:
i)CLASE – Citas Latinoamericanas em Ciencias Sociales y Humanidades (Universidad Nacional
Autonoma de México - UNAM): http://clase.unam.mx; ii)LATINDEX – Sistema Regional de
Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal
(UNAM) – Diretório, Catálogo e Revistas en línea: http://www.latindex.unam.mx. iii)BIBLAT
– Bibliografía Latinoamericana en revistas de investigación científica y social (UNAM): http://
biblat.unam.mx/pt/buscar/%22o-social-em-questao%22; iv)DIADORIM – Diretório de
Políticas Editoriais das Revistas Científicas Brasileiras (IBICT): http://diadorim.ibict.br; v)
PERIÓDICOS NACIONAIS (CAPES): http://www.periodicos.capes.gov.br; vi)SUMÁRIOS.ORG
– Sumários de Revistas Brasileiras (Fundação de Pesquisas Científicas de Ribeirão Preto -
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Conocimiento Científico): https://www.redib.org/ ; viii) REDALYC (Red de Revistas Científicas
de América Latina y el Caribe, España y Portugal): https://redalyc.org
Para maiores informações:
http://osocialemquestao.ser.puc-rio.br
https://www.facebook.com/osocialemquestao O Social em Questão. Ano XXII, nº 43,
volume 1, janeiro a abril (2019), Rio de
O Social em Questão 43 Janeiro: PUC-Rio. Departamento de Serviço
Social, 1997-2019; 14 cm x 21 cm.
Profº Antonio Carlos de Oliveira (PUC-Rio)
Quadrimestral.
Profª Regina Celia Tamaso Mioto (UFSC)
ISSN: 1415-1804
1. Serviço social – Periódicos. 2. Assistentes
Editoração: Rafael Soares Gonçalves sociais – Periódicos. I. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Departamento de
Revisão de textos e normalização: Ana Lole Serviço Social.
Design e diagramação: Fábio Rapello Alencar
CDD: 361
Produção: Departamento de Serviço Social da PUC-Rio

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


Editores Associados

ISSN: 2238-9091 (Online)


Andréia Clapp Salvador - Departamento de Serviço Social/PUC-Rio
Antonio Carlos de Oliveira - Departamento de Serviço Social/PUC-Rio
Ariane Rego de Paiva - Departamento de Serviço Social/PUC-Rio
Inez Terezinha Stampa – Departamento de Serviço Social/PUC-Rio
Irene Rizzini - Departamento de Serviço Social/PUC-Rio
Marcia Regina Botão Gomes – Departamento de Serviço Social/PUC-Rio
Nilza Rogéria de Andrade Nunes - Departamento de Serviço Social/PUC-Rio
Rafael Soares Gonçalves - Departamento de Serviço Social/PUC-Rio
Sindely Chahim de A. Alchorme - Departamento de Serviço Social/PUC-Rio
Valéria Pereira Bastos - Departamento de Serviço Social/PUC-Rio

Conselho Editorial
Agnès Deboulet – Université de Paris 8-Vincennes Saint Denis/CRH-LAVUE
Aldaíza Sposati – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Ana Cristina Arcoverde – Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco
Ana Maria Doimo – Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais Aplicadas da Universidade
Federal de Minas Gerais
Ana Maria Quiroga – Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e
Departamento de Serviço Social/PUC-Rio
Denise Câmara de Carvalho – Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte
Edésio Fernandes - DPU Associates/University College London
Jeremias Ferraz Lima – Instituto de Psiquiatria, Setor de Psicoterapia da Universidade Federal
do Rio de Janeiro
José Maria Gomes – Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Lena Lavinas – Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Leonia Capaverde Bulla – Faculdade de Serviço Social, Departamento de Métodos e Técnicas
do Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Luiz Antônio Machado da Silva – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade
Federal do Rio de Janeiro/professor visitante da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Margarida de Souza Neves – Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro
Maria Carmelita Yazbeck – Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo
Potyara A. Pereira – Programa de Pós-graduação em Política Social da Universidade Federal
de Brasília
Sonia Fleuri Teixeira – Programa de Pós-graduação em Política Social da Universidade
Federal Fluminense
Sueli Gomes Costa – Departamento de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense
Vanilda Paiva – Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana
(PPFH) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Vicente de Paula Faleiros – Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília

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IMAGEM DA CAPA:
MORRO (1933)
Pintura a óleo / tela (146 X 114 cm)
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
Imagem do Acervo do Projeto Portinari
Reprodução autorizada por João Cândido Portinari

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SUMÁRIO/ SUMMARY

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APRESENTAÇÃO / FOREWORD

09 Famílias, cuidados e políticas públicas


Families, care and public policies
Antonio Carlos de Oliveira e Regina Celia Tamaso Mioto
ARTIGOS / ARTICLES

23 Avanço legislativo e ampliação do conceito de família pós-Constituição


de 1988
Legislative advance and enlargement of the family concept after the
Constitution of 1988
Virgínia de Souza, Carlos Gustavo Cordeiro de Andrade Junior e Edina
Schimanschi

43 É sempre assim, tudo sou eu! Cuidado, Gênero e Famílias


It's always like this, it's all I am! Care, Gender and Families
Thamires da Silva Ribeiro

67 Família, trabalho do cuidado e uso do tempo: desafios para mulheres


de baixa renda
Family, care work and time use: challenges for low income women
Tassiane Antunes Moreira e Liliane Moser

95 Cambios y permanencias en las estrategias de cuidado infantil en el


curso de vida: un análisis de género
Changes and permanence in child care strategies in the life course: a
gender analysis
Karina Batthyány, Natalia Genta e Sol Scavino

121 Perfil das mulheres idosas cuidadoras e os fatores associados à relação


de cuidado
Profile of elderly caregiving women and the factors associated with
the care relationship
Alessandra Vieira de Almeida, Simone Caldas Tavares Mafra, Emília Pio
da Silva, Solange Kanso e Sheila Maria Doula

143 Concepções de trabalho social com famílias por parte de psicólogos em


artigos científicos
Conceptions of social work with families by psychologists in scientific
articles
Gustavo Henrique Carretero

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165 O crescimento da pobreza e os Programas de Renda Mínima voltados


às famílias: o caso italiano
The growth of poverty and the Italian minimum income program of the
family: the Italian case
Salyanna de Souza Silva e Gisele Caroline Ribeiro Anselmo

193 Benefício de Prestação Continuada - Idoso: perfil e composição familiar


dos assistidos pelo CRAS-Tapanã, em Belém-Pará
Benefit of Continuing Provision for old age: Profile and family composi-
tion of those assisted by CRAS-Tapanã, in Belém-Pará
Cilene Sebastiana da Conceição Braga, Cimara de Lima Farias e Marisa
Fernanda Pimenta

217 Atenção Domiciliar à Saúde e a centralidade dos cuidados na família:


coparticipação ou super responsabilização?
Home Health Care and the centrality of care in the family: copartici-
pation or over accountability?
Bárbara Figueiredo Santos e Márcia Regina Botão Gomes

239 Homens e Proteção Social: desafios para a Política Nacional de


Assistência Social
Men and Social Protection: challenges for the National Policy of Social
Assistance
Daniel de Souza Campos, Ludmila Fontenele Cavalcanti e Marcos
Antonio Ferreira do Nascimento

257 Entre o direito e o dever: uma reflexão sobre a exigência de


condicionalidades no Programa Bolsa Família
Between right and duty: a reflection on conditionalities requirement in
Bag Family Program
Cássia Maria Carloto e Tatiana de Oliveira Stechi

281 O Movimento de Mães do DEGASE – luta e dor


The Mothers Movement of DEGASE - struggle and pain
Ida Cristina Rebello Motta

303 Dimensão pedagógica da intervenção profissional no trabalho com


famílias
Emancipatory educational dimension of professional intervention in
work with families
Poliana de Oliveira Carvalho e Solange Maria Teixeira

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325 Deficiência e cuidado: implicações para as políticas públicas
Deficiency and caution: implications for public policies
Patrícia Maccarini Moraes
SEÇÂO LIVRE / OPEN SECTION

349 O desenho da Política Nacional de Estágio e os impasses para a sua


implementação
The drawing of the National Internship Policy and the impasses for its
implementation
Reginaldo Ghiraldelli

371 Os impactos do neoliberalismo sobre as mulheres trabalhadoras: a


esfera do cuidado e a precarização do trabalho feminino
The impacts of neoliberalism over workers women: care sphere and the
precarization of the female work
Ana Carolina Brandão Vazquez e Ana Taisa da Silva Falcão

393 Violência contra a mulher em vias públicas


Violence against women in publics streets
Isabel Maria de Oliveira Ferraz, Raquel Matos Lopes Gentilli, Maria Carlota
de Rezende Coelho e Victor Israel Gentilli
RESENHA / BOOK REVIEW

413 Trabalho com família no âmbito das políticas públicas


TEIXEIRA, Solange Maria (Org.). Trabalho com família no âmbito das
políticas públicas. Campinas: Papel Social, 2018. 244p.
Luciana Moreira de Araujo

423 Caminhos fora do silêncio: escolha, liberdade e acesso aos direitos


reprodutivos
LOLE, Ana; CORGOZINHO, Kamila Delfino S. (Org.). Gênero e Aborto:
aportes para uma interlocução necessária com o Serviço Social. 1 ed.
Rio de Janeiro: Letra Capital, 2018.
Glauber Lucas Ceara-Silva

429 NORMAS EDITORIAIS / PUBLICATIONS NORMS

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Famílias, cuidados e políticas públicas

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Families, care and public policies

Antonio Carlos de Oliveira1


Regina Celia Tamaso Mioto2

A família, nas sociedades ocidentais contemporâneas, é vista como


instância encarregada da proteção e provisão material e afetiva de
seus membros. O imaginário social está tão impregnado dessa ideia
subliminar que grupos familiares com configurações e modos de fun-
cionamento distintos, muitas vezes, são considerados potencialmente
produtores de “desajustes”.
Tendo em conta que o valor “família” é pouco discutido e, em geral,
tomado por autoevidente, uma análise que se pretenda consistente
torna necessário problematizar a construção socio-histórica de seu
sentido como necessariamente protetora e provedora de cuidados
adequados a seus membros, o que certamente importará em conse-
quências sobre processos de concepção, elaboração e implementa-
ção de políticas públicas.
A compreensão acerca das relações entre família e Estado constitui
elemento essencial para discussão das intervenções que hoje se legi-
timam, a partir do discurso de garantia de direitos, como importante
fundamento de políticas públicas. Essa discussão tem sido objeto de
estudo de diversas áreas do conhecimento, tanto em virtude da cen-
tralidade daquelas relações, no contexto de sociedades complexas,
quanto pelos deslocamentos que têm se processado entre público e
privado contemporaneamente, e que vêm contribuindo para tornar
tênues certos limites entre esses dois âmbitos da vida humana, antes
tomados como claros. Tentar compreender essa questão implica inda-

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gar os processos históricos de cada sociedade, dadas as especificida-


des nacionais na conformação das relações Estado-família.
O presente número da revista tem como proposta discutir a relação
família-Estado na sociedade brasileira contemporânea, a partir do du-
plo estatuto conferido às famílias no discurso oficial: de responsável
pela provisão de cuidados a seus integrantes e de titular de proteção
social por parte do Estado, através de políticas públicas.

De que famílias falamos

Reafirmando que o valor família é pouco discutido e frequente-


mente tomado por autoevidente, torna-se necessário problemati-
zar a construção de seu sentido como necessariamente protetora
e provedora de cuidados adequados a seus membros, bem como
suas implicações para análise de interações permeadas por violên-
cia em seu âmbito.
A utilização do plural na grafia da palavra família reafirma a admis-
são da existência de uma diversidade de arranjos como significativo
contraponto à prática recorrente de evocação de uma única imagem
idealizada de família como referência e parâmetro para se conceber
e pensar pesquisas, intervenções e políticas. Vale ressaltar a atuação
da força do habitus (BOURDIEU, 1982) – como esquema de percep-
ção, pensamento e predisposição à ação – nesse processo de reifi-
cação de um modelo que já não se mostra mais tão hegemônico no
cotidiano brasileiro contemporâneo.
Grande parte das múltiplas influências subjacentes à admissão de
tal diversidade – que, de fato, sempre se fez presente ao longo da his-
tória do País, porém invisibilizada, não reconhecida como famílias – se
deve às vicissitudes sofridas pelos papéis de gênero, os quais têm co-
nhecido celeridade e intensidade de mudanças sem precedentes. Tais
mudanças guardam relações intrínsecas com a reestruturação produ-
tiva e com os avanços tecnológicos no âmbito da reprodução huma-
na, que se desenvolvem no contexto do capitalismo contemporâneo,
fundado nas desigualdades de classe, gênero e raça/etnia.

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Apresentação 11

Focalizando tendências de transformações e permanências Durham

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(1983, p. 16), ao abordar a divisão sexual do trabalho, informa que “uma
diferenciação entre papéis masculinos e femininos [...] encontra na fa-
mília sua manifestação privilegiada”. E, em que pese a grande varieda-
de que tal divisão pode conhecer em sociedades humanas distintas, a
autora ressalta o que designa de algumas invariâncias.
Dentre tais invariâncias, uma se refere ao cuidado com as crianças
e sua socialização inicial aparecendo ainda persistentemente como
competência feminina, em consonância à nossa proposição de que a
família brasileira permanece tendo por referência a forma de organi-
zação burguesa patriarcal. Essa tendência à naturalização do papel da
mãe como cuidadora – em contraposição ao estranhamento do exer-
cício desta função pelo pai –, tal como constatada por Durham (1983),
encontra-se amplamente discutida em Badinter (1985).
Durham (1983) assinala, ainda, que o modo como estão organizadas
as relações de parentesco em nossa sociedade também contribui para
a existência de muitas diferenças entre as relações mães-filhos e pais-
-filhos, reiterando a importância da interveniência da divisão sexual
do trabalho no que se refere também às relações de parentalidade,
para além das de conjugalidade.
Estabelecendo um contraponto às invariâncias, Durham (1983)
apresenta uma análise das transformações sofridas no modelo fa-
miliar, chamando a atenção para a diversidade de arranjos alternati-
vos e de exceções ao modelo constatadas empiricamente, impondo
novos desafios à definição de famílias características de nossa so-
ciedade, tornando essa uma afirmativa prenhe de fragilidades tal a
multiplicidade efetivamente presente.
Nesse contexto, a utilização do termo “famílias”, em lugar de sua
designação no singular, implica enfatizar a necessidade de abrir mão
de uma imagem consagrada ou ideal de família, bastante presente no
imaginário social e reificada ao longo de séculos de discursos e práti-
cas de intervenção na sociedade brasileira. Dada sua força como ideia
subliminar, pode informar, inclusive, modos de fazer em pesquisas e in-
tervenções junto a famílias, sobretudo se não admitida como dimensão

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a ser considerada na construção do objeto de estudo, na utilização de


categorias de análise ou na concepção de políticas públicas. Bourdieu
(1989) contribui para a compreensão destes processos a partir de seu
conceito de capital cultural, que encerra o discurso de uma sociedade
acerca de si mesma, figurando como importante referência a confor-
mar modos de perceber, significar e agir de cada um de seus agentes.
Para enfrentamento construtivo desta pluralidade, a utilização das
relações e dos vínculos estabelecidos entre pessoas – onde se in-
cluem os conflitos que os permeiam – pode consistir em sólida alter-
nativa para definição de grupo familiar. Contudo, também aí residem
dificuldades e armadilhas, dentre as quais vale ressaltar a referente ao
trabalho de definição minimamente precisa da categoria “vínculos”. No
entanto, tal opção traz ainda a fecundidade de, em princípio, ser apli-
cável a famílias de distintos extratos socioeconômicos, superando, em
parte, a constante limitação das práticas de pesquisar quase que ex-
clusivamente famílias pobres, público preferencialmente acessado via
políticas públicas, e em especial na política de assistência social. Por
essas razões, torna-se fundamental e necessária a desnaturalização
dos reificados papéis parentais quanto aos cuidados com filhos e fi-
lhas; outra dimensão da vida cotidiana contemporânea que, apesar de
concretamente conhecer crescente participação masculina, persiste
tendo por referência um forte estranhamento diante desta realidade,
como se dissonante do ideal a ser perseguido pelas famílias.
Pelo que possui de potencial de significativa redução das con-
dições de possibilidade de estranhamento daquilo que adquire es-
tatuto de obviedade – na dinâmica específica das intervenções em
famílias a partir da perspectiva de proteção social –, tal referência
idealizada de família termina concorrendo para fundamentar práti-
cas que resultam em fragmentação do grupo familiar, moralização de
práticas e culpabilização dos usuários.
Na abordagem da divisão sexual dos cuidados em âmbito familiar,
a discussão acerca das relações de gênero e geração – com a trans-
formação de diferenças em desigualdades de poder – consiste em um
ponto de relevância para compreensão dos processos de distribuição
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Apresentação 13

e prevalência do poder entre as diversas faixas etárias, igualmente in-

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cidindo sobre a atribuição de responsabilidades e obrigações.
As dimensões de gênero e geração podem ser consideradas fun-
dantes na construção das relações de poder intrafamiliares, o que se
mostra particularmente importante face às mudanças nos arranjos
familiares e papéis parentais, que coexistem nas famílias na contem-
poraneidade. Tais aspectos exercem significativa influência sobre as
formas de comunicação familiar, bem como quanto à distribuição e
uso do poder em suas relações internas.
A partir da análise de resultados do survey “Gênero, trabalho e família
em perspectiva comparada”, Araújo e Scalon (2003) discutem a dimen-
são de gênero e a divisão sexual do trabalho com base em percepções
e atitudes de mulheres e homens sobre a conciliação entre trabalho re-
munerado e tarefas de âmbito doméstico. Dentre seus múltiplos acha-
dos, na presente discussão destacamos particularmente a conclusão de
que, em que pesem as inúmeras mudanças havidas com a crescente
inserção das mulheres no mercado de trabalho remunerado, estas con-
tinuam responsáveis pelo suprimento de cuidados no âmbito da família,
a qual persiste “como espaço de produção material e de produção sim-
bólica da vida cotidiana” (ARAÚJO; SCALON, 2003, p. 20).
Em uma abordagem histórica, Rocha-Coutinho (2006) chega a con-
clusões semelhantes, igualmente assinalando o declínio da autorida-
de paterna e a valorização do papel de mãe na família brasileira, com
significativas alterações nas trocas intergeracionais, cada vez mais ne-
gociadas e menos naturalizadas. Isso também poderá ter importantes
consequências nas relações abusivas envolvendo pessoas idosas.
De maneira um pouco diferente, tanto em termos de percepções
como de atitudes, Araújo e Scalon (2003) constatam maiores mudan-
ças entre os pais (homens) no que se refere ao compartilhamento dos
cuidados com a prole, ainda que permaneçam preponderantes aque-
las atividades que envolvem menos contato físico e que dizem respei-
to ao âmbito público da vida dos filhos, como educação formal e lazer.
Wainerman (2002) também faz coro a estes achados, ao discutir os
homens na família. Tendo em conta a divisão sexual do trabalho, os

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dados de sua pesquisa também informam que o cuidado com filhos é


onde se dá menor assimetria de gênero na família, embora ainda signi-
ficativa. Ou seja, homens estão mais comprometidos com os filhos que
com o lar. Dito de outra forma, estas diversas autoras enfatizam que os
dados de suas pesquisas – tanto quantitativa como qualitativamente
– permitem dizer que a clivagem geracional tem se mostrado bem me-
nos resistente a mudanças que a de gênero. Resta indagar se processos
semelhantes se configuram ou não em relação ao cuidado de idosos.

Relações família-Estado

Em relação às transformações que se põem em curso na relação en-


tre famílias e operadores de políticas públicas, alguns aspectos se tornam
especialmente relevantes. Quando na composição familiar há crianças e
adolescentes, um deles diz respeito à sobrecarga objetiva e subjetiva que
recai sobre as mães tanto no provimento de cuidados adequados a seus
filhos como no processo de reorganização familiar decorrente de qualquer
violação de direitos de sujeitos daqueles segmentos etários. Essa conse-
quência em muito se deve à conformação do papel de mãe, tal como
historicamente construído e que atua de maneira a fazer com que essas
mulheres venham a sentir como sendo de sua inteira responsabilidade
dar conta da proteção de sua prole, ainda que o suporte externo para sua
consecução não se mostre disponível, ou seja, insuficiente. Essa constru-
ção histórica do papel das mulheres na organização familiar consiste em
importante lacuna a denunciar tensões presentes nas relações estabele-
cidas entre família e Estado no Brasil, em muito perpassadas e demarca-
das pelos lugares e papéis de gênero tais como erigidos na conformação
societária brasileira, inclusive em relação aos cuidados com idosos – ain-
da que com especificidades outras. O capital cultural sobre o exercício
do lugar de mãe e de filha tende a atuar no sentido de reforçar o impacto
emocional produzido sobre as mulheres que, muitas vezes, terminam por
significar como sua a culpa pela ocorrência de violações de direitos por
terceiros e de sua manutenção. Por vezes, os juízos de valor manifestados
por alguns operadores de políticas públicas sobre sua performance no

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Apresentação 15

exercício dos papéis materno e filial resultam em expressivo desgaste em

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sua tentativa de reorganização familiar.
Decerto que a intervenção de agentes externos a fim de regular o
exercício arbitrário do poder familiar, com vistas a salvaguardar o di-
reito de alegadas vítimas à integridade física e psíquica, constitui-se
em medida legítima e pertinente, em consonância ao ordenamento
jurídico e social brasileiro. Contudo, essa dimensão da intervenção,
embora muito necessária, não constitui resposta suficiente às famílias
que buscam suporte externo para equacionamento de conflitos, cujo
manejo escapa à utilização de seus próprios recursos internos.
Nesse sentido e dada sua efetividade na potencialização de recur-
sos familiares empregados em seu processo de reorganização após
alegação de violência intrafamiliar, torna-se importante destacar a
necessidade de ampliação da intervenção de operadores de políticas
públicas para além da produção de subsídios para cumprimento dos
objetivos institucionais nas tomadas de decisão e determinação de
medidas e encaminhamentos – em que pesem as pressões externas
exercidas por segmentos do Sistema de Garantia de Direitos (SGD) –,
priorizando o processo de acompanhamento familiar na elaboração
de conflitos trazidos à tona no primeiro momento das intervenções.
Essa é uma dimensão muito própria às intervenções profissionais jun-
to a famílias e que precisa ser crescentemente valorizada e qualificada.
Dessa produção de sentidos depreende-se a imprescindibilidade de
ações de proteção e responsabilização pautadas na interdisciplina-
ridade e na intersetorialidade, apesar de condições de trabalho que
pouco as favoreçam nas práticas cotidianas.
Uma referência que pode auxiliar no processo de compreensão da
dinâmica na qual se quer intervir consiste no desafio de pensar a fa-
mília no conjunto das relações sociais do capitalismo contemporâneo.
Compreender a família em sua complexidade significa entender o
lugar ocupado por cada um na conformação de lealdades, sua posição
relativa na promoção e manutenção da coesão familiar e sua contri-
buição para o rompimento ou reordenamento dos vínculos e relações,
considerando ainda os processos e formas de significação desses pa-

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16 Antonio Carlos de Oliveira e Regina Celia Tamaso Mioto

péis pelos integrantes da família e sua posição na ordem societária


mais ampla em que se insere.
No trabalho realizado junto a famílias, apresenta-se o desafio de
promover o deslocamento de imagens congeladas, reificadas e es-
sencializadas na direção de uma concepção acerca de todos os in-
tegrantes da família como titulares de direitos, o que constitui uma
das condições de possibilidade para escapar dos limites impostos a
intervenções centradas na construção histórica dos papéis de gênero.
Por fim, apesar de seu inegável papel de guardião de direitos de
sujeitos em condições de desigualdade nas relações de poder intrafa-
miliares, profissionais integrantes de equipes de programas e serviços
públicos não precisam ter como objetivo central a tentativa de regula-
ção de suas formas de interação, partindo do suposto de que existam
parâmetros precisos de organização e dinâmica familiares. É impor-
tante aceitar que nenhum profissional “inaugura” a vida familiar com
sua entrada. A intervenção em tais casos, ao considerar o contexto
macrossocial, os processos internos, a história familiar, seus próprios
modos de regulação, seus recursos, sua capacidade de resiliência e
sua potencialidade para superação de crises pode contribuir para uma
interação família-Estado menos perversa e mais informada pelo reco-
nhecimento dos deveres deste último e da valorização da pluralidade.
Buscando contribuir para qualificação do debate, este número da
Revista O Social em Questão está composto por artigos que se articu-
lam em torno da temática da família enfatizando conceitos, o cuidado
como uma questão contemporânea, ainda intrinsicamente relaciona-
do à família e a incorporação da família no âmbito das políticas públi-
cas. A edição é aberta com o texto “Avanço legislativo e ampliação do
conceito de família pós-Constituição de 1988” que aborda o cenário e
os atores envolvidos no processo da constituinte e demarca a reper-
cussão que este teve na sociedade e nas famílias brasileiras, especial-
mente a partir da ampliação do conceito de família.
A esse texto inaugural segue um conjunto de artigos que tratam da
questão dos cuidados. Com o “É sempre assim, tudo sou eu! Cuida-
do, Gênero e Famílias” realiza-se uma discussão conceitual sobre a
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Apresentação 17

matéria enfatizando sua transversalidade no campo científico e seus

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rebatimentos nas famílias. A análise é pautada no debate das rela-
ções desiguais de gênero, sendo o cuidado o elemento estruturante
do lugar do feminino no campo da reprodução social da vida. Dessa
forma, ancorada na economia do cuidado a autora postula o cuidado
como trabalho e, portanto, a necessidade de reconhecer seus custos
e colocá-lo no circuito do valor. Além disso, reconhece-o como di-
reito a ser garantido para famílias a fim de avançar em relações mais
equitativas de gênero. Essa discussão avança com o artigo “Família,
trabalho do cuidado e uso do tempo: desafios para mulheres de bai-
xa renda”, que problematiza os desafios que se apresentam para as
mulheres, sobretudo para as de baixa renda, na tentativa de conciliar
as responsabilidades familiares e as demandas do trabalho remune-
rado, a partir do estudo de famílias usuárias da Política Nacional de
Assistência Social em Florianópolis/SC. Com base nesse estudo, as
autoras analisam como estas famílias se organizam em relação ao uso
do tempo de maneira a articular as responsabilidades entre trabalho
remunerado e trabalho não remunerado, sobretudo nas tarefas que
dizem respeito ao cuidado. Com isso reafirmam a tese que a ausên-
cia e/ou oferta limitada de serviços dificultam ou retardam a entrada
das mulheres no mercado de trabalho, produzindo tensionamentos e
demandas para as políticas sociais. Ainda na perspectiva de proble-
matizar e dar visibilidade a questão do cuidado e as implicações das
mulheres no cuidado, o texto “Cambios y permanencias en las estra-
tegias de cuidado infantil en el curso de vida: un análisis de género”
apresenta estudo realizado no Uruguai para conhecer como são as
estratégias de cuidado infantil a partir da criação de uma tipologia
de estratégias de cuidado. Uma tipologia que permite conhecer os
níveis de familismo na população com crianças de 0 a 6 anos de ida-
de com base nos dados da Encuesta de Nutrición, Desarrollo Infantil
y Salud. A análise dos dados demonstra que, apesar do Uruguai ser
pioneiro na América Latina no desenvolvimento do Sistema Nacional
Integrado de Cuidados, persiste sérias dificuldades para o usufruto
do direito ao cuidado e com isso se perpetua para as mulheres uma

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cidadania de segunda categoria. Em seguida, reforçando a ideia do


cuidado como uma tarefa essencialmente feminina o trabalho “Perfil
das mulheres idosas cuidadoras e os fatores associados à relação
de cuidado” descreve o perfil socioeconômico pessoal das cuidado-
ras e dos idosos dependentes, identificando os fatores associados
à relação de cuidado e as representações sociais acerca da mesma.
Tal descrição é realizada a partir de entrevistas com 24 cuidadoras e
analisada com base na Teoria das Representações Sociais, destacan-
do-se que os fatores socioeconômicos e pessoais das cuidadoras
podem influenciar na relação de cuidado e em suas representações.
Para fechar esse bloco dois outros trabalhos se destacam por trata-
rem da demanda de cuidados por parte de idosos e deficientes no
plano das políticas públicas. O texto “Deficiência e cuidado: implica-
ções para as políticas públicas” amplia o debate ao colocar em pauta
a articulação entre deficiência, cuidado e políticas públicas, analisan-
do a incorporação do cuidado às pessoas com deficiência nas políti-
cas de assistência social e saúde. Partindo do conceito de deficiência
proposto pelos teóricos do modelo social que a tratam como cons-
tituinte da condição humana, o cuidado a essas pessoas é assumido
como uma necessidade social que exige respostas públicas. Dessa
forma contesta-se a tradição cultural brasileira de insistir na família
como provedora principal de cuidados e propõe-se reconhecer o
cuidado como um direito social, o que implica no deslocamento de
responsabilidade do espaço privado para a esfera pública. Com esse
artigo abre-se o leque de textos que tratam das relações entre famí-
lia e políticas públicas, analisando diferentes planos dessas relações.
No primeiro momento apresentam-se alguns textos que dialogam
com as tendências contemporâneas da proteção social e problema-
tizam questões acerca das relações que se estabelecem nos proces-
sos de incorporação das famílias na política pública. Assim, o texto
“O crescimento da pobreza e os Programas de Renda Mínima volta-
dos às famílias: o caso italiano” analisa o processo de transmutação
das políticas de proteção social no contexto de crise do capital em
sua fase financeirizada, a partir de um estudo bibliográfico e docu-
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Apresentação 19

mental sobre o desenvolvimento do welfare italiano. Com a análi-

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se do material as autoras chamam atenção para a generalização de
programas de renda mínima atualmente nos países europeus, reafir-
mando as tendências de reforço do familismo e de “monetarização
dos direitos sociais”. Apontam também que tem havido o crescimen-
to dos índices de desigualdade e pobreza e que a forma fragmentada
e seletiva como está sendo implementada a política de assistência
social, reforçando elementos da formação social e estes acabam se
constituindo em obstáculos para a defesa de uma política homogê-
nea e universal. Após a discussão do desenvolvimento generalizado
dos programas de renda mínima na Europa e especialmente na Itália,
o estudo “Benefício de Prestação Continuada - IDOSO: Perfil e com-
posição familiar dos assistidos pelo CRAS Tapanã em Belém-Pará”
trata de um dos programas mais importantes da política de assis-
tência social brasileira. Analisa o perfil e as configurações familiares
dos idosos que recebem Benefício de Prestação Continuada (BPC) e
são assistidos pelo Centro de Referência de Assistência Social (CRAS)
Tapanã no município de Belém-Pará. Seus resultados revelam um
número elevado de idosos provedores/chefes de famílias que sus-
tentam e/ou complementam o orçamento familiar.
Numa perspectiva de problematizar questões vinculadas à incorpo-
ração da família na política social se apresenta o texto “Atenção Domici-
liar à Saúde e a centralidade dos cuidados na família: coparticipação ou
super responsabilização?” que tem como contexto a política de saúde.
Problematiza o fato do desenvolvimento das tecnologias proporcionar
um prolongamento significativo na perspectiva de vida das pessoas
com condições crônicas complexas de saúde, trazendo à tona exigên-
cias de cuidado. Dentre as possibilidades de cuidado apresenta-se a
atenção domiciliar como proposta na política de saúde, que vem se
configurando como alternativa ao modelo hospitalar hegemônico, num
movimento considerado contraditório. Para a autora, se por um lado
tal proposta pode favorecer os usuários dos serviços, por outro pode
sobrecarregar as famílias que aderem a esse tipo de programa e esta
contradição constitui o cerne de sua discussão. Ainda problematizando

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questões acerca da incorporação da família nas políticas públicas estão


os artigos “Homens e Proteção Social: desafios para a Política Nacional
de Assistência Social” e “Entre o direito e o dever: uma reflexão sobre a
exigência de condicionalidades no Programa Bolsa Família”. O primei-
ro deles tendo como referência Política Nacional de Assistência Social
(PNAS) constrói um diálogo entre os estudos sobre relações de gêne-
ro, masculinidades e proteção social. Nesse diálogo reconhece o papel
e a importância, historicamente construídos, das mulheres na gestão
das famílias. Contudo, alerta que pensar os homens como sujeitos da/
na política de proteção social constitui um desafio, sendo estratégico
enfrentar a sua (in)visibilidade no acesso aos programas da assistência
social. O segundo debate como as condicionalidades do Programa Bol-
sa Família (PBF) vêm sendo entendidas e administradas pelos técnicos,
beneficiários e representantes das políticas de educação, saúde e as-
sistência social. Os dados que embasam essa análise são de uma pes-
quisa realizada no município de Londrina-PR e suas conclusões indi-
cam a persistência da perspectiva familista; da meritocracia; do direito
e dever como sinônimos; da estigmatização e do preconceito sofridos
pelo beneficiário (a) do PBF, como ingredientes do processo de imple-
mentação das diferentes políticas setoriais.
Para ampliar as possibilidades de compreensão acerca das múl-
tiplas faces que as relações família e política social podem assumir
apresenta-se o trabalho “O Movimento de Mães do DEGASE – luta e
dor”. Trata-se de uma pesquisa desenvolvida no ano de 2017, referente
ao Movimento de Mães que se organizaram ao longo das duas últimas
décadas, a partir da dor, do sofrimento de terem seus filhos acusados
de autores de atos infracionais e que enfrentam a dura realidade das
instituições fechadas. Famílias que fazem parte de uma parcela da po-
pulação que vivencia a desigualdade econômica e social, possuindo
gênero, raça, cor e com um acesso restrito às políticas públicas.
Para fechar o circuito de discussões sobre famílias, cuidados e
políticas públicas dois textos aparecem para tratar de atores funda-
mentais na construção das relações entre as políticas públicas e seus
usuários, através dos serviços sociais, que são os profissionais. Nesse
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Apresentação 21

contexto o artigo “Dimensão pedagógica da intervenção profissional

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no trabalho com famílias” analisa o Trabalho Social com Família (TSF)
na PNAS. As autoras afirmam a forma contraditória como se constrói
o TSF considerando o jogo de forças e interesses que envolvem toda
política pública. Por essa razão torna-se um desafio para o assisten-
te social. Apesar de ser guiado por um projeto profissional crítico e
libertador, tem sua ação emancipadora limitada por um conjunto de
questões referentes à modelação que as políticas públicas assumem,
especialmente, a partir das reformas neoliberais. Em suma, discu-
tem os limites e possibilidades do alcance da emancipação a partir
do trabalho social com famílias. Finalizando, o texto “Concepções de
trabalho social com famílias por parte de psicólogos em artigos cien-
tíficos” reflete sobre as concepções de trabalho social com famílias
de psicólogos e destaca duas concepções sobre trabalho social com
famílias que emergiram do estudo. Uma tradicional, voltada à clíni-
ca individualizante, moralista e liberal que adota práticas adaptativas
das famílias à sociedade capitalista. Outra, denominada crítica, que
aponta concepções e práticas que visam promover crítica e mudan-
ças na realidade social. Na sua conclusão destaca que o termo traba-
lho social com famílias é polissêmico e dialético, enquanto conceito,
pois pode denotar tanto práticas adaptativas, como críticas.
Esperamos que esse conjunto de artigos, articulando de distintas
formas a análise sobre as temáticas da família, do cuidado e das polí-
ticas públicas, possa contribuir para a qualificação do debate das rela-
ções família-Estado no campo da democracia e da justiça social.

Referências
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bre a conciliação entre família e trabalho pago no Brasil. In: ARAÚJO, C.;
SCALON, C. (Org.). Gênero, família e trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: FGV/
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Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica de Argentina, 2002. p. 199-244.

Notas
1 Psicólogo e Doutor em Serviço Social. Professor Adjunto do Departamento de
Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
e líder do Grupo de Pesquisa do CNPq “Famílias, Violência e Políticas Públicas”.
Brasil. ORCID: 0000-0001-8854-6195. E-mail: antoniocarlos@puc-rio.br

2 Assistente Social e doutora em Saúde Mental. Professora do Programa de Pós-


-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
e membro do Grupo de Pesquisa do CNPq “Núcleo de Pesquisa Interdisciplinar
Sociedade, Família e Políticas Sociais (NISFAPS)”. Brasil. ORCID: 0000-0002-
8933-727X. E-mail: regina.mioto@pq.cnpq.br

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Avanço legislativo e ampliação do conceito de

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família pós-Constituição de 1988
Virgínia de Souza1
Carlos Gustavo Cordeiro de Andrade Junior2
Edina Schimanski3

Resumo
A Constituição Federal de 1988 marca a trajetória democrática brasileira. Diante dis-
to, este artigo discutirá sobre os avanços que ocorreram a partir deste aparato legal,
quanto à ampliação do conceito de família. Para tanto, apresentará o acontecimento
histórico que repercutiu de forma significativa na sociedade brasileira, bem como nas
famílias em geral. Destacará os atores e a correlação de forças que se estabelece-
ram neste processo histórico brasileiro. Para o desenvolvimento do artigo utilizou-se
como metodologia a revisão bibliográfica. Verificou-se o cenário e os atores envol-
vidos no processo, observando-se o conflito de poderes que margearam o aconte-
cimento, havendo ao final do processo avanços com relação à concepção de família.

Palavras-chave
Família; Constituição Federal; Constituinte.

Legislative advance and enlargement of the family concept after the Constitution
of 1988

Abstract
The Federal Constitution of 1988 marks the Brazilian democratic trajectory. In view
of this, this article will discuss the advances that occurred from this legal appara-
tus, regarding the enlargement of the concept of family. To do so, it will present the
historical event that had significant repercussions on Brazilian society, as well as on
families in general. It will highlight the actors and the correlation of forces that have
established themselves in this Brazilian historical process. For the development of
the article, the bibliographical review was used as methodology. It was verified the
scenario and the actors involved in the process, observing the conflict of powers
that bordered the event, having at the end of the process, advances in relation to the
conception of family.

Keywords
Family; Federal Constitution; Constituent.

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24 Virgínia de Souza, Carlos Gustavo Cordeiro de Andrade Junior e Edina Schimanski

Artigo recebido: agosto de 2018


Artigo aprovado: outubro de 2018

Introdução
A família constitui-se o primeiro núcleo social no qual o indivíduo
inicia seu processo de socialização, porém, a família como se enten-
de na contemporaneidade, não se estabeleceu de maneira única em
todas as civilizações, sofrendo mudanças ao longo do tempo e das
culturas (REIS, 2006).
A partir desta definição, pretende-se analisar o tema família, es-
pecificamente a família brasileira destacando a Constituição Federal
de 1988 (CF/1988). Para tanto, faremos um breve resgate histórico de
como era constituída a família no Brasil, anterior a esse aparato legal,
sendo apresentadas algumas particularidades que influenciaram no
processo de promulgação da CF/1988. Trataremos sobre os atores e as
correlações de forças que se deram neste momento histórico brasi-
leiro, que culminou em avanços com relação aos direitos sociais e em
destaque a ampliação do conceito de família.
O presente artigo destaca, num primeiro momento, o Brasil Colônia
e a constituição da família patriarcal, posteriormente enfoca a famí-
lia nuclear e a forte discriminação dos relacionamentos extraconju-
gais. Nos anos 1960/70, alguns fatores alteram substancialmente os
padrões sociais de família no Brasil e com eles, houve também uma
modificação substancial na própria lei posteriormente.
No processo de democratização do País, mudanças sociais, econô-
micas e políticas ocorreram diante da mobilização popular. O artigo,
aqui empreendido, procura destacar essa trajetória e os avanços legis-
lativos com relação à ampliação do conceito de família após a CF/1988.

Família brasileira – particularidades no cenário nacional


No Brasil, o período de colonização configurou-se em um momento
de solidificação da família patriarcal brasileira. Este núcleo familiar era

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Avanço legislativo e ampliação do conceito de família pós-Constituição de 1988 25

constituído do patriarca, sua mulher, filhos e netos que formavam um

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grupo principal, e, como núcleo secundário, tinha-se um grupo for-
mado por agregados, parentes, serviçais, filhos ilegítimos e escravos.
O patriarca responsabilizava-se pela defesa da honra familiar, detinha
propriedades rurais e influência política, e sua autoridade era exercida
a todos que se encontrassem sob seu domínio (ALVES, 2009).
A responsabilidade pela manutenção da família pertencia à figura
masculina, como também a aquisição de riquezas. “A certeza da pa-
ternidade se tornava essencial na manutenção dos bens familiares [...]”
(SCHIMANSKI, 2014, p. 23). Com relação aos escravos, formavam suas
famílias no interior das senzalas (ALVES, 2009). O matrimônio restrin-
gia-se a elite branca, pois demonstrava estabilidade social.
No que diz respeito ao papel do Estado, segundo Alves (2009), este
deveria estar acima das questões familiares. Os governantes sabiam
que essa família exclusivista era, por sua vez, o sustentáculo do Esta-
do, pois impedia que a população, tão escassa, se diluísse neste imen-
so País, de proporção territorial gigantesca.
A família patriarcal era, portanto, a espinha dorsal da sociedade,
desempenhando o papel de procriação, administração e direção polí-
tica (ALVES, 2009). Entretanto, o modelo de família patriarcal não era
único, pois a cultura e a condição social influenciaram no modo de
constituir a família. Neste momento, mudanças históricas, políticas e
sociais iniciam-se no País, dando espaço para a família nuclear brasi-
leira ou família burguesa (SCHIMANSKI, 2014).
Neste período, segundo Yazbek (2005), a assistência às famílias mais
empobrecidas era realizada pela Igreja, principalmente pelas Santas
Casas de Misericórdias, na distribuição de esmolas, providências de
caixões para os mortos e ofertas de dotes para os órfãos. Esse modelo
vai ampliar-se nos séculos seguintes com ação de outras ordens re-
ligiosas que ofereciam ajuda material às famílias mais empobrecidas.
Segundo Schimanski (2014), a função social da família sofre altera-
ções e vai deixando para trás seu caráter de procriação, o qual tinha a

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26 Virgínia de Souza, Carlos Gustavo Cordeiro de Andrade Junior e Edina Schimanski

hereditariedade e os laços de sangue como valores basilares. A partir


daí há um sentimento de valorização dos laços afetivos e de proteção
social e econômica, dos membros da instituição familiar, independen-
te da configuração familiar.
Dentre as mudanças ocorridas na sociedade e no núcleo fami-
liar, emerge-se o modelo nuclear de família, composto pelo pai,
mãe e filhos, situação que reduziu o tamanho das famílias, bem
como demonstrou sua importância no processo de formação da
sociedade brasileira.
A dedicação ao trabalho, fora do espaço doméstico, trouxe uma
diminuição da autoridade paterna, tendo em vista que o campo de
trabalho no início do século XX foi um período de transformação da
economia rural para a urbano/industrial, de forma que muitos traba-
lhadores aderiram a este modelo econômico que se instalava. Nesse
cenário, a mulher responsabilizava-se pela administração do lar, cui-
dando da casa e educando os filhos. Nas camadas mais elitizadas a
mulher dedicava-se ao lar, porém, nas famílias mais empobrecidas,
as mulheres conciliavam as atividades familiares com o trabalho nas
fábricas e/ou como doméstica para contribuir com as finanças da
família (ALVES, 2009).
Com o aumento dos postos de trabalho, na segunda metade do
século XX, há transformações na sociedade, como também transfor-
mações familiares, havendo uma individualização nas relações sociais,
o enfraquecimento dos laços de parentesco, o controle sobre a natali-
dade, entre outros (ALVES, 2009).
Registre-se que nesta época, desde antes do Estado tomar para si
a incumbência de celebrar matrimônios (função da Igreja exclusiva-
mente, outrora), o casamento era a única forma de constituição fami-
liar legítima, sendo as relações fora do casamento entendidas como
concubinato (ANDRADE JR., 2016).
Havia, assim, uma forte discriminação por parte do Estado, com re-
lação aos relacionamentos extraconjugais, então com respaldo social

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Avanço legislativo e ampliação do conceito de família pós-Constituição de 1988 27

de uma sociedade altamente conservadora e diante dos interesses

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da Igreja Católica, o que gerava percalços e injustiças aos integrantes
desta relação e à sua prole. Neste sentido:

Durante muito tempo nosso legislador viu no casamento a úni-


ca forma de constituição de família, negando efeitos jurídicos à
união livre, mais ou menos estável, traduzindo essa posição em
nosso Código Civil do século passado. Essa posição dogmática,
em um País no qual largo percentual da população é historica-
mente formado de uniões sem casamento, persistiu por tantas
décadas em razão de inescondível posição e influência da Igreja
Católica. (VENOSA, 2014, p. 37).

Ainda, Stolze e Pamplona Filho (2011, p. 408) dizem que “a união


livre simplesmente não era considerada como família e a sua concep-
ção era de uma relação ilícita, comumente associada ao adultério e
que deveria ser rejeitada e proibida.”
A mulher, na época do Código Civil de 1916, era, via de regra, do-
méstica e dependia, portanto, de sustento familiar, seja por laços bio-
lógicos ou matrimoniais. Com a dissolução dos vínculos da união es-
tável, esta não teria direito a alimentos por não ser reconhecida essa
união como uma família. A solução dos tribunais foi a de concessão
de alimentos camuflados como indenização por serviços domésticos
prestados (DIAS, 2015).
Cite-se, também, que a união estável, então concubinato, era tra-
tada somente com decisões judiciais esparsas e algumas poucas con-
cessões legais até o advento da CF/1988, ainda com forte ranço dis-
criminatório. Importante ressaltar que o comportamento familiar nem
sempre se adequa às normas de um ordenamento jurídico, vindo o
fato social primeiro, com a posterior edição de leis, como ocorreu com
a união estável (GLANZ, 2005).
A partir do final da década de 1960 presenciou-se o avanço na
igualdade entre os sexos e o aumento de separações, mormente pela
instituição dos institutos da separação e do divórcio, em 1977 com a
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Lei 6.515/1977, pois não se assegurou mais relacionamentos insatis-


fatórios, havendo agora a possibilidade de rompimento destes laços.
Segundo Schimanski (2014), nos anos 1970 mudanças ocorreram no
interior das famílias, a pílula anticoncepcional foi um dos fatores que
contribuiu para essas mudanças. Para a autora, a propagação da pílula
anticoncepcional trouxe a separação entre a sexualidade e a reprodu-
ção (a maternidade torna-se uma opção da mulher).
Já nos anos 1980/90, a descoberta das fertilizações “in vitro” e as in-
seminações artificiais, possibilitaram a separação entre gravidez e re-
lação sexual entre homens e mulheres. Para Schimanski (2014), todos
esses fatores alteraram substancialmente os padrões sociais de família
no Brasil e com eles, houve também uma modificação substancial na
própria lei (maior severidade nos casos de pensão alimentícia).
Quanto às medidas de proteção do Estado sobre a família, esta pas-
sa pelo controle de natalidade nas décadas de 1960/70, por meio de
políticas de planejamento familiar, na qual a ideia de uma superpopu-
lação poderia desencadear crises no País, de modo que as orientações
que seguiram eram da redução no número de filhos (TEIXEIRA, 2010).
Desta maneira, buscou-se um modelo de família que fosse adaptado
ao desenvolvimento socioeconômico do País.
Conforme Lemos e Vasco (2012), a busca por sustentação política do
regime ditatorial evidenciaram ações do perfil autoritário e limitado ao
que se refere aos direitos sociais. “No entanto, toda essa repressão não
impediu totalmente a organização dos movimentos sociais que foram
ganhando força à medida que o governo militar não vinha cumprindo
suas promessas que garantissem sua legitimidade e o apoio da popula-
ção, principalmente a classe média” (LEMOS; VASCO, 2012, p.26).
Nessa perspectiva, o período conhecido como ditatorial desenvol-
veu ações com base no paradigma da patologia social, com práticas
moralizantes de dimensão disciplinadora e normatizadora, na qual a
família era vista como incapaz e desestruturada, caso não seguissem o
padrão estabelecido (TEIXEIRA, 2010).

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Avanço legislativo e ampliação do conceito de família pós-Constituição de 1988 29

No final da década de 1970 e início de 1980 o regime militar jun-

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tamente com o “milagre econômico” transparecem sinais de esgo-
tamento, o que contribuiu para o futuro alargamento das entidades
legalmente reconhecidas como família. As condições de vida da po-
pulação agravaram-se de modo que ressurgem os movimentos so-
ciais reivindicatórios com força intensificada. Movimentos das fave-
las, de luta por creches e em prol do transporte coletivo, são alguns
dos inúmeros movimentos organizados que promoveram mobiliza-
ção social (RIZOTTI, 2001).
A “década perdida” – termo utilizado para evidenciar o período re-
cessivo de 1980 – acarretou inúmeros prejuízos à população brasileira,
tais como: a queda na atividade industrial, a desestabilização do real,
o acelerado crescimento do desemprego, altos índices inflacionários,
entre outros. Assim ocorre, “[...] a geração de uma importante crise fis-
cal que tornava ainda mais precária a manutenção das políticas sociais
conduzidas pelo Estado” (RIZOTTI, 2001, p.50).
Pode-se dizer que algumas das razões que levaram ao golpe militar
em 1964 (inflação alta e estagnação econômica), agora ressurgiam e
com uma força ainda maior, o que forneceu bases para a transição
política (KINZO, 2001).
Segundo Rizotti (2001), a reivindicação de democracia política sur-
gia pela primeira vez na história do País, e consistia num instrumento
para o resgate das desigualdades sociais brasileiras. O embate pela
democracia e pelo fim do regime militar mostrou-se alternativa possí-
vel para a sociedade que almejava reverter o quadro da desigualdade
e resgatar as condições dignas de bem-estar social. Para Rizzoti (2001),
o papel central desempenhado pelos movimentos sociais no contexto
da transição para a democracia, constitui na afirmação de direitos so-
ciais e permitiu a incorporação dos estratos excluídos da sociedade à
arena da negociação política. Neste cenário, surgem novos atores na
formação da agenda governamental – os movimentos sociais. Conco-
mitantemente, o movimento pelas “Diretas Já” mobilizou a população

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em prol de eleições presidenciais diretas, mas somente no final da dé-


cada de 1980 que a população volta a escolher seus representantes e
tem-se um retorno gradual à democracia.
Em 1987 inicia-se, então, o processo constituinte, marcado pela de-
mocratização e participação da sociedade o que culminou na elabora-
ção da CF/1988, conhecida como “Constituição Cidadã”.

Constituição Federal de 1988: ampliação do conceito de família


A CF/1988 garantiu direitos fundamentais, individuais, coletivos, so-
ciais, políticos, entre outros. Reconheceu-se a igualdade entre homens
e mulheres, direitos à educação, trabalho, lazer, alimentação, saúde,
segurança, moradia, cultura, etc. Com a CF/1988, a família passou a
ser considerada a base da sociedade, conforme esculpido no art. 226.
A importância da família4 é justificada pelo fato de que esta é o am-
biente no qual a pessoa nasce e, na tenra idade, aprende um conjunto
de normas, regras, valores e ações apropriadas de um indivíduo den-
tro de uma determinada cultura. É o que se chama de socialização
primária, pela ciência da Sociologia (DURKHEIM, 2011).
Voltando nossa análise para a CF/1988, o artigo 226 ampliou o que se
pode dizer que é uma família no Brasil. Com efeito, a Constituição de 1969
era clara ao dizer, no artigo 175, que a família era única e exclusivamen-
te constituída pelo casamento. A atual Constituição acrescenta-se que
esta é base da sociedade e merecedora de proteção estatal, bem como
reconheceu a união estável e as famílias monoparentais (formadas por
qualquer ascendente, com seu descendente) como entidades familiares,
sendo que é consenso na doutrina jurídica que este rol de famílias citadas
é meramente exemplificativo (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011).
Neste contexto é possível vislumbrar novas configurações familia-
res, como exemplo, as famílias homoafetivas. Destarte, houve, entre
estas Constituições, a supressão da antiga expressão “constituída pelo
casamento”, a qual segundo Genofre (2006, p. 98) “[...] acarretava in-
justiças, sobretudo, às mulheres em situação irregular [...]”.
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Avanço legislativo e ampliação do conceito de família pós-Constituição de 1988 31

Na verdade, a CF/1988 representou um marco com relação ao con-

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ceito de família, não só neste ponto da união estável, mas também com
relação à garantia do “status” de família à situação em que a criança
está sob a guarda de qualquer um dos pais. Logo, falar em famílias é
falar em diversidade e não apenas de uma forma singular, mas de uma
forma plural. Diante disto, estudar as famílias é falar também de uma
das diversidades existentes dentre tantos arranjos familiares possíveis.
Para Costa (2006), a CF/1988 criou um Estado de Direito com
responsabilidades sociais, porém, estas conquistas ocorreram
em meio a uma crise fiscal e política do Estado. Acrescenta que a
Constituição nasceu num contexto histórico muito peculiar, pois,
enquanto na Europa e nos Estado Unidos havia uma luta pelo des-
mantelamento do Estado de Bem-Estar Social, no Brasil lutávamos
por empreender uma mudança no Estado com ênfase na proposta
de direitos sociais (COSTA, 2006).
Indo neste rumo, a Seguridade social passa a ser constituída pelo
tripé: Saúde, Previdência Social e Assistência Social. No campo da As-
sistência Social a Política Nacional da Assistência Social (PNAS) dire-
ciona a família enquanto entidade o seu foco e propõe essa instituição
como núcleo capaz de oportunizar autonomia para o indivíduo e mos-
tra-se como vertente de proteção social. Nessa política encontra-se
também a gestão do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), o
qual teve seu pacto firmado em 2005.
O processo de gestão do SUAS dispõe sobre eixos estruturantes. O
eixo matricialidade sociofamiliar destaca-se no âmbito da PNAS. Esta
ênfase está ancorada na premissa de que a centralidade na família e a
superação da focalização, no âmbito da política de Assistência Social,
repousam no pressuposto de que para a família prevenir, proteger,
promover e incluir seus membros é necessário, em primeiro lugar, ga-
rantir condições de sustentabilidade para tal. Nesse sentido, a formu-
lação da política de Assistência Social é pautada nas necessidades das
famílias, seus membros e dos indivíduos (BRASIL, 2004).

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32 Virgínia de Souza, Carlos Gustavo Cordeiro de Andrade Junior e Edina Schimanski

A matricialidade sociofamiliar apresenta as ações da política com


intervenção sobre a família, contrapondo-se a lógica individual, que
direcionava as intervenções para o indivíduo de maneira isolada. Os
processos de exclusão sociocultural, as pressões geradas na socie-
dade, “[...] determinaram transformações fundamentais na esfera
privada, ressignificando as formas de composição e o papel das fa-
mílias” (BRASIL, 2004, p.51).
Neste contexto, a centralidade da família “[...] reforça a impor-
tância da política de Assistência Social no conjunto protetivo da
seguridade social como direito de cidadania, articulada a lógica
da universalidade” (BRASIL, 2004, p.53). Portanto, a família é vista
como espaço privilegiado e insubstituível de proteção e socializa-
ção (BRASIL, 2004). “A família, independente dos formatos ou mo-
delos que assume é mediadora das relações entre os sujeitos e a
coletividade, [...] bem como geradora de modalidades comunitárias
de vida” (BRASIL, 2004, p.52).
Diante disso, são apontadas duas tendências teóricas, ou seja,
a “familista”, identificada com o projeto neoliberal que preconiza a
centralidade da família, apostando na sua capacidade de cuidado e
proteção. A segunda, a tendência “protetiva”, em contraposição afir-
ma que a capacidade de cuidados da família está diretamente rela-
cionada à capacidade das políticas sociais ampararem o núcleo fa-
miliar em todas as suas necessidades (TEIXEIRA, 2009).
Entretanto, reconhece-se que a realidade vislumbrada tem apre-
sentado sinais de penalização e desproteção das famílias brasileiras de
modo cada vez mais latente. A este respeito, “na sociedade brasileira,
dada as desigualdades características de sua estrutura social, o grau
de vulnerabilidade vem aumentando e com isso aumenta a exigência
das famílias desenvolverem complexas estratégias de relações entre
seus membros para sobreviverem” (BRASIL, 2004, p. 53).
Logo, a família acaba sendo culpabilizada por não conseguir
desempenhar adequada ou idealmente os papeis esperados, pela

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Avanço legislativo e ampliação do conceito de família pós-Constituição de 1988 33

condição de sobrevivência, ciclo de vida, tamanho da família, mo-

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delo de estruturação, falta de acesso aos serviços públicos, dentre
outros (TEIXEIRA, 2009).
Sabe-se que ao longo do processo histórico e no contexto atual,
“a família é um meio de o capital reproduzir-se, alimentando-se dela
como uma mercadoria que se paga pouco e da qual se apodera tanto
objetiva quanto subjetivamente” (SANTOS, 2007, p.06).
Destarte, torna-se vantajoso para o capitalismo que os indivíduos
se encontrem em boas condições de vida para mediante o trabalho e
o consumo reproduzir o capital. Porém, nota-se uma realidade onde o
Estado desempenha a função de Estado mínimo e não dispõem de po-
líticas sociais consistentes que sejam abrangentes a todos os cidadãos,
pois são políticas precarizadas, focalistas e segmentadas, insuficientes
para sanar todas as mazelas produzidas pelo sistema.

a) Atores marcantes no processo de elaboração da Constituição


Federal de 1988
Convencionalmente, podemos dizer que o processo de elaboração
da CF/1988 se iniciou com o então presidente José Sarney, cujo cargo
fora assumido em decorrência da morte do presidente eleito Tancredo
Neves, com o debate suscitado por este com o Congresso Nacional
acerca da convocação de Assembleia Nacional Constituinte, em junho
de 1985, dando continuidade ao plano de governo de Tancredo, que
envolvia a elaboração de nova Constituição (ARAUJO, 2013).
Para Kinzo (2001), o processo de elaboração da CF/1988 foi trans-
parente e aberto para a sociedade, vez que houve ampla cobertura
midiática e houve, também, participação de grupos sociais organiza-
dos, direta ou indiretamente. Neste sentido, podemos apontar como
outros atores, a sociedade civil organizada, bem como a própria mídia.
Com relação à sociedade civil, veja-se que o então presidente
José Sarney instituiu a Comissão Afonso Arinos em 1985, com o se-
guinte discurso:
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34 Virgínia de Souza, Carlos Gustavo Cordeiro de Andrade Junior e Edina Schimanski

Eles não se reunirão para ditar aos Constituintes que textos de-
vem aprovar ou não. Eles irão reunir-se para ouvir a Nação, dis-
cutir com o Povo as suas aspirações, estimular a participação da
cidadania no processo de discussão da natureza e fins do Estado,
e estimulá-la a escolher bem os Delegados Constituintes.

Em fechamento do discurso, José Sarney afirmou:

A Comissão não substituirá o Congresso nem substituirá o povo.


Será, na verdade, uma ponte de alguns meses entre a gente bra-
sileira e os representantes que ela elegerá. Servirá como uma
área de discussão livre e informal das razões nacionais, subme-
tendo ao debate público teses básicas quanto ao Estado, à so-
ciedade e à Nação.

Os resultados advindos desta comissão foram de claras influências


para a elaboração da CF/1988 (LIMA; PASSOS; NICOLA, 2013).
Com base nestes autores chega-se à conclusão que outro ator que
merece destaque é, sem dúvidas, Mário Covas, então presidente do
PMDB, maior partido à época. A Assembleia Nacional Constituinte era
formada em sua maioria por conservadores, mas produziu resultados
razoavelmente progressistas.
Mário Covas tinha em mente uma Constituição social e parlamen-
tarista, a qual julgara ser boa e conveniente para o Brasil. Para alcançar
seus objetivos e reverter à desvantagem numérica para os conserva-
dores, elegeu comissões e subcomissões que deveriam ter relatores
de formação progressista e parlamentarista. Dentre estas comissões,
a Comissão VIII trataria da família. Inequivocamente, Covas é um dos
responsáveis pelo caráter mais progressista da atual Constituição.

Correlação de forças na trajetória da Constituição Federal de 1988


A CF/1988 foi a “resultante da correlação de forças estabelecida no
curso da elaboração do texto constitucional” (ARANTES, 2013, p. 01),
ou seja, esta luta constituiu-se contra a ditadura e pela democracia.

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Avanço legislativo e ampliação do conceito de família pós-Constituição de 1988 35

Em meados dos anos 1980, com a abertura democrática, um gran-

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de contingente de pessoas protagonizaram movimentos populares
sem precedentes na história brasileira. Isto desencadeou um processo
crescente de reivindicações pelo fim do regime militar, com convo-
cação de uma Assembleia Constituinte. Vários movimentos sociais se
destacaram neste processo: A Anistia Ampla, Geral e Irrestrita; Movi-
mentos Diretas Já! (ARANTES, 2013).
No ano de 1985, o presidente Sarney envia ao Congresso uma pro-
posta de Assembleia Nacional Constituinte. Segundo Arantes (2013), a
Constituinte era composta de 70% de membros do centro e centro-
-direita; seis membros eram de origem operária; 80 eram empresários
urbanos e 40 empresários rurais. Neste cenário formou-se a “Articula-
ção Progressista” (PMDB, PT, PDT, PSB, PC do B, e PCB). Junto a estes,
outro grupo se formou – grupo da direita (PFL, PDS, PTB e setores do
PMDB). Havia também um grupo intermediário o qual fazia alianças
com os dois agrupamentos. Juntos elaboraram o Regime Interno e
posteriormente o texto constitucional.
Com relação à participação popular, esta se deu através das emen-
das populares. Houve cerca de 12 milhões de assinaturas em emendas
populares. Na ocasião, o Congresso foi tomado por grande número de
pessoas que acompanhavam os trabalhos da Constituinte, pressionan-
do e defendendo suas reivindicações. Para Arantes (2013), havia um
grande número de grupos de pressão: trabalhadores urbanos, rurais,
servidores públicos, estudantes, membros do judiciário, Forças Arma-
das, dentre outros. Vários setores da sociedade se faziam presentes.
Quanto aos direitos sociais, houve forte pressão para que estes
fossem restritos. O próprio presidente Sarney chegou a se manifes-
tar alertando para o que chamou de “ingovernabilidade do País”, caso
os direitos sociais fossem aprovados. Porém, segundo Arantes “[...]
a pressão decisiva foi a popular que assegurou a aprovação de uma
Constituição com um conteúdo democrático, apesar de suas limita-
ções” (ARANTES, 2013, p. 03).

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36 Virgínia de Souza, Carlos Gustavo Cordeiro de Andrade Junior e Edina Schimanski

No decorrer do processo houve grande exposição pública dos vo-


tos dos parlamentares que votaram a favor e contra os direitos dos
trabalhadores, o que exerceu pressão sobre a Assembleia Constituinte.
A este respeito é oportuno o comentário de Arantes, “[...] a correlação
de forças políticas de um parlamento não pode ser vista de maneira está-
tica. Ela pode se alterar de acordo com o quadro político que se toma no
curso da luta, com pressões e contrapressões” (2013, p. 04). Na “luta” por
diversos interesses, importantes capítulos foram incorporados à CF/1988
como: cultura, meio ambiente, desporto e inclusive sobre Família.
Vemos então, uma inédita mobilização política de diversas institui-
ções da sociedade brasileira, tanto sindicatos, associações trabalhis-
tas, como movimentos sociais, movimentos feministas, grupos sociais
organizados pelos direitos dos negros, indígenas, pessoas com defi-
ciência, idosos, crianças e adolescentes. As manifestações se torna-
ram “peças-chave”, como estratégias às propostas que se debatiam na
Constituinte (BRANDÃO, 2011).
Resumindo o acima exposto, apresenta-se a lição de Cícero Araujo
(2013, p. 358):

Escrutinando os principais fatos relativos a essa inflexão no caso


brasileiro, pode-se observar que a discreta passagem da dis-
tensão para a democratização ocorre justamente com a perda
gradativa de iniciativa política do regime – vale dizer, a perda de
sua capacidade de concentrar poder político suficiente, a partir
da cúpula, para operar sua própria institucionalização. Essa per-
da, ademais, corresponde a um deslocamento da própria inde-
terminação do processo, da periferia para o centro nervoso do
Estado, movimento que se dá em zigue-zague, intercalado por
avanços e recuos.

O autor complementa:

Para apontar sumária e esquematicamente a sucessão dos fatos:


ela começa com a derrota da Arena para o MDB na eleição do

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Avanço legislativo e ampliação do conceito de família pós-Constituição de 1988 37

Senado, em 1974; passa pela crescente incapacidade dos gover-

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nos autoritários – de Geisel a Figueiredo – de enfrentar a seu
modo a crise econômica e os conflitos sociais dela resultantes;
pela derrota dos candidatos do regime nas eleições para os prin-
cipais governos estaduais e a perda de sua maioria na Câmara
Federal, em 1982; até culminar com a campanha oposicionista
das eleições diretas e a consequente perda da capacidade do
regime de fazer unilateralmente seu sucessor presidencial, em
1984-1985. É nesse contexto que, então, se abre oficialmente
o processo constituinte, cujo desfecho, isto é, a Carta de 1988,
marca também o final da transição, ou, pelo menos, a realização
de sua principal tarefa: a superação definitiva do regime autori-
tário. (ARAÚJO, 2013, p. 358).

A correlação de forças entre os atores que participaram do processo


de elaboração da CF/1988 correspondeu a avanços com relação aos di-
reitos sociais, questão ambiental, seguridade social e principalmente com
relação à ampliação do conceito de família, havendo, após a CF/1988, le-
galidade na formação de novas estruturas familiares, como as monopa-
rentais, união estável e posteriormente as famílias homoafetivas.
Destaca-se que no dia 1º de agosto de 1988, o Movimento de
Mulheres e o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, lançaram
a “Vigília Cívica” defendendo vários temas e reivindicações a serem
contempladas na Nova Constituição. Dentre as reivindicações o lan-
çamento de 11 itens que consideravam inegociáveis (a licença ma-
ternidade de 120 dias, licença paternidade de 8 dias, proibição de
diferença salarial entre homens e mulheres, creches nas empresas,
igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres, igualdade
conjugal, reconhecimento da união estável como entidade familiar,
dentre outros) (BRANDÃO, 2011).
No mês de setembro representantes do Conselho Nacional dos Di-
reitos da Mulher, comandados pela então presidente Jaqueline Pitan-
guy, reuniu-se com Ulysses Guimarães para pedir seu apoio às suas
causas, sendo na ocasião um grupo constituído por 50 representantes
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38 Virgínia de Souza, Carlos Gustavo Cordeiro de Andrade Junior e Edina Schimanski

do Conselho (BRANDÃO, 2011). Os movimentos por moradia, orga-


nização de professores, Frente Verde, CUT, Movimento Pró-Mulher,
Movimentos Ambientalistas, dentre outros, utilizaram de estratégias
semelhantes para realizar suas reivindicações na Constituinte e cola-
borarem com emendas e a nova redação na CF/1988.
Neste processo a correlação de forças tanto progressistas como
não progressistas de alguma forma exerceram “pressão” sobre as de-
cisões dos parlamentares, sejam os movimentos ruralistas, sejam os
movimentos populares, sejam organizações de minorias etc.

Considerações finais
A análise de conjuntura revela-se como método eficaz para com-
preender determinado acontecimento, permitindo ao pesquisador
aferir mecanismos e ferramentas para contextualizar o objeto da aná-
lise com a realidade de fato vislumbrada no período.
Para uma adequada análise de conjuntura se faz necessário observar
qual o cenário envolto ao acontecimento que se propõe a pesquisar, ob-
servando fatos anteriores e concomitantes. Na sequência é importante
constatar os atores envolvidos figuras relevantes, para aquele aconteci-
mento; aqui não se trata apenas de uma pessoa física, é possível que o
ator seja uma pessoa jurídica, inclusive um ente despersonalizado.
Ademais, verificado o cenário e os atores, deve-se observar a
correlação de forças existente, o conflito de poderes que margeiam
o acontecimento.
Partindo dessas premissas a pesquisa definiu a promulgação da
CF/1988 como acontecimento a ser submetido a análise, com enfoque
na nova concepção de família adotada pelo constituinte, destacando
aspectos sociais, econômicos e políticos significativos no período.
O êxito da análise é a discussão da essência da CF/1988, com pon-
deração do cenário juntamente com nova abrangência da expressão
família, colacionando-se para tal ensinamento sobre a evolução his-
tórica do termo família.
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A ampliação do conceito de família dentro da Constituição é rele-

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vante, pois inaugurou uma nova ordem jurídica e social no País, que
presenciou concretamente a sua redemocratização em meio às anti-
gas sombras do regime ditatorial.
O cenário desenhado refletiu a presença de atores marcantes no
processo de elaboração da CF/1988, tendo o artigo trazido à tona as fi-
guras mais relevantes de políticos e a sociedade civil, na busca por uma
Constituição mais justa e humana, capaz de atender a realidade do País.
Neste contexto, com a sociedade figurando entre os atores principais
na elaboração da CF/1988, tem-se que a correlação de forças voltou-se,
em boa parte, numa discussão entre militares e democratas, entre os
defensores do regime militar e os defensores do regime democrático.
Por conta desse fato histórico e de todo processo que o envolveu, o
conceito de família ampliou-se, considerando família a entidade com-
posta por qualquer um dos pais e seus filhos (família monoparental),
união estável, homoafetivas, dentre outras. A partir do aparato legal,
abriu-se um leque para a legalização de novas configurações familiares,
que já existiam, porém, neste momento, respaldadas pela Carta Magna.

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view/3775/1858>. Acesso em: 10 nov. 2017.

Notas
1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas
pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Mestre em Ciências So-
ciais; Bacharel em Serviço Social; Especialista em Politica de Atendimento a
Criança e ao Adolescente; Especialista em Educação Especial. Especialista em
Política de Assistência Social – SUAS. Atualmente atua como assistente social
no município de Carambeí/PR. Brasil. ORCID: 0000-0003-4059-4678. E-mail:
vssato@yahoo.com.br

2 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas pela


Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Bacharel em Direito pela UEPG.
Advogado. Brasil. ORCID: 0000-0002-3109-9942. E-mail: carlosgcjunior@
gmail.com

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ISSN: 2238-9091 (Online)
42 Virgínia de Souza, Carlos Gustavo Cordeiro de Andrade Junior e Edina Schimanski

3 Professora Associada na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), Brasil,


vinculada ao Departamento de Serviço Social, bem como, do Programa de Pós-
-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas. Possui graduação em Serviço Social
pela UEPG, mestrado em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR)
e doutorado pela University of London – Institute of London-Institute of Educa-
tion. É consultora ad hoc Capes na área interdisciplinar. Brasil. ORCID: 0000-
0002-8532-9176. E-mail: edinaschi@gmail.com

4 Nos escritos de Engels (2010), teremos a concepção de família por outro viés.
Para o autor, a família foi constituída a partir da propriedade privada, situação em
que se precisava de uma garantia de que haveria herdeiros legítimos da proprie-
dade. Engels concebe a família monogâmica como criação humana, constituída
para a defesa da propriedade privada, uma vez que com a expansão das riquezas
e as novas relações sociais e econômicas, precisava uma paternidade “indiscutí-
vel” (ENGELS, 2010).

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 23 - 42


43

É sempre assim, tudo sou eu! Cuidado, Gênero

ISSN: 2238-9091 (Online)


e Famílias

Thamires da Silva Ribeiro1

Resumo
O presente artigo discute o cuidar em famílias a partir da produção de reflexões
acerca do termo cuidado, sua transversalidade no campo científico e seus reba-
timentos nas famílias. Esta análise é pautada no debate das relações desiguais de
gênero, sendo o cuidado o elemento estruturante do lugar do feminino no campo da
reprodução social da vida. Pensar o cuidado como trabalho implica reconhecer seus
custos e valorá-lo, isto é debatido na perspectiva conceitual da economia dos cuida-
dos. Além de abrir espaço em conceber o cuidado pelo viés do direito garantido para
famílias a fim de avançar em relações mais equitativas de gênero.

Palavras-chave
Cuidado; Famílias; Gênero.

It's always like this, it's all I am! Care, Gender and Families

Abstract
This article discusses the care inside families starting with reflections about the term
care, its transversality in the scientific field and its impacts. This analysis is based on
the discussion of unequal gender relations, being the care, the structuring element of
the feminine place in the social reproduction of life. Suppose care as a job involves
recognizing its costs and value it, what is discussed in the conceptual Care Economy
perspective. Besides, it opens space for conceiving care for the Right bias to be gua-
ranteed for the families in order to advance in more equitable gender relations.

Keywords
Care; Families; Gender.

Artigo recebido: agosto de 2018


Artigo aprovado: outubro de 2018

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44 Thamires da Silva Ribeiro

Introdução
ISSN: 2238-9091 (Online)

O presente artigo versa sobre o cuidado em família, sendo fruto


da consolidação de parte dos resultados da pesquisa de mestrado
desenvolvida no ano de 2016 (Cf. RIBEIRO, 2016), na qual buscou
discutir as práticas de cuidado em famílias pobres na Zona Oeste do
município do Rio de Janeiro e analisar os sentidos por elas atribuídos
a esses cuidados.
Nessa pesquisa, os sujeitos entrevistados possuíam as seguintes
características: 5 mulheres (com exceção de uma família, em que o
casal foi ouvido), parte incluída no mercado de trabalho formal, na
sua maioria com ensino fundamental incompleto, com renda inferior
a dois salários mínimos, moradoras de Senador Camará e Vila Alian-
ça, região conhecida como “Faixa de Gaza” devido à intensa violência,
além da escassez de serviços públicos.
O campo do cuidado é travestido de idealizações e pré-noções que
por vezes são consideradas inquestionáveis, isso foi visível no resulta-
do das entrevistas com as famílias, onde havia um imaginário do sig-
nificado atribuído ao cuidado que se diferia das práticas de cuidados
cotidianos. O imaginário do cuidado se assemelhava com as defini-
ções filosóficas, mas a prática revelou outras dimensões do cuidado
presentes no debate da economia do cuidado.
A realização da pesquisa deparou-se com alguns desafios, o pri-
meiro refere-se à bibliografia2 acerca da temática, proveniente do ca-
ráter polissêmico e multidimensional das definições de cuidado, que
desdobram numa transversalidade no campo das Ciências e exige um
tratamento interdisciplinar, sendo discutido na Saúde, Psicologia, Filo-
sofia e, mais recentemente, nas Ciências Sociais e Econômicas.
O segundo desafio concerne na especificidade do tema, com en-
foque no cuidado e/ou cuidados familiares, que por sua vez, ainda é
pouco estudado, sendo composto por um universo inexplorado de
significados, leituras, pré-concepções e práticas cotidianas imersas
numa aparente clareza mediante sua profunda naturalização.

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Desvelar por meio da desnaturalização as temáticas famílias e cui-

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dado são fundamentais, sobretudo na constituição de suas relações
sociais, a fim de compreendê-las em sua totalidade e historicidade,
desnudos da aparente obviedade que apresentam.
Além disso, pesquisar sobre cuidado em famílias carece de per-
passar pela sua constituição que são as relações desiguais de gênero,
pois quando o cuidado em família é evocado há uma protagonista que
estrutura e detém essa conjunção: a mulher.
De acordo com Freitas (2013), há um aspecto relacional constitu-
tivo da categoria gênero que possibilita reavaliar a construção social
destes lugares masculinos e femininos, como também a ideia de uma
mulher essencializada, unificada e representativa das demandas de
todas as mulheres.
Concomitante ao debate da figura feminina no âmbito familiar Ge-
linski e Moser (2015) apresentam que houve uma queda de fecundi-
dade, resultando na retração do tamanho das famílias e a elevação
da expectativa de vida, configurando elementos cruciais dos condi-
cionantes demográficos que marcam as famílias brasileiras nos seus
processos de transformação.
O primeiro elemento é a queda substancial do tamanho da fa-
mília. Se em 1981 o número médio de pessoas por família era
4,3, em 2011 esse número caiu para 3,1. A explicação pode ser
atribuída à queda significativa que a taxa de fecundidade (ou
o número médio de filhos por mulher em idade de procriar,
isto é, de 15 a 49 anos), vem apresentando nas últimas cinco
décadas. Enquanto em 1960, a média era 6,3 filhos por mulher,
em 2010 esse número cai para 1,86. Inferior, portanto, à taxa de
reposição da população de pelo menos 2 filhos por casal. Pela
constante queda da taxa de fecundidade, estima-se que em
2040 o país atinja o chamado “crescimento zero” e a partir daí
apresente queda do seu contingente populacional. O segundo
elemento é o aumento da idade média da população. Os dados
revelam que juntamente queda pronunciada da fecundidade há

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uma elevação da expectativa de vida. Em 1940 a esperança de


vida ao nascer no Brasil era de 45,5 anos, em 2010 passou para
73,48 e para 2050 a estimativa é de alcançar 81,3 anos. (GE-
LINSKI; MOSER, 2015, p.136-137).

Atrelado a este cenário e projeções, as autoras apontam outros fa-


tores como: a manutenção da taxa de nupcialidade legal (formalização
do casamento) e aumento do número de divórcios, aumento do nú-
mero de famílias cuja pessoa de referência é a mulher, e o crescente
número de famílias unipessoais.
Também cabe destacar o aumento da diversidade de arranjos fami-
liares conforme retratam Alves e Cavenaghi (2012) com base nos da-
dos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), na qual
os domicílios compostos por casal com filhos representavam 49,9%
em 2009. Considerando o censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Ge-
ografia e Estatística, esse percentual diminui ainda mais chegando a
43,2%. Sendo assim, 56,8% das famílias são constituídas por conjuntos
diversos de arranjos familiares.
Dessa forma, o modelo de família considerada tradicional, nuclear
burguesa, deixa de ser hegemônico na sociedade brasileira. Apesar de
haver uma inomogeneidade dos arranjos familiares, essa hegemonia
é disputada no campo da idealização e valores constituintes da fa-
mília tradicional, a qual permanece fortemente arraigada nas relações
sociais, embora haja constantes tensionamentos e questionamentos
desse lugar de sacralidade e naturalização.
Torna-se evidentes dois campos, o da idealização conceituado por
Szymanski (2003; 1988) como família pensada, e da realidade vivida
representada pela diversidade de arranjos familiares, sendo denomi-
nada como família vivida. Estes campos disputam a hegemonia, so-
bretudo, no campo simbólico da família pensada.
É importante demarcar que, a trajetória histórica das famílias brasi-
leiras é constituída pela existência de diversas formas de organização
familiar, apesar de serem marginalizadas e invisibilizadas, contudo,
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nesse momento são reconhecidas e evidenciadas pelo fato de sobre-

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por em termos quantitativos o modelo tradicional burguês.
Nessa conjuntura, o cuidado é evocado pelo Estado como uma obriga-
ção da família, exigindo da figura feminina o desempenho desta atividade
do cuidar no âmbito da reprodução social de forma não remunerada.
Portanto, o artigo pretende contribuir para o debate desta complexa
temática, dividindo-se nas seguintes reflexões, parte-se da proposta
de adentrar na discussão sobre as dificuldades em conceituar o cuida-
do, atrelado ao processo de naturalização do cuidar à figura feminina,
suas repercussões na divisão sexual do trabalho e os rebatimentos nas
famílias. E finaliza com a reflexão acerca do cuidado pela ótica do di-
reito, a partir do conceito de economia do cuidado.

Aproximações teóricas e conceituais de cuidado


A terminologia cuidado está despertando interesse acadêmico, so-
bretudo, nos últimos 40 anos, a partir de pensadoras feministas. Con-
tudo, este termo ainda não possui uma definição homogênea, por ser
considerado polissêmico e transversal.
Torralba (2009) aponta o cuidar como uma terminologia polissêmi-
ca: “[...] a polissemia revela a riqueza conceitual de um termo, mas obri-
ga o intérprete a demarcar os distintos sentidos do vocábulo” (p.115).
Dessa forma, para Torralba (2009, p.119), “o cuidado é uma tessitura de
extraordinária densidade antropológica e moral [...]” e também “o cui-
dar é uma arte porque integra técnica, intuição e sensibilidade” (p. 144).
De acordo com o relatório do Instituto de Pesquisa Econômica Apli-
cada (IPEA), o debate teórico do cuidado perpassa pela sua natureza
interdisciplinar, quiçá transdisciplinar, mediante as discussões e refle-
xões sobre o tema “incorporarem questões da filosofia, do direito, da
história, da economia, da ciência política, da sociologia e ainda em ou-
tros campos do conhecimento” (IPEA, 2016, p.11).
É importante também assinalar que a terminologia e o fenômeno
cuidar estão imbuídos de uma complexidade composta por múltiplas
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dimensões, que contemplam uma diversidade de noções atravessa-


das por um conjunto de significados impregnados pelos campos an-
tropológico, filológico, filosófico, mitológico, cultural e relacional.
Dessa forma, as múltiplas abordagens e possibilidades de constru-
ção do conceito cuidado, dificultam a condensação de informações
que definam de forma homogênea o cuidado, esta estrutura hetero-
gênea contribui para criação de divergências e disputas de conteúdos
que unifiquem a significação do cuidado numa perspectiva conceitual.
Assim, podem considerar-se inúmeros agrupamentos de conteú-
dos e definições referentes ao tema cuidado, segue abaixo o recorte
de autores na construção deste artigo.
No âmbito da saúde, Waldow (2008, p.2) afirma que “o cuidado é
um fenômeno existencial, relacional e contextual”.

Existencial porque faz parte do Ser, lhe confere a condição de hu-


manidade, relacional porque ocorrem relação com outro Ser, se re-
vela na coexistência com outros seres; contextual porque assume
variações, intensidades, diferenças nas maneiras e expressões de
cuidar conforme o meio em que ocorre. (WALDOW, 2008, p.2).

Assim, a dimensão existencial concerne na perspectiva filosófica3


do cuidar, que abrange a filologia e mitologia a nível ontológico.
A dimensão relacional4 está atrelada à relação consigo mesmo e
com o outro, sendo um elemento essencial da noção de cuidado,
pois pressupõe alteridade5, onde o cuidado só existe em relação,
pois tanto no âmbito individual (consigo mesmo), quanto no coletivo
(com os outros), há interação.
A dimensão contextual apreende a conjuntura cultural, econômica,
política, social, simbólica, entre outros, em que o indivíduo está inseri-
do levando em conta o universo de significados (de valores, crenças e
vivências) que o mesmo adquire na sua interpretação do mundo.
Madeleine Leininger6 foi pioneira na inclusão da concepção de
cultura na abordagem do cuidado, construindo a Teoria do Cuidado

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Cultural. Porém, tempos depois elabora a Teoria da Diversidade e

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Universalidade do Cuidado Cultural, onde, a partir da identificação
de que o cuidado está presente nas culturas (universal), contudo, é
desenvolvido de formas distintas (Diversidade), mediante as singu-
laridades, valores, crenças, significados, etc., de cada grupo, comu-
nidade e/ou região (RATTI et al., 2005).
A Teoria de Leininger constitui numa ferramenta de análise que
instrumentaliza a reflexão na concepção do cuidado no âmbito ma-
cro de sua Universalidade, constituído pela cultura, a partir de seu
contexto social, simbólico, político e econômico, além de abranger a
esfera micro (Diversidade) do núcleo familiar que possui sua dinâmi-
ca específica envolvida de singularidades, valores, crenças de cada
indivíduo no grupo familiar.
Vale lembrar que a compreensão acerca do Cuidar, ainda carece
de muitos estudos, pesquisas e reflexões, sobretudo, na esfera das
relações e organizações sociais de cuidados. De acordo com levanta-
mento bibliográfico sobre o tema e com base no relatório de pesquisa
do IPEA (2016, p. 12), “o uso do termo care em inglês se deve à influ-
ência anglo-saxã, uma vez que a consolidação dos cuidados a outras
pessoas como objeto de estudos ocorreu primeiramente nos países
de língua inglesa e espalhou-se para outras regiões”.
No campo das ciências sociais, econômicas e das políticas pú-
blicas, sobretudo, no âmbito da sociologia do trabalho e economia
feminista, o cuidado desdobra-se em múltiplos debates, principal-
mente na análise sob a ótica da categoria trabalho na discussão acer-
ca da produção e reprodução da vida.

Cuidado, gênero e trabalho: um diálogo possível?


É indissociável a esta perspectiva o campo das reflexões de gênero,
divisão sexual do trabalho, raça e classe como categorias de análise
que viabilizam os questionamentos dos paradigmas, papéis sociais e
premissas consideradas óbvias, permanentes, naturais e indiscutíveis.
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Nesse debate algumas autoras7 estão pautando a reflexão dos cui-


dados a partir das categorias acima citadas, sobretudo, demarcando
que falar de cuidado é debater gênero, raça e classe. Sobre o assunto,
Guimarães e Hirata assinalam que:

Gênero tem constituído um instrumento de inegável valor heu-


rístico para o entendimento do social e do político, suscitando
questionamentos e propondo novos paradigmas, desvelando
dimensões obscurecidas pelos vieses de uma ciência social que
concebia o trabalho como uma experiência de homens, brancos,
qualificados, tecidas nos espaços fabris e embebida nos valores
e nas representações, do indivíduo e do coletivo, extraídos de
uma visão ocidental e europeizante do mundo. (2014, p.9).

De acordo com Sorj (2013) e Esquivel (2012) a organização e acesso


de grupos sociais a arena dos cuidados ocorre de maneira distinta,
seja na condição de usufruir de cuidados, seja na sua qualidade. É ne-
cessário observar a organização e distribuição do cuidado a partir de
uma perspectiva ampliada, na qual possa compreender as estruturas
do cuidar, a fim de identificar as lógicas sociais que constituem e refor-
çam as desigualdades da organização e distribuição do cuidado.
Outro destaque é Batthyany (2004) que se refere ao cuidado como
os bens e atividades que permitem as pessoas alimentar-se, educar-se
e estar sãs e viver em ambiente propício. Portanto, compreende tanto
o cuidado material que implica um trabalho, o cuidado econômico que
implica custos e o cuidado psicológico que implica um vínculo afetivo.
O debate do cuidado que implica trabalho e custo é fundamental
para a análise realizada, pois quando se aborda o cuidado indepen-
dente da sua dimensionalidade, há uma personagem central deste
lugar: a mulher, que por sua vez, é evocada como detentora natural
num processo de essencialização, negando o fato desse fenômeno ser
historicamente construído; sendo assim, o cuidado é concebido como
uma atividade feminina, não remunerada e desvalorizada.

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Lyra et al. (2007) agregam pontuando as dimensionalidades do

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cuidado:

Certamente, compreender o cuidado implica uma leitura da


categoria de gênero incluída num contexto de complexidade,
que pode ser vislumbrada em diferentes dimensões: a dimen-
são cultural, quando nos referimos aos símbolos disponíveis
nos diversos discursos de um povo, os quais trazem consigo
representações carregadas de atribuições dicotômicas, afir-
mando as características e hierarquizando os valores em certas
imagens masculinas e femininas; a dimensão social das insti-
tuições que regulam, (re)produzem e atualizam os significados
desses símbolos, tais como famílias, religiões, seitas, escolas,
universidades, instituições jurídicas e políticas, etc.; a dimen-
são da identidade subjetiva, das identidades de gênero atua-
lizadas por homens e mulheres, de como ambos tomam para
si os conteúdos das imagens simbólicas do discurso cultural e
institucional. (LYRA et al., 2007, p.86).

Dessa forma, em contextos como o do Brasil, onde a desigualda-


de de gênero é latente, as relações de cuidado são profundamente
impactadas pela disparidade entre papéis masculinos e femininos,
que por sua vez, são “naturalizados” por um processo educacional,
social, cultural e histórico. Além de serem reificados e perpassados
na cultura familiar no decorrer das reproduções das relações sociais,
contribuindo para o aumento da desigualdade de gênero e a sobre-
carga da mulher na provisão de cuidados. Isso não significa que não
haja avanços, contudo, a inserção do homem no papel de cuidado
ainda é muito ínfima.

A construção e internalização de modelos masculinos e femi-


ninos, em registro, aparecem no qual a distribuição de cuida-
dos e responsabilidades, e baseia-se em valores símbolos que
não deixam margem para dúvidas: a dor está simbolicamente
integrada ao gênero feminino, desde a maldição bíblica, como

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inerente ao parto, até as históricas habilidades femininas: a ad-


ministração do lar e do cuidado dos filhos. Ao homem lhe cabe
a transformação da natureza através do trabalho, e prover o
sustento material da família. Enquanto isso, através de diferen-
tes mensagens culturais, se incentiva o sacrifício e a abnegação
feminina em relação ao cuidado dos membros doentes e de-
pendentes em geral. Assim se limita e inibe o desenvolvimen-
to das mulheres em suas outras capacidades e possibilidades,
para que se resignem a atendem as necessidades dos outros.
(KRMPOTIC; IESO, 2010, p.97).

Nesse sentido, as distribuições das atividades de cuidado possuem


papel central na desigualdade das relações de gênero9 e na divisão
sexual do trabalho8, as mulheres são incumbidas majoritariamente do
papel de cuidadoras e quando necessitam recorrem a outras mulhe-
res para desenvolverem a função do cuidar. Ao serem encarregadas
unicamente dessa função, as mulheres possuem abnegações e colo-
cam em jogo sua saúde, qualidade de vida, oportunidades de emprego
e carreira profissional, impacto no tempo, autoestima, dependência,
além do aspecto econômico familiar.
Razavi (2007) corrobora na reflexão assinalando que o trabalho de
cuidar em suma é realizado de forma não remunerada, e mesmo de
forma remunerada através da contratação de trabalhos domésticos e/
ou cuidadoras, a mulher torna-se o centro deste trabalho. Assim, no-
ta-se que “os benefícios deste trabalho são majoritariamente coletivi-
zados; o fardo por sua realização, no entanto, recai primordialmente
sobre as mulheres, e traduz-se em obrigações financeiras, perda de
oportunidades e menores salários” (RAZAVI, 2007, p.3).
Enríquez (2012a) aponta as relações de gênero como um jogo entre
práticas históricas que se diferencia de acordo com os papéis sociais
de feminino e masculino (teorias, ideologias, crenças religiosas), a
práticas institucionais (como o Estado e mercado) e condições mate-
riais. Assim, não há como abordar gênero sem mencionar a constru-

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ção histórica dos papéis sociais10 de homem e mulher, imbuídos de

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expectativas destes papéis que aprisionam as mulheres e homens na
reprodução de discursos e estereótipos demarcados aparentemente
como inquestionáveis.
Essas relações desiguais de gênero reificadas socialmente desdo-
bram-se numa divisão sexual do trabalho definida por Hirata e Ker-
goat (2007) como:
É a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações
sociais entre os sexos; mais do que isso, é um fator prioritá-
rio para a sobrevivência da relação social entre os sexos. Essa
forma é modulada histórica e socialmente. Tem como caracte-
rísticas a designação prioritária dos homens à esfera produti-
va e das mulheres a esfera reprodutiva e, simultaneamente, a
apropriação pelos homens das funções com maior valor social
adicionado. [...] Tendo dois princípios organizadores: o princí-
pio de separação (existem trabalhos de homens e trabalhos de
mulheres) e o princípio hierárquico (um trabalho de homem
“vale” mais que um trabalho de mulher). Esses princípios são
válidos para todas as sociedades conhecidas, no tempo e es-
paço. Podem ser aplicados mediante um processo específico
de legitimação, a ideologia naturalista. Esta rebaixa o gênero ao
sexo biológico, reduz as práticas sociais a “papéis sociais” se-
xuados que remetem ao destino natural da espécie. [...] Porém
isto não significa que a divisão sexual do trabalho seja um dado
imutável, tendo inclusive, uma incrível plasticidade: suas mo-
dalidades concretas variam grandemente no tempo e espaço.
(HIRATA; KERGOAT, 2007, p.599-600).

Além disso, as atividades de cuidar ainda não são vislumbradas nas


suas implicações de trabalho e custos, que demandam de tempo, de-
dicação, disponibilidade, presença, atenção e responsabilidades.

O trabalho do cuidado, geralmente, como todas e quaisquer ativi-


dades na esfera privada, não tem importância por não portar valor
econômico, por ser marcado pela invisibilidade na lógica da produ-

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ção de valores posta pelo capital nos ditames do mercado e de um


Estado que não reconhece esse investimento e os agenciamentos
coletivos. No entanto, é nesse cotidiano bem particular, no miúdo
mesmo das relações singulares entre os sujeitos, que a economia e
a política devem entrar, pois é nesse cenário que se produzem e re-
produzem comportamentos socialmente construídos, uma arena de
conflitos, disputas, cooptações, refúgio de um mundo sem coração,
sem suma, uma oficina das relações sociais. (DUARTE, 2011, p.78).

A invisibilidade da atividade de cuidar enquanto trabalho afeta di-


retamente a sua distribuição no cotidiano familiar, bem como des-
dobra no latente do não reconhecimento, devido não produzir va-
lores econômicos. Entretanto, sua ação implica custos econômicos
(alimentação, educação, higiene, etc.), psicológicos (vínculos afeti-
vos, emocionais e mentais), físico (saúde física), de tempo (dedica-
ção, disponibilidade), em prol do desenvolvimento físico, emocional,
mental, psíquico e social do outro.
Dessa forma, requer da cuidadora um trabalho material, econômi-
co, temporal, psicológico, afetivo e emocional que demandam tempo,
dinheiro e serviços (AGUIRRE, 2009). Nessa perspectiva, o trabalho
não remunerado envolve múltiplas dimensionalidades, responsabili-
dades, sendo à base do desenvolvimento dos seres humanos, sobre-
tudo, na sua inserção social, pois sem o trabalho de reprodução social,
não há como haver trabalho produtivo.
Portanto, a divisão sexual do trabalho é um elemento chave para
entender como a reprodução social sustenta a lógica do capital, e por
isso precisou ser implementada a partir do advento da família bur-
guesa com o patriarcado. De acordo com Gelinski e Pereira (2005),
Picchio (2003) e Beneria (2003, p.37) a reprodução social no âmbito
do trabalho doméstico “dentro do sistema econômico como fonte vital
de manutenção e reprodução da força de trabalho, sobretudo, o tra-
balho doméstico não remunerado contribuíram para a manutenção e
reprodução das gerações de trabalhadores”.

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Em outras palavras, a reprodução social é fundamental para a exis-

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tência de trabalho assalariado, sendo necessário existir a figura da mu-
lher como “dona de casa”, “boa esposa” e “boa mãe” para reprodução
da força de trabalho, onde os custos são invisibilizados e anulados,
além de minimizar a concorrência das mulheres com os homens no
mercado de trabalho (ENRÍQUEZ, 2005).

Cuidar em famílias pelo viés da garantida de direito: é possível?


O aumento das mulheres no trabalho produtivo, o reconhecimento
e o aumento dos diversos arranjos familiares, a queda de natalidade
e a redução dos núcleos familiares, põe em questão a democratiza-
ção da vida laborativa e familiar, exigindo do homem o aumento da
participação no trabalho de reprodução social, com a distribuição de
tarefas domésticas e de cuidados familiares.
Reformulam o debate sobre a conciliação da vida profissional e
familiar; procurando democratizar as responsabilidades familia-
res e promovendo a participação dos homens nas atividades de
cuidado, questionam os sistemas de seguridade social que, em
geral, não reconhecem a contribuição das mulheres no âmbi-
to reprodutivo e, portanto, não compensam o tempo do “não”
trabalho que elas dedicam aos cuidados de crianças, doentes,
idosos e outros membros do lar. O cuidado ou tempo de cuida-
do das mulheres compete com o tempo do lazer, da participa-
ção política, da atividade remunerada e demanda, portanto, uma
compreensão da variedade de vínculos com as políticas de em-
prego, de proteção e de mudança cultural. Em última instância,
este debate remete à necessidade de modificar o velho contrato
patriarcal baseado no homem provedor de sustento material e
na mulher como cuidadora e moralmente obrigada a cuidar dos
demais. (MONTAÑO, 2010, p.28).

Essa situação coloca em evidência que a distribuição da responsabi-


lidade de cuidar necessita ir para além do nível micro composto pelos
membros do núcleo familiar, sendo visto em nível macro, compartilha-

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do com o Estado, o mercado e a sociedade civil, assim, vislumbrado


como uma expressão da questão social e um direito próprio e universal.
Em contrapartida, há uma mudança de paradigma, quando o cui-
dado é visto sob a ótica de direito, onde essa perspectiva garante o
direito ao cuidado, dentro e fora do seu núcleo familiar, ou seja, direito
de cuidar, cuidar-se e de ser cuidado, e condensa um grupo de direitos
que inclui os direitos sociais, seguridade social, entre outros.
Para tanto, a efetivação desse direito demanda disponibilidade
de tempo e dinheiro para cuidar, além de serviços de cuidado. De
acordo com Krmpotic e Ieso (2010) os cuidados familiares podem
ser considerados um problema público que afeta mais as mulheres
do que os homens, porém, implica serem colocados nas agendas
das políticas públicas.
No contexto de pluralismo liberal, marcado por um Estado com
ações Familista11, onde as famílias são evocadas como principais e
quase que únicas responsáveis pelo cuidado, sendo consideradas
também como objeto de cuidado, as políticas públicas só intervirem
mediante constatação da falência das famílias, tornando-se compli-
cado a ampliação e efetivação do cuidado na perspectiva de direito.
Nesse cenário há uma retração das ações do Estado e uma amplia-
ção da atuação do mercado, por meio da oferta do trabalho produti-
vo, e da sociedade civil com as ações sociais, no suporte às famílias.
Contudo, num campo de precarização das relações de trabalho e das
ações sociais, as famílias, principalmente, as mulheres, ficam pratica-
mente sozinhas nas provisões de cuidados e sobrecarregadas, apro-
fundando ainda mais as desigualdades de gênero e geracional na es-
fera micro dos cuidados.
Isso posto, depreende-se conceber a nível macro dos cuidados,
que a concepção do cuidado como direito envolve um processo de
“desfamiliarização” e “desmercantilização”, onde o Estado garanta
esse direito a partir da oferta de serviços de qualidade de educa-
ção, saúde, seguridade social, habitação, cultura, entre outros, que

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compõem ao trabalho de reprodução social via família, e possam

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subsidiar o campo dos cuidados familiares, se aproximando de uma
equidade de gênero e geracional.

As políticas públicas têm convertido a responsabilidade das


mulheres em obrigação exclusiva e excludente. Por isso é fun-
damental a) fortalecer o acesso ao emprego com igualdade de
oportunidades; b) desfamiliarizar a política social e mudar o foco
sobre as mulheres como beneficiárias para reorienta-la a quem
necessita de cuidados, desde uma perspectiva de direitos. O
cuidado de terceiros não é assistência às mulheres, é um direito
de cidadania; c) realizar mudanças nas políticas de direitos re-
produtivos, incluindo os homens como sujeitos; d) realizar mu-
danças nos serviços públicos (educação, transporte, saúde), de
maneira que o trabalho de cuidados seja compatível com horá-
rios de trabalhos de pais e mães; e) realizar mudanças na carga
de cuidados familiares dos filhos, mediante políticas explícitas
de conciliação e responsabilidade compartilhadas com as licen-
ças parentais. (MONTAÑO, 2010, p.32).

Nessa perspectiva, Enríquez (2010) elucida a construção do concei-


to de “economía del cuidado”.

Em contraposição às perspectivas tradicionais, economistas e


sociólogas envolvidas com os estudos feministas e de gêne-
ro formularam o que se convencionou chamar de "economia
dos cuidados". Esta proposta analítica e conceitual tem por fi-
nalidade medir, dimensionar e visibilizar o cuidado, incorporar
seus setores provedores nas análises econômicas e também
interpelar tanto o funcionamento do sistema econômico quan-
to as maneiras como ele é interpretado (Enríquez, 2012, p.6)
Os estudos reunidos sob o escopo da economia dos cuidados
partem do pressuposto de que o cuidado desempenhado de
maneira não remunerada não apenas integra o sistema eco-
nômico como também constitui uma pré condição para a sua
existência. A partir dessa compreensão procuram medir e va-

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58 Thamires da Silva Ribeiro

lorar o trabalho de cuidado; averiguar as condições de trabalho


e de remuneração das ocupações referidas aos cuidados e à
reprodução social; apontar para a natureza das relações entre
os sujeitos envolvidos em seu desempenho; e examinar o posi-
cionamento daquelas que o executam no mercado de trabalho.
(ENRÍQUEZ, 2012 apud IPEA, 2016, p.6).

Em vista disso, a “economía del cuidado” refere-se a distribuição de


cuidados entre quatro agentes, sendo eles, Estado, mercado, socieda-
de civil e as famílias, ofertados em formas de serviços e gerenciado a
nível micro pelos arranjos familiares. Os serviços de cuidado são re-
lativos às necessidades básicas e relevantes para o desenvolvimento
das pessoas em sociedade. Dessa forma, o cuidado torna-se elemen-
to essencial do funcionamento do sistema econômico e social, sem
renegar sua constituição multidimensional de sustento da vida, con-
tendo aspectos econômicos, sociais, psicológicos, culturais e políticos
(NAVARRO; ENRÍQUEZ, 2010).
Em contrapartida, o cuidado ainda constitui-se na base invisível da
sociedade, tanto a nível micro das relações entre os integrantes dos
arranjos familiares, quanto a nível macro de proteção social nas re-
lações e sua forma de distribuição entre os agentes de cuidado, que
necessita ser visibilizado a partir da produção de conhecimento sobre
o tema que demanda uma exploração de estudo e investigação.
Embora haja a invisibilidade, Aguirre (2009) pesquisa a utilização do
tempo como ferramenta capaz de informar acerca da integração do
trabalho remunerado e não remunerado, com isso, constrói a concep-
ção de “carga global de trabalho” para inter-relacionar o emprego do
tempo em ambas às formas de trabalho, atualmente há pesquisas do
uso do tempo na América Latina.
Cuidar demanda tempo, trabalho e dedicação, com custos de na-
tureza financeira, emocional, mental e física, pressupondo um “ge-
renciamento de tempo, responsabilidades, afetos, emoções, redes,
trabalho e lazer, participação, elementos difíceis de classificar em
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É sempre assim, tudo sou eu! Cuidado, Gênero e Famílias 59

espaços separados” (CARLOTO, 2015, p.194), que não deveria ser so-

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mente promovido pelas famílias.
A responsabilização das famílias tem sido realizada, essencial-
mente, através de um nebuloso campo de indefinições e ne-
gociações que podemos denominar de “campo do cuidado”. É
justamente nesse campo que ocorre, no cotidiano dos serviços,
os deslizamentos em torno de atribuições de responsabilidades
na provisão de bem-estar. Sob a égide do cuidado se articulam
diferentes estratégias de imposição ou transferência dos custos
do cuidado para as famílias. Tais custos situam-se tanto no arco
dos custos financeiros, como emocionais e de trabalho. (MIO-
TO; PRÁ, 2015, p. 150).

Ainda segundo Mioto e Prá (2015), vale salientar que esse “cam-
po do cuidado” necessita de muito estudo, pois não há uma definição
conceitual de cuidado, sendo assim essa categoria fica solta, pois tudo
e nada pode ser considerado como cuidado.
Tal questão adquire especial relevância quando há o desenvolvi-
mento de trabalhos junto às famílias, pois a falta de definição acerca
do cuidado pode revelar algumas armadilhas a serem consideradas e
enfrentadas ao pensar e trabalhar com as relações familiares, sobre-
tudo, nas categorizações acerca do certo/errado e do bom/ruim, em
uma perspectiva normatizadora e culpabilizadora.

Considerações finais
Ao tomar o cuidado como objeto de estudo constata-se quanto o
caminho é longo, transversal, polissêmico e com múltiplas dimensio-
nalidades, sendo necessário demarcar de que lugar a pesquisa parte
para se debruçar sobre o descortinar desta terminologia.
O presente artigo partiu do pressuposto de apresentar o quanto a cons-
trução deste conceito é transversal, ressaltando que para o estudo das re-
lações sociais de cuidado, o campo das ciências sociais corrobora com
conteúdos que tecem o processo de construção conceitual deste termo.

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60 Thamires da Silva Ribeiro

O aspecto mais recorrente quanto a permanências consiste no


fato de o cuidado ser um trabalho desempenhado, sobretudo, pela
mulher no campo da reprodução social, que por sua vez constrói al-
gumas das condições indispensáveis à estruturação do universo dito
produtivo. Donde a necessidade de aprofundamento dos estudos
que propõem sua valoração no âmbito da contabilização da riqueza
material socialmente produzida.
Portanto, mediante um processo histórico de “feminização” do cui-
dado, onde o homem ainda possui ínfima inserção neste campo da
reprodução social, apesar de se beneficiar muito dele. Esse debate
perpassa pela desigualdade das relações de gênero e da divisão se-
xual do trabalho.
Apesar de o contexto político e econômico ser de Estado Familis-
ta, é necessário haver a responsabilização do mesmo no compartilha-
mento do cuidado, que envolve um processo de transformação do
papel do Estado, por meio da “desfamiliarização” e “desmercantiliza-
ção” (MIOTO, 2009) com a finalidade de promover uma “economía
del cuidado” (ENRÍQUEZ, 2010), saindo da lógica da falência, para a
perspectiva da efetivação do cuidado garantido como direito – e no
âmbito das políticas públicas, devendo ser designado como proteção
social e obrigação do Estado.
No Brasil houve o Projeto de Lei 7.815/2017 apresentado em junho
de 2017 pela deputada Ana Perugini que dispõe sobre a inclusão da
economia do cuidado no sistema de contas nacionais, usado para afe-
rição do desenvolvimento econômico e social do País para a definição
e implementação de políticas públicas.
Esse Projeto de Lei representa um avanço para viabilizar o debate
da economia do cuidado no Brasil, que por sua vez, caminha a passos
pequenos e lentos, se comparado ao debate teórico e proposições de
leis na América Latina.
A economia do cuidado possui múltiplas dimensões, sobretu-
do, no envolvimento do conceito de cuidado que ainda está em

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 43 - 66


É sempre assim, tudo sou eu! Cuidado, Gênero e Famílias 61

construção, onde ao abordá-lo como objeto das ciências sociais,

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econômicas e das políticas públicas requer atenção a múltiplos de-
bates que transitam por discussões muito específicas (exemplo, as
relações de cuidado em família), ao mesmo tempo em que parti-
lham de uma análise mais universal (exemplo da inserção do cuida-
do nas políticas macroeconômicas).
Dessa forma, o compartilhamento do cuidado precisa ocorrer em
nível macrossocial, por meio da responsabilização do Estado a fim de
construir políticas públicas, do mercado anulando as diferenças sala-
riais entre homens e mulheres, e no âmbito das relações intrafamilia-
res, através da ressignificação dos papéis sociais femininos e masculi-
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em 15/03/2014.

Notas

1 Mestre em Serviço Social pela Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-


-Rio), especialista em Desenvolvimento Humano na Abordagem Transdisciplinar
Holística pela Universidade Internacional da Paz (UNIPAZ). Brasil. ORCID: 0000-
0001-8815-7114. Email: thamires.unipaz@gmail.com

2 Pesquisa de publicações realizada no banco de dissertações e teses da Capes, na


Biblioteca Científica Eletrônica da SciELO, na Biblioteca Virtual em Saúde Lilacs e
no Google Acadêmico.

3 Para aprofundar a discussão no âmbito filosófico ver os autores: Martin Heidegger


(2001), Milton Mayeroff (1971), Nel Noddings (1984), Leonardo Boff (2012), Zoboli
(2004), Francesc Torralba (2009), entre outros que abordam o cuidado nessa
perspectiva.

4 Para aprofundar a discussão no âmbito relacional ver os autores: Waldow (2008),


Costa (2013) com a Ética Biofílica do Cuidado, Mayeroff (1971), Noddings (1984) e
Boff (1999 e 2012), entre outros que abordam o cuidado nessa perspectiva.

5 Alteridade refere a aceitação do outro como ele é, dessa forma, se oferta o que o
outro precisa e não o que eu acho melhor para ele (PEREIRA, 2009).

6 Membro da Academia Americana de Enfermagem e Fundadora do subcampo


Transcultural da enfermagem.

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ISSN: 2238-9091 (Online)
66 Thamires da Silva Ribeiro

7 Para aprofundar a discussão ver: Sorj (2013), Esquivel (2012), Carrasco (2012), En-
ríquez (2005), Batthyány (2004), Duarte (2011), Montaño (2010), Aguirre (2009) e
Lyra et al. (2007) entre outros que abordam o cuidado nessa perspectiva.

8 Ver também Scott (1990), Enríquez (2005), Saffioti (2004).

9 O País precursor dos estudos acerca da divisão sexual do trabalho é a França


no início de 1970, sob o impulso do movimento feminista que assentou as bases
teóricas desse conceito (HIRATA; KERGOAT, 2007).

10 Ver mais em: Ackerman (1986) e Bronfenbrenner (1996).

11 O conceito de Familismo, na definição de Esping-Andersen (2000), é apreendido


como a adaptação do Estado a lógica do capital encontrando na família a chave
para a principal provisão de proteção e bem estar, nesse modelo as políticas
públicas atuam somente de forma pontual no fracasso da família e na sua impos-
sibilidade de consumo no mercado.

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Família, trabalho do cuidado e uso do tempo:

ISSN: 2238-9091 (Online)


desafios para mulheres de baixa renda1

Tassiane Antunes Moreira2


Liliane Moser3

Resumo
Inúmeros são os desafios que se apresentam para as mulheres, sobretudo para as
de baixa renda, na tentativa de conciliar as responsabilidades familiares e as deman-
das do trabalho remunerado. A ausência e/ou oferta limitada de serviços dificultam
ou retardam a entrada das mulheres no mercado de trabalho, produzindo tensio-
namentos e demandas para as políticas sociais. Com base em pesquisa qualitativa
realizada com famílias usuárias da Política Nacional de Assistência Social em Floria-
nópolis/SC buscou-se analisar como estas famílias se organizam em relação ao uso
do tempo de maneira a articular as responsabilidades entre trabalho remunerado
e trabalho não remunerado, sobretudo nas tarefas que dizem respeito ao cuidado.

Palavras-chave
Trabalho; Família; Cuidado; Uso do tempo.

Family, care work and time use: challenges for low income women

Abstract
There are many challenges for women, especially those with low incomes, in an at-
tempt to reconcile family responsibilities and the demands of paid work. The ab-
sence and / or limited supply of services hinders or slows the entry of women into
the labor market, producing tensions and demands for social policies. Based on qual-
itative research carried out with families using the National Policy of Social Assistance
in Florianopolis/SC, it was sought to analyze how these families organize themselves
in relation to the use of time in order to articulate the responsibilities between paid
work and unpaid work, tasks that concern care.

Keywords
Work; Family; Care; Time-use.

Artigo recebido: agosto de 2018


Artigo aprovado: outubro de 2018

pg 67 - 94 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


68 Tassiane Antunes Moreira e Liliane Moser

Introdução
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As pessoas desenvolvem suas atividades de acordo com o tem-


po de que dispõem. Toda atividade custa tempo. Há um tempo ob-
jetivo, que permite classificar e medir temporalmente os aconte-
cimentos, porém pouco sabemos sobre a experiência subjetiva do
tempo. Todas as pessoas, homens e mulheres, têm noções diferen-
tes de tempo e, por isso, tendem a dispor de seu tempo de maneira
distinta (ARRIAGADA, 2005).
Com o advento do capitalismo, a industrialização produziu uma di-
visão entre trabalho na fábrica e trabalho na casa (MORAES, 2015).
Nessa conjuntura, família e trabalho passaram a ser tratados como es-
feras distintas, ou seja: a família, vinculada à ordem da reprodução, e o
trabalho, à ordem da produção. A partir dessa separação, vislumbrou-
-se também a divisão sexual do trabalho, onde a mulher foi associada
ao trabalho de reprodução e de cuidados com o lar, e o homem, ao
trabalho na fábrica e de provedor da família.
No Brasil ainda predomina a norma de que a responsabilidade pelos
cuidados com a casa e com a família e as demais atividades realizadas
na esfera do privado são atribuições das famílias, incidindo na respon-
sabilização das mulheres (SORJ et al., 2007).
No século 21, as mulheres , em sua grande maioria, continuam res-
pondendo pela compra e preparo dos alimentos, pelo cuidado com
crianças, idosos, enfermos e pessoas com deficiência, pela manuten-
ção e higiene do espaço doméstico e das roupas dos membros da
família, além de zelar pelos cuidados de saúde e educação de todos.
Todas essas atividades cotidianas exigem grande esforço físico, de-
mandam muito tempo e, apesar de “invisibilizadas”, são indispensáveis
para a reprodução social e econômica de nossa sociedade. As reduzi-
das possibilidades de conciliação entre todas essas tarefas, referidas
como trabalho remunerado e trabalho não remunerado, trazem im-
portantes impactos não somente para as mulheres, que geralmente
passam a ter uma sobrecarga laboral, mas também para homens e

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 67 - 94


Família, trabalho do cuidado e uso do tempo: desafios para mulheres de baixa... 69

crianças, vindo a repercutir de maneira significativa na estruturação de

ISSN: 2238-9091 (Online)


serviços e políticas públicas.
Historicamente, o Estado se organizou com base num arranjo fami-
liar, que conta com o trabalho feminino para suprir as lacunas dos servi-
ços públicos, e as políticas sociais que, nesse cenário, conforme aponta
Fontoura et al. (2010), acabam sendo calcadas num modelo tradicional
de família e, com isso, em tradicionais convenções de gênero.
Essa configuração, no entanto, vem sendo colocada em xeque à
medida que as mulheres ocupam, a cada dia, mais espaço no merca-
do de trabalho. A tradicional divisão sexual do trabalho, com um ho-
mem provedor encarregado do trabalho para o mercado e uma mu-
lher cuidadora, responsável pelo trabalho reprodutivo, dá lugar a um
arranjo no qual homens e mulheres realizam o trabalho no mercado,
enquanto o trabalho reprodutivo continua, em sua grande maioria, a
cargo das mulheres.
No cuidado da casa e da família, as mulheres assumem uma du-
pla jornada, intensificando seu tempo de trabalho. Enquanto isso, os
homens não assumiram da mesma forma a sua parte na responsa-
bilidade das tarefas domésticas. A diferença de gênero no uso do
tempo se aprofunda nos grupos socioeconômicos mais pobres, onde
as mulheres pobres são as que gastam mais tempo com as tarefas do
domicílio. De acordo com as análises de pesquisas sobre a divisão
do trabalho doméstico no Brasil, Ribeiro (2005, p. 199) conclui: “não
resta dúvida de que as mulheres são as principais responsáveis pelo
trabalho doméstico. Fica comprovado que as mulheres brasileiras de
todas as classes sociais enfrentam realmente jornadas duplas”.
Nas camadas sociais mais pobres, os conflitos para a conciliação
entre trabalho familiar e trabalho remunerado se agravam, por dis-
porem de menos recursos econômicos para comprar serviços de
apoio nas tarefas domésticas ou por terem de atender um número
maior de crianças. Ribeiro (2005) também reflete que os estudos so-
bre a divisão sexual do trabalho mostram a rigorosa relação entre

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trabalho remunerado e não remunerado, o que, associado à esfera


da produção econômica e da reprodução social, revela o efeito das
obrigações domésticas na vida das mulheres, limitando seu avan-
ço profissional. Assim, com carreiras interrompidas, baixos salários
e empregos de baixa qualidade, as mulheres terminam por priorizar
a esfera da vida privada.
Inúmeros são os desafios que se apresentam para as mulheres, so-
bretudo para as de baixa renda, na tentativa de conciliar as responsa-
bilidades familiares e as demandas do trabalho. A ausência e/ou oferta
limitada de serviços, como creches, pré-escolas, programas de con-
traturno escolar, entre outros, dificultam ou retardam a entrada das
mulheres no mercado de trabalho, produzindo tensionamentos e de-
mandas para as políticas sociais.
Com base na problematização exposta, realizou-se pesquisa quali-
tativa com famílias usuárias da Política Nacional de Assistência Social
em Florianópolis (SC) com o objetivo de analisar como estas famílias
se organizam em relação ao uso do tempo de maneira a articular as
responsabilidades entre trabalho remunerado e trabalho não remune-
rado, sobretudo nas tarefas que dizem respeito ao cuidado.
A abordagem assumida busca desnaturalizar e dar visibilidade ao
trabalho do cuidado realizado no espaço doméstico, bem como refle-
tir sobre a necessidade de instauração de mecanismos públicos que
proporcionem às mulheres e às famílias condições para gerir o traba-
lho de reprodução social e para enfrentar os problemas advindos da
precarização do mundo do trabalho.
A complexidade dos elementos apontados abre inúmeras possibili-
dades de pesquisa. Instigar essa reflexão no campo do Serviço Social é
indispensável, pois os assistentes sociais se defrontam cotidianamen-
te com os conflitos gerados nas relações entre o mundo do trabalho
e o mundo da família. A explanação realizada visa mostrar o solo que
propiciou o desenvolvimento das ideias e categorias de estudo, ele-
mentos que serão explicitados no decorrer deste artigo.

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Família, trabalho do cuidado e uso do tempo: desafios para mulheres de baixa... 71

Trabalho, família e as tensões entre essas esferas

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Nas últimas décadas, cresceu o interesse pelo tema do equilíbrio
entre trabalho e responsabilidades familiares. Cada vez mais se re-
conhece que os conflitos entre vida laboral e vida familiar têm efeito
negativo sobre a qualidade de vida dos indivíduos. Nesse sentido,
o equilíbrio entre trabalho e responsabilidades familiares constitui
um tema de grande desafio na sociedade contemporânea e tem sido
abordado por ângulos distintos.
Trabalho e família constituem-se aparentemente como duas esfe-
ras regidas por lógicas distintas – uma pública e outra privada – mas
que, no entanto, se afetam mutuamente. As pessoas precisam traba-
lhar para satisfazer suas necessidades econômicas e pessoais e, ao
mesmo tempo, cuidar da família e desempenhar tarefas domésticas
não remuneradas em seus lares. O uso do tempo, na maioria das vezes
escasso, torna a relação entre essas duas esferas tensa e conflituosa.
No Brasil, as últimas duas décadas foram marcadas por mudanças
no mercado de trabalho e na estrutura das famílias. Segundo a Síntese
de Indicadores Sociais (IBGE, 2016), a configuração das famílias tem
se modificado em razão da dinâmica social, de mudanças no perfil
demográfico e na legislação vigente. Muitos fatores têm efeito sobre a
formação das famílias, tais como, entre outros, o aumento da esperan-
ça de vida, o declínio da fecundidade, a migração para áreas urbanas,
o aumento da escolaridade e da inserção das mulheres no mundo do
trabalho, a atualização na legislação sobre divórcio, separação, união
estável e casamento entre pessoas do mesmo sexo.
A queda da fecundidade, o aumento da escolaridade e da inserção
das mulheres no mercado de trabalho são alguns fatores que produ-
zem alterações nos arranjos familiares. Uma dessas mudanças foi o
aumento, de 2005 a 2015, da proporção de mulheres que se encon-
travam na condição de pessoa de referência da família.
Outra mudança notória observada no mesmo período é a diminui-
ção do tipo de família tradicional nuclear. Sobre esse assunto gosta-

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ríamos de ressaltar que, durante muito tempo, a família nuclear com


presença de ambos os pais e filhos foi considerada – e ainda é – o
paradigma da família ideal e o modelo de família sobre o qual se pla-
nejam as políticas públicas. No entanto, a nova configuração dos lares
sugere a necessidade de novas políticas dirigidas tanto para homens
quanto para mulheres, assim como para as instituições sociais, as
quais devem apoiar as famílias no atendimento de suas necessidades
em dupla perspectiva: políticas orientadas para conciliar trabalho e fa-
mília e políticas eficazes para dar o apoio necessário para o cuidado de
filhos, idosos e demais dependentes.
Tradicionalmente, a maioria das políticas governamentais é orien-
tada a partir de um conceito de família em que há a presença de pai e
mãe vinculados pelo matrimônio, com perspectiva de convivência de
longa duração, onde os papéis de gênero estão perfeitamente defini-
dos: as mulheres responsáveis pelos trabalhos domésticos e de cui-
dados, e os homens, pelos trabalhos extra domésticos. Esse modelo
pressupõe obrigações e direitos definidos, bem como uma interação
constante entre os membros do grupo familiar, no qual se visualiza um
modelo de responsabilidades assimétricas com relações pouco de-
mocráticas (ARRIAGADA, 2007).
Atualmente, a partir das diversas transformações sociofamiliares e à
medida que as mulheres ocupam cada vez mais espaço no mercado de
trabalho, essa configuração vem sendo questionada. Porém, apesar dos
notórios avanços com relação à inserção das mulheres no mundo do
trabalho, as desigualdades nas relações de gênero dentro das famílias e
em famílias de diferentes classes ainda persistem. Apesar de as mulhe-
res terem menos filhos, seu papel de cuidadoras mantém-se como uma
importante causa de desigualdades, transmitidas geracionalmente pela
socialização dos filhos na divisão sexual do trabalho (ITABORAÍ, 2016).
Os estudos sobre o uso do tempo permitem investigar essas desi-
gualdades. Eles ilustram um retrato do cotidiano das pessoas e, com
isso, configuram-se como uma das maneiras de avaliar como o re-

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curso tempo é utilizado de maneira distinta entre homens e mulheres,

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entre os grupos etários, entre pessoas de variados grupos raciais e de
diferentes classes sociais. Este tipo de pesquisa é crucial para a com-
preensão das desigualdades de gênero e para evidenciar o trabalho do
cuidado, sobretudo no interior das famílias. A alocação das horas no
trabalho remunerado e não remunerado influenciam nas diferenças de
papéis sociais e de poder desempenhados por homens e mulheres. Há
uma injusta distribuição de tarefas do trabalho doméstico familiar e de
cuidado que precisam ser mais bem compreendidos.

Os estudos sobre o uso do tempo e as contribuições para a


formulação de políticas públicas
O tempo é um recurso fundamental, que é distribuído igualmente
entre todos, mas pode ser usado de diferentes maneiras. A forma
como as pessoas organizam e distribuem seu tempo afeta o bem-
-estar econômico e social e tem impactos sobre a família e a comu-
nidade onde vivem. No cenário internacional da produção de esta-
tísticas sociais e econômicas, tem-se tornado consensual a ideia de
que medidas de uso do tempo devem ser incluídas na formulação de
indicadores para avaliar as condições de vida da população (CAVAL-
CANTI; PAULO; HANY, 2010).
As pesquisas sobre o uso do tempo configuram-se como uma
das maneiras de elaborar esses indicadores e avaliar como o recurso
tempo é utilizado de maneira distinta entre homens e mulheres, en-
tre os grupos etários, entre pessoas de variados grupos raciais e de
diferentes classes sociais. Esse tipo de pesquisa busca informações
sobre as diversas atividades que os indivíduos realizam ao longo de
um determinado período, geralmente um dia (24 horas). Com isso,
ilustram um retrato do cotidiano das pessoas, abrangendo todas as
atividades humanas realizadas.
Para a temática de gênero, as pesquisas de uso do tempo são ex-
cepcionalmente importantes, uma vez que as atividades a que homens

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e mulheres se dedicam refletem os papéis sociais e as desigualdades


de condições e oportunidades entre os sexos.
Conforme informações disponibilizadas por Cavalcanti, Paulo e
Hany (2010), nos países desenvolvidos as pesquisas sobre o uso do
tempo vêm sendo realizadas regularmente desde a década de 1960.
Na América Latina, alguns países adotaram o estudo do tema a partir
da década de 1990. Nessa época, a Divisão de Estatística da Organi-
zação das Nações Unidas (ONU) começou a sistematizar modelos e
métodos para a realização desse tipo de pesquisa, criando um ma-
nual para a produção de estatísticas de uso do tempo com o intuito
de facilitar a comparabilidade internacional de dados. A ONU tam-
bém criou em 1997 uma classificação de atividades própria, a Inter-
national Classification of Activities for Time Use Statistics (ICATUS),
adotada por alguns países.
No Brasil, até o início da década de 1990, as instituições oficiais de
estatística do País não geravam qualquer tipo de informação que pu-
desse subsidiar o debate político sobre o uso do tempo, especialmente
sobre as desigualdades de gênero no exercício das tarefas domésticas
e de cuidado e sobre seus impactos na qualidade de vida da popula-
ção nacional (FONTOURA et al., 2010).
Como resultado, em 1992, o Instituto Brasileiro de Geografia e Esta-
tística (IBGE) incluiu em sua principal pesquisa domiciliar – a Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) – duas questões relacio-
nadas ao uso do tempo e à reprodução social: a primeira questionava
a realização de afazeres domésticos por parte de todos os membros
do domicílio, e a segunda indagava sobre o tempo médio gasto sema-
nalmente no deslocamento casa-trabalho-casa.
Quase uma década depois, em 2001, o IBGE incorporou mais
uma pergunta à PNAD, relacionada ao tempo médio dedicado se-
manalmente à realização dos afazeres domésticos. Tal temática as-
sumiu novos contornos quando foi criada em 2003 a Secretaria de
Políticas para as Mulheres (SPM).

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Em 2008, ao contemplar o crescente debate do tema no contexto

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internacional, o governo brasileiro instituiu o Comitê de Estudos de
Gênero e Uso do Tempo com o objetivo de aprofundar a discussão
no País. Esse Comitê foi composto por representantes da Secretaria
Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), do IBGE e do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Foram convidados permanentes
do Comitê o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a
Mulher (UNIFEM) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT). A
partir da criação do Comitê, o IBGE e as demais instituições envolvidas
se comprometeram oficialmente com a questão. Diante do apoio e in-
centivo do grupo, possibilitou-se a realização da primeira Pesquisa de
Uso do Tempo no Brasil, realizada pelo IBGE em 2009.
As pesquisas sobre o uso do tempo realizadas no Brasil, bem como
em outras partes do mundo, utilizam-se de distintos tipos de metodo-
logia de investigação, dentre as quais podem-se destacar: o emprego
de diários para registro do que é realizado no decorrer do dia; o uso de
perguntas para estimar o tempo despendido em atividades determina-
das, por meio de uma espécie de diário estilizado; a utilização de obser-
vação de atividades desenvolvidas pela população estudada para o seu
levantamento em um dado intervalo de tempo; o uso de aparatos com-
putacionais para pesquisar atividades, utilizados como principais instru-
mentos de registro, ou em combinação com diários ou questionários.
Apesar dos avanços, a experiência brasileira com diários do uso
do tempo ainda é recente, possui caráter localizado, e as perguntas
relacionadas às tarefas desenvolvidas referem-se a um número res-
trito de atividades.
Em comparação com outros países que apresentam similar desen-
volvimento econômico, como Uruguai, México e Venezuela, o Brasil
ainda possui escassa produção de pesquisas sobre o uso do tempo.
Ademais, vale lembrar que tal escassez se encontra em todos os cam-
pos de conhecimento correlatos, como a Demografia, a Sociologia e
principalmente no Serviço Social.

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Para Fontoura et al. (2010), há um consenso de que a produção es-


tatística sobre o uso do tempo no Brasil ainda é insuficiente para subsi-
diar a formulação de políticas públicas de conciliação entre trabalho e
vida familiar e para uma discussão mais aprofundada de metodologias
de contabilização do trabalho reprodutivo na economia nacional.
Contudo, acredita-se na potencialidade desse tipo de estudo e, as-
sim, com base nas metodologias de estudos sobre o uso do tempo e
apoiado em revisão bibliográfica de literatura, pretende-se neste ar-
tigo, a partir de uma abordagem qualitativa e por meio da apresenta-
ção de dados prospectados em pesquisa de campo, pontuar aspectos
referentes ao uso do tempo e o trabalho do cuidado entre famílias de
baixa renda em Florianópolis (SC).

O Trabalho do Cuidado: a pesquisa em questão


De maneira geral o cuidado tem sido apresentado pelos estudiosos
europeus como um conceito polissêmico, vinculado à reprodução e
desenvolvido na família, e tem seguido diferentes tendências teóricas
(LETABLIER, 2007 apud MIOTO, 2017).
Gama (2014) aponta que, em termos gerais, o cuidado pode ser
compreendido como uma atividade feminina geralmente não remune-
rada, sem reconhecimento nem valoração social. Compreende tanto o
cuidado material como o imaterial que implica um vínculo afetivo e
emocional. Supõe vínculo entre quem presta e quem recebe cuidado.
Para a autora, o trabalho do cuidado inclui:

[...] (a)o cuidado direto às pessoas como alimentá-las e limpá-


-las; (b) o cuidado indireto onde uma pessoa é responsável por
e supervisiona as necessidades de cuidado de uma pessoa, mas
sem interagir diretamente e (c) serviços de suporte tais como
cozinhar e limpar que provê as condições para o cuidado mais
direto. [...] O trabalho do cuidado pode ser remunerado e não
remunerado. (GAMA, 2004 apud RAZAVI; STAAB, 2008, p.5).

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Aguirre (2007) classifica o cuidado em duas categorias: o cuida-

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do proporcionado a crianças e adolescentes – em que, junto com a
obrigação, há uma fonte de gratificação – e o cuidado que se destina
àqueles portadores de enfermidades, crônicas ou agudas, denomina-
do de cuidado assistencial.
Carloto (2015) aponta que há uma dimensão comum aos estudiosos do
tema, que tem sido a questão de dar visibilidade à dimensão emocional e
afetiva dos cuidados. Para a autora, estabelece-se um vínculo emocional
entre o que cuida e o que recebe cuidados, um vínculo pelo qual o indi-
víduo que propicia os cuidados se sente responsável pelo bem-estar do
outro e faz um esforço tanto emocional quanto físico para poder cumprir
essas responsabilidades. Assim, o cuidado é resultado de inúmeros atos
pequenos e sutis, conscientes ou inconscientes que não se pode conside-
rar que sejam realizados de forma natural ou sem esforços.
Razavi e Staab (2008) diferenciam o trabalho não remunerado e o
trabalho do cuidado. Ao desenvolverem uma análise socioeconômica,
assim definem o trabalho do cuidado:

Trabalho do cuidado – inclui: (a) o cuidado direto às pessoas, como


alimentá-las e limpá-las; (b) o cuidado indireto onde uma pessoa
é responsável por e supervisiona as necessidades de cuidado de
uma pessoa, mas sem interagir diretamente e (c) serviços de su-
porte, tais como cozinhar e limpar, que provê as condições para o
cuidado mais direto. Aqueles com intensas necessidades de cui-
dado incluem crianças pequenas, idosos fragilizados e pessoas
com variados tipos de doenças e incapacidades, também reque-
rem e recebem cuidados. Cuidados diretos e indiretos algumas
vezes são vistos como separados de outras atividades que prove-
em as condições para o cuidado pessoal, tais como a preparação
de refeições, as compras, lavar roupas e limpar a casa (trabalho
doméstico). Porém, tais fronteiras são arbitrárias, especialmente
se as pessoas que necessitam de cuidado intensivo são incapazes
de realizar tais tarefas. O trabalho do cuidado pode ser remunera-
do ou não remunerado. (RAZAVI, STAAB, 2008, p. 5).

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Para Carrasco (2003 apud CARLOTO, 2015), é difícil distinguir o tra-


balho doméstico do trabalho de cuidados, já que, nos bens e serviços
produzidos dentro do lar, é mais complicado separar os aspectos afe-
tivo-relacionais da atividade em si, porque envolvem elementos pes-
soais, diferentemente dos bens mercantis.

Perfil das Mulheres Entrevistadas


Do público entrevistado, todas eram mulheres, com idade entre
16 a 60 anos. Quatro se declararam brancas, enquanto uma se de-
clarou negra. Das cinco entrevistadas, três eram casadas ou viviam
em união estável, enquanto uma era viúva e uma solteira. A idade
das respondentes corresponde, em ordem crescente, a 16, 30, 33,
54 e 58 anos de idade.
Uma primeira representação sobre o público que acessa o CRAS
é que ele é composto em sua maioria por mulheres. Ao nos ques-
tionarmos sobre essa constatação, buscamos os aportes teóricos que
evidenciam a centralidade da família como protagonista de suas pró-
prias demandas sociais na Política de Assistência Social e que realça os
papéis de gênero historicamente atrelado às mulheres.
Para Freitas, Braga e Barros (2010), o contato da família para
acessar os serviços públicos disponibilizados pelo Estado continua
acontecendo em grande parte pela figura materna. As políticas so-
ciais dirigidas a esse público tomam como pressuposto a presen-
ça de alguém em casa para cuidar dos dependentes, e esse lugar
é naturalmente identificado como lugar da mulher. Nesse contexto,
elas surgem como agentes de reprodução social, administradoras de
conflitos e mediadoras das expressões da questão social; são res-
ponsáveis pelos cuidados com as crianças e adolescentes, idosos e
pessoas com deficiência, contraditoriamente os principais usuários
de atendimento da política de assistência social. Não obstante, rea-
firmam-se as construções históricas de gênero e as diferenças entre
homens e mulheres na condução das relações sociais.
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Com relação à ocupação, das cinco entrevistadas, apenas uma de-

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las exercia trabalho remunerado com carteira de trabalho assinada,
ou seja, estava inserida no mercado de trabalho formal. As outras afir-
maram exercer cargos na informalidade, como diarista e vigilante de
estacionamento, fazendo bicos nos horários disponíveis, ou seja, no
horário em que não estavam dedicando seu tempo ao trabalho fami-
liar no espaço doméstico.
Uma usuária afirmou estar desempregada, enquanto duas são do-
nas de casa, dedicando-se exclusivamente ao trabalho doméstico, ao
trabalho do cuidado e ao trabalho de acesso aos serviços públicos e
de relação com as instituições.
A participação feminina no mercado de trabalho tem crescido nos
últimos anos. Segundo informações divulgadas no site do IBGE (2018),
em 2007 as mulheres representavam 40,8% do mercado formal de
trabalho; em 2016, passaram a ocupar 44% das vagas.
Embora se observe esse aumento expressivo, as responsabilida-
des familiares, sobretudo aquelas relacionadas ao trabalho do cuidado,
constituem uma barreira importante para o acesso ao trabalho remune-
rado e podem restringir opções de emprego e limitar a capacidade de
gerar renda. Elas afetam particularmente as mulheres, já que, historica-
mente, essas responsabilidades recaem proporcionalmente sobre elas.
Esse problema se agrava quando inserimos a variável “filhos” no
cruzamento e análise dos dados coletados. Gama (2014, p. 21) ressalta
que “[...] a grande desvantagem das mulheres no mercado de trabalho
ocorre quando suas crianças são pequenas”. A autora salienta que a
taxa de participação feminina no mercado de trabalho é muito mais
sensível ao tipo de arranjo familiar no qual estão inseridas do que para
os homens. Independentemente da estrutura familiar, a taxa de parti-
cipação dos homens no mercado de trabalho nunca é menor do que
84,7%, enquanto que, para as mulheres, dependendo da estrutura da
família, a taxa de participação pode variar entre 86,9% e 55,3% (SORJ;
FONTES; MACHADO, 2007 apud GAMA, 2014).

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Em suas análises, Moser (2013) observa que as mulheres que têm


filhos apresentam menor ingresso no mundo do trabalho, principal-
mente nas situações em que não há o compartilhamento dos afazeres
domésticos e dos cuidados com as crianças. Conforme aponta a pes-
quisa do Dieese:

A presença de filhos pequenos não parece impedir a mulher de


procurar trabalho, mas acaba por prejudicar, tornando mais di-
fícil seu acesso a uma ocupação, seja por limitar sua escolha de
trabalho por um local mais próximo à sua residência ou por um
tipo de jornada de trabalho menor ou mais flexível, ou ainda,
pelo lado do empregador, por preferir contratar mulheres que
não têm filhos pequenos. (DIEESE, 2011, p. 13).

As responsabilidades familiares das mulheres com filhos atuam


como obstáculos ou desincentivos à inserção das mulheres no mer-
cado de trabalho e confirmam a urgência da atenção por parte dos
gestores de políticas públicas para ampliação da oferta de vagas em
creches e ensino infantil, sobretudo no caso de famílias monoparen-
tais de referência feminina.
Quando questionadas sobre a estrutura familiar, três entrevistadas
declararam estar casadas ou vivendo em união estável, enquanto uma
se declarou viúva, e uma, solteira.
Entre as entrevistadas não foram identificadas mulheres inseri-
das em arranjo familiar monoparental de referência feminina com
filhos pequenos.
Duas participantes declararam ser a pessoa de referência da família.
Destas, a primeira referiu ter dois filhos adultos, que não estão inseri-
dos no mercado de trabalho e se declarou responsável pelas despesas
financeiras deles. A segunda, por sua vez, relatou estar na posição de
cuidadora de uma pessoa com deficiência e de uma pessoa idosa.
Três entrevistadas têm filhos pequenos, na faixa etária com até seis
anos de idade, sendo que uma delas também é mãe de uma adolescente

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de 12 anos. Esse dado é relevante, uma vez que o cuidado com crianças

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e adolescentes resulta em uma grande carga de trabalho para a mulher –
que é historicamente responsabilizada pelo cuidado doméstico e familiar.
Somada à histórica responsabilização da mulher como única res-
ponsável pelo cuidado com os filhos e a ausência e/ou negligência
de cuidados pelos homens, problematiza-se a desresponsabilização
do Estado pelas políticas públicas de cuidado com as crianças e jo-
vens. Exemplos são citados por Carloto (2015), que aponta a carência
de instituições gratuitas e acessíveis de ensino infantil e a inexistência
de escolas públicas em período integral – o que tiraria parte da carga
imputada às mulheres na questão do cuidado com as crianças e pos-
sibilitaria que elas pudessem se capacitar e ingressar no mercado de
trabalho para exercer um mínimo de autonomia.
As taxas de desemprego e a inserção precária no mercado de tra-
balho das mulheres que têm filhos, principalmente filhos pequenos,
sugerem que elas tendem a diminuir suas exigências profissionais, já
que estão em condições de cuidadoras da família e dispõem de pouco
tempo livre para concorrer as vagas que exigem maiores qualificações
profissionais e, consequentemente, ofertam remuneração mais alta.
Chamou-nos atenção a quantidade de pessoas que compõem o
arranjo familiar. Em relação à quantidade de pessoas que moram na
casa, a maior parte se concentra entre três a quatro moradores. Essa
questão mostra a diminuição no tamanho das famílias entre as classes
mais pobres e vai ao encontro da PNAD de 2013 feita pelo IBGE, na
qual se constatou declínio desde 2003 de 15,7% no número de filhos
entre os 20% mais pobres.
Quanto à escolaridade das entrevistadas, das cinco mulheres que
participaram da pesquisa, uma concluiu o ensino fundamental, três
finalizaram o ensino médio, e uma possui ensino superior completo
com formação em administração.
No Brasil, a média de anos de estudo, o nível de instrução e a taxa
de analfabetismo proporcionam um retrato da escolaridade acumu-

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lada ao longo de gerações de brasileiros. A escolaridade média da


população de 25 anos ou mais de idade aumentou de 2005 a 2015,
passando de 6,5 para 7,9 anos de estudo completos, indicando uma
baixa taxa de alfabetização. Essa média, no entanto, apresenta algu-
mas diferenças regionais. Segundo dados coletados no Censo Demo-
gráfico do IBGE (2010), a Região Sul é a que apresenta o maior nível
de escolaridade no País, fato que possivelmente justifique o nível de
instrução das respondentes.
Quando questionadas sobre a renda mensal, as usuárias da Política
Nacional de Assistência Social do CRAS Ingleses do Rio Vermelho in-
formaram qual a sua contribuição financeira para o núcleo familiar no
qual estão inseridas. Das cinco entrevistadas, apenas uma não possui
renda, duas declararam ganhar até um salário mínimo, uma afirmou
receber o valor mensal entre um e dois salários mínimos, e uma referiu
ganhar o equivalente a três salários mínimos.
Quanto aos dados relativos ao recebimento de benefícios sociais
mensais, três das interrogadas afirmaram não receber benefício men-
sal, uma delas recebe uma pensão por morte no valor de um salário
mínimo e uma recebe o Bolsa Família. Importante ressaltar que uma
das entrevistadas não recebe benefício e está desempregada, no en-
tanto afirmou que, em seu núcleo familiar, a mãe idosa e o irmão defi-
ciente recebem o Benefício de Prestação Continuada (BPC).
Finalizando a apresentação dos dados relativos ao perfil das entre-
vistadas, no próximo item, serão apresentados elementos relativos ao
tempo despendido pelas famílias com o trabalho do cuidado.

Famílias referenciadas no CRAS Ingleses do Rio Vermelho: o tempo


gasto com o trabalho do cuidado
A questão do tempo gasto pelas mulheres em atividades relati-
vas ao cuidado foi um dos temas abordados nesta pesquisa. Quando
questionadas sobre os sujeitos que compõem o núcleo familiar e que
residem na mesma casa, todas as entrevistadas afirmaram conviver

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com pessoas que necessitam de cuidados, em cujo perfil se destacam

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crianças, adultos e pessoas com deficiência.
Foram entrevistadas famílias com arranjos familiares distintos. Den-
tre eles destacam-se, casal com filhos, mulher sem cônjuge e com
filhos e mulher sem cônjuge e sem filhos. Quanto à faixa etária desses
sujeitos, ela varia entre 10 meses a 79 anos de idade.
Ao serem interrogadas sobre os tipos de cuidados que são pres-
tados, as participantes relataram realizar as seguintes atividades: dar
de comer ou ajudar; dar banho e vestir ou ajudar; dar medicamentos;
fazer alguma terapia especial e ajudar a fazer exercícios e acompa-
nhar a consulta médica.
Das cinco entrevistadas, quatro relataram realizar atividades de cui-
dado a algum familiar que necessita de cuidados em sua residência.
Uma respondente relatou auxiliar em terapias e ajudar a fazer exercí-
cios, e uma mencionou o acompanhamento a consulta médica.
Todas as entrevistadas referiram gastar muito tempo com atividades
de cuidados. Dentre as participantes, nos chamou especial atenção uma
mulher que tem uma filha com deficiência – paralisia cerebral, de 10 me-
ses de idade, a qual necessita de cuidados especiais diariamente. A crian-
ça realiza acompanhamento com fisioterapeuta duas vezes por semana e
hidroginástica uma vez por semana. Ela necessita consultar a nutricionista
três vezes ao mês e tem consulta com neurocirurgião e neurologista a
cada dois meses. A entrevistada é mãe de uma adolescente de 12 anos
de idade que também demanda cuidados, sendo que a participante é a
principal responsável pelo trabalho doméstico em sua residência.
Outra respondente relatou ser cuidadora da mãe idosa, que tem 79
anos de idade e está com demência, e do irmão de 41 anos que é de-
ficiente visual. Nesse caso, a entrevistada teve que abrir mão do em-
prego formal com carteira assinada para assumir as responsabilidades
de cuidado dos familiares.
As demais entrevistadas comentaram sobre o trabalho de cuida-
dos com crianças, e uma delas relatou ser a principal responsável pelo

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cuidado dos filhos adultos de 27 e 29 anos, que não estão inseridos no


mercado formal de trabalho e não auxiliam nas tarefas referentes ao
trabalho doméstico.
Ao contabilizar as horas gastas com atividades relativas ao cuidado,
constatamos que as participantes da pesquisa consomem uma média
de três horas por dia para a realização das referidas atividades. Conta-
bilizando a carga horária semanal, a média é de 21 horas e 30 minutos.
Para Moser e Dal Prá (2016), as tarefas relativas ao trabalho do cui-
dado voltam-se, principalmente, àqueles familiares que se encontram
em situação de dependência, notadamente crianças, idosos, doentes
e pessoas com deficiência. O cuidado, quando incorporado como res-
ponsabilidade domiciliar, reforça as atribuições da família na provisão de
bem-estar social. Ou seja, na tônica do cuidado são articuladas diferen-
tes estratégias de imposição ou de transferência dos custos de natureza
financeira, emocional e, em especial, do trabalho no cuidado às famí-
lias. As responsabilidades que envolvem o cuidado de familiares exigem
grande esforço físico e mental e disponibilidade de tempo e recursos.
Na maioria das famílias, uma única pessoa assume a maior parte
da responsabilização do cuidado, sendo geralmente a mulher – são
as esposas, filhas, noras, irmãs, avós. A partir do momento em que se
tornam cuidadoras, as mulheres assumem inúmeras funções que não
somente a de cuidar especificamente de outra pessoa no processo
saúde/doença. Acabam desenvolvendo diversas outras atividades no
espaço doméstico, ou seja, no espaço de reprodução, como cuidar da
casa, dos filhos, do marido etc.; o que, por inúmeras vezes, traz sérias
consequências a seu cotidiano, como conflitos nas relações familiares,
reações emocionais e consequências sobre a saúde, sobre a vida pro-
fissional, relacionadas à diminuição de atividades de lazer, entre outras
delas (MOSER, DAL PRÁ, 2016).
O cuidado com os filhos é uma das atividades que mais consome
o tempo de trabalho doméstico das mulheres. Quando se trata do bi-
nômio saúde/doença, os cuidados requerem atenção especial e uma

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Família, trabalho do cuidado e uso do tempo: desafios para mulheres de baixa... 85

dinâmica diferenciada, que muitas vezes implica o auxílio em diversas

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atividades diárias e pode exigir a prática de terapias especiais, auxí-
lio no uso correto de medicamentos e acompanhamento às consultas
médicas, entre outras.
Moser e Dal Prá (2016) consideram:
O significado ou o sentido de cuidado está relacionado não so-
mente ao processo saúde/doença, mas sim a um aspecto mais
abrangente que diz respeito a “doar” parte de sua vida para outra
pessoa, estando ela doente ou não. O cuidado remete a zelo, aten-
ção, responsabilidade, dedicação e compromisso, principalmente
por parte da figura feminina. (MOSER; DAL PRÁ, 2016, p. 386).

Dessa forma, o cuidado é compreendido como trabalho familiar,


sendo realizado principalmente pelas mulheres e normalmente fazen-
do parte do trabalho doméstico, sem remuneração (BARCELOS, 2011).
Dialogando com Carloto (2015, p. 186), percebe-se que insuficiência
de serviços públicos na esfera dos cuidados penaliza mais as mulheres
de famílias mais empobrecidas, na medida em que “atrapalha” a inser-
ção delas no mercado de trabalho, e aumenta o tempo de trabalho (não
remunerado), na reprodução dos membros da família e ainda limita a
cidadania feminina, pois inviabiliza sua inserção e permanência quali-
tativa no mercado de trabalho e na participação de decisões coletivas.
Carrasco (2003) aponta uma característica sobre o trabalho do cui-
dado, que é não ser linear, pois segue o ciclo da vida, intensificando-se
quando se trata de cuidar de pessoas dependentes: crianças, idosas ou
doentes. Outra característica destacada pela autora é que os tempos
de cuidados diretos são mais rígidos no sentido de que não podem ser
agrupados e muitos deles exigem horários e jornadas fixas e, em conse-
quência, apresentam maiores dificuldades de combinação com outras
atividades. Como exemplo, podem-se citar os horários de funciona-
mento das Unidades Básicas de Saúde (UBS), das escolas e das dificul-
dades das mulheres que trabalham em horário comercial fora do lar,
trata-se, portanto, do tempo gasto com o acesso aos serviços públicos.

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86 Tassiane Antunes Moreira e Liliane Moser

Cuidados pessoais e de atenção à saúde: como ficam as mulheres


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cuidadoras?
Neste item, buscamos refletir sobre os cuidados pessoais e de aten-
ção à própria saúde das entrevistadas.
Ao responderem questões referentes às horas de sono, as entrevis-
tadas referiram dormir de três a sete horas diárias.
Quanto às horas gastas com higiene e cuidados pessoais, como to-
mar banho, escovar os dentes, cortar as unhas, etc., as entrevistadas
afirmaram gastar de 20 minutos a uma hora diária.
No tocante à prática de exercícios físicos, as respondentes relata-
ram não praticar nenhum exercício físico, exceto andar de bicicleta,
que, nesse caso, configura-se como uma necessidade, pois se trata do
meio de locomoção disponível, dada a ausência de transporte público
eficiente e de qualidade em Florianópolis.
Quando questionadas sobre as horas de descanso, todas as entre-
vistadas afirmaram não dispor de tempo para descansar, pois estão
sempre articulando estratégias de diferentes tipos a fim de conciliar
as demandas entre trabalho e responsabilidades familiares.
Nota-se, a partir da reflexão sobre o trabalho do cuidado – es-
pecialmente ao se considerarem as horas gastas com cuidados
pessoais –, que a vida e o cotidiano das mulheres entrevistadas
são para os outros, de tal maneira que elas não podem se ausen-
tar, pois os demais integrantes do núcleo familiar necessitam de
seus cuidados. Carloto, Nogueira e Damião (2017), ao discutirem
o uso do tempo das mulheres beneficiárias do Programa Bolsa-
-Família, questionam se é possível as mulheres com responsabili-
dades familiares cuidarem e pensarem em si mesmas e buscarem
trabalho e autonomia financeira, sendo que passam o dia inteiro
no cuidado dos familiares.
As autoras consideram que a mulher, historicamente destinada
aos cuidados domésticos familiares, sem ter essas atividades com-
partilhadas em esfera microssocial com homens e em esfera ma-

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Família, trabalho do cuidado e uso do tempo: desafios para mulheres de baixa... 87

crossocial com o Estado, são impossibilitadas de alcançar o mínimo

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de autonomia, mesmo quando recebem benefícios sociais.
Esse contexto nos permite refletir sobre a dimensão emocional que
está relacionada ao trabalho do cuidado na esfera domiciliar. Sobre
esse assunto, Aguirre (2007) destaca as dimensões que essa categoria
de trabalho envolve, as quais podem ocasionar transtornos mentais,
dado seu nível de exigência e dedicação.
A partir dos dados expostos, nos perguntamos: onde fica contabi-
lizado o tempo pessoal? Qual é o tempo que essas mulheres dispõem
para cuidar de sua saúde, do lazer, da sexualidade e dos estudos?

Considerações finais
Por meio dos resultados obtidos neste estudo, buscou-se contribuir
para o aprofundamento da temática proposta, colocando em evidên-
cia o trabalho do cuidado. Para contemplar os objetivos propostos,
optamos por uma abordagem de natureza qualitativa e apostamos nas
metodologias de pesquisa sobre o uso do tempo.
De forma resumida, as pesquisas de uso do tempo têm como ob-
jetivo mensurar o tempo dedicado aos distintos tipos de atividades
que as pessoas realizam. Esse tipo de instrumento permite dar maior
visibilidade a todas as formas de trabalho que se realizam tanto fora
como dentro do domicílio, sejam elas remuneradas ou não. O uso do
tempo dos indivíduos também está relacionado a práticas culturais e
condições materiais e financeiras das classes sociais (CARLOTO, 2015).
As evidências empíricas revelam que não há transferência, por par-
te das mulheres, das responsabilidades pela execução das atividades
relativas ao trabalho de cuidado para outros membros da família. Os
dados obtidos mostram que a renda familiar é uma variável importan-
te para um menor quantitativo de horas dedicadas ao trabalho familiar.
As mulheres pobres são as que executam maior jornada de trabalho
total e são as que têm menos tempo livre. A situação socioeconômica,
que permite maior acesso aos serviços de apoio, age como elemento
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88 Tassiane Antunes Moreira e Liliane Moser

diferenciador entre as mulheres no tocante ao trabalho do cuidado re-


alizado no âmbito doméstico.
Nas famílias pesquisadas é perceptível a presença do padrão que
mantém o homem na posição de provedor principal, pois, na maioria
dos casos, é o homem que se mantém no trabalho formal, sendo res-
ponsável pela renda familiar. As mulheres, por sua vez, dedicam-se às
atividades informais e aos cuidados com os filhos e com os dependen-
tes, evidenciando as desigualdades de gênero.
A relação entre trabalho, família e uso do tempo nos permitiu a re-
flexão acerca das relações de gênero que se estabelecem no interior
das famílias. Notadamente, as mulheres entrevistadas deixam de lado
o acesso a um trabalho remunerado formal para assumirem as res-
ponsabilidades concernentes ao trabalho familiar. Os dados nacionais
indicam que são as mulheres as principais responsáveis pelo traba-
lho do cuidado. No contexto da pesquisa, essa afirmação se confirma,
configurando-se como um dos obstáculos para o acesso ao mercado
de trabalho. As mulheres entrevistadas não dispõem de tempo nem
de recursos para investirem na formação profissional, para o acesso
ao lazer e para adquirirem serviços de apoio nas tarefas domésticas, o
que dificulta o acesso ao trabalho remunerado.
Considerando os sujeitos da pesquisa, usuários da Política Nacional de
Assistência Social uma questão que chama atenção e precisa ser pro-
blematizada é a majoritariedade de usuárias mulheres que acessam os
serviços e programas ofertados pela Política de Assistência Social. Nessa
perspectiva, explicitamos a reflexão a respeito da tendência de feminiza-
ção dos processos de proteção social, onde está presente a reprodução
dos condicionantes de gênero nas políticas sociais. Esses condicionantes
presentes em nossa sociedade extrapolam o âmbito privado e marcam
a vida de milhares de mulheres, que são naturalizadas em suas funções,
tendo seus direitos de cidadania historicamente negados.
A feminização da pobreza no contexto do Sistema Único de Assis-
tência Social (SUAS) é reforçada pelos programas de transferência de

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Família, trabalho do cuidado e uso do tempo: desafios para mulheres de baixa... 89

renda ao elencarem a titularidade da mulher para esses benefícios e ao

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instituírem a seletividade dos mais pobres entre os pobres. Na Política
de Assistência Social, as mulheres são as responsáveis pelos cadastros
sociais, por responder às condicionalidades dos programas sociais e
por participar das reuniões de grupos de convivência e fortalecimento
de vínculos familiares, assim como responder às demais demandas da
saúde e educação familiar. Os programas de transferência de renda, ao
focalizarem sua atenção na mulher, apresentam caráter contraditório,
pois, se por um lado a mulher, como receptora dos benefícios, pressu-
põe certo protagonismo e a superação da feminização da pobreza, ao
mesmo tempo configura-se como estratégia para administrar as ex-
pressões da questão social, legitimando a ideologia capitalista e per-
petuando a produção e reprodução das classes sociais (CISNE, 2007).
Carloto (2015) reflete que as políticas públicas têm convertido a res-
ponsabilidade das mulheres em obrigações exclusivas e excludentes.
Para superar essa condição, os desafios ainda são muitos. É preciso
desnaturalizar e desconstruir as atribuições de gênero que historica-
mente foram criadas pela divisão sexual do trabalho – que são rea-
firmadas pelas políticas sociais e reproduzem a mulher-mãe dona de
casa, sem reconhecer essas atividades como trabalho –, assim como
fortalecer o acesso ao emprego com igualdade de oportunidades. Ou-
tro aspecto importante diretamente relacionado às horas gastas com
o trabalho do cuidado é a educação infantil. O tempo de permanência
na creche/pré-escola e o acesso à alimentação escolar gratuita tam-
bém apresentam forte correlação com a diminuição do tempo de tra-
balho das mulheres. Dessa forma, verifica-se a relação entre o acesso
às políticas sociais e a diminuição do tempo despendido no trabalho
do cuidado, principalmente entre as famílias mais pobres.
Acordando com Carloto (2015), fundamentalmente demandam-se
mudanças no modo como as políticas públicas interpelam a participa-
ção feminina. É preciso analisar até que ponto as políticas sociais têm
efetivado a autonomia e emancipação da mulher em vez de responsa-

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90 Tassiane Antunes Moreira e Liliane Moser

bilizá-las pela proteção social, reforçando ainda mais a discriminação


e a desigualdade de gênero nas várias esferas da vida social.
Percebe-se que há um leque de questões suscitadas a partir dos
estudos sobre o uso do tempo que passam pela determinação das
atividades que dizem respeito ao trabalho familiar, pela discussão do
universo do trabalho feminino, pela discussão em torno da redução da
jornada de trabalho e pela inclusão das questões relativas a gênero na
formulação das políticas públicas, questões que merecem ser apro-
fundadas. Coloca-se a necessidade de ampliar esse debate no âmbito
da sociedade brasileira. O aprofundamento dessa discussão torna-se
impreterível ao se considerarem os limites desta pesquisa, apesar de
acreditarmos na contribuição que ela pode oferecer aos estudos nessa
área, sobretudo no campo do Serviço Social.

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Notas

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamen-


to de Pessoal de Nível Superior (CAPES) - Brasil - Código de Financiamento 001.

2 Assistente Social, Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa


Catarina (UFSC). Brasil. ORCID: 0000-0002-2409-3059. E-mail: tassiane.antu-
nes@gmail.com.

3 Assistente Social, Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Ca-


tólica de São Paulo (PUC/SP), Professora do Programa de Pós-graduação em
Serviço Social e do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC). Brasil. ORCID: 0000-0003-1601-9235. E-mail: liliane.
moser@ufsc.br.

4 Para alguns autores, como Bruschini e Ricoldi (2009), apesar de as responsabi-


lidades familiares ainda serem um encargo majoritariamente feminino, com as
mudanças demográficas, econômicas e sociais das últimas décadas, a tendên-
cia tem sido enxergar a questão como um problema das famílias, e não somen-
te das mulheres. Sobre esse assunto, Soares (2008) aponta que, na sociedade
atual, os afazeres domésticos ainda se constituem uma tarefa das mulheres,
embora se tenha observado um pequeno aumento da participação masculina
nessas atividades nos últimos anos.

5 O objetivo geral desta pesquisa consistiu em analisar como cinco famílias re-
ferenciadas no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) Ingleses do
Rio Vermelho se organizam em relação ao uso do tempo de maneira a articular
as responsabilidades entre trabalho remunerado e trabalho não remunerado.
Para contemplar esse objetivo, foi realizada entrevista semiestruturada com as
famílias e aplicação de questionário, a partir de uma abordagem qualitativa. O
conjunto de dados da pesquisa pode ser consultado na dissertação “Trabalho e
Vida Familiar: um estudo sobre o uso do tempo com famílias usuárias da Política
Nacional de Assistência Social em Florianópolis (SC)” apresentada ao Programa
de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina
(Cf. MOREIRA, 2018).

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6 A Síntese de Indicadores Sociais (IBGE, 2016) considera família o tipo de arranjo


em que os integrantes residentes em um mesmo domicílio são ligados por laços
de parentesco, em grau específico, por meio de sangue, adoção ou casamento,
assim como recomendado na publicação Principles and recommendations for
population and housing censuses (2015), das Nações Unidas (United Nations).

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95

Cambios y permanencias en las estrategias

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de cuidado infantil en el curso de vida: un
análisis de género

Karina Batthyány1

Natalia Genta2

Sol Scavino3

Resumen
El presente artículo busca conocer cómo son las estrategias de cuidado infantil en
Uruguay. Para ello, se creó una tipología de estrategias de cuidado en base a los mi-
crodatos de la Encuesta de Nutrición Desarrollo Infantil y Salud, que permite cono-
cer niveles de familismo en la población con niños de 0 a 6 años a cargo. El análisis
pone de manifiesto que a pesar de que Uruguay es pionero en América Latina en
desarrollar un Sistema Nacional Integrado de Cuidados, persisten serias dificultades
para gozar del derecho al cuidado, lo que perpetúa una ciudadanía de segunda en
las mujeres.

Palabras clave
Género; Cuidado infantil; Corresponsabilidad.

Changes and permanence in child care strategies in the life course: a gender analysis

Abstract
This article seeks to know how child care strategies are in Uruguay. To do this, a
typology of care strategies was created based on the microdata of the Childhood
Development and Health Nutrition Survey, which allows knowing levels of familism
in the population with children from 0 to 6 years of age. The analysis shows that
although Uruguay is a pioneer in Latin America in developing an Integrated National
System of Care, serious difficulties persist to enjoy the right to care, which perpetu-
ates a second citizenship in women.

Keywords
Gender; Child care; Co-responsibility.

pg 95 - 120 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


96 Karina Batthyány, Natalia Genta e Sol Scavino

Mudanças e permanências em estratégias de cuidado infantil no decorrer da vida:


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uma análise de gênero

Resumo
Este artigo procura saber como são as estratégias de cuidado infantil no Uruguai.
Para isso, foi elaborada uma tipologia de estratégias de cuidado com base nos mi-
crodados da Pesquisa de Nutrição, Desenvolvimento Infantil e Saúde, que permite
conhecer os níveis de familismo na população de crianças de 0 a 6 anos de idade. A
análise mostra que, embora o Uruguai seja pioneiro na América Latina no desenvol-
vimento de um Sistema Nacional Integrado de Atenção, persistem sérias dificulda-
des em usufruir o direito ao cuidado, o que perpetua a cidadania de segunda classe
nas mulheres.

Palavras-chave
Gênero; Cuidado infantil; Corresponsabilidade.

Artigo recebido: agosto de 2018


Artigo aprovado: outubro de 2018

Introducción
El presente artículo busca conocer cómo son las estrategias de cui-
dado infantil en Uruguay. Este país presenta la peculiaridad de contar
con el primer Sistema Nacional Integrado de Cuidados en la región,
que se propone corresponsabilizar los cuidados entre Estado, merca-
do, comunidad y familia, y también entre varones y mujeres encon-
trándose dentro de sus objetivos la modificación de la actual división
sexual del trabajo en Uruguay. Para ello, en relación al cuidado infantil,
se ha avanzado en la generación de mecanismos para la redistribuci-
ón del trabajo de cuidados que se expresan en al menos dos grandes
ejes: el aumento de los centros de cuidado infantil (que no garantizan
la corresponsabilidad entre varones y mujeres, pero liberan tiempo de
cuidado) y la modificación en los subsidios de cuidado. La Ley 19.161
amplía de 12 a 14 semanas la licencia por maternidad (obligatoria), ex-
tiende la licencia paternal (que puede llegar a 13 días en el caso de
trabajadores dependientes de la actividad privada) y establece para
O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 95 - 120
Cambios y permanencias en las estrategias de cuidado infantil en el curso de vida... 97

los/as trabajadores/as de la actividad privada y algunos de la actividad

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pública, un subsidio de medio horario para el cuidado, que puede ser
ejercido tanto por el padre como por la madre hasta los seis meses del
hijo o la hija. Estas últimas dos licencias no tienen carácter obligatorio.
La licencia parental es transferible entre la madre y el padre, pudiendo
fraccionar su duración entre ambos en forma alternada (BATTHYÁNY;
GENTA; PERROTTA, 2018, p. 13).
Respecto a los centros de cuidado infantil, en el país los niños/as de
4 a 6 tienen una cobertura universal y de 0 a 3, ha aumentado la co-
bertura total de 49.1% en 2014 a 52.1 en 2016% incrementando la oferta
pública y disminuyendo levemente la privada (SNIC, 2017, p. 29).
En este marco, en base a los microdatos de la Encuesta de Nutri-
ción, Desarrollo Infantil y Salud (ENDIS), panel, que relevó datos de
niños/as de 0 a 3 años en 2013 y replicó en 2015, año en el que los/
as niños/as tenían entre 2 y 6 años se realizó el presente estudio que
busca conocer cómo son las estrategias de cuidado infantil. Para ello
se creó una tipología de estrategias de cuidado que permite conocer
niveles de familismo y reflexionar sobre el grado de avance del men-
cionado Sistema en Uruguay.
La encuesta estuvo a cargo del Instituto Nacional de Estadística en
Uruguay, la Facultad de Ciencias Económicas y Administración y el
Programa Uruguay Crece Contigo.
Los antecedentes generados en base al análisis de la ENDIS (2013)
evidenciaban que las estrategias de cuidado infantil son principalmen-
te desarrolladas por las mujeres de las familias. La utilización de cen-
tros de cuidado infantil y/o personas contratadas para el cuidado es
residual y está fuertemente segmentada según el nivel socioeconómi-
co de los hogares y la situación laboral de las mujeres (BATTHYÁNY;
GENTA; SCAVINO, 2017).
También se constató que el modelo cultural de cuidados imperan-
te, obedece a representaciones tradicionales de género que asocian
a las mujeres con habilidades naturales para cuidar, mientras que los

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ISSN: 2238-9091 (Online)
98 Karina Batthyány, Natalia Genta e Sol Scavino

varones son eximidos de las responsabilidades del cuidado, aunque se


espera de ellos que sean los proveedores económicos del hogar (BAT-
THYÁNY; GENTA; PERROTTA, 2013). Dicha manifestación de la división
sexual del trabajo se ha evidenciado en algunas de las preguntas sobre
crianza de la primera ola de la ENDIS relacionadas con estereotipos de
género en la crianza, lo cual da cuenta de la reproducción de roles de
género tradicionales en las familias con niños pequeños/as.
A su vez, se ha constatado que las personas responsables de la
crianza tienen mayores grados de acuerdo con representaciones fa-
milistas del cuidado, y con los mandatos de género que establecen
que las mujeres deben de ser las principales cuidadoras en general, y
particularmente de los/as niños. En este sentido, resulta de interés no
solo conocer la existencia de cambios en las estrategias a lo largo del
curso de vida de los niños/as, sino también los posibles cambios en los
mandatos de género mediante los cuales son socializados.
Sumado a esto, los estudios nacionales sobre las representaciones
de cuidado infantil han mostrado una resistencia por parte de las per-
sonas a enviar a sus hijos a centros de cuidado a edades tempranas, lo
cual incrementa las posibilidades de adoptar estrategias familistas y a
cargo de mujeres (BATTHYÁNY; GENTA; PERROTTA, 2013).
La adopción de distintas estrategias de cuidado infantil por parte
de las familias tiene diferentes impactos en el vínculo que las mujeres
establecen con el mercado laboral y en sus condiciones laborales en
general, aspectos que son relevados por la ENDIS y que son analizados
en este trabajo.

Género, trabajo y cuidados no remunerados


Reconociendo las variadas conceptualizaciones que existen sobre
el cuidado, en este trabajo se parte de una definición de cuidados que
responde al desarrollo teórico que ha tenido el concepto en el país,
construido a partir del vínculo permanente entre las investigaciones y
las políticas públicas (AGUIRRE et al., 2014).
O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 95 - 120
Cambios y permanencias en las estrategias de cuidado infantil en el curso de vida... 99

Los cuidados se definen como la atención de las necesidades coti-

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dianas de las personas en situación de dependencia, pudiendo ser re-
alizadas por una persona remunerada o no remunerada, familiar o no
familiar, en una institución o en el ámbito del hogar. El cuidado contie-
ne un componente material y otro aspecto afectivo o vincular (AGUIR-
RE, 2009; BATTHYÁNY, 2009 siguiendo a LETABLIER, 2007).
Implica actividades que son cuantificables a través del tiempo cro-
nológico al igual que lo hacen las Encuestas de Uso del Tiempo (INE,
2007; 2013) a las cuales es posible adjudicarles un valor monetario.
Sin embargo, existen actividades de cuidado como el desarrollo de
las capacidades de las personas y la preocupación por su bienestar
y sus necesidades, entre otras, que no pueden medirse fácilmente
a través del tiempo (ARANGO, 2011) porque refieren al aspecto vin-
cular del cuidado.
Por lo tanto, en la definición adoptada, cuidar no solo significa
la realización de tareas en la vida cotidiana sino el desarrollo de un
vínculo y la gestión de las emociones en los distintos ámbitos don-
de se realice. Hochschild (1995), refiere al cuidado como un vínculo
emocional usualmente mutuo entre quien brinda cuidados y quien
los recibe, donde el/la cuidador/a se siente emocionalmente res-
ponsable por el bienestar del otro y hace un trabajo mental, emo-
cional y físico por esa responsabilidad.
La inserción de las mujeres al mundo laboral requiere que el tra-
bajo doméstico y de cuidados naturalizado como propio del rol fe-
menino sea racionalizado y derivado (todo o parte del mismo) a
otros agentes, como el mercado, el Estado, la comunidad y/o a los
varones. Esta derivación y distribución de los recursos de tiempo y
dinero termina configurando una determinada estrategia de cuida-
dos que se vuelve especialmente relevante de analizar en la medida
en que las mujeres acceden al mercado laboral.
Estudios nacionales (BATTHYÁNY; GENTA; PERROTTA, 2015; AGUIR-
RE, 2009; BATTHYÁNY, 2015) regionales (FAUR; ESQUIVEL; JELIN, 2012)

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100 Karina Batthyány, Natalia Genta e Sol Scavino

e internacionales (MORENO et al, 2016, SAYER, 2010, VAN DER LIPPE,


2010) han mostrado que a pesar del aumento sostenido de las mujeres
en el mercado de trabajo, permanece sin modificación su participación
y responsabilidad en las actividades sin remuneración del ámbito do-
méstico, entre ellas los cuidados, los cuales continúan estando mayori-
tariamente a cargo de las mujeres en las redes familiares.
Sin embargo, la forma en que se resuelve el cuidado infantil y por
tanto, el vínculo que las mujeres tengan con el trabajo remunera-
do cuando sus hijos son pequeños es heterogénea entre distintos
grupos de mujeres, principalmente según sus niveles socioeconómi-
cos como muestran los antecedentes nacionales (BATTHYÁNY, 2015,
AGUIRRE, 2009) e internacionales (CROMPTON, 2006; CASTELLÓ,
2012; MARTÍN PALOMO, 2010).
Crompton señala la importancia de la estructura social en la for-
ma en cómo se construye el nexo entre producción y reproducción.
Plantea que las mujeres de las clases medias siguen un patrón mascu-
lino de inserción laboral mantenido por la externalización del trabajo
doméstico y de cuidados a través del mercado, de forma de obtener
logros profesionales. Por el contrario, las “clases trabajadoras” utilizan
sus redes familiares, pero en estos casos la estrategia de cuidado se
mantiene, en detrimento de sus condiciones laborales, sobre todo en
empleos precarios. En estos sectores, la necesidad de complementar
el sueldo en el hogar es lo que determina la participación de las muje-
res en el mercado de trabajo, pero no está asociado a logros profesio-
nales como en las clases medias (CROMPTON, 2006).
La forma en que se resuelven esos cuidados a través de la intervenci-
ón de distintos agentes es la denominada “estrategia de cuidados”. Esta
es producto de las elecciones de las personas que integran los hogares,
pero también de la combinación de factores de naturaleza estructural
(división sexual del trabajo en los hogares, posición de clase, segregación
por sexo del mercado laboral, disponibilidad de acceso material a servi-
cios de cuidado en el mercado y provistos por el Estado, entre otras) con

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 95 - 120


Cambios y permanencias en las estrategias de cuidado infantil en el curso de vida... 101

factores culturales (mandatos de género, actitudes, valoraciones y nor-

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mas sociales que determinan el ideal de cuidado y las personas ideales
para ejercerlo). Estos últimos son particularmente relevantes, ya que las
modalidades de cuidado ideal y/o deseables pueden actuar como resis-
tencias socioculturales a las acciones de política pública que pretendan
desfamiliarizar los cuidados, como lo son por ejemplo las instituciones
de cuidado para niños/as pequeños/as (WALLACE, 2002).
Tobío (2002) estudia las estrategias para la superación de la contra-
dicción familia-empleo en el caso español. Presenta una categorizaci-
ón múltiple de estrategias llevadas a cabo por las mujeres trabajadoras
con niños/as pequeños/as. Las denominadas “estrategias principales”
son suficientes por sí mismas para responder a demandas domésticas.
Consisten sobre todo en la participación clave de la abuela materna y
en una casi nula participación de los varones. Las “estrategias com-
plementarias” se definen así porque no son suficientes para respon-
der a la totalidad de la demanda de cuidado, pero muchas veces son
necesarias para el desarrollo de la estrategia principal. Ejemplos de
estas estrategias son la reducción de distancias a la casa de la abuela
materna, a las empresas donde se trabaja y la simplificación del tra-
bajo doméstico a través de contrataciones de empleadas domésticas
que permitan reducir una parte de la carga. Las estrategias denomina-
das “indirectas” son de tipo extremo y son percibidas como negativas
porque no son deseadas (por ejemplo, faltar al trabajo si el hijo/a está
enfermo). En este caso la compatibilidad entre trabajo y cuidados se
asegura eliminando o reduciendo parte del problema; disminuyendo
su participación en el mercado de empleo, reduciendo la cantidad de
hijos o directamente no teniéndolos.
Dentro de los antecedentes internacionales en los estudios de es-
trategias de cuidado, Kröger et al. (2003) analizan los care arrage-
ments en Finlandia, Francia, Reino Unido, Italia y Portugal, haciendo
hincapié en el vínculo entre las políticas públicas y las decisiones de las
familias sobre el cuidado y su articulación con el trabajo remunerado.

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Según el estudio, las estrategias de cuidado están condicionadas


por los siguientes factores: las provisiones estatales, las alternativas
accesibles para el cuidado en cada familia, las constricciones del tiem-
po que impone el trabajo remunerado, el nivel educativo de los in-
tegrantes, las actitudes, percepciones y valores, las elecciones entre
carrera y cuidados, la edad de los niños y de los padres, el nivel en que
se asumen los roles de género tradicionales, el nivel de ingresos, el ni-
vel de necesidad de quienes reciben cuidados, el acceso al transporte
y los tiempos de traslados, entre otras (KRÖGER et al., 2003).
Sobre los factores que influyen en la elección de la estrategia, las
políticas públicas y el contexto de servicios que provee un país parti-
cular son menos importantes que las inclinaciones y valoraciones que
tienen las familias, que varían desde la preferencia familista a la insti-
tucionalización de los cuidados (KRÖGER et al., 2003).
La distribución del trabajo remunerado y del cuidado en la pareja
de doble carrera es clave en el tipo de estrategia que adopten. En mu-
chas familias es la mujer la que adapta su trabajo remunerado cuando
existen imprevistos o dificultades para hacer coincidir los horarios la-
borales con los de cuidado (KRÖGER et al., 2003).
La forma en la que una sociedad resuelve la demanda de cuidados
resulta en una configuración denominada organización social del cui-
dado en la que el Estado, el mercado, las familias, la comunidad, los
varones y las mujeres tienen un rol como proveedores. El Estado de
Bienestar tiene un doble rol, al ser proveedor pero al mismo tiempo ser
quien asigna y regula la responsabilidad y la intervención de cada uno
de los demás agentes.
En estos últimos años Uruguay se ha destacado en la región latino-
americana por sus avances en la incorporación del tema de los cui-
dados a la agenda pública, lo que implica que el Estado reconoce que
los cuidados no son solo una obligación de las mujeres en el ámbito
privado, en las familias (TORNS et al, 2012). La emergencia de los cui-
dados, como ha sido señalado, se originó en una serie de factores,

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 95 - 120


Cambios y permanencias en las estrategias de cuidado infantil en el curso de vida... 103

entre ellos la existencia de estudios académicos que aportaron con-

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ceptualizaciones y evidencias, la nueva información estadística oficial
sobre los tiempos de cuidado, la acción de las organizaciones sociales
y la decisión política de replantear el modelo de bienestar. En el país
se instaló el Sistema Nacional Integrado de Cuidados (SNIC) como un
nuevo pilar dentro del sistema de protección social (AGUIRRE; FERRA-
RI, 2014) que tiene entre sus principios orientadores la equidad de gé-
nero y se propone contribuir con sus acciones a la corresponsabilidad
entre varones y mujeres.
A pesar de estos avances, la provisión del cuidado en Uruguay está
basada principalmente en el aporte de las mujeres y las familias. Has-
ta el momento, la participación del Estado en lo referente a cuidados
continúa destinada a programas focalizados que atienden parcialmen-
te a la población vulnerable. Por su parte la oferta del mercado cubre
a la población que puede pagar los costos que implican los servicios
ofrecidos. La parcial oferta de servicios públicos de cuidados acen-
túa algunas desigualdades socioeconómicas, ya que mientras que las
mujeres de estratos económicos altos pueden pagar los costos de un
centro infantil o una persona contratada en el hogar, las provenientes
de estratos económicos más bajos acceden a programas específicos
de cuidados y las mujeres de clases medias trabajadoras son las más
perjudicadas por el conflicto trabajo-cuidados. A su vez, las leyes que
permiten articular el trabajo remunerado con el cuidado son escasas y
están dirigidas fundamentalmente a las mujeres.

Metodología
El presente trabajo analiza las estrategias de cuidado, mediante
la elaboración de una tipología de estrategias de cuidado basada en
quienes participan de los cuidados (familia, Estado, mercado) a tra-
vés de las horas de dedicación, de modo de conocer la interacción
entre la tipología y otras variables relevantes para los cuidados. Para
su elaboración se trabajó con los datos de la ENDIS, cuyos institutos
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responsables son el Instituto Nacional de Estadística de Uruguay (INE),


el Instituto de Economía de la Facultad de Ciencias Económicas de la
Universidad de la República (IECON) y el Programa Uruguay Crece
Contigo (UCC).
La ENDIS es una encuesta de tipo panel que tuvo una primera ola
en 2013 y una segunda en 2015. El universo y cobertura geográfica
fueron hogares particulares donde residían niños/as de 0 a 3 años
y 11 meses de edad, ubicados en localidades urbanas mayores a
5.000 habitantes. En la primera ola se relevó información sobre
3077 niños pertenecientes a 2665 hogares lo que representa una
tasa de respuesta del 66,1%. La segunda ola, de los 3077 niños en-
cuestados en la primera ronda, se entrevistó a 2383, obteniendo un
77% de tasa de respuesta.
La encuesta fue aplicada a las responsables de la crianza de los/
as niños/as. Cada uno de los/as niños/as encuestados/as tiene una
persona de referencia, quien es identificada como responsable de
la crianza, en su mayoría madres (96,6% en 2013 y 95,5% en 2015)
mientras que el 1,6% de los encargados son los padres en 2013 y
2,2% en 2015. Por tanto, en la mayor parte de los casos, este infor-
me se centrará en el análisis de la situación de las madres de los/
as niños/as.

Estrategias de cuidado infantil en Uruguay


Como se ha adelantado, para este estudio se ha creado una tipo-
logía de estrategias en base a 1) la participación de las instituciones
de cuidado (si los niños/as asisten o no a un centro); 2) las horas se-
manales de asistencia (hasta 20 horas semanales y más de 20 horas
semanales); 3) tipo de servicio de cuidado al que asiste (si es provis-
to por el Estado4 o por el mercado); 4) la participación de cuidadoras
remuneradas en el cuidado (contrata o no contrata) y 5) las horas de
contratación de cuidadoras remuneradas en el hogar (hasta 20 horas
semanales y más de 20 horas semanales).
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Cuadro 1. Tipología de estrategia de cuidado

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1. Estrategia Familista: No hay participación del Estado ni del mercado
2. Estrategia con baja participación del Estado: Hay participación de servicios
públicos de cuidado infantil, hasta 20 horas semanales
3. Estrategia con alta participación del Estado: Hay participación de servicios
públicos de cuidado infantil más de 20 horas semanales.
4. Estrategia con baja mercantilización: Hay participación de servicios privados de
cuidado infantil y/o contratación de cuidadora remunerada en el hogar, hasta 20
horas semanales.
5. Estrategia con alta mercantilización: Hay participación de servicios privados de
cuidado infantil y/o persona contratada en el hogar por más de 20 horas semanales.
6. Estrategia con participación combinada de Estado y mercado: Son aquellos
hogares en donde hay servicios de cuidados públicos y contratación de cuidadora
remunerada.

Fuente: elaboración propia.

La distribución de las estrategias según la tipología construida evi-


dencia que prácticamente cuatro de cada diez niños (ola 2) son cuida-
dos en estrategias familistas con un apoyo parcial del Estado, el cual
provee menos de 20 horas semanales de cuidado. Esto difiere de for-
ma significativa en la ola 1 en la que 6 de cada 10 niños (58,1%) son
cuidados exclusivamente por las mujeres de las familias.

Tabla 1. Estrategia de cuidados. Total país, 2013 y 2015

Ola 1 (2013) Ola 2 (2015)


Familista 58,1 22,8
Baja participación del Estado 16,4 38,7
Alta participación del Estado 2,7 9,6
Baja mercantilización 8,4 11,1
Alta mercantilización 12,6 15,9
Participación combinada de Estado y mercado 1,7 1,9
Total 100 100

Fuente: elaboración propia en base a ENDIS – primera y segunda ola - INE-IECON-UCC.

La diferencia principal entre ambas olas es que en la segunda au-


menta la estatización, sobre todo la estrategia de baja participación

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106 Karina Batthyány, Natalia Genta e Sol Scavino

del Estado y disminuye la proporción de niños cuidados bajo una es-


trategia familista. Probablemente esté cambio esté relacionado con el
aumento de la edad de los niños. Recordemos que la segunda ola de la
encuesta comprende a los niños de 2 a 6 años, gran parte de los cuales
acceden a la escuela pública universal y gratuita durante 4 horas dia-
rias, con lo que es coherente que esta sea la estrategia predominante.
Mientras que a los 3 años el 32,1% tiene una estrategia familista, esta
se reduce a tan solo el 15% de los niños a los 4 años y a 5,7% entre los
de 5 y 6 años.
En el caso de la mercantilización, esta presenta un aumento hasta
los 3 años, donde alcanza su pico para luego descender. Es desarrolla-
da para el cuidado del 7% de los niños de 1 año, el 10,5% de los de 2
años, y aumenta al 14,6% de los niños de 3 años. En los niños de 4 años
esta se reduce a 11,2% y en los de 5 años al 8,2%.
Probablemente esto está evidenciando que existe un conjunto de
familias que costean los servicios institucionales o de persona en do-
micilio, que cubren jornada parcial cuando los niños tienen hasta 3
años y luego, sustituyen ese servicio privado por uno público, que está
disponible universalmente solo partir de los 3 años.
En cuanto a la alta mercantilización, ésta asciende hasta los 3 años
y luego se mantiene en cifras del 15% aproximadamente. Esto sugiere
un conjunto de familias que cubren en el mercado la jornada completa
de trabajo desde edades tempranas aunque más notoriamente desde
los 3 años.

Tabla 2. Distribución de las estrategias de cuidado según edad de los niños. Primer y
segunda ola. Total país 2013 y 2015

Ola 1 Ola 2
Menor a un año 1 año 2 años 3 años 4 años
Familista 82,8 62,0 51,6 32,1 15,2
Baja participación
7,1* 15,4 20,1 30,5 43,4
del Estado

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 95 - 120


Cambios y permanencias en las estrategias de cuidado infantil en el curso de vida... 107

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Alta participación del
0,0* 1,3* 3,0* 5,6* 13,3*
Estado
Baja mercantilización 4,6* 7,1 10,5 14,6 11,2
Alta mercantilización 5,1* 12,9 13,3 16,4 14,7
Participación
combinada de 0,4* 1,3* 1,4* 0,7* 2,3*
Estado y mercado
Total 100 100 100 100 100

Fuente: elaboración propia en base a ENDIS –primer y segunda ola - INE-IECON-UCC. *Nota: menor
a 30 casos por celda.

En un modelo de regresión logística hecho en el marco de la inves-


tigación que da origen al artículo, se pone de manifiesto que dentro de
un conjunto de variables seleccionadas, la edad de los niños/as es la
variable con un mayor efecto en la dependiente (estrategia familista o
no familista). Los odd ratio de la variable edad, indican que un aumento
en la variable edad del niño, reduce las chances de tener una estrategia
de cuidados exclusivamente familista, aproximadamente 0,8 veces.

Cuidados no remunerados y asistencia a centros de cuidado infantil


Cada una de las estrategias llevadas a cabo para cuidar de los niños/
as tiene diferentes implicancias en el tiempo de trabajo no remunera-
do que insume por parte de las referentes del cuidado. Cuanto más fa-
milista es la estrategia mayor cantidad de horas de trabajo de cuidado
no remunerado dedicarán las madres.
En la primera ola, con niños/as de edades comprendidas entre los
0 y los 3 años, en la estrategia familista las madres dedican 86 horas al
cuidado de sus hijos, lo que se reduce un promedio de 5 horas cuando
hay apoyo parcial del Estado. Cuando la estrategia incluye un servicio
privado o una cuidadora remunerada hasta 20 horas, ésta se reduce a
70 horas semanales. La disminución de horas de trabajo de cuidado no
remunerado más importante ocurre en las estrategias de alta mercan-
tilización y de alta participación del Estado, en las cuales se registran 58
y 68 horas respectivamente de cuidado no remunerado de las madres.

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108 Karina Batthyány, Natalia Genta e Sol Scavino

Tabla 3. Asistencia de los/as niños/as a centros de cuidado infantil. Total país, 2013 y
ISSN: 2238-9091 (Online)

2015

No asiste 64,1
Ola 1 Asiste 35,9
Total 100
No asiste 22,6
Ola 2 Asiste 77,4
Total 100

Fuente: elaboración propia en base a ENDIS – primera y segunda ola - INE-IECON-UCC. *Nota: menor
a 30 casos por celda.

Los motivos manifestados por las referentes para la asistencia a


centros varían en función de la estrategia adoptada. En la Ola 1, entre
quienes desarrollan una estrategia con baja participación del Estado,
el motivo principal está relacionado a los beneficios que tiene para los
niños (82,6%), sin embargo entre quienes adoptan una estrategia de
alta mercantilización, el motivo principal es la necesidad de trabajar o
estudiar (58%).

Tabla 4. Distribución de estrategias según motivos para asistencia a centros de cuidado.


Ola 1.
Lo considera
Para tener
Por trabajo o positivo o
tiempo Ns/Nc Total
estudio recomendación
personal
del pediatra
Baja participación
11,5 82,6 1,8* 4,1* 100
del Estado
Alta participación
53,6 41,8* 0,7* 3,9* 100
del Estado
Baja
44,4 51,6 0* 4,0* 100
mercantilización
Alta
58,2 39,1 0* 2,6* 100
mercantilización
Participación
combinada de 13,7* 77,6 2,4* 6,3* 100
Estado y mercado
Total 32,0 63,2 1 3,8 100

Fuente: elaboración propia en base a ENDIS –primer y segunda ola - INE-IECON-UCC. *Nota: menor
a 30 casos por celda.

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 95 - 120


Cambios y permanencias en las estrategias de cuidado infantil en el curso de vida... 109

En la ola 2 se sumó una pregunta asociada a la percepción sobre la

ISSN: 2238-9091 (Online)


existencia de suficientes opciones de servicios públicos para el cui-
dado de niños pequeños. Hay mayor percepción de falta de cupos
entre quienes desarrollan estrategias mercantiles de cuidados. Pro-
bablemente esto evidencie la existencia de un conjunto de hogares
que tienen una demanda insatisfecha de servicios públicos de cuida-
do porque requieren jornadas más amplias de cuidado. Sin embargo,
no encuentran cupos disponibles en los escasos centros públicos que
brindan esos cuidados a jornada completa. La modalidad de “Escuelas
públicas a tiempo completo”5 que cubren la jornada completa con-
tinúa manteniendo una baja cobertura en el país.

Tabla 5. Estrategia por percepción de la existencia de suficientes opciones de servicios


públicos para el cuidado de los niños que aún no concurren a la escuela. Total país, 2015.

Existen
No existen opciones,
Sí Ns/Nc Total
opciones pero no hay
cupos
Familista 46,2 16,4 34,4 3,0 100
Baja
participación del 55,7 10,6 32,6 1,1 100
Estado
Alta
participación del 57,8 10,5* 30,2 1,4 100
Estado
Baja
45,8 11,1* 39,2 4,0 100
mercantilización
Alta
38,0 4,5* 45,0 12,6 100
mercantilización
Participación
combinada
62,1 5,0* 33,0* 0,0 100
de Estado y
mercado
Total 50,0 10,9 35,5 3,7 100

Fuente: elaboración propia en base a ENDIS –primer y segunda ola - INE-IECON-UCC. *Nota: menor
a 30 casos por celda

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110 Karina Batthyány, Natalia Genta e Sol Scavino

Ingresos de los hogares y estrategias de cuidado


ISSN: 2238-9091 (Online)

El poder adquisitivo de los hogares impacta en la posibilidad de ac-


ceder a servicios determinando una estrategia de cuidados. Cuando
los niños/as eran más pequeños, la estrategia familista es la prepon-
derante, aunque esto aumentaba para los hogares de menores ingre-
sos, en el primer tercil (70%) respecto al tercer tercil (43,9%). Si bien
la estrategia con baja participación del Estado es la segunda de mayor
importancia en la ola 1, esta varía entre terciles ya que es adoptada por
el 21% del primer tercil y por tan solo el 8% del tercer tercil. Esto está
relacionado probablemente a la oferta pública institucional de cuida-
do infantil, sobre todo focalizado en estas edades tempranas para las
personas de inferiores niveles socioeconómicos. Respecto a las es-
trategias que incluyen mercantilización, tanto baja como alta, es más
relevante en el tercer tercil respecto a los demás.
En la ola 2, la distribución de las estrategias según tercil de ingresos,
cambia de forma importante. Como ya fue mencionado, la estrategia
más utilizada es la de baja participación del Estado pero ésta es más
frecuente en el primer tercil (50.1%) respecto al tercer tercil (24,7%).
La mercantilización tanto sea alta como baja es más habitual entre los
pertenecientes al tercer tercil también en la segunda ola. En el caso de
la alta mercantilización (servicios de más de 20 horas) esto ocurre con
el 37,8% de niños del tercer tercil pero ocurre tan solo con el 7,9% de
los del segundo tercil. De hecho dentro del tercer tercil la estrategia
más utilizada es la de alta mercantilización en la segunda ola.
Adicionalmente, en la ola 2 es mucho más frecuente el uso intensivo
de servicios privados en el tercer tercil (37,8%) respecto al mismo tercil
en la primera ola (28,9%). Esto responde probablemente a la edad de
los niños ya que incluso en el tercer tercil de ingresos, la estrategia fa-
milista es la más utilizada cuando los niños son más pequeños (43,9%
en el tercer tercil de la primer ola). Un reciente estudio cualitativo sobre
cuidados en tres generaciones ha puesto de manifiesto el significado
de cuidado de calidad vinculada con la realización de tareas de cuidado

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Cambios y permanencias en las estrategias de cuidado infantil en el curso de vida... 111

concretas es propia de los niveles socioeconómicos medios, mientras

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que en los altos, el cuidado familiar se basa en el desarrollo del vínculo
pero no necesariamente en la realización de tareas similares a las do-
mésticas propiamente (BATTHYÁNY, PERROTTA; SCAVINO, 2017).

Tabla 6.Tipología de Estrategias de Cuidado por terciles de ingresos de los hogares de los/
as niños. Total país, 2013 y 2015.

Ola 1 Ola 2
Primer Segundo Tercer Primer Segundo Tercer
Tercil Tercil Tercil Tercil Tercil Tercil
Familista 70,0 60,7 43,9 30,8 23,0 14,7
Baja
participación del 21,7 19,7 8,1 50,1 46,1 20,1
Estado
Alta participación
3,4* 3,2* 1,6* 13,3 11,2 4,5
del Estado
Baja
2,4* 8,0 14,8 3,5* 10,8 18,8
mercantilización
Alta
2,0* 6,6 28,9 1,7* 7,9 37,8
mercantilización
Participación
combinada
,5* 1,8* 2,9* ,6 1,0 4,0
de Estado y
mercado
Total 100 100 100 100 100 100

Fuente: elaboración propia en base a ENDIS – primer y segunda ola - INE-IECON-UCC. *Nota: menor
a 30 casos por celda.

Estrategias de cuidado y situación laboral de las madres


Respecto a la situación laboral de la madre referente de los cui-
dados, se evidencian diferencias entre la ola 1 y la 2. En el caso de la
ola 1, entre las madres que no trabajan es mayoritaria la adopción de
la estrategia familista, así el 74% de niños cuyas madres no trabajan
adoptan la estrategia familista sin embargo esto sucede con el 48% de
la que trabajan. Entre las que trabajan de la ola 1, existe un considera-
ble 19% que resuelve el cuidado con alta mercantilización.

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ISSN: 2238-9091 (Online)
112 Karina Batthyány, Natalia Genta e Sol Scavino

En la ola 2 la estrategia familista es utilizada por el 34,5% de quienes


no trabajan y tan solo el 16.9% de quienes lo hacen. Esto implica una
diferencia considerable con la ola 1 en la cual la estrategia familista era
la principal tanto entre quienes trabajaban como entre quienes no lo
hacían. En esta segunda ola encontramos que incluso entre quienes no
trabajan la estrategia principal es la de baja participación del Estado
(45,7%). En 1 de cada dos hogares en donde la referente no trabaja, se
adopta la estrategia de baja participación del Estado mientras que esto
es menos pronunciado en quienes trabajan (34,8%). Precisamente, en-
tre quienes trabajan aumenta la proporción de quienes usan la estra-
tegia de baja y alta mercantilización respecto a quienes no trabajan. El
13,5% de quienes trabajan utilizan la estrategia de baja mercantilizaci-
ón y el 22,8% las de alta mercantilización, mientras que esto ocurre por
tan solo el 6.4% de quienes no trabajan.

Tabla 7. Tipología de Estrategias de Cuidado por situación laboral de las madres.


Total país, 2013 y 2015.

Ola 1 Ola 2
No trabaja Trabaja No trabaja Trabaja
Familista 74,2 48,1 34,5 16,9
Baja
participación del 19,5 14,5 45,7 34,8
Estado
Alta
participación del 1,3 3,6 9,4 9,2
Estado
Baja
3,2 11,7 6,4 13,5
mercantilización
Alta
1,8* 19,3 3,9* 22,8
mercantilización
Participación
combinada
0,0* 2,8 0,1* 2,8
de Estado y
mercado
Total 100 100 100 100

Fuente: elaboración propia en base a ENDIS –primer y segunda ola - INE-IECON-UCC.


*Nota: menor a 30 casos por celda

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 95 - 120


Cambios y permanencias en las estrategias de cuidado infantil en el curso de vida... 113

Dentro de quienes trabajan, existen diferencias importantes en las

ISSN: 2238-9091 (Online)


estrategias adoptadas según las horas de trabajo remunerado. En la
ola 1, en aquellas madres que trabajan hasta 20 horas semanales es
más frecuente la adopción de la estrategia familista (62,6%) y de baja
participación del Estado (24,6%) comportándose de forma similar a las
madres que no trabajan. Esto da cuenta de que los servicios públicos
existentes a jornada parcial no permiten inserciones a jornada com-
pleta de las mujeres.
En el caso de las mujeres que trabajan más de 20 horas semanales,
existe una proporción considerable de niños cuya estrategia principal
es la de alta mercantilización (21,7%). Solo el 13,1% de los niños cuyas
madres trabajan más de 20 horas desarrollan estrategias de cuidado
con baja participación del Estado, que es la oferta pública universal
para estas edades.

Tabla 8. Estrategias de cuidados por horas dedicadas al mercado laboral de las madres.
Total país, 2013.

Hasta 20 horas Más de 20
No trabaja Total
semanales horas
Familista 74,3 62,6 46,1 58,2
Baja participación del
19,4 24,6 13,1 16,4
Estado
Alta participación del
1,3 3,5 3,6 2,7
Estado
Baja mercantilización 3,2 7,2 12,3 8,4
Alta mercantilización 1,8* 1,6* 21,7 12,5
Participación combinada
,0* 0,5* 3,2 1,8
de Estado y mercado
Total 100 100 100 100

Fuente: elaboración propia en base a ENDIS –primer ola - INE-IECON-UCC. *Nota: menor a 30 casos
por celda

En la ola 2, las tendencias señaladas anteriormente son incluso


más pronunciadas. En las mujeres que trabajan hasta 20 horas se-

pg 95 - 120 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


ISSN: 2238-9091 (Online)
114 Karina Batthyány, Natalia Genta e Sol Scavino

manales el 42% tiene una estrategia de baja participación del Estado,


similar a quienes no trabajan (46.6%). Sin embargo entre las madres
que trabajan más de 20 horas semanales esto se reduce a 32,2%.
En este mismo grupo de mujeres que trabajan más de 20 horas se-
manales, el 26.6% desarrolla una estrategia de alta mercantilizaci-
ón y el 13,4% de baja mercantilización. Sumadas las dos estrategias
con componente de mercantilización tenemos que un 40% de los
niños entre 2 y 6 años (ola 2) cuyas madres trabajan más de 20 horas
desarrollan estrategias que incluyen un componente mercantil. Esto
muestra una vez la insuficiencia de los servicios públicos de jornada
parcial para permitir el acceso a las mujeres al mercado de trabajo en
igualdad de condiciones que los varones.

Tabla 9. Estrategias de cuidados por horas dedicadas al mercado laboral de las madres.
Total país, 2015.


Hasta 20 horas Más de 20
No trabaja Total
semanales horas
Familista 33,6 24,6 15,4 22,9
Baja participación del
46,6 42,1 32,2 38,6
Estado
Alta participación del
9,2 10,1 9,0 9,3
Estado
Baja mercantilización 7,0 12,3 13,4 11,1
Alta mercantilización 3,4* 10,1* 26,6 16,3
Participación combinada
0,1* 0,8* 3,3 1,9
de Estado y mercado
Total 100 100 100 100

Fuente: elaboración propia en base a ENDIS –segunda ola - INE-IECON-UCC. *Nota: menor a 30
casos por celda

La participación en el mercado laboral de las personas referentes,


se vincula con una menor probabilidad de desarrollar estrategias ex-
clusivamente familistas, siendo el vínculo entre estas variables esta-

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Cambios y permanencias en las estrategias de cuidado infantil en el curso de vida... 115

dísticamente significativo, según los datos analizados en la investiga-

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ción que da origen a este artículo.
La encuesta indaga en la compatibilidad de horarios del centro de
cuidados con el trabajo. La mayoría de quienes adoptan estrategias
que incluyen la participación estatal tanto en la ola 1 como en la 2,
manifiestan menores niveles de compatibilidad entre los horarios del
centro y del trabajo. En la ola 1, mientras el 65% de quienes adoptan
estrategias de baja participación estatal manifiestan que es compatible
el centro con el trabajo, esto ocurre con el 83,8 de los que adoptan
estrategias de baja mercantilización y el 84,9% de los que lo hacen
con alta mercantilización. Incluso entre quienes tienen estrategias de
alta participación del Estado (más de 20 horas semanales), se registra
menor nivel de compatibilidad que quienes adoptan estrategias con
componente mercantil. Esto interroga nuevamente sobre la capacidad
de los servicios públicos de cuidado disponibles de adaptarse a las
inserciones laborales de los adultos de la familia.
En la ola 2, se mantiene la tendencia señalada aunque es menos
pronunciada. Así el 78,5% de quienes desarrollan estrategias con baja
participación del Estado (en la ola 1 era un 65%) manifiesta que existe
compatibilidad de horarios entre centro de cuidado y trabajo mientras
que esto asciende a 87,7% entre quienes adoptan estrategias de alta
mercantilización.

Tabla 10. Tipo de estrategia de cuidados por compatibilidad de horarios del centro de
cuidado infantil y trabajo. Total país, 2013 y 2015.

Ola 1 Ola 2
Es No es Es No es
compatible compatible compatible compatible
Baja
participación del 65,0 35,0 78,5 21,5
Estado
Alta
participación del 72,4 27,6* 78,2 21,8*
Estado

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ISSN: 2238-9091 (Online)
116 Karina Batthyány, Natalia Genta e Sol Scavino

Baja
83,8 16,2* 81,9 18,1*
mercantilización
Alta
84,9 15,1 87,7 12,3
mercantilización
Participación
combinada
49,6* 50,4* 76,2* 23,8*
de Estado y
mercado
Total 73,2 26,8 80,8 19,2

Fuente: elaboración propia en base a ENDIS –primer y segunda ola - INE-IECON-UCC. *Nota: menor
a 30 casos por celda

Reflexiones finales
Los principales resultados dan cuenta del predominio en la socie-
dad uruguaya de una estrategia familista de cuidado infantil en los
niños más pequeños que se transforma hacia una con apoyo parcial
del Estado conforme avanza la edad de los niños.
En términos de los significados que los datos descritos implican en
las políticas de protección social en Uruguay, es posible sostener que
aún es imprescindible aumentar la oferta de centros de cuidado in-
fantil para niños/as de entre 0 y 2 años, principalmente, y en general
aumentar la carga horaria que se oferta. También se puede profundizar
en el mejoramiento de mecanismos de Licencias Parentales individu-
ales e intransferibles, para promover un cambio cultural que modifi-
que efectivamente la actual división sexual del trabajo.
El análisis de los datos muestra que si bien se está avanzando en ga-
rantizar los derechos al cuidado, las condiciones actuales no permiten
que la desfamiliarización genere condiciones para el desarrollo de las
mujeres en, por ejemplo, el ámbito laboral en igualdad de condiciones
que los varones. Sin embargo, el tema es parte de la agenda pública y
se siguen haciendo esfuerzos presupuestales para que la progresivi-
dad hacia la universalidad sea una realidad en el país.
En la estrategia familista se registra la mayor cantidad de horas de
cuidado no remunerado dedicado por las madres así como el por-

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Cambios y permanencias en las estrategias de cuidado infantil en el curso de vida... 117

centaje más bajo de quienes trabajan de forma remunerada. Entre

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las mujeres que no trabajan es predominante la estrategia familista
respecto a las que si trabajan.
Sin embargo el peso de la estrategia familista desciende a partir
de los 2 años de edad lo que queda manifestado en los hallazgos de
la segunda ola de la encuesta mientras que asciende considerable-
mente el uso de centros públicos de cuidado a jornada parcial (hasta
20 horas). Como resultado, la estrategia con baja participación del
Estado es la predominante en la segunda ola con niños mayores de
2 años. Esto probablemente se explique por la mayor disponibilidad
de servicios públicos para estas edades (desde 3 años la oferta es
universal a jornada parcial).
Si bien esto es lo que ocurre en términos generales, encontramos
importantes diferencias en función de variables estructurales, lo que
contribuye a la idea de la existencia de un modelo dual de cuidado in-
fantil en niños mayores de 2 años. Una estrategia de baja estatización
o con apoyo parcial del Estado, que es más frecuente en mujeres que
no trabajan, o lo hacen por menos de 20 horas, en el tercil uno y en
menor medida en el dos. Una estrategia de alta mercantilización pre-
dominante en mujeres del tercer tercil y en madres que trabajan y que
lo hacen por más de 20 horas semanales.
La estrategia con baja participación del Estado, que es más frecuen-
te entre quienes cuentan con menores recursos económicos y edu-
cativos, presenta importantes desventajas para las mujeres. Las mu-
jeres que desarrollan esta estrategia manifiestan altos porcentajes de
incompatibilidad de horarios con el trabajo remunerado, a diferencia
de quienes logran adoptar estrategias mercantiles.
La disponibilidad y oferta de horario parcial de los centros públi-
cos no permite la articulación entre trabajo y cuidado, generando una
doble desigualdad. Una desigualdad social por la cual el acceso al
mercado determina las posibilidades de mantener un trabajo a jorna-
da completa para las mujeres. Una desigualdad de género, porque son

pg 95 - 120 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


ISSN: 2238-9091 (Online)
118 Karina Batthyány, Natalia Genta e Sol Scavino

las mujeres las que experimentan los costos de no contar con servi-
cios públicos disponibles a jornada completa y quienes deben, o bien
trabajar a jornada parcial con la pérdida de ingresos que esto significa
o bien abandonar el mercado laboral. Esto es además aún más impor-
tante en el caso de los niños menores de tres años para quienes tam-
poco existen servicios púbicos a jornada parcial universales.
Se deberá trabajar desde la política pública para permitir socializar
los costos del cuidado a través de la generación de servicios públicos
que permitan articular el trabajo con los cuidados. De lo contrario, en
el marco de un contexto sociocultural que asocia a las mujeres al cui-
dado, y de la idea generalizada de que el ámbito ideal de cuidado es en
la familia, las mujeres seguirán asumiendo los costos del cuidado de
los niños de forma individual.

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Notas

1 Doctora en Sociología por la Univeriste de Versailles Saint Quentin en Yvelines,


Francia. Coordinadora del Grupo de Sociología de Género del Departamento
de Sociología de la Facultad de Ciencias Sociales (UDELAR), Uruguay. ORCID:
0000-0001-6836-9806. E-mail: karina.batthyany@cienciassociales.edu.uy

2 Doctora en Sociología por la Facultad de Ciencias Sociales de la Universidad de la


República Oriental del Uruguay. Asistente de investigación del Grupo de Sociolo-
gía de Género del Departamento de Sociología de la Facultad de Ciencias Socia-
les (UDELAR), Uruguay. ORCID: 0000-0002-0761-7500. E-mail: natalia.genta@
cienciassociales.edu.uy

3 Magíster en Sociología con especialización en Género por la Facultad de Ciencias


Sociales de la Universidad de la República Oriental del Uruguay. Asistente de in-
vestigación del Grupo de Sociología de Género del Departamento de Sociología
de la Facultad de Ciencias Sociales (UDELAR), Uruguay. ORCID: 0000-0002-
6675-7765. E-mail: sol.scavino@cienciassociales.edu.uy

4 CAIF, INAU, Centro de Cuidados Municipal, Centros de Cuidados públicos (ANEP


u Otros).

5 Más información en www.ceip.org.uy

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 95 - 120


121

Perfil das mulheres idosas cuidadoras e os

ISSN: 2238-9091 (Online)


fatores associados à relação de cuidado1

Alessandra Vieira de Almeida2


Simone Caldas Tavares Mafra3
Emília Pio da Silva4
Solange Kanso5
Sheila Maria Doula6

Resumo
Buscou-se descrever o perfil socioeconômico pessoal das cuidadoras e dos ido-
sos dependentes, identificando os fatores associados à relação de cuidado e as
representações sociais acerca da mesma. Entrevistou-se 24 cuidadoras, utilizan-
do-se a técnica SnowBall para a seleção da amostra. Foi realizada a Análise de
Conteúdo, fundamentada pela Teoria das Representações Sociais. Os fatores so-
cioeconômicos e pessoais das cuidadoras podem influenciar na relação de cui-
dado e em suas representações.

Palavras-chave
Mulher idosa; Cuidadora; Perfil Socioeconômico.

Profile of elderly caregiving women and the factors associated with the care relationship

Abstract
The aim was to describe the personal socioeconomic profile of caregivers and de-
pendent elderly, identifying the factors associated with the care relationship and the
social representations about it. Twenty-four caregivers were interviewed using the
SnowBall technique for sample selection. Content Analysis, based on Theory of So-
cial Representations, was carried out. The socioeconomic and personal factors of
caregivers can influence the care relationship and its representations.

Keywords
Elderly woman; Caregiver; Socioeconomic Profile.

Artigo recebido: agosto de 2018


Artigo aprovado: outubro de 2018

pg 121 - 142 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


122 Alessandra V. de Almeida, Simone C. T. Mafra, Emília P. da Silva,
Solange Kanso e Sheila Maria Doula

Introdução
ISSN: 2238-9091 (Online)

O notório aumento proporcional do número de pessoas com 60


anos ou mais de idade na população brasileira e mundial já está sen-
do considerado por Kalache (2014), como uma revolução, o que pode
estar atribuído a fatores positivos e prósperos, uma vez que envelhe-
cer não é mais considerado privilégio de poucos (VERAS, 2009), mas
também a fatores negativos ou limitantes para o cotidiano dos idosos.
De modo simultâneo à transição demográfica pode-se perceber,
também, mudanças no perfil epidemiológico da população, com o au-
mento do número de doenças crônico-degenerativas, que tendem a
comprometer a autonomia e a independência funcional dos idosos, o
que pode resultar na elevada quantidade de pessoas idosas depen-
dentes. De acordo com Andrade (2009), essa realidade pode repre-
sentar uma urgência na prestação de cuidados de saúde e assistência
advindos das redes sociais de apoio formal e informal, sendo de suma
importância para que a etapa da velhice seja vivida com dignidade.
No entanto, o que torna a prestação de cuidados um elemento preo-
cupante é o fato de muitos dos cuidadores serem mulheres, além de ido-
sas. É o que foi confirmado nas pesquisas de Andrade (2009), Hedler et
al. (2016), Fonseca (2014), Mazza (2008) em que os cuidadores eram pre-
dominantemente mulheres de meia-idade ou já idosas, sendo elas filhas,
cônjuges, noras e/ou irmãs. Segundo Andrade (2009, p.156), as famílias,
especificamente, as mulheres, estão sempre exercendo o papel de cuida-
dora dos mais velhos, “o que pode ser explicado pela maior longevidade
das mulheres e pelas mudanças na estrutura e tamanho das famílias”.
O mesmo autor ressalta que as funções e tarefas dos cuidadores prin-
cipais são diversificadas, porém, contínuas, o que acarreta sobrecarga
intensa. As atividades desempenhadas pelos cuidadores vão desde a
vigilância e o acompanhamento até à administração de medicamentos,
estendendo-se até mesmo à prestação de cuidados que não são aptos
a oferecer. Assim, dada a relevância desta temática, este estudo terá
como objeto de investigação o cuidado, na perspectiva da idosa cuida-

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 121 - 142


Perfil das mulheres idosas cuidadoras e os fatores associados à relação de cuidado 123

dora, tendo como objetivo descrever o perfil socioeconômico pessoal e

ISSN: 2238-9091 (Online)


familiar das idosas cuidadoras e dos idosos dependentes, identificando
os fatores associados à relação de cuidado e as representações sociais
acerca da da razão de serem as principais cuidadoras.

Métodos
a) Caracterização da pesquisa e local do estudo
Este estudo é de natureza qualitativa, com abordagem exploratória
e descritiva, tendo como estratégia de pesquisa o estudo de caso.
A pesquisa foi realizada no município de Viçosa, MG, uma vez que
conta com 11,03% de pessoas idosas em sua população total, sendo
este valor representativo ao se comparar com o percentual desta faixa
etária no Brasil, ou seja, 10,8% da população. Destaca-se que a popu-
lação idosa viçosense possui maior número de mulheres, cuja porcen-
tagem foi de 6,1%, com um diferencial de 1,2% a mais do que os ho-
mens idosos no município (4, 9%) (IBGE, 2010). Esses dados mostram
que a referida cidade é propícia para os estudos em envelhecimento.

b) Sujeitos da pesquisa
A pesquisa envolveu, especificamente, as mulheres idosas que
ofertavam o cuidado a idosos(as) dependentes em suas atividades de
vida diária, com debilidades motoras e/ou mentais. O critério para in-
clusão na pesquisa é ser familiar da pessoa demandante de cuidado.
Para a definição da amostra foi utilizada uma das técnicas de amos-
tragem chamada snowball sampling, também conhecida como ca-
deia de informantes ou método da bola de neve, segundo Biernacki
e Waldorf (1981). Esta técnica permite definir a amostra de sujeitos da
pesquisa por referência, ou seja, a partir de uma pessoa com o perfil
para a pesquisa buscam-se as demais por indicação da mesma e, as-
sim, sucessivamente. Desde modo, a pesquisa teve uma amostra não
probabilística, não podendo ter seus resultados generalizados, e sim
analisados para os indivíduos participantes da pesquisa.
pg 121 - 142 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019
124 Alessandra V. de Almeida, Simone C. T. Mafra, Emília P. da Silva,
Solange Kanso e Sheila Maria Doula

c) Procedimento para coleta de dados


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Inicialmente, a pesquisadora buscou em sua rede de amigos uma


idosa cuidadora, sendo que esta fez a indicação de outra(s) que per-
tencia(m) ao seu ciclo de amizades e assim aconteceu sucessivamen-
te, formando um grupo de idosas cuidadoras a serem entrevistadas,
até que a pesquisa alcançasse o seu ponto de saturação. Deste modo,
o método da bola de neve apoiou a técnica de coleta de dados princi-
pal deste estudo, a entrevista semiestruturada, ou seja, o questionário
com perguntas abertas e fechadas. Para a realização das entrevistas,
foram feitas visitas às casas das cuidadoras que aceitaram participar,
com dia e horário marcados, segundo a possibilidade das mesmas,
onde procedeu-se a execução da pesquisa.
A entrevista abordou o perfil socioeconômico pessoal e familiar
do(a) idoso(a) dependente de cuidado e da idosa cuidadora, sendo
as informações referentes ao idoso fornecidas pela própria cuidadora.
Além disso, foram abordados fatores relacionados ao cotidiano da re-
lação de cuidado. A construção do roteiro de entrevista baseou-se em
Andrade (2009), Miranda (2014) e Mazza (2008) cujos estudos abor-
daram o cuidado em contexto domiciliar, a qualidade de vida dos ido-
sos e o cuidado sob o olhar do idoso, respectivamente.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)
da Universidade Federal de Viçosa (UFV), cujo parecer corresponde
ao número 1.956.311, enviado em 09/03/2017. Em resposta à Reso-
lução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, juntamente à en-
trevista foi anexado o TCLE para que as idosas pudessem assinar e
permitir sua participação voluntária.

d) Análise dos dados


Para os dados dos perfis socioeconômico, pessoal e familiar
dos(as) idosos(as) dependentes e das cuidadoras, foi realizada a
análise descritiva e, para uma das questões aberta com maior con-

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 121 - 142


Perfil das mulheres idosas cuidadoras e os fatores associados à relação de cuidado 125

teúdo e diversidade textual e semântica, foi utilizada a Análise de

ISSN: 2238-9091 (Online)


Conteúdo Temática Categorial, fundamentada na Teoria das Repre-
sentações Sociais (TRS).
Por meio de métodos sistematizados e objetivos, a Análise de
Conteúdo descreve a totalidade do significado das mensagens, in-
dicadores qualitativos e quantitativos, o que possibilita a produção
do conhecimento em relação à percepção das variáveis. Além dis-
so, proporciona o desmembramento do texto em categoriais agru-
padas analogicamente (BARDIN, 2011). Segundo a mesma autora,
a Análise de Conteúdo perpassa por etapas, como a pré-análise, a
exploração do material a ser estudado, o tratamento dos resulta-
dos, a inferência e a interpretação das mensagens. Para este estu-
do, a categoria e as subcategorias foram definidas a posteriori por
meio da codificação das entrevistas transcritas.
As representações sociais revelam e expressam o senso comum
com o qual um grupo de indivíduos formula o significado de um de-
terminado objeto que está compartilhado na interação cultural em que
vivem no cotidiano (MOSCOVICI, 2009). Parte-se do princípio de que
o cuidador, como ator social, ligado ao grupo social família, por meio
de suas relações internas e externas, provenientes de suas experiên-
cias, possa construir o seu constructo representacional (FONSECA,
2014). Vale ressaltar que a Análise de Conteúdo permitiu identificar os
sentimentos, valores, pensamentos, opiniões, atitudes, crenças, entre
outros fatores atrelados à relação de cuidado vivenciada pela mulher
idosa e o(a) idoso(a) dependente que respaldados pela TRS contribuí-
ram para aprofundamento do presente estudo.

Resultados e discussão
Nessa seção serão apresentados os dados que se referem aos per-
fis socioeconômico, pessoal e familiar das idosas cuidadoras e dos(as)
idosos(as) dependentes, além das informações que dizem respeito aos
aspectos significativos do contexto da relação de cuidado.
pg 121 - 142 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019
126 Alessandra V. de Almeida, Simone C. T. Mafra, Emília P. da Silva,
Solange Kanso e Sheila Maria Doula

a) Perfil socioeconômico das idosas cuidadoras


ISSN: 2238-9091 (Online)

O presente estudo contou com a participação de 24 idosas cuida-


doras informais, com idade média de 68 anos de idade, tendo uma
variação de 60 a 87 anos. A Tabela 1 apresenta o perfil das cuidado-
ras, em que se pode observar a predominância de mulheres casadas
(n=16), de cor branca (n=16), católicas (n=19), com baixa escolaridade
(n=9), aposentadas (n=17) e com renda de um salário mínimo (n=16).

Tabela1 – Características socioeconômicas das idosas cuidadoras, Viçosa, 2017

VARIÁVEIS Frequência %
Estado Civil
Casada 16 66,7
Solteira 4 16,6
Viúva 2 8,3
Separada 1 4,2
Divorciada 1 4,2
Total 24 100
Raça
Branca 16 66,7
Negra 8 33,3
Total 24 100
Religião
Católica 19 79,2
Evangélica 4 16,6
Espírita 1 4,2
Total 24 100
Escolaridade
Não frequentou a escola 4 16,7
Ensino Fundamental – 1ª fase (incompleto) 9 37,5
Ensino Fundamental – 1ª fase (completo) 4 16,7
Ensino Fundamental – 2ª fase (incompleto) 0 0
Ensino Fundamental – 2ª fase (completo) 2 8,3
Ensino Médio Incompleto 0 0
Ensino Médio Completo 2 8,3

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 121 - 142


Perfil das mulheres idosas cuidadoras e os fatores associados à relação de cuidado 127

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Nível Superior 3 12,5
Total 24 100
Situação Profissional
Aposentada 17 70,8
Pensionista 2 8,3
Dona de Casa 2 8,3
Costureira 1 4,2
Atendente de banca de revista e cuidadora 1 4,2
Aposentada e cuidadora 1 4,2
Total 24 100
Renda Mensal (R$)
Não possui renda 2 8,3
1-937 (até 1 salário mínimo) 16 66,7
938-2.811 (De 1 a 3 salários mínimos) 3 12,5
2.812-4.685 (De 3 a 5 salários mínimos) 2 8,3
4.686-65.59 (De 5 a 7 salários mínimos) 1 4,2
Total 24 100

Fonte: Dados da pesquisa, 2017.

A faixa etária das idosas destaca a prevalência de cuidadoras em


idades propensas a maiores demandas de suporte social, psicoló-
gico e físico, caracterizando uma fase em que emergem fragilidades
e necessidades próprias do processo de envelhecimento, o que de-
nota que o cuidador pode ser alguém que está também em situação
de debilidade ou de adoecimento (CAVALCANTE, 2010). Os estudos
de Fonseca (2014), Hedler et al. (2016) e Ramos (2012) também re-
velaram a maior parte dos cuidadores na faixa etária adulta e idosa.
Destaca-se o fator religião nessa pesquisa, por notar que Deus
era mencionado como a força motriz para aquelas idosas na tarefa
de cuidar, sendo visto como quem as fortalecia nesse papel, além de
verem o cuidado como uma vocação, chamado de Deus e também
como uma resposta a Ele, como pode ser visto nas falas:

pg 121 - 142 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


128 Alessandra V. de Almeida, Simone C. T. Mafra, Emília P. da Silva,
Solange Kanso e Sheila Maria Doula
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“As pessoas me falam: ah, como é que você dá conta? Amor.


Amor, graça de Deus e fé” (Ent. 19).
“Fui escolhida por Deus para tomar conta dela, não casei!” (Ent. 5).
“Eu sou uma pessoa católica e trabalhei muito ajudando o lar dos
velhinhos, eu acho que não adianta cuidar de alguém lá fora e
deixar ele aqui jogado. [...] Cuido por amor a Deus.” (Ent. 12).

Segundo Fonseca (2014), a fé direciona as atitudes humanas e, no


processo saúde-doença, isso não é diferente. Em muitos casos, per-
cebe-se que a religião atua como suporte, o que pode ajudar a con-
tornar ou superar determinada situação vista como sendo de difícil e
até mesmo impossível resolução. Além disso, os resultados apontados
por Hedler et al. (2016) revelaram que a disponibilidade e a dedicação
do cuidador familiar estão fundadas no simbolismo tradicional da de-
dicação incutido pela religião e a religiosidade.
A baixa escolaridade e a baixa renda podem ser vistos como fatores
intrínsecos, uma vez que a baixa escolaridade limita o acesso ao mer-
cado de trabalho com melhor remuneração. É importante ressaltar que
essa realidade no cotidiano das cuidadoras pode acarretar limitações
ao próprio desempenho do cuidado ao idoso. Mayor et al. (2009) des-
taca a importância do nível de escolaridade dos cuidadores familiares,
uma vez que este pode influenciar na habilidade de interpretação e
execução das orientações dadas pela equipe médica com relação ao
cuidado direcionado ao idoso dependente. Além disso, conforme Se-
queira (2010), os cuidadores de classes sociais menos favorecidas, ou
seja, com baixa escolaridade, baixos rendimentos e até piores condi-
ções habitacionais, tendem a atingirem maiores níveis de sobrecarga,
dificultando ainda mais a tarefa de cuidar.
Os resultados do presente estudo apontaram que todas as idosas,
exceto duas, aprenderam a cuidar de seus familiares sozinhas, no dia-
-a-dia, por tentativa e erro, com o tempo, sem nunca terem feito um
curso para cuidadora; o que pode ser explicado pela baixa escolarida-
de, pela baixa renda ou até mesmo pelo difícil acesso a informações.
O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 121 - 142
Perfil das mulheres idosas cuidadoras e os fatores associados à relação de cuidado 129

Estes foram os mesmos resultados encontrados por Hedler et al. (2016)

ISSN: 2238-9091 (Online)


e Fonseca (2014). Nesse sentido, Jede e Spuldaro (2009) afirmam que
em muitos casos, os cuidadores familiares não estão hábeis a assumi-
rem as atividades exigentes do cuidado, o que demanda informações
e orientações adequadas para os procedimentos necessários diante
da nova condição de seu familiar enfermo.
Do total das cuidadoras, notou-se que vinte e uma delas referiram
enfrentar algum problema de saúde, sendo a hipertensão arterial (n=15),
o diabetes (n=9) e as doenças osteoarticulares (n=8) as mais mencio-
nadas (Figura 1). Com esse fato, evidencia-se que as idosas cuidado-
ras já podem estar vivenciando situações que carecem de assistência e
atenção. Os resultados apresentados por Marques et al. (2011) mostram
que um dos efeitos negativos do cuidado sobre a vida, principalmente,
dos cuidadores principais, caracteriza-se pelos danos na saúde, como
lesões na coluna, enxaqueca, surgimento da hipertensão arterial e de-
pressão. Os autores ainda reforçam que os cuidadores são levados a
renegar sua própria saúde, priorizando o cuidado ao seu familiar.

Figura 1: Estado de saúde das idosas cuidadoras, Viçosa, 2017

Fonte: Dados da pesquisa, 2017.

pg 121 - 142 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


130 Alessandra V. de Almeida, Simone C. T. Mafra, Emília P. da Silva,
Solange Kanso e Sheila Maria Doula
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As características apresentadas permitiram compreender o perfil


das idosas cuidadoras abordadas neste trabalho, sendo possível diag-
nosticar as suas necessidades e fragilidades individuais e aquelas re-
lacionadas com a prestação de cuidado. Sendo assim, pode-se refletir
sobre as vivências cotidianas de uma idosa cuidadora que enfrenta
desafios diários no desempenho do seu papel. É importante dizer que,
este se refere a um estudo de caso, mas que aponta para os diversos
contextos dos espaços relacionais de cuidado.

b) Fatores relacionados ao cuidado


No que se refere à prestação de cuidados, os dados revelaram que,
entre as principais cuidadoras, as cônjuges eram a maioria (n=11), se-
guindo-se das filhas (n=8), das irmãs (n=2) e da mãe (n=1). Houve duas
idosas que ofertavam o cuidado a dois idosos, simultaneamente, sen-
do cônjuge/filha e cônjuge/sobrinha o grau de parentesco das mes-
mas. Ramos (2012), Sequeira (2010), Borghi et al. (2011) e Mazza (2008)
também observaram que as principais agentes do cuidado dos fami-
liares mais próximos eram as cônjuges e as filhas. Pode-se inferir que
essa realidade é significativa pelo fato da esposa e da filha, na maioria
das vezes, coabitarem com a pessoa dependente de cuidado, ficando
a cargo das mesmas a tarefa de cuidar.
Quanto aos idosos carentes de cuidado, a idade mínima encontra-
da foi de 60 anos e a máxima de 99 anos, com idade média de 82
anos. Vale ressaltar as causas que os levaram ao estado de dependên-
cia, destacando-se as doenças como o Alzheimer, Parkinson, Aciden-
te Vascular Cerebral (AVC), entre outras, como, o diabetes, doenças
respiratórias, problemas osteoarticulares, implicações de acidente e
cirurgia, falta de circulação, insuficiência renal e os problemas psíqui-
cos. Observou-se que todas essas enfermidades geraram deficiência
cognitiva e/ou motora persistente e progressiva na vida dos idosos. A
maioria (n=19) convivia com duas ou mais dessas debilidades, o que
dificultava ou incapacitava a realização das atividades de vida diária
O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 121 - 142
Perfil das mulheres idosas cuidadoras e os fatores associados à relação de cuidado 131

(AVD), demandando a presença da cuidadora para que os auxiliasse e

ISSN: 2238-9091 (Online)


suprisse as suas necessidades cotidianas.
De acordo com Ramos (2012), um idoso é ou não dependente, ao
considerar sua necessidade de apoio na realização das atividades bá-
sicas de vida diária (ABVD) e das atividades instrumentais de vida di-
ária (AIVD), que são agrupamentos das AVD. As ABVD consistem na
prática do autocuidado, como a higiene pessoal, vestir-se, alimentar-
-se, mobilizar-se e o controle dos esfíncteres. Já as AIVD indicam a
capacidade de viver independente em meio a sociedade, realizando as
funções domésticas, fazer compra, usufruir dos meios de transportes e
administrar os próprios medicamentos.
No que se refere aos tipos de cuidado ofertados, os mais menciona-
dos pelas idosas foram a alimentação, banho, administração dos me-
dicamentos, mobilização do idoso pela casa, retirada e acomodação
do idoso no leito, acompanhamento nas consultas médicas, compa-
nhia, atenção, troca de roupa e de fralda e cuidados pessoais como fa-
zer a barba, cortar as unhas, o cabelo e a higiene bucal. De acordo com
Imaginário (2008), os cuidados podem ser de natureza instrumental
e expressiva, formais e informais. Deste modo, os tipos de cuidado
encontrados podem ser denominados instrumentais, de ordem física
e prática e também expressivos, de ordem afetiva, além de informal,
por ser a cuidadora um familiar do idoso dependente e não haver ne-
nhuma espécie de remuneração.
Na perspectiva da maioria das cuidadoras (n=12), todos os tipos de
cuidado que prestavam eram considerados importantes, sendo que
para 4 delas o banho era o mais importante e para 3 delas, a admi-
nistração dos medicamentos (Tabela 2). Ao serem questionadas sobre
a dificuldade na prestação de cuidados, 13 idosas afirmaram não en-
contrar nenhuma dificuldade, alegando terem se acostumado com as
atividades desempenhadas. Já para 5 cuidadoras, dar o banho era um
tipo de cuidado de difícil execução, bem como a locomoção pela casa
para duas das cuidadoras (Tabela 2).

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132 Alessandra V. de Almeida, Simone C. T. Mafra, Emília P. da Silva,
Solange Kanso e Sheila Maria Doula
Tabela 2: Características da idosa cuidadora relacionadas com a prestação de cuidados
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Número de anos despendendo cuidado Frequência %


1-11 meses 4 15,4
1-6 anos 14 53,8
7-10 anos 5 19,2
11 anos ou mais 3 11,6
Total 26 100
Tempo despendido com o cuidado
1-8 horas 16 61,6
O dia todo 8 30,8
O dia todo (3x na semana) 1 3,8
O dia todo (2x na semana) 1 3,8
Total 26 100
Cuidado mais importante
Todos 12 50
Medicamentos 3 12,5
Alimentação e tarefas da casa 1 4,2
Alimentação e manutenção das roupas 1 4,2
Alimentação e higiene 1 4,2
Alimentação 1 4,2
Banho 4 16,6
Prevenção contra a queda 1 4,2
Total 24 100
Dificuldade em algum cuidado
Nenhuma 13 54,1
Dar banho 5 20,8
Locomoção dentro de casa 2 8,3
Levar ao banheiro 1 4,2
Retirar da cama 1 4,2
Vigiar à noite 1 4,2
Controle da micção 1 4,2
Total 24 100

Fonte: Dados da pesquisa, 2017.

Observou-se que a maioria das cuidadoras (n=21) vivia juntamente


com os idosos que dependiam dos seus cuidados, apenas duas idosas

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 121 - 142


Perfil das mulheres idosas cuidadoras e os fatores associados à relação de cuidado 133

não corresidiam e em um caso a idosa cuidava do seu marido, com

ISSN: 2238-9091 (Online)


quem morava, bem como dos seus pais em outra residência. Desta
forma, o cuidado ao idoso se tornou rotina na vida das idosas esten-
dendo-se por curto, médio ou longo espaço de tempo.
Pode-se notar que o tempo de cuidado tinha um mínimo de 10 me-
ses e máximo de 30 anos, uma vez que algumas das cuidadoras já
vinham cuidando do seu familiar desde muito tempo. Na Tabela 2 é
possível observar que 16 cuidadoras ofertavam o cuidado há menos
de 6 anos, sendo que duas delas cuidavam de mais de uma pessoa
com margem de tempo diferente, justificando a frequência n=26 no
total representado. Além disso, notou-se que 8 idosas exerciam o
cuidado há 7 anos ou mais. Ressalta-se que a prestação de cuidados
era majoritariamente de forma contínua (n=24), ou seja, todos os dias,
destacando a participação de duas idosas no cuidado a mais de uma
pessoa. Apenas duas cuidadoras prestavam cuidados 2 vezes e 3 ve-
zes na semana, realizando-o durante todo o dia (Tabela 2).
Ao longo do diálogo realizado com as idosas cuidadoras, percebia-se
que o cuidado havia se tornado rotina em suas vidas e o sentimento de
resignação era preponderante. Para aquelas que assumiram o cuidado há
pouco tempo, era um misto de medo e coragem diante do que se tornava
realidade em suas vidas, mas, sempre com aceitação. Para aquelas que
cuidavam há muitos anos, notava-se o cansaço, mas também o senti-
mento de dever cumprido e a entrega total aquela tarefa diária.
No entanto, não se pode negar que o cuidador se depara com ne-
cessidades ou dificuldades em sua atividade rotineira de cuidar, entre
elas, a sobrecarga. Saraiva (2011) afirma que os efeitos da dependência
contínua e progressiva do idoso potencializam o aumento da sobrecar-
ga e a perda de qualidade de vida dos cuidadores, que podem ser afe-
tados de modo psicossocial, socioeconômico e na saúde física. São José
(2012) corrobora com essa discussão ao afirmar que a disponibilidade
de tempo de quem é cuidador decorrente da inatividade profissional e
vinculada à ausência de outros familiares que desempenhem o papel

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de cuidador principal e, ainda, à insuficiência de recursos financeiros,


concretizou-se numa dedicação exclusiva ao cuidado, o que resulta em
cansaço físico e psicológico. Ramos (2012) acrescenta que essas impli-
cações na vida do cuidador são ainda mais intensas quando o cuidador
informal é também idoso, como é o caso da presente pesquisa.
Nesse sentido, a tarefa do cuidado pode gerar transformações ex-
teriores e interiores no cotidiano de quem cuida. O cuidador se con-
forma a nova realidade buscando ajustar o tempo, renunciar planos e
projetos individuais e familiares, alterar a rotina, entre outras mudanças.
Também ocorrem movimentos interiores e, até mesmo, desconhecidos
pelos cuidadores diante do novo que se apresenta, surgindo sentimen-
tos como o medo, a angústia, a impotência, a confusão e a solidão, por
exemplo. De repente, os cuidadores percebem-se cuidando de quem
um dia cuidou deles e até mesmo cuidando de quem eles nunca ima-
ginavam ou desejavam cuidar. Nesse sentido, é importante dizer que o
cuidado pode ser visto como um ato inerente à vida humana e está en-
volto de sentimentos, pensamentos, valores, afetos, memória e história.
Na perspectiva das idosas cuidadoras abordadas, notou-se que 13
delas apresentavam pouco interesse em realizar as suas atividades de
vida diária, ou seja, desânimo, além de se sentirem tristes e/ou deprimi-
das em virtude dos desafios encontrados na relação de cuidado, sendo
que esses fatos aconteciam no mínimo 2 vezes na semana (Tabela 3).

Tabela 3: Sentimentos provenientes da relação de cuidado das idosas cuidadoras, Viçosa,


2017

Pouco interesse ou prazer em realizar as ATV Frequência %


Sim 13 54,2
Não 11 45,8
Total 24 100
Número de dias da semana
1 vez 1 7,7
2 vezes 9 69,2
3 vezes 2 15,4

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Perfil das mulheres idosas cuidadoras e os fatores associados à relação de cuidado 135

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7 vezes 1 7,7
Total 13 100
Sentindo-se triste ou deprimida
Sim 13 54,2
Não 11 45,8
Total 24 100
Número de dias da semana
1 vez 2 15,4
2 vezes 6 46,2
3 vezes 4 30,7
7 vezes 1 7,7
Total 13 100

Fonte: Dados da pesquisa, 2017.

Segundo Mazza (2008), o cuidado gera desgaste e estresse para o


cuidador, uma vez que este tende a renunciar à sua própria vida em
função do outro. Sendo assim, cuidar de um idoso pode causar-lhe
desordens pessoais, profissionais, físicas e mentais, além disso, o tra-
balho, muitas vezes, solitário do cuidado, ocasiona a sensação de de-
sânimo e impotência diante da vida.
Diante desse contexto, vale ressaltar que podem ser diversas as
razões pelas quais são levados os cuidadores informais de idosos a
desempenharem esse papel, sendo que muitas vezes, estão ocultas.
Para o presente trabalho, buscou-se identificá-las a partir da análi-
se do conteúdo das falas das cuidadoras entrevistadas, fundamen-
tando-a com a TRS. Assim, buscou-se investigar o que o sujeito da
pesquisa, a idosa cuidadora, (re) pensa e/ou (re) apresenta, por de-
terminado objeto social, neste caso, a razão de ser cuidadora, a partir
das relações e interações que foram estabelecidas entre os mesmos.
A seguir, serão apresentados o tema, as categorias, as subcategorias
e as unidades de registo (UR) decorrentes da análise.

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Quadro 1: Razões que levaram as idosas ao papel de cuidadora, Viçosa, 2017.
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Tema Categoria Subcategorias N Unidades de Registro


Ent. 24 “Cuido porque casou já viu né? Casou tem que cuidar.”

Ent. 22 “Eu acho que é uma obrigação minha e o companheirismos


Por ser esposa 3 dele para mim, me faz falta...”

Ent. 10 “É porque eu casei com ele, né? Nós temos que cuidar um do
outro.”
Por
Ent. 11 “Porque eu que tenho que cuidar dela, né? Porque eu que sou
obrigação Por ser mãe 1
mãe, fiquei no lugar de mãe, de pai.”
Ent. 1 “Cuidando dele obrigada, né? Porque, os filhos não quer, né?”
Por ser esposa
e não haver
2
quem queira Ent. 4 “Porque não tinha outra pessoa para cuidar e como diz o
cuidar outro: é mulher e marido, né? Aí cuida eu sozinha, porque os filhos
dele não ajudam.”
Ent. 19 “É Amor! Não tem outra coisa.”

Ent. 16 “Primeiro é o amor a minha mãe, né? Porque, como filha, a


dependência dela, eu me vejo como responsável por ela hoje.”
Razões que levaram ao papel de cuidadora

À pessoa
6
dependente
Por amor Ent. 13 “O amor, né? O amor de mãe.”

Ent. 5 “O amor que a gente tem. O carinho com ela. Tem que ter muita
paciência e como diz o outro: a gente está aqui para servir mesmo.”
Ent. 12 “Querendo ou não ele é pai dos meus filhos, né? Cuido por
À Deus 1
amor a Deus.”
Ent. 21 “Acho que por ser minha mãe, ela cuidou de mim, hoje eu
Por retribuição 1
tenho que cuidar dela, né?”
Ent. 18 “... porque todas elas (irmãs) trabalham e (...) eu não quis trabalhar.”

Ent. 17 “Porque quem que ia cuidar dele? Tinha que ser eu mesma
Ausência de outro cuidador 3
né? É por não ter outra pessoa.”

Ent. 15 “Parece que tudo foi acontecendo, os irmãos dispersos.”

Ent. 14 “Pelo fato dela ter ficado viúva.”

Ent. 8 “Cuido dele para ele ficar bem. Procuro fazer as coisas que ele
precisa e gosta.”

Necessidade do cuidado 4 Ent. 7 “Ele perdeu a visão, como é que faz? Eu não conseguiu fazer
nada mais sem ajuda.”

Ent. 3 “(...) eu acho a idade dele avançada para passar pelo que
ele passou. Foi uma coisa muito séria, de uma hora por outra que
abalou nós todos lá em casa.”

Ent. 9 “Ah, porque tenho que cuidar, porque a gente sempre vai
perder a mãe da gente... cuidar dela enquanto ela tá aqui com a
gente, depois falta, acabou, não é? (...) Por amor, medo de perder.
Medo da perda 2

Ent. 6 “Meu dom é de doar. Medo dela morrer e o menino (filho) com
quem vai ficar?
Ent. 4 “Eu fico dó dela, porque ela tem muito sobrinho, mas ninguém
esquenta a cabeça com ela.”
Sentimento de pena 2

Ent. 2 “Ah, eu fico com dó dela, coitada, é minha irmã, né?! É só nós duas.”

Fonte: Dados da pesquisa, 2017.

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 121 - 142


Perfil das mulheres idosas cuidadoras e os fatores associados à relação de cuidado 137

A análise do conteúdo das falas deu origem a sete categorias que

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evidenciaram as representações sociais das idosas em relação às ra-
zões de serem as cuidadoras, a saber: Por obrigação; Por amor; Por
retribuição; Ausência de outro cuidador; Necessidade do cuidado;
Medo da perda e Sentimento de pena. Além disso, as duas primeiras
categorias ainda apontaram subcategorias: Por obrigação (Por ser es-
posa, Por ser filha e Por ser mãe) e Por amor (À pessoa dependente e a
Deus). Destacaram-se as categorias Por amor (à pessoa dependen-
te), Cuidado por obrigação (Por ser esposa), Necessidade do cuidado
e Ausência de outro cuidador.
Notaram-se por meio das UR algumas características peculiares
das relações de cuidado entre filha/mãe e esposa/marido, principal-
mente. Pode-se observar representações e significados diferenciados
sobre o cuidado, uma vez que ambas o exercem em posições diferen-
tes, o que pode influenciar suas percepções, sentimentos, maneiras e
razões de cuidar. Ao mencionarem que cuidam “por amor”, a maioria
das cuidadoras se referia à mãe, reforçando o carinho pela mesma, a
responsabilidade pelo seu bem estar, o que estava também ligado à
“retribuição”, a “ausência dos irmãos” e até mesmo o “medo da per-
da”. Assim, notou-se que as representações sociais das filhas estavam
associadas ao vínculo materno/filial arraigado, ou seja, a razão de ser a
cuidadora da mãe era muito significativo, visto até mesmo como uma
troca por tudo que já receberam, reforçando os sentimentos de afeti-
vidade e reciprocidade.
Quanto às idosas que disseram cuidar “por obrigação”, destaca-
ram-se as que ofertavam o cuidado aos seus maridos. A maioria delas
revelou que a “obrigação” estava atrelada ao compromisso que fize-
ram um com o outro e demonstravam em suas falas que o casamento
e o dever de cuidar eram indissociáveis. Por outro lado, algumas cui-
dadoras demonstravam que estavam prestando o cuidado obrigadas,
principalmente, pela ausência de outra pessoa que se prontificasse
a cuidar, sobretudo os filhos. Vale ressaltar que, entre as razões que

pg 121 - 142 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


138 Alessandra V. de Almeida, Simone C. T. Mafra, Emília P. da Silva,
Solange Kanso e Sheila Maria Doula
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levaram as idosas a cuidarem de seus maridos também estavam: o


amor, o amor a Deus e a necessidade do cuidado, em menor propor-
ção. Desta maneira, as representações sociais das cuidadoras cônju-
ges estavam ligadas ao compromisso da vida conjugal firmado entre
marido e mulher. Destaca-se que a razão do cuidado por obrigação
denotou certo “pesar” nos conteúdos analisados, o que pode repre-
sentar sentimentos ocultos de incômodo e cansaço, por exemplo.
É importante dizer que a disposição ou até mesmo a imposição de
um familiar em assumir a função de cuidador está intimamente relacio-
nado com o seu papel social, ligado a valores culturais, que influenciam
a sua personalidade, decisões, escolhas, motivações e a construção so-
cial de objetos, tendo em vista que o cuidado pode-se ser algo cons-
truído socialmente (FONSECA, 2014). Como pode ser visto na literatura,
a representação é de algo e de alguém, constituindo uma relação entre
o que é subjetivo do objeto e o que é objetivo do sujeito e, assim, bus-
cando a união do indivíduo com o mundo e as coisas que o rodeiam
(JODELET, 2005). Conforme aponta Coutinho et al. (2003) a construção
da representação de alguma coisa por alguém, baseia-se num ambiente
de experiências e simbolismos, que forma a sua visão de mundo.
Diante do que foi exposto, pode-se compreender que as interações
pessoais estabelecidas entre a idosa cuidadora e o seu familiar depen-
dente, no cotidiano da prestação de cuidados, com as experiências
exteriores e interiores, influenciaram nas representações sociais das
idosas sobre as razões que as levaram ao papel de cuidadora, refor-
çando que a representação é formada a partir de significados, memó-
rias, histórias e realidades pessoais e sociais.

Considerações finais
A análise do perfil das mulheres investigadas elucidou diversas
questões que podem levar a compreensão da realidade vivenciada
por outras cuidadoras informais idosas, num contexto de vida em que
já são evidentes as marcas da velhice. Foi possível observar que os
O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 121 - 142
Perfil das mulheres idosas cuidadoras e os fatores associados à relação de cuidado 139

fatores socioeconômicos e pessoais das cuidadoras podem influenciar

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de modo direto na relação de cuidado.
A religião, o grau de escolaridade, a renda, o acesso a informações
sobre técnicas de cuidado são aspectos que direcionam o desempe-
nho do cuidado, podendo torná-lo mais eficiente e até mesmo menos
pesado para as cuidadoras. O cuidado prestado aos idosos era reali-
zado de forma leiga, muitas vezes, inadequada, o que levava ao des-
conforto para a cuidadora e o idoso. Porém, deve-se considerar que
diante do contexto de vida das cuidadoras, tudo o que realizavam era
visto como a única e melhor forma de cuidar.
Cuidar de um idoso sendo idosa implica em lidar com a doença do
outro e, muitas vezes, com as suas próprias debilidades, resultantes ou
não do próprio processo de cuidar, que exige demasiadamente da cui-
dadora. Não se tem conhecimento se os problemas de saúde mencio-
nados eram decorrentes da tarefa de cuidar, mas pode-se observar que
a maior parte deles tinham reflexos psicológicos, por exemplo, se o ido-
so não estivesse bem ou se algo estivesse fora de ordem nas atividades
do cuidado, alterava-se a pressão arterial, o humor, gerava ansiedade,
depressão, entre outros problemas físicos. Esses fatores ainda estão as-
sociados à causa da dependência do idoso, aos tipos de cuidado pres-
tados e ao tempo de cuidado despendido pelas cuidadoras ao longo
da vida e do dia, o que provoca a sobrecarga física e emocional e as
transformações em seu contexto pessoal, profissional, familiar e social.
Percebeu-se que o papel de cuidadora surgiu a partir de diversas
motivações, além destas se diferenciarem entre os graus de parentes-
co da idosa com o dependente. Deste modo, foi possível notar as re-
presentações sociais das idosas em relação às razões que as levaram a
serem as principais cuidadoras, destacando-se o sentimento de amor,
obrigação, necessidade do cuidado e ausência de outro cuidador, sendo
observadas, sobretudo, entre as cônjuges e as filhas, que coabitavam
com o familiar idoso. Assim, observou-se que as representações sociais
foram construídas a partir de suas experiências e histórias de vida.

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140 Alessandra V. de Almeida, Simone C. T. Mafra, Emília P. da Silva,
Solange Kanso e Sheila Maria Doula
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Por fim, ressalta-se que as representações evidenciadas e o perfil


das mulheres permitiram conhecer o contexto da relação de cuidado
existente entre uma idosa cuidadora e um idoso dependente, o que
deve incidir na busca de possíveis medidas que apoiem e socorram
as necessidades e fragilidades não somente do idoso, mas também da
idosa cuidadora, que exerce o cuidado no domicílio.

Agradeço o apoio financeiro da FAPEMIG, que disponibilizou, no período de


agosto de 2015 a maio de 2017, a bolsa de doutorado, que foi de fundamental
importância para o bom êxito dessa pesquisa.

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Acesso em: 20 out. 2018.

Notas

1 Este artigo apresenta os resultados parciais do doutorado em andamento no Pro-


grama de Pós-Graduação em Economia Doméstica da Universidade Federal de
Viçosa (UFV), MG.

2 Bacharel em Economia Doméstica pela Universidade Federal de Viçosa (UFV),


Mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Economia Doméstica
pela UFV. Brasil. ORCID: 0000-0003-0210-9117. E-mail: avaalessandra@yahoo.
com.br.

3 Doutora em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Cata-


rina (UFSC). Docente do Departamento de Economia Doméstica e do Programa
de Pós-Graduação em Economia Doméstica da Universidade Federal de Viçosa
(UFV). Brasil. ORCID: 0000-0003-2247-2327. E-mail: sctmafra@ufv.br

4 Doutora em Ciência Florestal pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Pro-


fessora da Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga. Brasil. ORCID: 0000-0001-
8130-5196. E-mail: emiliapiosilva@yahoo.com.br.

5 Doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz).


Pesquisadora do Senac/DN da Gerência de Prospecção e Avaliação Educacional
que pertence a Diretoria de Educação Profissional do Senac/DN. Brasil. ORCID:
0000-0001-7044-7754. E-mail: solange.kanso@gmail.com.

6 Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP). Docen-


te do Departamento de Extensão Rural e do Programa de Pós-Graduação em
Extensão Rural da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Brasil. ORCID: 0000-
0003-0310-9055. E-mail: sheiladoula@gmail.com.

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Concepções de trabalho social com famílias

ISSN: 2238-9091 (Online)


por parte de psicólogos em artigos científicos1

Gustavo Henrique Carretero2

Resumo
O artigo reflete sobre as concepções de trabalho social com famílias por parte de
psicólogos. O referencial teórico utilizado foi o materialismo histórico dialético. Para
tanto, foram levantados e analisados 34 artigos científicos sobre a temática. Duas
concepções sobre trabalho social com famílias emergiram. Uma tradicional, voltada
à clínica individualizante, moralista e liberal que adota práticas adaptativas das fa-
mílias à sociedade capitalista. Outra denominada crítica, que aponta concepções e
práticas que visam promover crítica e mudanças na realidade social. Conclui-se que
o termo trabalho social com famílias é polissêmico e dialético, enquanto conceito,
pois pode denotar tanto práticas adaptativas como críticas.

Palavras-chave
Trabalho social com famílias; CRAS; Psicologia; Política Pública de Assistência Social.

Conceptions of social work with families by psychologists in scientific articles

Abstract
The article reflects on the conceptions of social work with families of psychologists.
The theoretical reference used was dialectical historical materialism. Thirty-four sci-
entific papers on the subject were selected and analyzed. Two conceptions of social
work with families emerged. A traditional one, oriented to the individualizing, mor-
alistic and liberal clinic that adopts adaptive practices of the families to the capitalist
society. Another, called critic, that points out conceptions and practices that aim to
promote social criticism and changes in social reality. We conclude that the term so-
cial work with families is polysemic and dialectical, as a concept, since it can denote
both adaptive and critical practices.

Keywords
Social work with families; CRAS; Psychology; Social welfare public policy.

Artigo recebido: agosto de 2018


Artigo aprovado: outubro de 2018

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ISSN: 2238-9091 (Online)
144 Gustavo Henrique Carretero

A pesquisa teve como referencial teórico o materialismo histórico


dialético como proposto por Marx e autores da Psicologia Social Crítica.
Ela é fruto da tese de doutorado sobre a atuação de psicólogos em Centro
de Referência de Assistência Social (CRAS). Para tanto, foram levantados
artigos científicos em periódicos indexados de Psicologia. Estes versam
sobre a atuação de psicólogos na política pública de Assistência Social.
O presente artigo visa contribuir com o trabalho realizado nos CRAS
pelos trabalhadores do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e
tem como objetivo apresentar as reflexões realizadas sobre a catego-
ria analítica denominada trabalho social com famílias. Esta não foi to-
mada como exclusividade de determinada categoria profissional, mas
de todos os trabalhadores técnicos que o compõe, independente de
formação. Vale destacar, que as orientações técnicas do Ministério do
Desenvolvimento Social (BRASIL, 2012a; 2012b) descrevem a ação dos
profissionais do SUAS como trabalho social.
Em termos de percurso, optamos por: 1) Descrever os procedi-
mentos metodológicos adotados; 2) Trazer a descrição e análise das
concepções de trabalho social com famílias, a partir dos artigos; e 3)
Refletir sobre as implicações práticas e teóricas das concepções en-
contradas, haja vista, que podem apontar tanto à adaptação como
para resistência aos pressupostos da sociedade capitalista.

Procedimentos Metodológicos
O levantamento de artigos ocorreu no sítio da Scientific Eletronic Li-
brary Online, mais conhecido no Brasil por SciELO3. Realizamos a bus-
ca com as palavras-chave: Psicologia e Assistência Social em todo o
conteúdo do artigo. Tivemos como resposta o montante de 115 artigos.
Todavia, foi necessário o estabelecimento de outras formas de filtrar o
conteúdo para excluir material que não tivesse relação com a temática.
Exportamos a citação dos artigos para um arquivo e realizamos
uma seleção manual dos textos. Já de saída, um artigo foi excluído por
estar repetido na base de dados.
O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 143 - 164
Concepções de trabalho social com famílias por parte de psicólogos em artigos... 145

Foram feitas três rodadas de avaliação dos textos. A primeira exclu-

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são de textos anteriores a 2004, pois o SUAS foi formulado nesse ano.
A segunda pela leitura dos títulos e exclusão daqueles que não disses-
sem respeito aos objetivos formulados à pesquisa. Restaram dessas
duas etapas de avaliação 36 artigos, estes seguiram para a próxima
rodada de avaliação. Na terceira rodada de avalição, realizamos a lei-
tura do resumo dos 36 artigos para definirmos se estes se referiam
à temática da pesquisa (atuação de psicólogos nos CRAS). Restaram,
após a leitura e avaliação, 34 artigos que foram analisados.
Após a seleção dos artigos, foi realizada a leitura de todo o material.
Neste processo excertos dos textos que se referiam aos objetivos da
pesquisa foram sendo destacados. Tal procedimento possibilitou uma
maior aproximação da temática.
O próximo passo foi à releitura atenta do material destacado. Tenta-
mos estabelecer eixos temáticos a partir dos quais o conteúdo poderia
ser exposto e em consonância com os elementos destacados na legis-
lação, orientações do Ministério de Desenvolvimento Social e material
do Conselho Federal de Psicologia.
As categorias analíticas formuladas a partir do material foram:
1. Temas associados à política de Assistência Social e sobre a popu-
lação atendida;
2. Sobre os psicólogos;
3. Concepções Teóricas;
4. Sobre a formação;
5. Atividades;
6. Trabalho Social com famílias: cujos elementos estão expostos no
presente artigo. Em tal categoria agrupamos os elementos, concep-
ções, argumentos, discussões e reflexões que dizem respeito a uma
perspectiva de trabalho social com famílias. As reflexões nessa ca-
tegoria foram expostas em dois eixos: concepções adaptacionistas
e concepções crítico-transformadoras;
7. Finalidade.

pg 143 - 164 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


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Concepções de Trabalho Social com famílias


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Como destacamos, o material analisado na tese apontou tanto as


atividades realizadas pelos profissionais de nível superior que traba-
lham nos CRAS, como a perspectiva do que seria o trabalho social a
ser realizado.
Avaliamos, entretanto, que o mais importante (do que elencar ati-
vidades realizadas) é demonstrar os efeitos delas: no sentido da adap-
tação a condições injustas ou o questionamento da realidade vivida.
Dessa maneira, ressaltamos que, para além das atividades, é funda-
mental refletir sobre as concepções e direcionamento político que elas
assumem. Além disso, tanto práticas tradicionais como críticas podem
desempenhar atividades preconizadas em documentos normativos.
Pereira e Guareschi (2017) destacam que as ideias e valores dos pro-
fissionais são decisivos no fazer cotidiano. Assim, o trabalho desenvol-
vido no CRAS pode ser tanto no sentido da tutela e coerção como da
autonomia e emancipação. Isso dependeria mais das concepções e
representações a partir das quais os profissionais condicionam uma
ou outra prática. Os autores ressaltam que as orientações normativas
do CRAS deixam espaço tanto para práticas transformadoras como
assistencialistas. O que diferenciaria as duas concepções são as lei-
turas do profissional e como ele as articula aos seus conhecimentos
para intervenções que contribuam ou não para mudanças sociais mais
profundas. Para além da formação teórica e acadêmica, a postura éti-
co-política acaba sendo decisiva ao trabalho nas políticas públicas.
Assim, as análises feitas nos apontaram duas perspectivas a partir das
quais o trabalho social com famílias pode ser executado nos CRAS.

a) Trabalho Social Tradicional com Famílias


Os artigos ressaltam que o trabalho social tradicional tem uma pers-
pectiva de adaptação das famílias à sociedade (de modo acrítico). Este
se articula a partir de modelos preestabelecidos tanto das atividades
como das famílias e suas formas de organização.
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Concepções de trabalho social com famílias por parte de psicólogos em artigos... 147

Os textos de Ximenes, Paula e Barros (2009); Macedo e Dimens-

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tein (2009; 2012); Yamamoto e Oliveira (2010); Grana e Bastos (2010);
Oliveira et al. (2011; 2014); Sobral e Lima (2013); Macêdo et al. (2015);
Pereira e Guareschi (2017) ressaltam que a transposição das práticas
clínicas (pautadas em modelos convencionais) produzem tais efeitos,
por serem aplicadas fora de contexto ou objetivo. Destacamos que
muitos dos sofrimentos das famílias atendidas são provenientes de si-
tuações concretas de suas vidas e que dizem respeito à forma como a
sociedade se organiza: como a falta de emprego ou subemprego; falta
de acesso à moradia e políticas públicas; proximidade de locais com o
tráfico de drogas; violência policial; “injustiças da justiça”.
As perspectivas das práticas clínicas convencionais tendem a re-
duzir as necessidades sociais da população usuária ao diagnóstico das
queixas ou quadros clínicos. Isso sem problematizar como a questão
social atravessa todas essas demandas. Tais ações tendem a deixar de
lado a responsabilidade estatal, na garantia de direitos, e se centram
apenas nos sujeitos problemas. Elas não levam em consideração a ne-
cessidade de ampliação do olhar aos diversos elementos constituti-
vos das demandas trazidas pelos usuários. Dessa maneira, o psicólogo
trabalha na perspectiva de um profissional de saúde mental – como
defendem Grana e Bastos (2010) – e não como um trabalhador de po-
lítica pública que tem como finalidade a garantia de direitos.
Essa concepção favorece a hipervalorização da técnica (MACEDO;
DIMENSTEIN, 2009) e os atendimentos individuais (OLIVEIRA et al.,
2011). O resultado é uma clínica individualizante, que toma o indiví-
duo como responsável pela produção das suas condições de vida, ou
seja, uma concepção essencialista de homem (YAMAMOTO; OLIVEI-
RA, 2010; OLIVEIRA et al., 2011 e 2014; MACEDO; DIMENSTEIN, 2012;
MACÊDO et al., 2015; PEREIRA; GUARESCHI, 2017).
Oliveira et al. (2014) destacam a inadequação da aplicação de tal
modelo nos CRAS pelas questões epistemológicas que provoca: osci-
lação entre perspectivas teóricas incompatíveis e instrumentalização

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148 Gustavo Henrique Carretero

das teorias. Para tanto, há de se pensar a prática no sentido de atender


demandas da classe trabalhadora: “Enquanto o viés clínico tradicional
define o sujeito em sua individualidade e dinâmicas internas, a atuação
na política social exige um reposicionamento social e político sobre os
usuários desse serviço” (OLIVEIRA et al., 2014, p. 109).
Pereira e Guareschi (2017) ressaltam que a clínica individualizante
produz a culpabilização das famílias pelas próprias situações de vida;
concepções familista e psicologização.
Yamamoto e Oliveira (2010) ressaltam que os psicólogos declaram
não conseguir romper com tal modelo (clínica individualizante) sob a
justificativa da falta de outros psicólogos na rede de serviços, os quais
poderiam atender clinicamente a imensa demanda para essa modali-
dade de atendimento. Dessa forma, a Psicologia se torna sinônimo de
clínica para as famílias e usuários.
O trabalho tradicional com famílias (que tem a clínica individuali-
zante como sua principal perspectiva) gera consequências nefastas às
famílias e usuários atendidos pelo CRAS. Os artigos Macedo e Dimen-
tein (2009) e Macedo et al. (2011) ressaltam que tal operacionalização
do trabalho promove a individualização, moralização, patologização e
terapeutização da questão social. Citamos como exemplo, um excerto
do artigo de Grana e Bastos (2010):

Para mantermos a presença do público no desenvolvimento das


atividades grupais, enfrentamos grande obstáculo. Por um lado,
temos a impressão de que os sujeitos se sentem amedrontados
por estar conversando sobre suas experiências quando, na ver-
dade, a população vizinha já conhece seus problemas. Por ou-
tro lado, quando conversamos sobre suas famílias, as mulheres
falam simultaneamente, mostrando que precisam ser ouvidas e
ajudadas. Avaliamos que, de maneira geral, os sujeitos de baixa
renda se mostram reservados e com dificuldades de se vincular
à equipe multidisciplinar, mas, quando se sentem seguros, de-
positam suas expectativas nos profissionais. Para assegurarmos

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 143 - 164


Concepções de trabalho social com famílias por parte de psicólogos em artigos... 149

a presença dos sujeitos nas atividades desenvolvidas objetivan-

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do auxiliá-los, foi preciso desenvolver a estratégia de atrair a po-
pulação com brindes. Isso nos dá a impressão de que a atenção
e o apoio devem ser fornecidos apenas mediante um pagamen-
to, principalmente quando nos referimos às questões familiares,
educacionais e afetivas. Temos que pagá-los para que aceitem
se tratar. (GRANA; BASTOS, 2010, p. 659).

Imaginemos, pela citação, os efeitos e o tipo de relação estabeleci-


do entre a equipe técnica dos CRAS com as famílias?
As consequências da individualização, moralização, patologização
e terapeutização da questão social são destacadas pelos artigos. Ma-
cedo e Dimentein (2009) ressaltam que as intervenções têm como
finalidade a adaptação/normatização dos usuários e famílias. Isso mo-
dula o comportamento das pessoas, ou seja, atitudes, pensamentos,
modo de sentir e relacionar consigo e com o outro. Destacamos que
isso mantém intacta a ordem da sociedade capitalista, produzindo in-
divíduos que não se questionam sobre as formas de exploração do
trabalho e a administração das massas.
Já outros artigos (MACEDO; DIMENSTEIN, 2009; AFONSO et al.,
2013; BENELLI, 2014; PEREIRA; GUARESCHI, 2017) ressaltam que nes-
se processo há desapropriação do saber do outro sobre si próprio,
na condução dos seus cuidados e projetos futuros. Assim, há um
discurso pronto de como as pessoas e famílias devem se portar e
que não abre espaço ao singular. Tal relação pode se desenvolver de
modo dialógico, entretanto, o psicólogo seria o portador do conhe-
cimento “verdadeiro”.
Isso faz com que haja o estabelecimento de projetos de vida às fa-
mílias que já são estabelecidos pelos psicólogos ou pelos objetivos
das políticas públicas. Tomamos como exemplo os diversos tipos de
arranjos familiares. O ideal da família nuclear burguesa (tradicional,
monogâmica, tendo o pai como provedor e a mulher como cuidadora)
tenta ser implantado na vida dos usuários. Outros possíveis arranjos

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familiares e as famílias numerosas são considerados como desestru-


turados ou problemáticos e devem ser alvo de intervenção:

Embora esse modelo de dinâmicas familiares “alternativas” seja


comum e aceito em grupos populares, essas famílias são vistas
muitas vezes como problemáticas pelos profissionais da assis-
tência social, por não se enquadrarem em um modelo esperado
ou definido como normal, seja por sua dita desorganização, seja
por ser uma família numerosa [...] Por trás de muitos saberes,
inclusive o psicológico, surge a ideia de que a família é incapaz
de ser família, desqualificando seus saberes, retirando os filhos
de seu poder, ou até coibindo a geração de mais filhos, exigin-
do um ordenamento através de intervenções discriminatórias ou
inadequadas que não interferem efetivamente na condição de
vida que os levou a serem alvo da intervenção. [...] Assim, o que
há é um processo amplo de produção de subjetividades a fim de
naturalizar a institucionalização de um modelo hegemônico de
família. (PEREIRA; GUARESCHI, 2017, p. 8-9).

Tais concepções ao terem a individualização, moralização, patologiza-


ção e terapeutização da questão social acabam por redundar em deter-
minadas práticas. Ilustraremos tais elementos com citações dos artigos.
Uma delas é a da tutela (MACEDO; DIMENTEIN, 2009; BENELLI,
2014), na qual o psicólogo que sabe pelo outro que sofre, sabe sobre o
que faz o usuário padecer. O usuário ou família é tido como incapaz de
dizer de si e de sustentar-se adequadamente na vida social:

Ao considerarmos as famílias, que são beneficiárias do programa


bolsa família no tocante ao compromisso que têm de manter a
frequência regular das crianças na escola e o acompanhamento
regular de sua saúde, uma das funções dos técnicos do CRAS era
exatamente acompanhar aquelas, que não estavam cumprindo
tais prerrogativas. É comum procederem com o artifício de ame-
açar as famílias com a perda do benefício caso não mudem seus
comportamentos de negligência ou de falta de responsabilização
sobre a saúde e a educação dos filhos. Dessa forma, as articula-
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ções propostas pelos CRAS com agentes comunitários de saúde

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são no intuito realizar ações de vigilância e fiscalização das famí-
lias, para o cumprimento das contrapartidas ou sobre o enca-
minhamento de denúncias e irregularidades, mais do que para
viabilizar ações de cuidado em saúde e promoção de direitos.
(MACEDO; DIMENSTEIN, 2009, p. 297).

As práticas voltadas ao modelo citado também assumem o caráter


de regulação e vigilância da vida. No sentido de fiscalizarem as casas
das famílias e se cumpriram as determinações exigidas:
Os membros normalmente se vestem com roupas velhas, às ve-
zes, sem ser passadas. Quando lavadas, ficam expostas à poeira
e à fumaça da chaminé da casa. Os dois netos da paciente, que
residem bem próximos a sua casa, normalmente necessitam de
higiene corporal. [...] A família apresenta situação socioeconômica
bastante comprometida, e isso se reflete na precária habitação. A
residência de madeira é pequena e possui frestas nas paredes, o
que se agrava especialmente no inverno, quando a temperatura, às
vezes, é negativa [...] No que se refere à residência da família, esta é
grande, de alvenaria, com quartos separados para casal e crianças.
Não adentramos a casa toda, contudo, visualizamos que a mobília
da sala é composta por móveis bonitos, novos e é bem limpa. Pra-
ticamente todas as vezes que fazíamos visita à família, a casa estava
sendo faxinada, organizada, com muitas roupas lavadas. Todos os
membros da família se vestem adequadamente, têm roupas bas-
tante limpas e bonitas. (GRANA; BASTOS, 2010, p. 654-655).

Ximenes, Paula e Barros (2009) nos ressaltam que tais práticas ten-
dem a ser assistencialistas ou tecnicistas. Na primeira a relação do psi-
cólogo com a comunidade é paternalista; distanciada; não favorece o
processo de análise e reflexão; limita-se à satisfação de necessidades
imediatas e favorece a dependência e submissão da comunidade. Já as
práticas tecnicistas promovem uma relação hierárquica entre o saber
profissional e os erigidos localmente, submetendo a comunidade a in-
teresses alheios aos dos seus membros.
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Além das consequências alienantes de tais concepções e práticas


no CRAS, elas produzem efeitos nos próprios psicólogos. Estes ten-
dem a pensar que tal intervenção “especializada” visa ajudar e melho-
rar a vida das pessoas:
Trabalhar com famílias de baixa renda é, simultaneamente, satis-
fatório e difícil, pois, de um lado, percebemos que podemos con-
tribuir com elas, quando ofertamos nossa compaixão e respeito,
ou seja, quando as escutamos; por outro lado, o trabalho se torna
difícil, pois diante da complexidade das questões que cercam a
miséria, parece que pouco se contribuiu. No trabalho com essa
população, precisamos compreender que a ajudamos a obter um
nível de funcionamento mais sadio dentro de seu contexto, fazen-
do o que está ao nosso alcance. (GRANA; BASTOS, 2010, p. 660).

Concluímos a seção sobre o trabalho tradicional com as famílias


ressaltando os perigos que ele produz. O profissional ao pensar em
ajudar “os pobres”, com uma clínica individualizante, acaba por manter
relações de poder e exploração da mesma forma que acontecem na
sociedade. Assim, os usuários e famílias passam a acreditar que são
responsáveis pelas próprias concepções e condições de vida e passam
a procurar alternativas individuais à solução dos seus “problemas”. Por
outro lado, tal postura precariza o próprio trabalho da política pública,
pois ao invés de garantir direitos (mesmo com todas as suas contradi-
ções), passa a ofertar conforto psicológico em questões que deman-
dam ações concretas e efetivas dos usuários e profissionais. Portanto,
avaliamos que é necessário romper com tal modelo de atuação do
psicólogo. Outros artigos apontam perspectivas que denominamos de
trabalho social crítico com famílias.

b) Trabalho Social Crítico com famílias


Nessa parte do artigo destacaremos formas de operacionalização
do trabalho que promovem mudanças nas vidas dos usuários e fa-
mílias. Teremos muito cuidado com o uso do termo autonomia. Ele
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é utilizado de forma extremamente polissêmica, tanto no campo da

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Psicologia como da política de Assistência Social. Em muitos casos in-
dicam mais processos adaptativos do que emancipatórios (outro ter-
mo polissêmico no campo). Existem situações em que autonomia e
emancipação estão associadas a não necessidade de receber benefí-
cios e/ou serviços da Assistência Social, o que pode indicar adaptação
a situações desumanas de exploração do trabalho (subemprego), de
violência ou de posicionamento político. Adorno (2003) associa tan-
to a autonomia quanto emancipação à possibilidade de a sociedade
produzir sujeitos verdadeiramente livres. Ela implica em também estar
“liberto” da necessidade de reprodução da própria existência por meio
da exploração do trabalho. Assim, quando utilizarmos os termos, au-
tonomia e emancipação, procuraremos trazer qual a concepção dos
autores do artigo.
Daremos preferência ao termo mudanças de condições de vida que
implica tanto em mudanças materiais concretas como subjetivas (o
que não significa pouco em um País tão desigual como o Brasil).
Afonso et al. (2013) nos dão um elemento extremamente importan-
te, para se pensar o trabalho social crítico com famílias:
Nesse sentido, nós entendemos que as ações socioeducativas
não promovem mudanças significativas se permanecerem se-
paradas de estratégias socioeconômicas, culturais e políticas. O
principal desafio colocado pelo modelo do CISAS (Cidadania,
Inclusão Social e Ação Socioeducativa) é precisamente integrar
apoio, inclusão social e participação, por meio de métodos refle-
xivos e ações efetivas, na direção de mudanças que podem fazer
a diferença tanto na promoção da cidadania e na luta contra a
pobreza e exclusão social . (AFONSO et al., 2013, p. 85).

Dessa maneira, não são apenas os elementos subjetivos que de-


vem ser alvo do trabalho dos psicólogos nos CRAS. As condições
materiais também são fundamentais. Avaliamos que mudanças nas
condições materiais de vida também produzem mudanças subjeti-

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vas. Para, além disso, se formos tomar estritamente uma definição


de classe operária ou trabalhadora, a população atendida nos CRAS
nem chegou a tal status, podendo ser considerada no que é definido
como lumpem proletariado.
Feitas algumas considerações iniciais sobre o trabalho social críti-
co com famílias, passaremos a apresentar os elementos encontrados
nos artigos. Didaticamente separamos as contribuições em: pressu-
postos, atividades e efeitos. Sabemos que as atividades em si podem
ser realizadas em uma perspectiva tradicional, como também em
uma que promova as famílias. Dessa maneira, ilustraremos a segun-
da possibilidade.
Vale destacar, que vários artigos (XIMENES; PAULA; BARROS,
2009; MACEDO; DIMENSTEIN, 2009; YAMAMOTO; OLIVEIRA, 2010;
OLIVEIRA et al., 2011 e 2014; SOBRAL; LIMA, 2013; AFONSO et al.
2013; BENELLI; COSTA-ROSA, 2013; BENELLI, 2014; MACÊDO et al.,
2015; PEREIRA; GUARESCHI, 2016; ROMAGNOLI, 2016 e DETTMAN;
ARAGÃO; MARGOTO, 2016) nos trazem contribuições para refletir-
mos sobre o trabalho social crítico com famílias.
Em termos de pressupostos, Yamamoto e Oliveira (2010), Oli-
veira et al. (2011), Senra e Guzzo (2012) e Macêdo et al. (2015) des-
tacam a necessidade da crítica à Psicologia, aos seus referenciais,
bases conceituais, metodológicas e técnicas. Estas não se adequam
a realidade das populações atendidas pelo CRAS. Os autores se re-
ferem a teorias conservadoras da Psicologia e não a teorias críticas.
As últimas, entretanto, possuem um “furo” na questão do fazer, pois
possuem críticas extremamente relevantes, mas deixam a desejar
em termos de práxis e prática. Avaliamos, portanto, que a “revisão”
da Psicologia não deve apenas se voltar às teorias tradicionais, mas
também às críticas. As últimas devem reconhecer suas limitações,
pois possuem alto desenvolvimento teórico em detrimento da prá-
xis. Um dos artigos ressalta o academicismo das discussões volta-
das à atuação em políticas públicas:

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Dentre os resultados chama-nos atenção em como a Psicologia,

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prioritariamente, produz seu conhecimento nos periódicos cien-
tíficos, vinculado de maneira marcadamente ao universo aca-
dêmico. Consideramos necessária a produção do conhecimento
desenvolvido, juntamente, com (as) profissionais, gestores (as) e
usuários (as) dos CRASs, dentre outros serviços para a constru-
ção de outros modos de fazer-saber em psicologia. E em uma
base de dados interdisciplinar, que possam colaborar para uma
maior diversidade de formatos, ideias, produções, estratégias
e movimentos de resistência. Tal passo, talvez, possa ilustrar o
amadurecimento das discussões e a maior apropriação do que
pode ser a atuação do (a) psicólogo (a) na Assistência Social. (FIN
MOTTA; GOMES DE CASTRO; PIZZINATO, 2015, p. 347).

Todavia, não podemos deter nossa crítica às teorias mais progres-


sistas da Psicologia, pois senão deixaremos de lado todo o conheci-
mento e práticas que são produzidos pela Psicologia tradicional em
nome da adaptação e alienação. Vale, então, destacarmos que a crítica
à Psicologia tradicional é fundamental, mas as teorias críticas da Psico-
logia também devem avançar. Yamamoto e Oliveira (2010) ressaltam:

Ximenes, Paula e Barros (2009), ao discutir as possibilidades


de articulação entre a Psicologia Comunitária e a proteção so-
cial básica apontam pontos de tensão nessa relação que dizem
respeito à política em si e, também, à Psicologia. No caso da
Psicologia, destaca-se a práxis ideológica que a profissão pode
assumir ao se coadunar à política que tende a reproduzir ordens
socialmente excludentes. Então, pensar numa atuação que seja
transformadora, que se proponha combater os excessos da de-
sigualdade, que possa produzir fissuras nas iniquidades reforça-
das pela política, resulta, em última análise, numa atuação que
nem é a defendida pela política e nem é aquela sobre a qual se
erigiu a Psicologia como profissão.
De fato, o trabalho na proteção social básica exige dos psicólogos
não apenas uma adequação do trabalho; exige um conhecimento
de aspectos que estão fora do escopo do que a Psicologia delimitou

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em seus campos de saber. A atuação com pessoas em situação de


pobreza exige não a adequação de um conhecimento teórico-téc-
nico, mas, sim, a criação de novos conhecimentos e uma mudança
na postura que marca historicamente a atuação dos psicólogos. A
noção de “sujeito psicológico” não cabe nos desafios do CRAS, nem
tampouco a crença de que a Psicologia só intervém no sofrimen-
to psíquico ou no ajustamento. Pensar numa atuação que conjugue
um posicionamento político mais crítico por parte dos psicólogos,
com novos referenciais teóricos e técnicos que podem ou não partir
dos já consolidados, mas que necessariamente, precisariam ultra-
passá-los, é o grande desafio para a profissão no campo das políti-
cas sociais em geral. (YAMAMOTO; OLIVEIRA, 2010, p. 20-21).

Ximenes, Paula e Barros (2009) destacam que não há a necessida-


de da extensão do serviço psicológico, nos seus moldes tradicionais,
para parcelas socioeconomicamente desfavorecidas da população e
comunidades. As últimas já possuem uma gama de redes interativas
que perpassam – com outros vetores – a complexa construção de
pessoas e grupos que ali vivem.
Assim, quais são os elementos da autocrítica da Psicologia que fa-
voreceriam a construção de saberes e fazeres voltados à realidade das
famílias atendidas pelo CRAS?
A citação de Yamamoto e Oliveira (2010) nos dá a primeira pista ao
enunciar a necessidade de um posicionamento político mais crítico
dos profissionais tanto dos CRAS, como daqueles que elaboram teo-
rias. Tais elementos também são reforçados por Oliveira et al. (2011) e
Macedo et al. (2015).
Outro elemento explorado por Macedo e Dimenstein (2009), Oli-
veira et al. (2014) e Macêdo et al. (2015) é a compreensão e posiciona-
mento ético profissional político por parte dos psicólogos (tanto cien-
tistas como profissionais). Já Macedo et al. (2011) nos destacam que a
psicologia historicamente trabalhou com a patologia e a falta, dessa
forma, há a necessidade da construção de conhecimentos que visem
promover potencialidades tanto das famílias como do território.
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A necessidade do trabalho e de conhecimentos interdisciplinares é

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ressaltado pelo artigo de Macêdo et al. (2015).
Senra e Guzzo (2012) nos trazem um elemento importante sobre
a autocrítica da Psicologia, o qual deve se inserir nos conhecimentos
psicológicos. Este seria a reflexão sobre os efeitos da falta de serviços
básicos que devem ser ofertados (ausência do Estado) nas condições
de vida dos indivíduos, famílias e territórios. Acrescentamos também
os efeitos subjetivos de tal organização. Nesse sentido, Ximenes, Pau-
la e Barros (2009), Afonso et al. (2013), Benelli (2014), Macêdo et al.
(2015), Pereira e Guareschi (2016) e Miron e Guareschi (2017) nos ad-
vertem que a proteção e garantia de direitos, cidadania, devem ser
colocados como objeto de estudo e da profissão em Psicologia:
Através dos marcadores de Compromissos Sociais, Direitos Hu-
manos e Políticas Públicas, buscamos evidenciar a complexida-
de que atravessa as práticas psicológicas no campo das políticas
sociais públicas, na medida em que a garantia de direitos passa
a se configurar como objeto para a profissão. (MIRON; GUARES-
CHI, 2017, p. 349).

Tal perspectiva favoreceria a consolidação de uma “cultura de di-


reitos”, tanto na Psicologia como nas políticas públicas, em detrimento
da “cultura de carência”.
Outro elemento que Macêdo et al. (2015) ressaltam, no que tange
o trabalho da Psicologia nas políticas públicas, é que seja levada em
conta as necessidades das comunidades e não apenas as demandas
da política ou do Estado. Para tanto, Ximenes, Paula e Barros (2009)
e Afonso et al. (2013) destacam a necessidade de uma metodologia
dialógica e participativa. Pereira e Guareschi (2016) acrescentam que
para tal há necessidade de uma ação não moralizante (na questão de
arranjos familiares, famílias numerosas, cuidados, papel da mulher e
etc.) e a formação de vínculos com o território e usuários.
Além dos pressupostos relacionados ao trabalho social com famí-
lias, os artigos também apontam formas como as atividades podem

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ser operacionalizadas nos CRAS. Dessa forma, elas produziriam mu-


danças nas condições de vida dos usuários, famílias e territórios.
Ximenes, Paula e Barros (2009) ressaltam a potencialização de pro-
cessos interacionais alinhavados pelo diálogo e pela colaboração de
uma heterogeneidade de atores sociais:
A fim de fomentar atividades comunitárias e articulá-las com os
intuitos da Proteção Social Básica, especialmente com a identifi-
cação e o desenvolvimento de potencialidades pautadas na cons-
tituição de vínculos sociais, a práxis psicológica apresentada pode
se orientar pelos seguintes eixos: familiarização com o contexto
comunitário, identificação conjunta de necessidades e potencia-
lidades, elaboração de perspectivas de ação e trabalho coletivo
pautado na avaliação processual e na sustentabilidade das ações
(Montero, 2006). (XIMENES; PAULA; BARROS, 2009, p. 694).

Oliveira et al. (2011 e 2014) ressaltam a importância do planejamen-


to das atividades e que as ações sejam sistematizadas, sequenciadas
e contínuas. Para tanto, é fundamental que os municípios criem, na
estrutura de gestão, órgãos de vigilância social. Estes subsidiariam os
CRAS com dados e ao mesmo tempo sistematizariam os dados for-
necidos pelos serviços. Tais elementos favorecem a ação territorial do
CRAS, pois apontam lugares de maiores vulnerabilidades e os tipos
de vulnerabilidades dos territórios. Assim, ações específicas podem
ser realizadas em locais que há alta incidência de violência doméstica,
evasão escolar, com alta concentração de famílias abaixo da linha da
pobreza e etc.. Assim, as ações assumem cunho menos individualizan-
te e processos sociais são percebidos.
O processo de busca ativa (Oliveira et al., 2014) deve ser realizado
pelo psicólogo para mapear vulnerabilidades e potencialidades da rede
de serviços e não apenas do território. Dessa maneira, os profissionais
do CRAS devem conhecer vulnerabilidades e potencialidades do terri-
tório e dos serviços de todas as políticas públicas que compõem a rede.
Um exemplo que podemos citar é o da evasão escolar: altos índices em
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determinadas localidades, podem indicar problemas com a instituição

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escolar e não com as famílias. O mesmo pode ser dito dos serviços das
outras políticas públicas e até mesmo da Assistência Social.
A partir do processo de planejamento e avaliação do território, os
psicólogos podem promover oficinas, grupos, visitas e campanhas
(OLIVEIRA et al. 2011; 2014). Damos ênfase às atividades mais coleti-
vas por romperem com as práticas da clínica individualizante, além de
possibilitarem a percepção das demandas como coletivas. Acrescen-
tamos que tais elementos têm efeitos subjetivos nas famílias e usuá-
rios. Estes podem perceber que as questões que lhe acontecem (e são
percebidas individualmente) possuem um caráter coletivo e manifes-
tam processos sociais. Um dos efeitos desses trabalhos é o desenvol-
vimento de relações de solidariedade e sentimento de comunidade.
Ao mesmo tempo, o psicólogo não deve deixar de lado o acom-
panhamento psicossocial das famílias atendidas (Oliveira et al., 2011).
Esse é definido como acolhimento, monitoramento e seus desdobra-
mentos (orientação, encaminhamentos, cadastro em programas so-
ciais, visitas domiciliares, atendimentos individuais e familiares – não
na perspectiva da clínica). Tal procedimento deve ser realizado com
famílias (e não focado em indivíduos) e deve auxiliá-las na superação
de vulnerabilidades que podem ser tanto de cunho material como re-
lacional. O ideal seria não cindir demandas materiais das relacionais.
Dessa maneira, o psicólogo também trabalharia com os benefícios
eventuais (OLIVEIRA et al. 2014) e encaminhamento para programas
de transferência de renda.
Com a finalidade de tornar todos os procedimentos já descritos
mais efetivos, os artigos de Macedo e Dimenstein (2009; 2012), Oli-
veira et al. (2011) e Romagnoli (2016) destacam como fundamental o
desenvolvimento de ações em rede (envolvendo os serviços da As-
sistência) e intersetorial (outras políticas públicas e atores sociais). Há
grande dificuldade do estabelecimento do trabalho com esse perfil em
todos os serviços. Entretanto, tal modalidade do fazer possibilita cor-

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responsabilizar os serviços nos atendimentos das famílias e também


definir os limites e responsabilidades de cada um. Isso favorece que
o território, em suas potencialidades e vulnerabilidades, seja conce-
bido como um todo e não apenas nos recortes parciais das políticas
públicas. Assim, por exemplo, a questão da violência envolve tanto as
políticas sociais de educação, saúde, assistência e trabalho, o Sistema
de Garantia de Direitos, a segurança pública e os próprios moradores
do território. Não é possível pensar em uma ação efetiva se todos os
atores não se envolverem no processo.

Reflexões acerca das concepções de trabalho social


O termo trabalho social com famílias é marcado (no campo da po-
lítica pública de Assistência Social) por uma polissemia que redunda
em concepções distintas. No Serviço Social, por exemplo, ele pode
evocar toda uma gama de práticas conservadoras que são atreladas
ao clientelismo e assistencialismo. Nesse sentido, há a discussão de
que o termo carrega em si concepções conservadoras que remetem
ao passado de tal ciência e profissão. Por outro lado, na Psicologia,
enquanto ciência e profissão, tal termo não possui história e pode
conter elementos críticos ao demonstrar a inadequação dos mode-
los clínicos, individualizantes e liberais, no que tange a atuação na
política de Assistência Social. Tal discussão merece ser aprofundada
em futuros estudos que considerem não apenas os significados do
termo, mas as diversas significações que pode assumir nas diversas
formações que compõem o SUAS.
Além disso, vale destacar que o próprio termo trabalho social com
famílias é o “eleito” pelo Ministério do Desenvolvimento Social (BRA-
SIL, 2012a; 2012b) para discorrer sobre o fazer no SUAS. As orientações
técnicas sobre o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Famí-
lia (PAIF) utilizam tal nomenclatura. O presente artigo, longe de tentar
esgotar tal temática, visou refletir sobre os possíveis significados que
estão atrelados ao termo. Se por um lado, evoca práticas e concep-
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ções tradicionais, por outro, pode significar o novo e o transformador

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(principalmente no que tange a Psicologia).
Destacamos também que o trabalho social com famílias é descrito
como a prática a ser executada por todas as formações que compõem
o SUAS. Tal elemento é fundamental, pois rompe com a cisão entre
as atividades realizadas pelos profissionais de Serviço Social (volta-
das para questões objetivas e materiais) e a dos psicólogos (voltadas
para as questões subjetivas e psicológicas). Defendemos que tal divi-
são não deve ocorrer na política de Assistência Social, apesar de cada
formação manter suas especificidades.
O ideal no trabalho na proteção social básica seria o da dupla psi-
cossocial, de tal maneira que tanto os profissionais de Serviço Social
como os de Psicologia fossem se apropriando das especificidades da
outra formação, sem perder as distinções da própria. Em termos de
perspectiva histórica seria interessante que tal diálogo entre saberes
e práticas provocasse a possibilidade de (independente da formação)
os profissionais saberem lidar com as demandas provenientes da pro-
teção social básica. Assim, os usuários não teriam que ser atendidos
por determinados profissionais dependendo da demanda trazida nos
atendimentos, cindindo-os entre as esferas objetivas e subjetivas. Tal
divisão aponta mais à limitação das formações do que à realidade do
usuário. Na realidade concreta, ele não se divide em aspectos mate-
riais e subjetivos, mas é uno. Assim, propomos, em termos de pers-
pectiva, que todas as formações que compõem o rol do SUAS saibam
lidar com todas as demandas, não cindindo o usuário e a própria rea-
lidade nos atendimentos.
Concluímos afirmando que mais importante do que a própria no-
menclatura são, em termos de efeitos psicossociais, as concepções
que guiam as práticas no trabalho social com famílias. Estas podem
apontar para sentidos e formações sociais totalmente distintos: da
adaptação, a uma sociedade injusta e desigual ou da autonomia, no
sentido de uma sociedade realmente livre da exploração.

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Referências
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Concepções de trabalho social com famílias por parte de psicólogos em artigos... 163

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pg 143 - 164 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


164 Gustavo Henrique Carretero

Notas
ISSN: 2238-9091 (Online)

1 Pesquisa financiada pelo CNPq.

2 Doutor em Psicologia Social pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Psico-


logia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); psicólogo
concursado em CRAS de um município de grande porte do estado de São Paulo.
Brasil. ORCID: 0000-0002-9633-2581. E-mail: psycogus@hotmail.com

3 Disponível em: http://www.scielo.org/php/index. phd

4 Tradução livre de: “In this sense, we understand that socio-educative actions are
not expected to promote significant changes if they remain separated from socio-
economic, cultural and political strategies. The main challenge put by the CISAS
model is precisely to integrate social support, social inclusion, and participation
through reflexive methods and effective actions, moving towards a change that
could make a difference both in the promotion of citizenship and in the struggle
against poverty and social exclusion.”

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 143 - 164


165

O crescimento da pobreza e os Programas de

ISSN: 2238-9091 (Online)


Renda Mínima voltados às famílias: o caso
italiano
Salyanna de Souza Silva1

Gisele Caroline Ribeiro Anselmo2

Resumo
O presente artigo analisa o processo de transmutação das políticas de proteção so-
cial no contexto de crise do capital em sua fase financeirizada. Trata-se de um estudo
bibliográfico e documental sobre o desenvolvimento do Welfare italiano. Atualmen-
te, nos países europeus, observa-se a generalização de programas de renda mínima,
reafirmando tendências de reforço do familismo e de “monetarização dos direitos
sociais”. Diante do crescimento dos índices de desigualdade e pobreza, a política de
assistência social é efetivada de forma fragmentada e seletiva, características que
são reforçadas por elementos de sua formação social que se constituem obstáculos
para uma política homogênea e universal.

Palavras-chave
Monetarização dos direitos sociais; Pobreza; Programas de Renda Mínima; Famílias
italianas; Formação social italiana.

The growth of poverty and the Italian minimum income program of the family: the
Italian case

Abstract
This article analyzes the process of transformation of social protection policies in
the context of the crisis of capital in its financialized phase. This is a bibliographical
and documentary study on the development of Italian Welfare. Currently, in Europe-
an countries there is a generalization of minimum income programs, reaffirming the
tendencies whether to reinforce familism and the “monetarization of social rights”.
Accordingly, the growth of the indices of inequality and poverty, the welfare policy is
implemented in a fragmented and selective manner, characteristics that are reinfor-
ced by elements of its social formation, thus constitute obstacles to a homogenous
social and welfare policy and universal.

Keywords
Monetarization of social rights; Poverty; Minimum Income Programs; Italian families;
Italian social formation.

pg 165 - 192 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


ISSN: 2238-9091 (Online)
166 Salyanna de Souza Silva e Gisele Caroline Ribeiro Anselmo

Artigo recebido: agosto de 2018


Artigo aprovado: outubro de 2018

Introdução
O presente texto busca analisar o processo de crise do capital e
suas reverberações para o Estado e transmutação das formas e mo-
dalidades como este intervém nas diferentes expressões da questão
social3 no contexto italiano. Procuramos analisar a realidade italiana
com ênfase para as políticas sociais (no caso, as políticas e os progra-
mas socioassistenciais), o crescimento da pobreza, do pauperismo e
do desemprego neste País. Mais especificadamente, a implementação
dos atuais programas de renda mínima, reafirmando tendências seja
de reforço do familismo seja de “monetarização dos direitos sociais”,
em detrimento da efetivação de políticas sociais universais e efetivas.
No contexto de crise estrutural do capital, iniciado na década de
1970, sob a égide do capital financeiro no comando da acumulação,
diversos processos são postos em movimento objetivando a retoma-
da das taxas de lucros e novas alternativas de mercado, principalmen-
te para o capital financeiro.
Procura-se analisar o desenvolvimento dos programas ou medidas
de renda mínima nos países europeus, com destaque para a expe-
riência italiana. Dessa forma, realiza-se um estudo de caso, relacio-
nando as atuais tendências da política de assistência social italiana, a
formação social e histórica nacional, bem como os pressupostos para
acumulação do capital financeiro rentista que vem impondo novas
modalidades de proteção social, a saber tendência mundial de “mo-
netarização dos direitos sociais” (GRANEMANN, 2007).
O estudo sobre o desenvolvimento das políticas sociais em um
determinado País sucinta a análise de elementos particulares de sua
formação social e sua relação com o movimento geral do capital in-

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 165 - 192


O crescimento da pobreza e os Programas de Renda Mínima voltados às famílias... 167

ternacional. Assim, o percurso do welfare na Europa não se apresen-

ISSN: 2238-9091 (Online)


ta de forma monolítica e única, mas diversificada e plural a depender
de cada País.
O primeiro ponto do trabalho visa inicialmente apresentar a relação
entre as políticas sociais e o capitalismo, os diferentes tipos e “mode-
los” de seguridade social e o welfare desenvolvido nos países euro-
peus, particularmente na Europa meridional e na Itália.
No segundo momento busca-se fazer o levantamento da trajetória
das ações e políticas socioassistenciais italianas, relacionando, assim,
alguns elementos da formação social nacional, como a tradicional e
forte influência da Igreja Católica e do fascismo no âmbito dos serviços
e intervenções sociais, como também o forte regionalismo, que tende
a dificultar a efetivação de um sistema homogêneo e único de assis-
tência social. Enquanto na terceira parte apresentamos a dramática
realidade do crescimento dos dados da desigualdade e miséria no País
e a tendência de implementação de medidas de caráter familista, pífias
e frágeis para combater a pobreza entre as famílias italianas.
O artigo em tela é fruto do dialogo e reflexões entre intelectuais e
estudiosas brasileiras e italianas. Para realização do artigo fez-se uso da
pesquisa bibliográfica, a partir do recurso a textos e estudos de auto-
res(as) italianos(as) e brasileiros(as). Em relação à pesquisa documental,
ressaltamos a utilização de documentos oficiais do Istituto Nazionale
di Statistica (Instituto Nacional de Estatísticas – ISTAT) e de matérias e
informes do Ministero del Lavoro e delle Politiche Sociali (Ministério do
Trabalho e das Políticas Sociais). Utilizamos como recorte temporal do
nosso estudo o período de 1997 a 2018, considerando na nossa análise
a introdução da Lei 449/1997, através da política de Renda Mínima de
Inserção (RMI), como uma medida de combate a pobreza e da exclusão
social até o atual programa de transferência de renda, Renda de Inclusão
Social (REI). Parte do presente artigo se encontra na tese de doutorado4
da autora Salyanna de Souza, e outra faz parte do processo de pesquisa
de pós-doutorado da autora Gisele Anselmo5. Parte da bibliografia uti-

pg 165 - 192 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


ISSN: 2238-9091 (Online)
168 Salyanna de Souza Silva e Gisele Caroline Ribeiro Anselmo

lizada está em língua italiana, para melhor compreensão do público em


geral foi-se realizada a tradução livre.

A Seguridade Social e tendências à monetarização dos direitos sociais


no continente europeu no contexto da crise capitalista
A partir do entendimento das políticas sociais6 enquanto mecanis-
mos historicamente datados e geopoliticamente situados inseridas no
contexto do desenvolvimento capitalista, as políticas podem atender
tanto às necessidades do capital quanto do trabalho, a depender das
correlações de forças na luta política entre os interesses das classes
sociais (BEHRING, 2011).
Contudo, historicamente podemos observar que mesmo em con-
textos de efetivação e implementação de medidas estruturadas de
políticas sociais como, por exemplo, nos países que vivenciam o cha-
mado Estado de Bem-Estar Social (Welfare State) não foi possível
suprimir a desigualdade social, o que ratifica a hipótese trazida por
Behring (2011) de incompatibilidade estrutural entre acumulação e
equidade.
Assim, voltando nossa análise para o desenvolvimento dos diferen-
tes sistemas de “Welfare” nos países Europeus, nota-se, na realida-
de, um percurso desigual e diferenciado. Ao corroborar com Behring
e Boschetti (2011) temos que o aparecimento das políticas sociais foi
gradual e diversificado entre os vários países. Essa diferença depen-
dia – e ainda depende – da força e organização do movimento e da
pressão que a classe trabalhadora exercia – e exerce –, além dela estar
sujeita ao grau de desenvolvimento das forças produtivas.
Tem-se chamado “Estado de Bem-Estar Social” ou Welfare State,
como é mais conhecido na Europa, o marco para a generalização das
políticas sociais em todo o mundo que teve início na década 40, no
século XX7. Tal modelo desonerava o capital de boa parte dos ônus da
preservação da força de trabalho com a prestação de serviços públi-
cos (BEHRING; BOSCHETTI, 2011).

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 165 - 192


O crescimento da pobreza e os Programas de Renda Mínima voltados às famílias... 169

O desenvolvimento do sistema de seguridade social em todo o

ISSN: 2238-9091 (Online)


mundo está intrinsecamente relacionado às formas de organização do
trabalho (BOSCHETTI, 2009). Desse modo, o surgimento deste siste-
ma de proteção está ligado à experiência de produção fordista-ke-
ynesiana e às necessidades da grande indústria. Particularmente, na
Europa Ocidental, tal sistema não se desenvolveu de forma única e
indiferenciada.
Geraldo Di Giovanni (1998, p. 10) afirma que não existe sociedade
humana que não tenha desenvolvido algum sistema de proteção so-
cial. Para o autor, as sociedades encontram e desenvolvem, com graus
diferenciados de institucionalização entre os grupos e de acordo com
os diferentes contextos históricos e culturais, a própria dimensão do
poder para proteger parte ou conjunto dos seus membros. Ainda se-
gundo o autor, “esta proteção tem sido exercida por instituições não
especializadas e plurifuncionais (como a família, por exemplo), ou en-
tão, nas sociedades mais complexas, através de sistemas específicos”
que se inscrevem da divisão social do trabalho. Ainda segundo o autor:

[...] os sistemas de proteção social que ganharam maior impor-


tância foram aqueles desenvolvidos nas sociedades capitalistas
europeias, especialmente a partir das últimas três décadas do
século passado e que deram base aos sistemas de seguridade
social verificados em todas as sociedades complexas da atua-
lidade. O traço mais marcante e fundamental destas configura-
ções é o fato de serem implantados e geridos pelo Estado. [...] A
alocação de recursos sociais que se dá através do Estado resul-
ta de complexas relações macropolíticas travadas no plano do
poder público envolvendo, além das principais instituições do
Estado (como governo e parlamento), outras instituições e gru-
pos (tais como classes sociais, partidos políticos, sindicatos). (DI
GIOVANNI, 1998, p. 10-11).

Ivanete Boschetti (2009) faz um resgate histórico das políticas de


seguridade social no mundo. A autora afirma que as primeiras inicia-

pg 165 - 192 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


ISSN: 2238-9091 (Online)
170 Salyanna de Souza Silva e Gisele Caroline Ribeiro Anselmo

tivas de benefícios previdenciários surgiram no século XX na Alema-


nha, durante o Governo do Chanceler Otto Von Bismarck, instituindo
o modelo bismarckiano, o acesso aos direitos é condicionado à con-
tribuição por meio do trabalho, esse modelo era movido pela Lógica
do Seguro. Enquanto na Inglaterra, durante a Segunda Guerra Mundial,
em 1942, é formulado o Plano Beveridge, o sistema beveridgiano traz
como forte característica a lógica do acesso universal ao direito, por
essa característica Boschetti (2009) afirma-se que tal sistema é por
uma lógica social.
Para Ferrera (2012) o sistema beveridgiano ou modelo universal se
diferencia pela cobertura a todos os seus cidadãos, independentemente
da posição que ocupa no posto de trabalho, o que pode contribuir para
a estruturação de uma rede de solidariedade e redistribuição universal.
Tal sistema prevaleceu nos países nórdicos ou escandinavos (com des-
taque para a Suécia, Noruega, Finlândia, Islândia e Dinamarca).
Enquanto a lógica bismarckiana de seguros sociais foi predominan-
te nos sistemas de proteção social dos países do Centro/Sul da Europa
Ocidental, a saber: França, Áustria, Alemanha, Portugal, Itália, Grécia,
Países Baixos e Espanha. Segundo Ferrera (2012) tal modelo pode ser
também intitulado de modelo ocupacional, pois os serviços de prote-
ção social, como também as regras para o respectivo acesso, possuem
como critério principal as categoriais profissionais ou ocupacionais.
Mais recentemente, ao considerar a existência e acesso por parte
da população às políticas e medidas voltadas para o combate à po-
breza nos países europeus, Bronzini e Gobetti (2012) elencam quatro
diferentes grupos, a saber: aqueles que implementam medidas uni-
versalistas destinadas a todos aqueles que demonstrem não possuir
meios suficientes para sobreviver, como, por exemplo, a Finlândia e a
Holanda. Já países como a França e a Espanha implementaram Medi-
das de base com diversas ações integrantes sendo aquelas baseadas
em uma rede de intervenção destinada a grupos específicos, capazes
de beneficiar a maior parte da população que necessita urgentemente

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 165 - 192


O crescimento da pobreza e os Programas de Renda Mínima voltados às famílias... 171

do benefício. Alguns países como a Polônia e a Letônia implementa-

ISSN: 2238-9091 (Online)


ram Medidas mínimas e discricionárias com esquemas limitados seja
no acesso ou na cobertura dos benefícios. E, por ultimo, países como
a Itália e a Grécia que implementaram Medidas limitadas ou parciais
destinadas a algumas categorias sociais e não cobrem aqueles em
graves situações econômicas.
Assim, afirmam Anselmo e Silva (2014), diferentemente dos demais
países da Europa Ocidental, o Welfare desenvolvido no Sul da Euro-
pa ou Europa meridional, teve um caráter polarizado e dualístico, pois
algumas poucas categorias eram beneficiadas e protegidas, enquan-
to outras ficaram sem acesso aos benefícios e direitos sociais. O que
contribuiu para o surgimento de “um welfare desigual e tendencial-
mente frágil” (ANSELMO; SILVA, 2014).
São diversos elementos que, associados, contribuíram para um
atraso em termos de welfare nos países da Europa Meridional. Ilaria
Madama (2012) sinaliza, principalmente, a existência de um mercado
de trabalho periférico e de instituições sociais fracas e um atraso tem-
poral na revisão das políticas socioassistenciais.
Ferrera (2012) afirma que o welfare meridional teve como base
uma estrutura de mercado de trabalho atravessado por profundas
divisões setoriais e mesmo territoriais, em uma economia submersa,
com um modelo de família caracterizado por relações de solidarieda-
de muito forte entre seus membros. Tais elementos são encontrados,
sobretudo na Itália, que, até o final dos anos 1980, não possuía uma
rede de segurança de base contra as situações de pobreza. Assim,
em um contexto histórico de difícil acesso às políticas de proteção
e falta de um mercado de trabalho, a figura da família transforma-se
no principal amortizador social.
Esping-Andersen (1995, p. 347-348) realizou uma interessante aná-
lise sobre o surgimento do familismo nas políticas sociais da Europa
continental. O autor evidenciou que o Welfare State tem nas suas ra-
ízes estruturais o princípio de subsidiariedade de matriz cristã-demo-

pg 165 - 192 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


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172 Salyanna de Souza Silva e Gisele Caroline Ribeiro Anselmo

crática que institucionalizou o familismo, no sentido em que reforçou


o modelo em que o homem tem o papel de sustentar economicamen-
te a família, enquanto à mulher é destinado o papel do cuidado. Este
modelo foi utilizado, principalmente nos países do Sul da Europa, com
transferências monetárias generosas e uma oferta quase inexistente
de serviços sociais.
Ao refletir sobre a construção e a reforma do sistema de proteção
social italiano, Simionatto (2003, p. 146) afirma que este assumiu ca-
racterísticas de um modelo residual de Estado Social, com ênfase na
família, o denominando Welfare Family. Nele, buscou tornar a família,
no plano prático, o suporte fundante das novas estratégias de bem-
-estar, gestora privada da diminuição dos recursos do Estado, à dis-
posição da coletividade (SIMIONATTO, 2003, p. 156).
Desta maneira:
A família passa a ser considerada como o ‘novo sujeito comu-
nitário’, com papel central na reorganização do Welfare State.
‘Sujeito ativo de assistência’, é chamada a participar da ‘promo-
ção da cidadania’ e da definição de um ‘novo sentido de comu-
nidade’, tornando-se muitas vezes o espaço de resolução das
contradições sociais e dos dramas da existência humana. Desde
1991, em toda a legislação que trata do Estado social, observa-se
a centralidade conferida às famílias e às comunidades locais, pi-
lares do welfare italiano. (SIMIONATTO, 2003, p. 154-155).

Destarte, no contexto do desenvolvimento das medidas de proteção


social de combate à pobreza no âmbito da seguridade social, observa-se
a nível mundial uma tendência de proliferação de programas e/ou medi-
das de transferência de renda diretamente para setores mais pauperiza-
dos da população, com destaque para os programas de renda mínima na
Europa e os programas de transferência de renda na América Latina.
Vale ressaltar que, em linhas gerais, tais programas e medidas,
com algumas poucas exceções, reforçam uma tendência familista ao
atender às demandas das famílias no âmbito das políticas de prote-
O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 165 - 192
O crescimento da pobreza e os Programas de Renda Mínima voltados às famílias... 173

ção social. Para Mioto (2010) o familismo não pode ser confundido

ISSN: 2238-9091 (Online)


com pró-família, mas uma perspectiva de maior responsabilização
da família pelo bem-estar de seus membros, incentivado pelas po-
líticas públicas, seja pelo seu subdesenvolvimento em serviços de
apoio à família, por benefícios pouco generosos ou pelo princípio da
subsidiaridade do Estado, recaindo sobre a família a responsabilida-
de pelos serviços de proteção social.
Cabe chamar a atenção para a relação conservadora entre o Esta-
do e a família que perpassa a história da Assistência Social no Brasil
e também no contexto italiano. Mioto e Campos (2003, p. 184) afir-
mam que a relação entre a família e o Estado “foi marcada pela ins-
tauração do Estado como fonte de controle e elaboração de normas
para a família e pela construção de uma contraditória parceria no
decorrer do tempo para garantir a reprodução social”. Um dos pilares
de construção dos processos de assistência às famílias foi a categori-
zação entre aquelas que são capazes ou incapazes de desempenhar,
via mercado, trabalho e organização interna às funções que lhes são
atribuídas pela sociedade.
Desta forma, realizam-se ações de concepção estereotipada de fa-
mília e de seu papel, com prevalência de propostas residuais. Dentro
deste contexto, os programas sociais se voltam para a população mais
vulnerável, situando a família como o principal foco de intervenção.
A crise econômica, as mudanças no “mundo do trabalho” e a opção
por um Estado minimalista para enfrentar as expressões da questão
social desencadeou uma reconfiguração no âmbito social e familiar.
Segundo Mioto (2006, p. 182-183) ocorreu uma diminuição da “capa-
cidade protetora” da família vinculada ao empobrecimento acelerado
da população, aliado às configurações renovadas da família tornan-
do-a mais vulnerável ao contexto social. Assim, a família se encontra
numa posição de sujeito ameaçado, sobrecarregada, fragilizada e que
se enfraquece ainda mais quando lhe é atribuída tarefas maiores que
sua capacidade de realizá-las.

pg 165 - 192 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


ISSN: 2238-9091 (Online)
174 Salyanna de Souza Silva e Gisele Caroline Ribeiro Anselmo

A acumulação capitalista e sua crescente necessidade de lucros


passam a exigir um conjunto de “contrarreformas” do Estado e nas
políticas sociais, a fim de transformar as políticas e direitos sociais em
mais um espaço de supervalorização do capital, em sua fase financeiri-
zada. Granemann (2007) evidencia um movimento de reconfiguração
das políticas sociais e alteração de sua forma de intervenção, assim
as próprias políticas sociais passam a ser atravessadas pela lógica das
finanças. Se por um lado, as políticas sociais no modelo do Welfare
State não mais se constituem para o capital como mediações para a
elevação da extração de mais valia, por outro a classe trabalhadora,
até o presente momento, parece demostrar dificuldade de reorgani-
zação de suas lutas no sentido de combater as inflexões impostas pelo
capital em sua fase financeirizada.
Tem-se, outrossim, a tendência a nível mundial de extensão da
“lógica da finança para a totalidade da vida social”, são direitos e be-
nefícios assistenciais e previdenciários “monetarizados”. Esse novo
formato das políticas sociais implica em crescente financeirização no
cotidiano dos/das trabalhadores/as (GRANEMANN, 2007).
Além de beneficiar o capital bancário – pois são os bancos e não os
clássicos equipamentos sociais que intermedeiam o acesso às “bol-
sas” – tal processo implica em uma redução progressiva da proteção
social, pois a “bolsa” é tendencialmente de caráter minimalista e indi-
vidualizada, direcionada para os mais pobres, o que, por outro lado,
reforça o papel protetivo das famílias para com seus membros na ga-
rantia de uma proteção social.

A trajetória da política socioassistencial na Itália: aspectos históricos


e políticos da formação social
Para entender as diferentes manifestações da “questão social” em uma
determinada realidade, torna-se necessária a compreensão tanto da di-
nâmica contraditória do capitalismo mundializado quanto do desenvolvi-
mento e a formação socio-histórica particular da realidade em questão.

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 165 - 192


O crescimento da pobreza e os Programas de Renda Mínima voltados às famílias... 175

Particularmente na Itália observa-se que, historicamente, o País

ISSN: 2238-9091 (Online)


possui uma forte tradição de implementação de intervenções dedica-
das a categorias sociais específicas. Para Ferrera (2012), em relação à
cobertura (ou não) dos/das assegurados(as) pelo welfare italiano, são
evidenciados três grupos principais:
• O grupo dos segurados, composto dos trabalhadores depen-
dentes das administrações públicas e das grandes empresas. A
sua proteção é muito elevada no caso de aposentadorias e se
aproxima dos padrões europeus.
• O grupo dos semissegurados, composto por uma variada com-
binação de trabalhadores dependentes (pequenas empresas,
setores tradicionais, como construção civil ou agricultura), tra-
balhadores autônomos (como pequenos comerciantes ou arte-
sãos) e trabalhadores atípicos. Em relação ao risco da velhice a
proteção típica desse grupo são as pensões mínimas.
• O grupo dos não segurados, composto por trabalhadores que
ficam relegados na econômica submersa, sem conseguir con-
quistar um apoio estável e duradouro no mercado de trabalho
regular. O risco de velhice é de qualquer modo protegido para
estes trabalhadores graças à existência das aposentadorias ou
benefícios sociais (FERRERA, 2012, p. 49, tradução nossa).
Dessa forma, tem-se ao mesmo tempo a existência de um pequeno
grupo de trabalhadores cobertos por uma previdência social conside-
rada como “um dos sistemas mais amplos da Europa” (SILVA, 2016) e,
por outro lado uma grande maioria da população descoberta. A partir
de tal evidência pode-se afirmar que, em geral, o sistema de seguri-
dade social italiano se assemelha àquele brasileiro, pois pode ser tam-
bém caracterizado como um “sistema híbrido”, mesclando tanto tra-
ços da lógica do seguro como da lógica social, como afirma Boschetti
(2009) para o caso da seguridade social brasileiro.
Somado aos fatores gerais do desenvolvimento do welfare nos pa-
íses da Europa meridional, sinalizados no ponto anterior, a Itália apre-

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senta também alguns elementos particulares de sua formação social


que contribuíram diretamente e indiretamente para um quadro de
welfare considerado atrasado e frágil.
Foram assim diversos elementos de fundamentação social, cultural
e política que, no movimento contraditório da história italiana, relacio-
naram-se. Madama (2012) sinaliza um importante elemento histórico
presente especificamente na formação e que, até o presente momen-
to, influencia com grande peso na efetivação e implementação das
políticas sociais: sua tradição de intervenções dedicadas a específi-
cas categoriais sociais promovidas por iniciativas do período fascista,
por exemplo, os institutos voltados para maternidade e infância, como
também por setores religiosos, com ênfase nas organizações históricas
da Igreja Católica. Tais elementos contribuíram para um retrocesso em
termos de organização de uma seguridade social universal e ampla.
A primeira intervenção normativa no âmbito da assistência social foi
datada de 1862, por meio das Congregazioni di Carità, embora se pos-
sa afirmar que esses entes eram abertamente de caráter assistencialista
e caritativo, tais organismos representavam os primeiros organismos
de assistência pública e geral para a população que necessitava.
Mesmo com aprovação da primeira lei direcionada à assistência so-
cial pública italiana, a chamada Lei Crispi (Lei n. 6.972, de 17 de julho de
1890), as históricas instituições religiosas (Opere Pie) foram incorpo-
radas por meio do reconhecimento dos Institutos Públicos de Benefi-
cência (IPAB), estes, somente em 1988, foram extintos8.
Dessa forma, historicamente a Igreja Católica na Itália traz uma gran-
de tradição no âmbito da oferta de serviços e ações. Madama (2012)
afirma que a inserção e grande influência das doutrinas caritativas da
Igreja Católica junto ao Estado italiano, caracterizada principalmente
pelo partido Democracia Cristiana (DC)9, contribuiu para um atraso na
reforma da legislação no âmbito da assistência social. Para as autoras
deste artigo, este fator também foi determinante para a implementa-
ção do caráter familista de proteção social.

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Em termos de políticas sociais na Itália, o período de consolidação

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do regime fascista, que compreende os anos de 1922 a 1945, foi ca-
racterizado por importantes intervenções, sobretudo no campo previ-
denciário. No campo da assistência social também houve significativas
mudanças. Segundo Madama (2012) foram instituídos numerosos en-
tes assistenciais de caráter nacionais dedicados a categoriais específi-
cas, como por exemplo, para cegos e órfãos.
Com a queda do regime fascista, o fim da Segunda Guerra Mundial
e o advento da Republica Italiana, em 1948 foi promulgada a Constitui-
ção nacional, que se torna um novo ponto de referência para as políti-
cas sociais. No artigo 38 afirma-se a responsabilidade do Estado para
o bem-estar dos cidadãos. A Carta Constitucional estabelece também
que a assistência social será destinada a todos os cidadãos desprovi-
dos de meios para sua própria sobrevivência.
A Constituição italiana inicialmente estabeleceu que as 20 regiões
tivessem um papel central no sistema socioassistencial nacional, po-
rém tal papel se restringia à direção e orientação, não incluindo a ges-
tão direta das intervenções que foi atribuída aos entes locais.
Tal fato expressa outro importante elemento da particularidade da
formação social italiana e que influencia na implementação das polí-
ticas sociais: a sua tradição regionalista. Até 1870 a Itália era um terri-
tório dividido em vários reinos, inclusive com interferências de outros
países. Somente com o processo de reunificação (Risorgimento), que
durou de 1815 a 1870, a Itália tornou-se um País único. Contudo, tanto
elementos culturais e sociais como econômicos e políticos regiona-
listas perduram até hoje, o que dificulta a construção de um efetivo
sistema homogêneo e único nacional no âmbito das políticas sociais,
como se observa no caso brasileiro.
Assim, Madama (2012) evidencia que o período considerado de ex-
pansão do welfare italiano (anos 80 a 90 do século XX) foi marcado
pela ausência de parâmetros institucionais únicos, restando para cada
região e município estruturar sua rede de serviços.

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No caso italiano, diversos(as) estudiosos(as) (BERTANI, 2015;


MADAMA, 2012; FERRERA, 1996, 2012; LIEBFRIED, 1991; BONOLI,
1997; entre outros) de políticas sociais falam do fortalecimento do
modelo de Welfare familista e solidário onde a família e as redes
parentais funcionam como o principal amortizador social, enquan-
to o Estado tem interferência em modo residual, privilegiando os
programas de transferência de renda em detrimento da oferta de
serviços sociais universais. Este fenômeno pode se transformar em
uma armadilha que:

[...] prende os jovens no próprio seio e desse modo transforma-


-se em um obstáculo à mobilidade, atrasa e endurece os pro-
cessos de reprodução social, freando por outro lado a forma-
ção de uma demanda política a favor de mudanças. (MADAMA,
2012, p. 250, tradução nossa).

Michele Bertani (2015, p. 96) afirma que o welfare italiano é ainda


baseado em uma lógica de intervenção de subsidiariedade passiva,
que se sustenta na implícita e pouco reconhecida disponibilidade
das famílias, especialmente, às mulheres, da responsabilidade das
necessidades de cuidado dos seus componentes, principalmente
crianças e pessoas idosas. Aliado a isto, existe uma pluralidade de
modelos de políticas de proteção social que se diferenciam a nível
regional, colocando em evidência as diferenças entre o Norte e o
Sul do País, em relação aos recursos e de serviços oferecidos. O
autor salienta ainda que a responsabilidade com o cuidado familiar
das mulheres é o principal fator que a limita a entrar no mercado
de trabalho, e isto fica ainda mais evidente com a falta de políticas
sociais que poderiam conciliar e apoiar esta mulher à genitorialida-
de. Estas características específicas do modelo de welfare e da re-
alidade da sociedade italiana são sintetizadas pelo autor como um
suposto modelo de familismo all’italiana. O autor então faz uma
importante pergunta:

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O crescimento da pobreza e os Programas de Renda Mínima voltados às famílias... 179

Este familismo all’italiana é uma consequência de uma esco-

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lha obrigada porque não existem válidas alternativas ao “fazer
tudo em casa” (vale dizer que o familismo é uma consequência
de como é estruturado o welfare system, que garante somente
formas residuais de apoio) ou é em qualquer modo desejado e
aceito pelas famílias (porque considerado culturalmente o mo-
delo melhor para a gestão das carências e necessidades fami-
liares)? (BERTANI, 2015, p. 97).

Somente nos anos 2000, durante um governo de base centro-


-esquerda, houve a aprovação da Lei quadro para a realização
do Sistema Integrado de Intervenções e Serviços Sociais, Lei de n.
328/2000. Através de tal instrumento busca-se construir a nível na-
cional um quadro orgânico e homogêneo no âmbito dos serviços,
ações e intervenções socioassistenciais e sanitárias, superando a
forte tendência de ações voltadas somente a algumas categorias
sociais. A referida lei afirma que visa reconhecer e dar suporte ao
papel peculiar desenvolvido pelas famílias na formação e na cura
das pessoas, na promoção do bem-estar e na perseguição da co-
esão social, além de suportar e valorizar as múltiplas tarefas que as
famílias desempenham no desenvolvimento da vida cotidiana. Esta
lei traz importantes avanços nas conquistas de direitos das famílias
italianas. Contudo a Reforma Constitucional de 2001, um ano após a
aprovação da Lei quadro, veio no sentido de desmontar importantes
conquistas, reforçando o histórico regionalismo local, e realizando
uma retomada da responsabilização da família nos programas so-
ciais e seu uso instrumental no âmbito do cuidado e proteção fami-
liar, caracterizando-se como uma “contrarreforma” que contribuiu
para limitar o poder da Lei 328/2000. Ficou, assim, a cargo das regi-
ões e municípios ofertar, financiar e implementar os serviços socio-
assistenciais e a família, principalmente a mulher, permaneceu como
o objeto principal de apoio e cuidado familiar.

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Características atuais das medidas de combate à pobreza entre as


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famílias italianas
Os anos 2000 sinalizam para o período de grandes mudanças a ní-
vel político governamental e internacional. No governo italiano, entre
os anos de 2001 a 2006 o Primeiro-Ministro foi o centro-direitista Sil-
vio Berlusconi. Madama (2012) afirma que tal governo, além de cortar
gastos para as políticas sociais, ainda procurou reforçar uma visão da
família como principal amortizador social.
Posteriormente, entre aos anos de 2006 a 2008 o País passou por
governos caracterizados de centro-esquerda e centro-direita, cain-
do em uma crise e recessão econômica, que se observava por toda a
Europa. Em tal contexto, adotou-se, de 2011 a 2013, um governo ca-
racterizado como “técnico”, ou seja, não possuía uma ligação com ne-
nhum partido político, que teve como Primeiro-Ministro Mario Monti10.
Posteriormente, nos anos de 2013 a 2018, a Itália teve um governo de
centro-esquerda, porém com uma grande pluralidade parlamentar.
A partir de 2018, a configuração política italiana é muito preocupante.
Nas últimas eleições, uma parte significativa dos eleitores não votaram
(27% dos que possuem direito) 11. Após uma grave crise política, o partido
populista de centro, o Movimento Cinque Stelle, teve a maior parte dos
votos dos eleitores (32,6%), mas não o bastante para assumir sozinho o
parlamento e se aliou ao partido de extrema-direita Lega Nord, que ob-
teve 17,3% dos votos. O novo governo, de um lado, assumiu a respon-
sabilidade de implementar um programa de garantia de renda mínima
condicionado para uma importante parcela da população pauperizada
pela atual crise financeira que abateu o País desde 2008; do outro lado,
assumiu uma política nacionalista com o fechamento das fronteiras para
os imigrantes e para os refugiados, alimentando um discurso xenófobo
e infringindo leis internacionais de Direitos Humanos. Tentando aliar de-
mandas eleitorais extremamente opostas, a manutenção do atual go-
verno está em perene instabilidade. Tenta-se, neste contexto, realizar
reformas nas políticas sociais, trabalhistas e da previdência social.

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Tal contexto de crise política, econômica e adoção de medidas de aus-

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teridade, somando a ausência de tradição na implementação de uma po-
lítica de assistência social inclusiva, homogênea e forte (conforme sinali-
zamos acima) reverbera no crescimento dos incides nacionais da pobreza
e do “risco de pobreza” entre as famílias italianas nos últimos anos.
Relatórios e dados do Istituto Nazionale di Statistica (ISTAT) reve-
lam que mesmo estando entre a população de maior riqueza real entre
os/as europeus/europeias, as/os italianas(os) começaram a sentir nos
últimos anos as consequências da crise, por meio da redução da ri-
queza familiar, o aumento da desigualdade econômica, do número de
pessoas abaixo da linha da pobreza, e a privação material. Enquanto
na média europeia a relação entre os 20% mais ricos e os 20% mais
pobres era de 5, na Itália esse valor chegava a 5,5 (2014). Entre os anos
de 2008 a 2012 o índice Gini subiu de 60,7% à 64%. (Dados: BES 2014
- Il benessereequo e sostenibile in Italia – ISTAT).
O relatório BES de 2017 (ISTAT) demonstra que o Gini chegou a um
valor de 33,1 (sendo sob a renda em 2014 32,4) e a relação entre a renda
dos 20% mais ricos e os 20% mais pobres subiu de 5,8 para 6,3 (2017).
Sobre a desigualdade de renda e o risco de pobreza, dados de
2017 do ISTAT, evidenciam que o País ocupa respectivamente o 21º e
o 19º posto entre os demais países europeus. A quota da população
sob o risco de pobreza passou de 19,9% (renda de 2014) para 20,6%
(renda de 2015), valor que corresponde a 3,3 pontos percentuais su-
perior a media europeia12.
De 2007 a 2012 o número de italianos(as) em situação de pobreza
absoluta passou de 2,4 a 4,8 milhões, ou seja, a manifestação da po-
breza se duplicou em apenas 5 anos (ISTAT, 2014). Quase metade da
população pobre italiana (2,347 milhões) vive nas regiões do Sul do
País, o que evidencia também o fenômeno histórico da desigualdade
territorial entre as regiões italianas (ISTAT, 2015).
Em 2016, 7,9% da população italiana encontrava-se em situação de
pobreza absoluta. Quase um quarto das famílias com três ou mais fi-

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lhos menores encontravam-se na linha de pobreza absoluta (Relatório


BES 2017 – ISTAT). Para o mesmo ano, estima-se que seja 1 milhão e
619 mil famílias em condições de pobreza absoluta, perfazendo um to-
tal de 4 milhões e 742 mil indivíduos, correspondente a 7,9% da popu-
lação (ISTAT, 2017). Assim, a Itália é o País que, em valores absolutos,
conta o maior número de pessoas em situação de pobreza13.

Os atuais Programas de Renda Mínima para o combate à pobreza das


famílias italianas
A nível nacional, as atuais intervenções continuam a privilegiar prin-
cipalmente algumas categoriais como os/as aposentados(as) e núcle-
os familiares. Destacam-se o incremento das pensões e aposentado-
rias mínimas, bônus, benefícios fiscais e a social card14.
No final dos anos 1990, iniciam a ser formuladas políticas de trans-
ferência de renda de combate a pobreza. A Renda Mínima de Inser-
ção (RMI) foi introduzida com a Lei 449/1997 como uma medida de
combate a pobreza e da exclusão social através de um suporte eco-
nômico e social às pessoas expostas ao risco de marginalidade social
e com incapacidade de manter a si próprio e aos filhos por razão de
causas psíquicas, físicas ou sociais. Tal procedimento foi confirmado
pela citada Lei 328/2000, mas não foi instituído um modelo único de
implementação de tal política. Deste modo, cada ente local (Região,
Província ou Comuna) realizou ao seu modo os critérios de acesso e
de permanência a tal política. Podendo ser mais ou menos restritiva,
com condicionantes para a permanência e com valores de benefícios
decididamente muito variáveis.
A Comissão de Investigação sobre a Exclusão Social (CIES)15 pu-
blicou em 2010 uma pesquisa comparativa sobre as experiências de
RMI realizada em sete diferentes localidades italianas. Desta pesqui-
sa emergiu que, com a ausência de uma norma operacional a nível
nacional, ocorreu uma ampla heterogeneidade de experiências. A
maioria dos programas tinham tido uma duração entre 1 a 6 anos,

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sendo interrompidas, principalmente, por falta de fundos públicos.

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Cada projeto analisado teve a projetação, gestão e financiamentos
próprios e que levou a um budget muito diferente em cada experiên-
cia. O que se percebeu foi uma profunda diferenciação de propostas.
Nas áreas em que a situação de pobreza atinge um maior número de
pessoas os critérios para o acesso aos programas, o valor dos bene-
fícios e os critérios condicionantes de permanência eram muito mais
restritos. O contrário aconteceu nas localidades em que o número de
famílias pobres era menor.
Na Província de Bolzano e no Vale de Aosta 100% das pessoas que
se encontravam dentro dos critérios de acesso ao programa receberam
o beneficio. E foram as únicas localidades que, em 2010, os programas
permaneciam ativos. O acesso ao programa era muito mais abrangente
nestas duas experiências e era aberto também a pessoas estrangeiras.
Nas regiões mais pobres, ao contrário, existiu um número expres-
sivo de pessoas que estavam dentro dos critérios de acesso, mas
que não puderam usufruir dos programas. O caso mais impressio-
nante é o da Comuna de Nápoles em que somente 12% das famílias
que estavam dentro dos critérios de acesso recebiam tal benefício.
Aqui, são consideradas pobres as famílias com uma renda inferior a
375 euros. Um valor, que Magda Bolzoni e Granaglia (2010) revelam
ser uma verdadeira lacuna entre as duas regiões.
O valor do benefício também era muito heterogêneo. Enquanto nas
localidades ao Sul do País o benefício standard era de valor fixo de 350
euros independente do número de pessoas no núcleo familiar e inde-
pendente da situação de pobreza, nas localidades ao Norte do País,
o subsídio era calculado pela equipe de Serviço Social caso a caso e
variava dependendo da situação de pobreza e do número de com-
ponentes na família. Outro fator importante é que nas regiões mais
pobres, os beneficiários não poderiam receber mais nenhum tipo de
beneficio governamental. Ao contrário do que acontecia nas regiões
no Norte, onde era possível o acúmulo de mais benefícios sociais.

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O Serviço Social local também tinha a tarefa de definir os critérios


de inserção e em quase todas as experiências era este a realizar a ava-
liação preliminar e o acompanhamento com um plano individualizado
para cada núcleo familiar em que todas as pessoas adultas do núcleo
familiar se comprometem – muitas vezes assinando até mesmo um
contrato – em procurar emprego e de se inserir no mundo do traba-
lho. Importante colocar em evidência, que no geral as famílias que não
se comprometiam a tal Plano Individualizado eram automaticamente
excluídas dos benefícios.
Apenas no final de 2017 foi aprovada pelo governo de centro-es-
querda, Partido Democrático, uma proposta nacional de Renda de In-
clusão Social (REI). Tal medida foi implementada em janeiro de 2018 e
beneficiou, de janeiro a setembro do mesmo ano, o número de 379 mil
núcleos familiares, perfazendo um total de cerca de mais de 1 milhão de
pessoas16. Tal renda pode chegar a um valor de 187,50 euros por pessoa,
não ultrapassando o total de 539,82 euros por núcleo familiar de 6 ou
mais pessoas. Sendo dividido em 12 parcelas no ano, com duração de 18
meses, podendo ser renovado por mais um ano. Podem solicitar aces-
so ao REI famílias com o Indicador da Situação Econômica Equivalente
(ISEE)17 não superiores a 6 mil euros anuais; Indicador da Situação de
Renda Equivalente (ISRE)18 não superiores a 3 mil euros; valor patrimo-
nial imobiliário não superior a 20 mil euros; patrimônio mobiliar (conta
corrente, poupança, títulos, etc.) não superior a 10 mil euros (reduzidos
a 8 mil euros para casais e a 6 mil euros para indivíduos solteiros).
Além disso, nenhum componente familiar deve: receber benefícios
de seguro social para o emprego (NASpI) ou outros amortizadores so-
ciais de apoio ao rendimento em caso de desemprego involuntário;
não possui veículos registrados pela primeira vez nos 24 meses ante-
riores ao pedido (exclusos veículos para pessoas com deficiência); não
possuir navios e barcos para lazer.
Além do critério da renda, o seu acesso é condicionado ao acom-
panhamento da família pelo Serviço Social das Comunas, mediante a

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elaboração de um Projeto Personalizado de Ativação Social e Traba-

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lhadora, em que a família beneficiária se compromete a realizar uma
busca ativa por emprego e inscrever-se nas agências de emprego go-
vernamentais e privadas. Em realidade, o REI substitui duas anteriores
medidas de enfrentamento à pobreza, o Sustenho para a Inclusão Ati-
va e o Bolsa Desocupação (ASDI)19.
Após as eleições de 2018, o atual governo de coalizão do Movimen-
to Cinque Stelle / Lega Nord, em junho através da Legge di Bilancio
(Lei de Balanço), modificou os critérios de acesso e os valores do REI.
Foram suprimidas as seguintes condicionalidades de acesso ao pro-
grama pelos núcleos familiares: presença de crianças/adolescentes,
de pessoa com deficiência, de mulher grávida, de pessoa desempre-
gada com mais de 55 anos.
Tal recente medida pode ser caracterizada como uma política de
monetarização dos direitos sociais, sendo extremamente minimalista,
pois, além de beneficiar praticamente apenas um quarto da população
estatisticamente considerada sob pobreza absoluta, seu benefício de
valor nacional não reconhece as demandas e características regionais
e pode ser considerado de valor irrisório, inferior à própria linha da
pobreza no País20. Um fator importante foi uso eleitoral de tal política
que foi implementada no final do governo PD, em vista às eleições que
aconteceram em março de 2018.
Nas promessas eleitorais os programas de Renda Mínima foram
fortemente utilizados pelos principais partidos na última campanha
eleitoral. Tanto os partidos considerados de centro (Movimento Cin-
que Stelle) como de centro-direita, Força Itália, liderado pelo então
ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi, propuseram programas de
transferência de renda aos eleitores. No sentido de se contrapor à
proposta do REI, sob a qual mencionamos acima, implementada pelo
partido de centro-esquerda, defenderam uma proposta de Renda de
Cidadania. Todas essas propostas (REI e Renda de Cidadania) são,
em sua essência, muito parecidas, mudando somente o critério de

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acesso e assumindo uma pequena variação no valor do benefício. O


governo de coalizão que assumiu o poder em junho de 2018, decla-
rou a responsabilidade de implementar, a partir de janeiro de 2019,
o programa Reddito di Cittadinanza (Renda de Cidadania), prevendo
beneficiar mais de 7 milhões as pessoas, com um valor per capita de
780 euros por mês.
Podemos visualizar, desta forma, o uso eleitoreiro e assistencialista
dos programas de renda mínima para as famílias italianas. São progra-
mas que parecem ser universais, mas são, na realidade, focalizados e
seletivos nas famílias extremamente pobres. São atrelados a diver-
sos condicionantes para que a família possa se manter beneficiária,
utilizando o critério principal da renda. Responsabiliza a família pelo
desemprego e as intimam a realizar uma busca ativa por emprego,
submetendo-se a qualquer tipo de trabalho que for oferecido, inde-
pendente da sua formação profissional. Além disso, exoneram impos-
tos das empresas com importantes incentivos fiscais, beneficiando-as
em troca de um trabalho para os beneficiários, não deixando claro o
tipo de contrato que os beneficiários terão com estas empresas, po-
dendo abrir mais um leque de tipos de trabalhos precários.

Observações conclusivas
A partir do estudo da realidade europeia e, particularmente, aque-
la italiana, observa-se cada vez mais a constante tendência de “mo-
netarização dos direitos sociais” em detrimento da efetivação de
políticas sociais universais e efetivas. Particularmente, na Europa, é
possível evidenciar que as medidas de transferência de renda são
tomadas como principais mecanismos para responder às situações
de extrema pobreza. Tais intervenções se desenvolveram diferente-
mente em cada País, em acordo aos modelos de welfare nacional e
o movimento geral do capital financeirizado.
Ao elemento da crise do capital, transmutação do Estado Social por
meio da adoção de medidas neoliberais, soma-se, também, a elemen-
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tos da formação social local. Dessa forma, tanto a forte influência da

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Igreja Católica no Estado e na sociedade como um todo, quanto expe-
riências do passado com o período fascista, incidiram na constituição
de uma política de assistência social e sistema de seguridade social
fragmentário e dual, que reforça uma tendência familista, somando-se
a tais elementos uma cultura política e social regionalista.
A partir do estudo do caso italiano podemos observar a nível
mundial o movimento de agudização das expressões da “questão
social” e tendência à transmutação do padrão de proteção para a
generalização de medidas de transferência irrisória de renda para os
setores mais pobres da população, em detrimento da efetivação de
um padrão universalista e inclusivo. São, assim, medidas que tendem
a beneficiar mais o capital bancário, por meio da “bolsização” dos
direitos sociais, do que combater as situações de pobreza.
Destarte, na Itália, a crise do capital, sob a hegemonia de sua fase
financeira, fez reforçar as históricas debilidades na realização de
uma política socioassistencial homogênea, universal e única para
todo o território.

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Notas

1 Doutora em Serviço Social pela Università di Roma Tre (Itália), professora do De-
partamento de Serviço Social da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Brasil. ORCID: 0000-0002-3329-4856. E-mail: salyannass@gmail.com. Organi-
zação de fomento à pesquisa que apoia o trabalho: Bolsa de Doutorado Pleno no
Exterior, fornecida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES), BEX: 0549/2012-6; Programa PNPD/CAPES.

2 Doutora em Serviço Social pela Università di Roma Tre (Itália), pesquisadora


PNPD na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Brasil. ORCID:
0000-0003-4130-1152. E-mail: gribeiroanselmo@gmail.com. Organização de
fomento à pesquisa que apoia o trabalho: Bolsa de Doutorado Pleno no Exterior,
fornecida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), BEX: 13742/13-2; Programa PNPD/CAPES.

3 A expressão “questão social” começou a ser utilizada na terceira década do sé-


culo XIX, para designar as manifestações políticas da classe trabalhadora (NET-
TO, 2001). Para o autor a “questão social” é estritamente relacionada ao modo
de produção capitalista, pois é somente nesse modo de produção que ocorre a
proliferação do pauperismo em um polo e a enorme concentração de riquezas,
no outro polo, através do processo de produção. Para entender as diferentes
manifestações da “questão social” em uma determinada realidade, torna-se
necessária a compreensão seja da dinâmica contraditória do capitalismo mun-
dializado, seja do desenvolvimento e a formação socio-histórica particular da
realidade em questão.

pg 165 - 192 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


ISSN: 2238-9091 (Online)
190 Salyanna de Souza Silva e Gisele Caroline Ribeiro Anselmo

4 A tese intitulada “Lo sguardo delle donne sulle politiche de contrasto alla povertà:
un’analisi comparativa tra Brasil e Italia” foi defendida na Scuola Dottorale in Pe-
dagogia e Servizio Sociale pela Università degli Studi Roma Tre (Roma/Itália), em
2016.

5 Vale ressaltar que para a realização do referido Doutorado contou-se com uma
Bolsa de Doutorado Pleno no Exterior, fornecida pela Coordenação de Aperfeiço-
amento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) para as duas autoras. Entre os perí-
odos de 2012 a 2016 (BEX: 0549/2012-6) para Salyanna de Sousa, entre os perío-
dos de 2014 a 2016 (BEX: 13742/13-2) para Gisele Anselmo. Além, de atualmente,
a autora Gisele Anselmo ser bolsista do Programa Nacional de Pós-Doutorado
(PNPD/CAPES) com o Projeto de Pesquisa intitulado: “Os Programas de transfe-
rência de renda no Brasil e na Itália: seus anseios, suas tentativas, seus detratores
e seus opositores”, realizado no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e
Direitos Sociais (PPGSSDS/FASSO) na Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte (UERN).

6 Cabe ressaltar, que Behring e Boschetti (2011, p. 47) afirmam que não se pode
indicar com precisão o surgimento das primeiras iniciativas reconhecidas como
políticas sociais. Ela é comumente relacionada aos movimentos de massa social-
-democratas e ao estabelecimento dos Estados europeus no final do século XIX,
com sua generalização situada na passagem do capitalismo concorrencial para o
monopolista, principalmente, após a Segunda Guerra Mundial.

7 Behring e Boschetti (2011) chamam nossa atenção para a diferença no uso dos
termos “Welfare State” e políticas sociais. Destarte, o termo “Welfare State” re-
fere-se a um período histórico, econômico e político marcado pela superação da
óptica securitária e a incorporação de um conceito ampliado de seguridade so-
cial, pautado no combate à pobreza, que se expressou principalmente no Plano
Beveridge publicado em 1943 na Inglaterra.

8 Atualmente diversas instituições ligadas à Igreja Católica são conveniadas às Co-


munas locais, elas oferecem principalmente serviços básicos à população em
situação de rua ou com dificuldade econômica, destacam-se principalmente a
Caritas e a Comunidade Sant’Egídio.

9 A Democracia Cristiana (DC) foi um partido declaradamente de base católica e


cristã, fundado em 1942 e extinto em 1994.

10 Em seu curto período, tal governo implantou diversas medidas austeras de ata-
que aos direitos sociais e trabalhistas. Em 2012 entra em vigor a Lei “Monti-Forne-
ro”, caracterizada como uma contrarreforma na Previdência Social italiana. Sobre
as características da Política da previdência social italiana sugerimos a leitura do
artigo de Silva (2016).

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 165 - 192


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11 Para uma compreensão estatística mais exaustiva das últimas eleições eleitorais,

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acessar os seguintes dados: http://www.ilsole24ore.com/speciali/2018/elezioni/
risultati/politiche/static/italia.shtml

12 Entre os países europeus com uma média de risco de pobreza superiores à mé-
dia italiana encontram-se a Grécia, Estônia, Letônia, Lituânia, Espalha, România e
Bulgária, enquanto os Países Baixos demonstram um aumento do risco de pobre-
za similares aquele da Itália (Relatório BES 2017 – ISTAT).

13 Fonte disponível em: <http://www.rainews.it/dl/rainews/articoli/Poverta-Euros-


tat-Italia-ha-piu-poveri-in-Europa-Istat-Unc-unione-Nazionale-Consumatori-
-9a8f0035-d5c5-4853-b2d6-ee10d1e420c1.html>. Acesso em: 20 dez. 2017.

14 A social card foi instituída em 2008 e funciona como um cartão de credito que é
recarregado bimensalmente, utilizado para compra somente de gêneros alimen-
tares e pagamentos de faturas de serviços públicos. Atualmente o valor da social
card é em torno a 40 euros mensais.

15 É um órgão do Ministério do Trabalho e Políticas Sociais instituída pelo artigo 27


da Lei 328/2000.

16 Dados do Osservatorio statistico sul reddito di inclusione, outubro de 2018.

17 O ISEE é um indicador utilizado como parâmetro para o acesso a diversas políti-


cas e benefícios sociais de diferentes áreas. Ao considerar seja a renda auferida
pelo trabalho que o patrimônio (imóveis, carros, etc.) de todos os membros da
família, o ISEE estabelece uma média da situação econômica da família (MADA-
MA, 2012).

18 O ISRE é um indicador formulado pelo Ministério do Trabalho para calcular a ren-


da do núcleo familiar, em acordo com os componentes.

19 Disponível no site do Ministério do Trabalho e das Políticas Sociais, a saber: http://


www.lavoro.gov.it/temi-e-priorita/poverta-ed-esclusione-sociale/focus-on/
Reddito-di-Inclusione-ReI/Pagine/default.aspx.

20 Na Itália a linha da pobreza absoluta e relativa é calculada anualmente e conside-


ra seja aspectos da família, como número de membros como o sexo da pessoa
responsável, que aspectos do território onde a família habita. Nesse sentido, o
Report Istat (Povertà in Italia – Anno 2016) demonstra que em 2016 a linha da po-
breza para um adulto entre 18 a 59 anos que vive sozinho na região metropolitana
do Norte do País era de 817,56 euros mensais, e chega a 554,03 euros caso essa
mesma pessoa morasse no Sul do País.

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193

Benefício de Prestação Continuada - Idoso:

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perfil e composição familiar dos assistidos
pelo CRAS-Tapanã, em Belém-Pará
Cilene Sebastiana da Conceição Braga1
Cimara de Lima Farias2
Marisa Fernanda Pimenta3

Resumo
Este artigo tem como objetivo analisar o perfil e as configurações familiares dos
idosos que recebem Benefício de Prestação Continuada (BPC) e são assistidos pelo
Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) Tapanã no município de Belém,
Pará, Brasil. A metodologia utilizada está relacionada a pesquisa quantitativa e qua-
litativa, e foi organizada por meio de pesquisas bibliográficas e análise documental
da instituição. Foram analisados 100 perfis dos idosos assistidos pelo CRAS-Tapanã
que receberam o BPC no ano de 2017. Nos resultados constatamos um número ele-
vado de idosos provedores/chefes de famílias que sustentam e/ou complementam
o orçamento familiar.

Palavras-chave
Idoso; Benefício de Prestação Continuada (BPC); CRAS.

Benefit of Continuing Provision for old age: Profile and family composition of those
assisted by CRAS-Tapanã, in Belém-Pará.

Abstract
The purpose of this study is to analyze the profile and the family settings of elderly
people who receive Continuous Benefit Benefit (BPC) and are assisted by the Refer-
ence and Social Assistance Center (CRAS) in the municipality of Belém, Pará, Brazil.
The methodology used is related to quantitative and qualitative research, and was
organized through bibliographical research and documentary analysis of the institu-
tion. We analyzed 100 profiles of elderly people assisted by CRAS-Tapanã and re-
ceived the BPC in 2017. In the results we found a large number of elderly providers
and heads of families who support or support their families.

Keywords
Elderly; Continuous Benefit Benefit (BPC); CRAS.

Artigo recebido: agosto de 2018


Artigo aprovado: outubro de 2018

pg 193 - 216 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


194 Cilene Sebastiana da C. Braga, Cimara de L. F.arias e Marisa Fernanda Pimenta

Introdução
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O envelhecimento da população mundial constitui um fenômeno


comprovado que requer atenção, bem como ações comprometidas
da esfera pública para possibilitar uma velhice com melhores condi-
ções de vida.
Cabe destacar que até 2050, o número de pessoas com 60 anos ou
mais chegará a 2 bilhões, mais que o dobro dos 900 milhões de indi-
víduos nessa faixa etária registrados em 2015. Os idosos representarão
um quinto da população do planeta e a população idosa será maior
que a população de 0 a 14 anos, segundo dados da Organização das
Nações Unidas (ONU), em 2017.
Reconhecendo que vivemos um momento histórico desconfortável,
marcado por desigualdades, desemprego e alto índice de violência,
essas relações repercutem na ausência de atendimento das necessi-
dades básicas da população idosa, o que tem graves consequências
para a sociedade. A expressão máxima desse processo ocorre de for-
ma crescente no cenário das grandes cidades do mundo.
A Constituição Federal de 1988 foi a primeira a inserir o idoso nos
pressupostos da proteção, da justiça social e dos direitos humanos. A
mesma estabelece que o idoso é um sujeito de direitos. O Estatuto do
Idoso (Lei no 10.741/2003) no capítulo I do art. 3 destaca que compete
à família, à sociedade e ao Estado o dever de amparar o idoso, assegu-
rar sua participação na comunidade, defender sua dignidade de bem-
-estar e garantir seu direito à vida. Esse conjunto de direitos afirmados
legalmente pelo Estado burguês é marcado por um conjunto de con-
tradições na medida em que a maioria dos idosos está muitas vezes
fora desse sistema de segurança já que os trabalhadores brasileiros,
em sua grande parte, vivem na informalidade e têm seus direitos vio-
lados. A ausência do atendimento de suas necessidades por parte do
Estado e da família, que também se encontra ausente do acesso de
serviços de qualidade, coloca em risco a possibilidade de um proces-
so de envelhecimento digno.

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 193 - 216


Benefício de Prestação Continuada - Idoso:Perfil e composição familiar dos ... 195

Nestes termos, a pobreza da pessoa idosa é uma realidade que está

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presente em nossa sociedade, baseada em desigualdades e necessi-
dades geradas pelas transformações capitalistas e que atingem, prin-
cipalmente, os idosos que não conseguem suprir suas necessidades
básicas e precisam do Benefício de Prestação Continuada (BPC) para
poder garantir um mínimo de condições materiais para sobrevivência.
De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS,
2011), o BPC faz parte da política pública de assistência social, con-
forme estabelece o artigo 203 da Constituição Federal de 1988, e é
regulamentado pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), Lei no
8.742, de 07.12.1993, e pelas leis no 12.435, de 06.07.2011, e no 12.470,
de 31.08.2011, que alteram os dispositivos da LOAS, e pelos decretos
no 6.214/2007 e no 6.564/2008.
A finalidade do benefício é atender aos que realmente dele neces-
sitem, ou seja, pessoas que não têm capacidade para se manterem
sozinhas, ou pelo mercado, que são: os idosos e as pessoas com de-
ficiência. Dessa forma, o programa apresenta critérios para a inserção
e não atinge a todos/as cidadãos, mas tem como base a focalização.
O BPC se constitui, em alguns casos, como a única renda dos ido-
sos que não contribuíram com a previdência social e que não conse-
guem mais trabalhar. A motivação pela escolha do tema surgiu a partir
de observações e estudos acerca de uma pesquisa desenvolvida pelo
grupo de estudos da Universidade Federal do Pará (UFPA) sobre as
principais demandas apresentadas ao assistente social na área da As-
sistência Social. Os dados foram coletados durante o desenvolvimen-
to do estágio supervisionado no Centro de Referência de Assistência
Social (CRAS)-Tapanã, no município de Belém, em 2017. Observou-se
por meio dessa vivência que um número elevado de idosos, que são
usuários do BPC, procurava o CRAS e o Serviço Social com a função
de buscar formas de resolver questões relacionadas a conflitos de or-
dem econômica e familiar. Entre as demandas apresentadas obser-
vamos: inserção em abrigo, apoio alimentar, entre outros. Essas situ-

pg 193 - 216 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


ISSN: 2238-9091 (Online)
196 Cilene Sebastiana da C. Braga, Cimara de L. F.arias e Marisa Fernanda Pimenta

ações despertaram interesse em analisar o perfil desses idosos, bem


como sua configuração familiar. O propósito desse estudo é saber se
o benefício é suficiente para atender as necessidades dos mesmos e
verificar o impacto no orçamento familiar.
A pesquisa foi realizada em três momentos. No primeiro foi re-
alizada pesquisa bibliográfica; no segundo pesquisa de campo,
onde foram coletadas informações contidas nas fichas do Serviço
de Proteção e Atendimento Integral a Família (PAIF) e no banco de
dados do MDS onde mantem informações sobre os idosos. A base
de dados foi o CRAS-Tapanã onde consta um total de 221 idosos
que recebem o BPC e são cadastrados no referido CRAS, dos quais
utilizamos uma amostra de 54,8%, o que equivale a 100 (cem) per-
fis. O recorte analítico dos sujeitos pesquisados foi o dos que se
definiram como chefes de família ao fazer o cadastro no CRAS. As
análises foram realizadas a partir das variáveis: idade, sexo, estado
civil, escolaridade, tipo de família, condições de moradia; configu-
rações familiares e dependentes dos idosos.
O trabalho foi estruturado em quatro subitens: no primeiro apre-
sentamos a introdução; no segundo as problematizações sobre a so-
ciedade capitalista e o envelhecimento na contemporaneidade; no
terceiro as características do CRAS-Tapanã e os dados do perfil e con-
figurações familiares; e por último, as considerações finais.

Sociedade capitalista e o envelhecimento na contemporaneidade


Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS, 2015), a popula-
ção com idade igual ou superior a sessenta anos está crescendo mais
que qualquer outra faixa etária. Abordar o tema envelhecimento com-
preende analisar aspectos relacionados à cultura, à política e à econo-
mia, o que nos remete a valores, preconceitos e sistemas padroniza-
dos incluídos na história das sociedades.
A cultura da lógica capitalista colaborou para a construção desfa-
vorável da imagem do idoso com relação ao processo de envelheci-
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mento. A desqualificação do envelhecer é fortalecida em função da

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cultura do modo de produção capitalista que prioriza o acentuado
acúmulo de riquezas.
As contradições capitalistas e as transformações na esfera do tra-
balho causaram aos trabalhadores idosos uma situação de desigual-
dade social, conforme discorre Teixeira (2008).
O capital transforma o tempo de vida do trabalhador em tempo
de trabalho para fins de valorização do capital em detrimento
das qualidades e necessidades humanas do produtor, principal-
mente para os que envelhecem na periferia do sistema, em que
o tempo de trabalho se estende ao tempo de envelhecer, ou ao
tempo de consumo manipulado de bens, serviços e mercado-
rias. (TEIXEIRA, 2008, p.15-16).

Na sociedade moderna capitalista se valoriza o ser humano pela


produtividade, valor esse que é nato do capitalismo. O capitalismo faz
com que o idoso passe a ser excluído quando não consegue mais se
manter ativo no mercado, valorizando o resultado do que se produz.
O processo de envelhecimento na sociedade gera vários questio-
namentos, entre eles os principais encontram-se na possibilidade de o
indivíduo poder se manter atuante junto à família e no trabalho. Todos
os trabalhadores são obrigados a trabalhar para suprir suas necessida-
des básicas e de sua família, mas, na sociedade capitalista em que vi-
vemos o homem é visto apenas como força de trabalho, como agente
produtivo e a sua importância é dada a partir de sua produção. Teixeira
(2008, p. 41) mostra que o trabalhador idoso ao deixar de ser útil para
o capitalismo, torna-se supérfluo para o capital, o que é desumano.
As mudanças ocasionadas nos aspectos físicos, sociais e econômi-
cos do idoso afetam diretamente a vida desta pessoa, pois sua capa-
cidade produtiva é o que determina o lugar que ele se coloca nessa
sociedade, que é caracterizada pelo poder e a qual visa apenas o lucro.
De acordo com Telles (2009, p. 25), o trabalhador idoso sofre
preconceito disseminado pelo sistema capitalista, o qual alega que
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ISSN: 2238-9091 (Online)
198 Cilene Sebastiana da C. Braga, Cimara de L. F.arias e Marisa Fernanda Pimenta

como aquele não tem mais como produzir também não contribui-
rá para acumular riquezas, ao contrário dos jovens que são ativos.
O não reconhecimento de habilidades, experiências e vivências do
trabalhador idoso é marcada por preconceitos e discriminação, não
tendo mais oportunidade de trabalho na sociedade capitalista o im-
pulsiona ao trabalho informal4 em diversos segmentos, seja em sua
casa ou na rua, para assim poder garantir sua subsistência, bem
como, de seus familiares.
Atualmente podemos perceber que nas novas configurações fami-
liares temos idosos independentes que ainda auxiliam filhos e netos,
principalmente no cuidado com os netos enquanto os filhos trabalham
ou quando os mesmos se separam, bem como parentes que coabitem
com os mesmos, mudando assim o conceito de família nuclear e for-
mando novas configurações.
Osório e Valle (2002) afirmam que a família pode se apresentar sob
três formatos básicos: a nuclear (conjugal) constituída pelo tripé pai-
-mãe-filhos, a “extensa” (consanguínea) pode ser composta também
por outros membros que tenham quaisquer laços de parentesco e a
“abrangente” que inclui os não parentes que coabitem. A estrutura fa-
miliar varia, portanto, conforme a latitude, as distintas épocas históri-
cas e os fatores socio-políticos, econômicos ou religiosos prevalecen-
tes num dado momento do desenvolvimento de determinada cultura.
Definir família não é fácil devido às modificações nas suas con-
figurações que ocorreram e que ainda ocorrem e são decorrentes
das transformações socioeconômicas vividas na atualidade e moti-
vadas pelo processo de globalização neoliberal que tem influencia-
do na dinâmica e estabilidade familiar, as quais causam alterações
significativas no padrão tradicional de organização familiar. Atual-
mente vemos que a família patriarcal vem deixando de ser modelo
em detrimento de outras composições familiares, fazendo-se ne-
cessário trazer um conceito mais ampliado de família. Mioto (2000)
define família como:

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Benefício de Prestação Continuada - Idoso:Perfil e composição familiar dos ... 199

[...] núcleo de pessoas que convivem em um determinado espa-

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ço durante um lapso de tempo, mais ou menos longo e que se
unidas (ou não) por laços consanguíneos. É marcado por relação
de gênero e, ou de gerações, e está dialeticamente articulada na
estrutura social na qual está inserida. (MIOTO, 2000, p. 217).

O processo de envelhecimento gera vários questionamentos, entre


eles os principais encontram-se na possibilidade de o indivíduo poder
se manter atuante junto à família, no ambiente de trabalho, na comu-
nidade, em que vive e adaptando-se às mudanças familiares.
A ideia que se tem do idoso, é que o mesmo é um ser vulnerável e
dependente, em decorrência da perda de funções físicas e cognitivas.
É esta visão de limitação do idoso que causa uma imagem preconce-
bida de vulnerabilidade, mas que precisa ser analisada, pois há uma
parcela de idosos que vivem dependentes de sua família, mas, existem
muitas moradias atualmente nas quais o idoso é o provedor da família.
Podemos observar o idoso sendo responsável ou contribuindo fi-
nanceiramente com a família em três situações distintas: em primeiro
lugar, o que ainda está no mercado de trabalho e divide sua renda com
familiares; no segundo, o idoso que recebe aposentadoria; e o terceiro
o idoso beneficiário do BPC que divide com familiares ou mantém o lar
com o referido benefício.
Para Areosa (2004, p. 3), uma nova configuração familiar vem se
tornando comum, o idoso é a principal fonte de renda de uma família
nuclear composta por pai, mãe e filhos e agora também com a presen-
ça do neto que é sustentado pelo avô ou pela avó.
Os idosos que residem sozinhos, seja por opção própria ou por ine-
xistência de filhos, são responsáveis por seus domicílios. É importante
que se evidencie o papel do idoso como figura central das famílias e o
contexto social familiar em que se encontra inserido.
Entendemos que na nova configuração familiar, o fato de o ido-
so continuar sendo o provedor da família pode estar ligado a vários
obstáculos, dentre os quais o desemprego, a dificuldade do jovem
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200 Cilene Sebastiana da C. Braga, Cimara de L. F.arias e Marisa Fernanda Pimenta

conseguir emprego, ausência de políticas de inclusão, entre outros.


Entretanto, esta situação não traz nenhum benefício para o idoso, ao
contrário, o idoso no momento em que deveria usufruir de uma vida
mais tranquila, ainda tem essa responsabilidade em sua velhice, a de
ter que manter seus familiares que dependem de sua renda.
Enfim, os fatores da pobreza de acordo com as necessidades básicas
não são apenas as necessidades fisiológicas imprescindíveis à sobre-
vivência, mas sim, englobam aspectos imateriais que proporcionam a
realização de bem-estar, saúde, paz, equilíbrio, bem como o acesso a
serviços públicos de qualidade, como educação, saneamento básico,
saúde, garantia dos direitos legais e segurança. Considerando que, ao
ter essas necessidades supridas, obtém uma vida com mais qualidade.
Com as mudanças ocorridas na estrutura demográfica brasileira em
decorrência de vários fatores, em parte, pelo aumento da expectati-
va de vida da população idosa, o que atribui a novos papéis sociais e
também, pelas mudanças políticas, econômicas e estruturais, é possí-
vel verificar a visibilidade de políticas públicas para a população idosa.
Assim sendo, nosso estudo é sobre o BPC, que é considerado um
programa de grande avanço social apesar de suas contradições e as
novas configurações familiares, o que veremos no próximo item.

Características gerais do Centro de Referência de Assistência Social


(CRAS)-Tapanã, no município de Belém-PA
O CRAS-Tapanã faz parte da estrutura da Fundação Papa João XXIII
(FUNPAPA) que desenvolve atividades de amparo e proteção de po-
pulações que vivem em situação de vulnerabilidade social.
De acordo com a política de assistência social, o CRAS se originou a
partir do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), a partir da prote-
ção social, subdividida em proteção social básica e especial. Segundo
o MDS (2011), o CRAS tem por objetivo prevenir a ocorrência de situ-
ações de vulnerabilidades e riscos sociais nos territórios. Os serviços
são de caráter preventivo, protetivo e proativo, e podem ser ofertados

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 193 - 216


Benefício de Prestação Continuada - Idoso:Perfil e composição familiar dos ... 201

diretamente no CRAS, desde que disponha de espaço físico e equipe

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compatível. Quando desenvolvidos no território do CRAS, por outra
unidade pública ou entidade de assistência social privada sem fins lu-
crativos, devem ser obrigatoriamente a ele referenciados. Têm como
área de abrangência os bairros Tapanã, Parque Verde, Sideral, Pratinha
e Coqueiro, todos localizados no município de Belém-Pará.
O CRAS-Tapanã é uma unidade socioassistencial da rede de Pro-
teção Básica do município de Belém-Pará que tem por objetivo de-
senvolver programas de proteção básica, dentre os quais, o cadastro
único do governo federal que identifica e caracteriza famílias de bai-
xa renda para serem inseridas em projetos como o Bolsa Família e o
Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV). O PAIF
atende famílias beneficiadas pelo Programa Bolsa Família (PBF) e BPC.
De acordo com o manual de orientação técnica para o CRAS (MDS,
2011), os serviços e as ações do PAIF a serem ofertados pela equipe de
profissionais que atuam no CRAS, estão relacionados em um primeiro
momento ao acolhimento das famílias para que posteriormente sejam
desenvolvidas ações que vão de encontro à defesa dos seus direitos,
bem como encaminhá-las para a rede de proteção social, dependen-
do da situação. Esse acolhimento a princípio é registrado em uma ficha
(instrumental) a qual contém dados socioeconômicos dos usuários.
O profissional que atua na assistência social desenvolve suas ati-
vidades em uma equipe multidisciplinar composta por um grupo de
profissionais de diferentes Especialidades que trabalham com um ob-
jetivo comum. No caso do CRAS, o grupo é composto por pedagogo,
arte educador, psicólogo, sociólogo e assistente social.
As ações realizadas no CRAS têm foco central na família e o assistente
social desempenha função de atendimento, orientação, encaminhamen-
tos e inscrições em programas e projetos de acordo com o perfil de cada
família. Apesar do trabalho do assistente social não fazer parte desse estu-
do, ele é destacado nessa abordagem em função das indagações referen-
tes a esse objeto surgirem a partir da vivência do estágio supervisionado.

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Análise do perfil e da configuração familiar dos idosos beneficiários


ISSN: 2238-9091 (Online)

do BPC
Apresentaremos de maneira detalhada, nesse item as caracterís-
ticas do perfil dos idosos pesquisados, reiterando que foram levan-
tados dados de 100 (cem) usuários atendidos no referido CRAS. Para
melhor apresentação analisaremos as tabelas e os gráficos ao longo
das discussões. Os dados serão analisados e divididos da seguinte
forma: idade, sexo, escolaridade, estado civil, moradia, tipos de fa-
mília e pessoas que dependem da renda do idoso. A variável sexo
será relacionada de forma comparativa com as demais variáveis.
Com relação a idade e sexo, constatamos que, dos 100 (cem)
perfis analisados, têm-se 68 mulheres e 32 homens, com idades
variadas entre 65 (sessenta e cinco) e 94 (noventa e quatro) anos.
Os idosos, em sua maioria, possuem entre 70 e 74 anos (41%), e os
demais 65-69 anos (11%), 75-79 anos (30%) e os restantes, 80-94.
Cabe destacar que existe um percentual maior de mulheres em to-
das as faixas etárias.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE,
2010), a população idosa feminina é cada vez maior e a tendência é
aumentar cada vez mais, atualmente corresponde a 55%, fazendo
referência a feminização da velhice, ou seja, quanto mais a popu-
lação envelhece, mais feminina ela se torna. As mulheres predomi-
nam entre a população idosa, dada a menor mortalidade, realidade
de muitos países.
É importante ressaltar que foram encontrados 17% de idosos a
partir de 80 anos, e acima dos 90 apenas uma mulher, ou seja, ido-
sos em idade avançada, mas que ainda se mantêm autônomos. Este
é um dado muito relevante, levando-se em conta de que é uma
amostra de chefes de família, ou seja, ainda após os 80 anos en-
contram-se pessoas responsáveis pela renda do seu núcleo fami-
liar. O Brasil vem aumentando o número de idosos com 80 anos e
vai redefinindo papéis na sociedade com relação aos idosos ativos.

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Benefício de Prestação Continuada - Idoso:Perfil e composição familiar dos ... 203

Segundo o censo demográfico de 2010 (IBGE, 2011), a população

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brasileira de hoje é de 190.755.199 milhões de pessoas, sendo que 51%,
o equivalente a 97 milhões, são mulheres e 49%, o equivalente a 93 mi-
lhões, são homens. O contingente de pessoas idosas é de 20.590.599
milhões, ou seja, aproximadamente 10,8% da população total. Desses
55,5% (11.434.487) são mulheres e 44,5% (9.156.112) são homens, e esse
número não para de crescer.
Na região Norte, ainda segundo o IBGE (2011), a proporção de ido-
sos na população passou de 3%, em 1991, e 3,6%, em 2000, para
4,6%, em 2010.
Considerando os dados, os idosos representam um novo signifi-
cado para a sociedade brasileira, principalmente com o número de
mulheres idosas sobressaindo sobre o número de idosos homens, o
que refletirá diretamente na família.
Do ponto de vista demográfico, o envelhecimento populacional é
o resultado da manutenção, de um longo período de tempo, de taxas
de crescimento da população idosa superiores às da população mais
jovem. Para Camarano e Pasinato (2004), além do envelhecimento
da população como um todo, está aumentando a proporção da po-
pulação mais idosa, com 80 anos ou mais, alterando a composição
etária dentro do próprio grupo, ou seja, a população idosa também
está envelhecendo.
Com relação à escolaridade e sexo dos idosos, constatamos a
baixa escolaridade dos mesmos, principalmente para as mulheres.
Esse dado mostra duas situações. A primeira é que existe uma re-
produção cultural em que reforça que as mulheres eram prepara-
das para trabalhos manuais e domésticos, não sendo valorizado a
questão profissional; e a segunda que os idosos usuários do pro-
grama desenvolveram durante sua juventude trabalhos considera-
dos precarizados, ou seja, viveram na sua maioria na informalidade
e sem nenhum tipo de proteção.

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Tabela 1 – Amostra escolaridade e sexo, CRAS-Tapanã, 2018


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Sexo
Escolaridade Nº de respostas %
Masculino Feminino
Ensino fundamental
22 38 11 11%
incompleto
Ensino fundamental
02 07 41 41%
completo
Ensino médio incompleto 01 0 30 30%
Ensino médio completo 01 02 11 11%
Não alfabetizado 05 21 06 06%
Ensino superior completo 01 0 01 01%
Total 32 68 100 100%

Fonte: Elaboração das autoras, com base em dados das fichas PAIF (2018)

A baixa escolaridade, ou a não escolarização, são significativas en-


tre os idosos. A falta de acesso ao ensino formal marca por volta de
26% dos perfis analisados que não são alfabetizados. Constatou-se
que 60% dos perfis analisados que os idosos estudaram menos de
oito anos, ou seja, não completaram o ensino fundamental.
No Brasil, a escolaridade dos idosos brasileiros é ainda considerada
baixa, ou seja, 30,7% tinham menos de um ano de instrução no censo
de 2010 do IBGE. O grupo que apresentou melhores condições de es-
colaridade, abrangendo ensino fundamental completo, ensino médio
incompleto ou completo, demonstra-se irrisório em relação ao pre-
domínio da baixa escolaridade, totalizando 13% dos idosos, entre eles
informa a conclusão do ensino superior somente um idoso.
Pode-se verificar por meio da Tabela 1 que entre os idosos do sexo
masculino sobressai o nível fundamental, bem como as idosas do
sexo feminino, apresentam uma concentração maior no ensino fun-
damental incompleto. Podendo isso ser resultado de questões cul-
turais de um determinado período em que estas mulheres se en-
contravam em idade escolar, mas não ingressavam na escola para
“prepararem-se para casar”, fato este considerado mais importante

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Benefício de Prestação Continuada - Idoso:Perfil e composição familiar dos ... 205

do que estudar, pois havia também, até metade do século XX, uma

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tendência à maior escolarização dos homens.
Relacionar aspectos da vida desses idosos, como a escolarização,
a dimensão espacial e histórica nos leva a pensar sobre as condições
de ingresso a serviços, políticas públicas e mercado de trabalho, como
também, as oportunidades construídas em suas trajetórias de vida que
proporcionaram ou não o convívio e acesso a outros âmbitos da pro-
dução humana e do conhecimento socialmente produzido. Assim, não
se pode esquecer que o baixo nível de escolaridade, nesta faixa etária,
é reflexo de uma época em que o estudo era pouco valorizado, elitista
e diferenciado por classe social e gênero.
Para Faleiros (2007, p. 161), “o acesso à educação foi cerceado para
boa parte da população idosa, principalmente a rural, ao longo da vida,
reduzindo a sua cidadania.” Isto expressa o porquê de tantos idosos
analfabetos e com grau de escolaridade baixa.
Quanto ao estado civil, o maior número de homens da amostra é
casado ou vive em união estável com um percentual de 59% e as mu-
lheres são solteiras ou viúvas, com um percentual de 39% e 21% res-
pectivamente. Ou seja, como as mulheres vivem cerca de cinco a oito
anos mais do que os homens, e estes, quando se separam ou enviú-
vam, casam-se novamente com mulheres mais jovens, o que ocasio-
na um número maior de idosas sozinhas o que justifica o percentual
elevado de mulheres solteiras e viúvas na amostra.
Ainda, segundo o IBGE (2010), apesar de nascerem mais homens
no País, são as mulheres que vivem mais, possuindo uma expectativa
de vida média de 79,4 anos, enquanto a dos homens é de 72,9 anos,
portanto, permanecem um maior tempo viúvas. Nos indivíduos de
60 anos ou mais, as taxas de nupcialidade legal, são de 3,3% para
os homens, e de 0,8% para as mulheres, ou seja, os homens idosos
casam-se mais que as mulheres da mesma faixa etária (IBGE, 2010).
Com relação à moradia verificamos que a maioria dos idosos pos-
sui casa própria (86%). Levando em conta as dificuldades experimen-

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tadas pelos adultos jovens, os idosos, por possuírem casa própria,


em sua maioria, têm crescentemente recebido em seus domicílios,
filhos adultos e crianças classificadas como parentes, as quais, na
maioria das vezes, são netos. “A dependência da família em relação
ao idoso é ainda maior nas classes de renda mais baixas” (CAMARA-
NO; PASINATO, 2002, p. 304).
No Brasil, segundo dados do IBGE, a análise dos arranjos familiares
onde os idosos estão inseridos permite verificar que, na sua maioria,
a convivência com familiares prevalece. São homens e mulheres com
mais de 65 anos que dividem a moradia com filhos, netos e até bis-
netos. Ressaltamos que os idosos ocupam de maneira significativa a
posição de chefia nestes arranjos. Neste estudo, apenas 3% dos idosos
moram com parentes, 8% em casas cedidas. Todos os outros são res-
ponsáveis por suas moradias sejam próprias ou alugadas.

Tabela 2 – Tipo de família, CRAS-Tapanã, 2018

Sexo
Tipo de família Nº de respostas %
Masculino Feminino
Unipessoal 07 17 24 24%
Nuclear 14 05 19 19%
Monoparental 04 19 23 23%
Reconstituída 01 01 02 02%
Extensa 06 26 32 32%
Total 32 68 100 100%

Fonte: Elaboração das autoras, baseado em dados das fichas PAIF, 2018

Quanto aos tipos de família, podemos observar na tabela acima,


que a extensa prevalece com 32%. Entre os tipos de família em que
a mulher é a pessoa de referência, 19% eram do tipo monoparental
(sem a presença de um dos cônjuges). Já nas unidades unipessoais, o
percentual de mulheres é maior em decorrência da mais elevada ex-
pectativa de vida feminina (17%).
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Benefício de Prestação Continuada - Idoso:Perfil e composição familiar dos ... 207

Foi considerada para a composição de tipo de família, a existência

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de relação de parentesco com o idoso responsável pelo domicílio, as-
sim como a existência de famílias conviventes (principal, segunda, ter-
ceira etc.). Temos 19% das famílias dos idosos com formação nuclear,
compostas apenas por casais.
A atenção deve ser dada também para a grande proporção de do-
micílios unipessoais (24%) com apenas um morador. Segundo o IBGE,
essa proporção de lares passou de 9,2%, em 2001 para 12,1%, em 2010.
São pessoas que envelheceram, perderam o companheiro e acabaram
morando sozinhas ou por opção. É o caso de 39,5% das mulheres e
10,4% dos homens.
Quanto à configuração dos arranjos familiares, para melhor visu-
alização elaboramos um quadro demonstrando como estão confi-
guradas as famílias pertencentes aos idosos com os perfis analisa-
dos neste estudo.
Os idosos da amostra foram divididos em três categorias em re-
lação ao sustento familiar: 1ª) Idosos que sustentam seus familiares,
sendo os únicos provedores, únicos com renda no núcleo familiar; 2ª)
Idosos que dividem sua renda, são os provedores principais, mas o
cônjuge ou outro familiar também possui alguma renda; e a 3ª) Idosos
que moram sozinhos e se mantém.

Tabela 3 – Configuração dos arranjos familiares, CRAS-Tapanã, 2018

Sexo
Categorias Nº de respostas %
Masculino Feminino
Sustentam familiares 20 43 63 63%
Dividem renda com
03 10 13 13%
familiares
Se mantém 08 16 24 24%
Total 31 69 100 100%

Fonte: Elaboração das autoras, baseado em dados das fichas PAIF (2018)

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Com relação às novas configurações familiares, esta análise reve-


lou que 64% dos homens sustentam seus familiares. No quadro acima
verificamos também que 77% de mulheres estão sustentando e/ou re-
partindo sua renda com seus familiares.
De acordo com os dados divulgados pela Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílio 2015/Instituto Brasileiro de Georgrafia e Estatis-
tica/2015, os lares chefiados por mulheres vêm crescendo anualmen-
te, passando de 26,25 para 28,6 milhões de lares.
Atualmente, criam-se diferentes arranjos familiares, os quais in-
terferem na organização da família, passando esta a sofrer as mais
variadas alterações em sua composição. Desse modo, as relações se
transformam e começam a conviver, no mesmo espaço, diferentes
gerações que passam a dividir despesas e/ou necessidades. Em um
mercado cada vez mais competitivo, em que os jovens encontram
grandes dificuldades para se inserirem no mercado de trabalho, são
os idosos, com os seus rendimentos, seja da aposentadoria, da pen-
são e/ou do trabalho, e neste estudo basicamente o BPC, que assu-
mem na maioria das vezes o orçamento familiar. Com efeito, o papel
do idoso no apoio econômico das famílias pode ser observado por
meio da contribuição de sua renda pessoal, na condição de chefia.

a) Pessoas que dependem da renda do idoso


Uma das grandes mudanças observadas em nossa sociedade é o
aumento de domicílios chefiados por idosos com sua renda, prove-
niente de aposentadoria, pensões e neste estudo a renda dos ido-
sos se origina do BPC, o qual tem se tornado para algumas famílias
a única fonte de renda.
Este idoso, cada vez mais, está redistribuindo seu benefício en-
tre os componentes de sua família, ou seja, pessoas que vivem e
dependem dele, por não terem ainda conseguido seu próprio sus-
tento, por motivos diversos, entre os quais o desemprego, que é
estrutural da sociedade capitalista.
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Tabela 4 - Pessoas dependentes da renda dos idosos, CRAS-Tapanã, 2018

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No de pessoas que
Nº de respostas %
dependem renda do idoso
01 37 48%
02 22 29%
03 10 13%
04 06 08%
05 01 01%
10 01 01%
Total 77 100%

Fonte: Elaboração das autoras, baseado em dados das fichas PAIF (2018)

Quanto à dependência do idoso e quem depende, observamos no


Gráfico 1.

Gráfico 1 - Quem depende da renda do idoso

Fonte: Elaboração das autoras (2018)

Dentre as pessoas que dependem da renda do idoso, 33% são fi-


lhos, 20% são cônjuges e 13% cônjuge e filhos, como se pode perceber

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no Gráfico 1. Verifica-se, dessa forma a importância da renda do idoso


para a sobrevivência das famílias analisadas.
Na amostra, que fez parte deste estudo podemos ver, por exem-
plo, mulheres sustentando irmãos, sobrinhos, genros, o que não foi
verificado em famílias chefiadas por homens. Segundo o IBGE, a po-
pulação de idosos representa um contingente de quase 15 milhões
de pessoas com 60 anos ou mais de idade (8,6% da população bra-
sileira). As mulheres são maioria, 8,9 milhões. 62,4% dos idosos são
responsáveis pelos domicílios. O fato de o idoso possuir casa pró-
pria acaba fazendo com que seus familiares venham morar com eles.
Surge então uma questão importante: se os idosos estão tendo que
sustentar seus núcleos familiares, será que a sua renda está sendo
suficiente para suprir as suas necessidades?
Podemos constatar nos perfis que a maioria dos idosos é provedora
e supre todas as despesas da família e outros dividem seu benefício
e ajudam os filhos e netos com o referido benefício, além de outros
parentes; o quanto isto deve lhes custar em termos de dedicação e
abnegação de coisas que gostariam de ter ou estar realizando em de-
trimento de seus dependentes e de sua condição de idoso.
Verificamos que neste caso o BPC pode ser insuficiente para uma
família com mais de dois membros, deixando muito a desejar com
relação aos idosos terem uma vida digna como prega a Constituição
Federal de 1988 e a lei que os atende.
Segundo o IBGE (2010), o Brasil conta com mais de 17 milhões de
famílias que tem um idoso como provedor, ou seja, 24,89% dos lares
têm como responsável pelo sustento uma pessoa com mais de 60
anos, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD).
O MDS (2011) divulgou que a quantidade de BPC idoso ativo no Bra-
sil totaliza 1.925.038. Desses, a região Norte conta com 185.168, e mais
especificamente no estado do Pará são 88.946 benefícios.
O idoso brasileiro está cada vez mais cumprindo o papel de res-
ponsável pelo lar, e neste estudo isto se dá exclusivamente atra-

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vés dos recursos do BPC, sendo famílias com até 8 pessoas. Desse

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modo, somos levados a questionar como esse benefício está sendo
usado, bem como se consegue suprir as necessidades deste idoso
e de seus familiares, ou seja, as necessidades básicas que todas as
pessoas deveriam ter supridas. Portanto, o que os perfis de idosos
analisados nesta pesquisa demonstram é que os mesmos são pro-
vedores de suas famílias e não conseguem supri-las, por terem que
dividir como vimos anteriormente, sua renda com até 10 pessoas
além dele, o que os levam até o CRAS por diversas demandas entre
as quais, para solicitarem apoio alimentar.
Percebe-se por meio destes dados, que o idoso provedor tem um
ônus bastante pesado a carregar e, no caso da análise em questão,
acaba se privando de bens materiais e produtos de primeira necessi-
dade para manter seus familiares.
A sociedade brasileira vem passando por várias transformações,
sobretudo com relação à família, onde é possível observar o apa-
recimento de alguns arranjos familiares, um deles relacionado aos
idosos que antes eram vistos como dependentes, mas que, no de-
correr dos anos, está se modificando e surgindo então uma nova
realidade, a do idoso provedor, que por meio de sua renda, é quem
mantém a sua família.
É importante observar que os idosos ocupam significativamente a
posição de chefia nestes arranjos. O tipo mais comum encontrado foi
aquele no qual o idoso mora com seus filhos, em sua casa própria.
Nesta análise, nenhum idoso residia com os filhos, eram os filhos ou
familiares que residiam na casa do idoso, devido aos altos índices de
desemprego, nascimento de filhos fora do casamento, divórcios, entre
outros, os filhos ficam ou retornam para a casa dos pais, mantendo-se
assim o idoso como chefe/provedor da família e com novas atribui-
ções que anteriormente não eram tão expressivas.
Os estudos do IBGE revelam que a participação dos idosos na vida
econômica e financeira das famílias resulta de dois fatos: o crescimen-

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to da expectativa de vida dos brasileiros, que subiu para 75,8 anos, e


os filhos que estão deixando a casa dos pais mais tarde.
As novas configurações familiares que têm os idosos como prove-
dores nos levam a pensar e refletir sobre o papel dos jovens na nova
ordem econômica e social. O modelo econômico global ao mesmo
tempo em que reduz as oportunidades de emprego e renda para a
maioria da população jovem estimula o consumo, propagado pelas
mídias. Dessa forma, os idosos, além de provedores econômicos, são,
também, o suporte moral das novas famílias sem emprego e sem es-
perança, manipuladas pela nova ordem econômica mundial. A equa-
ção, formada por menos nascimentos e maior expectativa de vida para
os idosos, resulta numa participação mais efetiva dos mais velhos na
vida social (PEREIRA, 2015a; 2015b).
O BPC é um direito necessário a quem não tem como trabalhar e se
manter. Contudo, o valor de um salário mínimo não possibilita que es-
ses idosos tenham uma vida de qualidade, uma vez que suas despesas
são muitas e ainda ajudam ou chefiam suas famílias. Nesse sentido,
percebemos que o BPC, é um grande avanço e ameniza as vulnerabili-
dades econômicas das famílias assistidas pelo CRAS-Tapanã.

Considerações finais
O estudo bibliográfico trouxe questões sobre o envelhecimento e
o trabalho na sociedade capitalista onde é possível afirmar que, o es-
tigma de que o idoso é improdutivo está associado diretamente ao
modo de produção capitalista o qual compreende o ser humano ape-
nas como força de trabalho.
As mudanças ocorridas nas famílias geraram novas configurações fa-
miliares e o aumento do número de idosos no mundo, bem como a redu-
ção da fecundidade. Desse modo, concluímos que atualmente a família
resulta de mudanças demográfica, biológica, social, econômica e cultural.
Após a análise dos perfis dos idosos, percebemos que estes, em sua
maioria, são provedores/chefes de família e a partir da condição de chefe
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de família tem o seu benefício como a principal fonte de renda da família.

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Este idoso, cada vez mais, está redistribuindo seu benefício entre os com-
ponentes de sua família, ou seja, pessoas que vivem com ele e, que não
estão conseguindo se sustentar por meio do trabalho assalariado.
Apesar de não ser explorada a questão de gênero nesse trabalho,
observa-se que as mulheres se apresentam de forma significativa em
todas as varáveis. Esse dado vem ao encontro de informações que
mostram o aumento significativo de mulheres chefes de família e ao
mesmo tempo são as famílias que mais apresentam situações de po-
breza extrema. As mulheres idosas atravessam toda sua juventude se
responsabilizando financeiramente pelo sustento da família, não têm
condições de contribuir com a previdência social e no seu processo
de envelhecimento reiteram suas responsabilidades pelo sustento de
filhos e agora também dos netos.

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Notas

1 Doutora, professora adjunta da Faculdade de Serviço Social da Universidade Fe-


deral do Pará (UFPA), Belém/PA, Brasil. ORCID: 0000-0002-2342-2818. E-mail:
cilenelins@yahoo.com.br

2 Bacharel em Serviço Social, Belém/PA, Brasil, ORCID: 0000-0002-3170-7936.


E-mail: cimarafarias@hotmail.com

3 Bacharel em Serviço Social, Belém/PA, Brasil, ORCID: 0000-0002-4205-0642.


E-mail: aziram3010@hotamil.com

4 Trabalho informal é o trabalho sem vínculos registrados na carteira de trabalho ou


documentação equivalente, sendo geralmente desprovido de benefícios como
remuneração fixa e férias pagas. O uso da expressão trabalho informal tem suas
origens nos estudos realizados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT),
no âmbito do Programa Mundial de Emprego de 1972.

pg 193 - 216 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


217

Atenção Domiciliar à Saúde e a centralidade

ISSN: 2238-9091 (Online)


dos cuidados na família: coparticipação ou
super responsabilização?

Bárbara Figueiredo Santos1


Márcia Regina Botão Gomes2

Resumo
O desenvolvimento das tecnologias proporcionou um prolongamento significativo
na perspectiva de vida das pessoas com condições crônicas complexas de saúde,
bem como trouxe à tona novas possibilidades de cuidado. A atenção domiciliar como
uma proposta inserida na política de saúde vem se configurando como alternativa ao
modelo hospitalar hegemônico num movimento que consideramos contraditório. Se
por um lado pode favorecer os usuários dos serviços, por outro pode sobrecarregar
as famílias que aderem a esse tipo de programa. Logo, nesse artigo pretendemos
refletir sobre alguns elementos dessa contradição.

Palavras-chaves
Atenção domiciliar; Família; Centralidade dos cuidados; Política social.

Home Health Care and the centrality of care in the family: coparticipation or over
accountability?

Abstract
The development of technologies has provided a significant prolongation of the life
expectancy of people with complex chronic health conditions and has brought new
possibilities of care to the fore. Home care as a proposal inserted in health policy is
becoming an alternative to the hegemonic hospital model in a movement that we
consider contradictory. If on the one hand it can favor the users of the services, on
the other it can overwhelm the families that adhere to this type of program. There-
fore, in this article we intend to reflect on some elements of this contradiction.

Keywords
Home Care; Family; Centrality of care; Social policy.

Artigo recebido: agosto de 2018


Artigo aprovado: outubro de 2018

pg 217 - 238 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


218 Bárbara Figueiredo Santos e Márcia Regina Botão Gomes

Introdução
ISSN: 2238-9091 (Online)

As transições nos aspectos demográficos e epidemiológicos ocor-


ridas no Brasil, desde o início do século, apontam para mudanças na
situação de saúde da população e justificam uma série de estratégias
para a formulação de políticas públicas. Diversas propostas técnicas e
assistenciais na área da saúde vêm ganhando destaque e nesse con-
junto diverso, os programas e serviços de atenção domiciliar tem sido
uma delas. Neste artigo apresentaremos a sua definição, seus objeti-
vos e algumas contradições existentes.
Por via de regra, a atenção domiciliar3 à saúde é uma alternativa
voltada para a continuidade do cuidado em casa. A indicação para
esse tipo de serviço é para pessoas que estão em estabilidade clínica,
necessitando de atenção à saúde em situação de restrição ao leito ou
ao lar de maneira temporária ou definitiva.
Existem muitas dimensões do cuidado domiciliar e grande diver-
sidade no modo de assistência. Pode acontecer com visitas domici-
liares a pacientes crônicos ou até mesmo com o estabelecimento de
um aparato médico-hospitalar de grande complexidade de cuidados,
como é o caso da internação domiciliar (SILVA et al., 2010).
O modelo assistencial4 hegemônico prioriza a lógica hospitalocên-
trica, na qual o centro da atenção é a doença e não a saúde, desse
modo, não são considerados os aspectos sociais, familiares, econômi-
cos e culturais, onde o enfoque é somente a parte clínica do usuário.
Os argumentos para a atenção domiciliar à saúde valorizam o princípio
da integralidade previsto no Sistema Único de Saúde (SUS) e preconi-
zam a promoção e prevenção à saúde, a diminuição de riscos, além da
humanização da atenção.
Entretanto, para a oferta de tal modalidade há uma exigência fun-
damental: a existência do cuidador. Se por um lado, retornar ao lar pa-
rece ser a opção ideal após longos períodos de internação, por outro
essa volta para casa pode inaugurar novos arranjos não tão esperados
na convivência familiar.

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 217 - 238


Atenção Domiciliar à Saúde e a centralidade dos cuidados na família... 219

Mudanças no orçamento familiar, necessidades de adequações na

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estrutura da casa e, sobretudo, a responsabilidade de execução dos
cuidados, impactam de modo significativo na organização da família.
Assim, a atenção domiciliar tem crescido cada vez mais e aparece
como uma das expressões da centralidade da família nas políticas so-
ciais. Por isso, apresentaremos questões iniciais para compreensão do
leitor sobre a atenção domiciliar à saúde e, em seguida iremos situá-lo
sobre a centralidade da família nas políticas sociais. Por fim, pretende-
mos refletir sobre alguns elementos fundamentais da contradição que
consideramos o centro deste trabalho: a família na atenção domiciliar
coparticipa dos cuidados ou é sobrecarregada?
Antes de iniciar, gostaríamos de trazer as reflexões de Mioto (2003)
que entende a família, independente de formas e modelos, como um
espaço privilegiado na história da humanidade onde aprendemos a ser
e a conviver. Para a autora a família é mediadora das relações entre os
sujeitos e a coletividade, mediando os movimentos entre o público e
o privado, gerando formas de convivência, sem desconsiderar as con-
tradições existentes, com conflitos e desigualdades.
Diante disso, pretendemos desenvolver uma discussão que possa
contribuir com a qualificação do atendimento no domicílio e subsidiar
o processo de trabalho dos profissionais inseridos nos programas e
serviços de atenção domiciliar.

Atenção Domiciliar à Saúde – breves apontamentos


A primeira experiência organizada de atenção domiciliar foi o Servi-
ço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência (SAMDU), vinculado
ao Ministério do Trabalho, em 1949. Contudo, só foi organizada como
atividade planejada no setor público a partir de 1963, como o Serviço
de Assistência Domiciliar do Hospital de Servidores do Estado de São
Paulo (HSPE) (OLIVEIRA NETO; DIAS, 2014).
Silva et al. (2010) afirmam que é a partir da década de 1990 que
começam a expandir experiências de atenção domiciliar, o que acaba
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220 Bárbara Figueiredo Santos e Márcia Regina Botão Gomes

exigindo regulamentações para o funcionamento e a criação de políti-


cas públicas de modo a incorporar sua oferta às práticas instituciona-
lizadas. Cabe destacar que, nesse período, o SUS estava num processo
de discussão e amadurecimento, e novos arranjos de cuidados esta-
vam sendo experimentados.
Contudo, é a partir dos anos 2000 que os programas e serviços de
atenção domiciliar ganham destaque no País com projetos assisten-
ciais variados, contudo, no que diz respeito às normativas, só existiam
portarias específicas voltadas ao cuidado domiciliar de usuários com
AIDS e para a atenção aos idosos (CARVALHO, 2009).
Assim, a atenção domiciliar é inserida no SUS, em 2002, através
da inclusão da Lei nº 10.424/2002, onde ficou estabelecida no ca-
pítulo VI como subsistema de atendimento e internação domiciliar.
A referida lei dispõe sobre as condições para a promoção, proteção
e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento de servi-
ços correspondentes, regulamentando, assim, a assistência domi-
ciliar no País (BRASIL, 2002).
De um modo geral, as recomendações para atenção domici-
liar começam a ganhar força em função das transições nos aspec-
tos demográficos e epidemiológicos da população, e se apresenta
como alternativa ao modelo hegemônico em saúde. Segundo dados
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), em 76
anos, de 1940 a 2016, a expectativa de vida dos brasileiros aumen-
tou em mais de 30 anos. O que justifica grande parte dos serviços e
programas voltados para os cuidados no domicílio iniciarem com o
atendimento para usuários idosos.
No entanto, após várias reformulações ficou estabelecido que a
atenção domiciliar fosse indicada para pessoas que estão em estabi-
lidade clínica, necessitando de atenção à saúde em situação de res-
trição ao leito ou ao lar de maneira temporária ou definitiva ou em
grau de vulnerabilidade, na qual a atenção domiciliar é considerada
a oferta mais oportuna para tratamento, paliação, reabilitação e pre-

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 217 - 238


Atenção Domiciliar à Saúde e a centralidade dos cuidados na família... 221

venção de agravos, tendo em vista a ampliação de autonomia do

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usuário, família e cuidador (BRASIL, 2016).
De acordo com o discurso legal, os principais objetivos para im-
plantação de serviços e programas de atenção domiciliar pressupõem
a redução da demanda por atendimento hospitalar, redução do perí-
odo de permanência de usuários internados, humanização da atenção
à saúde, com a ampliação da autonomia dos usuários, bem como a
desinstitucionalização e a otimização dos recursos financeiros e estru-
turais da Rede de Atenção à Saúde5 (BRASIL, 2016).
É necessário sinalizar que a atenção domiciliar preconiza a existên-
cia de um cuidador, o que segundo a portaria é/são “pessoa(s), com
ou sem vínculo familiar com o usuário, apta(s) para auxiliá-lo em suas
necessidades e atividades da vida cotidiana e que, dependendo da
condição funcional e clínica do usuário, deverá(ão) estar presente(s)
no atendimento domiciliar” (BRASIL, 2016).
As equipes que compõem a atenção domiciliar podem ser com-
postas por profissionais do campo médico, enfermagem, fisioterapia
ou serviço social, além de auxiliares ou técnicos de enfermagem, bem
como, fonoaudiólogo, nutricionista, odontólogo, psicólogo, farmacêu-
tico ou terapeuta ocupacional.
A organização da atenção domiciliar está dividida em três modali-
dades (AD1, AD2 e AD3), nas quais se referem às necessidades de cui-
dados específicos de cada caso, ao estabelecimento da periodicidade
das visitas, o nível de intensidade do cuidado multiprofissional, além
do uso de equipamentos (BRASIL, 2016).
Dessa forma, é a partir dessa classificação será estipulado o grau de
dependência física e mental do usuário e que vai determinar a com-
plexidade do cuidado. Quando falamos de idosos, crianças e adoles-
centes, por exemplo, a tendência é que essa dependência seja maior,
o que exigirá ainda mais responsabilidades do cuidador.
Superando o tal discurso legal, alguns desses pontos precisam ser
problematizados. A justificativa de redução do período de permanên-

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222 Bárbara Figueiredo Santos e Márcia Regina Botão Gomes

cia de usuários internados que aparece como um dos objetivos da


atenção domiciliar. Será que prioriza as condições clínicas, sociais e
familiares do usuário ou prioriza a desocupação dos leitos? A huma-
nização da atenção à saúde está baseada na ampliação da autonomia
dos usuários, porque o usuário e sua família são parte do processo do
cuidado ou porque são super responsabilizados? E como não poderia
ficar de fora, a otimização dos recursos financeiros e estruturais das
Redes de Atenção à Saúde (RAS). De quem é a responsabilidade finan-
ceira para os cuidados desse usuário no domicílio?

Políticas sociais e a centralidade da família


Para uma melhor aproximação com o objeto deste trabalho, dis-
cutiremos algumas particularidades das políticas sociais no modo de
produção capitalista e a sua relação com as expressões da “questão
social”. Em seguida, veremos como se dá a centralidade da família nas
políticas sociais.
A “questão social” de forma geral é fundamentada no processo de
industrialização ocorrido na Europa no final do século XVIII, e com o
modo de produção capitalista instaurado são gerados profundos im-
pactos para toda a organização da sociedade. Nasce nesse contexto,
um pauperismo diferenciado daquelas sociedades anteriores, que
eram pobres por conta da falta de desenvolvimento da capacidade
produtiva e agora se tem uma escassez socialmente produzida. Na
sociedade capitalista o nível das forças produtivas é bem elevado,
porém, não há uma distribuição igualitária dessas riquezas social-
mente produzidas (NETTO, 2011).
A “questão social” não está ligada somente com questões econô-
micas, mas também com questões culturais, políticas e de gênero.
Há uma pobreza exacerbada que cresce cada vez mais, juntamente
com o desenvolvimento do modo de produção capitalista que mo-
difica as relações sociais e se mostra contraditório, pois, quanto mais
se produz riqueza, mais pobreza se tem. Contudo, é importante lem-
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brar que essa pobreza não é exclusiva do capitalismo e nem mesmo

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a exploração, mas acrescido de mobilização social (fator determi-
nante da “questão social”) e através da conscientização política da
classe trabalhadora, essas manifestações tornam-se uma ameaça da
ordem social para a burguesia (NETTO, 2011).
Assim, o mecanismo utilizado para manutenção dos interesses da
ordem burguesa será por meio da implementação de políticas so-
ciais, tendo os serviços sociais como forma de enfrentar as questões
que são intrínsecas ao modelo de produção capitalista (IAMAMOTO,
2000). Entretanto, a compreensão sobre essas políticas sociais não é
homogênea, as políticas sociais podem ser interpretadas por diferen-
tes perspectivas e variados vieses teórico-metodológicos6.
Netto (2011) afirma que só é possível pensar em política social pú-
blica na sociedade burguesa com a emergência do modo de pro-
dução capitalista monopolista. Antes desse período, no capitalismo
concorrencial, as políticas sociais eram operadas, na sua maioria,
por organizações religiosas conduzidas e embasadas por motivações
ético-morais, além de, não terem nenhuma sistematização ou qual-
quer tipo de fiscalização (NETTO, 2011). A emersão do novo modo de
produção incentivou a ampliação das políticas sociais e delegou ao
Estado novas funções.
As novas formas de produção, reprodução e a expansão do capi-
talismo contribuíram para o desenvolvimento de forças produtivas,
o que interferiu diretamente nas políticas sociais. A mudança de há-
bitos e a inserção de equipamentos de saúde, lazer, transporte, co-
municação vão ser importantes para desenvolver a sociedade para
uma ideologia do consumo e adaptá-la a novas formas de produ-
ção. Não adiantava muito esse desenvolvimento tecnológico sem o
acompanhamento do desenvolvimento das habilidades do homem,
foi preciso capacitá-lo e investir em políticas sociais que garantissem
educação, saúde, serviços de água, luz, esgoto, lazer, e assim, justifi-
car a intervenção do Estado.

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224 Bárbara Figueiredo Santos e Márcia Regina Botão Gomes

Além de fazer o povo aceitar e, portanto, legitimar essas inter-


venções do Estado e de seus agentes, esses discursos fazem a
população acreditar na bondade do sistema e no fracasso in-
dividual A falta de assistência educacional, a falta de nutrição e
saúde, a falta de moradia, a falta de emprego, de lazer, a falta de
roupas e alimentos, ou seja, a doença, o desemprego e a fome
são atribuídos a falhas individuais ou à ausência de sorte na vida,
pois com as políticas sociais o sistema surge como atuante e
preocupado com todos. (FALEIROS, 1986, p. 17).

Os agentes no qual o autor se refere, diz respeito ao entrosamento


da esfera estatal com setores privados, atuando em conjunto na admi-
nistração das políticas sociais. A outra parte da citação faz referência à
ideologia implantada na sociedade capitalista de não questionar o sis-
tema vigente ou analisar politicamente, economicamente seu contex-
to, culpa-se o indivíduo e muitas vezes os próprios direitos previstos
em lei aparecem como favores.
A criação das leis reflete diretamente sobre as políticas sociais,
que tomam formas e direção de acordo com a conjuntura política
e com as correlações de forças existentes, se tornando assim, pro-
cesso fundamental para compreensão das mesmas. A fragmentação
das políticas sociais aparece como estratégia de enfraquecimento da
luta dos trabalhadores, da mesma maneira que a manutenção das
lutas populares afastadas uma das outras, atinge o objetivo governa-
mental de despolitizar as lutas e controlar a ordem social (FALEIROS,
1986). Netto (2011) ainda chama de peculiar esse processo no qual a
intervenção estatal aparece:

E não pode ser de outro modo: tomar a “questão social” como


problemática configuradora de uma totalidade processual espe-
cífica é remetê-la concretamente à relação capital-trabalho – o
que significa, liminarmente, colocar em xeque a ordem burgue-
sa. (NETTO, 2011, p. 32).

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Dessa forma, o autor chega numa questão determinante: a necessi-

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dade da política social enquanto mecanismo de intervenção do Estado
burguês constituída em políticas sociais. As expressões da “questão
social” são fragmentadas como questões particulares, ou seja, para
manter os interesses do capitalismo monopolista a intervenção estatal
não pode ser feita de modo a considerar a perspectiva da totalidade,
já que implicaria diretamente nas relações do capital. Tratar essas ex-
pressões como problemáticas da pobreza, da fome ou do desempre-
go, traduz a ideia do “desvio” da lógica social (NETTO, 2011).
Assim, a “questão social” é atacada nas suas refrações, nas suas
sequelas apreendidas como problemáticas cuja natureza totali-
zante, se assumida, consequentemente, impediria a intervenção.
Donde a “categorização” dos problemas sociais e dos seus vul-
nerabilizados, não só com a decorrente priorização das ações
(com sua aparência quase sempre fundada como opção técni-
ca), mas sobretudo com a atomização das demandas e a com-
petição entre as categorias demandantes. (NETTO, 2011, p. 32).

Portanto, vemos que as políticas sociais contribuem para o proces-


so de reprodução da força de trabalho e se desenvolvem nessas arti-
culações, tanto na inclusão, reprodução e exclusão da força de traba-
lho no modo de produção capitalista, não esquecendo as lutas sociais.
Para Mioto (2003) a centralidade da família nas políticas sociais é le-
gitimada e reconhecida em diversas legislações7 existentes no País, des-
tacando o artigo 226 da Constituição Federal de 1988, o qual considera
que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (p.
03). Entretanto, Mioto (2003) sinaliza que apesar desse reconhecimento
explícito sobre a importância da família na vida social – o que lhe torna
merecedora da proteção estatal – sinais de processos de penalização e
desproteção das famílias, têm sido cada vez mais evidentes.
Mioto (2003) afirma que existem duas principais perspectivas nas
discussões sobre as relações e definição de papéis das políticas sociais
e das famílias. A autora destaca que uma delas defende a centralidade

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226 Bárbara Figueiredo Santos e Márcia Regina Botão Gomes

da família, com capacidade intrínseca de cuidado e proteção, ou seja,


entende que a responsabilidade do cuidado cabe essencialmente à
família. Já a outra entende que tal capacidade está relacionada com a
garantia de políticas sociais, isto é, para essa perspectiva, para além da
compreensão de família como instância de cuidado e proteção, deve
haver o reconhecimento da família como instância a ser cuidada e
protegida, enfatizando a responsabilidade pública, ou seja, do Estado.
Veremos algumas características destas duas perspectivas e como
o Estado perpassa implícito e explicitamente sobre as duas.
A primeira ideia de família é caracterizada como familista, pois está
fundada no argumento que existem dois canais “naturais” para satisfa-
ção das necessidades dos cidadãos: o mercado (via trabalho) e a família,
e apenas em momentos de falhas destes canais que o Estado deve in-
tervir (SGRITA, 1995 apud MIOTO, 2003, p. 03). Vale destacar, que essa
intervenção deve ocorrer de forma temporária e pontual. Vejamos:
A construção histórica dessa relação foi permeada pela ideolo-
gia de que as famílias, independente de suas condições objeti-
vas de vida e das próprias vicissitudes da convivência familiar,
devem ser capazes de proteger e cuidar de seus membros. Essa
crença pode ser considerada, justamente, um dos pilares da
construção dos processos de assistência às famílias. Ela per-
mitiu estabelecer uma distinção básica para os processos de
assistência às famílias. A distinção entre famílias capazes e fa-
mílias incapazes. (MIOTO, 2003, p. 04).

Isso aponta o quanto de responsabilidade a sociedade coloca nas


famílias, visto que, não considera as condições objetivas de vida,
nem as vicissitudes da convivência familiar, conforme a autora in-
dica. Nogueira e Monteiro (2013) afirmam que os modos de sobre-
vivência das famílias contemporâneas têm relação com os modos
de produção de uma sociedade. O que não é difícil de comprovar
quando observamos a organização do capital, que tem como es-
sência a exploração de uma classe sobre a outra, gerando desigual-
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dades sociais imensuráveis. Para Alencar (2011), a centralidade da

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família na sociedade brasileira está fundada numa precariedade da
vida social, considerando o contexto sócio histórico da formação
social do País, que excluiu grande parte da população dos padrões
de produção, consumo e cidadania.
A distinção entre famílias capazes e incapazes8, a qual Mioto
(2003) se refere na citação anterior, está ligada com o nível de ca-
pacidade que as famílias têm na resolução de problemas. As fa-
mílias consideradas capazes são aquelas que conseguem alcançar
as expectativas de sucesso que a sociedade espera, via mercado,
trabalho e organização interna (MIOTO, 2003). Já as famílias consi-
deradas incapazes são aquelas que não conseguem êxito nas fun-
ções atribuídas pela sociedade e precisam de apoio externo para
a proteção dos seus membros. Estas famílias recebem títulos de
desorganizadas, desestruturadas, etc.
Nessa perspectiva, ganha força a ideologia secular de que a fa-
mília é uma sociedade natural e sujeito econômico de mercado.
As ações públicas devem acontecer sob forma de compensa-
ção por falirem no provimento de condições de sobrevivência,
de suporte afetivo e de socialização de seus membros. Assim, a
falência é entendida como resultado da incapacidade das pró-
prias famílias em gestionarem e otimizarem seus recursos, de
desenvolverem adequadas estratégias de sobrevivência e de
convivência, de se articularem em redes de solidariedade. Mais
ainda: incapacidade de não serem capazes de se capacitarem
para cumprir com as obrigações familiares. Nessa direção está
embutido um estereótipo de família, que ainda inclui um ideal
de estrutura (pai-mãe-filhos) e uma concepção naturalizada de
obrigações familiares. (MIOTO, 2003, p. 05).

Novamente a família é considerada a instância suprema da proteção


e dos cuidados, independente das condições objetivas para sua realiza-
ção. Mioto (2003) destaca a política de Assistência Social, que passa a
tratar a família não só como beneficiária, mas também como parceira.
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228 Bárbara Figueiredo Santos e Márcia Regina Botão Gomes

Essa é a perspectiva que foi sendo reatualizada e incremen-


tada a partir dos “ajustes estruturais” através dos quais foram
enfatizados os mecanismos do mercado na economia e rea-
lizada a profunda reformulação do papel do Estado, tanto em
relação à economia, como em relação às suas responsabilida-
des como provedor de políticas econômicas e sociais. A famí-
lia, simbolicamente assumida como sendo capaz de restaurar
um projeto de uma sociedade solidária, contraposta ao indivi-
dualismo e à barbárie social, passou a reincorporar riscos e a
reassumir custos/obrigações que já haviam sido incorporados
pelo Estado. (MIOTO, 2003, p. 05).

Já a segunda perspectiva, entende que a família necessita antes de


tudo ter condições para sustentar a sua proteção, e as políticas so-
ciais nesse sentido, seriam o caminho para a garantia dessas condi-
ções (MIOTO, 2003). Para Nogueira e Monteiro (2013) a centralida-
de da família nas políticas públicas deveria enfatizar a promoção de
ações a seu favor, sobretudo, na implementação das leis. As autoras
destacam a promulgação da Constituição Federal de 1988, como im-
portante avanço para o País no que se refere ao sistema de proteção
social. Vemos que é na promulgação da Constituição de 1988, também
chamada de Cidadã, que vai se consolidar e formalizar a primazia da
responsabilidade do Estado no trato com as políticas sociais e a insti-
tuição da Seguridade Social, tendo como tripé as políticas de Saúde,
Assistência Social e Previdência Social.
Nogueira e Monteiro (2013) afirmam que o papel do Estado não deve
ser de substituto, mas sim de aliado e fortalecedor da família, criando
condições concretas para a reorganização na construção da cidadania
e no desempenho das responsabilidades. Em outras palavras, as au-
toras sugerem que as famílias estejam ancoradas em condições mate-
riais de existência que garantam de fato o suprimento das necessida-
des básicas dos seus membros. Logo, a família poderia assim exercer
seu papel primário de proteção, educação, cuidado, aporte efetivo e
emocional (NOGUEIRA; MONTEIRO, 2013).
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As autoras alegam que a centralidade das famílias nas políticas so-

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ciais, se expressa na saúde com propostas variadas9, e destacaremos
neste trabalho a desospitalização de pessoas com condições crônicas
complexas10 e o incentivo ao tratamento domiciliar.

Coparticipação dos cuidados ou super responsabilização – Divisão justa?


As iniciativas de programas e serviços de atenção domiciliar têm
sido desenvolvidas como uma das estratégias de continuidade da as-
sistência à saúde no domicílio. No entanto, para a oferta de tal moda-
lidade de atenção à saúde há uma exigência fundamental: a existência
do cuidador. Como já vimos, o cuidador pode ser um familiar ou não,
mas precisa ser considerado apto pela equipe e claro, se considerar
capaz de realizar os cuidados. A eleição do cuidador geralmente acon-
tece no período da internação, onde se determina uma ou mais pes-
soas que tenham interesse para dar início aos treinamentos básicos e
necessários para a desospitalização do usuário.
Se por um lado, retornar ao lar parece ser a opção ideal após longos
períodos de internação, por outro essa volta para casa pode inaugurar
novos arranjos não tão esperados na convivência familiar. Esta con-
tradição norteia nossas reflexões e veremos agora alguns elementos
centrais para compreendermos se na atenção domiciliar a centralida-
de da família tende mais para a coparticipação dos cuidados ou para
uma super responsabilização.
Um dos eixos fundamentais para efetivação da atenção domiciliar
é o conceito de desopitalização. Em linhas gerais, a desospitalização
está associada à humanização do usuário e sua família, e oferece uma
recuperação mais rápida no domicílio buscando racionalizar a utiliza-
ção dos leitos hospitalares (SILVA et al., 2017).
O processo de desospitalização opera como um conjunto de ações
e encaminhamentos realizados pela equipe interdisciplinar, ocorridos
ainda quando o usuário está internado, visando a desospitalização se-
gura. A família é parte essencial nesse processo, tendo em vista que o
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usuário internado pouco pode contribuir nas questões objetivas, como


por exemplo, na organização e readequação do domicílio ou mobiliza-
ção para resolver assuntos externos11. A desospitalização preconiza um
melhor aproveitamento dos leitos e a redução de gastos, consideran-
do que o perfil dos usuários elegíveis é de longa permanência nos hos-
pitais e consequentemente geram grandes custos para a instituição.
Para a família os benefícios da desospitalização são evidentes, visto
que, possibilita a convivência em casa, a aproximação com familiares
e amigos, diminuição dos ricos de infecção com a saída do ambiente
hospitalar e quando pensamos no caso de crianças que, muitas vezes,
não conhecem outros espaços além do hospitalar, temos o desenvol-
vimento significativo de aspectos comportamentais e cognitivos.
A ideia de rede é bastante utilizada na desospitalização e na aten-
ção domiciliar. Isso porque além da coparticipação da família, outras
redes de apoio podem e devem subsidiar nos cuidados, com ações e
serviços de saúde integrados, buscando garantir um dos princípios do
SUS: a integralidade do cuidado. O usuário não está isolado, a família
deve ser considera na atenção e compreendida como um todo, inclu-
sive, com articulação com outras políticas públicas. O eco da atenção
integral deve repercutir na só na saúde, mas também na qualidade de
vida do usuário e da sua família.
Mendes (2010) afirma que numa perspectiva internacional os sistemas
de saúde são predominados pelos sistemas fragmentados, voltados para
atenção às condições agudas e às agudizações de condições crônicas.

[...] os sistemas fragmentados de atenção à saúde são aqueles


que se organizam através de um conjunto de pontos de aten-
ção à saúde isolados e incomunicados uns dos outros e que, por
consequência, são incapazes de prestar uma atenção contínua à
população. (MENDES, 2010, p. 06).

Logo, nos sistemas fragmentados os diferentes níveis de atenção à


saúde12 não são articulados, o que Mendes (2010) chama atenção, vis-

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to que, nesses sistemas, a atenção primária à saúde não pode exercitar

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seu papel de centro de comunicação, coordenando o cuidado. Para o
autor as redes de atenção à saúde constituem-se de três elementos:
a população, a estrutura operacional e o modelo de atenção à saúde.
O autor embasa a necessidade de articulação em rede, pois argu-
menta que existem evidências de que as redes de atenção à saúde po-
dem melhorar a qualidade clínica, os resultados sanitários, a satisfação
dos usuários e reduzir os custos (MENDES, 2010, p. 06).
Um instrumento importante na efetivação de uma desospitaliza-
ção e estadia segura no domicílio é o Projeto Terapêutico Singular
(PTS). A participação da família na construção do PTS é fundamen-
tal, porque expressa uma relação de parceria entre a equipe e famí-
lia. A família não é depositária passiva dessa relação, pelo contrário,
ela vive 24 horas por dia aquela situação e conhece melhor do que
ninguém sobre as questões relacionadas ao seu familiar. Em outras
palavras, queremos dizer que a família deve fazer parte de todo o
processo de desospitalização, bem como, no desenvolvimento das
condutas estabelecidas para o cuidado. A família deve ser inserida,
tendo autonomia para agir ativamente, interagir, trocar e construir
possibilidades terapêuticas para o cuidado.
Como vimos anteriormente, a organização da atenção domici-
liar está dividida em modalidades e os cuidados dos usuários que
necessitam desse serviço podem apresentar demandas de baixo,
médio e alto grau de complexidade. Nesse sentido, há a exigência
de habilidades específicas para lidar com aparelhos tecnológicos
como aspirador, nebulizador, respiradores, concentradores, entre
outros, além de conhecimentos essenciais para manipulação de
medicamentos e insumos hospitalares.
Logo, a família precisa capacitar-se em tarefas específicas e técni-
cas da área da saúde, as quais não se prepararam e não escolheram
para si, compromissos esses que sobrecarregam na maioria das ve-
zes, apenas um familiar13.

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Esse quadro, em que se ensaia o deslocamento da lógica do


cuidado institucional ao domiciliar responde por uma maior res-
ponsabilização da família frente aos seus membros na mesma
proporção em que o Estado se ausenta do cumprimento de seu
papel. Em que pese o reconhecimento da importância de par-
ticipação da família no processo de recuperação da saúde de
seus membros, o que se discute é a transferência de atribuições
e responsabilidades que frustram diante de uma realidade social
adversa. (MONTEIRO; NOGUEIRA, 2013, p. 151).

A realidade social adversa que as autoras se referem está relacio-


nada às expressões da “questão social” que se manifestam nas condi-
ções objetivas das famílias brasileiras, materializadas no cotidiano das
relações sociais através da pobreza, da violência urbana, de gênero,
abandono, dentre outras situações (MONTEIRO; NOGUEIRA, 2013).
Na área da saúde, assim como em outros espaços, trabalham pro-
fissionais de diferentes ramos do conhecimento, com saberes teóricos,
práticos e éticos distintos, com projetos profissionais e de sociedade
controversos. A disputa é constante.
O domicílio é um espaço particular, íntimo do usuário e sua família,
onde os profissionais vão encontrar diversos modos de vidas, histórias
e hábitos. Isso significa que as equipes de atenção domiciliar, e não só,
precisam ter muito cuidado, é indispensável se despir das visões pre-
conceituosas, para não conduzir o trabalho para um viés conservador.
Nogueira e Monteiro (2013) sinalizam que uma concepção fechada, li-
mitada, idealizada e pré-concebida de família pode produzir alguns
conflitos entre e família e a equipe.

Embora o impacto das mudanças nas relações, padrões e con-


cepções de família perpassem o cotidiano dos profissionais de
saúde, sua compreensão ainda é atravessada pelas impressões
e modelos internalizados e idealizados de família burguesa. [...]
Nesse sentido, há a necessidade de capacitação crítica e quali-
ficação constante dos diversos profissionais da equipe de saúde

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no que tange à concepção da família contemporânea e das legis-

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lações que regulam suas relações com seus membros, com o Es-
tado e com a sociedade. (NOGUEIRA; MONTEIRO, 2013, p. 155).

A relação entre a equipe e a família deve ser bastante discutida na


atenção domiciliar. O que fica aparente é a culpa da família, sua falta
de organização e dificuldades para resolver determinadas tarefas, o
que na verdade é um equívoco quando não se considera a conjuntura
social, econômica e política. Conforme as autoras sugerem, a capa-
citação crítica e qualificação da equipe são essenciais para superar o
caráter moralizador e/ou repressivo direcionados à família.
Existem ainda questões de poder que perpassam essa relação.
As famílias muitas vezes não se sentem a vontade para compartilhar
informações ou sugerir outras formas de cuidado. É de extrema im-
portância que o conhecimento da família sobre o cuidado do usuário
seja considerado, afinal, quem passa a maior parte do tempo cui-
dando? Quem realiza rotineiramente as atividades necessárias para a
permanência do usuário em casa? A interação entre a equipe e famí-
lia se faz necessária na atenção domiciliar, visto que, a comunicação
entre os pares é essencial.
Em suma, a ida para casa implica uma série de mudanças, sobre-
tudo, a sobrecarga do acúmulo de funções – cuidados com o familiar
(manuseio e manutenção dos equipamentos, dieta regular, manipula-
ção da medicação, responsabilidade com a higiene) e tarefas domés-
ticas (limpeza e organização da casa, lavagem de roupas, preparo da
alimentação, etc.) – causa um esgotamento físico e mental no cuida-
dor e precisam ser bem discutidas no processo de desospitalização.

Conclusão
É indispensável para as reflexões sobre as políticas sociais na atu-
alidade entendermos como o modo de produção capitalista impera
nos mais variados níveis das relações sociais, bem como interfere
diretamente na elaboração, implementação e execução das políti-
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cas sociais. Observa-se, portanto, que as inúmeras transformações


ocorridas nesse modelo de produção não modificaram a essência
exploradora da relação capital/trabalho, pelo contrário, essa relação
potencializa-se cada vez mais.
Em tempos de crise na sociedade capitalista, as políticas sociais
são diretamente afetadas, pois, são vistas enquanto gastos, despesas
secundárias, e não como investimentos. O aumento dos índices de
desemprego e a generalização de condições precárias de vida tomam
conta do cenário de crise, e enquanto os trabalhadores precisam de
apoio, os recursos são reduzidos.
Quando sugerimos essa reflexão sabíamos que não seria tarefa fá-
cil. As famílias inseridas nos serviços e programas de atenção domici-
liar coparticipam e são sobrecarregadas ao mesmo tempo, mas, tanto
a coparticipação como a sobrecarga, vai variar dependendo da efetivi-
dade das políticas sociais e das formas de gestão e operacionalização
dos serviços e programas de atenção domiciliar.
Pensar na consolidação de programas e serviços de atenção domi-
ciliar que não sobrecarreguem as famílias significa pensar em equipes
capacitadas, que entendam a realidade social do usuário e sua família
como produto das relações contraditórias da sociedade capitalista, e
não com visões de cunho moral e conservador. Além da necessida-
de de articulação entre as políticas públicas (saúde, assistência social,
habitação, educação, etc.), que consigam garantir a integralidade de
atenção ao usuário e sua família.
É inegável que a existência de uma equipe de atenção domiciliar
acompanhando o usuário ameniza a sobrecarga da família, mas não
é suficiente para eliminar a intensidade dos cuidados e os custos que
ficam a cargo da família. A repetitividade, a rotina cansativa, são alguns
dos aspectos que contribuem para o desenvolvimento de tensões psi-
cológicas por parte dos familiares.
As propostas de internações programadas, como acontecem em
outros países, podem ser uma alternativa para aliviar o cansaço dos

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cuidadores. Tais proposições estabelecem acordos entre a família

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e a equipe, com o objetivo de planejar períodos de internação do
usuário, para que o cuidador possa tirar um tempo de descanso. A
ampliação da rede de apoio com incentivos (monetário ou não) tam-
bém pode ser um caminho para evitar a sobrecarga da família. Outra
possibilidade é a criação mecanismos de avaliação da equipe pela
família, o que pode ser uma estratégia para a construção de um es-
paço de troca e fortalecimento.
Os custos básicos com energia elétrica, água, alimentação e cuida-
dos específicos ficam a cargo da família e o Estado omisso das suas
responsabilidades. A criação de políticas públicas que subsidiem es-
sas famílias é urgente. Não defendemos de forma alguma que essas
pessoas se tornem moradoras de hospitais, pelo contrário, compre-
endemos a importância e a necessidade dessas famílias retornarem ao
lar, e mais do que isso, que essa transição seja planejada, organizada
e respeitosa com o usuário e sua família, e, sobretudo que a garantia
de permanência no domicílio seja segura, efetiva e justa. Precisamos
antes de tudo levantar e debater muitas questões para ter de fato uma
segurança que esse tipo de modalidade de atenção à saúde não onere
o elo mais fraco da relação: a família.

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Notas

1 Assistente social, mestranda em Serviço Social pela Pontifícia Universidade cató-


lica do Rio de Janeiro (PUC/RIO). Atualmente trabalha no Programa de Assistência
Domiciliar Interdisciplinar do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança
e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz). Brasil. ORCID: 0000-0002-
0211-1412. E-mail: bbb.figueiredo@gmail.com

2 Assistente Social, doutora em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio


de Janeiro. Docente do curso de graduação e pós-graduação em Serviço Social
da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RIO). ORCID: 0000-
0003-2672-3672. E-mail: mrbotao@yahoo.com.br

3 É importante destacar algumas considerações sobre as categorias “Atenção Do-


miciliar” e “Assistência Domiciliar”, que são aparentemente semelhantes, mas
com significados distintos. A Atenção Domiciliar aparece enquanto categoria
mais ampla, mais geral, que engloba ações de promoção à saúde, prevenção,
tratamento de doenças e reabilitação desenvolvidas em domicílio; já a Assis-
tência Domiciliar, refere-se ao conjunto de atividades de caráter ambulatorial,
programadas e continuadas desenvolvidas em domicílio (BRASIL, 2006, p. 02).
Logo, partimos do pressuposto que a Assistência Domiciliar se encontra inserida

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na Atenção Domiciliar, ou em outras palavras, as atividades assistenciais realiza-


das no domicílio fazem parte de ações maiores da Atenção Domiciliar.

4 O modelo de atenção ou modelo assistencial é o modo como são produzidas as


ações de saúde e a maneira como os serviços se organizam para produzi-las e
distribuí-las (SILVA et al., 2005).

5 As Redes de Atenção à Saúde (RAS) são arranjos organizativos de ações e servi-


ços de saúde, de diferentes densidades tecnológicas que, integradas por meio de
sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, buscam garantir a integralidade
do cuidado – Portaria nº 4.279, de 30/12/2010 (BRASIL, 2010).

6 Para estudos sobre esta temática, ver: Behring e Boschetti (2011) e Faleiros (1986).

7 A autora cita, como exemplo, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o


Estatuto do Idoso e a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS).

8 Mioto (2003) chama atenção para esta divisão que é apenas para efeito de expo-
sição, considerando que na realidade não existem famílias totalmente autossufi-
cientes ou totalmente dependentes.

9 Nogueira e Monteiro (2013) ainda citam a redução do tempo de internação, den-


tre outras situações que convocam a família à participação no cuidado dos seus
membros, além do fomento a formação de cuidadores de idosos e a implantação
do Programa de Estratégia de Saúde da Família.

10 São as condições de saúde de curso mais ou menos longo ou permanente que


exigem respostas e ações contínuas, proativas e integradas do sistema de aten-
ção à saúde, dos profissionais de saúde e das pessoas usuárias para sua estabili-
zação e controle efetivo, eficiente e com qualidade (MENDES, 2012).

11 Assuntos burocráticos em geral, de cunho socioassistencial ou jurídico.

12 No Brasil, o SUS é organizado por três níveis de atenção: 1) Baixa complexidade


(Atenção Básica ou primária); 2) Média complexidade; e 3) Alta complexidade.

13 Esse familiar na maioria dos casos se expressa na figura feminina (mãe, filha, avó,
vizinha), isso se dá em função da construção histórica e social da divisão sexual,
em que o cuidar é considerado inerente à mulher.

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Homens e Proteção Social: desafios para a

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Política Nacional de Assistência Social

Daniel de Souza Campos1

Ludmila Fontenele Cavalcanti2

Marcos Antonio Ferreira do Nascimento3

Resumo
Este ensaio visa apresentar reflexões sobre os homens na política de proteção social
brasileira. Tomando a Política Nacional de Assistência Social como ponto de partida,
construímos um diálogo entre os estudos sobre relações de gênero, masculinidades
e proteção social. Reconhecemos o papel e importância, historicamente construí-
dos, das mulheres na gestão das famílias. Contudo, pensar os homens como sujeito
da/na política de proteção social constitui um desafio, sendo estratégico enfrentar a
sua (in)visibilidade no acesso aos programas da assistência social.

Palavras-chave
Homens; Masculinidades; Gênero; Proteção Social; Bolsa Família.

Men and Social Protection: challenges for the National Policy of Social Assistance

Abstract
This essay aims to present reflections on men in Brazilian social protection pol-
icy. Taking the National Policy on Social Assistance as a starting point, we built a
dialogue between studies on gender relations, masculinities and social protec-
tion. We recognize the historically constructed role and importance of women in
household management. However, thinking about men as a subject of social pro-
tection policy is a challenge, and it is strategic to face their (in) visibility in access
to social assistance programs.

Keywords
Men; Masculinities; Gender; Social Protection; Cash Transfer Program.

Artigo recebido: agosto de 2018


Artigo aprovado: outubro de 2018

pg 239 - 256 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


240 Daniel de S. Campos, Ludmila F. Cavalcanti e Marcos Antonio F. do Nascimento

Introdução
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No âmbito da assistência social, há um conjunto de programas arti-


culadores de um expressivo contingente de atores e recursos contem-
plando a família. Contudo, esses programas organizam-se a partir de
uma perspectiva pautada em papéis tradicionais, com um direciona-
mento funcional de família, incentivando a reinserção da mulher-mãe
como responsável pelo cuidado e educação dos filhos e do homem-
-pai pelo provimento financeiro e exercício da autoridade familiar.
Essa perspectiva reifica polarizações de modelos relacionados ao
masculino/feminino, público/privado, cuidadora/provedor, em conso-
nância com convenções sociais ditas tradicionais (CARLOTO; MARIA-
NO, 2012). Diante disso, não é surpreendente, portanto, a afirmação de
que as políticas sociais reproduzem, por vezes, um papel de tutela sobre
os sujeitos, estigmatizando e afirmando lugares já conhecidos nas per-
formances de gênero para mulheres e homens. Desta forma, as desi-
gualdades de gênero, classe e raça operam na construção da cidadania,
limitando seu efetivo exercício pelas mulheres e produzindo disparida-
des na forma como mulheres e homens a exercem (PASSOS, 2017).
De acordo com o artigo 2º do Decreto 6.135/2007 (BRASIL, 2007),
o Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) é instrumento
de identificação e caracterização socioeconômica das famílias brasi-
leiras de baixa renda, a ser obrigatoriamente utilizado para seleção de
beneficiários e integração de programas sociais do Governo Federal
voltados ao atendimento desse público. O CadÚnico recomenda que
a pessoa indicada como Responsável pela Unidade Familiar (RF) seja
preferencialmente do sexo feminino. Dessa forma, segundo os dados
do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário, em 2015, 87,3%
dos RF cadastrados eram mulheres. Em dezembro de 2015, 93% das
famílias inscritas nos programas sociais brasileiros eram chefiadas
por mulheres (MDS, 2015).
Assim, é fundamental a reflexão que tal prerrogativa, se por um lado,
busca promover o exercício da cidadania por mulheres em situação de

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 239 - 256


Homens e Proteção Social: desafios para a Política Nacional de Assistência Social 241

vulnerabilidade, por outro, tende a reforçar o papel feminino tradicio-

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nal de cuidadora da família, tendo sob sua responsabilidade as seguin-
tes tarefas, dentre outras: a) realização de CadÚnico para inclusão da
família no programa; b) atualização do referido cadastro sempre que
ocorrer alguma modificação na situação familiar; c) recebimento do
recurso repassado pelo programa; d) aplicação do recurso de modo
a beneficiar coletivamente o arranjo familiar; e) cuidado das crianças
e adolescentes tendo em vista o cumprimento das condicionalidades
do programa; e f) participação em reuniões e demais atividades pro-
gramadas pela equipe de profissionais responsáveis pela execução e
acompanhamento do programa.
Não é por casualidade que o grupo que tem menor percentual de RF
femininos (apenas 11,6%) são as famílias compostas por pessoas em si-
tuação de rua, pois esse é um grupo majoritariamente masculino e com
famílias unipessoais. Também é significativo o número de homens como
RF entre as famílias acampadas, chegando a 40,1% do total (BRASIL,
2016). Dito de outro modo, os homens em situação de vulnerabilidade
social e reconhecidos como sujeitos de direitos para a Política Nacional
de Assistência Social (PNAS) são aqueles que ocupam e transitam pelo
espaço público, arena tradicionalmente atrelada aos homens e ao exer-
cício da masculinidade (NASCIMENTO; SEGUNDO, 2011).
Dessa forma, pensar sobre o lugar dos homens nas ações da PNAS
significa questionar sobre quem seria o sujeito alvo da assistência, já
que a Política, ao designar os sujeitos que necessitam de atenção, de-
marca quem são aqueles reconhecidos como vulneráveis e que serão
considerados prioritários para os serviços e benefícios.
Se por um lado, não se pode deixar de reconhecer as diversas si-
tuações de vulnerabilidade a que as mulheres estão expostas, como
mostram os dados de inúmeros estudos (ALVES; CORRÊA, 2009; PIN-
TO et al., 2011; ZANCAN; WASSERMANN; LIMA, 2013; MARGUTI et al.,
2016), por outro, cabe perguntar o que acontece com os homens. No
âmbito da proteção social, percebe-se que os homens passam a ser

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considerados como sujeitos com menor vulnerabilidade social, usu-


almente vistos como algozes no interior das relações de gênero, não
sendo reconhecidos como sujeitos de direitos e com necessidade de
proteção assim como as mulheres, crianças, adolescentes, idosos e
pessoas com deficiência (DETONI; NARDI, 2012).
Assim, este texto busca problematizar o lugar dos homens na polí-
tica de proteção social brasileira, a partir dos seguintes eixos: relações
de gênero, masculinidades e proteção social. Destaca-se a reflexão
sobre o acesso dos homens ao Programa Bolsa Família (PBF), visto que
o seu foco reside na díade mãe-filhos e no não reconhecimento dos
homens como possíveis sujeitos de direitos.
Isso leva, necessariamente, a reconhecer as tensões e conflitos pre-
sentes no debate teórico-metodológico produzido pelo Serviço So-
cial contemporâneo a respeito do enfoque puramente instrumental
do papel das mulheres e do lugar de destaque da família como foco
privilegiado e um dos principais pilares de sustentação nas políticas
compensatórias de combate à pobreza (GASPAROTTO; GROSSI, 2017).
Nessa direção, a perspectiva relacional de gênero auxilia a compreen-
der a produção e manutenção das hierarquias e assimetrias sociais que
afetam mulheres e homens, com destaque para o lugar das mulheres na
organização social, levando em consideração ainda as expectativas so-
ciais sobre ambos e os marcadores sociais da diferença (COSTA, 2002).

Homens e Masculinidades: um breve panorama


A masculinidade se relaciona a um conjunto de atributos, valores
e condutas que estruturam o significado de ser homem, variando ao
longo do tempo, das classes, dos segmentos sociais, contextos so-
ciais, culturais, políticos e econômicos (CONNELL, 1987; 1995; OLIVEI-
RA, 2004; GOMES, 2008).
A concepção de Raewyn Connell (1987; 1995), socióloga australiana,
sobre masculinidade hegemônica – ancorada no conceito de hegemonia
de Gramsci – é uma importante referência nos estudos sobre masculi-
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nidade. Segundo a autora, a masculinidade hegemônica é definida com

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base na configuração de práticas generificadas que expressam padrões
de comportamento esperados, de acordo com convenções e expectati-
vas sociais vigentes, em dado contexto cultural, para que sejam assegu-
radas a posição dominante dos homens e a subordinada das mulheres.
Este conceito não se refere necessariamente a pessoas reconhe-
cidamente “mais poderosas”, mas a uma configuração de masculi-
nidade tida como exemplar, expressando ideais, fantasias e desejos
que fornecem modelos de relações com as mulheres e com os outros
homens. Contudo, não se trata de um modelo fixo e permanente ao
longo da história. Como aspecto de uma estrutura social mais ampla,
a masculinidade hegemônica não pode ser compreendida isolada de
outros marcadores da diferença como classe, cor/raça, idade, orien-
tação sexual, entre outros.
Dessa maneira, mais recentemente, a perspectiva da intersecciona-
lidade tem sido acionada com o objetivo de analisar as distintas formas
de diferenciações sociais e desigualdades a partir da coexistência de
marcadores da diferença que favorecem a opressão, a discriminação e
a exclusão social de mulheres e homens (CRENSHAW, 2001).
Ainda segundo Connell (1995), a masculinidade hegemônica remete
a uma posição de distinção cultural e social para os homens, mas não
necessariamente universal, uma vez que outras formas de ser homem
são produzidas em função desse modelo. Dessa maneira, homens po-
bres, negros ou homossexuais, em consonância com a dimensão de
gênero, ocupam posições sociais subalternas e, portanto, distantes do
ideal do modelo de masculinidade hegemônica de homens de classe
média, brancos e, sobretudo, heterossexuais.
Modelos de masculinidade que valorizam demonstrações de cora-
gem e de força, a ocupação do espaço público, distante da cultura do
cuidado, incluindo o cuidado de si (FOUCAULT, 2006), tendem a fazer
com que os homens se exponham mais a riscos, comprometendo sua
saúde e a dos demais. Homens atrelados a esses modelos tendem a

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buscar menos os cuidados em saúde e tem pouca participação na es-


fera reprodutiva. Além disso, são os principais autores e vítimas de atos
violentos, fazendo com que, juntamente com os acidentes de trânsito,
sejam as principais causas de mortalidade masculina (GOMES, 2016).
Ao resgatar a trajetória do gênero como ferramenta analítica das re-
lações sociais, nota-se que este conceito se apoia nos posicionamentos
críticos referentes ao lugar das mulheres na sociedade (SCOTT, 1990;
HEILBORN; SORJ, 1999). O debate sobre gênero não somente dá sig-
nificado às diferenças entre os sexos e as relações desiguais de poder
decorrentes, mas igualmente ilumina as dinâmicas sociais presentes no
processo de socialização de meninos e meninas, mostrando que a aqui-
sição da compreensão sobre o que significa ser homem ou ser mulher é
socialmente construída e que a atuação da família, da comunidade, da
escola, da religião, entre outras instituições sociais, é fundamental.
Portanto, esses construtos ao longo da vida social vão produzir
subjetividades, orientar o exercício da sexualidade, o manejo dos afe-
tos, a opção do vestuário mais adequado, a escolha profissional e a
divisão sexual do trabalho. Homens e mulheres vão paulatinamente
construindo a sua identidade social e produzindo maneiras pelas quais
vão se apresentar socialmente, tanto na esfera privada, quanto pública
(SCOTT, 1990; GOMES, 2008).
Trabalhar com a perspectiva de gênero possibilita ainda que se con-
siderem as condições que caracterizam as construções sociais acerca
dos sexos, se configurando como uma forma mais abrangente e crítica
de abordar as relações entre homens e mulheres, entre homens e en-
tre mulheres (GOMES, 2008).
Tomando como exemplo a relação dos homens com o campo da saú-
de, as discussões acerca das relações entre masculinidades e os serviços
de saúde têm mostrado que por muito tempo os serviços de atenção bá-
sica focaram sua atuação nas mães e nas crianças e, somente a partir da
crítica dos movimentos de mulheres, a saúde feminina começou a ser
encarada de maneira integral, não se resumindo à saúde reprodutiva e no

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cuidado com os outros. O Programa de Atenção Integral à Saúde da Mu-

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lher (PAISM), de 1993, institucionalizou essa perspectiva mais global que
abrange todas as fases do ciclo vital feminino (COUTO; GOMES, 2012).
Já no que diz respeito aos homens, somente em 2009, o Ministério
da Saúde lançou uma política específica para esse segmento social – a
Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH). A
resistência dos homens a buscar os serviços de saúde, principalmente
os serviços da atenção básica, pode ser compreendida a partir das no-
ções tradicionais de que as mulheres são mais frágeis, de que a saúde
da mulher é mais complicada, de que o cuidado é uma tarefa feminina,
de invulnerabilidade masculina ao adoecimento e de superioridade
da força física masculina em relação às mulheres (SCHRAIBER et al.,
2010). Essas noções tradicionais engendraram a histórica priorização
das mulheres e crianças pelos serviços de saúde (MOURA et al., 2014).
À luz da PNAISH, questiona-se quais são as estratégias desenvolvi-
das no âmbito da proteção social básica e especial da PNAS que não
reforcem a ideia do cuidado como um atributo feminino e tarefa das
mulheres e do homem como um sujeito invulnerável.
Compreender o envolvimento dos homens nas ações da PNAS a
partir da perspectiva relacional de gênero significa, dentre outros as-
pectos, analisar essa temática nas relações estruturadas e estruturan-
tes estabelecidas entre homens e mulheres, que ancoram tanto a defi-
nição/exercício de papéis sociais como a construção/reconstrução de
identidades (MOREIRA; GOMES; RIBEIRO, 2016). Nesse sentido, os e as
profissionais da assistência social desempenham (ou podem desem-
penhar) um papel estratégico na conquista da presença masculina nos
serviços e programas, no apoio às decisões relativas às suas vulnera-
bilidades e de quem com eles convive.

Homens, masculinidades e a proteção social: uma inserção possível?


Com a Constituição Federal de 1988, a assistência social ganha status
de política pública de Estado, destinada aos que dela necessitarem (art.
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203 e 204). Em 1993, a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) regula-


menta os artigos constitucionais, mas diante do recrudescimento neoli-
beral as mudanças receberam adensamento apenas nos anos 2000 com
a organização da assistência social sob a forma de Sistema Único (SUAS).
Com a instituição do SUAS, várias alterações foram introduzi-
das na Política de Assistência Social, dentre elas, a sua organização
em diferentes níveis de proteção social, conforme definido no Art.
6º- A da Lei Nº 8.742/1993, com alterações introduzidas pela Lei Nº
12.435/2011 (BRASIL, 2011).
A proteção social básica tem por objetivo prevenir situações de ris-
co por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições e o
fortalecimento de vínculos familiares e comunitários e, nesse sentido,
destina-se à população que vive em situação de vulnerabilidade so-
cial decorrente da pobreza e privação e/ou fragilização de vínculos
afetivos relacionais e de pertencimento social (discriminações etárias,
étnicas, de gênero ou por deficiência, dentre outras). A característica
principal dos serviços da proteção social básica é o de se destinar a
sujeitos cujos vínculos familiares/afetivos e sociais-comunitários não
estejam rompidos. Logo, a proteção social básica associa-se direta-
mente à prevenção (BRASIL, 2004). São nos Centros de Referência de
Assistência Social (CRAS) que estes serviços são operacionalizados.
Já a proteção social especial se subdivide em média complexi-
dade e alta complexidade. Esta é operacionalizada nos Centros de
Referência Especializados de Assistência Social (CREAS). Na média
complexidade são atendidas famílias e indivíduos com seus direi-
tos violados, mas cujos vínculos familiares e comunitários não foram
rompidos. Estão inseridos neste nível de proteção os seguintes ser-
viços: serviços de orientação e apoio sociofamiliar, plantão social,
abordagem de rua, cuidados no domicílio, serviço de habilitação e
reabilitação na comunidade das pessoas com deficiência, medidas
socioeducativas em meio aberto (Prestação de Serviços a Comuni-
dade e Liberdade Assistida). Por sua vez, a alta complexidade busca

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garantir serviços de proteção social integral (moradia; alimentação;

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higienização e trabalho protegido) para famílias e indivíduos que se
encontram sem referência ou em situação de ameaça, necessitan-
do serem retirados do seu núcleo familiar ou comunitário por terem
tido os seus direitos violados e os vínculos familiares e comunitários
rompidos. Os serviços pertinentes a esta proteção são Atendimento
Integral Institucional, Casa Lar, República, Casa de Passagem, Alber-
gue, Família Substituta, Família Acolhedora, Medidas Socioeducati-
vas Restritivas e Privativas de Liberdade (semiliberdade, internação
provisória e sentenciada), Trabalho Protegido.
Ao preconizar a família como núcleo central na operacionalização
da PNAS, atribui-se à mulher-mãe a responsabilidade tradicional do
cuidado e do cumprimento dos critérios dos programas sociais exis-
tentes. E pouco tem sido feito para superar o esvaziamento da presen-
ça masculina nos serviços da rede socioassistencial, a exemplo do PBF.
No contexto da América Latina, com enfoque no debate sobre gê-
nero, pobreza e desenvolvimento, observa-se, desde o início dos anos
90 do século passado, uma proliferação de políticas de transferência
de renda, erigida em cenário que prioriza a mulher como titular de be-
nefício para o enfrentamento da pobreza.
No caso específico do Brasil, o PBF teve início em 2003, no primeiro
governo Lula, e incorporou algumas políticas de transferência de ren-
da já existentes no governo Fernando Henrique Cardoso, que tinham,
no entanto, baixa cobertura. Em pouco tempo tornou-se o maior pro-
grama de combate à pobreza no Brasil e um dos maiores do mundo;
até agosto de 2018 atendia 14 milhões de famílias.
Em seu plano, o PBF apresenta basicamente dois objetivos: o alívio
imediato da pobreza, por meio da transferência direta de renda condi-
cionada para famílias pobres, priorizando as mulheres como respon-
sáveis pelo benefício; e o exercício de direitos sociais básicos relacio-
nados à saúde e à educação, com a finalidade de romper com o ciclo
intergeracional de reprodução da pobreza.

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Embora o PBF não se configure como uma política de afirmação


racial, segundo os dados de MDS, em 2013, 73% dos beneficiários ca-
dastrados eram pretos e pardos. Em dezembro de 2014, 93% de todas
as famílias inscritas nos programas sociais brasileiros eram chefiadas
por mulheres, e entre estas, 68% eram lideradas por mulheres negras.
A presença mais notável de mulheres negras entre as pessoas po-
bres é reflexo de um processo histórico de (re)produção de desigual-
dades sociais, cujos eixos estruturantes são os marcadores de gênero
e raça/etnia que orientam a construção da cidadania e a efetivação de
direitos. Portanto, sexo e cor são também definidores das desigualda-
des econômicas e sociais.
No município do Rio de Janeiro, segundo informações do MDS
(MDS, 2018), o PBF beneficiou, no mês de julho de 2018, 247.037 fa-
mílias, representando uma cobertura de 84,2 % da estimativa de fa-
mílias pobres no município. As famílias receberam benefícios com
valor médio de R$ 170,88. É interessante assinalar que, para além
do número de famílias e grupos tradicionais e específicos presentes
no CadÚnico, observa-se que o MDS não disponibiliza informações
sobre o número de homens como RF.
O silêncio sobre esses homens que se encontram em situação de
vulnerabilidade social pode reforçar traços impostos pelo padrão cultu-
ral hegemônico que demarcam concepções referentes à masculinidade
(os homens não são confiáveis, não se responsabilizam pelo cuidado
com a família e não sabem gerenciar o recurso oferecido pelo programa
em prol da satisfação familiar). Em outras palavras, é imprescindível re-
conhecer a dimensão relacional do gênero que possibilita desconstruir,
principalmente, argumentos culpabilizantes sobre o masculino que de-
marcam o discurso de parte das discussões em torno das relações de
gênero e que ainda se faz presente, direta ou indiretamente, nas produ-
ções acadêmicas (PORTELLA; MEDRADO; MELO; SOUZA, 2004).
No estudo de Carloto e Mariano (2012) foram analisadas as per-
cepções das beneficiárias do PBF sobre o porquê elas são eleitas res-

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ponsáveis pelo recebimento do benefício. As autoras constataram que

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para a maioria das entrevistadas, em comparação com os homens,
as mulheres eram percebidas como mais responsáveis e administra-
vam melhor o recurso. Esse tipo de posicionamento dá margem a duas
perspectivas de análise: se por um lado, há uma priorização feminina
para o recebimento do benefício, sobretudo porque atribui às mulhe-
res o cumprimento das responsabilidades ligadas à função do cuidar;
por outro lado, há uma reificação da noção do homem como irrespon-
sável e uma desqualificação dos homens como sujeitos cuidadores.
A noção da irresponsabilidade masculina frente à reprodução, ao
cuidado com os filhos e filhas, ao cuidado com a família e com o traba-
lho doméstico têm sido objeto de análise por diferentes estudos como
os de Arilha (1998), Barker e Aguayo (2012), Ávila e Ferreira (2014).
Nesse sentido, sem recorrer a um discurso vitimário que, como
aponta Oliveira (2004), coloca os homens na posição de “vítimas” do
próprio machismo e de sua condição histórica de gênero, na qualida-
de de homem provedor e do espaço público, é necessário repensar
a participação masculina na esfera do cuidado, por meio de práticas,
símbolos e instituições, como apontam Medrado e Lyra (2008). Con-
forme Passos (2017), as políticas públicas têm fundamental importân-
cia na promoção das mudanças culturais em prol da equidade e igual-
dade de gênero.
De acordo com a Portaria GM/MDS Nº 251, de 12 de dezembro de
2012, as condicionalidades do PBF:
Visam a ampliar o acesso das famílias às políticas de saúde,
educação e assistência social, promovendo a melhoria das
condições de vida da população beneficiária, assim como a
fortalecer a capacidade de o Poder Público oferecer tais servi-
ços. (BRASIL, 2012, p.01).

Vale mencionar que o manual de orientação sobre o PBF na saú-


de, no que se refere às condicionalidades, explica que as gestantes
devem fazer a inscrição do pré-natal e comparecer às consultas; as
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mães ou responsável pelas crianças menores de 7 anos devem levar


a criança à unidade de saúde para realização do acompanhamento do
crescimento e do desenvolvimento; participar de atividades educati-
vas sobre o aleitamento materno e cuidados gerais com a alimentação
e saúde da criança e, cumprir o calendário de vacinação da criança, de
acordo com o preconizado pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 2010).
Em relação à contrapartida educacional, deve ser feita a matrícula
de crianças e adolescentes de 6 a 17 anos na escola e deve-se garantir
a frequência escolar de pelo menos 85% do ano letivo para crianças e
adolescentes entre 6 e 15 anos. Para os jovens entre 16 e 17 anos, exi-
ge-se a frequência às aulas de no mínimo 75% do ano letivo.
Entende-se que se faz necessário compreender as condicionalida-
des da assistência pré-natal e de saúde das crianças como um possí-
vel espaço para que os homens não só apoiem as suas companheiras
na gravidez e parto, mas também cuidem de sua saúde e vivenciem
a espera de um filho. Entretanto, o documento não indica ações que
envolvam os homens na promoção dessa assistência.
Vale destacar o estudo realizado por Marins (2017), em Itaboraí,
município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, em que a au-
tora apresenta duas possíveis explicações sobre por que os homens
tendem a se afastar da gestão do recurso do PBF. Por um lado, eles
acreditam que seria uma humilhação receber um dinheiro que não foi
por eles solicitado; reconhecê-lo ou gerenciá-lo poderia ser compre-
endido como a constatação simbólica de seu fracasso como prove-
dor financeiro, incapaz de sustentar sua família. Por outro lado, parece
que o recurso tem uma perspectiva “materno sagrado” (MARINS, 2017,
p.208), que afasta qualquer possibilidade de gestão compartilhada.
Logo, para os homens, o recurso é percebido como intocável, pois
cabe à mulher participar das condicionalidades referentes à educação
e à saúde das crianças e dos adolescentes inseridos no programa.
Nessa mesma perspectiva, o relatório do Observatório da Igual-
dade de Gênero da América Latina e Caribe enfatiza que os progra-

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mas de transferência de renda condicionada, ao indicarem a mulhe-

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res como principais responsáveis, acabam por reificar o tradicional
papel social da mulher como cuidadora. Embora o relatório reconhe-
ça que não é o objetivo desses programas modificar os papéis tradi-
cionais de gênero, propõe que os programas não devam reforçá-los,
mas sim contribuir para a corresponsabilização do cuidado entre ho-
mens e mulheres (CEPAL, 2013).
O estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais
e Econômicas (IBASE, 2008), com os beneficiários do PBF do País,
constatou que os homens possuem escolaridade menor do que as
mulheres. Entres os homens titulares do PBF 30,2% não sabiam ler
ou escrever, enquanto 17,7% das mulheres titulares eram analfabe-
tas. A pesquisa apontou que os homens tinham mais inserção no
mercado de trabalho (77,4%) do que as mulheres (41,4%). No entan-
to, nos domicílios em que o homem era o titular 33,9% apresenta-
ram renda per capita inferior a R$ 60,00 reais, enquanto 28,9% as
titulares eram mulheres. Assim, a pesquisa concluiu que: “os titu-
lares do PBF do sexo masculino são tão ou mais vulneráveis que as
mulheres titulares, ao menos no que diz respeito à renda e a esco-
laridade” (IBASE, 2008, p. 137).
Os dados reunidos pelas pesquisas ilustram de forma significativa
questões que tangenciam relações entre homens, masculinidades e a
titularidade do PBF. Tais dados podem servir de material empírico para
discutir a inviabilidade dos homens no PBF a partir de uma perspecti-
va de gênero. Entretanto, para que seja possível travar esse debate, é
preciso, entre outras coisas, avançar nos estudos sobre especificida-
des da vulnerabilidade social masculina no acesso à renda, ao traba-
lho, à educação, à saúde.

Conclusão
Os questionamentos aqui levantados são pontos de partida para
alavancar o debate sobre homens e masculinidades na PNAS e, em
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particular, no PBF. Essa reflexão vem ao encontro da discussão que


envolve o entrelaçamento das categorias homens, masculinidades e
ações dos serviços socioassistenciais.
Nessa direção, falar sobre a invisibilidade dos homens no PBF pode
ser vista como uma volta à hegemonia do masculino sobre o feminino,
configurando-se como movimento antifeminista. Entretanto, propõe-
-se que sejam abordadas as especificidades da masculinidade no PBF
para que, junto com as mulheres, se construa uma concepção abran-
gente, voltada para a promoção da visibilidade masculina a partir de
uma perspectiva relacional de gênero.
De igual maneira, perceber os homens como sujeitos de direitos, e
não somente como sujeitos de privilégios (de gênero), não implica o
desconhecimento e a negação das assimetrias entre homens e mulhe-
res no contexto social atual, mas apostar na pluralidade das masculi-
nidades, na promoção da equidade e igualdade de gênero e na direção
de um mundo mais justo e democrático.
Para trazer à tona esse debate, é indispensável colocar na ordem
do dia a análise crítica da PNAS e do PBF, em volta do qual se ar-
ticulam os significados sociais da masculinidade e da feminilidade
que influenciam diretamente quem serão os sujeitos atendidos pelas
ações socioassistenciais.

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pg 239 - 256 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


256 Daniel de S. Campos, Ludmila F. Cavalcanti e Marcos Antonio F. do Nascimento

Notas
ISSN: 2238-9091 (Online)

1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Escola de Ser-


viço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ/ESS). Brasil. ORCID:
0000-0002-8937-7474. E-mail: daniel.ufano@gmail.com.

2 Doutora em Ciências. Docente do Programa de Pós-Graduação em Serviço So-


cial, Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ/ESS).
Brasil. ORCID: 0000-0001-8236-0330. E-mail: ludmila.ufrj@gmail.com.

3 Doutor em Saúde Coletiva. Docente do Programa de Pós-Graduação em Saúde


da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz). Brasil.
ORCID: 0000-0002-3363-4232. E-mail: marcos.nascimento@iff.fiocruz.br.

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Entre o direito e o dever: uma reflexão sobre

ISSN: 2238-9091 (Online)


a exigência de condicionalidades no Programa
Bolsa Família

Cássia Maria Carloto1

Tatiana de Oliveira Stechi2

Resumo
A proposta deste artigo é debater como as condicionalidades do Programa Bolsa
Família (PBF) vêm sendo entendidas e administradas pelos técnicos, beneficiários
e representantes das políticas de educação, saúde e assistência social. Os dados
que embasam essa análise são de uma pesquisa realizada num município de grande
porte do Paraná. Os sujeitos da pesquisa foram sete assistentes sociais e psicólo-
gos, na modalidade de técnicos que foram escolhidos por serem responsáveis pelo
acompanhamento às famílias em descumprimento de condicionalidade dentro do
Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), três profissionais representantes
no município pelas políticas de saúde, educação e assistência social e oito benefi-
ciários do PBF em descumprimento de condicionalidade no ano de 2013 moradores
no território do CRAS. A escolha do CRAS e dos beneficiários se deu por sorteio. Esta
pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética da Universidade Estadual de Londrina
(UEL) como preconiza a resolução n.196/1996. A conclusão indicou: a perspectiva
familista; a meritocracia; direito e dever como sendo sinônimos; estigmatização e
preconceito sofridos pelo(a) beneficiário(a) do PBF.

Palavras-chave
Programa Bolsa Família; Condicionalidades; Direitos.

Between right and duty: a reflection on conditionalities requirement in Bag Family


Program

Abstract
This article discusses how the conditionalities of the Bolsa Família Program (BFP) are
understood and administered by technicians, beneficiaries and representatives of
education, health and social assistance policies. The research was conducted in a
large city of the Paraná Estate. Seven social workers and psychologists were inter-
viewed in the category of technicians responsible for monitoring families in non-
compliance with conditionalities within the Reference Center on Social Assistance

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258 Cássia Maria Carloto e Tatiana de Oliveira Stechi

(CRAS), three health, education and social assistance professionals. And eight ben-
eficiaries of the program who are in disregard of conditionalities in the year 2013,
residents of the territory of CRAS. The choice of CRAS and the beneficiaries was by
lot. This research was approved by the ethics committee of the State University of
Londrina (UEL) as recommended by resolution n.196/1996. The conclusion indicated:
the familistic perspective; meritocracy; right and duty as being synonymous; stigma-
tization and prejudice suffered by the beneficiary (a) of the BFP.

Keywords
Bolsa Família Social Programa; Requirements; Rights.

Artigo recebido: agosto de 2018


Artigo aprovado: outubro de 2018

Introdução
O Programa Bolsa Família (PBF) foi criado no governo Lula por
meio da Medida Provisória nº 132 de 20 de outubro de 2003, após
a unificação de programas remanescentes como o Cartão Alimenta-
ção, Bolsa Escola e Auxílio Gás. O Programa Fome Zero foi incorpo-
rado a ele, após a constituição da Lei nº 10.836 de 09 de janeiro de
2004. O Decreto nº 5.209 de 17 de setembro de 2004 esclarece que
a finalidade do programa seria unificar os procedimentos de admi-
nistração e execução de ações de transferência de renda, e cadastra-
mento único do governo federal. O PBF introduziu grandes avanços
no que diz respeito ao direito à renda às famílias que se encontravam
em situação de pobreza e extrema pobreza.
A forma de ingressar no PBF é por meio de auto declaração de
renda, não sendo destinado a todos os que atendam os critérios de
elegibilidade monetária, dependendo para tanto da quantidade de
cotas municipais.
Para Cobo (2012) a noção de cota existente no programa não pos-
sibilita a todos que atendam os critérios de elegibilidades estabeleci-
dos pelo programa a contemplação com o benefício, ferindo o próprio
princípio da focalização utilizado no programa. Para a autora não basta
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Entre o direito e o dever: uma reflexão sobre a exigência de condicionalidades ... 259

ser pobre e atender o limite de renda de entrada no sistema, “tem que

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ter tido a ‘sorte’ ou ter sido capaz de chegar primeiro na ‘fila’. A inefici-
ência horizontal é, portanto, inerente ao sistema de focalização brasi-
leiro” (COBO, 2012, p. 211).
Para as famílias receberem o benefício de transferência de renda
devem cumprir com uma agenda de compromissos, denominadas
pelo programa de condicionalidades, no campo da saúde, educação e
assistência social. O Ministério de Desenvolvimento Social e Combate
à Fome (MDS, 2014) define as condicionalidades como compromissos
assumidos pelos beneficiários, assim como pelo poder público, a fim
de ampliar o acesso dessas famílias aos seus direitos sociais básicos.
Os beneficiários assumem o compromisso em cumpri-las enquanto o
poder público é responsabilizado pela oferta de serviços públicos de
saúde, educação e assistência social.
As contrapartidas para o recebimento do benefício do PBF são as
seguintes: exame pré-natal; acompanhamento nutricional e acom-
panhamento de saúde para as crianças menores de sete anos e de
mulheres até a idade de 44 anos; frequência escolar de 85% em esta-
belecimento de ensino regular para crianças e adolescentes de seis a
quinze anos e de 75% para os adolescentes de dezesseis e dezessete
anos; acompanhamento da frequência mínima de 85% das crianças
até 15 anos, em risco ou retiradas do trabalho infantil, nos Serviços de
Convivência e Fortalecimento de Vínculos3 (MDS, 2014).
O Guia para Acompanhamento das Condicionalidades (MDS, 2010)
as define da seguinte forma:

As condicionalidades do Programa Bolsa Família foram formula-


das como um mecanismo para reforçar o exercício, pelos brasi-
leiros mais pobres, de direitos básicos como o acesso aos ser-
viços de saúde, educação e assistência social, contribuindo para
romper o ciclo intergeracional da pobreza. O pressuposto é o
de que filhos que têm acesso a melhores condições de saúde,
educação e convivência familiar e comunitária do que seus pais

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260 Cássia Maria Carloto e Tatiana de Oliveira Stechi

tiveram, têm também aumentadas suas oportunidades de de-


senvolvimento social. Em outras palavras, as chances de terem
uma vida melhor que a de seus pais são ampliadas. O principal
objetivo das condicionalidades é, portanto, a elevação do grau
de efetivação dos direitos sociais dos beneficiários por meio do
acesso aos serviços básicos. (MDS, 2010, p.09).

A definição utilizada pelo programa já demonstra que as famílias


beneficiárias – as que se encontram em situação de pobreza – não
seriam capazes por si só de acessar as políticas de saúde e educação,
necessitando que as mesmas sejam reforçadas por meio de condi-
cionalidades. Vale ressaltar que, as famílias que não cumprirem ini-
cialmente com as contrapartidas de saúde e educação receberá uma
advertência; na segunda vez terá o benefício bloqueado por 30 dias; e
se permanecerem no descumprimento terá o benefício suspenso por
60 dias e posterior cancelamento, caso as situações persistam.
De acordo com o MDS (2014) a família que se encontrar em des-
cumprimento de condicionalidade receberá uma notificação que
pode tanto ser por correspondência escrita ou pela mensagem do
extrato bancário de benefícios. Caso a família considere que houve
erro na informação do acompanhamento das condicionalidades, ou
que o descumprimento ocorreu por motivo justificável, o responsá-
vel familiar pode apresentar recurso ao gestor municipal. No recurso,
a família poderá explicar o erro da informação ou o motivo do des-
cumprimento, bem como solicitar que o efeito do descumprimento
no benefício seja revisto. Caberá ao gestor municipal avaliar os re-
cursos apresentados pela família. No caso de deferimento, o efeito
será retirado do histórico da mesma.
Vale ressaltar que no caso de descumprimento de condicionalidade
dos filhos adolescentes em idade de 16 e 17 anos, somente o benefício
do jovem será bloqueado/cancelado não tendo impacto no restante
do valor recebido pela família. Dessa forma, as sanções são apenas
três: advertência, primeira suspensão e cancelamento.
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Em caso de cancelamento do benefício do PBF por descumprimen-

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to de condicionalidade a família só poderá retornar a receber depois
do prazo de 180 dias após o cancelamento do benefício, apenas caso
mantenham as condições de elegibilidade para ingresso no programa,
considerando-se ainda que o município tenha dotação orçamentária
para repasse de novos benefícios.
Neste caso, o MDS (2014) orienta que o poder público deve es-
tar atento aos motivos que levam as famílias ao não cumprimento de
condicionalidades, a fim de implementar ações de acompanhamento
aos beneficiários de maior vulnerabilidade social com objetivo de au-
xiliar na superação das mesmas. Quando esgotadas as possibilidades
em reverter o descumprimento de condicionalidade pelo acompa-
nhamento, a família poderá ter o benefício cancelado.
Considerando as discussões sobre as condicionalidades, a propos-
ta é analisar e compreender como a exigência de contrapartidas tem
sido entendida e administrada pelos beneficiários e profissionais, arti-
culando as discussões com autores que abordam esta temática.

Pobreza X Neoliberalismo
O combate à pobreza ganhou visibilidade na América Latina nos
anos 1990 e seu enfrentamento caracterizou-se pela sua individuali-
zação. As políticas sociais, nesse contexto, tiveram o papel de inserir
os pobres no padrão de sociabilidade contemporâneo, gerando pro-
teção individual, focando a intervenção nos mais pobres, esvazian-
do o comprometimento com os direitos sociais e deixando de lado o
compromisso com o padrão de sistema de proteção social universal
(MAURIEL, 1998).
Neste aspecto Telles (1994) assevera:
A reestruturação industrial, as mudanças no padrão tecnológico
e transformações na composição do mercado vêm produzindo
um novo tipo de exclusão social, em que à integração precária
no mercado se sobrepõem o bloqueio de perspectivas de futuro

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262 Cássia Maria Carloto e Tatiana de Oliveira Stechi

e a perda de um sentido de pertinência à vida social. É isso que


caracteriza a nova pobreza que escapa às soluções conhecidas
e formuladas nos termos de políticas distributivas e compensa-
tórias, pois esta tem por suposto exatamente o que parece estar
deixando de ser plausível, ou seja, a possibilidade de uma inte-
gração constante no mercado de trabalho. (TELLES, 1994, p. 98).

No contexto neoliberal, conforme orientações dos organismos in-


ternacionais, a pobreza tem sido reduzida à ausência de renda. Con-
cordamos, no entanto, com Arriagada (2005) que a compreende de
forma multidimensional, relacionando-a com vulnerabilidades, de-
sigualdades, marginalidade e exclusão4 cujo enfrentamento deve ser
movido por mudanças estruturais.
Considerando-se que o foco passou das estruturas para o indiví-
duo, a pobreza passou, portanto, a ser entendida de acordo com a de-
finição de Mauriel (1998) como um conjunto de carências individuais.
O problema é direcionado para o indivíduo e não mais ao modo como
o Estado capitalista se organiza. Teixeira (2010) aponta essas carências
individuais como um direcionamento dado pelo Banco Mundial que,
responsabiliza os próprios pobres pela sua condição apontando alter-
nativas apenas para ajudá-los a romper com o ciclo vicioso da pobre-
za. Esta concepção está baseada na responsabilização do indivíduo na
busca por alternativas de superação de suas condições.
Para Mauriel (1998) as configurações no âmbito da proteção so-
cial deveriam partir de uma estratégia mais ampla, em que o Esta-
do teria papel central por compreender as causas provenientes da
estrutura no combate à pobreza. Porém, as orientações a partir da
década de 1990 optaram por combater a pobreza focando no indi-
víduo e não na estrutura. Em outras palavras, a autora revela que a
universalidade que deveria ser o fundamento do direito, tem sido
substituída pela focalização nos comprovadamente mais pobres,
ou seja, os mesmos devem comprovar sua pobreza para ter acesso
a um direito que deveria ter caráter universal.
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Na visão de Cobo (2012) um sistema de proteção social deveria

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se direcionar a toda a população, seja ela rica ou pobre, tendo como
finalidade a garantia de seus padrões dignos de vida, até mesmo das
interrupções que possam incidir sobre a vida da família. A Constitui-
ção brasileira de 1988 trouxe o anseio pela construção de um sistema
de proteção social abrangente, projetando perspectivas de mudan-
ças e a possibilidade de criação de um sistema de proteção social
ampliado que contemplasse a universalização do acesso e a respon-
sabilidade do Estado, concretizando direitos até então inexistentes
no campo da educação, assistência, saúde, previdência, habitação,
segurança e trabalho.

A exigência de condicionalidades do Programa Bolsa Família


A exigência de condicionalidades em programas de transferência de
renda não é consensual entre os que defendem um sistema de prote-
ção social não mercadorizável e de acesso universal. Provoca também
questionamentos sobre a sua legitimidade na garantia de acesso aos
direitos básicos e no compromisso afirmado pelo PBF de rompimento
em longo prazo do ciclo intergeracional da pobreza.
De acordo com Soares e Sátyro (2010), há autores que veem o PBF
como um programa de incentivo ao capital humano das famílias mais
pobres, com ênfase no caráter condicionado. Existe outra vertente,
para qual o programa é, antes de tudo, proteção social. Quando se
coloca contrapartidas, a função de proteção social se enfraquece,
pois, provavelmente, as famílias mais vulneráveis serão as que não
conseguirão cumprir as exigências.
O capital humano do indivíduo se refere ao conhecimento e ha-
bilidade acrescida de outras características pessoais capazes de in-
crementar sua produção social e econômica. Um exemplo é a edu-
cação. Quanto mais estudo adquirir, melhor será o capital humano,
visto que terá melhores possibilidades de ingressar no mercado de
trabalho (SEN, 1998).
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264 Cássia Maria Carloto e Tatiana de Oliveira Stechi

Mauriel (1998) desenvolve uma interessante abordagem crítica


sobre a adoção da concepção de capital humano nos programas de
combate à pobreza implementados na América Latina a partir do re-
ceituário neoliberal. A partir da teoria de Amartya Sen o Banco Mundial
vai prescrever uma série de recomendações para atacar a pobreza.
O foco vai ser a família tomada como um ente individual e o próprio
indivíduo tratando a pobreza como experiência individual. A pobreza
vai ser tratada como um conjunto de carências individuais a partir de
características pessoais e padrão de comportamento dos pobres e o
indivíduo vai ser entendido a partir de sua capacidade de ação.
Ao sair da dimensão da renda (do ter), dos bens, que traduzem
uma situação externa aos indivíduos, que depende da estrutura
de propriedade e do movimento da sociedade como um todo,
e se concentrar nas capacidades dos indivíduos (do ser e fazer),
passa a considerar características agregadas às pessoas, no indi-
víduo e naquilo que pode realizar. Assim uma nova visão se es-
tabelece sobre o todo social, isso permite migrar o ponto central
da análise de realidade social da estrutura para o indivíduo de
uma forma peculiar. (MAURIEL, 1998, p. 64-65).

De acordo com Pereira (2002 apud LINHARES, 2005), a cobran-


ça de condicionalidades em atividades assistenciais é muito antiga.
A autora exemplifica utilizando o contexto europeu no século XIX.
Neste período exigia-se das pessoas necessitadas que construís-
sem torres desnecessárias, a fim de justificar o recebimento de ali-
mentos em tempos de crise. A autora situa a contrapartida como
um dos mecanismos voltados para a busca de equilíbrio entre o
direito a satisfazer necessidades sociais, bem como, atender a ética
capitalista do trabalho.
Senna et al. (2007) completam que, ainda no século XVII e XVIII, no
contexto do mercado de trabalho predominava uma concepção mo-
ralista de pobreza, ou seja, atribuía as causas da condição de pobre,
às falhas de caráter individual. Dessa forma, a prestação da assistência
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social tinha caráter mais punitivo, exigindo em troca da “ajuda”, a rea-

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lização de trabalhos forçados por parte dos beneficiários.
Neste sentido, observamos que a exigência de contrapartidas es-
teve presente na sociedade de forma geral. No caso brasileiro, como
afirma Lobato (2012), não foi diferente, para o autor as condicionali-
dades carregam traços discriminatórios sobre a pobreza e os pobres,
que precisam ser “controlados” e “vigiados” para que não se acos-
tumem ao benefício governamental e deixem de buscar alternativas
próprias de vida e trabalho.
Conforme Lobato (2012) é possível refletir que, historicamente, o
sistema de proteção social construído no Brasil esteve vinculado a
“troca”. O princípio subjacente é que, quando o indivíduo passa a rece-
ber algo, ele se acomoda, e não busca por si só melhorar sua condição
de vida. Dessa forma, o PBF também segue este padrão quando exige
das famílias beneficiárias, o cumprimento de uma agenda de com-
promissos, tanto na área da saúde e educação quanto da assistência
social e, caso não sejam cumpridos, a família pode ser penalizada com
o bloqueio do benefício.
Cobo (2012) assinala que há uma visão paternalista sobre a pobre-
za que pressupõe que a população pobre não sabe gastar adequada-
mente, necessitando que o Estado de forma autoritária, já que se trata
de uma obrigação, diga como gastar os benefícios e como proceder
nos cuidados com a saúde e com a educação escolar das crianças.
A autora faz referência a estigmatização sofrida pelos pobres; eles
“não são capazes de tomar decisões racionais e assim necessitam cum-
prir determinadas condicionalidades de forma a ‘adequar’ seu compor-
tamento àquele esperado pela sociedade” (COBO, 2012, p. 57). Ou seja,
o simples acesso à transferência de renda por si só não seria suficiente
para permitir aos indivíduos acesso aos demais direitos sociais, se não
fossem cobrados pelo programa enquanto contrapartidas.
Os dados da pesquisa revelaram que muitas vezes o olhar das
políticas não é no sentido de proteção social, na perspectiva da ga-

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266 Cássia Maria Carloto e Tatiana de Oliveira Stechi

rantia dos direitos. O olhar está carregado de preconceito em rela-


ção à condição de pobreza, a necessidade de amparo pelo Estado,
entendendo-se este como um favor. Distancia-se da responsabili-
dade que deve ser cobrada do Estado por implementar e garantir
políticas de proteção social.
O preconceito existente em relação ao pobre traz a ideia de que
este tem debilidades na sua formação moral e comportamental e, por
isso, não consegue lutar pela sua sobrevivência. Neste sentido, não se
pode dar a ele dinheiro: “pois eles não sabem como gastar e, no mais,
podem se acomodar. Portanto qualquer que seja o benefício conferido
é preciso controlar e cobrar alguma coisa em troca” (LINHARES, 2005,
p.62). Essa desqualificação do pobre é decorrente de elementos cul-
turais fortemente enraizados na sociedade brasileira.
A análise dos dados de nossas pesquisas que subsidiam esse texto
apontou que as famílias são estigmatizadas e sofrem preconceito por
serem beneficiárias de um programa social. Fica a questão: como pos-
sibilitar que as famílias tenham os serviços públicos como referência
na garantia do acesso aos direitos e atendimento de suas demandas e
necessidades, quando vivenciam experiências discriminatórias?
Silva (2014) acrescenta que as condicionalidades podem contribuir
para esta estigmatização por tratá-los como incapazes de se auto sus-
tentar e de cuidar de si sem interferência externa contribuindo para
baixar a autoestima das pessoas ao invés de elevá-las. Contribui tam-
bém para perpetuar a visão do pobre como sujeitos ignorantes, que
precisam ser tutelados.
Na mesma lógica as autoras abaixo abordam as condicionalidades
como imposição pelo Estado enquanto deveres morais.

Programas que estabelecem deveres morais a serem seguidos


pelas famílias mediante condicionalidades no campo da edu-
cação e saúde, reeditando a teoria do capital humano quando
consideram que a educação e a saúde das pessoas são sufi-
cientes para romper com o ciclo vicioso da pobreza, produto

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 257 - 280


Entre o direito e o dever: uma reflexão sobre a exigência de condicionalidades ... 267

das condições estruturais decorrentes da forma como a so-

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ciedade capitalista se organiza para produção e reprodução
econômica e das relações sociais. Isso sem considerar que
o atendimento da educação e da saúde é insuficiente quan-
titativamente e de baixa qualidade para atender os pobres e
extremamente pobres, visto que as exigências de condicio-
nalidades não são acompanhadas de providencias suficientes
do Estado para garantir a expansão, democratização e eleva-
ção da qualidade dos serviços prestados. (SILVA; YAZBEK; DI
GIOVANNI, 2012, p. 229).

Outro elemento fortemente identificado nas pesquisas foi em re-


lação à concepção de que a superação da vulnerabilidade vivencia-
da pela família estaria nela mesma. É preciso relacionar a demanda
apresentada pela família com o contexto social em que vivem, além
de considerar o tipo de proteção social que as políticas públicas têm
viabilizado aos beneficiários. Os dados da pesquisa evidenciaram que
muitas vezes se reproduzem as orientações dadas pelo próprio pro-
grama, ou seja, aquela que fomenta a aquisição de capacidades para
que o indivíduo supere sua condição de vulnerabilidade.
Para Lo Voulo (2010) as pessoas acreditam que os potenciais bene-
ficiários do programa não se comportariam como pessoas totalmente
informadas sobre o retorno positivo dos filhos e filhas em frequen-
tarem a escola e fazerem o acompanhamento de saúde. Pais e mães
pobres não saberiam fazer escolhas certas para os filhos e assim se
beneficiariam em favor próprio. Outro apontamento levantado pelo
autor é que as condicionalidades gerariam um bom comportamento
dos beneficiários acarretando apoio ao governo.
Para o autor esses argumentos levam os governos a defenderem as
condicionalidades por acreditarem que através das contrapartidas po-
deriam conhecer melhor as famílias levando acesso e informação de
acordo com as necessidades da mesma. Porém, de fato o que desejam
é que as famílias fiquem aos “olhos” do Estado.

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Debate sobre direito e dever


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Sob a ótica dos direitos deve-se observar a seguinte premissa: a


um direito não deve haver a imposição de contrapartidas, exigências
ou condicionalidades, uma vez que a condição de cidadão é o requi-
sito único para a titularidade de direitos. A estratégia das condiciona-
lidades obedece a uma lógica punitiva, incorporando a ideia de que o
beneficiário se torna um devedor da sociedade.
Neste sentido, o diálogo fica comprometido no sentido de um de-
bate na perspectiva do direito, reforçando uma cultura de meritocra-
cia, na qual a população sempre terá que justificar seu merecimento
para poder acessar um direito.
A CEPAL (2012) se posiciona em relação às condicionalidades afirman-
do que as mesmas entram em conflito com a noção de direito universal.
Eles apontam que a exigência de contrapartidas se concretiza como um
“controle de conduta” da população, distinguindo os pobres merecedo-
res, ou seja, aqueles que se comportam de maneira apropriada e espe-
rada, e os pobres não merecedores, aqueles que não se comportam da
maneira esperada pelo Estado. Para esses últimos, o que resta é a penali-
zação pelo seu comportamento “inadequado”. Esta abordagem é no míni-
mo problemática, segundo a CEPAL (2012), porque entra em conflito com
a universalidade dos princípios básicos da não discriminação e do direito
que são próprias de sistemas de proteção social democráticos.
Nesta perspectiva, os direitos são atrelados a merecimento, pobres
merecedores e pobres não merecedores da assistência. Aplica-se a
essa população um controle de comportamento que não é exigido
para outros setores sociais e econômicos que também se direciona
a política pública, por exemplo: não se impõem condicionalidades às
instituições financeiras que utilizam recursos públicos ou aos contri-
buintes que pagam o imposto pessoal e que gozam desses serviços
sociais básicos e essenciais (CEPAL, 2012, p. 59).
A aplicação punitiva das condicionalidades coloca em evidência al-
gumas considerações. Por um lado, identificando os pobres merece-

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dores e não merecedores da assistência e, por outro lado, a atribuição

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da corresponsabilidade na superação da pobreza (as pessoas estão
em situação de pobreza porque não conseguiram investir por si só no
seu capital humano) e devem buscar superar essa condição.
Um elemento também trazido pela pesquisa é a forte vinculação en-
tre direito e dever, nos marcos do neoliberalismo. Para Guerra (2009,
p. 36) o discurso do direito insere-se nas formas de regulação social
(controle) utilizadas pelas instituições e práticas profissionais a partir
do ajuste neoliberal. Esse discurso, para a autora, apresenta caracte-
rísticas conservadoras da reprodução da ordem social, forjando uma
naturalização da questão social, esvaziando-a de seu aporte político
e em suas palavras: “secundarizando as diferentes possibilidades de
acesso aos bens e serviços dadas pela condição de classe, acoberta
as desigualdades (e a injustiça) e as condições históricas nas quais os
direitos sociais resultaram de conquistas da classe trabalhadora”.
É necessário recorrer aos fundamentos filosóficos e às bases mate-
riais e políticas sob as quais os direitos sociais se assentam, buscando
interpretar o seu significado socio-histórico e ideo-cultural no contex-
to das sociedades de classe5. Neste sentido, o discurso do direito não
deve ser uma prática mecânica e superficial, reproduzida sem adquirir
efetividade real e concreta na vida dos sujeitos.
A noção de dever adquire outro sentido quando pensada nos marcos
de uma democracia radical. Segundo Jelin (2006) a justiça deve ser ba-
seada na existência de um espaço para o debate público, e a participa-
ção na esfera pública torna-se tanto um direito quanto um dever. Esta-
belece-se um compromisso cívico de participação na vida pública. Mas
isso só é possível quando cidadãos constroem a si mesmo com graus
relativamente altos de autonomia pessoa e grupal. No caso do Brasil e
da América Latina faltam evidências história para isso. Para Jelin (2006
p.164): “setores sociais subordinados tendem a considerar sua subordi-
nação como ‘normal’ em função de uma cultura de dominação-subor-
dinação com uma continuidade histórica significativa e profunda”.

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270 Cássia Maria Carloto e Tatiana de Oliveira Stechi

No Brasil, segundo Telles (1994, p. 165) é necessário uma (re)criação


da república, como princípio da coisa pública, principio este que nun-
ca fez parte do imaginário coletivo, “nunca estruturou uma memória
de acontecimentos e nunca se efetivou como prática e valor político,
numa quase ausência que repõe o padrão oligárquico e patrimonialista
da gestão da coisa pública”.
Foi possível perceber que na pesquisa os(as) beneficiários(as) tam-
bém não se sentem sujeitos de direito, uma vez que eles reproduzem
a lógica de cumprimento de alguma contrapartida. É o sentimento de
débito com o Estado por estarem recebendo um benefício. A amplia-
ção do debate rumo à ampliação de direitos universais para a popu-
lação e o fomento de políticas públicas e sociais, acaba sendo difi-
cultada, considerando-se que tanto os profissionais como os próprios
beneficiários acreditam na necessidade de justificativa para o recebi-
mento do benefício monetário. Isso é resultado de um modelo de pro-
teção organizado e pautado pela meritocracia desde Getúlio Vargas.
Conforme Draibe (1993) nas suas relações com os grupos de in-
teresse e com o sistema político, o “Welfare State” brasileiro tendeu
a adquirir, desde seu início, conotação corporativista, meritocrática e
particularista. Apesar disso, talvez seja o caráter clientelista o que mais
fortemente afeta sua dinâmica, por várias e complexas vezes. Desde
a fase da introdução, por exemplo, sabe-se das relações privilegiadas
e de condições corporativistas e clientelísticas, no caso da Previdên-
cia Social, Ministério do Trabalho e cúpulas partidárias, especialmente
do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Rompido este padrão no pós-
1964, outras formas de clientelismo se inseriam no sistema, afetando
a alocação de recursos, o movimento de expansão e, enfim tendendo
a feudalizar (sob o domínio de grupos, personalidades e/ou cúpulas
partidárias) áreas do organismo previdenciário e principalmente a dis-
tribuição de benefícios em períodos eleitorais.
Vale considerar que o acesso à renda está estabelecido na política
de assistência social enquanto mecanismo de proteção social quando

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Entre o direito e o dever: uma reflexão sobre a exigência de condicionalidades ... 271

se trata da segurança de sobrevivência (de rendimento e de autono-

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mia), de acolhida e de convívio ou vivência familiar.
No entanto, nem toda população pobre do Brasil é beneficiária do
PBF, mesmo porque pobreza não é somente ausência de renda. Além
disso, o corte de renda para a pobreza utilizada pelo programa é mui-
to baixo. A proteção social no País deve englobar políticas universais,
permitindo o acesso aos direitos de forma igualitária e com qualidade,
tanto para beneficiários como não beneficiários.
A tendência familista que perpassa as orientações e normativas que
direcionam o trabalho técnico dos profissionais nos CRAS, no que se
refere às condicionalidades do PBF, reforça a transferência de respon-
sabilidades para o núcleo familiar. Um dado levantado na pesquisa é
que de certa forma as condicionalidades “ensinam” as famílias a terem
determinados comportamentos socialmente esperados.
Acredita-se que a exigência de condicionalidades juntamente com
o trabalho socioeducativo desenvolvido podem colaborar para que os
beneficiários vivenciem outras experiências, possibilitando a aquisição
de capacidades para o enfretamento de suas vulnerabilidades. Confor-
me Mioto (2006), o consenso existente sobre as transformações da fa-
mília tem se concentrado apenas nos aspectos referentes à sua estrutu-
ra e composição. Em relação às funções familiares ainda prevalece uma
expectativa social relacionada às tarefas e obrigações tradicionais: “[...]
espera-se um mesmo padrão de funcionalidade, independentemente
do lugar em que estão localizadas na linha de estratificação social, cal-
cada em postulações culturais tradicionais referentes aos papéis pater-
nos e principalmente maternos” (MIOTO, 2006, p.53).
Nessa perspectiva, para Mioto (2006), os serviços continuam a
orientar-se a partir de expectativas relacionadas aos papéis típicos de
uma concepção funcional de família, em que a mulher-mãe é respon-
sável pelo cuidado e educação dos filhos e o homem-pai, pelo provi-
mento e exercício da autoridade familiar. Há um julgamento moral so-
bre o desempenho dessas funções com um maior rigor em relação as

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272 Cássia Maria Carloto e Tatiana de Oliveira Stechi

obrigações das mães, titulares preferenciais dos programas de trans-


ferência de renda. Essa preferência se apoia numa visão estereotipada
da maternagem e das mulheres como responsáveis pelos cuidados
das crianças e sua educação. Os agentes sociais operacionalizadores
da política reforçam esses papéis e contribuem para a sustentação do
argumento de que as mulheres são melhores administradores de be-
nefícios sociais, o que não deixa de ser verdade. Mas é uma respon-
sabilização perversa, pois pune e culpaliza a mulher quando ela não
consegue cumprir com as condicionalidades.
Carloto (2012) destaca o modo como uma concepção idealizada em
torno das divisões dos papéis sexuais orienta a conduta das pessoas
e é introduzida em uma política social. Esta concepção expressa, de
modo explícito ou implícito, a vigência de um modelo de família, com
papéis complementares e hierarquizados representantes de uma he-
rança filosófica pautada na distinção entre público e privado.
A família na perspectiva protetiva, deve ser entendida como sujeito
de direitos, e não como objeto de intervenções pontuais que acabam
por reforçar um discurso que coloca como possível a potencialização
da família para que supere por si só a condição de pobreza.

O acesso às políticas públicas pelas condicionalidades


A defesa da exigência de condicionalidades está amparada no argu-
mento de que ela propiciaria o acesso às políticas de saúde, educação
e assistência social àquelas famílias beneficiárias dos programas sociais.
Foi possível observar que as políticas de educação e saúde são insufi-
cientes para a população, visto que às vezes buscam vagas nas escolas
para os filhos e não conseguem como, também, não conseguem aten-
dimento na Unidade Básica de Saúde (UBS). Dessa forma, não é porque
esses beneficiários têm que cumprir determinadas ações que as políti-
cas estarão prontas para receber essa população como deve ser.
Monnerat et al. (2007) afirmam que, de um lado, tais exigências
facilitam o acesso das camadas em situação de pobreza e extrema
O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 257 - 280
Entre o direito e o dever: uma reflexão sobre a exigência de condicionalidades ... 273

pobreza aos serviços básicos. Em contraponto, coloca a dúvida so-

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bre a capacidade dos serviços de educação e saúde absorverem,
adequadamente, o aumento de demanda resultante do cumprimen-
to das condicionalidades.
De acordo com orientações do programa o adequado monitora-
mento das condicionalidades pelas áreas de educação, saúde e assis-
tência social permitiria identificar vulnerabilidades sociais que afetam
ou impedem o acesso das famílias beneficiárias serviços a que têm
direito, demandando ações do poder público, direcionadas ao acom-
panhamento dessas famílias em situação de descumprimento.
Verificou-se que há um consenso entre os profissionais sobre a
importância da condicionalidade para contribuir na identificação das
famílias beneficiárias que se encontram em situação de vulnerabili-
dade social. A listagem com famílias em descumprimento de condi-
cionalidade é uma forma dos profissionais conhecerem a realidade
dessas famílias. Nesta visão, as condicionalidades também serviriam
para identificação das famílias que não estariam cumprindo com a
sua função protetiva.
É importante sinalizar que o diagnóstico territorial preconizado
pelo Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF) é
uma ferramenta que deve ser utilizada pelos profissionais, ou seja,
conhecer o território a partir da leitura técnica e de uma reflexão da
realidade vivenciada pelas famílias, a partir não só das demandas
trazidas, mas também de estatísticas, pesquisas de campo, relató-
rios. O diagnóstico possibilita uma leitura ampla e coletiva das situa-
ções que incidem sobre a população.
Neste sentido, é possível observar que as condicionalidades não
trazem novidades para as famílias no que diz respeito à frequência ou
não aos equipamentos de saúde, educação e assistência social. Antes
mesmo de serem beneficiárias as famílias já faziam esse acompanha-
mento, dado indicador de que as condicionalidades não permitem ne-
cessariamente às famílias ao acesso. O que realmente permite o aces-

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274 Cássia Maria Carloto e Tatiana de Oliveira Stechi

so é a existência de serviços em número suficiente e com qualidade de


atendimento as demandas das famílias.
A pesquisa também identificou as dificuldades que os beneficiários
encontram para acessar as políticas de saúde e educação. Dessa forma,
não é pelo simples fato de serem beneficiárias do PBF que têm um aces-
so diferenciado, ou seja, um acesso que considera suas especificidades
e vulnerabilidades. Para o MDS, ao que parece, o que importa são as
listagens encaminhadas com números em relação à pesagem, vacina-
ção e frequência escolar. Não se indica nessas listagens as dificuldades
que os(as) beneficiários(as) estão encontrando em acessar seus direitos.
Foi possível verificar que os(as) profissionais, no exercício de suas
funções, conseguem identificar as falhas existentes nas políticas pú-
blicas que dificultam ou impossibilitam o cumprimento das condicio-
nalidades, gerando um impacto no acesso dos(as) beneficiários(as).
Quando falamos em acesso estamos nos referindo a possibilidade de
entrada dos cidadãos nos serviços sem se deparar com barreiras.
Em relação às dificuldades encontradas pelos(as) beneficiários(as) no
acesso à política de saúde, os mesmos levantaram os seguintes aspec-
tos de forma mais evidente: a precariedade da saúde, a falta de medica-
mentos, falta de médicos, demora nos atendimentos e consultas.
Diante disto, resta a pergunta: para quem são importantes as condi-
cionalidades punitivas? Para o Estado aqui representado pelas políticas
de saúde, educação e assistência social ou para a família? Na pesquisa
ficou evidente que as condicionalidades ajudam a acessar as famílias
mais “vulneráveis”, sendo que o correto seria as famílias mais “vulnerá-
veis” conseguirem acessar essas políticas sem encontrar barreiras. Se o
argumento utilizado pelo programa é que as condicionalidades permiti-
riam maior acesso à população beneficiária, pode-se verificar que esse
objetivo não tem sido concretizado. Dessa forma, se as condicionalida-
des não viabilizam acesso a população usuária e se o Estado não tem
implementado essas políticas de maneira a cumprir com suas contra-
partidas, então resta questionar o motivo para mantê-las.

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 257 - 280


Entre o direito e o dever: uma reflexão sobre a exigência de condicionalidades ... 275

Considerações finais

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O Brasil segue as orientações dos organismos multilaterais como
Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI), priorizando o
mercado no trato com “o social”. O PBF ao exigir condicionalidades,
também, segue esse direcionamento.
As condicionalidades, nesta perspectiva, se referem ao capital hu-
mano e as carências individuais, transferindo a responsabilidade sobre
sua própria condição social aos indivíduos, incentivando que busquem
a aquisição de capacidades para superação da pobreza por eles mes-
mos. Neste sentido, identificou-se na análise dos dados que os direitos
dos cidadãos atendidos não deixam de estarem vinculados a um dever.
Nenhum dos(as) entrevistados(as) se posicionou totalmente contrário
à exigência de contrapartida. O que ficou evidente foi que os(as) mes-
mos(as) não têm uma opinião formada em relação ao assunto.
Outro fato identificado é que os(as) beneficiários(as) também aca-
bam defendendo a exigência de condicionalidades mesmo sendo pe-
nalizados com o bloqueio do benefício. Uma hipótese levantada é que
os(as) profissionais não sendo totalmente contrários a está exigência
acabam reproduzindo no exercício profissional concepções sobre as
contrapartidas, o que provoca um ciclo de naturalização da cultura de
exigir condicionalidades.
Partindo-se da concepção de cidadania, a um direito não deve
ser exigido qualquer tipo de contrapartida, o fato único de ser cida-
dão é pressuposto para a garantia de direitos. A assistência é polí-
tica pública não contributiva que provê os mínimos sociais a quem
dela necessitar. Políticas públicas como saúde e educação são direi-
tos garantidos que não devem ser vinculados a contrapartidas. Para
ter acesso aos medicamentos repassados pelo SUS não é necessário
participar antes de atividades em grupo ou serem acompanhados
pelo serviço. Com a política de transferência de renda não deveria
ser diferente. Deve-se romper com a lógica da “troca” na política de
assistência social. As famílias devem ser atendidas nos serviços com

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ISSN: 2238-9091 (Online)
276 Cássia Maria Carloto e Tatiana de Oliveira Stechi

os benefícios sem precisarem cumprir com determinadas exigências.


Essa lógica reproduz a ideia de meritocracia, em que os cidadãos
sempre devem fazer por merecer. As famílias que passam a receber
o benefício de transferência de renda são monitoradas através das
condicionalidades, enquanto outras famílias também em situação de
vulnerabilidade ou risco social que ainda não começaram a receber
não precisam ser acompanhadas pelas políticas. Ou seja, é o fato
de receberem o benefício que vincula a exigência de contrapartidas
e não o fato de estarem em condição de pobreza. A perspectiva de
punir as famílias que não cumprem as condicionalidades parece in-
compatível com os objetivos de promoção social do programa. De-
vem-se considerar, também, as condições que as famílias dispõem
para atender as requisições impostas, tendo em vista as dificuldades
cotidianas de sobrevivência, as quais a maioria está exposta.
Queremos chamar a atenção para o fato de a pesquisa ter sido rea-
lizada num município de grande porte, com forte concentração urbana
o que influencia nossos resultados. Não é possível generalizações em
um país com fortes diferenças regionais como o Brasil.

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Notas
1 Docente na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Assistente Social, mestre
em Psicologia Social, com doutorado e pós-doutorado em Serviço Social pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Brasil. ORCID: 0000-
0003-1953-9201. E mail: cmcarloto@gmail.com

2 Assistente Social na Prefeitura Municipal de Londrina. Mestre em Serviço Social


e Políticas Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Brasil. ORCID:
0000-0002-1912-4199. E mail: tatistechi@yahoo.com.br

3 Embora o MDS oriente que haja acompanhamento às crianças e adolescentes de


até 15 anos que estejam inseridas no trabalho infantil, esta condicionalidade não
tem sido presente nas listagens de descumprimento de condicionalidade, dessa
forma, não foi identificado que a mesma gere bloqueio no benefício da família.

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 257 - 280


Entre o direito e o dever: uma reflexão sobre a exigência de condicionalidades ... 279

4 Vale aqui um nota para expor contribuições importantes de Vianna (1997, p.

ISSN: 2238-9091 (Online)


134) em relação as classificações e hierarquizações utilizadas para definições
da questão social. “Pode ser a pobreza como pode ser o conflito de classes. Ou
seja, adquire formas diversas, no plano da realidade, em diferentes condições
históricas, sistêmicas etc.; e demarca-se, no plano da reflexão, sob a égide da
adoção de uma dada vertente de análise. Do entendimento reducionista de que
a questão social é a pobreza (uma potente premissa teórica) decorre a acepção
de que política social tem por função proteger os pobres, o que está longe de
alinhar em concordância os cientistas sociais. Para Polanyi, por exemplo – pre-
missa que é ratificada por Castel (1999) – as ações governamentais de cunho
social (voltadas ou não apenas para os pobres) têm historicamente por função
proteger a sociedade como um todo dos riscos que a expansão do mercado
acarreta, em particular das desigualdades que, no limite, ameaçam a própria
integridade do tecido social.”

5 Para aprofundar esta discussão ler: Guerra (2009).

pg 257 - 280 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


281

O Movimento de Mães do DEGASE – luta e dor

ISSN: 2238-9091 (Online)


Ida Cristina Rebello Motta1

Resumo
O presente estudo tem como objetivo apresentar uma análise das famílias do DE-
GASE, com uma breve abordagem do cenário institucional. Traz o recorte teórico
adotado na pesquisa desenvolvida no ano de 2017, referente ao Movimento de Mães
que se organizaram ao longo das duas últimas décadas, a partir da dor, do sofrimen-
to de terem seus filhos acusados de autores de atos infracionais e que enfrentam a
dura realidade das instituições fechadas. Famílias que fazem parte de uma parcela da
população que vivencia a desigualdade econômica e social, possuindo gênero, raça,
cor e com um acesso restrito às políticas públicas.

Palavras-chave
Movimento de Mães; Famílias; Socioeducativo.

The Mothers Movement of DEGASE - struggle and pain

Abstract
The present study aims to present an analysis of the families of DEGASE, with a brief
approach to the institutional setting. It brings the theoretical cut adopted in the re-
search developed in the year 2017, referring to the Mothers Movement that have
organized over the last two decades, from the pain, the suffering of having their
children accused of authors of infractions and facing the tough reality of closed
institutions. Families that are part of a portion of the population that experiences
economic and social inequality, possessing gender, race, color and have restricted
access to public policies.

Keywords
Mothers Movement; Families; Socioeducational.

Artigo recebido: agosto de 2018


Artigo aprovado: outubro de 2018

pg 281 - 302 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


282 Ida Cristina Rebello Motta

Introdução
ISSN: 2238-9091 (Online)

A organização das mães dos adolescentes do sistema socioedu-


cativo do estado do Rio de Janeiro iniciou-se nos fins da década de
1990 e início dos anos de 2000, na busca por atendimento digno
e baseado nos princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA). A questão que impulsionava a organização dessas mulheres
centrava-se nas condições de maus tratos, pelas quais seus filhos
constantemente eram submetidos nas unidades de privação de li-
berdade dentro do Departamento Geral de Ações Socioeducativas
(DEGASE) do estado do Rio de Janeiro (LIRA, 2004).
Esse contexto propiciou um processo de organização das famílias
– em sua grande maioria mães – surgindo ao longo dos anos 2000
a Associação de Mães com Filhos em Conflito com a Lei (AMÃES),
o Movimento de Mães pela Garantia dos Direitos dos Adolescentes
no Sistema Socioeducativo (Movimento Moleque), posteriormente,
a implantação no Rio de Janeiro, da Associação de Mães e Amigos
da Criança e do Adolescente em Risco (AMAR-RJ).
Desta forma, o cenário do presente artigo tem como pano de
fundo a história institucional do DEGASE, do qual estaremos fa-
zendo uma breve abordagem. Trata-se de uma instituição jovem,
porém tendo como legado os estigmas oriundos da Fundação Na-
cional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM) e Fundação Centro Bra-
sileiro para Infância e Adolescência (FCBIA). Instituição essa que
a partir de 2007 foi intitulada de Novo Degase, com o intuito de
romper com a lógica de ser reconhecida como um lugar carregado
de estigmas e de histórias de vida marcadas por violência. Devendo
deixar no passado a sua origem: a herança das concepções com
base na Doutrina da Situação Irregular, preconizada pelo Código de
Menores, com um histórico de ações coercitivas e violentas, numa
linha correcional e punitiva. Apontando um novo caminhar insti-
tucional, baseado em diretrizes da socioeducação, em uma pers-
pectiva sociopedagógica, dentro da Doutrina de Proteção Integral,

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O Movimento de Mães do DEGASE – luta e dor 283

demandando novas metodologias, novos paradigmas e equipes

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qualificadas com esse perfil diferenciado.
A base para o presente estudo foi a pesquisa desenvolvida ao
longo do ano de 2017 sobre o movimento de organização das mães
dos adolescentes a quem se atribui autoria de ato infracional no
estado do Rio de Janeiro, onde entrevistamos as lideranças desses
movimentos, além do vasto levantamento bibliográfico e documen-
tal pertinente a área socioeducativa, sendo identificados dados que
subsidiaram a pesquisa em tela.
Este artigo objetiva apresentar o recorte teórico adotado na refe-
rida pesquisa que propiciou a análise das famílias do DEGASE, en-
quanto sujeitos sociais que estabelecem suas próprias identidades
e ocupam espaços na sociedade, com um histórico de construção
de lutas e conquistas, caracterizando um movimento organizado.
Famílias maciçamente chefiadas por mulheres, negras e com suas
trajetórias de lutas.

Do outro lado da mesa, a instituição


Teria atualmente o Novo Degase uma prática voltada para a so-
cioeducação? Em que bases foram moldadas as novas diretrizes es-
tabelecidas para essa instituição? Que tipo de prática socioeducativa
vem sendo desenvolvida em suas unidades? Poderíamos afirmar que
é uma instituição onde ainda se depara com uma prática pautada no
viés do castigo, na linha correcional, no atendimento de massa, longe
da garantia dos direitos humanos? Com ações incipientes de socio-
educação? Um lugar institucional onde, ainda, não é desenvolvido
um trabalho sistemático com as famílias – mães – dos “adolescentes
a quem se atribui autoria de ato infracional”, passados vinte e cinco
anos da criação desse espaço?
Iniciamos algumas dessas abordagens contando um pouco da histó-
ria institucional, a partir do olhar do Movimento das Mães dos Meninos
do DEGASE, pois assim essas mães se identificam e se denominam.
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Tivemos inúmeros desafios e dentre eles, um foi o exercício de


desvelar esta instituição – DEGASE –, como pesquisadora, a partir do
lugar desse movimento de mães, como bem salientou Dias (2007).
Portanto, trazemos os relatos colhidos na pesquisa desenvolvida com
as lideranças desse Movimento de Mães como forma de demarcar o
cenário institucional visto de outro ângulo, do outro lado da mesa:
E uma das coisas que para as mães é importante, é ela saber
que não é só ela que está passando por isso. Não é só uma mãe,
porque outras já passaram, sobreviveram, então se ela está pas-
sando até hoje, [...], eu não sei porque a gente tem que passar
por essas coisas. Se eu fosse olhar para mim [...] eu sempre pedi
a Deus para isso nunca acontecer comigo, mas aconteceu e
aconteceu em dose tripla. Três vezes aconteceu a mesma coisa
e eu fico sempre perguntando porque essas coisas acontecem,
o porquê. Só que no meio de tudo isso eu olho para mim e vejo
que eu ainda estou viva, estou viva, estou bem, não estou mal,
tão mal assim a ponto de ter ficado assim dependente de um
remédio, minha pressão está bem, não tenho diabetes, não te-
nho doença nenhuma, então eu passei por isso e eu sobrevivi. Às
vezes eu acho até que é um milagre, mas eu sobrevivi, eu estou
aqui, então se eu sobrevivi, o que é que eu vou dizer para ela?
“Você também pode sobreviver”. (GLÓRIA)3.

Que instituição é essa que marca tão significantemente a vida das


pessoas? Como descrever esse lugar? Quem nunca ouviu falar do Ins-
tituto Padre Severino?
Poucos cidadãos conhecem o DEGASE, mas muitos o associam ao
antigo Instituto Padre Severino. Lugar temido por muitos e comple-
tamente ignorado por outros. Por vezes, lembrado quando vivencia-
mos situações de comoção pública, envolvendo assassinatos brutais
com adolescentes ou com incidentes bárbaros atingindo números
expressivos desses jovens.
Quando em 2007 o DEGASE torna-se o “Novo Degase” (assim inti-
tulado até os tempos atuais), se apresenta com a proposta de romper
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O Movimento de Mães do DEGASE – luta e dor 285

com essa lógica. Dessa forma, abarca novas produções conceituais

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que são elaboradas: a construção do Plano de Atendimento Socioe-
ducativo do Rio de Janeiro (PASE); o Projeto Pedagógico Institucional
do Novo Degase (PPI); os Projetos Políticos Pedagógicos de todas as
unidades – os novos Centros de Socioeducação. Caracteriza-se, nesse
período, um direcionamento sociopolítico ao sistema socioeducativo;
uma era de avanços nas referências teóricas, trabalhando novos con-
ceitos pertinentes à socioeducação.
Esse “avançar” estará respaldado no contexto nacional, como no
documento da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidên-
cia da República, baseado na matéria4 do prof. Antônio Carlos Gomes
da Costa, um dos expoentes da socioeducação no País, como tam-
bém, na aprovação do Sistema Nacional de Atendimento Socioedu-
cativo (SINASE), em 2006.
Assim, dentro dessa linha, são elaborados em 2013 os “Cadernos
de Referência de Atuação das Categorias no âmbito do Novo De-
gase” – Assistente Social, Psicólogo, Pedagogo e Agentes socioedu-
cativos, através de Grupos de Trabalhos das respectivas categorias;
alicerçado pelos projetos de intervenção profissional, no caso, do
Assistente Social. Também é produzido por um Grupo de Trabalho
de profissionais, o Programa de Atenção às Famílias do DEGASE,
que foi concluído em 2016.
Propostas que teriam como meta o processo da construção de um
novo “fazer” profissional, deixando para trás o “viés da punição” num
cenário de espaços precarizados, superlotados e totalmente sucatea-
dos, passando para uma prática pautada numa visão crítica/reflexiva,
de co-responsabilização, na construção de um sujeito de direitos.
Após vinte e cinco anos nos deparamos com uma instituição que
ainda vive o seu grande desafio: como colocar em prática uma nova
proposta metodológica, com base nos preceitos da socioeducação,
delineando uma política pública de atendimento aos adolescentes au-
tores de atos infracionais? Como fazer parte de um Sistema de Garan-

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286 Ida Cristina Rebello Motta

tia de Direitos com práticas coercitivas? De que forma desenvolver


uma prática socioeducativa quando atendemos maciçamente?
As indagações são inúmeras, pois estamos falando de uma insti-
tuição que ainda não conseguiu avançar além do papel, que apre-
senta iniciativas pontuais de práticas dentro da socioeducação e que
precisa responder a uma demanda de atendimento onde a super-
lotação é a sua realidade; uma instituição que precisa romper com
estigmas, através de ações que sejam humanizadas e efetivamente
com base nos direitos humanos e sociais.
Uma instituição onde o confinamento é a palavra de ordem, com
iniciativas incipientes de ações socioeducativas. O confinamento tira
das pessoas o seu poder de autonomia, de ser responsável por seus
atos do dia-a-dia, do cotidiano (ZAFFARONI, 1990). Assim, os adoles-
centes institucionalizados e, consequentemente, confinados por um
longo período não estabelecem por eles mesmos suas rotinas, interfe-
rindo no desenvolvimento desses sujeitos de direitos.
O Movimento das Mães dos Meninos do DEGASE – do outro lado
da mesa – continua em prol de condições dignas dentro das unida-
des, onde o convívio familiar e comunitário deveriam ser a tônica,
considerando a socioeducação, como diretriz dos marcos legais da
Política Socioeducativa.

Mães, Mulheres, Famílias e suas organizações


O som das palavras de Marias, Antônias, Joanas, Clarices e muitas
outras ecoa como se tivesse acabado de ser pronunciado. Passaram-
-se muitos anos e ainda é muito nítido! Cada uma de sua forma, eco-
ando um som de busca de novos caminhos de ajuda; um som de luta,
de acesso a direitos, de garantia de vida!
Mulheres que se perguntam “onde foi que errei?”, “o que faltou
na educação de meu filho, para que cometesse um ato infracional?”,
apontando inflexões sobre o lugar dessas mulheres na família, na so-
ciedade e nas relações sociais.
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O Movimento de Mães do DEGASE – luta e dor 287

As abordagens aqui explicitadas tomaram por base o entendi-

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mento que estamos falando de mães, mulheres, enquanto sujeitos
sociais, do processo de construção de suas identidades dentro de
uma família, de uma sociedade, culturalmente emanada por signifi-
cados onde a maternidade se apresenta como um grande elo dessa
“rede de significados” (GEERTZ, 1989).
Podemos hipoteticamente dizer que essas mulheres apresentam
algo em comum: fortalecer o direito de exercerem a maternidade
junto aos seus filhos que estão privados de liberdade, lutando por
atendimento socioeducativo que deve estar pautado na convivência
familiar e comunitária. É identificar a maternidade como um elo na
“rede de significados”, apontado por Geertz (1989). Sua percepção é
de que a cultura é uma “rede significados”, um conjunto de valores e
crenças que sistematicamente estão sendo modificadas pelas pes-
soas que fazem parte de uma determinada sociedade. Analisando
a inserção das mulheres na sociedade, devemos levar em conside-
ração o aspecto cultural, a “teia de significados” que foi tecida por
essas mulheres nos diferentes tempos.
Verificamos isso na história das mulheres do ocidente ao longo do
século XIX, quando nos deparamos com um movimento de apro-
priação por parte dessas mulheres dos espaços públicos, na busca
de um lugar na sociedade, de uma posição política, buscando um
“tecer de significados”, de uma nova cultura, na construção de uma
consciência de gênero (PERROT, 1999).
O Movimento das Mães dos Meninos do DEGASE exemplifica o
que Perrot (1999) aponta em seu estudo sobre a história dessas mu-
lheres do ocidente: apresentando um histórico de construção de
lutas, marcadas por episódios de perdas nos diferentes contextos,
culminando em formas de organização como as instituições AMÃES,
Movimento Moleque e AMAR-RJ e, demais formas com as quais vêm
se fortalecendo, como sujeitos sociais, constituindo-se como grupo
a partir de suas identidades.

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Sujeitos sociais que no mundo pós-moderno apresentam não uma


identidade fixa, mas uma variedade de identidades, indo para além
das apontadas enquanto classe social, de acordo com Hall (2006). O
autor destaca a importância do movimento feminista, trazendo para
o campo político e público temas próprios da esfera privada, como a
família, o trabalho doméstico e a sexualidade.
Estamos falando de sujeitos sociais que apresentam uma história
de luta para garantia do exercício da maternidade, do seu espaço na
família e na sociedade, buscando novas formas de relações sociais,
com alicerces nos direitos humanos e sociais.
Falamos de mulheres, mães que encontraram uma nova forma de
exercer a maternidade (FREITAS et al., 2009) indo para as ruas, para a
vida pública, através da luta e dos seus movimentos de grupos, trans-
formando suas angústias, tristezas e incertezas – suas dores – em pla-
taformas de organização.
O Movimento das Mães dos Meninos do DEGASE retrata o que
Freitas (2000) denominou “Mães em Luta”, onde a figura materna se
destaca como o ator principal das lutas políticas, caracterizando a
politização da maternidade. Desta forma, podemos enumerar alguns
movimentos sociais mais recentes onde as mulheres estiveram à fren-
te do processo de organização dos grupos, tendo com o grande elo,
a maternidade: as Mães de Acari, as Mães da Cinelândia, as Mães de
Crianças Desaparecidas de São Paulo5, as Mães contra a violência6, e
ainda, as próprias “Mães do DEGASE” (assim intitulada pela autora) –
através da AMÃES, do Movimento Moleque e da AMAR-RJ.
Essas mães iniciaram suas histórias de luta há cerca de dezoito
anos atrás, em prol de melhores condições no atendimento socioe-
ducativo de seus filhos que se encontravam privados de liberdade;
fato esse que motivou a organização das mães enquanto grupo, de-
nunciando as situações de maus-tratos e buscando o direito des-
ses adolescentes na garantia da convivência comunitária e familiar,
assegurado pelo ECA.

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O Movimento de Mães do DEGASE – luta e dor 289

Mulheres que criam como estratégia uma rede protetiva, como

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possibilidade de encarar as atividades próprias da vida moderna, onde
assumiram os diferentes papéis que lhes foram impostos. Mulheres
que “saíram” à luta (PERROT, 1999). Que se organizaram através de
entidades, na busca de garantir condições mais dignas no atendimento
socioeducativo, na busca de seus direitos enquanto mães, mulheres
responsáveis por suas famílias.
Mas, o que entendemos por Famílias? Como caracterizar a consti-
tuição de uma Família? Porque nos expressamos de uma forma plural:
“Famílias”? Para se constituir uma Família é necessário que os mem-
bros tenham laços consanguíneos?
Conforme já evidenciado anteriormente, a entrada da mulher em
cena pública consolida novas bases nas relações sociais, a partir de
sua inserção nas transformações do mundo do trabalho, abalando e
fragilizando o modelo de família patriarcal, propiciando aparentemen-
te uma igualdade entre os sexos. No período da democratização no
País, as mulheres são elementos fundamentais nas organizações das
lutas operárias, de bairros, fortalecendo movimentos organizados em
prol de saneamento básico, educação, saúde, entre outros.
Todo esse processo de “sair” das mulheres (PERROT, 1999) permi-
tiu a passagem do mundo privado para o mundo público, implicando
com que as famílias também desvelassem situações tidas como priva-
das, em ações no cenário público. O estabelecimento de novos papéis
sociais para mulher, assim como a aproximação das relações pais e
filhos, o fortalecimento da instituição “família” frente a outras institui-
ções como a igreja e a medicina, demarcam no início do século XVIII, o
surgimento da família moderna – a separação entre o mundo privado
e público (ARIÉS, 1981; FREITAS et al., 2010).
Portanto, quando pensamos em falar de famílias dentro de uma re-
alidade moderna, precisamos compreendê-la em sua complexidade e
pluralidade, como sujeitos capazes de mudanças e transformações cons-
tantes e contínuas, entendendo que falamos de uma multiplicidade de

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tipos de famílias; por isso, nos referimos “FAMÍLIAS”, no plural “[...] signi-
fica pensá-las em suas relações tanto com a sociedade mais ampla onde
se inserem quanto, também, nas formas como estas se atualizam na vida
diária das pessoas que lhe dão concretude” (FREITAS et al., 2010, p. 16).
Entendemos que a família moderna e, consequentemente, as fa-
mílias que compõem o Movimento das Mães dos Meninos do DE-
GASE apresentam uma diversidade de arranjos familiares (AFONSO;
FILGUEIRAS, 1995) e, são sujeitos sociais, sendo necessário situá-los
historicamente enquanto sujeitos, em um contínuo processo de trans-
formação. Assim, quando pensamos em “famílias” é necessário rela-
cionarmos com as diferentes realidades, para além de “vínculos de
parentesco”7. Por isso, nos reportamos ao que entendemos por este
termo, lançando mão do que Freitas et al. (2010, p. 20) definem “[...]
enquanto um processo de articulação de diferentes trajetórias de vida,
onde se entrecruzam as relações de classe, gênero, etnia e geração.
Além do lugar de reprodução biológica – e também social e afetiva”.
São famílias que precisam ser compreendidas a partir das pos-
síveis construções de relações familiares que possam tecer com a
base no seu cotidiano e não de uma realidade “nuclearizada” (FREI-
TAS et al., 2010). Sarti (1994, p. 52) define bem o que é família para
o pobre: “[...] são da família aqueles com quem se pode contar, isto
quer dizer, aqueles que se retribuem ao que se dá, àqueles, portanto,
para com quem se tem obrigações”.
Por sua vez, a Norma Operacional Básica do Sistema Único de As-
sistência Social8 (BRASIL, 2005, p. 90) define o conceito de família “[...]
como núcleo afetivo, vinculado por laços consanguíneos, de aliança
e de afinidade, que circunscrevem obrigações recíprocas e mútuas,
organizadas em torno de relações de geração e gênero”. Podemos en-
tender que a realidade das famílias do DEGASE – mais ainda, das famí-
lias pobres brasileiras – é da necessidade de coletivizarem o cuidado
de seus filhos, caracterizando o que é denominado como “circulação
de crianças”9 por Fonseca (1990; 2002).

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São famílias que em sua grande maioria apresentam dificuldades

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econômicas, com novos rearranjos conjugais (novas uniões), con-
tando com uma “rede protetiva” que passa pelo cuidado das crianças
pela vizinhança e amigos ou pela própria circulação das crianças nas
casas de parentes (FREITAS et al., 2010).
Ao nos reportarmos a história brasileira, verificamos que a famí-
lia esteve sempre muito distante das intervenções estatais, caben-
do a essa instituição a construção de caminhos para sua sobrevi-
vência, sem qualquer suporte de mecanismos e serviços públicos.
Para alguns autores, como Freitas et al. (2010), a família só ocupará
uma posição de destaque na proteção social brasileira, a partir do
Estado Novo, com ações estatais mais interventivas. O que Frei-
tas et al. (2010, p. 29) destacam dentro desta análise é o quão foi
importante, dentro da história da proteção social brasileira, as so-
lidariedades grupais para as famílias mais pobres, como forma de
sobrevivência, como também a instituição família sempre foi e ain-
da é foco de intervenções estatais. Fato este também evidenciado
por Pereira (2006, p. 29) “[...] a instituição familiar sempre fez parte
integral dos arranjos de proteção social” e ainda, “[...] os governos
brasileiros sempre se beneficiaram da participação autonomizada
e voluntarista da família na provisão do bem-estar de seus mem-
bros”. Mas, o que entendemos por proteção social?
Tomaremos a definição de proteção social de Carloto e Castilho
(2010). As autoras colocam que:

[...] proteção social em síntese são formas de proteção insti-


tucionalizada em uma dada sociedade, que envolve bens ma-
teriais, culturais, cuidados aos membros mais fragilizados e as
normativas de proteção. E como já apresentado, a família é par-
te integrante na garantia desta proteção social aos seus mem-
bros, dentro dos desenhos das políticas sociais e seus modelos
protetivos no Brasil. (CARLOTO; CASTILHO, 2010, p. 16).

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Sendo pertinente entendermos dentro dessa análise que a insti-


tuição família, elemento fundamental para as intervenções do esta-
do, ganha maior fortalecimento com a entrada das políticas sociais
baseadas em programas de transferência de renda, passando a ser o
principal foco da proteção social. Como exemplo desses programas,
podemos citar o Programa Bolsa Família (PBF), o Programa de Erradi-
cação do Trabalho Infantil (PETI), assim como o Benefício de Prestação
Continuada (BPC); todos com a família como foco de intervenção ou
como referência para sua execução, como é o caso do BPC que atrela
o recebimento do benefício ao cálculo da renda familiar. Entendendo-
-se política social como Pereira10:
Política de ação que visa, mediante esforço organizado e pac-
tuado, atender necessidades sociais cuja resolução ultrapassa a
iniciativa privada, individual e espontânea, e requer deliberada
decisão coletiva regida por princípios de justiça social que, por
sua vez, devem ser amparados por leis impessoais e objetivas,
garantidoras de direitos. (PEREIRA, 2006, p. 172).

Pereira (2008) apresenta contribuições importantes quando sina-


liza que a partir dos anos de 1990 as políticas neoliberais trazem um
modelo de proteção social onde é veiculada a parceria Estado, mer-
cado e sociedade. Neste esquema o mercado ocupa-se em proteger
os que possuem empregos estáveis e com boa remuneração e o Es-
tado “abre mão” do papel de principal provedor de bem-estar social
(CARLOTO; CASTILHO, 2010).
É importante entendermos que os modelos protetivos das políti-
cas sociais brasileiras, tendo a família como elemento de intervenção
central dessas políticas, deve considerar o que evidenciamos ante-
riormente quanto à pluralidade e heterogeneidade das “famílias” que
apresentam diferentes arranjos e rearranjos familiares, requerendo
ações protetivas e estratégias que deem conta de novas demandas
sociais que eclodem e causam impacto nessas famílias (SUNKEL,
2006). Portanto, pensar política social com a centralidade na família
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requer cuidado em relação a essas “complexidades”. De acordo com

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Carloto e Castilho (2010, p. 14), por parte de todos os atores respon-
sáveis pela política social, de forma a não responsabilizar a família, em
especial a mulher “[...] pelas mazelas sofridas, tendo que buscar estra-
tégias de superação por meio da sua rede de sociabilidade e de solida-
riedade, reforçando a desigualdade de gênero, à medida que aumenta
a sobrecarga feminina e reforça os papéis ‘historicamente’ construí-
dos de ‘cuidadora’”. De acordo com as autoras, este modelo protetivo
denominado “neoliberalismo familiarista” por De Martino (2001 apud
CARLOTO; CASTILHO, 2010, p. 18) compreende que “[...] a proteção
social cabe preferencialmente à família e que o Estado pode reduzir
os serviços públicos enquanto proteção. [...] E à medida que delega à
família em primeira instância a proteção de todos os seus membros”.
O modelo de proteção social onde o pilar central está baseado na
família é denominado “modelo familista”11. De acordo com Mioto:
As políticas familiares, de caráter familista, tendem também a
reforçar os papéis tradicionais de homens e mulheres na esfera
doméstica e condicionar a posição de homens e mulheres no
mercado de trabalho. Isso se traduz numa presença ‘secundá-
ria’ da mulher nesse mercado, quer seja pela forma (tipo de
atividade, salário) como se inserem ou ainda pela dupla jorna-
da de trabalho que as penalizam com o alto custo emocional.
(MIOTO, 2008, p. 14).

Importante ressaltarmos que este modelo de proteção social deno-


minado familista, onde cabe ao Estado à intervenção somente a partir
da “falha” da família, potencializa e reforça as desigualdades de gê-
nero, aumentando a responsabilidade da mulher na proteção de seu
grupo familiar, não contando com o suporte necessário das interven-
ções estatais; o que caracteriza a desresponsabilização do Estado e a
culpabilização das famílias.
Quem são as famílias atendidas pelo Novo Degase? Será que são
famílias monoparentais? Essas mulheres que se apresentam dentro de
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um movimento organizado são responsáveis por suas famílias? Esta-


mos falando de famílias em sua maioria chefiadas por mulheres? De
qual recorte racial falamos? São famílias que se encontram abaixo da
linha da pobreza? Nosso estudo é referente às famílias atendidas pela
política de assistência social? São famílias em sua maioria residentes
em favelas do estado do Rio de Janeiro?

O que você não entende você não percebe, você não sabe, né,
então quando eu fui entender o que era, quando eu fui me ver
enquanto uma mulher negra, que eu não me via enquanto uma
mulher negra, então quando eu fui me enxergar enquanto uma
mulher negra... então assim... então eu fui abrindo meus horizon-
tes, né, e aí o que acontece... (MÔNICA CUNHA)12.

Trazemos para o presente estudo os dados de uma pesquisa de-


nominada “Agentes da Transformação”, realizada em agosto de 2016
através da parceria do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNI-
CEF), do Instituto Pereira Passos (IPP) e o Novo Degase (através da
Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire).
A pesquisa que na edição de 2016 do IPP teve por objetivo traçar
o perfil dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducati-
va de internação, isto é, com privação de liberdade. Foi aplicada em
três unidades de socioeducação do Novo Degase no município do Rio
de Janeiro: Educandário Santo Expedito (ESE) por amostragem, Escola
João Luiz Alves (EJLA) por amostragem, e Centro de Socioeducação
Professor Antônio Carlos Gomes da Costa (PACGC) na totalidade de
adolescentes atendidas, sendo esta última unidade feminina e, as ou-
tras duas unidades para atendimento de meninos. “[...] Foram entre-
vistados, no total, 448 jovens internados: 202 no ESE, 189 na EJLA, e 57
no PACGC” (CADERNO DA JUVENTUDE CARIOCA, 2016, p. 13).
A pesquisa “Agentes da Transformação” trouxe dados fundamen-
tais que nos permitiram algumas análises sobre as famílias que são
atendidas no Novo Degase.

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O Movimento de Mães do DEGASE – luta e dor 295

No caso dos adolescentes que estão cumprindo medida socioe-

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ducativa, a estrutura familiar sugere maior participação da figura
materna, uma vez que 76,3% reside no mesmo domicílio que a
mãe, e destaca-se o fato de a unidade feminina ter um percentu-
al menor do que as masculinas. Observamos, ainda, menor pre-
sença da figura paterna, pois 31,9% moram no mesmo domicílio
que o pai. (ARMAZÉM DE DADOS, 2016, p. 19).

Em relação ao nosso cenário de estudo, não possuímos dados


comparativos, contudo, os dados identificados reiteram a fala das
mães entrevistadas na pesquisa referente ao Movimento das Mães
dos Meninos do DEGASE no ano de 2017: falamos em sua grande
maioria de famílias monoparentais femininas, onde a presença da
mãe prevalece como a responsável pela família, dentro desse uni-
verso atendido pelo Novo Degase.
Não possuímos dados estatísticos em relação à cor e raça das
famílias acompanhadas pelo sistema socioeducativo, contudo os
dados dos adolescentes atendidos por esse sistema reproduzem o
perfil racial delineado pela população carcerária em nosso País. Des-
ta forma, trabalhando com os dados do Levantamento Nacional de
Informações Penitenciárias (INFOPEN, 2014): 61,67% da população
por raça e cor no sistema prisional é composta por negros/pretos e
pardos. Os dados reiteram que a população encarcerada, seja ela do
sistema penal ou do sistema socioeducativo, em sua grande maioria
é negra/preta e parda, atingindo dentro do sistema socioeducativo
78,5% dos meninos e 68,4% das meninas, de acordo com os dados
da pesquisa do IPP “Agentes da Transformação”.
Outro dado significativo da pesquisa do IPP é de que a maioria dos
jovens (69,4%) possui alguém no domicílio que recebe pelo menos um
benefício, incluindo aposentadoria ou pensão. O Programa Bolsa Família
(56,7%) e o Cartão Família Carioca (21,7%) apresentam maior número de
famílias beneficiárias atendidas, permitindo concluirmos que a grande
maioria dessas famílias também é acompanhada pela política de assis-

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tência social de seus municípios, portanto, apresentam um perfil de alto


índice de vulnerabilidade social e abaixo da linha da pobreza.
Ainda sobre os dados coletados na pesquisa “Agentes da Transfor-
mação”, os adolescentes do sistema socioeducativo, atendidos nas
unidades de internação, apresentam o perfil de residirem em moradias
onde o adensamento domiciliar encontra-se acima da média, isto é,
a proporção de domicílios com média superior a três moradores por
dormitório, atingindo um percentual de 31,47% de adolescentes que
moram em domicílios com três ou mais pessoas por dormitório.
As famílias de quem falamos, famílias atendidas pelo DEGASE,
constituídas em sua maior parte por mulheres, negras e chefes de fa-
mílias, apresentam, em sua maioria, um quadro de vulnerabilidade
social; isto é, falamos do mesmo contingente populacional que deve-
ria estar sendo atendido pela política de assistência social, através de
seus programas e benefícios.

Considerações finais
As pessoas que transitam nos quarteirões das ruas do bairro da Ilha
do Governador, mais precisamente no sub-bairro do Galeão, onde es-
tão instaladas algumas unidades do Novo Degase – recepção e tria-
gem, internação provisória e internação – comumente verificam um
cenário com filas de mulheres (das mais diversas idades), sentadas
nos meios fios das calçadas à porta desses espaços, esperando aten-
dimento ou a hora da visita. São mães, tias, avós, muitas consanguíne-
as outras chamadas “de consideração”, por fazerem parte da história
de vida daqueles adolescentes que ali estão, privados de liberdade.
Nos dias de visitas, podemos observar que muitas estão carregadas
de pacotes: biscoitos, materiais de higiene e demais objetos que são
permitidos entrar nessas unidades. Algumas vêm de lugares longínquos,
chegando cedo para não atrasar o horário da visita, uma vez que pas-
sam por um procedimento de “revista” onde precisam se desnudar se
quiserem estar por algumas horas ao lado de seu “filho” (LOPES, 2015).
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O Movimento de Mães do DEGASE – luta e dor 297

Elas constituem as famílias do sistema socioeducativo no Rio de Ja-

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neiro: mulheres, negras, oriundas de espaços segredados; estas são
algumas das características que estão presentes na fala das represen-
tantes do Movimento das Mães dos Meninos do DEGASE, quando in-
dagadas sobre suas histórias de vida. Suas compreensões identitárias
congregam outras identificações, como mães de adolescentes autores
de atos infracionais, mães que se organizam a partir da dor da perda
de seus filhos. Diferentes identificações dão transparência em demais
trechos das entrevistas como: histórias de violências domésticas, re-
ferência de territórios de origem, histórias de perdas de seus filhos,
etc. São marcadores importantes que permitem que essas mulheres
se percebam enquanto grupo, com suas identidades próprias, com
questões comuns que impulsionam suas organizações na luta por ob-
jetivos em comum.
Buscou-se, portanto, estudos e reflexões para entender de que fa-
mília estamos analisando.
Contudo, continuamos com algumas indagações: o que motiva
essas mães a permanecerem na luta por tanto tempo, como é o caso
de algumas lideranças? O que leva essas “mães” suportarem uma
rotina de se desnudarem frente a desconhecidos. Seja fisicamente
numa “revista” dentro de uma unidade, ou seja, diante de um “aten-
dimento técnico”, quando revelam as histórias de suas vidas. Talvez
ainda não tenhamos respostas concretas para isso e sim hipóteses
que vão desde o amor materno, passando pela moral, pelos valores
sociais e religiosos, chegando até ao desespero em ter a certeza de
que seus filhos estejam vivos.

[...] somos mães, apenas mães, pretas, pardas, brancas, amare-


las, gordas, magras, apenas Mães. (GLÓRIA)13.

Este é um lugar de pertencimento que, mesmo com toda dor que traz,
permite que essas mulheres se identifiquem e se vejam enquanto grupo,
com anseios próprios de grupos, construindo suas histórias e lutas.

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298 Ida Cristina Rebello Motta

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24 mar. 1990.

Notas

1 Mestre em Política Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Assistente


Social da Escola de Gestão Socioeducativa Professor Paulo Freire/Departamento
Geral de Ações Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro. Assistente Social
(aposentada) da Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos/
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Brasil. ORCID: 0000-0003-0262-109X.
E-mail: ida motta7cas@hotmail.com

2 Pesquisa intitulada “Em nome do filho! Um estudo sobre o movimento de ‘Mu-


lheres Guerreiras’: Mães dos Meninos do DEGASE” (MOTTA, 2017). Aprovada pelo
Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos sob parecer nº 2.346.901.

3 Entrevista realizada com Glória uma representante das organizações que com-
põem o Movimento das Mães dos Meninos do DEGASE (Cf. MOTTA, 2017).

4 As bases éticas da Ação Socioeducativa; Socioeducação: estrutura e funciona-


mento da comunidade educativa; Parâmetros para formação do socioeducador;
os regimes de atendimento do ECA (BRASIL, 2006).
5 Associação Brasileira de Busca e Defesa à Criança Desaparecida (ABCD).

6 Associação de Mães e Amigos da Criança e do Adolescente em Risco (AMAR-SP).

7 “[...] Aprendemos que as relações de parentesco são resultado da combinação de


três relações básicas: a descendência entre pais e filhos; a consanguinidade entre ir-
mãos; e a afinidade a partir do casamento, sendo a família considerada como o grupo

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O Movimento de Mães do DEGASE – luta e dor 301

social por meio do qual se realizam esses vínculos” (FREITAS et al., 2010, p. 17).

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8 É a normativa que oferece parâmetros para gestão e operacionalização da Políti-
ca de Assistência Social.

9 “[...] A expressão ‘circulação de crianças’ denomina a transferência e/ou partilha


de responsabilidades de uma criança entre um adulto ou outro. Esse é um exem-
plo típico de práticas realizadas em todas as partes do mundo, sendo adaptadas
a cada realidade sociocultural” (FREITAS et al., 2010, p. 21).

10 “[...] não se deve esquecer que, mediante a política social, é que direitos sociais
se concretizam e necessidades humanas (leia-se sociais) são atendidas na pers-
pectiva da cidadania ampliada” (PEREIRA, 2008, p. 165).

11 Sobre o assunto ver: Sunkel (2006), Mioto (2008) e Saraceno (1997).

12 Entrevista realizada com Mônica Cunha uma representante das organizações que
compõem o Movimento das Mães dos Meninos do DEGASE (Cf. MOTTA, 2017).

13 Entrevista realizada com Glória uma representante das organizações que com-
põem o Movimento das Mães dos Meninos do DEGASE (Cf. MOTTA, 2017).

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Dimensão pedagógica da intervenção

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profissional no trabalho com famílias

Poliana de Oliveira Carvalho1

Solange Maria Teixeira2

Resumo
O Trabalho Social com Família (TSF) é um dos principais serviços implementados na
Política Nacional de Assistência Social (PNAS). Além de se constituir de forma contra-
ditória devido ao jogo de forças e interesses que envolvem toda política pública, é um
desafio para o assistente social que, apesar de ser guiado por um projeto profissional
crítico e libertador, tem sua ação emancipadora limitada por um conjunto de questões
próprias aos moldes que as políticas públicas assumem, especialmente, a partir das
reformas neoliberais. Esse artigo constitui-se de uma pesquisa teórica voltada para
discutir os limites e possibilidades do alcance da emancipação a partir do TSF.

Palavras-chave
Emancipação; Serviço Social; Trabalho Social com Família (TSF).

Emancipatory educational dimension of professional intervention in work with families

Abstract
Social Work with Family (TSF) is one of the main services implemented in National
Social Assistance Policy (PNAS). Besides being constituted in a contradictory way
due to the play of forces and interests that involve all public politics, it is a challenge
for the social worker, who, despite being guided by a critical and liberating profes-
sional project, has its emancipatory action limited by a set of issues specific to the
patterns that public policies assume, especially, from neoliberal reforms. This article
is a theoretical research aimed at discussing the limits and possibilities of achieving
emancipation from the TSF.

Keywords
Emancipation; Social Work; Social Work with Family (TSF).

Artigo recebido: agosto de 2018


Artigo aprovado: outubro de 2018

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304 Poliana de Oliveira Carvalho e Solange Maria Teixeira

Introdução
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No trabalho do assistente social, sua finalidade é posta com base


em valores ético-políticos e teórico-metodológicos sintetizados no
Projeto Ético-Político (PEP) da categoria, um antídoto contra a aliena-
ção, embora não a elimine totalmente já que é inerente ao processo de
trabalho, sob o controle e a direção do capitalismo.
Um dos princípios do PEP é o reconhecimento da liberdade como
valor ético central e das demandas políticas a ela inerentes – autono-
mia, emancipação e plena expansão dos direitos sociais. Como ressal-
tam Barroco e Terra (2012), Marx retratou a liberdade como a capaci-
dade que o homem possui de se autodeterminar, de desenvolver suas
potencialidades e suas habilidades, acentuando, ainda, que a liber-
dade inexiste na sociedade capitalista, já que é meramente formal e
não permite alternativas. Essa fundamentação teórica conduz a outro
princípio: a opção por um projeto profissional vinculado ao processo
de construção de uma nova ordem societária, sem dominação/explo-
ração de classe, etnia e gênero. Expressa, portanto, o fim buscado e o
sentido dado à autonomia e à emancipação.
Apesar dessa direção e da ligação orgânica a esse projeto societário
emancipador, o trabalho profissional ocorre nas instituições capitalistas,
com as respostas dadas pela ordem burguesa às refrações da “questão
social”. Nesse cenário, o Estado é o maior empregador, mediante polí-
ticas públicas, em especial, as sociais, cujas requisições pelo assistente
social se dão por competências no planejamento, na gestão e execução
dessas políticas. Então, como efetivar um trabalho profissional nessa
dimensão de emancipação humana, com o exercício profissional nas
políticas sociais? Quais mediações podem ser pensadas e atingidas na
busca dessa emancipação mais geral? A dimensão pedagógica da in-
tervenção profissional, com grupos de famílias, no trabalho social com
famílias (TSF) na Política Nacional de Assistência Social (PNAS), tem po-
tencialidades de acionar, movimentar e implementar ações mediadoras
que favoreçam esse projeto societário emancipador?

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Dimensão pedagógica da intervenção profissional no trabalho com famílias 305

Nessa perspectiva, este artigo visa problematizar a dimensão

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emancipatória do TSF desenvolvidos pelo Serviço Social, no âmbito
da PNAS, destacando não apenas os limites desse, mais também as
possibilidades, enquanto perspectiva mediadora desenvolvida pelo
trabalho socioeducativo numa dimensão crítica.

Emancipação via políticas públicas: é possível?


Na atualidade, há um leque extenso de políticas públicas que, den-
tre muitos objetivos perseguidos, buscam, direta e/ou indiretamen-
te, alcançar algum grau de emancipação social ou política, na garantia
dos direitos e da democracia. Fugindo das concepções ingênuas ou
simplistas, faz-se urgente questionar que emancipação uma política
implementada por um Estado que é influenciado pelo sistema econô-
mico capitalista pode alcançar.
A categoria emancipação é intrínseca à Modernidade a partir de um
contexto de lutas para vencer dogmas religiosos e políticos que nu-
blavam os horizontes de conhecimento e de liberdade. Segundo Luiz
(2013), o termo liberdade é associado ao pensamento de Marx quando
fez análises sobre a emancipação humana, a partir da luta por uma
verdadeira democracia, por uma sociedade não dominada pela bur-
guesia (sem dominação de classes, sem exploração e sem opressão).
Marx (1994), na obra “A Questão Judaica”, faz uma separação entre
o que ele chama de emancipação política e de emancipação humana.
A primeira, a partir da discussão de questões como a importância de
um Estado laico, aconteceria a partir de um distanciamento do Estado
de questões individuais e intrínsecas à esfera privada e a interesses
particulares. Para o autor, a emancipação política é importante e um
sinônimo de progresso, mas não representa a forma final de emanci-
pação. O que, segundo Luiz (2013), pode ser considerada uma etapa
para o alcance da emancipação humana.
Na atualidade, segundo Silva (2013), muitas das ações realizadas
para promover a emancipação junto às populações mais pobres esta-
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riam centradas, na verdade, apenas na emancipação política por meio


da satisfação (mesmo que de forma precária, uma vez que a maior
parte das ações são pontuais, focais e minimalistas) de algumas carên-
cias humanas. Para promover a emancipação humana, exige-se que os
sujeitos assumam o controle consciente dos rumos da sua existência,
que estão permanentemente obscurecidos pelas amarras do sistema
capitalista de produção. Muito do que se tem perseguido como ideal
de vida (trabalho, consumo, sistemas meritocráticos, etc.), na verdade,
está promovendo um ideário burguês circunscrito no ideário político.
Segundo Tonet (2014) e Silva (2013), o termo emancipação pare-
ce se conceituar por si só, mas, na verdade, carrega conotações bem
mais complexas, em que não é dotado de consenso no que diz respei-
to ao seu significado, o que dificulta o seu entendimento e a sua apli-
cabilidade. O sentido desenvolvido por Marx pressupõe uma situação
de liberdade plena a partir da superação das amarras políticas, so-
ciais, econômicas e ideológicas ligadas ao sistema capitalista. Mas não
é uma sociedade comunista que as políticas públicas implementadas
pelo Estado procuram em qualquer etapa do capitalismo.
O pensamento de Marx pressupõe emancipação a partir da des-
truição das amarras de subjugação do capital sobre o homem, que
parte do distanciamento dos problemas individuais, para uma luta
pelo bem-estar coletivo. Segundo Luiz (2013), a emancipação políti-
ca é possível de ser construída na sociedade atual, que é capitalista,
já a emancipação humana não é, pois pressupõe a ultrapassagem e
destruição da atual ordem. Além disso, a emancipação política não
garante o alcance da outra.
Para Assunção e Pedrosa (2015), a emancipação, como construção
humana, social e histórica na sociedade, acontece, principalmente, no
que se refere à emancipação social, por meio da construção de uma
sociedade que dá voz ao povo. Nas sociedades capitalistas, isso não
acontece, pois quem tem esse poder ou competência para dar voz não
representa as necessidades das camadas mais carentes.

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Dimensão pedagógica da intervenção profissional no trabalho com famílias 307

Segundo Chauí (2014) e Gohn (2006), o pensamento de Gramsci

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traz uma novidade para a análise do processo de busca da eman-
cipação social e de subjugação por parte do Estado capitalista. O
pensamento de Marx focava em uma emancipação no plano econô-
mico-estrutural. Para Gramsci, há a necessidade de se buscar uma
emancipação, também, política e cultural.
O Estado capitalista difunde a hegemonia, não apenas funda-
mentado na dominação coerciva, mas na coesão, na busca do con-
senso em torno da ordem vigente. Isso quer dizer que por Estado
se deve entender não somente o aparelho governamental, mas,
também, o aparelho “privado” de hegemonia, ou a sociedade civil,
conforme as análises gramscianas.
A luta pela hegemonia permite alianças, acordos e pactos, mas pode
gerar o seu oposto, a luta contra-hegemônica, por uma nova hegemo-
nia, novos consensos em torno dos interesses dos trabalhadores que
se formam ainda na sociedade burguesa e que são mediações funda-
mentais para a consciência de classes para além do corporativismo.
Nesse sentido, inclui-se aqui a emancipação política e a social como
mediações fundamentais para a superação das necessidades sociais
básicas que amarram as lutas em uma dimensão imediatista, criando
possibilidades para o pensar e o lutar pela emancipação humana.
Para Gohn (2006) pensar em emancipação social é refletir sobre o
campo dos problemas sociais, dos conflitos, das lutas sociais e da vio-
lência e, acima de tudo, sonhar e buscar outra sociedade, com um viés
mais igualitário. Nesse contexto, destaca-se o papel privilegiado que
vai ter a cultura, como representatividade do imaginário dominante
de cada época. Esse pode ser fortemente redesenhado pelo contexto
econômico e social, levando mensagens de hegemonia e de domina-
ção de forma imperceptível.
O pensamento hegemônico leva a um processo de tolher as liber-
dades individual e grupal, a partir do direcionamento sobre como agir
e pensar e pelo que não lutar. Qual liberdade nos é permitido ter em

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um Estado capitalista? Para Paulo Freire (1975) a liberdade é um obje-


tivo difícil de ser alcançado, pois exige o romper com tradições, cultu-
ra e costumes estabelecidos pela sociedade atual. Para o autor, é um
grande dilema para uma sociedade já acostumada a uma tutela forte
do Estado e que tem uma noção de liberdade meramente formal.
O Estado, como instituição contraditória, é perpassado por inte-
resses diversos, principalmente de ideologias liberais que ocultam os
verdadeiros objetivos por trás das ações. Segundo Buci-Glucksmann
(1980), o Estado, ampliado a partir da defesa dos interesses do capi-
tal, procura estabelecer hegemonia e coerção. E as políticas públicas,
como resposta do Estado capitalista às expressões da “questão social”,
podem, de forma direta ou indireta, perseguir esses objetivos ou ser
espaço da luta contra-hegemônica.
Na lógica da sociedade capitalista moderna, ainda preponderan-
te na atual, a infraestrutura (estrutura material/base econômica) en-
gendra a superestrutura (estrutura ideológica, jurídica, política, etc.).
Portanto, o Estado está organicamente articulado na defesa dessa
sociedade. Sua importância é tão grande para a ordem capitalista,
que Mészàros (2011) o define como uma estrutura, com sua própria
superestrutura. Logo, os segmentos da sociedade estariam subme-
tidos aos interesses do capital, mas obscurecidos por ideologias que
fetichizam as relações sociais.
Esses interesses e esse controle vão perpassar todas as esferas da
vida em sociedade, inclusive no âmbito privado (ideal de comporta-
mento imposto que vai influenciar até no “modelo” de família desejado
para a sociedade capitalista). Para Buci-Glucksmann (1980), também,
são uma forma de organização do consenso, a partir da massificação
de comportamentos “produtivos” ou “normais” para o sistema capita-
lista a partir do ideal de mulher, de família e outros.
Para Chauí (2006) a lógica econômica comanda as lógicas so-
ciais, política e psicológica, a partir da determinação do sentido, da
finalidade e do papel de cada coisa na sociedade, em encontro aos

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 303 - 324


Dimensão pedagógica da intervenção profissional no trabalho com famílias 309

seus interesses. Logo, é ingênuo acreditar que o processo de eman-

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cipação social aconteça por meio de canais instituídos pelo Estado
e não seja perpassado por contradições diversas. Mas, mesmo nes-
ses espaços, por serem expressões de contradições de interesses
antagônicos, pode-se expressar essa luta pela hegemonia ou pela
contra-hegemonia.
Para dominar e manter a hegemonia o Estado se abre para inte-
resses antagônicos, perpassados na construção das políticas públi-
cas, cuja implementação depende também de processos de traba-
lhos importantes que reforçam o desenho das políticas ou fogem dele
aproveitando-se de suas contradições para promover os usuários dos
serviços e construir um trabalho socioeducativo emancipatório, ainda
que limitados à dimensão social ou política dessa emancipação.
Para Luiz (2013) e Giaqueto, Ligabue e Proença (2015), quando se
traz esse debate sobre emancipação humana para a atualidade, diante
das contradições e da possibilidade de ruptura com a ordem vigente,
a partir de reflexões de Gramsci, esse fenômeno pode ser alcançado
de duas formas: ampla e molecular. A primeira, como o próprio nome
pressupõe, aconteceria a partir do fim da ordem burguesa capitalista
(a ser perseguida como fim de longo prazo).
A segunda, molecular, o que outros autores podem chamar de ex-
periências com alcance capilar ou de rizomas (DELEUZE; GUATTARI,
1995), aconteceria a partir de práticas pedagógicas que rompem com
o senso comum e potencializem o protagonismo consciente e ativo.
O processo molecular, como possibilidade de ruptura e de auto-e-
mancipação, pressupõe, segundo Gramsci, que deve haver a constru-
ção de uma contra-hegemonia pelas classes subalternas (GIAQUETO;
LIGABUE; PROENÇA, 2015). Mas como tornar essa contra-hegemonia
possível em terreno tão fértil ao capitalismo? É preciso que as clas-
ses que sofrem com a submissão ao sistema econômico se fortaleçam
intelectualmente, politicamente e culturalmente, para que possam
questionar o que está posto pela hegemonia classista.

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Essa “adaptação” feita por Luiz (2013) para realizar a análise da


categoria emancipação na realidade atual trouxe também a neces-
sidade de desenvolver um conceito diferenciado para o termo, de
modo que continue gestado ao ideário marxista de contestação da
ordem capitalista, mas com as mediações necessárias para atingi-
-la. Logo, o autor utiliza o seguinte conceito de emancipação política
para realizar a sua análise: “[...] processo molecular de elevação da
consciência crítica e do protagonismo social autônomo das classes
subalternas” (LUIZ, 2013, p.121).
Essa dimensão do conceito é compatível com as análises grams-
cianas de emancipação política como parte do processo maior
de emancipação humana, ou do que outros autores chamam de
emancipação social, que envolve a dimensão política-cultural e a
dos direitos e da cidadania.
Na visão de Santos (2001), o gozo de mais direitos sociais possi-
bilitou uma vivência com conotações positivas e negativas. De um
lado, trouxe ao acesso as vivências de autonomia, de liberdade e de
acesso educacional. Mas, por outro lado, possibilitou às instituições
estatais a instalação de práticas mais burocráticas e de uma vigilân-
cia controladora sobre os indivíduos.
Faleiros (2009) mostra que, devido ao poder que o sistema ca-
pitalista tem na sociedade atual, as políticas de Estado, têm funções
diretas no sistema capitalista, a partir da propagação de ideologias
específicas. Segundo Chauí (2006), a ideologia é o ocultamento ou a
dissimulação do real. E dentro desse processo de ocultamento tam-
bém há o perpassar do que se chama de discurso competente, en-
quanto discurso instituído pelas camadas dominantes, estabelecido
como verdade incontestável.
O autor não sataniza as políticas sociais, mas mostra que elas, como
medidas implementadas pelo Estado, não são neutras e nem são boas
ou más em si mesmas. Trazem características positivas (alcançar um
fim específico ligado a um problema social) e negativas (propagação

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de ideologias dominantes, como o sentimento de fracasso ao depen-

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der diretamente do Estado) (FALEIROS, 2009).
Por meio dessas ideologias, o Estado moderno também se legiti-
ma e aparece como um poder uno, imprescindível e indestrutível. Os
problemas advindos da sociedade moderna aparecem como simples
diversidades das condições de vida de cada um. Ocultam-se a divisão
de classes, de poderes e de direitos sociais, a diferença (tratamento,
acesso – do exercício de poder por uma classe social sobre outras) e a
contradição (jogo de forças e interesses) (CHAUÍ, 2006).
Apesar de contraditória, a busca pela legitimidade é fundamental
para a ordem capitalista. Nessa luta pela hegemonia, e em função das
lutas dos trabalhadores, as respostas às refrações da “questão social”
deixam de ser predominantemente coercitivas e são tratados de for-
ma política, pela via do consenso, da política pública.
Concorda-se com Pereira (2009) quando diz que o desenvolvi-
mento das políticas sociais não pode ser compreendido como um
processo linear, de conotação exclusivamente positiva ou negativa.
Apresenta-se de forma contraditória, porque pode beneficiar interes-
ses antagônicos conforme a direção das disputas de poder e a corre-
lação de forças prevalecentes.
Nessa perspectiva, os profissionais que executam as políticas públi-
cas, ao atuarem no movimento contraditório das classes sociais e de
seus interesses, acabam por imprimir uma direção social às suas ações
profissionais que favorece um ou outro projeto societário, uma vez que
é impossível uma postura de neutralidade. Nem todas as profissões tem
clareza dessa dimensão política do seu processo de trabalho e acabam
reproduzindo, ainda que inconscientemente, o status quo, enquanto
outras assumem uma dimensão consciente a favor dos interesses dos
usuários dos serviços, como é o caso dos assistentes sociais.
Além disso, o trabalho profissional nesse campo das políticas sociais
abarca ações socioeducativos, cujo conteúdo pedagógico pode se dirigir
para a referida emancipação social ou política, as revoluções molecula-

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res, culturais, como mediação para a emancipação humana, resultante


de lutas sociais mais amplas e de um projeto alternativo de sociedade.
A título de exemplo, os assistentes sociais assumem o compromisso
com o princípio da liberdade concebida historicamente, como a pos-
sibilidade de escolher entre alternativas concretas, daí o compromisso
com a autonomia, a emancipação e a plena expansão dos indivíduos
sociais. Nesse contexto, os direitos sociais e de cidadania, fundamen-
tais na emancipação social, são mediações para um atendimento dig-
no, mas o fim é uma sociedade mais justa e igualitária, para além do
capitalismo. Eles não esgotam, nem dão origem linearmente a uma
transformação da realidade, mas atendem a necessidades básicas e
geram possibilidades de avanço das lutas para além do corporativis-
mo e das lutas imediatas.
Conclui-se neste item enfatizando que a política social está organi-
camente relacionada à política econômica (financiamentos, direciona-
mentos etc.). Logo, uma política instituída por um Estado que funciona
a partir dos direcionamentos da política econômica encontra muitos
empecilhos para promover objetivos audaciosos como a emancipa-
ção social. Mas isso não quer dizer que se busca o impossível, e, sim,
que, devido ao seu caráter contraditório, espaços se abrem para criar
condições para essa emancipação social, para ações de dimensão
política, a depender dos compromissos profissionais com os projetos
societários antagônicos. Assim, é possível realizar ações transforma-
doras e moleculares, que geram uma consciência crítica da realidade
vivida e a necessidade de lutas para transformá-la.

A dimensão pedagógica da intervenção do assistente social nos


espaços socio-ocupacionais das políticas sociais
O assistente social atua sobre as refrações da “questão social” e o
seu “[...] enfrentamento [...] envolve a luta pela construção, materia-
lização, consolidação dos direitos sociais, como uma mediação para
a construção de uma outra sociabilidade” (CFESS, 2013, p. 25). Como

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ainda ressalta o documento referido, uma das formas de acessar e de

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garantir esses direitos é por meio das políticas sociais, em especial,
as públicas, um dos principais espaços socio-ocupacionais da pro-
fissão desde suas origens.
O profissional tem um contato privilegiado com os usuários das po-
líticas e, como ressalta Barroco e Terra (2012), independente da sua
intenção, ele tem de ter consciência que suas ações e seus encami-
nhamentos terão repercussões e consequências para o usuário. Logo,
é imprescindível que toda a sua ação esteja embasada no PEP e no
PROJETO societário perseguido pela categoria, enquanto princípios e
diretrizes, defendidos pela maioria dos profissionais, que, apesar de
não ser unívoco, representam um ideal incorporado no Código de Éti-
ca, na Lei que regulamenta a profissão e no próprio conteúdo que per-
passa a matriz curricular do curso.
As políticas públicas têm uma função social importante na dinâmi-
ca da reprodução social. Na sociedade capitalista organizada, a partir
da contradição básica entre aqueles que produzem a riqueza social e
aqueles que exploram e se apropriam dessa riqueza socialmente pro-
duzida, esse complexo assume, predominantemente, o caráter de as-
segurar a reprodução social da ordem hegemônica.
Todavia, essas políticas são perpassadas por contradições, decor-
rem de lutas sociais, de resistências e são marcadas pelos projetos
societários antagônicos. Como destaca CFESS (2010, p. 16):
As políticas de Seguridade Social são concebidas na ordem ca-
pitalista como resultado de disputas políticas e, nessa arena de
conflitos, as políticas sociais, resultantes das lutas e conquistas
dos trabalhadores, assumem caráter contraditório, podendo in-
corporar as demandas do trabalho e impor limites, ainda que
pontuais, à economia política do capital.

Vale ressaltar, conforme Yazbek (2009), que a reprodução social in-


clui o processo de reprodução da totalidade das relações sociais na
sociedade, que não é meramente reprodução e manutenções, mas um

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processo complexo que contém a possibilidade do novo, do diverso,


do contraditório e da mudança. “Trata-se, pois, de uma totalidade em
permanente reelaboração, na qual o mesmo movimento que cria as
condições para a reprodução da sociedade de classes cria e recria os
conflitos resultantes dessa relação e as possibilidades de sua supera-
ção” (YAZBEK, 2009, p.127).
O trabalho do assistente social incide sobre a reprodução social,
mediada pelas políticas sociais. Como destaca Iamamoto (2001), o
trabalho do profissional tem efeito nas condições materiais e sociais
(político-ideológica, cultural e educativa). Ou seja, tem efeito nas con-
dições de reprodução material da força de trabalho e da sua família,
por meio de benefícios, de serviços, de programas, que incidem na
sobrevivência desse grupo, mas, também, tem um efeito social, pois
enfoca no “[...] campo do conhecimento, dos valores, dos comporta-
mentos, da cultura que, por sua vez, têm efeitos reais interferindo na
vida dos sujeitos” (IAMAMOTO, 2001, p.68).
Ainda conforme a autora, o trabalho do assistente social interfere
no processo de reprodução sociopolítica ou ideo-política e, junto com
outros profissionais e inúmeros protagonistas, na criação de consen-
sos na sociedade, sejam os dominantes ou os das classes dominadas,
contribuindo no reforço da hegemonia vigente ou na criação de uma
contra-hegemonia no cenário da vida social.
Assim, seu trabalho é marcado, conforme Yazbek (2009), pelo
atendimento de demandas e de necessidades, mediante serviços das
políticas públicas e das privadas, e por uma ação socioeducativa para
com os usuários dos serviços, interferindo em seus comportamentos
e seus valores, em seu modo de viver e de pensar, em suas formas de
luta e de organização e em suas práticas de resistências.
Destaca-se nesse trabalho a atuação do assistente social junto ao
TSF na Política de Assistência Social. Com um histórico de clientelismo
e pouca efetividade, a Assistência Social brasileira luta para a afirma-
ção de uma nova feição voltada para a conquista de direitos e o de-

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senvolvimento de um sistema organizado e descentralizado de servi-

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ços, que busque construir ações de caráter pedagógico voltadas para
o desenvolver de indivíduos e de famílias com capacidade de reflexão
e de contestação da realidade dada, por meio do protagonismo, da
autonomia e da participação social.

Dimensão contraditórias no trabalho social com famílias e as


possibilidades de emancipação social e política
Com metodologias, bases teóricas e objetivos diversificados, o TSF
é o carro chefe das ações socioassistenciais, principalmente, na Prote-
ção Social Básica (PSB), constituindo-se em um grande desafio para os
assistentes sociais, uma vez que esses têm lugar cativo na composição
das equipes de referência a partir da Norma Operacional Básica de
Recursos Humanos do Sistema Único de Assistência Social (NOB-RH/
SUAS) e se tornaram um dos principais executores desse serviço. O
TSF aposta em metodologias de intervenção voltadas para a promo-
ção da reflexão e a construção de cidadãos mais autônomos e partici-
pativos, a partir da lógica de alcance da emancipação social.
Isso não acontece de maneira fácil, uma vez que, contraditoria-
mente, esse trabalho tenta conciliar o objetivo de uma política volta-
da para a construção de direitos com a parceria da família na cons-
trução da proteção social. Daí o objetivo primeiro de o serviço estar
centrado na potencialidade das funções familiares na garantia de
uma socialização menos problemática.
O TSF propõe metodologias de intervenção voltadas para a pro-
moção da reflexão, a construção de cidadãos mais autônomos e par-
ticipativos, a partir da identificação de seus recursos e potenciali-
dades, pautando-se no respeito à dialogicidade e à autonomia das
famílias (BRASIL, 2012).
O TSF embora se configure na mobilização para a participação ou
da formação política para o efetivo exercício da cidadania, ainda se
pauta, em grande escala, em atividades de esclarecimento, de repas-

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se de informações no direcionamento para a mudança de hábitos e


ações (como cuidar dos filhos, como melhor administrar seu lar, ge-
rir os recursos dos benefícios, acompanhar os filhos etc.), como se
as vulnerabilidades sociais decorressem de más condutas ou do não
cumprimento das funções da família (EIRAS, 2012).
Segundo Mioto (2004), o trabalho com família ainda é direcionado
por lógicas arcaicas, enraizadas culturalmente, na busca por padrões
de normalidade e estabilidade. Perante tantas mudanças empreendi-
das ao redor da família, não tem como se instituir um padrão de fun-
cionamento e de modelo ideal, sem se tornar conservador e excluidor.
Para Mioto (2016) e Teixeira (2016) o trabalho culpabiliza as famílias
e mesmo atuando na dimensão da proteção social básica, ainda se
volta para as que fracassaram no cuidado. Os problemas são iden-
tificados centrados nas próprias famílias. Logo a forma como se vem
interpretando e implementando o serviço vai de encontro ao que de-
fende o PEP da profissão.
Em relação às tendências teóricas identificadas na base desse tra-
balho socioeducativo, destacam-se as bases gramscianas e da Peda-
gogia de Paulo Freire (EIRAS, 2012; LIMA e MIOTO, 2011; ABREU, 2011).
Segundo Abreu (2011), apesar de essas bases já serem identificadas no
trato da “questão social” desde a década de 1970, haveria, na atualida-
de, uma atualização dos perfis pedagógicos, a partir da reconstrução
dos princípios educativos, na busca de superar, principalmente, o per-
fil de conformismo (novo conformismo social – consenso), imposto
pelos interesses do capital e exemplificado pela subalternidade dos
usuários da assistência social, criando.
Segundo Lima e Mioto (2011), as bases de Gramsci são referenciadas
para a busca da construção e da consolidação de uma perspectiva de
trabalho social que visa a emancipação – uma pedagogia emancipató-
ria, a partir da organização e da mobilização em torno de necessidades
comuns. A proposta chama o indivíduo, a família e, principalmente,
a classe trabalhadora a questionar a realidade e lutar por seus direi-

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tos. Isso significa tanto o fortalecimento da autonomia dos indivíduos

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quanto da sua organização e da sua mobilização em torno de necessi-
dades comuns na esfera pública.
Segundo o Manual de Orientações Técnicas sobre o Serviço de Aten-
ção Básica Família (PAIF) (BRASIL, 2012), os trabalhos podem ser orga-
nizados a partir de uma pedagogia problematizadora, que foi pensada,
inicialmente, a partir das contribuições de Paulo Freire na educação po-
pular. Além da valorização da possibilidade de constante mudança e de
recriação do ser humano, também se aposta na capacidade de liberta-
ção por meio do diálogo e da reflexão, o que exige, ainda, um processo
constante de reflexão e de crítica por parte dos técnicos sobre o tra-
balho e a metodologia adotada. O Manual também cita como aborda-
gem metodológica, a Pesquisa-Ação, como uma forma de intervenção
técnica que visa a solução de uma questão específica e que possibilita,
ainda, a coleta de dados importantes para o conhecimento da realidade.
A base freireana possibilita, a partir de um conteúdo deflagrador de
discussão (condições de vida e estratégias de sobrevivência), construir
um processo pedagógico que leva à reflexão e ao questionamento da
realidade: “O trabalho socioeducativo realizado grupalmente permite ou
possibilita que os sujeitos possam identificar-se com o grupo, possam
construir uma identidade grupal e agir a partir de convergências de inte-
resses ou da formação de horizontes comuns” (EIRAS, 2012, p.139).
Essa pedagogia perpassa, transversalmente, principalmente no
processo de acompanhamento familiar, o desenvolvimento da capa-
cidade de vocalizar demandas e necessidades. Parte-se do princípio
de que, a partir do momento em que se ganha a capacidade de refletir
e de dialogar sobre sua realidade, é um passo importante para proble-
matizar sobre a realidade em que vive.
Segundo Abreu (2011) e Eiras (2012), o TSF fundado nessa peda-
gogia, se implementado de forma não embasada teoricamente ou
por profissionais sem um compromisso com um projeto profissional
emancipatório, pode atualizar a pedagogia da “ajuda” e da “participa-

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ção”, e não a da emancipação. O uso das expressões empoderamen-


to e protagonismo no interior da política acontecem no sentido de a
família resolver “seus problemas” com seus próprios recursos e os da
comunidade. No mesmo sentido, é utilizada a noção de autonomia,
uma visão individualizante e liberal.
As metamorfoses operadas nas pedagogias da “ajuda” e da “par-
ticipação”, acontece a partir da incorporação de novos elementos e
de mediações que refuncionalizam essas pedagogias no processo de
reorganização da cultura, a partir da orientação neoliberal. Trata-se da
função histórica do ocultamento não só das dimensões econômica e
política da assistência no processo de reprodução na força de traba-
lho e no exercício do controle social, mas, fundamentalmente, como
desdobramento dessas dimensões, a dissimulada manutenção do tra-
balhador em permanente estado de necessidade material e de domi-
nação político-ideológica.
Perante o que foi levantado, Abreu (2011) não descarta a contribuição
da função pedagógica na construção de processos emancipatórios. O
que aconteceria por meio da construção de estratégias de efetivação
de direitos, da incorporação das necessidades dos usuários na constru-
ção e idealização das ações, bem como mediante a participação deles
na gestão dos serviços. O assistente social, enquanto profissional com-
prometido com a construção de uma ordem societária voltada para o
bem-estar do trabalhador por meio de uma sociedade igualitária tem o
compromisso ético-político de buscar e efetivar essas estratégias.
Cabe aos profissionais que executam o serviço se apropriar dos re-
ferenciais teóricos adequados e assumir uma faceta moderna e liber-
tadora, obrigação essa que tem um peso maior para os assistentes
sociais, uma vez que se pressupõe um comprometimento ético com
um projeto profissional que abarca essa faceta.
Isso nos leva a refletir sobre as principais dificuldades enfrentadas
para a construção desse trabalho social com grupos de famílias. A ques-
tão financeira tem sido um dos grandes desafios para a execução da Po-

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lítica de Assistência Social, em especial para os serviços. Falta de equi-

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pamentos, de profissionais, de infraestrutura e de uma rede de serviços.
O formato do trabalho também é questionado pela ausência das
relações horizontais e participativas em todo o processo. Identifi-
ca-se, claramente, o coordenador, os profissionais e o participante.
Geralmente, o planejamento e as avaliações dos serviços não cons-
tam de processos participativos pelos usuários, cuja única participa-
ção solicitada é a frequência nos encontros de acompanhamentos.
Eiras (2012) questiona como se incentiva a reflexão e a emanci-
pação nesses processos de trabalho, se a participação do indivíduo
membro da família é diminuída e secundarizada. Nos próprios ma-
nuais de orientação sobre o TSF prever-se que a reunião aconte-
ça sob a coordenação de um técnico de nível superior da equipe
de referência do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS)
(BRASIL, 2012).
Para Teixeira (2013, p.129), as próprias concepções de autonomia,
de protagonismo e de empoderamento apresentadas no TSF são con-
traditórias, “[...] pois sua garantia e efetivação dependem de recursos
privados, mesmo informais ou sem-fins lucrativos, da capacidade de
resposta individual e familiar”.
Para Paiva (2006), a política por si só já é permeada por preocupa-
ções que giram em torno do financiamento da infraestrutura etc. Há,
também, preocupações técnicas e teóricas – saberes e condições de
trabalho. Faz-se urgente o fortalecimento da dimensão político-pe-
dagógica do direito socioassistencial, com base no rigor técnico e
no controle social, capazes de mobilizar e potencializar a decisão de
participação da população, diretamente e de forma emancipatória.
O trabalho deve se pautar na efetivação de direitos e na busca de
uma postura emancipatória, em que, para isso, as ações do grupo de-
vem construir uma atuação livre de preconceitos e de estigmas, bem
como procurar desvendar as potencialidades que vão fortalecer a atu-
ação dessas famílias em seus territórios de vivências.

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Conclusão
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A discussão mostra que as práticas educativas que levam à refle-


xão da realidade nem sempre são emancipatórias, principalmente, se
elas têm por foco funções familiares, de criar habilidades e aquisições,
como se os problemas decorressem das desfuncionalidades ou do
não cumprimento adequado dessas funções.
Essa direção é possível em virtude das contradições da PNAS e
do modo como incorpora a família, ora como sujeito de direitos, ora
como agente de proteção social de seus membros, e dos objetivos do
serviço de potencializar as funções protetivas da família, mas também
de incentivar sua participação, protagonismo e autonomia.
Promover a autonomia e participação não pode ser encarado como
sinônimo de resolver um conjunto de problemas resultados de ex-
pressões da “questão social” – fruto de uma economia e sociedade
excludente e geradora de desigualdades –, com os recursos ou ativos
da própria família, como capacidade de resolução de conflitos inter-
nos, de disciplinamento e cuidado dos filhos, sem o subsídio do Esta-
do na garantia de direitos.
Todavia, por ser a política e o serviço contraditórios, e ter por ob-
jetivo a garantia de direitos, visar a participação, a autonomia e pro-
tagonismo o trabalho pode ser redirecionado para uma perspectiva
emancipatória, mesmo que na dimensão social, política ou cultural,
como mediação para se atingir finalidades mais amplas na direção da
emancipação humana, como horizonte maior.
Apesar das limitações identificadas no serviço, na infraestrutura e nas
metodologias, faz-se preponderante a presença de profissionais com-
prometidos e embasados ética e teoricamente, para que esses desafios
sejam minimizados e as potencialidades do serviço alcancem patama-
res maiores e levem ao alcance de objetivos emancipatórios de fato.
A construção do PEP da profissão foi acompanhada pelo desen-
volvimento de um processo de construção de uma massa crítica na
categoria que repercutiu positivamente no conjunto de ações e pro-

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duções cientificas dos profissionais de Assistência Social. Mas como

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toda política pública, inserida na sociedade capitalista, é permeada de
conflitos e jogo de forças, em que é possível identificar, estrutura de
trabalho sucateadas, profissionais com formação precária, profissio-
nais desestimulados com a pouco resolubilidade da política e usuários
ainda desacreditados do potencial dessa política.
Não é que não haja pontos positivos, experiências com êxitos a ser
examinadas ou a necessidade de redesenhar totalmente uma nova
política. Mas há muitos desafios e obstáculos a serem vencidos. Não é
fácil mudar o que envolve cultura, forma de fazer a política e de conse-
guir atender adequadamente quem tanto precisa dela, especialmente,
em contexto de crises econômicas, políticas e com ajustes fiscais res-
tritivos ao orçamento das políticas sociais.
Contudo, é possível mediante alianças com profissionais com pers-
pectivas teórico-metodológicas comuns, resguardadas as condições
da autonomia profissional, ainda que relativa, impor uma direção fun-
damentada em certas passagens e objetivos da legislação e redirecio-
nar para um sentido diferentes, para dimensões emancipatórias, ado-
tando como pressuposto, conforme Teixeira (2016): 1) trabalhar com
direção pedagógica para estimular o protagonismo comunitário na
pressão por mais e melhores serviços; 2) tornar as famílias e o cidadão
mais fortalecido para lutar e acessar e usufruir dos bens e serviços. Um
dos objetivos do trabalho socioeducativo deve ser o fortalecimento do
processo organizativo dos usuários, do coletivo, do desenvolvimento
do sentimento comum na família, nos grupos de famílias, naquele ter-
ritório, a necessidade da participação e do controle social.
Ou ainda, conforme a autora, a constituição de sujeitos de direitos
se dá no processo de compreensão das determinações sociais de suas
condições de vida, material e afetiva; no reconhecimento da força do
coletivo; e nas possibilidades concretas de acesso aos bens e servi-
ços produzidos socialmente que supere a situação de vulnerabilidade
social de muitas famílias e que as permitam conciliar vida profissional

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e vida familiar. Aliado a isso, um trabalho socioeducativo com dimen-


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Notas
1 Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal do Piauí (UFPI); Mestrado
em Políticas Públicas pela UFPI; Doutoranda em Políticas Públicas pela UFPI. Bra-
sil. ORCID: 000-0002-4490-0807. E-mail: polianacarvalho10@hotmail.com

2 Pós-doutorado em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São


Paulo (PUC-SP). Doutorado pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Mestrado em Serviço Social pela PUC-SP. Graduação em Serviço Social pela Uni-
versidade Federal do Piauí (UFPI). Professora do Programa de Pós-graduação em
Políticas Públicas da UFPI. Brasil. ORCID: 0000-0002-8570-5311. E-mail: sola-
gemteixeira@hotmail.com

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Deficiência e cuidado: implicações para as

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políticas públicas

Patrícia Maccarini Moraes1

Resumo
Este artigo problematiza a articulação entre deficiência, cuidado e políticas públicas
analisando a incorporação do cuidado às pessoas com deficiência nas políticas de
assistência social e saúde. Parte-se do conceito de deficiência proposto pelos teóri-
cos do modelo social que apresentaram a deficiência como constituinte da condição
humana. Assim, o cuidado a essas pessoas é assumido como uma necessidade so-
cial que exige respostas públicas. A análise empreendida aponta para a insistência
na família como provedora principal de cuidados e propõe-se reconhecer o cuidado
como um direito social, o que implica no deslocamento de responsabilidade do es-
paço privado para a esfera pública.

Palavras-chaves
Deficiência; Cuidado; Família; Políticas Públicas.

Deficiency and caution: implications for public policies

Abstract
This article discusses the articulation between disability, care and public policies an-
alyzing the incorporation of care to the disabled in the policies of social assistance
and health. It starts from the concept of deficiency proposed by the theorists of the
social model who presented the deficiency as constituent of the human condition.
Thus care for these people is assumed to be a social need requiring public responses.
The analysis pointed to the insistence on the family as the main provider of care and
it is proposed to recognize care as a social right, which implies the displacement of
responsibility from the private space to the public sphere.

Keywords
Disability; Caution; Family; Public Policy.

Artigo recebido: agosto de 2018


Artigo aprovado: outubro de 2018

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326 Patrícia Maccarini Moraes

Introdução
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A deficiência é atualmente uma temática que tem interessado cada


vez mais os estudiosos do campo das ciências sociais considerando as
transformações que vem ocorrendo na sociedade em relação à inser-
ção social da pessoa com deficiência. Dentre as questões que afloram
no campo dos estudos sobre deficiência hoje está a questão da de-
manda por cuidado. A preocupação com o cuidado no contexto in-
ternacional foi introduzida nos anos 1990 e 2000, fortemente influen-
ciada pelas feministas (OROZCO, 2006; AGUIRRE, 2009; CARRASCO,
2011; KITTAY, 20112). No contexto brasileiro, as discussões acerca do
cuidado das pessoas com deficiência são ainda mais recentes.
Historicamente, a deficiência foi tratada com base no enfoque
biomédico, que a entendia como uma tragédia pessoal, um proble-
ma individual, enfatizando assim uma relação de causalidade entre
lesão e deficiência. Esse modelo predominou até 1970 nos Estados
Unidos e no Reino Unido e compreendia a deficiência como um cam-
po restrito aos saberes médicos, psicológicos e de reabilitação. “Para
o modelo médico, a deficiência é consequência natural da lesão em
um corpo, e a pessoa deficiente deve ser objeto de cuidados biomé-
dicos” (DINIZ, 2007, p. 15).
No entanto, o caráter redutivo dessa explicação, bem como do tra-
tamento direcionado às pessoas com deficiência levaram ao ques-
tionamento desse modelo. A partir de então se passou a enfatizar a
deficiência enquanto forma de exclusão social, como uma maneira
particular de opressão social e também como um campo que inclui
ações políticas e de intervenção do Estado, além dos saberes biomé-
dicos. O modelo social de compreensão da deficiência foi criado nesse
contexto e a entende como um “[...] conceito complexo que reconhe-
ce o corpo com lesão, mas que também denuncia a estrutura social
que oprime a pessoa deficiente” (DINIZ, 2007, p. 9). Para os teóricos
desse modelo, a deficiência passou a ser entendida como uma experi-
ência de opressão, vivida por pessoas com diferentes tipos de lesões.

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Deficiência e cuidado: implicações para as políticas públicas 327

Em poucas palavras, Diniz (2007, p. 23) resume as diferenças entre os

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dois modelos: “Para o modelo médico, lesão levava à deficiência; para
o modelo social, sistemas opressivos levavam pessoas com lesões a
experimentarem a deficiência”.
Mello e Nuernberg (2012, p. 636) reiteram essa compreensão e re-
forçam que a deficiência é constituinte da condição humana:
Como um processo que não se encerra no corpo, mas na pro-
dução social e cultural que define determinadas variações cor-
porais como inferiores, incompletas ou passíveis de reparação/
reabilitação quando situadas em relação à corponormatividade,
isto é, aos padrões hegemônicos funcionais/corporais.

Eles ressaltam que é fundamental, no escopo do modelo social, en-


tender a deficiência como resultante de interações pessoais, ambien-
tais e sociais da pessoa com o seu entorno, negando a vinculação cor-
po deficiente – opressão e a transfere para a estrutura social, que se
mostra incapaz de responder a toda a diversidade. O modelo avança
ao promover as pessoas com deficiência à condição sujeitos de direi-
tos (MELLO; NUERNBERG, 2012). O modelo social pode ser descrito
a partir de duas gerações. A primeira defende, entre outras questões,
que a eliminação de barreiras pode tornar as pessoas com deficiên-
cia independentes. Nesta compreensão, o cuidado e outros benefícios
compensatórios não eram discutidos, pois se presumia que o defi-
ciente tinha o mesmo potencial produtivo que o não deficiente. Assim,
bastava que fossem eliminadas as barreiras, para o desenvolvimento
de suas capacidades (DINIZ, 2007).
A segunda geração do modelo social, que agrega as críticas femi-
nistas produzidas nas décadas de 1990 e 2000, introduz temas secun-
darizados até então: o cuidado, a dor, a lesão, a dependência e a inter-
dependência. Essas reflexões vieram, especialmente, de mulheres que
viviam/tinham uma condição peculiar: eram deficientes ou cuidadoras
de deficientes. Assim, elas introduziram o debate sobre o papel das cui-
dadoras dos deficientes. Além disso, apontaram a necessidade de tratar
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de temas como as restrições intelectuais, a ambiguidade de identidade


deficiente em casos de lesões não aparentes e insistiram na existência
de “corpos temporariamente não deficientes”, ampliando o conceito de
deficiência para situações de envelhecimento e de doenças crônicas.
As feministas foram responsáveis, ainda, por evidenciar a convergência
de outras variáveis de desigualdade, que se somam à experiência da
opressão pelo corpo deficiente, como raça, gênero, orientação sexual
ou idade, marcando pontos de interseção entre essas variáveis.
A partir desses estudos, o cuidado se configurou como um obje-
to de análise no âmbito dos estudos sobre deficiência. Trata-se de
uma temática ampla e complexa à medida que se relaciona também
com o envelhecimento populacional e com as doenças crônicas,
que exigem cuidados de longo prazo. É um debate que tem muito
a avançar, considerando o seu caráter multidimensional e também
aos dilemas relacionados ao trânsito entre a responsabilidade do
cuidado entre o público e o privado. É justamente nesse debate
sobre o cuidado que este artigo se atém, articulando a discussão
ao campo das políticas públicas e problematizando o cuidado so-
cial como condição essencial para o bem-estar das pessoas com
deficiência. Para tanto o trabalho está estruturado em dois tópicos,
a saber: reflexões teóricas sobre o cuidado, articulando a “ética do
cuidado” proposta por Kittay com as produções de autoras brasilei-
ras; e análises das interseções entre pessoa com deficiência, cuida-
dos e políticas sociais, acrescido das considerações finais.

Reflexões teóricas sobre o cuidado


O campo das atividades de cuidado é marcado pelas desigualda-
des de gênero estruturadas em torno da decisão de “quem”, no âm-
bito da família arcará, com essa responsabilidade. Historicamente, os
argumentos ancorados nas diferenças biológicas e corporais entre os
sexos foram usados para naturalizar e justificar a desigualdade entre
homens e mulheres nos aspectos sociais, políticos e econômicos. A
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capacidade da mulher para gerar filhos justificou seu confinamento no

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espaço da casa e da família, como a principal responsável pelo traba-
lho doméstico e pelo cuidado. Essa desigualdade naturalizada social-
mente foi o que motivou muitas mulheres a estudar sobre sua condi-
ção para questionar a subordinação e a opressão das mulheres, bem
como reivindicar a desnaturalização daquela responsabilidade.
Os estudos contemporâneos, além de questionar o caráter pri-
vado e de gênero dessas atividades (majoritariamente realizadas no
espaço privado da família e por mulheres) como já fazem as feminis-
tas desde a década de 1960, propõem alterar as dinâmicas das insti-
tuições e políticas públicas possibilitando a alteração de paradigmas
nesse campo e, também, a redução das desigualdades de gênero
que estão colocadas na sociedade.
No entanto, pesquisas recentes mostram que a interseção gê-
nero e deficiência ainda é marcada por desigualdades quando o
cuidado está em pauta. Barros et al. (2017) analisa a sobrecarga dos
cuidadores de crianças e adolescentes com Síndrome de Down.
As autoras estudaram 84 cuidadores primários de crianças/adoles-
centes com Síndrome de Down de 0 a 21 anos e, para fins de com-
paração, trabalharam também com outro grupo de 84 cuidadores
de pessoas sem deficiências, na mesma faixa etária. Os resultados
evidenciaram que a mãe aparece como cuidadora primária para
ambos os grupos, porém, nenhum cuidador de pessoa com defici-
ência era homem, enquanto no grupo sem deficiência foram iden-
tificados 10 homens. Apenas 2,4% dos cuidadores de pessoas com
Síndrome de Down informaram trabalhar em tempo integral contra
54,8% do outro grupo. Além disso, os cuidadores do grupo sem de-
ficiência apresentam maior grau de escolaridade: 16,7% possuíam
ensino superior completo, e 2,4% para o grupo que cuida de crian-
ças e adolescentes com Síndrome de Down. Este último grupo de
cuidadores também apresentou os maiores índices de problemas
de saúde e em uso de medicação.

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Cerqueira, Alves e Aguiar (2016) estudaram as experiências vividas por


mães de crianças com deficiência intelectual nos itinerários terapêuticos
e mostraram que os cuidados prestados às crianças nessa condição são
intensos, contínuos, complexos e passíveis de se tornarem geradores de
estresse e opressão para os cuidadores. Esse reconhecimento exige aten-
ção ao cuidador, na perspectiva da integralidade, porém, observaram que
os cuidados no âmbito da saúde são prestados apenas à criança.
O entendimento de que a assistência à criança requer a inclusão
dos familiares é essencial para um atendimento humanizado, in-
tegral e eficaz, o qual compreende ações de apoio psicológico e
social, orientações para a realização de atividades da vida diária
e ações básicas de reabilitação, além da oferta de suporte espe-
cializado em situações de internamento hospitalar ou domiciliar.
(CERQUEIRA; ALVES; AGUIAR, 2016, p. 3238).

Essas pesquisas alertam para as persistentes desigualdades de


gênero quando se trata de cuidar de alguém, e se acentua quando
se trata de cuidar de alguém com deficiência. No entanto, considera-
-se que é limitado apontar a superação das desigualdades de gênero
apenas pela maior divisão do trabalho entre os homens e as mulhe-
res no âmbito doméstico, uma vez que mantém a responsabilidade
confinada ao espaço privado, sustentado pelo “filtro” familiar para
decidir quem arca ou não com essas responsabilidades. Neste ar-
tigo serão elencados os elementos necessários para estruturar uma
nova ética em torno do cuidado e a urgência de abordá-lo como uma
questão pública, que implique em responsabilidades para o conjunto
da sociedade (Estado, mercado e terceiro setor, além da família) e
não restritas às mulheres no espaço familiar.
As teóricas feministas da segunda geração do modelo social de com-
preensão da deficiência criticaram a promoção de independência às
pessoas com deficiência por meio da eliminação de barreiras. Essa ideia
é considerada perversa, uma vez que algumas pessoas nunca serão in-
dependentes mesmo eliminando as inúmeras barreiras que diminuem o
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seu grau de dependência. Assim, prevalece o argumento de que todas

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as pessoas são dependentes em algum momento da vida e, portanto, a
interdependência torna-se um princípio adequado para pensar ques-
tões de justiça para a deficiência. As teóricas feministas argumentaram
que a dependência é inerente à vida de todas as pessoas e, assim, re-
presentaram os interesses daquelas pessoas com deficiência para quem
a garantia de cuidado era a principal demanda por justiça.
Eva Kittay (2011) defende que a condição de dependência e a deman-
da por cuidado são inerentes à condição humana. As sociedades deve-
riam ser estruturadas para acomodar dependências inevitáveis dentro
de uma vida digna, tanto para a pessoa que recebe o cuidado, quanto
para o cuidador. Ela destaca, também, a necessidade de uma ética que
oriente as relações entre os diferentes tipos de prestadores de cuida-
dos (integrantes da família, cuidados especializados/profissionalizados)
e pessoas demandantes de cuidados e reconhece a interdependência
como um valor que expressa a condição humana de pessoas deficien-
tes e não-deficientes. Em contrapartida, propõe relações cooperativas,
atenciosas e respeitosas para com aqueles que dependem do outro em
algum momento de suas vidas. Assim, ela defende que o cuidado é um
bem indispensável e central, sem o qual é impossível uma vida digna, e
propõe a criação de uma “ética do cuidado” (KITTAY, 2011).
Kittay, Jennings e Wasunna (2005) afirmam o caráter social do cui-
dado. Com isso, a disponibilidade para cuidar e para receber cuidados
depende da organização social e política, com normas condiciona-
das pela natureza humana, por entendimentos culturais e éticos, bem
como pelas circunstâncias econômicas e políticas.

Por “cuidado” no contexto deste artigo, quero dizer, o apoio e a


assistência que um indivíduo exige de outro, onde o que pre-
cisa de cuidados é inevitavelmente dependente porque é mui-
to jovem, muito doente ou prejudicado, ou muito frágil, para
gerenciar a automanutenção diária sozinho3 (KITTA; JENNINGS;
WASUNNA, 2005, p. 443).

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Para as autoras, cuidado é um trabalho mesmo quando não é re-


munerado. Ressaltam a dimensão pessoal e ao mesmo tempo, social,
simbólica e significativa do cuidado. Criticando a “privatização” das
questões de dependência e o “mito do independente”4, cristaliza-
do principalmente nas sociedades ocidentais, as autoras apontam a
necessidade premente de formular uma ética global de cuidados de
longo prazo. Na formulação dessa ética, consideram-se as alterações
demográficas e o crescente envelhecimento populacional, ou seja, a
população idosa, acrescida dos doentes crônicos e das pessoas com
deficiência. Os cuidados de longo prazo e a atenção às crianças, tra-
dicionalmente, foram ofertados pelas famílias. No entanto, a elevação
da expectativa de vida faz com que as pessoas precisem lidar com o
cuidado dos idosos; a globalização interrompeu as tradicionais formas
de cuidados e a inserção das mulheres na força de trabalho remu-
nerada faz com que os cuidados precisem ser complementados por
cuidadores não familiares. Coloca-se o problema de onde encontrar
cuidadores para serem pagos, assim como recursos para pagar por
eles. Quando o cuidado não é financiado de forma privada (o que é
raro) pode ser financiado pelo Estado ou organizações não governa-
mentais (KITTAY; JENNINGS; WASUNNA, 2005).
Na formulação dessa ética global de cuidados de longo prazo, as
autoras que analisam o contexto internacional, informam que outras
problemáticas precisam ser consideradas, tais como: a) tratamento
de trabalhadores de cuidados migrantes; b) as obrigações das nações
ricas que importam careworkers às nações pobres que exportam
esses trabalhadores; c) a qualidade do atendimento possível para
aqueles deixados para trás, no caso de trabalhadores migram para
outras nações ou para outras partes de sua nação para tirar proveito
das mudanças globais nos mercados; d) questões éticas que surgem
quando o cuidado é considerado à luz de entendimentos culturais
diferentes sobre cuidado e comunidade. Ou seja, destaca-se a im-
portância de cuidar do cuidador, o reconhecimento da interdepen-

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dência e da premissa que somos seres relacionais, bem como o res-

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peito às questões étnicas e culturais. Essa ética de cuidado global de
longo prazo, na visão das autoras, precisa também ser influenciada
por uma política da diferença que considere as desigualdades estru-
turais a que estão submetidas às pessoas com deficiência, mulheres
e negros desde o princípio. Nesse ponto de vista, não é possível falar
em igualdade de acesso e de oportunidades para esse público (KIT-
TAY; JENNINGS; WASUNNA, 2005).
No campo das ciências humanas e sociais, autoras que não estão
diretamente vinculadas aos estudos sobre a deficiência também têm
tratado da problemática do cuidado.
Mioto e Dal Prá (2017) endossam a definição de Marcondes (2014) e
entendem o cuidado:
Como uma prática social que, ancorada na divisão sexual do
trabalho, tem como objetivo atender as necessidades humanas
concretas, mas também emocionais e psicológicas, pressupon-
do a interação face a face entre quem cuida e quem é cuidado
em uma relação de interdependência. Trata-se de prática social
essencial para a sustentabilidade da vida humana. (MARCON-
DES, 2014 apud MIOTO; DAL PRÁ, 2017).

Mioto e Dal Prá (2017), a partir de uma revisão bibliográfica, indicam


que o cuidado pode ser abordado sob duas perspectivas: como ques-
tão de natureza privada, com ênfase na solidariedade e na responsa-
bilidade de cuidar do outro; e como questão de natureza pública. Além
disso, por meio da contribuição das autoras feministas, identificam
três vertentes no debate sobre o cuidado: 1) cuidado como trabalho
de reprodução, vinculado ao trabalho doméstico – familiar; 2) cuidado
como direito social; 3) cuidado social.
O cuidado como trabalho de reprodução inclui o trabalho do-
méstico tradicional e abrange dimensões afetivas, emocionais e re-
lacionais. É aquele organizado a partir do espaço doméstico mesmo
que se combine com o mercado ou setor público. O cuidado como
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direito social implica o reconhecimento de um direito universal: de


receber cuidados em diferentes etapas e circunstâncias da vida,
deve ser desatrelado da lógica do mercado, a vinculação à renda
ou a presença de redes, e articula ainda a existência de condições
de trabalho no setor de cuidados. Nessa segunda vertente, cuidado
significa cuidar, ser cuidado e cuidar de si. Não se trata de políti-
cas de apoio às mulheres (PAUTASSI, 2007 apud MIOTO; DAL PRÁ,
2017). Já o cuidado social propõe o deslocamento da responsabi-
lidade do cuidado para a esfera pública (MIOTO; DAL PRÁ, 2017).
Helena Hirata enfatiza essa vertente ao afirmar:

Então, o care deveria ser dissociado de idade e de gênero, isto


é, deveria dizer respeito a homens e mulheres, e não apenas às
pessoas que cuidam de familiares em casa e às que têm o cui-
dado como oficio e são remuneradas para cuidar. O care deveria
atingir todas as pessoas da sociedade, porque toda a sociedade
precisa de care. (HIRATA, 2010, p. 45).

Mioto, Dal Prá e Wiese (2018, no prelo) defendem o reconhecimen-


to da demanda por cuidado como um problema público e não vin-
culado estritamente ao âmbito da família. Ancoradas em autoras que
compreendem o cuidado como um dos campos da proteção social
e que se desdobra em uma difícil equação institucional que agrupa
o Estado, as empresas, as famílias e o terceiro setor na propositura
de soluções. Assim, esse é um campo diretamente influenciado pelas
relações entre as políticas econômicas e sociais. Enfatizam a compre-
ensão do cuidado como trabalho, como relação interpessoal e como
responsabilidade socialmente construída e inscrita em contextos so-
ciais e econômicos particulares.

Dessa forma, o direito ao cuidado, como universal, vem sendo


reconhecido e incluído como mais um dos pilares – ao lado da
previdência social, da saúde e da educação – da cidadania so-
cial. Ou seja, passa-se a pensar que o cuidado, especialmente

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de dependentes (crianças, idosos, deficientes, doentes) deve ser

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assumido coletivamente, e não apenas quando a família está au-
sente. Essa nova concepção implica necessariamente uma nova
forma de conceber as relações entre Estado, família e indivíduo
calcada na responsabilidade social do cuidado das pessoas.
(MIOTO; DAL PRÁ; WIESE, 2018, p. 11, no prelo).

Nessa perspectiva, o direito ao cuidado é incluído no escopo dos


direitos humanos e que no seu processo de construção implica que
seja desvinculado da lógica do mercado, da renda ou da presença ou
não de laços afetivos; implica ainda direito de escolha por parte da-
quele que receberá os cuidados, ou seja, cabe a ele definir se o cui-
dado será realizado de forma não remunerado por alguém da família,
sendo então desvinculado das obrigações familiares. Por fim, importa
analisar as condições de trabalho no setor de cuidados, possibilitan-
do valorização social e econômica nos casos de profissionalização do
cuidado (MIOTO; DAL PRÁ; WIESE, 2018, no prelo).
Construir políticas no sentido proposto pelas autoras e por Kittay
significa romper com o familismo presente nas políticas públicas. Este
termo foi proposto por Esping-Andersen (1991) ao analisar os proces-
sos de participação da família na reprodução de bem-estar, e usou-o
para caracterizar como o sistema atribui à família inúmeras funções
e obrigações a serem desempenhadas. O contrário disto é a desfa-
milização, que se refere às “[...] políticas que reduzem a dependência
individual da família e que maximizam a disponibilidade de recursos
econômicos por parte do indivíduo independente das reciprocidades
conjugais e familiares” (ESPING-ANDERSEN, 1991 apud MIOTO; DAL
PRÁ; WIESE, 2018, no prelo).
A revisão teórica realizada sobre cuidado indica a necessidade de
tratá-lo como um problema público, extrapolando o universo privado
e individual, bem como aponta a urgência de reconhecer o papel do
cuidador e as relações de interdependência. Estes aspectos colocam
alterações conceituais e práticas no horizonte das políticas sociais que

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têm as pessoas com deficiência como público prioritário. A partir des-


ses pressupostos, decidiu-se analisar como o cuidado é colocado no
Brasil, especificamente a partir da Lei Brasileira de Inclusão e das polí-
ticas de assistência social e saúde.

Pessoa com deficiência, cuidado e políticas públicas


A recente Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, Lei
11.146/2015, conhecida como o Estatuto da Pessoa com Deficiência,
contempla os avanços colocados pelo modelo social de compreen-
são da deficiência, indo além do paradigma médico. A referida lei
aborda o cuidado em dois pontos. Num primeiro momento, no Art.3,
parágrafo XII, ao conceituar o atendente pessoal: pessoa, membro
ou não da família, que, com ou sem remuneração, assiste ou presta
cuidados básicos e essenciais à pessoa com deficiência no exercício
de suas atividades diárias, excluídas as técnicas ou os procedimen-
tos identificados com profissões legalmente estabelecidas (BRASIL,
2015). Além do atendente pessoal, a lei institui também o acompa-
nhante da pessoa com deficiência, aquele que acompanha a pessoa
com deficiência, podendo ou não desempenhar as funções de aten-
dente pessoal (Art. 3, parágrafo XIV).
O segundo momento em que a palavra cuidados é mencionada
nesta lei é no capítulo VII, que trata do direito à assistência social, e
no Art. 39, inciso 2, aponta que: “Os serviços socioassistenciais desti-
nados à pessoa com deficiência em situação de dependência deverão
contar com cuidadores sociais para prestar-lhes cuidados básicos e
instrumentais” (BRASIL, 2015).
Ainda tratando sobre o Estatuto da Pessoa com Deficiência, ob-
serva-se que o Art. 8 determina: “É dever do Estado, da sociedade
e da família assegurar a pessoas com deficiência, com prioridade,
a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à sexualidade,
à paternidade e à maternidade, à alimentação, à habitação, à edu-
cação, à profissionalização [...]” (BRASIL, 2015). Apesar de, no texto
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Deficiência e cuidado: implicações para as políticas públicas 337

da Lei, o Estado ter primazia, observou-se que a lei não menciona

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acerca da operacionalização desse cuidado pelo Estado e também
não existe problematização dessa demanda como uma necessida-
de social, certamente, porque se subentende, como ocorreu histori-
camente, que a família responderá às necessidades de cuidado das
pessoas com deficiência.
A discussão que tem ocorrido em torno da política social nas úl-
timas décadas tem evidenciado os processos de responsabilização
da família na provisão de bem-estar social, especialmente através
de sua incorporação no modus operandi das diferentes políticas se-
toriais tais como saúde, assistência social, dentre outras (PEREIRA,
2004; MIOTO, 2012). Tal responsabilização tem sido realizada em di-
ferentes níveis que vão desde a legislação até as negociações que se
estabelecem no campo dos serviços ofertados à população que ten-
dem a fortalecer a naturalização do trabalho de cuidado como sen-
do obrigação familiar e das desigualdades de gênero no interior das
famílias. Essa situação vem sendo duramente criticada consideran-
do a sua impropriedade, pois como tem evidenciado Pereira (2004),
além do caráter contraditório da família, as transformações na sua
organização, gestão e estrutura, a dificuldade de definir as frontei-
ras e responsabilidades de provisão de bem-estar contraindicam as
possibilidades de a família continuar assumindo a centralidade no
campo da proteção social (MIOTO, 2012).
Dentro desse quadro, é importante analisar como as pessoas com
deficiência têm sido incorporadas no campo da política social, es-
pecialmente em relação ao cuidado. No Brasil, a primeira observa-
ção que deve ser realizada é que a família continua sendo a principal
instância de provisão de recursos e cuidado para as pessoas com
deficiência. Essa assertiva será analisada à luz das interseções entre
o cuidado às pessoas com deficiência e as políticas sociais de assis-
tência social e de saúde por meio dos principais programas de aten-
dimento ao público em questão.

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338 Patrícia Maccarini Moraes

Interseções com a política de assistência social


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Fora do campo da família, a política pública que tem primazia no


atendimento às necessidades das pessoas com deficiência é a Política
Nacional de Assistência Social (PNAS). Uma política destinada ape-
nas às pessoas que não tem condições de prover suas necessidades
e nem as famílias têm condições de lhes sustentar. Isto significa que a
questão do cuidado, especialmente do cuidado das pessoas com de-
ficiência, não se configura como um direito de todos e, portanto, não
adentra como uma questão pública a ser enfrentada.
Nessa interseção é importante destacar duas questões sobre a
PNAS. A primeira é que sob sua égide se organiza o principal progra-
ma de transferência de renda a esse público, o Benefício de Prestação
Continuada (BPC) trata da transferência de renda para pessoas que
comprovem condições de pobreza. O BPC destina-se à pessoa idosa,
com 65 anos ou mais e à pessoa com deficiência física, mental, inte-
lectual ou sensorial, de qualquer idade, com impedimentos de longo
prazo (BRASIL, 2017). A segunda questão é sobre o lugar que o cuidado
às pessoas com deficiência ocupa nessa política, explorado a partir
dos serviços propostos entre as ações da PNAS.
O Serviço de Proteção Social Especial para Pessoas com Deficiên-
cia, Idosas e suas Famílias, cuja unidade de referência é o Centro-dia,
é ofertado na proteção social especial de média complexidade e a
residência inclusiva na alta complexidade como um serviço de aco-
lhimento institucional.
O Serviço de Proteção Social Básica no domicílio para pessoas
com deficiência e idosas que requer atenção no tocante à intera-
ção entre política social, família e cuidado, uma vez que as ações na
proteção básica buscam evitar a ocorrência de violações de direitos.
O caderno de orientações produzido pelo Ministério do Desenvolvi-
mento Social (MDS) para nortear as ações nesse serviço apresenta
o cuidado como um direito social, vinculado à existência humana e
essencial às relações familiares e sociais. Nesse caderno pressupõe-

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Deficiência e cuidado: implicações para as políticas públicas 339

-se que a família contém potencialidades para prover cuidados, tais

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como: bens relacionais, reciprocidade, gratuidade, acolhida incondi-
cional e totalidade de atenção. Afirma-se, sobretudo, que o cuidado
familiar deve ser compreendido no contexto da diversidade das fa-
mílias, considerando o ciclo de vida dos seus membros, as suas con-
dições objetivas de vida e a dinâmica dos territórios em que estão
inseridas. As distintas formas de família, natural ou extensa, também
são agregadas a essa diversidade (BRASIL, 2017).
Constata-se que a família assume a centralidade na oferta do cui-
dado e questiona-se a disponibilidade de pessoas aptas para cuidar,
em razão do conjunto de transformações familiares e sociais5 que po-
dem reduzir a capacidade da família para ofertar de cuidado. Essas
transformações que provocam uma redução na capacidade de cui-
dado no âmbito das famílias “[...] estão a exigir do Estado novas ofer-
tas de serviços voltados ao apoio aos esforços das famílias no exercí-
cio do cuidado e proteção aos seus membros, em particular aqueles
com vulnerabilidades associadas à deficiência ou ao envelhecimento”
(BRASIL, 2017, p. 46). Ou seja, afirma-se a necessidade de proteger os
que são cuidados e os cuidadores por meio de serviços e benefícios,
mas aponta que estes são complementares aos ofertados pela família.
Essa questão aparece claramente em outro ponto do documento:
O estresse e a sobrecarga advindos do cuidado à pessoa com
algum grau de dependência é muito grande. É importante que
os serviços de apoio às famílias, em alguns momentos, possam
oferecer suporte aos cuidados à pessoa com deficiência ou ido-
sa, o que contribuirá de forma positiva para as relações familia-
res, minimizando os riscos de ocorrência de violação de direitos.
Isto não implicará em substituir a família, mas contribuirá para
a melhoria de sua qualidade de vida e para que o familiar possa
cuidar de si. (BRASIL, 2017, p. 47).

No plano discursivo, as orientações negam a responsabilização da


família, porém o conjunto de ações que se propõe a desenvolver é vol-

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tado exclusivamente para a família, na tentativa de conseguir rearran-


jos na distribuição interna do cuidado, sem externalizá-lo ou colocá-lo
como um problema público. Reconhece as desigualdades de gênero
nessa seara e estimula a adoção de estratégias para que mulheres e
homens possam repartir as tarefas intrínsecas ao cuidar de forma mais
igualitária. Contudo, não propõe ações estatais substitutivas. Na práti-
ca, evidenciam-se as contradições uma vez que a família está perma-
nentemente presente como primeira responsável pelo cuidado.
O Serviço de Proteção Social Especial para Pessoas com Deficiên-
cia e suas famílias ofertado nos Centros-dias tem objetivo de “pres-
tar atendimento especializado nas situações de vulnerabilidades, risco
pessoal e social por violações de direitos às pessoas com deficiência
em situação de dependência e suas famílias” (BRASIL, 2012, p. 18). Si-
tuações de isolamento social, confinamento, falta de cuidados ade-
quados, alto grau de estresse do cuidador estão entre as consideradas
como violações de direitos:

O Centro-dia de Referência oferece uma atenção integral à pes-


soa com deficiência em situação de dependência durante o dia,
e ao mesmo tempo, serve de apoio às famílias e aos cuidado-
res familiares na diminuição do estresse decorrente de cuidados
prolongados na família. Neste contexto, contribui para o fortale-
cimento de vínculos e do papel protetivo da família; para o favo-
recimento da autonomia dos cuidadores familiares na concilia-
ção dos papeis sociais de cuidados, desenvolvimento de projetos
pessoais, estudos, trabalho e convivência com os demais inte-
grantes da família; além de prestar orientação sobre a importân-
cia dos autocuidados dos cuidadores. (BRASIL, 2012, p. 19).

Observa-se que todas as situações elencadas como violações de


direitos pelo serviço de proteção especial para pessoas com deficiên-
cia se relacionam com “obrigações” não cumpridas pelas famílias. Ou
seja, quando aquela proteção que se esperava da família, de alguma
maneira, falhou. O Centro-dia presta atendimento diurno às pessoas
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Deficiência e cuidado: implicações para as políticas públicas 341

com deficiência em situação de dependência por meio da oferta de

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cuidados pessoais complementares aos ofertados pelas famílias, mas
também não substitui a família. Estes são termos que reforçam a ideia
de uma família protetiva e que tem primazia no cuidado no âmbito da
política de assistência social.
As residências inclusivas, no campo da proteção de alta complexi-
dade, ofertam serviço de acolhimento familiar para jovens e adultos
com deficiência, em situação de dependência, que não tenham condi-
ção de autossustento e nem de retaguarda familiar.
A política de assistência social incorpora o modelo social de com-
preensão da deficiência ao reconhecer a dependência e a demanda
por cuidado dessas pessoas e propor alternativas, tanto para os que
demandam de cuidado quanto para aqueles que cuidam. No entanto,
a análise das orientações e publicações ministeriais no âmbito da polí-
tica mostra o seu caráter familista, que insiste em continuar tratando a
família como a responsável primeira pelo cuidado. Ou seja, ao mesmo
tempo em que se reconhece a necessidade apoiar e aliviar a sobrecar-
ga gerada pelo cuidado, reforça essa atribuição da família. Inclusive,
no âmbito da proteção social básica busca-se reforçar e ativar a capa-
cidade protetiva das famílias por meio do incentivo à convivência fa-
miliar. As mulheres são prejudicadas, pois num contexto marcado pelo
patriarcado é sobre elas que recai a tarefa de cuidar. Limitam-se as
possibilidades de autonomia das pessoas com deficiência que têm ne-
gados os seus direitos individuais e continuar a depender das famílias.

Interseções com a política de saúde


Conforme preconiza o Ministério da Saúde, as pessoas com de-
ficiência têm direito à atenção integral no âmbito do Sistema Único
de Saúde (SUS), que oferta desde os serviços básicos até aqueles es-
pecializados, como a reabilitação. Esses serviços estão previstos na
política nacional de saúde da pessoa com deficiência. Em 2012, foi
instituída a rede de cuidados à pessoa com deficiência no âmbito do
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342 Patrícia Maccarini Moraes

SUS. Além das Unidades Básicas de Saúde e dos Núcleos de Apoio à


Saúde da Família (NASF), os estabelecimentos habilitados em serviços
de reabilitação, os centros especializados em reabilitação e os centros
especialidades odontológicas compõem essa rede. Esses centros po-
dem ofertar ainda as oficinas ortopédicas, que são serviços “[...] de dis-
pensação, de confecção, de adaptação e de manutenção de órteses,
próteses e meios auxiliares de locomoção (OPM) [...]” (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2012). O Ministério da Saúde, articulado com essa rede, prevê
a oferta de transporte adaptado para aqueles que não tenham condi-
ções de mobilidade e acesso aos meios de transporte convencionais.
As informações disponíveis no site do Ministério da Saúde pos-
sibilitam acompanhar a implantação dos serviços de reabilitação no
estado de Santa Catarina. Conforme os dados do mês de janeiro de
2018, o estado contava com sete serviços habilitados em única mo-
dalidade de reabilitação6, seis voltados para a deficiência auditiva e
um voltado para a deficiência visual. Os Centros Especializados em
Reabilitação habilitados em duas modalidades de reabilitação (CER
II) estavam presentes em cinco cidades e atendiam as pessoas com
deficiências física e intelectual7. A oferta de veículos adaptados8 e ofi-
cinas ortopédicas são escassas. O estado contava três unidades de
veículo adaptado e uma de oficina ortopédica, localizada em Floria-
nópolis (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2018).
A análise da rede de cuidados do SUS traz à tona a centralidade
dos serviços voltados para a reabilitação das pessoas com defici-
ência. As discussões do modelo social de compreensão da defici-
ência já alertavam para a insuficiência do atendimento centrado na
reabilitação. Além disso, a exemplo de Santa Catarina, observa-se
que a rede está situada em algumas regiões do estado, notadamente
aquelas mais desenvolvidas, deixando totalmente descobertas regi-
ões interioranas. O acesso aos serviços de saúde, as questões de in-
fraestrutura urbana, a ausência de acessibilidade arquitetônica estão
articulados aos aspectos antes mencionados e potencializam as difi-

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Deficiência e cuidado: implicações para as políticas públicas 343

culdades e as limitações para que as pessoas com deficiência sejam

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atendidas pelo SUS. Todos os municípios devem ofertar atendimento
nas Unidades Básicas de Saúde, para cuidados básicos, e garantir o
acompanhamento domiciliar via equipes das Estratégias de Saúde
da Família (ESF). Naqueles municípios em que existem poucas uni-
dades de saúde, normalmente situadas nas regiões mais centrais das
cidades, as dificuldades de locomoção (falta de transporte adaptado,
valor das tarifas, calçadas não adaptadas e condições ruins de aces-
sibilidade, entre outros) configuram impedimentos no acesso das
pessoas com deficiência aos serviços, sejam de saúde, de assistên-
cia social, de educação, etc. Estas barreiras estruturais, novamente,
potencializam o papel da família como provedora de proteção social,
visto que, diante da ineficiência do Estado em ofertar respostas pú-
blicas, são as famílias que precisam apresentar as respostas.
A privatização é outro nó que se apresenta na análise da interseção
deficiência e saúde. A privatização da seguridade social como um todo
se realiza através do setor comercial (mercado), setores voluntários
(organizações não governamentais) e o setor informal (MIOTO; DAL
PRÁ, 2017). O contexto de insuficiência da proteção social ofertada
pelo Estado e ampliação da oferta de serviços no mercado enfatiza
a responsabilização da família, que além do cuidado, prover recursos
financeiros para custear serviços de saúde.
No tocante ao acesso de serviços adquiríveis no mercado a família
entra em cena novamente, pois funciona como um filtro de acesso na
medida em que decida o que vai ou não ser consumido.

Considerações finais
O caráter social do cuidado, conforme informado na revisão teórica,
condiciona a disponibilidade para cuidar e receber cuidados à organi-
zação econômica e política, bem como aos aspectos culturais e éticos
de uma sociedade. No Brasil, as políticas econômicas de orientação
neoliberal reduzem a intervenção estatal ao mínimo no que se refe-
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344 Patrícia Maccarini Moraes

re às políticas públicas, materializando ações focalizadas e, em alguns


casos, de cunho assistencialista9. Nesse contexto, a oferta de serviços
no mercado aparece como solução, mas exclui a parcela mais pobre
da população. Intensificam-se os cuidados domiciliares/familiares e o
tratamento dessa questão persiste como um problema privado.
Destaca-se que quanto maior a associação de marcadores como
pobreza, deficiência, raça/etnia e gênero, maior será a situação de
desproteção social e de vulnerabilidade, enfatizando a família, e prin-
cipalmente as mulheres, na provisão de cuidados. O campo do cuida-
do, historicamente, é marcado por desigualdades de gênero, estrutu-
radas em torno da divisão sexual do trabalho, conforme as feministas
denunciam desde 1960. É assim na atenção às crianças, aos idosos,
aos doentes crônicos e, principalmente, no atendimento às deman-
das das pessoas com deficiência. No entanto, ao concluir as reflexões
desse artigo, interessa demarcar que apenas uma maior participação
dos homens no âmbito privado não será suficiente para equalizar essa
desigualdade. Esse eixo de análise não ignora ou secundariza o pa-
pel central e histórico assumido pelas mulheres que sempre tiveram
como sua atribuição o ato de cuidar, mas na esfera pública, o chamado
para essa atribuição é feito sempre pela via da família.
Compreender o cuidado como um campo da proteção social e
reconhecê-lo como um direito impõe a necessidade de rediscutir a
responsabilidade do Estado, das famílias, das empresas e do terceiro
setor, conforme destacaram Mioto, Dal Prá e Wiese (2018, no prelo).
Ou seja, essa compreensão afeta a legislação trabalhista, os movimen-
tos comunitários e da sociedade civil, a regulação social e econômi-
ca operada pelo Estado e os pactos e normas que são articulados na
organização cultural. Considera-se que é fundamental tratar o cuida-
do como uma necessidade de todas as pessoas, o que exige outras
respostas sociais, públicas e privadas. No âmbito público, com base
nas contradições apontadas, significa alterar paradigmas no que se re-
fere ao financiamento, operacionalização e elaboração das políticas

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Deficiência e cuidado: implicações para as políticas públicas 345

sociais, secundarizando a família e priorizando o indivíduo, tanto o

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cuidado quanto o cuidador. No escopo do privado, entende-se que é
imprescindível valorizar os trabalhadores do cuidado, mesmo quando
não remunerados – o que tende a diminuir na medida em que a res-
posta pública aumentar – seja na situação de profissionalização.
Especificamente, acerca do cuidado das pessoas com deficiência
é fundamental seguir com as análises e proposições, considerando
o estigma e as discriminações que essas pessoas enfrentam histo-
ricamente. Tanto no âmbito do feminismo quanto nas ciências hu-
manas e sociais têm-se evidenciado a necessidade de ultrapassar os
modelos que preconizam a responsabilização da família e construir
alternativas ancoradas numa ética do cuidado, conforme proposto
por Kittay (2005, 2011), ou apoiadas na premissa do cuidado como
um direito social ou quiçá nos moldes do cuidado social nos termos
indicados por Mioto e Dal Prá (2017).

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Notas
1 Doutoranda em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço So-
cial da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Assistente Social no Ins-
tituto Federal de Santa Catarina, campus Caçador. Brasil. ORCID: 0000-0003-
1821-7411. E-mail: pmaccarinimoraes@gmail.com

2 Ilse Zirbel (2016), em sua tese de doutora intitulada “Uma teoria político-feminista
do cuidado”, realizou uma ampla revisão teórica sobre o assunto.

3 By "care" in the context of this article, I mean the support and assistance one indi-
vidual requires of another where the one in need of care is "inevitable dependent"
that is, dependent because they are too young, too ill or impaired, or too frail, to
manage daily self-maintenance alone.

4 “[...] sujeito não incorporado – não nascido, não está desenvolvendo, não está
doente, não está deficiente e nunca envelhece – que domina nosso pensamento
sobre questões de justiça e questões de política” (KITTAY; JENNINGS; WASUN-
NA, 2005, p. 445).

5 A incorporação da mulher no mercado de trabalho e sua inserção escolar; o au-


mento da taxa de divórcios e de recasamentos; a diminuição das taxas de fe-
cundidade; a migração rural – urbana e entre cidade, em especial, dos jovens; a
busca de estudo e trabalho fora do lugar de origem; a forte cultura do individu-
alismo; a falta de vínculos afetivos e de habilidades para determinados cuidados
e o empobrecimento das famílias com membros em situação de dependência
devido aos altos custos que essa situação gera a família (BRASIL, 2017, p. 46).

6 Serviços localizados nas cidades de Joinville, Jaraguá do Sul, Florianópolis (duas


unidades), São José e Chapecó (duas unidades, um voltado para deficiência audi-
tiva e outro para deficiência visual).

7 Serviços localizados nas cidades de Itajaí, Lages, Criciúma, Florianópolis e Blumenau.

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348 Patrícia Maccarini Moraes

8 Disponível em Criciúma e Itajaí (geridos pelo município) e Florianópolis (gestão


estadual).

9 Entendem-se como ações assistencialistas aquelas que negam o reconhecimen-


to dos direitos sociais e vinculam as práticas assistenciais a uma relação de po-
der, ancoradas na lógica do favor, que subalterniza os sujeitos que buscam assis-
tência. Assim, a crítica ao assistencialismo “[...] não está no assistencial em si, mas
no modo político de compreendê-lo e operá-lo” (SPOSATI, 2009, p. 19).

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Trabalho com família no âmbito das políticas

ISSN: 2238-9091 (Online)


públicas

TEIXEIRA, Solange Maria (Org.). Trabalho com família no âmbito das


políticas públicas. Campinas: Papel Social, 2018. 244p.

Luciana Moreira de Araujo1

Resenha recebida: agosto de 2018


Resenha aprovada: outubro de 2018

Se a temática família, por ser entendida como espaço primeiro e


primordial de proteção, não representa necessariamente uma novi-
dade para a intervenção e pesquisa, esta coletânea destaca-se por se
debruçar sobre a lacuna existente nos estudos acerca do trabalho com
famílias no campo das políticas públicas.
Organizado por Solange Maria Teixeira – cuja obra é voltada para
o campo das políticas públicas, família e envelhecimento – o livro
em tela é constituído em três partes: A primeira “Trabalho com fa-
mília: fundamentos e perspectivas contemporâneas” traz a questão
da contemporaneidade nas ações planejadas e desenvolvidas, como
um orientador para os fundamentos teórico-metodológicos que
embasam a dimensão reflexiva e interventiva, tanto nas demandas
apresentadas pelas famílias, quanto na relação com o Estado via po-
lítica pública. A segunda parte “Trabalho com família na política de
assistência social” abstrai teoricamente eventos e experiências co-
tidianos referentes à proteção social básica e especial, de média e
alta complexidade. Ambivalências transversais aos serviços sociais
configuram os elementos marcantes dos artigos que compõem esta
seção. Dos serviços individuais e fragmentados à matricialidade fa-
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miliar, ainda presencia-se exigências calcadas na concepção este-


reotipada da mesma. A terceira parte “Trabalho com família na políti-
ca de saúde” tem o foco no Programa Melhor em Casa e no contexto
dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).
São apresentados dez artigos redigidos por autoras do Serviço So-
cial e campos epistemológicos afins, com suas respectivas pesquisas
e trabalhos interconexos, situados em programas de universidades de
quatro regiões diferentes. São inquietações do universo de demandas
e relações de trabalho com as famílias e com a política pública.
Ficam evidentes para as/os leitoras/res que, subjacente ao teor
dos artigos produzidos, existem duas concepções/propostas an-
tagônicas de intervenção junto às famílias: uma pautada nos dire-
itos sociais legitimados na Constituição Federal de 1988, resultado
da agência dos movimentos sociais na redemocratização (reforma
psiquiátrica, movimento nacional dos meninos e meninas de rua e
outros), que convoca a responsabilidade do Estado pela garantia dos
direitos com a participação política dos sujeitos na condição pre-
mente da sua cidadania. E outra, ancorada nas premissas da ofensiva
neoliberal, cuja redução do Estado (leia-se para as classes menos
favorecidas) entrega para as famílias a responsabilidade da proteção,
sustentada no clichê (no meu entendimento, equivocado) sobre a
autonomia. Por suposto, apropria-se da palavra autonomia de for-
ma tendenciosa e descontextualizada, postulando a família como um
grupo isolado e restrito ao âmbito privado, negando sua inserção em
uma determinada classe social e nas condições objetivas que des-
ta decorrem. O mercado e o consumo configurariam o destino das
famílias na busca para o atendimento de suas demandas, mesmo
aquelas preconizadas como universais: a saúde e a educação.
A díade explicitada acima é constitutiva da estruturação da política
social e coloca para a intervenção profissional a armadilha que consiste
em negligenciar a categoria da totalidade. Ou seja, refletir que uma de-
manda imediata trazida às unidades de serviço, não se resume a um pro-

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Trabalho com família no âmbito das políticas públicas 415

blema isolado, mas corresponde a um aspecto microssocial que precisa

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ser analisado a luz da totalidade, evitando incorrer na naturalização da
desigualdade na distribuição da riqueza socialmente produzida.
No primeiro artigo intitulado “Família e Proteção Social: inter-
venções profissionais contemporâneas?”, Regina Célia Tamaso Mio-
to parte da questão norteadora “o que fazemos, como fazemos e o
que esperam de nós”, para refletir sobre as (supostas) recentes mo-
dulações das intervenções com as famílias. Discorre sobre a reco-
rrência das propostas interventivas, visto que nos oitenta anos do
Serviço Social, a família sempre foi entendida como lócus da inter-
venção demandada pelos empregadores e gestores em diferentes
contextos históricos. Não obstante as novas configurações familiares
e o reconhecimento da desigualdade estrutural de classe, de gêne-
ro e de etnia, a família ainda é depositária de muitas expectativas,
delegação e exigência de responsabilidades, que envolve riscos e
reciprocidades permeadas pela obrigação.
O ideário da família patriarcal burguesa ainda reside, supostamente
esmaecido, referenciando teoricamente correntes conservadoras no
denominado trabalho social com famílias. As legislações e o sistema
judiciário – com suas respectivas variações históricas – representam
agentes de regulação sobre papeis e funções. Nesse interstício o que
cabe aos profissionais no âmbito das intervenções, se pensarmos na
inter-relação entre todos os agentes no campo, ou seja, o Estado repre-
sentado nas políticas públicas e legislação vigente, os serviços sociais,
as famílias e as equipes profissionais? Como equacionar as tensões en-
tre o empenho profissional, via de regra coadunado com a garantia do
direito e lidar com possíveis julgamentos morais, quando a contrapar-
tida das famílias fica aquém daquela esperada pelas equipes técnicas?
O campo da elaboração das políticas sociais e das intervenções está
intrinsecamente atrelado ao próprio movimento da sociedade, e ainda
reverberam contradições sobre as concepções de família. As transfor-
mações almejadas necessitam múltiplas investidas: na esfera da for-

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mação profissional, no âmbito do trabalho, com debates que subsi-


diem a construção de outras mediações para pensar a práxis social.
Isto posto, nota-se o bastão sendo passado para o segundo artigo,
“Fundamentos teórico-metodológicos do trabalho social com famí-
lias” de autoria de Solange Maria Teixeira, que oferece subsídios para
a crítica às teorias conservadoras, ao dissertar sobre as matrizes de
fundamentação teórico-metodológicas Marxismo e Positivismo.
Destaca o referencial positivista/funcionalista e sistêmico como
representante da normatividade e estabilidade, operacionalizado por
ações individualizantes e burocratizadas. A analogia entre a sociedade
e o corpo humano, justifica a interpretação das relações sociais pela
busca da coesão, cabendo a ideia de desvio para os inadaptáveis. A
perspectiva materialista histórico-dialética, sustentada pelas catego-
rias historicidade e totalidade, realiza a leitura dos fenômenos políti-
cos, sociais e econômicos como expressões do modo das relações de
produção e reprodução. Indubitável tratar-se de dois epicentros de
análise das demandas apresentadas na imediaticidade do real, des-
dobrando-se em formas antagônicas de planejar e intervir. Superando
a falácia da neutralidade, o referencial marxista traz na concepção de
família, a construção histórico-social distinta de uma leitura essencia-
lizada, estando a família, portanto, sujeita às transformações, amplian-
do espaço para diversidades, contradições e conflitos, sem anular a
sua capacidade de socialização, convivência e construção da matriz
da identidade individual para seus integrantes.
São propostas interventivas contrapostas, seja no âmbito individual
– aqui entendido como o campo das singularidades daquela família
– seja no coletivo, estimulando articulações diante das particularida-
des que os une. O viés marxista objetiva ações de planejamento, so-
cioeducativas e socioassistenciais, estudos intersetoriais, ancorados
na política de proteção social integral em detrimento de ações que
reproduzem estereótipos e reforçam comportamentos julgados como
saudáveis, harmônicos ou adequados. Em última instância, referen-

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ciais teórico-metodológicos são mais do que compreensões e leituras

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distintas, e sim, implicações políticas que remetem a projetos socie-
tários diferenciados.
Concluindo a primeira parte do livro, o artigo de autoria de Marta
Silva Campos, “Política social e trabalho com famílias: questões atuais
para a formação profissional do serviço social”, retoma o surgimento do
modelo de proteção social a partir da concepção trifacetada dos dire-
itos civis, políticos e sociais. No Brasil, os serviços e as políticas sociais
destinadas, ainda nos anos 1930, à contenção da força de trabalho e às
famílias pobres convergiram campo de trabalho para os assistentes so-
ciais, nomeando a tríade política social, serviço social e família.
Historicamente a política social e o Serviço Social construíram tra-
jetórias próprias, tangenciadas por diversidades, heterogeneidades,
identificações, aproximações e distanciamentos que os consolidaram
como campo de conhecimento e trabalho até que se encontraram.
Em sua pesquisa quantitativa, Marta Campos faz um levantamento das
instituições de ensino superior que oferecem disciplinas relativas à fa-
mília, política social e Serviço Social, com suas articulações e desdo-
bramentos reflexivos/propositivos.
O quarto artigo, o qual inaugura a segunda parte desta coletâ-
nea, analisa as situações de descumprimento das condicionalidades
do Programa Bolsa Família (PBF). De autoria de Cássia Maria Car-
loto e Tatiana Oliveira Stecchi, “Trabalho com famílias em situação
de descumprimento de condicionalidades” resulta de uma pesquisa
qualitativa realizada no município de Londrina (PR). Resgata histori-
camente a origem dos programas de transferência de renda ressal-
tando vertentes serviram de base para as discussões à época: uma
cujo viés neoliberal, focalizado e voltado à população pobre que en-
tendia o programa como uma política compensatória; outra pautada
na perspectiva da redistribuição e lógica da cidadania sustentada na
premissa da universalidade e sem a necessidade de comprovação.
Uma vez estabelecidas as bases de diferenciação dos programas e de

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como se construiu a necessidade das contrapartidas como critérios


de permanência no mesmo, as autoras discorrem sobre os segmen-
tos sociais focalizados nesta política. A figura da mulher/mãe adquire
relevo como centralidade e referência não só para o recebimento do
benefício, como para o cumprimento das contrapartidas esperadas,
onerando substancialmente suas atribuições perante tantas deman-
das junto aos membros da família.
Observa-se que os motivos que irrompem no descumprimento das
condicionalidades, não raro, são alheios ao controle da família, mas as
respostas imediatistas do senso comum mantêm-se restritas ao hábi-
to da culpabilização, negligenciando as particularidades de cada con-
texto. Em suma, há entraves para um acompanhamento mais sistemá-
tico, além do acesso precarizado às políticas públicas. Neste sentido,
o bloqueio/suspensão/cancelamento do benefício adquire um efeito
reverso de acesso à política para o qual programa foi desenhado.
Julietty Nunes Cardoso dialoga com o raciocínio acima, também to-
cando na questão do gênero no quinto artigo intitulado “O trabalho
social com famílias na proteção especial básica e suas repercussões
nas relações de gênero”. As similaridades entre as análises resultam
da pesquisa realizada no Serviço de Proteção e Atendimento Integral à
Família (PAIF), no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) da
cidade de Teresina (PI). Problematiza o conceito de família no contexto
histórico dos regimes de bem-estar social tanto no exterior quanto
nos marcos políticos do Brasil, buscando respaldo em Solange Maria
Teixeira e Regina Célia Tamaso Mioto (referenciais teóricos que, aliás,
pelo elevado valor heurístico que concentram, fundamentarão todos
os artigos da segunda parte da coletânea).
Suas entrevistas com assistentes sociais e famílias atendidas pro-
duzem dados que convergem com Carloto e Stecchi, sobre a incom-
patibilidade da suspensão/bloqueio/cancelamento do PBF e a fi-
nalidade da promoção social. Versa ainda sobre a dupla face que a
centralidade na família representa, ao trazer os avanços perante a ló-

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Trabalho com família no âmbito das políticas públicas 419

gica da fragmentação, ao passo que reafirma o lugar de culpabilização

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destinado às mulheres/mães acoplado ao viés disciplinador e norma-
tizador que o PBF abarca. Quanto ao espelhamento da política pública
no movimento da própria sociedade, Julietty Cardoso propõe a revisão
do desenho da política sobre contrapartidas idealizadas para a família,
além da necessidade de incluir a transversalidade de gênero, quanto
às convenções dos papéis e a divisão sexual do trabalho.
Os avanços e entraves dos quais a centralidade na família é cons-
titutiva, estão desenvolvidos no sexto artigo “O trabalho social com
famílias na proteção social de média complexidade”. Marianne Ve-
loso Silva analisa a partir das legislações Política Nacional de Assis-
tência Social (PNAS) e Sistema Único de Assistência Social (SUAS),
tendências, perspectivas e obstáculos presentes nos serviços socio-
assistenciais. Traz para o cerne do debate a família que foi se configu-
rando o alvo da intervenção estatal; os casos de falha que ainda hoje
nutrem a concepção de família no vocabulário de muitos profissio-
nais: “desestruturadas” e “disfuncionais”.
O Estado comparece parcialmente para essas famílias por meio da
transferência de renda e de serviços sem que de fato mude a reali-
dade objetiva e subjetiva delas, mas exige a não reincidência como
contrapartida. Neste sentido, família e Estado sempre foram parcei-
ros mesmo nos regimes menos familistas, diferindo atualmente com
regulamentações via legislação e proteção social. Concorda com
Carloto e Stecchi, sobre a escassez e precarização das ações públi-
cas, universais, sistemáticas e contínuas. Marianne Silva propõe a re-
flexão acerca da transferência de responsabilidades versus proteção
do Estado para as famílias em situação de extrema vulnerabilidade.
Entre rupturas e permanências a noção de autonomia se confunde
com a desresponsabilização do Estado.
O interessante fio condutor que une os artigos dessa seção aponta
para medidas, serviços e políticas, cujos avanços permanecem insu-
ficientes para mudar objetivamente e subjetivamente a realidade das

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famílias atendidas – relação tensa e controversa entre a proteção e o


familismo – principalmente se considerarmos a complexidade e a di-
namicidade que as envolvem.
No sétimo artigo, “O trabalho social com famílias de origem no ser-
viço de acolhimento institucional” de Izabel Herika Gomes Matias Cro-
nemberger, o debate situa-se no âmbito da alta complexidade, nos
serviços de acolhimento institucional de crianças e adolescentes em
situação de risco. Uma pesquisa documental no plano individual de
atendimento (PIA) evidencia que as possíveis saídas na vida do ado-
lescente só descrevem pactuações que envolvem “recursos internos”,
acordos familiares e/ou comunitários, negligenciando as pactuações
que perpassam as políticas inclusivas.
A autora reforça a noção de autonomia na sua contribuição efetiva: na
capacidade de opinar, sugerir, intervir, compreender a realidade na sua
totalidade, em uma perspectiva social. Coaduna a esta lógica, o oitavo
artigo que encerra esta seção. De autoria de Poliana de Oliveira Carval-
ho, “Trabalho com famílias na assistência social: possibilidades e limites
do trabalho socioeducativo com grupos” enfatiza a autonomia no viés
da cidadania e nos processos sociais mais amplos e coletivos a partir de
metodologias participativas e perspectivas emancipatórias. A proposta é
substituir o dialógico pelo dialético, enaltecendo o planejamento, a siste-
matização e a avaliação junto com as famílias que uma vez motivadas e
preparadas podem desnaturalizar as condições em que vivem.
Se a terceira parte do livro demarca as especificidades no âmbito
da saúde, os artigos “Atenção domiciliar em saúde e processo de res-
ponsabilização das famílias: uma análise a partir do programa Melhor
em Casa” de Keli Regina Dal Prá e Cristiane Schmidt, e “Trabalho social
com famílias na perspectiva da política de saúde mental brasileira” de
Lúcia Cristina dos Santos Rosa, não fogem dos eixos de análise obser-
vados nos artigos anteriores e expressam sua concordância com os
núcleos de significação adotados. Seja no programa Melhor em Casa
ou no contexto dos CAPS, os seguintes aspectos merecem realce: a) o

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Trabalho com família no âmbito das políticas públicas 421

binômio mulher-cuidado evidenciando questão de gênero a ser pro-

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blematizada; b) a necessidade de suporte sistemático, presente, po-
litizado, que permita a troca de experiências e o fortalecimento das
famílias; c) o preparo das equipes que desenvolvem o trabalho social
com famílias na busca de transpor incipiências.
Dal Prá e Schmidt agregam ainda reflexões sobre a categoria hu-
manização de que a atenção domiciliar seria portadora, como desco-
lada das questões estruturais que perpassam o SUS. Importante lei-
tura para problematizar se a humanização versus redução dos custos
não contém um reforço da perspectiva familista, como a outra face da
moeda onde se justifica o conforto, saúde, segurança e assepsia do
lar. Um possível lugar de panaceia dedicado à família transferindo a
responsabilidade do Estado pode ser refletido também na análise de
Lúcia Cristina dos Santos Rosa, que apresenta um encorpado material
que destrincha a política da saúde mental no Brasil entre 1990 e 2016,
fruto da sua longa produção teórica. São reflexões fundamentadas na
revisão da literatura, na pratica profissional e militância, alcançando a
dimensão relacional entre a família, a política, a equipe profissional e
o usuário dos serviços, conferindo uma análise politizada, porém não
restrita ao tom panfletário, sobre o louco, a loucura, o direito à cidade
e a vida, como sujeito de direitos.
Esta coletânea é uma obra cuja leitura oferta aos profissionais, es-
tudantes e pesquisadores análises com pontos de convergência que
visam agregar aos estudos sobre família e política pública, além do es-
mero na reconstituição histórica e problematização teórica dos cam-
pos pesquisados em suas respectivas particularidades.

Nota
1 Assistente Social. Mestre e Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em
Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
E-mail: lma17rj@gmail.com

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Caminhos fora do silêncio: escolha, liberdade

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e acesso aos direitos reprodutivos

LOLE, Ana; CORGOZINHO, Kamila Delfino S. (Org.). Gênero e Aborto:


aportes para uma interlocução necessária com o Serviço Social. 1
ed. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2018.

Glauber Lucas Ceara-Silva1

Resenha recebida: outubro de 2018


Resenha aprovada: novembro de 2018

Em sociedades marcadas pelo patriarcado, os momentos de ten-


sões são gerenciados para corresponder a esse modelo. Em cor-
respondência arquitetônica ao desenrolar político procura-se uma
“verdadeira” feminilidade a ser seguida. Nesta direção, projetos de
leis, produções “científicas” e movimentos sociais reacionários vi-
sam dar apoio a políticas de controle dos corpos. Compreender a
baixa representação de determinados assuntos nas fileiras da produ-
ção acadêmica revela um conjunto de relações de “sufocamento” no
interior de uma determinada esfera de produção de conhecimento.
Assim, escrever sobre um tema é resistir.
Nesse cenário, o advento da coletânea “Gênero e Aborto” – orga-
nizada por Ana Lole e Kamila Delfino S. Corgozinho – é relevante por
abordar assuntos espinhosos, considerando suas implicações na saú-
de pública e para a formação profissional. O direcionamento principal
da obra é falar sobre gênero (uma categoria analítica) e o aborto (um
procedimento enquanto parte da esfera dos direitos reprodutivos) ar-
ticulados a perspectiva dos direitos humanos. Ao dar “aportes para
uma interlocução necessária com o Serviço Social”, visa trabalhar os

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424 Glauber Lucas Ceara-Silva

temas suscitados nas perspectivas dos feminismos interseccionais,


das questões étnico/raciais e das reflexões biopolíticas (saúde-di-
reito-autonomia) dialogando para além do âmbito acadêmico. Onze
artigos, um prefácio e uma breve apresentação compõem a obra, as
discussões encontram-se fundamentadas por profissionais e militan-
tes de várias áreas do conhecimento.
O primeiro artigo intitulado “Os indícios de gênero na formação e
organização do Serviço Social” escrito por Ana Lole traz elementos
para compreendermos a dinâmica do debate de gênero na formação
curricular do Serviço Social. Tendo por base o paradigma indiciário,
a autora analisa a grade formativa dos cursos de Serviço Social das
instituições mais representativas da profissão (PUC-Rio, UERJ, UFF
e UFRJ) no Rio de Janeiro e nas unidades representativas (Conjun-
to CFESS/CRESS e ABEPSS); ao realizar essa correlação, manifestada
em publicações e encontros, aponta que “mesmo com pouco reco-
nhecimento por parte das diretrizes curriculares, onde talvez a apre-
ensão se torne mais lenta [...] o debate vai se disseminando” (p.47);
Por este caminho percebe-se a necessidade do debate de gênero ser
primordial no entendimento das relações que envolvem os sujeitos
generificados e suas correlações.
O artigo “Gênero e Saúde: o que o corpo deixa ver?” de Carla Cris-
tina Lima de Almeida tem como eixo “a invisibilidade do corpo e, ao
mesmo tempo sua centralidade” (p.51) na área da saúde. A autora des-
taca o corpo como central na vida social porque “fala de um sujeito”
(p.53), que possui marcadores sociais de diferenças e de experiências.
Salientando, assim, importantes discussões no pensamento feminista:
os corpos não se dividem entre cultura e natureza. Assim, a saúde no
modelo dominante reflete, no corpo, um conjunto de práticas de con-
trole, que analisado criticamente pode, nas experiências de enfrenta-
mento e questionamento, formar novas potências de encontros.
“Gênero, diversidade e cidadania em saúde – notas reflexivas” de
Rita de Cássia Santos Freitas traça “notas, buscando estabelecer re-

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 423 - 428


Caminhos fora do silêncio: escolha, liberdade e acesso aos direitos reprodutivos 425

flexões sobre saúde, cidadania e gênero” (p.70). No desenvolvimento

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das quatro notas a autora levanta a potência do conceito de gênero
como relação social, de poder e interseccional, que no atuar profissio-
nal deve, principalmente na saúde, articular a integralidade e interdis-
ciplinaridade, buscando a efetivação da cidadania; a apreensão desse
conceito atribui ao profissional que atende a capacidade de “desna-
turalizar certezas, questionar preconceitos e estigmas” (p.83); assim, o
gênero e o debate da cidadania fundem-se numa das partes constitu-
tivas do compromisso profissional.
Em “A condição da mulher negra na sociedade moderna: integração
e resistência” Larissa Costa Murad propõe “breves notas interpretati-
vas acerca da condição da mulher negra na sociedade patriarcal”. Ao
realizar interlocuções com a literatura e a sociologia, a autora corre-
laciona o período da escravidão e a modernização, constituindo uma
crítica da modernidade a partir da construção do corpo da mulher ne-
gra e sua apropriação na esfera de produção da acumulação capita-
lista, apontando, então, resquícios históricos de que é “no Brasil [...] o
domínio do corpo fundante da cultura” (p.101), sendo assim, o corpo
feminino negro um campo de tensões, seja por tentativas de domina-
ção ou de atos de resistência.
O artigo de Rejane Santos Farias e Antonio Carlos de Oliveira intitu-
lado “Significados socio-históricos do aborto e a efetivação dos servi-
ços de acesso ao aborto legal no Brasil”, traz contribuições acerca de
como o Estado controla o acesso aos direitos reprodutivos, e como
historicamente tal procedimento foi sendo assimilado como formas
de tutela do corpo da mulher. Destacam, também, como o debate do
aborto fica baseado em questões morais e menos como um aspecto
de justiça social, principalmente para as mulheres pobres.
O artigo “Aborto, Serviço Social e formação profissional: uma
análise das produções acadêmicas” de Kamila Delfino S. Corgozinho
nos introduz no debate sobre o aborto quando inserido na formação
profissional dos assistentes sociais. Ao colocar em pauta a ação dos

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governos – a partir de políticas sobre o direito reprodutivo – a autora


pontua que é preciso uma produção de conhecimento que embase
uma prática não discriminatória. A partir do mapeamento das pro-
duções que unem Serviço Social e o debate sobre o aborto temos
indícios para constatar uma baixa aceitação e certo tipo de silêncio
do tema dentro da categoria. Sendo necessário o debate para que
cada profissional venha a “preocupar-se com ações que garantam
o acesso universal atrelando o seu fazer profissional os preceitos do
Projeto Ético-Político” (p.142).
O artigo “Serviço Social e a questão do aborto: reflexões a partir do
exercício profissional” de Betania Nunes de Carvalho aborda a necessi-
dade de considerarmos a temática do aborto seguro dentro dos “direi-
tos sexuais e reprodutivos, baseada nos princípios da integralidade na
atenção em saúde” (p.151). E o artigo “Criminalização do aborto como
violação dos direitos humanos das mulheres”, de Amanda Caicó C. de
Lima apresenta um debate mais voltado para o campo da regulação po-
lítica dos corpos, considerando a criminalização do aborto como um
dos aportes da manutenção estatal de controle da sexualidade feminina.
Elvira Simões Barretto em “Aborto como direito reprodutivo no
Brasil: desestabilização à ordem societária vigente?” nos insere nou-
tra esfera de discussão, porque realiza uma arqueologia das relações
de gênero demonstrando a construção da mulher como fêmea e do
homem como macho, no “ordenamento político, econômico, socio-
cultural e religioso hegemônico” (p.185). Essa construção vincula o não
reconhecimento do acesso aos direitos reprodutivos plenos à manu-
tenção de esferas de dominação. Conclui, então, que uma ruptura no
padrão de dominação dos corpos femininos é uma ameaça ao modo
de produção vigente.
“O estupro como arma de guerra: uma análise da Guerra da Bósnia”
de Victor Leandro C. Gomes e Marianna de Aragão A. L. Bandeira pode
soar destoante do livro, entretanto, ao analisar essa violência dentro do
contexto da guerra, colocam a localidade dos corpos das mulheres nas

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Caminhos fora do silêncio: escolha, liberdade e acesso aos direitos reprodutivos 427

tensões de interesses. O útero passa a ser um aspecto de ação, jogan-

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do nele a moral e produção identitária de uma nação, ou seja, úteros
como não pertencentes às mulheres, mas aos interesses em conflitos
dos homens. E, ao correlacionar isso ao contexto da guerra no quadro
global, destacam que as tensões resultam na supressão da autonomia
feminina, subordinando seus desejos e anulando suas vontades. O que
os estupros de guerra e toda a formação simbólica em torno deles re-
velam é um processo muito mais integrado entre dominação masculina
e estrutura dos Estados, porque “se as relações de gênero que operam
em nível nacional persistirem negligenciadas, certas dimensões de po-
der internacionais permanecerão menosprezadas” (p.206).
Encerra a coletânea o artigo “Refletindo sobre o ‘Sair’ e as experi-
ências emancipatórias de mulheres das classes populares do Rio de
Janeiro”, escrito por Sandra Monica da S. Schwarzstein e Nivia Valença
Barros, que “propõe-se a despertar curiosidades, a refletir sobre al-
gumas experiências e a formular questões” (p.209) entre o “sair” das
mulheres da classe trabalhadora e das classes médias que passaram
a articular o desejo de ampliação de vontades e direitos/cidadania. As
autoras problematizam como a aproximação destas mulheres possibi-
litou o surgimento de diversos questionamentos, pois o “sair” fez com
que identidades fossem ressignificadas, já que “reivindicar uma identi-
dade é construir poder” (p.223). O texto coloca-se como uma centelha
de esperança ao enfatizar que é o encontro que produz mudanças e
quanto mais autonomia as mulheres possuírem nos espaços de deci-
são mais poderão falar sobre si e de suas verdadeiras necessidades.
Assim, a cidadania se concretiza pelo ato de “sair”, sugerindo que os
direitos reprodutivos não se concretizarão exclusivamente na esfera
normativa do direito, mas na esfera da emancipação.
Cabem, entretanto, breves apontamentos, os quais poderiam en-
riquecer mais a obra. Após a leitura dos onze artigos, sente-se falta
de uma aproximação da questão da saúde e direitos reprodutivos
da população trans, que sofrem múltiplos preconceitos, e também

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428 Glauber Lucas Ceara-Silva

o debate bioético. Mas, este livro abre-nos a outras discussões que


podem preencher as lacunas e levantar outros dados. A obra “Gênero
e Aborto” firma-se como uma nova e audaz referência. Ao reposicio-
nar o debate por caminhos fora do silêncio assume o desafio de que
o tema deixe de ser aquele sussurro que ocorre nos corredores de
nossa formação profissional, porque reflete um compromisso profis-
sional em efetivar tal espaço como acesso à liberdade e cidadania do
campo dos direitos reprodutivos e sexuais. Nisso a obra é um divisor
e uma referência a ser explorada.

Notas
1 Assistente Social e Mestre em Política Social pela Universidade Federal Fluminen-
se (UFF). Doutorando em Política Social pelo Programa de Estudos Pós-Gradua-
dos em Política Social da UFF (Bolsista Capes). Brasil. E-mail: gllucesi@gmail.com

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349

O desenho da Política Nacional de Estágio e

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os impasses para a sua implementação

Reginaldo Ghiraldelli1

Resumo
Este artigo apresenta reflexões sobre a formação em Serviço Social, com ênfa-
se para o estágio supervisionado, em um cenário brasileiro marcado pelo avanço
do conservadorismo e por uma profunda crise política e econômica, que provoca
ameaças às liberdades democráticas, regressão de direitos sociais, cortes orça-
mentários no ensino superior público e, ao mesmo tempo, mediante medidas ne-
oliberais, incentiva a proliferação do ensino privado e a distância. Em linhas gerais,
apresenta desafios na implementação dos princípios e diretrizes da Política Nacio-
nal de Estágio (PNE), construída coletivamente como estratégia de luta e resistên-
cia da categoria profissional.

Palavras-chave
Serviço Social; Formação Profissional; Estágio supervisionado.

The drawing of the National Internship Policy and the impasses for its implementation

Abstract
This article presents reflections about the formation in Social Work, with emphasis
on the supervised internship, in a brazilian case marked by the advance of con-
servatism and a profound political and economic crisis, which provokes threats to
democratic freedoms, regression of social rights, budget cuts in education at the
same time, through neoliberal actions, encourages the proliferation of private and
distance education. In general terms, it indicates some challenges in the implemen-
tation of the principles and guidelines of the National Internship Policy (PNE), col-
lectively built as a strategy of struggle and resistance of the professional category.

Keywords
Social Work; Training Professional; Supervised internship.

Artigo recebido: março de 2018


Artigo aprovado: junho de 2018

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Introdução
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Pensar a formação em Serviço Social na atual conjuntura brasilei-


ra não tem sido uma tarefa fácil, sobretudo diante de um momento
da história política do País em que se observam profundas ameaças
aos valores democráticos, ataques aos direitos sociais, censura ao
pensamento crítico, criminalização das lutas sociais e cortes orça-
mentários no ensino superior público, com o objetivo de inviabi-
lizar a educação como direito social de cidadania e transformá-la
numa mera mercadoria, pura e simplesmente comprada e vendida
no mercado. Isso significa desmontar direitos sociais conquistados
historicamente pela classe trabalhadora nas diversas lutas travadas
no terreno tenso e conflituoso entre capital e trabalho, deslocando-
-os para os interesses mercantis, sob a batuta neoliberal. Por isso,
pensar a formação em Serviço Social requer situar a profissão nes-
ta quadra história, considerando o avanço do conservadorismo, os
embates contidos na arena da luta de classes e a retração do Estado
no que diz respeito ao seu compromisso e responsabilidade com os
direitos sociais e as políticas públicas.
Seguindo o propósito deste artigo, no que se refere especificamen-
te ao estágio como componente e conteúdo formativo, nos últimos
anos, observa-se um crescimento de estudos, pesquisas e análises
sobre o tema, contribuindo para o adensamento do debate no âm-
bito da profissão, com base em fundamentos teóricos, experiências
profissionais resultantes da relação entre universidades e espaços
socio-ocupacionais com base nos processos de supervisão (acadê-
mica e de campo), além das inserções nos espaços político-repre-
sentativos da categoria (ABEPSS, ENESSO, Conjunto CFESS-CRESS).
O estágio adensou a pauta de discussões do Serviço Social brasilei-
ro principalmente a partir da década de 1990, com a revisão curricular
proposta pela ABEPSS para os cursos de graduação em um cenário de
profundas transformações societárias, que repercutiram nos espaços
socio-ocupacionais, nas políticas sociais, na relação Estado-socieda-

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de, no cenário educacional e, consequentemente, na formação e no

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exercício profissional de assistentes sociais.
Desde então, a categoria profissional organizada politicamente por
meio do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), Conselho Re-
gional de Serviço Social (CRESS), Associação Brasileira de Ensino e
Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS), Executiva Nacional de Estudan-
tes de Serviço Social (ENESSO) e Unidades de Formação Acadêmica
(UFAs) tem pautado e problematizado questões relativas ao estágio
com vistas a defender e assegurar um projeto de formação alicerçado
na teoria social crítica e em consonância com os princípios do projeto
ético-político, que se afirma e se sustenta alinhado a um projeto so-
cietário que tem como horizonte a igualdade, a justiça, a democracia,
a liberdade e a emancipação humana. A luta da categoria profissio-
nal também se pauta em torno da defesa de uma educação pública,
presencial, laica, de qualidade e de uma formação profissional que
contemple competências teóricas, metodológicas, éticas, políticas e
técnicas dos assistentes sociais. Também se defende a ampliação de
concursos públicos, jornada de trabalho compatível com as recentes
conquistas de assistentes sociais, além de condições de trabalho que
não infrinjam prerrogativas éticas e técnicas, como, por exemplo, o
sigilo e a autonomia profissional. Enfim, inúmeras são as ações e en-
frentamentos da categoria para se assegurar uma formação crítica,
pública, de qualidade, relacionada permanentemente com o exercício
profissional e consonante com os princípios do projeto ético-político.
Por isso, não é possível pensar a formação desvinculada do
exercício profissional, descontextualizada e deslocada da realidade
social. Para analisar a formação e o exercício profissional é impres-
cindível compreender as questões estruturais e conjunturais do
tempo presente, pois o Serviço Social se situa nesse solo histórico
e as transformações societárias incidem diretamente no conjunto
das profissões (NETTO, 1996), tanto no aspecto formativo, quanto
no universo do labor. Sendo assim, não se pode analisar o Serviço

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Social fechado em si mesmo, de maneira endógena, como aponta


Iamamoto (2007), destituído das determinações sociais e históri-
cas. Analisar a formação e a inserção profissional no mundo produ-
tivo requer apreensão crítica, profunda e rigorosa da conjuntura e
estrutura social, para que se possa compreender, numa perspectiva
de totalidade, os fenômenos e processos sociais.
Desse modo, compreender a formação profissional na contem-
poraneidade exige contextualizar a política educacional brasileira,
que, nas últimas décadas, tem sido atingida brutalmente pelas orien-
tações neoliberais implementadas. Nesse caso, as universidades
não ficaram isentas desse processo, pois, como forma de atender
as prerrogativas do capital, a universidade se metamorfoseou, as-
sumindo um caráter operacional (CHAUÍ, 2003), voltada para metas
de produtividade, rentabilidade, eficiência e eficácia, distanciando-
-se de sua função e compromisso precípuo, que é o da produção de
conhecimentos voltados aos anseios e necessidades da sociedade.
Esse “modelo” de universidade contribui inclusive para estimular a
competitividade entre professores e pesquisadores.
Também é importante considerar que nessa conjuntura, marcada
pela dilapidação da recente democracia brasileira e pela reestrutura-
ção capitalista de cunho neoliberal, que flexibiliza e precariza as re-
lações de trabalho, são identificados, diuturnamente, fortes ataques
aos direitos sociais, como é o caso das ofensivas contrarreformas que
ocorrem no Brasil desde os anos 1990. Dentre elas, merecem desta-
que as contrarreformas da previdência de 1998 (durante o governo de
FHC) e a de 2003 (no governo Lula) e recentemente, a contrarrefor-
ma trabalhista, que entrou em vigor em 11 de novembro de 2017 (Lei
n.13.467/2017), que altera significativamente a Consolidação das Leis
Trabalhistas (CLT) e representa inúmeros retrocessos, perdas e regres-
são no âmbito dos direitos da classe trabalhadora.
As mudanças em curso, em um cenário de acirramento da luta de
classes no Brasil e aprofundamento das desigualdades sociais, apontam

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para a minimização das responsabilidades do Estado com os serviços

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sociais, as políticas públicas e os direitos da classe trabalhadora. E nesse
lastro, a universidade passa por um profundo processo de mercantili-
zação e precarização das relações de trabalho, incidindo no âmbito do
ensino, da pesquisa e da extensão. Sendo assim, o estágio, entendido
como componente curricular obrigatório no processo de formação pro-
fissional, não está imune desses rebatimentos, o que exige estratégias,
alternativas e saídas coletivas no enfrentamento dessa realidade.
Diante desse quadro, este artigo apresenta algumas reflexões e in-
quietações concernentes ao estágio supervisionado no processo de
formação, com base em experiências vivenciadas na coordenação de
estágio e na supervisão acadêmica, enfatizando a Política Nacional de
Estágio (PNE) de 20092 como um instrumento político de conquista da
categoria profissional. Discorre sobre os desafios de sua implementa-
ção em uma conjuntura adversa, marcada pelo recrudescimento do
conservadorismo, com fortes ameaças às liberdades democráticas e
destruição de direitos sociais, como é o caso da educação, que sob a
prerrogativa neoliberal, se mercantiliza e passa a ser uma mercadoria
rentável para os interesses lucrativos e acumulativos do capital3.

Formação profissional, estágio e a implementação da PNE


O estágio, compreendido como parte constitutiva e constituinte
da formação em Serviço Social, é uma atividade curricular obrigató-
ria que visa capacitar pedagogicamente estudantes para o exercício
profissional, sendo de competência das UFAs assegurar a inserção
de estudantes em campos de estágio, conforme preconizado pelos
projetos pedagógicos dos cursos, sintonizados com as orientações
das Diretrizes Curriculares elaboradas pela ABEPSS e aprovadas em
assembleia geral no ano de 1996.
Para a realização do estágio é necessária supervisão contínua e sis-
temática, seja de profissionais inseridos nos espaços ocupacionais, de-
nominados supervisores de campo, seja de docentes, também respon-
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sáveis pelo acompanhamento de estudantes nas atividades de estágio,


denominados supervisores acadêmicos. O supervisor de campo e o
supervisor acadêmico são sujeitos indispensáveis no processo de for-
mação de estudantes, mas é possível observar que, “[...] ainda precisa-
mos qualificar o trabalho de articulação entre o supervisor de campo e
o acadêmico, bem como destes com os demais docentes” (LEWGOY,
2009, p.54). Além do mais, o acompanhamento permanente e siste-
mático do estágio “[...] exige da supervisão um repensar contínuo e o
fortalecimento do processo da tríade” (LEWGOY, 2009, p.50).
Nessa perspectiva, ao enfatizar a necessidade de fortalecimento
da tríade, Lewgoy (2009) se refere aos sujeitos envolvidos no pro-
cesso de supervisão de estágio que são: estagiários, supervisores de
campo e supervisores acadêmicos. Vale considerar também a im-
portância de compartilhar esse processo da supervisão com a Coor-
denação de Estágio, que, de acordo com a Política Nacional de Está-
gio (PNE, 2009), e dentre suas inúmeras atribuições, acompanha de
forma sistemática e continuada o estágio desde a seleção, creden-
ciamento e abertura de vagas por meio do contato institucional com
os campos de atuação profissional; propõe, com a participação dos
sujeitos envolvidos no processo, diretrizes para operacionalização
da política de estágio em consonância com as prerrogativas da for-
mação profissional; estabelece contatos institucionais com o objeti-
vo de acompanhar, avaliar e planejar atividades conjuntas entre uni-
versidade e campo de estágio; propõe a documentação necessária
para a realização do estágio; produz e publiciza material pedagógico
relativo ao estágio; democratiza as experiências do estágio; apresen-
ta os campos de estágio; estabelece articulações com os campos de
estágio, com docentes, com as UFAs e com as entidades da categoria
(CFESS/CRESS, ABEPSS, ENESSO) de forma a propor e construir os
fóruns de estágio, cursos de formação continuada, reuniões, dentre
outras ações competentes à coordenação. Com o objetivo de evi-
tar centralização e propiciar a participação democrática e coletiva, a

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PNE sugere que a coordenação de estágio constitua uma Comissão

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de Estágio, formada pelos sujeitos envolvidos, ou seja, supervisores
de campo, supervisores acadêmicos e estagiários, para que possam
acompanhar e avaliar permanentemente o processo de supervisão.
Outra questão que merece destaque é que a supervisão de estágio,
conforme estabelecido no artigo 5º da Lei de Regulamentação da Pro-
fissão (Lei n. 8.662, de 1993) é uma atribuição privativa do assistente
social, não cabendo aos profissionais de outras áreas acompanharem,
na qualidade de supervisores, os estagiários de Serviço Social.
Ainda com base nos pressupostos das Diretrizes Curriculares de
1996 e na PNE, o estágio não pode ser concebido como mera exe-
cução de tarefas e força de trabalho barata para atendimento das
requisições do mercado, mas como processo pedagógico sob a ótica
da dimensão formativa, que se constitui na relação ensino-aprendi-
zagem. Ou seja, discutir o estágio prevê como ponto de partida o seu
princípio educativo e formativo.
Nesse sentido, as Diretrizes Curriculares explicitam os princípios
fundamentais da formação profissional, ou seja, a relação indissoci-
ável entre teoria e realidade, entre a dimensão investigativa e inter-
ventiva. Por isso, pensar o estágio é pensar a relação teoria-realida-
de, a indissociabilidade entre investigação e intervenção.
Além disso, o estágio não pode ser concebido de forma frag-
mentada e desvinculado dos demais componentes e conteúdos
curriculares no processo de formação. Ele deve estar vinculado e
relacionado com os demais conteúdos curriculares e disciplinas,
de forma a dialogar com os núcleos propostos nas Diretrizes Cur-
riculares, ou seja, com o núcleo dos fundamentos teórico-meto-
dológicos da vida social, da formação socio-histórica brasileira e
dos fundamentos do trabalho profissional. O estágio deve também
conjugar a indissociabilidade das dimensões que envolvem o pro-
cesso formativo, que são: dimensão teórico-metodológica, ético-
-política e técnico-operativa. Por isso:

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[...] a supervisão de estágio é uma instância na grade curricular


que, ao realizar a interlocução entre universidade e o mundo do
trabalho, impõe aos acadêmicos, trabalhadores, professor-su-
pervisor e assistentes sociais a tarefa de captar esse mundo da
pseudoconcreticidade em que é envolvida a realidade educa-
cional. (LEWGOY, 2009, p.89).

Além da concepção contida nas Diretrizes Curriculares de 1996, que


prevê o estágio como atividade formativa, pedagógica, que requer
supervisão contínua e sistemática por profissional no campo institu-
cional e por professor, o estágio também apresenta saltos qualitativos
no âmbito legislativo-normativo a partir da Lei de Estágio n.11.788 de
25/09/2008 que assegura o estágio como atividade educativa e for-
mativa, rompendo com uma cultura presente na sociedade de incor-
porar os estagiários nas instituições como trabalho barato e/ou substi-
tuição de profissionais, pois, segundo Oliveira (2009, p.107), o estágio,
em muitos casos, assume o caráter de emprego e fonte de renda para
os estudantes, sobretudo em um contexto de crescimento das de-
sigualdades sociais, de aprofundamento da pauperização e índices
elevados de desemprego. Assim, “[...] além de venderem sua força
de trabalho por baixo preço, tendem a avaliar esta experiência uni-
camente pelo aspecto de ser economicamente vantajosa e relevante
para o currículo” (VASCONCELOS, 2009, p.75), fragilizando e distor-
cendo a concepção formativa do estágio. Por isso, “[...] o estágio não
é um lugar onde o aluno exerce o papel de substituto do profissional,
mas um espaço em que reafirma sua formação, não numa condição
de empregado, mas de estudante estagiário” (LEWGOY, 2009, p.138).
Diante disso, apesar dos limites ainda presentes na legislação, é
importante reconhecer, nessa conjuntura, uma conquista considerá-
vel no plano jurídico-político sobre a concepção de estágio, mesmo
diante das dificuldades e obstáculos na sua efetividade. Também é
importante reconhecer avanços no Serviço Social na contempora-
neidade, resultante da organização política e resistência coletiva da
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categoria e que se expressam nas Diretrizes Curriculares da ABEPSS

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de 1996, no Código de Ética Profissional dos Assistentes Sociais de
1993, na Lei de Regulamentação da Profissão de 1993, na Resolução
CFESS n.533 de 29/09/2008 (que regulamenta a supervisão direta
de estágio) e na Política Nacional de Estágio (PNE) elaborada e cons-
truída coletivamente em 2009 pela ABEPSS. Mesmo marcada por
muitas polêmicas, como afirma Ramos:

A elaboração da PNE se constituía uma antiga demanda coloca-


da à entidade responsável pela formação profissional dos (as)
assistentes sociais brasileiros (as) e que a gestão 2009/2010 da
ABEPSS conseguiu, com um grande esforço coletivo e militante,
gestar por meio de um amplo processo participativo e democrá-
tico. (RAMOS, 2009, p.35).

A PNE, resultado do envolvimento coletivo da categoria de assis-


tentes sociais, tem seu arcabouço normativo, ético, político e teórico
amparado nas Diretrizes Curriculares de 1996 e alicerçado na defesa
de um estágio vinculado a um projeto crítico de formação profissional,
comprometido com valores democráticos e emancipatórios.
Mas, mesmo com avanços e conquistas no âmbito do estágio,
tanto na sua concepção, quanto na sua operacionalização, ainda se
observam dilemas presentes e desafios postos à profissão para as-
segurar os princípios do projeto ético-político, tendo em vista que
este é um projeto que caminha na contracorrente dos valores da so-
ciabilidade burguesa, ao defender a liberdade, a igualdade, a justiça,
a democracia, a socialização da riqueza produzida e a emancipação
humana. Ou seja, é um projeto contrário às injunções da ordem so-
cial vigente. Por isso, dentre os inúmeros desafios de materialização
da PNE, Ramos destaca a necessidade de:

[...] socializar o documento da PNE no âmbito das UFAs e dis-


cutir com os sujeitos que tecem a formação profissional a
construção coletiva de estratégias para a materialização dos

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parâmetros e diretrizes propostas no documento, ou seja, tor-


ná-lo, efetivamente, um instrumento cotidiano de resistência
à lógica da precarização do ensino e do trabalho, afirmando-o
na direção da defesa da qualidade do estágio e da formação
profissional, buscando a manutenção da hegemonia do pro-
jeto ético-político do Serviço Social e de seu horizonte eman-
cipatório. (RAMOS, 2009, p.35).

Com a PNE, outras questões também emergiram como desafios a


serem enfrentados pela categoria profissional, como é o caso do está-
gio curricular não obrigatório, pois, tanto o estágio curricular obrigató-
rio, quanto o estágio não obrigatório tem como exigência o acompa-
nhamento permanente e sistemático no processo de supervisão, seja
do supervisor de campo, seja do supervisor acadêmico.
O estágio não obrigatório, durante longo período, ficou co-
nhecido, equivocadamente, como estágio extracurricular.
Essa ideia de extracurricular acabava fazendo com que este
estágio fosse compreendido como atividade inteiramente
desvinculada do currículo e, portanto, distanciada da for-
mação profissional, como se possuísse finalidade diversa da
educacional [...] e dispensasse acompanhamento acadêmico
e de campo. (VASCONCELOS, 2009, p.69).

Diante da mercantilização do ensino e da precarização que assola o


mundo do trabalho, inclusive os espaços ocupacionais que incorporam
assistentes sociais, que também são parte da classe trabalhadora assa-
lariada, inúmeros são os desafios para que as UFAs assegurem o acom-
panhamento pedagógico na supervisão de estágio dos estudantes, tan-
to no que se refere ao estágio obrigatório, quanto o não obrigatório.
Além disso, desde a elaboração da PNE, as gestões da ABEPSS têm
empreendido esforços e realizado várias articulações com o objeti-
vo de regulamentar a PNE junto ao Conselho Nacional de Educação
(CNE), o que seria também uma importante conquista para a categoria
profissional no sentido de assegurar uma diretriz nacional, para que as
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UFAs de todo o País implementem os princípios norteadores da po-

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lítica. Conforme as orientações éticas, políticas e normativas da pro-
fissão, compete às UFAs assegurar condições para a realização de um
estágio de qualidade, além da captação de vagas e encaminhamento
de estudantes aos campos de estágio. As UFAs estabelecem o período
do estágio, que são distribuídos em semestres, com a respectiva carga
horária e define em seu projeto pedagógico a existência ou não do
estágio não obrigatório, tendo em vista que esta atividade é opcional e
concebida como complementariedade no processo formativo.
Compete também às UFAs, no momento de elaboração e/ou revi-
são dos projetos pedagógicos, avaliar requisitos indispensáveis para
o ingresso de estudantes no estágio. No caso, estabelecer a conclu-
são de disciplinas fundamentais para inserção discente no espaço
ocupacional de trabalho dos assistentes sociais, como, por exemplo:
Ética Profissional; Fundamentos históricos, teóricos e metodológicos;
Política Social; dentre outras.
Para dar materialidade à PNE, as UFAs precisam assegurar: coorde-
nação de estágio; uma política de estágio em consonância com as re-
gulamentações atuais; docentes supervisores acadêmicos para acom-
panhamento sistemático do processo de supervisão; a realização de
visitas ao campo de estágio; reuniões; supervisões individuais, em
grupo e coletivas; cursos e oficinas visando a formação continuada;
fóruns de supervisão como espaços estratégicos de fortalecimento da
categoria e resistência diante das investidas conservadoras e mercan-
tis; e demais atividades que contribuam para a qualidade desse pro-
cesso formativo. Também devem assegurar os critérios estabelecidos
na PNE, como o máximo de 15 estudantes acompanhados por super-
visor acadêmico. Já a relação de 1 estagiário por supervisor de campo
para cada 10 horas semanais de trabalho do profissional, conforme
preconiza a Resolução CFESS n.533/2008, compete aos Conselhos
Regionais o acompanhamento, orientação e fiscalização. Por isso, para
que os Conselhos possam fazer esse acompanhamento, cabe às UFAs

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o encaminhamento semestral das planilhas contendo as informações


do estagiário, do supervisor acadêmico, do supervisor de campo e da
instituição campo de estágio. Isso requer um trabalho integrado entre
as Unidades de Formação e as entidades representativas, o que tam-
bém contribui para o fortalecimento coletivo da categoria profissional.
Além dessas exigências, outro ponto relevante diz respeito à docu-
mentação no processo de supervisão do estágio, como: 1) plano de es-
tágio, entendido como planejamento das atividades e ações que serão
desenvolvidas, elaborado conjuntamente pelos supervisores acadêmi-
co, de campo e estagiário; 2) as avaliações periódicas, como parâme-
tro pedagógico do processo; 3) o diário de campo, como instrumento
cotidiano de registro crítico-analítico das ações; 4) os relatórios, como
um recurso de análise crítica da realidade social, das expressões da
“questão social” e das particularidades do estágio; e 5) os projetos de
investigação/intervenção, como insumos estimuladores da capacidade
criativa, crítica e propositiva de estagiários, oriundos das demandas, re-
quisições e necessidades identificadas no processo de supervisão.
A documentação, como instrumento técnico de registro e sistema-
tização do trabalho profissional e do processo de supervisão, que for-
nece subsídios para analisar criticamente a realidade social,

[...] não é um “roteiro de papeis a serem preenchidos e orga-


nizados”, não é simplesmente o ato de obter, passar e registrar
informações, é mais que isso, é relacionar e interpretar diver-
sos dados e fatos, é refletir para agir, é relacionar-se com o
conhecimento, é parte da produção de conhecimento. (MAR-
CONSIN, 2010, p.70).

Nesse sentido, planejar, documentar e avaliar constantemente as


ações profissionais prevê apreensão crítica da realidade social e das
expressões da “questão social”, contribuindo para o conhecimento de
meios e fins nas atividades e posicionamento ético-político sobre a
intencionalidade da atuação.

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Vale ressaltar também a importância da socialização de experiências

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do estágio, como, por exemplo, a implementação dos projetos de inves-
tigação/intervenção desenvolvidos por estagiários e supervisores. Em
muitas situações, os estudantes desenvolvem seus projetos de trabalho
de conclusão de curso a partir das experiências concretas vivenciadas
no estágio, o que significa o estímulo à produção de conhecimento e a
realização de pesquisas a partir da inserção no estágio supervisionado.
Com base nessas elucidações, o estágio, como momento da forma-
ção profissional, deve ser compreendido no contexto social, perme-
ado de contradições presentes na sociedade e, por isso, a supervisão
de estágio não pode estar subordinada aos determinantes mercantis e
se adequar a padrões de adestramento, treinamento, restrita a ações
técnicas burocráticas, mecânicas e rotineiras. O estágio, entendido na
sua processualidade, requer postura investigativa, leitura rigorosa e
crítica da realidade. A supervisão de estágio extrapola a dimensão do
aprender a fazer, e reduzi-la “[...] à mera reprodução da operacionali-
zação dos instrumentos e técnicas é subtrair do processo de aprendi-
zagem a apropriação dos processos de trabalho do Serviço Social em
sua amplitude” (LEWGOY, 2009, p.172). A supervisão prevê conexão
entre dimensão teórica, ética, política e técnica, de forma a possibilitar
a crítica à imediaticidade, ao fragmento, ao senso comum, a naturali-
zação das desigualdades sociais e a banalização da vida social.
Ao analisar e contextualizar o Serviço Social no âmbito das trans-
formações societárias em que alterações no mundo do trabalho e
nas políticas educacionais repercutem diretamente na formação e
no exercício profissional, observa-se uma precarização nas relações
de trabalho que incide nos espaços ocupacionais, trazendo conse-
quências para a captação de vagas, pois há profissionais que optam
por não receber estagiários, alegando que o ambiente de atuação é
precarizado, não garantindo as condições éticas e técnicas adequa-
das, como, por exemplo, a inexistência de sala privativa que garanta
o sigilo e de espaço físico que acolha o estudante. Porém, em alguns

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casos observados, ao receber estagiários, o assistente social adquire


maior reconhecimento nos espaços institucionais, tendo em vista as
visitas realizadas na supervisão, a participação nos fóruns, o acom-
panhamento pedagógico sistemático, a aproximação com a univer-
sidade e com a categoria por meio das entidades representativas.
Além do mais, “[...] para muitos desses supervisores, o aluno é en-
tendido como ‘um oxigênio para a prática’, ‘um olhar crítico’, alguém
que faz toda a diferença no seu dia a dia, pois exige que organizem
melhor a sua intervenção” (LEWGOY, 2009, p.129).
Diante de experiências vivenciadas e compartilhadas nos últimos
anos, seja na coordenação de estágio, seja na supervisão acadêmica,
são identificados inúmeros desafios em relação ao processo de su-
pervisão de estágio e a materialização dos princípios e diretrizes da
PNE. Dentre esses desafios, destacam-se: 1) a necessidade de criação
e fortalecimento dos fóruns de estágio, em todos os âmbitos (local,
estadual, regional e nacional), como espaço de interlocução, articu-
lações, resistência e luta coletiva; 2) as UFAs precisam assegurar o
estágio como conteúdo/disciplina contínua, pois em alguns casos a
supervisão acadêmica não acontece de forma sistemática, com en-
contros semanais, e sim esporádicos, o que contribui para fragilizar
esse processo; 3) necessidade de consolidação e regulamentação da
PNE, com objetivo de assegurar um projeto de formação profissional
comprometido com a qualidade e direção social crítica, democrática
e emancipatória; 4) a importância da interlocução entre universidades
e espaços ocupacionais (campos de estágio), inclusive com profissio-
nais que ainda não são supervisores de estágio; 5) acompanhamento
sistemático e continuado dos campos de estágio pelo supervisor aca-
dêmico e pela coordenação de estágio; 6) a defesa e propostas efe-
tivas de formação continuada, tendo em vista que ela não se encerra
na graduação; 7) a consideração de que o estágio curricular não obri-
gatório deve seguir as mesmas diretrizes do estágio obrigatório, con-
forme preconizado na Lei n. 11.788/2008 e na PNE. O estágio não obri-

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gatório deve ter acompanhamento didático-pedagógico assim como

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o estágio obrigatório. Fica a critério da UFA inserir ou não o estágio
não obrigatório no projeto pedagógico do curso, pois ele é opcional.
Mas a partir da sua incorporação no projeto pedagógico, o estágio não
obrigatório deve seguir as mesmas orientações e recomendações, po-
dendo apresentar diferenciações na carga horária estabelecida; 8) o
desafio de não se sucumbir à perspectiva mercadológica do estágio,
voltada para interesses da reprodução ampliada do capital, pois, em
muitos casos, ocorrem seleções de estágio contemplando estudantes
que ingressaram recentemente nos cursos, desconsiderando o estágio
como atividade formativa pautada no processo ensino-aprendizagem.
Isso desqualifica e descaracteriza a concepção de estágio, que fica sob
os ditames do mercado, pois estudantes recentemente ingressados na
universidade ainda não adquiriram os conhecimentos teóricos basais
e habilidades para inserção em campo de estágio.
O estágio não pode assumir a forma de emprego e fonte de
renda. Além do mais, na atualidade, observa-se o crescimento do
perfil de estudantes trabalhadores, o que requer discussões sobre
as políticas de assistência estudantil que garantam a permanência
desses estudantes nos cursos.

[...] a defesa do reconhecimento e da valorização da natureza


educacional dos estágios e da ampliação das possibilidades
de remuneração destes não deve estar dissociada da luta pela
assistência estudantil, pela ampliação do número de bolsas
de iniciação científica, de monitoria, de extensão, entre outras
formas de garantir a permanência discente na academia que
possibilitem processos de formação profissional. (VASCON-
CELOS, 2009, p.76).

Com o processo de mercantilização da educação e de expansão dos


cursos de Serviço Social no Brasil, identifica-se uma ampliação da de-
manda por estágio, tendo em vista o crescimento exponencial do ensino
superior privado (presencial e a distância) e público (por meio do REUNI),
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que buscam convênios de estágio. Com a interiorização das universida-


des e dos cursos, ocorrida especialmente com o REUNI e com o ensino
a distância, isso se torna mais agravante, pois municípios de pequeno
e médio porte não possuem, em muitos casos, o número suficiente de
profissionais para supervisionar o estágio. Isso provoca, muitas vezes,
o deslocamento de estagiários para municípios vizinhos para a realiza-
ção do estágio. No caso dos cursos criados pelo REUNI em municípios
do interior, as universidades públicas, muitas vezes sucateadas e com
baixos (ou até mesmo ausentes) recursos orçamentários, diante do des-
compromisso do Estado com a educação pública brasileira, apresentam
dificuldades para assegurar as condições necessárias para a realização
do estágio. Há também dificuldades de se garantir, em algumas UFAs, a
relação de 1 supervisor acadêmico para 15 estagiários devido ao número
restrito de professores, tendo em vista a precarização que atinge o tra-
balho docente, intensificando e sobrecarregando as atividades desses
trabalhadores, além da ausência de realização de concursos públicos
para ampliação do quadro docente.
Nesse sentido, é preciso analisar criticamente essa conjuntura
contraditória de tensionamentos na relação capital/trabalho, para
não cair no risco de distorcer o debate e culpabilizar e/ou satanizar
as normativas, resoluções e políticas construídas e conquistadas ar-
duamente pela categoria profissional com base em um debate de-
mocrático e coletivo. As conquistas profissionais no âmbito políti-
co-normativo representam a resistência à sociabilidade do capital, a
defesa de um projeto de formação de qualidade, alicerçado na teoria
social crítica e de condições de trabalho que assegurem a autono-
mia, a ética, o respeito e a dignidade de trabalhadores assalariados,
no caso, assistentes sociais.
Por isso, é preciso defender a dimensão político-pedagógica do
estágio, garantindo qualidade e condições necessárias para uma for-
mação crítica, sintonizada com os princípios do projeto ético-político.
Nesse caso, reforça-se a importância das entidades representativas,

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O desenho da Política Nacional de Estágio e os impasses para a sua implementação 365

como ABEPSS, CFESS/CRESS e ENESSO, tendo em vista o cenário das

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transformações societárias e os rumos do ensino superior no País.
Além do mais, algumas requisições e exigências estão postas na
atualidade, como o aumento de demanda por estágio aos finais de se-
mana, tendo em vista o perfil de estudantes trabalhadores. Isso exige
das UFAs a necessidade de ampliação dos convênios e vagas de está-
gio que contemple esses segmentos, porém não há um quadro signi-
ficativo de assistentes sociais que trabalham aos finais de semana de
forma a atender a demanda. Isso se acentua nas cidades de pequeno e
médio porte, diante de um número reduzido de profissionais.
Outra questão apresentada na PNE e que tem sido espaço de amplo
debate coletivo da categoria é o estágio como pesquisa e como extensão.
O que se observa é que com a ampliação do ensino de graduação
em Serviço Social nos últimos anos, sobretudo do ensino privado na
modalidade a distância, ocorreu um aumento exponencial da deman-
da por vagas de estágio, ao mesmo tempo em que havia uma carência
de profissionais para atender todo o contingente de estudantes. Muitas
instituições de ensino, em especial as instituições privadas, passaram
a contratar assistentes sociais para executarem projetos de extensão
e/ou de pesquisa com o objetivo de supervisionarem estagiários e,
dessa forma, suprir a significativa demanda.
Em alguns espaços coletivos, como nos Fóruns de Supervisão, fo-
ram relatadas situações e experiências diversas, sendo que algumas
delas apresentam muitas controvérsias e divergências com o projeto
de formação profissional e as normativas/resoluções que regulamen-
tam o estágio em Serviço Social.
A PNE afirma de maneira explícita e categórica que a pesquisa não
pode ser caracterizada como estágio, pois estes são momentos distin-
tos, ao mesmo tempo em que se complementam no processo formati-
vo. O exercício profissional de assistentes sociais traz em si a dimensão
interventiva e a dimensão investigativa como momentos dialeticamen-
te vinculados. Apesar da natureza de indissociabilidade entre interven-

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ção e investigação, cabe sublinhar que a pesquisa, com suas particu-


laridades, não pode ser configurada como estágio. A pesquisa é parte
constitutiva e constituinte de todo o percurso formativo, sendo com-
petência das Unidades Acadêmicas assegurá-la de forma transversal
em seus projetos pedagógicos, o que não significa reconhecê-la como
estágio supervisionado. É necessário demarcar entre o estágio e a pes-
quisa suas distinções, particularidades, naturezas e, ao mesmo tempo,
vinculações e reciprocidades, em um todo que se constitui a formação
profissional. Isso não significa anular e/ou negar a dimensão investigati-
va no desenvolvimento e realização do estágio. Pelo contrário, o estágio
é um momento de apreensão da realidade social que se dá por meio
de sínteses e aproximações sucessivas dos componentes e conteúdos
curriculares que compõe o projeto de formação, em um movimento
que relaciona dialeticamente a realidade social e os fundamentos his-
tóricos, teóricos e metodológicos da profissão e da vida em socieda-
de. Ou seja, no nível da imediaticidade e da aparência fenomênica, a
realidade se apresenta de maneira caótica e abstrata aos estagiários,
ausente de mediações e contradições. Por isso, entender a realidade
na sua concretude, à luz de fundamentos históricos, teóricos e sociais,
possibilita a aproximação ao real pensado, racionalmente elaborado,
permeado de mediações, contradições e determinações.
Quanto ao estágio em projetos de extensão, a PNE prevê essa
possibilidade desde que cumpridas, reconhecidas e caracterizadas
como atividades que de fato configurem ações extensionistas. Para
tanto, também devem estar contidas e previstas nos Projetos Peda-
gógicos dos cursos. A PNE ainda sinaliza sobre possíveis falácias no
sentido de desvirtuamento da extensão universitária, o que pode
contribuir para atender anseios e interesses de grupos privados, com
finalidades mercantis e lucrativas, reforçando ações assistencialis-
tas, filantrópicas, o trabalho voluntário, dentre outras armadilhas que
caminham na contramão dos valores e princípios defendidos pelo
Serviço Social. Por isso, é fundamental que os projetos de extensão

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estejam sintonizados e coerentes com o projeto ético-político pro-

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fissional. O estágio em extensão não pode ser pensado como uma
solução burocrática para atender um requisito formal-institucional
das instituições de ensino. O estágio deve ser compreendido na sua
totalidade, a partir da sua dimensão pedagógica, tendo como base
uma formação crítica, que é dialeticamente processual, dinâmica e
comprometida com valores democráticos e emancipatórios.
Assim, observa-se a necessidade do estágio ser pauta constante
nos fóruns da categoria, de forma a fortalecer espaços coletivos na
defesa de uma formação profissional comprometida com o projeto
ético-político do Serviço Social. Por isso, é preciso persistir e perma-
necer nesta instigante caminhada, que apesar de tantos percalços,
acumula importantes conquistas.

Considerações finais
A construção democrática e coletiva da PNE representou um mar-
co histórico para o Serviço Social brasileiro no sentido de apresentar
princípios orientadores do processo de supervisão de estágio que até
então precisavam ser delimitados e explicitados como forma de de-
fender o projeto de formação profissional crítico construído ao longo
dos últimos anos. Materializar os princípios norteadores da PNE em um
cenário de precarização das relações de trabalho e de uma ofensiva
reforma estrutural que atinge o sistema educacional brasileiro significa
resistir às injunções da ordem monopólica capitalista e persistir nas
trilhas que vislumbram um horizonte em que a emancipação humana
possa realmente ser concretude.
Considerando que a formação profissional se insere em um movi-
mento contraditório e complexo, situar o estágio nessa trama é enten-
dê-lo como parte integrante da totalidade social, que com suas múlti-
plas determinações incide na formação e no cotidiano de trabalho de
assistentes sociais. Por isso, não se pode desconsiderar nessa análise
as tendências da política educacional brasileira, as transformações no
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mundo do trabalho, o recrudescimento do conservadorismo, a crimi-


nalização das lutas sociais e a forte investida neoliberal que alavancou
processos de privatização dos bens, serviços e políticas públicas.
Tendo em vista as tensões existentes entre o projeto ético-políti-
co do Serviço Social e as requisições do mercado de trabalho guia-
das pela lógica da exploração capitalista, observa-se que o projeto
de formação profissional, sintonizado com uma perspectiva crítica
e emancipatória, defende uma formação de qualidade, pública, lai-
ca, democrática e presencial, em que o estágio seja um componente
fundamental desse processo e tenha dimensão pedagógica e forma-
tiva. Já as relações sociais capitalistas estão assentadas na mercan-
tilização, na banalização da vida e na exploração do trabalho como
fonte de maximização dos lucros.
Mesmo diante de inúmeros dilemas é preciso reconhecer avanços
e analisar a realidade sob a ótica da construção dialética, pois o Servi-
ço Social é uma profissão que, do ponto de vista socio-histórico, está
sendo construída coletivamente. É necessário reconhecer avanços e
conquistas, mesmo num contexto de inúmeros limites, retrocessos e
obstáculos. Isso não significa cair numa análise romântica e messiâni-
ca, mas considerar, mesmo nas adversidades, os processos sociais e
reconhecer conquistas significativas para a profissão. Ao identificar os
limites postos pela sociabilidade burguesa, é preciso análise rigorosa
e crítica das contradições vigentes, reconhecendo a necessidade de
aproximação e articulação da categoria profissional com outros su-
jeitos políticos, de forma a criar condições favoráveis que fortaleçam
projetos coletivos da classe trabalhadora.
Por isso, nesse momento dramático da história brasileira, de avanço
de forças ultrarreacionárias e de ataques aos valores democráticos,
implementar a PNE no cotidiano das instituições de ensino superior
e nos espaços socio-ocupacionais de assistente sociais, assegurando
seus princípios e diretrizes, é defender o projeto profissional crítico
do Serviço Social, patrimônio histórico-coletivo da categoria, tendo

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em vista a luta pela educação pública, de qualidade e laica. É também

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defender melhorias nas condições de trabalho para os profissionais,
diante da reestruturação capitalista neoliberal que desmonta grada-
tivamente os direitos sociais, privatiza os serviços sociais públicos,
fragiliza e precariza os vínculos contratuais de trabalho, provocando
sérios agravos à saúde física e mental da classe trabalhadora.

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cial: expressão dos (des)encontros entre a formação profissional e o merca-
do de trabalho. Temporalis, Brasília, ano IX, n.17, p.61-82, 2009.

Notas

1 Assistente Social, mestre e doutor em Serviço Social pela Universidade Estadual


Paulista (Unesp). Docente do Departamento de Serviço Social e do Programa de
Pós-Graduação em Política Social da Universidade de Brasília (UnB). Coordenador
do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho, Sociabilidade e Serviço Social
(TRASSO). Nº ORCID: 0000-0002-9229-7686. E-mail: rghiraldelli@unb.br.

2 A gestão da ABEPSS (2009-2010) elegeu como um de seus compromissos prio-


ritários a construção da PNE, objetivando fornecer subsídios ao processo de for-
mação profissional no que se refere ao estágio e ser um instrumento político de
resposta crítica aos imperativos do capitalismo, frente às reformas estruturais da
política educacional que atinge o ensino superior e a precarização do trabalho.
Sua construção contou com ampla mobilização das UFAs, dos sujeitos profissio-
nais e das entidades representativas de todo o País.

3 É importante sublinhar que ocorreu, mesmo que em condições precárias, uma


expansão do ensino superior público no Brasil por meio do decreto n.6.096 de
24/04/2007, que instituiu o REUNI (Plano de Reestruturação e Expansão das Uni-
versidades Federais). Antes disso, o decreto n.5.622, de 19/12/2005 instituiu a
educação a distância no País e o decreto n.5.800 de 08/06/2006 já dispunha
sobre a Universidade Aberta do Brasil.

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Os impactos do neoliberalismo sobre as

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mulheres trabalhadoras: a esfera do cuidado e
a precarização do trabalho feminino

Ana Carolina Brandão Vazquez1


Ana Taisa da Silva Falcão2

Resumo
O presente artigo tem por objetivo fomentar o debate acerca dos impactos do
neoliberalismo sobre as mulheres. Tal debate torna-se imperioso tendo em vista
a agudização das políticas neoliberais que vivenciamos na atualidade e a forma
perversa com a qual desmonta direitos já conquistados da classe trabalhadora e
a maneira particular que estas políticas incidem sobre as mulheres proletárias. Ao
longo do exposto analisamos como o desmonte dos direitos sociais, ocorridos por
conta dos ajustes neoliberais, reorganizam negativamente a vida das mulheres,
impactando, inclusive, nos movimentos sociais organizados.

Palavras-chaves
Feminismo; Neoliberalismo; Contrarreforma do Estado.

The impacts of neoliberalism over workers women: care sphere and the precariza-
tion of the female work

Abstract
This article aims to promote the debate about the impacts of neoliberalism on
women. Such a debate becomes imperative in view of the exacerbation of the
neoliberal policies we are experiencing today and the perverse form with which it
dismantles already won rights of the working class and the particular way in which
these policies affect women proletarians. Throughout the above we analyze how
the dismantling of social rights, due to neoliberal adjustments, negatively reorga-
nize the lives of women, impacting even on organized social movements.

Keywords
Feminism; Neoliberalism; counter-reform of the State.

Artigo recebido: abril de 2018


Artigo aprovado: julho de 2018

pg 371 - 392 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019


372 Ana Carolina Brandão Vazquez e Ana Taisa da Silva Falcão

Introdução
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A despeito dos direitos adquiridos através da luta e engajamento


de movimentos sociais no processo de redemocratização do Brasil,
que culminou com a Constituição Federal de 1988, a entrada na dé-
cada de 1990 traz consigo o desmonte destes direitos tão recentes e
duramente conquistados. O País avança no ideário neoliberal e leva
a cabo um processo de reformas3 e privatizações que atinge sobre-
maneira a classe trabalhadora.
Contudo, se ficam claros os impactos que estes ajustes trazem para
o conjunto da classe trabalhadora, não é tão clara assim a forma par-
ticular com que essas reformas atingem as mulheres proletárias. Nes-
se sentido, são as mulheres negras e pobres historicamente as mais
afetadas por esse processo. Além de assumirem posições subalternas
em relação aos homens, ocupam os estratos mais precarizados em
relação às próprias mulheres, principalmente no que tange aos cargos
relacionados a tarefas intelectuais, sendo, ainda, as principais benefi-
ciárias das políticas sociais compensatórias, que se desmantelam com
maior rapidez de acordo com o avanço neoliberal.
É importante ressaltar que, se a agenda neoliberal foi imposta ao
País na década de 1990, os anos subsequentes não romperam com
esse modelo político-econômico. Ao contrário, este foi aprofundado
nos governos que se seguiram, inclusive nos mandatos do Partido
dos Trabalhadores (PT), que, durante sua trajetória, se posicionava
contra as medidas de arrocho anunciadas como única forma de sal-
vação da crise do Estado4.
Na contemporaneidade, experimentamos um momento de
agudização dos preceitos neoliberais que se expressam de forma
perversa em reformas trabalhistas, da previdência e na crescente
precarização das políticas sociais, por si só já parcas, focalizadas,
fragmentadas e emergenciais.
Desta maneira, ao longo deste artigo, nos propusemos a analisar de
que forma – tanto no passado, quanto no presente –, os ajustes neo-

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 371 - 392


Os impactos do neoliberalismo sobre as mulheres trabalhadoras: a esfera do ... 373

liberais têm impactado negativamente as mulheres trabalhadoras, as-

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sociando a exploração de classe às opressões de gênero e raça/etnia.
Deste modo, partimos da célebre frase cunhada por Cecília Toledo
(2005): “o gênero nos une, a classe nos divide”5. Entretanto, apesar de
partimos do mesmo pressuposto da autora, qual seja, o método mate-
rialista de análise da realidade, – e exatamente por isso –, percebemos
a relação entre as classes e os sexos de forma dialética. Sob este regis-
tro, se a afirmação acima é correta, o contrário também o é: “a classe
nos une, o gênero nos divide” . Se não é possível pensarmos as mulhe-
res de forma homogênea, tampouco a classe pode ser pensada dessa
maneira. Esta ressalva se faz necessária para não cairmos na armadilha
de invisibilização da opressão e exploração da mulher trabalhadora.
Obviamente, a divisão da sociedade em classes agudiza a opres-
são sobre as mulheres, transformadas elas próprias em propriedade
e instrumento de produção. Contudo, devemos nos atentar ao fato
de que a opressão patriarcal é anterior ao capitalismo e, conjugada
a ele, aprofunda a violência e a exploração contra a mulher. Cremos
que o capitalismo não inventou o patriarcado, mas, seguramente, foi
através do desenvolvimento do capitalismo enquanto sistema global
que o patriarcado se inseriu nas estruturas deste sistema econômico,
elevando a exploração da mulher – e seu corpo – à máxima potência.
Dessa forma, concordamos com Cisne e Gurgel quando partem:
[...] da convicção de que a emancipação humana é irrealizável
no capitalismo, dada a sua estrutura de dominação, alienação
e exploração, baseada na transformação da força de trabalho
em mercadoria. [...] Assim sendo, nos marcos desse sistema al-
cançaremos, no máximo, a emancipação política, em termos de
conquistas democráticas. (CISNE; GURGEL, 2008, p.72).

Chamar atenção para esse fato não significa rechaçar ou diminuir


a importância da violência de classe, mas, ao contrário, perceber que
uma verdadeira transformação social vai além da destruição do modo
de produção capitalista. É necessário revolucionar os costumes e a

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374 Ana Carolina Brandão Vazquez e Ana Taisa da Silva Falcão

cultura patriarcal, tarefa já apontada como imprescindível pelas revo-


lucionárias russas quando da Revolução de Outubro. É, portanto, ta-
refa da classe trabalhadora a libertação da mulher dessa tripla opres-
são: a de classe, de raça/etnia e a patriarcal. Para tanto, é necessário
transformar as próprias estruturas da sociedade em que vivemos. Ou
seja, nosso ponto de partida para a análise das condições em que as
mulheres trabalhadoras sobrevivem (não vivem) ao capital neoliberal
surge da constatação de que a emancipação da mulher é impossível
dentro do sistema capitalista neoliberal.

O neoliberalismo e seus impactos na classe trabalhadora


Para entendermos a particularidade dos processos neoliberais no
Brasil, desde sua emergência na década de 1990 até seu intenso apro-
fundamento na contemporaneidade, é necessário compreendermos as
profundas transformações sofridas no âmbito do capitalismo, especial-
mente a partir dos anos de 1970. Entender o movimento do capital nos
permite analisar melhor a maneira com que o Estado vem sendo requi-
sitado a intervir de forma a garantir os superlucros da classe dominante
em detrimento, inclusive, da subsistência da classe trabalhadora, atuan-
do como “comitê executivo” (MARX; ENGELS, 2010) da burguesia.
De acordo com Anderson (1995, p.9), o neoliberalismo surge como
teoria com o fim da Segunda Grande Guerra, como uma “reação teóri-
ca e política veemente contra o Estado intervencionista e de bem-es-
tar”. Configurava-se, naquele momento, como uma defesa à liberda-
de, tanto econômica quanto política, posicionando-se contra qualquer
tipo de limitação do mercado pelo Estado. Todavia, nos idos de 1945,
seus ideais não pareciam pertinentes, tendo em vista o êxito do pacto
fordista no que tange ao crescimento econômico no pós-guerra.
A partir dos anos de 1960, entretanto, o fordismo começa a dar si-
nais de esgotamento, haja vista a recuperação econômica da Europa
Ocidental e do Japão após duas grandes guerras, o que acirrou a com-
petição internacional por mercados. De acordo com Harvey (2006, p.
O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 371 - 392
Os impactos do neoliberalismo sobre as mulheres trabalhadoras: a esfera do ... 375

105), “à medida que surgem múltiplos centros dinâmicos de acumula-

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ção de capital que competem no mercado mundial”, fortes correntes
de sobreacumulação se intensificam. Nesse sentido, o fordismo difi-
cultava o escoamento de excedentes, uma vez que se caracterizava
como um sistema de superprodução que mantinha grandes estoques.
No início da década de 1970, a economia mundial enfrenta uma
grande crise econômica, colocando em xeque o modelo econômi-
co adotado no pós-guerra. Anderson (1995, p. 10) aponta que nes-
sa época “todo o mundo capitalista avançado caiu numa longa e
profunda recessão, combinando, pela primeira vez, baixas taxas de
crescimento com altas taxas de inflação”. É neste contexto de crise
que as ideias neoliberais ganham força.
Como solução para a crise, o neoliberalismo propõe um “novo tipo”
de capitalismo, pautado na desigualdade como um valor positivo. As
raízes da crise, de acordo com os neoliberais, assentam-se, principal-
mente, no grande poder reivindicatório dos sindicatos e movimentos
operários organizados, que pressionam o Estado em busca de melho-
res salários e mais investimentos em serviços sociais. Propõe, portanto,
“manter um Estado forte, sim, em sua capacidade de romper com o
poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas parco em todos os
gastos sociais e nas intervenções econômicas” (ANDERSON, 1995, p. 12).
Vale enfatizar, entretanto, que, apesar de germinar fertilmente
no terreno da crise dos anos de 1970, o ideário neoliberal precisou
de toda essa década para se firmar enquanto modelo a ser segui-
do, consolidando-se enquanto hegemonia econômico-política em
1979, no governo de Margareth Thatcher, na Inglaterra. Sobre isso,
Anderson comenta que:

[...] o modelo inglês foi, ao mesmo tempo, o pioneiro e o mais


puro. Os governos Thatcher contraíram a emissão monetária,
elevaram as taxas de juros, baixaram drasticamente os impostos
sobre os rendimentos altos, aboliram o controle sobre os fluxos
financeiros, criaram níveis de desemprego massivo, aplastaram

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376 Ana Carolina Brandão Vazquez e Ana Taisa da Silva Falcão

greves, impuseram uma nova legislação anti-sindical e cortaram


gastos sociais. E, finalmente, se lançaram num amplo programa
de privatização, começando por habitação pública e passando
em seguida a indústrias básicas como o aço, a eletricidade, o pe-
tróleo, o gás e a água. Esse pacote de medidas é o mais sistemá-
tico e ambicioso de todas as experiências neoliberais em países
de capitalismo avançado. (ANDERSON, 1995, p.19).

Contudo, apesar de estrangular os gastos sociais, aumentar as taxas de


desemprego e das reformas fiscais para incentivar agentes econômicos,
o neoliberalismo não conseguiu alavancar seu propósito econômico de
restaurar as altas taxas de crescimento de antes da crise do modelo de
Bem-Estar. Todavia, em termos sociais, políticos e, sobretudo, ideológi-
cos, teve um inegável sucesso, “disseminando a ideia de que não há alter-
nativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando,
têm que adaptar-se às suas normas” (ANDERSON, 1995, p. 22).
Em se tratando de Brasil, o neoliberalismo constitui-se como agen-
da político-econômica na década de 1990, e traz consigo o que Behring
denominou de contrarreforma do Estado. Esta contrarreforma, de
acordo com a autora, consiste:

[...] na perda da soberania – com aprofundamento na hetero-


nomia e da vulnerabilidade externa; no reforço deliberado da
incapacidade do Estado para impulsionar uma política eco-
nômica que tenha em perspectiva a retomada do emprego e
do crescimento, em função da destruição dos seus mecanis-
mos de intervenção neste sentido, o que implica uma profunda
desestruturação produtiva e no desemprego; e, em especial,
na parca vontade política e econômica de realizar uma ação
efetiva sobre a iniquidade social, no sentido de sua reversão,
condição para uma sociabilidade democrática. [...] [Trata-se] de
um projeto e um processo que, na verdade, parecem despre-
zar mesmo os mecanismos mais elementares da democracia
burguesa, a exemplo da independência e do equilíbrio entre
poderes republicanos. (BEHRING, 2008, p.213).

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Os impactos do neoliberalismo sobre as mulheres trabalhadoras: a esfera do ... 377

Os maiores impactos desta contrarreforma foram sentidos prin-

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cipalmente no âmbito das políticas sociais com redução drástica de
gastos sociais, incentivo ao voluntariado e um intenso processo de (re)
filantropização da política social.
Com a chegada de Fernando Henrique Cardoso (FHC) à Presidência
da República a agenda neoliberal no País se aprofunda, através da “re-
forma” sistematizada pelo Plano Diretor da Reforma do Estado (PDRE),
formulado por Bresser Pereira, que à época encontrava-se à frente do
Ministério da Administração e da Reforma do Estado (MARE), expres-
são intelectual dos processos “reformistas”. Durante a gestão de FHC o
Brasil passa por sérias transformações nos planos político, econômico
e social, transformações essas apresentadas como parte integrante do
PDRE, e que teriam o objetivo de resgatar a legitimidade e capacidade
financeira e administrativa de governar do Estado brasileiro.
A reforma do Estado, portanto, teria como princípio resgatar a cida-
dania e a democracia, as quais haviam sido “prejudicadas” por governos
populistas e desenvolvimentistas anteriores. Estes, através dos aparelhos
burocrático-administrativos revelaram-se um entrave para a real conso-
lidação de ambas. Deste modo, a reforma estatal proposta no governo
FHC caracteriza-se, sobretudo, como uma reforma da administração pú-
blica, passando por uma reforma gerencial que teria o papel de substituir
a administração burocrática pela livre concorrência de segmentos priva-
dos na oferta de serviços. A “reforma” produziria um Estado intermediário
(nem liberal, nem intervencionista), pautado nos processos de privatiza-
ção e liberalização econômica. Entretanto, apesar de aparecer no discur-
so governamental como uma “solução natural”, é sabido que, qualquer
que seja a opção político-econômica de um governo, esta está eivada
de conflitos e sujeitos políticos, e o PDRE não era exceção, ao contrário,
configurava-se como uma escolha político-ideológica orquestrada pelas
agências multilaterais. Como nos diz Behring, “o Plano Diretor vai muito
além da reforma administrativa. Trata-se de uma revisão do conceito de
Estado e uma refundação da relação Estado-sociedade” (2008, p.175).

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378 Ana Carolina Brandão Vazquez e Ana Taisa da Silva Falcão

O projeto neoliberal levado a cabo por FHC nos anos de 1990


continuou pautando a agenda político-econômica do País na entra-
da dos anos 2000. A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003,
trouxe esperança de um governo pensado para os trabalhadores.
Esta esperança, entretanto, logo se viu frustrada. Os governos PT –
já distanciados dos seus ideais de fundação – aprofundaram medi-
das neoliberais e atuaram orientados para o mercado. Contudo, ao
contrário da receita clássica neoliberal, ao mesmo tempo em que a
agenda petista privilegiou o capital internacional, investiu em pro-
gramas sociais compensatórios, nos moldes do que Florestan Fer-
nandes (2005) chamou de democracia de cooptação6.
De acordo com Cassin:

As políticas sociais nesse período foram orientadas para o com-


bate à miséria por meio da seletividade e focalização das ações
nos segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora. Hou-
ve uma ampliação significativa dos programas de transferência
de renda ao mesmo tempo em que se aprofundava o desmonte
das demais políticas do sistema de proteção social, a exemplo
da Saúde e da Previdência Social. Aliada a outros fatores como
aumento do salário mínimo e expansão do crédito, a ampliação
do programa Bolsa família possibilitou uma melhoria nas con-
dições materiais de vida dos indivíduos mais pobres, que pas-
saram a constituir uma nova base eleitoral de apoio para o PT a
partir de 2006. (CASSIN, 2015, p. 115).

O golpe orquestrado pelas forças políticas mais conservadoras do


País, que culminou com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff
e a ascensão de Michel Temer7 à Presidência da República, trouxe à
tona um neoliberalismo ortodoxo, que segue à risca o receituário de
medidas de austeridade que atinge cruelmente a classe trabalhadora.
Uma das primeiras medidas do governo golpista foi a Proposta de
Emenda Constitucional (PEC) nº 2418, que estabelece um teto para
os gastos públicos e congela investimentos sociais pelos próximos

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Os impactos do neoliberalismo sobre as mulheres trabalhadoras: a esfera do ... 379

20 anos. A justificativa para esta medida novamente recai na falácia

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do inchaço da máquina pública e a necessidade de corte dos gas-
tos sociais para garantir o equilíbrio das contas e a governabilidade.
Tal medida, apesar de dura, seria a única forma de retomar as taxas
de crescimento econômico, “criando um ‘ambiente favorável’ aos
investimentos privados e daí a retomada do emprego” (IASI, 2016).
Todavia, como já predizia Marx, a história se repete: a primeira vez
como tragédia, a segunda como farsa!9 Como já apontamos, as me-
didas de austeridade propostas pelo Estado no neoliberalismo datam
desde seu início, tendo sido amplamente utilizadas nas décadas de
1980 e 199010 do século passado, inclusive em países de capitalismo
central, de modo que uma análise mais pormenorizada da conjuntu-
ra política atual facilmente desmonta tal argumento.
A letalidade da implementação compulsória das políticas neolibe-
rais é incalculável, a conta é paga pelo lado mais frágil da socieda-
de. Assim, as políticas neoliberais no Brasil, em particular, e em todo
o nosso continente, afetam a vida da classe trabalhadora de maneira
violenta. “A maioria da sociedade tem que se sacrificar e abrir mão de
seu futuro para salvar uma insignificante minoria de super ricos e seu
modo de produção parasitário”. (IASI, 2016).
Nada mais letal para populações inteiras do que as políticas inter-
nacionais de “adequação” ao mercado internacional, ou mesmo a ideia
de um “mercado” que regula quem pode ou não comer. Assim, “o ca-
pitalismo destrói as duas fontes de sua própria riqueza: o homem e
a natureza. Nesse sentido, o sistema neoliberal é um ‘real genocídio’,
porque está acabando com camadas inteiras da sociedade e do entor-
no natural” (HOUTART apud VEGA, 2016, p.15).

As políticas neoliberais e a especificidade das mulheres


Cisne e Gurgel investigam a associação entre neoliberalismo e as
transformações nos movimentos sociais, especialmente feministas, que
passam a se organizar em organizações não governamentais (ONGs),
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mediante o processo de diminuição do Estado. Nas palavras das au-


toras, seu trabalho busca “analisar a relação entre feminismo e Estado
considerando a reivindicação por políticas públicas para as mulheres”
(CISNE; GURGEL, 2008, p.72). Vemos uma forte preocupação das auto-
ras com o impacto do neoliberalismo no interior do movimento femi-
nista e como isso afeta as pautas históricas do movimento, agora capi-
taneado pelas ONGs. Tal preocupação está concentrada no problema
da capacidade de negociação do movimento feminista na reivindicação
por políticas públicas igualitárias, tendo em vista que a própria lógica da
privatização dos serviços retira – ou compromete gravemente – a auto-
nomia do movimento, representado junto ao Estado por ONGs.
Levamos em consideração essa preocupação apresentada pelas
autoras e, por isso pensamos, por um lado, o papel das diversas ex-
pressões do movimento feminista – representado ou não por ONGs –
na reivindicação e enfrentamento junto ao Estado pela manutenção de
direitos sociais já adquiridos e pela luta por mais direitos e, por outro, o
impacto da conjuntura recente no Brasil de ultraneoliberalismo gerido
pelo parlamento – cada dia mais forte, mais antipopular e antidemo-
crático – para a vida das mulheres em geral.
Embora o processo de “onguização” decorrente da associação en-
tre o capital e as ONGs, mediante financiamento, limite a autonomia
dos movimentos sociais, em geral, e do movimento feminista, em
particular, o exercício de análise das conjunturas política e econômi-
ca próprias do neoliberalismo se faz necessário para irmos além dos
limites que ele impõe aos movimentos sociais enquanto sujeitos po-
líticos organizados. Além disso, torna-se salutar analisar as condições
concretas em que vivem as mulheres sob o neoliberalismo.
O neoliberalismo, ao firmar-se enquanto sistema econômico-ide-
ológico global, assume o que Cisne e Gurgel chamam de desregula-
mentação do Estado através da “desresponsabilização para com as
políticas públicas de caráter universal” (CISNE; GURGEL, 2008, p.73).
Essa desresponsabilização do Estado, segundo Jules Falquet (2013)

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Os impactos do neoliberalismo sobre as mulheres trabalhadoras: a esfera do ... 381

aprisiona as mulheres numa teia – “imbricada” – de exploração e

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apropriação, transformando-as, sobretudo as mulheres racializadas e
pobres, no exército de reserva dos bolsões de miséria do capitalismo.
Para Falquet (2013, p.1-2), “a globalização neoliberal consiste, no pla-
no da produção material, em uma reorganização global da divisão do
trabalho segundo suas diferentes dimensões: sexual, social e ‘racial’”.
Aqui cabe um relevante paralelo com os trabalhos de Moema
Guedes (2016) e Moema Guedes e Clara Araújo (2011), porque no
que se refere a temas como educação, cuidado com as crianças e
idosos, a responsabilização recai sobre a “família” – ou melhor, so-
brecarregam as mulheres da família – e, consequentemente, con-
tribui com o processo de desresponsabilização do Estado. Para as
autoras, há, em nossa sociedade, uma:
[...] dissonância entre os avanços femininos no mercado de tra-
balho e a permanência das tarefas relativas ao cuidado com os
filhos quase exclusivamente sob responsabilidade das mulhe-
res. A constatação de que os avanços das mulheres no campo
profissional não vêm sendo acompanhados por um processo de
“desnaturalização” dos tradicionais papeis femininos vinculados
ao nascimento de filhos e pela desconcentração do trabalho re-
produtivo na figura da mãe. (GUEDES; ARAÚJO, 2011, p. 62).

Nota-se que, por um lado, ainda é muito forte esse “enjaulamento”


das mulheres na função de cuidadoras e, por outro lado, da perma-
nência da cultura de desresponsabilização dos homens de tais tarefas.
Para Moema Guedes, a cultura patriarcal reforça “os afazeres ligados
ao cuidado e o próprio trabalho de reprodução social como tarefas
exclusivamente da família” (GUEDES, 2016, p.2). Desse modo, ao re-
legar à família a responsabilidade por tarefas de cuidado, a ideologia
neoliberal está super-explorando as mulheres.
Parte da expropriação que as mulheres sofrem, neste sistema,
está profundamente relacionada ao tempo. O fator tempo de traba-
lho produtivo versus tempo de trabalho reprodutivo é um dos traços
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de distinção de gênero, de raça/etnia e de classe, porque conjuga,


ao mesmo tempo, proporções distintas entre a classe trabalhadora,
entre homens e mulheres e entre mulheres com níveis distintos de
formação. A consequência disso é que as mulheres pobres, majori-
tariamente negras, têm seus tempos de trabalho produtivo apropria-
dos pelo trabalho reprodutivo.

Estudo com base na PNAD de 2006 mostrou que homens e mu-


lheres tinham jornadas totais de trabalho – pago e reprodutivo
– de 49 horas e 56 horas, respectivamente. [...] Os homens de-
dicavam em média 44 horas ao trabalho voltado para o merca-
do e 5 horas para a reprodução social, enquanto as mulheres
tinham jornadas de 37 horas no mercado e 17 horas com afaze-
res domésticos. [...] A população feminina menos escolarizada
apresenta tempos médios de jornada de trabalho do mercado
substancialmente menores, mas suas jornadas domésticas são
em média 75% maiores que a das mulheres de nível universitá-
rio. Neste grupo mais escolarizado, diferentemente, a tendência
de buscar uma melhor inserção no mercado de trabalho faz com
que as mulheres tenham jornadas no mercado mais longas e de-
leguem as atividades domésticas a trabalhadores remunerados
para exercê-las. (GUEDES; ARAÚJO, 2011, p.70).

Nesse sentido, quanto menos a população cobra efetivamente do


Estado a manutenção de políticas públicas sociais, mais precária se
torna a oferta de serviços para a parcela mais vulnerável da popula-
ção, aquela que mais necessita do Estado, mas que possui, por sua
condição de classe, menos condições de exigir diretamente dos go-
vernantes algum tipo de ação concreta que os atenda. E a situação se
agrava conforme a ideologia neoliberal, conjugada com o patriarcado,
se espalha ao conjunto da sociedade. Um exemplo disso está na pes-
quisa apresentada por Moema Guedes, em que há “a percepção ainda
muito forte de que família, particularmente a mãe, seria a melhor pes-
soa para cuidar da criança” (GUEDES, 2016, p.4).

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Em outras palavras, quanto mais a ideologia neoliberal de desres-

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ponsabilização do Estado se solidifica na cultura política de uma so-
ciedade, mais vulnerável se torna a perspectiva de vida da classe tra-
balhadora mais precarizada, sobretudo para as mulheres, sobre quem
recaem as múltiplas jornadas de trabalho. É desde a perspectiva neo-
liberal que os serviços – como saúde, educação, cultura e segurança
–, deixam de ser um direito universal e passam a ser mercantilizados,
transformando-se em privilégios sociais, uma vez que alguns estratos
sociais podem custeá-los através da iniciativa privada. Dessa forma,
a oferta do Estado diminui drasticamente em quantidade e qualidade.
Acerca do caráter ideológico do sistema capitalista e de seu repre-
sentante mais recente na conjuntura mundial, o neoliberalismo, Cisne
e Gurgel vão dizer que o Estado lança mão de mecanismos ideológicos
para manipular a classe trabalhadora a crer que a exploração para a
reprodução do capitalismo não é violenta e excessivamente nociva.
Cremos que a ideia de “envolvimento manipulatório” do capitalismo
que as autoras tratam vai além da cooptação de movimentos sociais ou
de sindicatos. Tal ideia está ligada também à disseminação dos ideais
do capital aos estratos mais baixos da sociedade, com fins de repro-
dução dos valores da elite. Aqui é interessante dialogar com o conceito
de “racionalidade burguesa” de Florestan Fernandes, o qual consiste na
escolha política das elites nacionais pela consolidação do “poder bur-
guês através do fortalecimento das estruturas e funções nacionais de
sua dominação de classe”, pelo qual, “certos interesses especificamente
de classe podem ser universalizados, impostos por mediação do Estado
a toda a comunidade nacional e tratado como se fossem os ‘interesses
da nação como um todo11’” (FERNANDES, 2005, p.301-306).
Como bem apontou Florestan Fernandes, faz parte do processo de
dominação burguesa, que, para se manter e aprofundar a acumula-
ção capitalista, é necessário que as classes dominantes “mantenham,
indefinidamente, estruturas socioeconômicas e políticas arcaicas ou
semi-arcaicas operando como impedimento à reforma agrária, à va-

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lorização do trabalho, à proletarização do trabalhador, à expansão do


mercado interno etc.” (FERNANDES, 2005, p.306). Por isso, para ga-
rantir a “ordem” capitalista:
As burguesias [...] sob o capitalismo dependente e subdesenvolvi-
do [...] detêm um forte poder econômico, social e político, de base
e de alcance nacionais; possuem o controle da maquinaria do Es-
tado nacional; e contam com suporte externo para modernizar as
formas de socialização, de cooptação, de opressão ou de repres-
são inerentes à dominação burguesa. (FERNANDES, 2005, p.296).

Cisne e Gurgel apontam o problema da privatização dos serviços


públicos e privatização dos canais de diálogo (ou enfrentamento) com
o Estado, uma vez que potencializam a diminuição do tamanho do
Estado e, em contrapartida, vulnerabilizam a classe trabalhadora. Ou
seja, mesmo quando as demandas sociais são mediadas por ONGs,
elas mesmas não representam uma contestação à ordem. São, por ou-
tro lado, a manutenção da ordem, das “coisas no lugar”, ao contrário
das pressões que exercem os movimentos sociais, por suas dinâmicas
específicas, que tendem a “movimentar”, a “tirar as coisas do lugar”.
Por coisas, estamos falando da ordem social burguesa. Quanto mais
forte se torna o discurso neoliberal, menos espaço sobra para os mo-
vimentos sociais e a classe trabalhadora, de um modo geral, para rei-
vindicar políticas públicas emancipatórias.
O avanço do neoliberalismo no contexto de pós-ditaduras militares
na América Latina culminou no “processo de desmobilização social em
torno da garantia das conquistas históricas duramente alcançadas pelos
diversos sujeitos sociais no capitalismo tardio da América Latina” (CIS-
NE; GURGEL, 2008, p.74). Tal processo enfraquece as lutas históricas dos
movimentos sociais por políticas públicas de qualidade e que contribuem
para a emancipação da mulher, que se vê, portanto, sobrecarregada de
encargos familiares e da necessidade de buscar espaços de trabalho. E
mesmo a busca por mais espaço no mercado de trabalho não tem con-
tribuído para o equilíbrio entre homens e mulheres no acesso a salários.
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A participação das mulheres no mercado de trabalho é marca-

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da pela concentração na prestação de serviços. [...] No caso das
mulheres, vemos uma concentração em três setores que apre-
sentam praticamente o mesmo peso relativo: educação, saúde e
serviços sociais (16,9%); comércio e reparação (16,5%); e servi-
ços domésticos (16,4%). [...] mesmo nestes redutos femininos os
homens são mais bem remunerados que as mulheres. A pior si-
tuação foi retratada pelas trabalhadoras de serviços domésticos,
cujas remunerações estavam bastante concentradas (42,9%)
entre meio e 1 salário mínimo. Este grupo também apresentou
uma concentração expressiva no estrato salarial mais baixo (até
meio salário mínimo), situação na qual 27,9% delas estavam no
momento da pesquisa. (GUEDES; ARAÚJO, 2011, p.72).

A agenda neoliberal inclui a mulher no mercado de trabalho, porém


trata-se, sobretudo, de trabalhos precarizados e mal pagos. E é exata-
mente a sobrecarrega de trabalho doméstico imbuída às mulheres que
faz com que elas acabem aceitando, mais por necessidade que por
desejo, empregos secundários. No que tange aos serviços de caráter
reprodutivo, as autoras Clara Araújo e Moema Guedes realizaram pes-
quisa onde pretendiam analisar as percepções das pessoas residentes
no estado do Rio de Janeiro sobre tais serviços12.
A pesquisa é interessantíssima, pois ilustra o que viemos até en-
tão trabalhando no âmbito dos apontamentos teóricos de investiga-
doras sobre neoliberalismo e feminismo. Nas entrevistas, o caráter
ideológico do neoliberalismo, entranhado nas esferas do imaginário
coletivo, se torna evidente.

A pergunta “Quem deverá se responsabilizar preferencialmente


pelos idosos?”, de modo geral, apresentou maior concentração,
se comparada à pergunta focada nas crianças, na resposta “a
família”, com mais de 80% dos respondentes como um todo.
Mas nesse caso, a diferença por sexo é maior. No grupo femini-
no, observamos uma maior concentração na resposta “família”.
Esse dado é interessante porque sugere que, mesmo sendo as

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principais “cuidadoras” dos idosos da família, as mulheres te-


riam mais dificuldade de relativizar a possibilidade de fazê-lo de
forma compartilhada com outras instituições ou com serviços
especializados. (GUEDES, 2016, p.8-9).

Devemos problematizar a percepção que as mulheres têm, de um


modo geral, da sobrecarga de trabalho (produtivo e reprodutivo) que
exercem em sociedade. Dentro da lógica do patriarcado, a internaliza-
ção da função de cuidadora por parte das próprias mulheres é extre-
mamente necessária para a manutenção desse sistema de dominação
de gênero. O que torna muito plausível que sejam as mulheres, acima
de tudo, aquelas que entendem como função da família – lembrando
sempre que a função de cuidado na família recai sobre as mulheres da
família – o papel de cuidar das crianças, dos idosos, das pessoas com
necessidades especiais. Ou seja, a opressão contra a mulher que limita
sua autonomia intelectual, profissional, social e, sobretudo, financeira,
necessita, para a sua manutenção e reprodução que as mesmas mu-
lheres internalizem o sistema de opressão e o reproduzam.
Exercer compulsoriamente a função de cuidadora – do lar e de
quem habita o lar – agride a mulher de maneira específica, inviabili-
zando seu progresso financeiro. Sobre isso a autora aponta que:
[...] tanto entre homens quanto mulheres, que nos estratos mais
escolarizados aumenta o peso relativo da categoria “família” e
diminuiu o peso da categoria Estado. Esse resultado sugere que
a percepção do papel do Estado como principal provedor dos
cuidados de idosos se relaciona diretamente à necessidade da
população que não teria condições de arcar com esse serviço
de forma privada. De todo modo, é interessante destacar que
o acesso educacional não constrói, necessariamente, uma de-
manda por políticas públicas que desonerem as famílias e par-
ticularmente as mulheres. (GUEDES, 2016, p.11; grifos nossos).

Assim, na pesquisa sobre cuidado podemos perceber que a pers-


pectiva neoliberal de diminuição das obrigações do Estado é muito
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forte nos estratos mais altos das nossas sociedades, que não depen-

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dem diretamente de políticas públicas que garantam o desenvolvi-
mento familiar, o que faz com que saiam em defesa da – crescente
– diminuição das instituições do Estado responsáveis por setores es-
senciais da vida familiar, uma vez que suas famílias são capazes de ar-
car economicamente com tais serviços e, portanto, associam a maior
presença do Estado através de instituições de ensino, saúde, etc. como
um “gasto” a mais para os cofres públicos.
Observemos, portanto, que quanto mais pobres são as pessoas,
apesar de, por um forte traço do patriarcado, ainda responderem que
o espaço privilegiado para o cuidado seja a família, a porcentagem de
respostas referentes à participação do Estado – seja oferecendo o ser-
viço ou o financiando – está muito relacionada a uma perspectiva de
classe: quem tem condições de arcar com o custo do cuidado não o vê
como responsabilidade do Estado, já quem não tem como arcar com
esse custo, clama por políticas públicas que cubram essa demanda,
mesmo que a tarefa esteja a cargo da família.

Considerações finais
As mulheres que compõem o setor precarizado da economia são,
com frequência, as que se encontram, por sua condição de classe e
raça, já em situação de vulnerabilidade social. Dessa forma, determi-
nadas explorações, que Jules Falquet chama de “imbricadas”, atingem
as mulheres negras e pobres de forma muito mais profunda.
O capital global do neoliberalismo maximiza essa exploração do
trabalho precarizado, que Falquet vai chamar de “trabalho conside-
rado como feminino” ou “trabalho desvalorizado”. Esse ponto é muito
importante para nossa pesquisa, uma vez que tratamos, por um lado,
das políticas públicas de caráter neoliberal que atentam contra a au-
tonomia e emancipação das mulheres e, por outro lado, da aceita-
ção por parte da sociedade – mesmo àquelas parcelas mais afetadas
por tais ideais – do conjunto de ideologias dominantes contrárias ao
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desenvolvimento coletivo da população, que são os ideais burgue-


ses de sociedade. Os conceitos apresentados por Falquet – “trabalho
tido como feminino” e “trabalho desvalorizado” – dão conta tanto das
preocupações de Cisne e Gurgel, sobre o avanço do neoliberalismo
conjuntamente com a diminuição da capacidade de reivindicação dos
movimentos sociais, quanto das preocupações de Moema Guedes,
que giram ao redor de como a sociedade vê as tarefas de cuidado
como de responsabilidade prioritária da família e, neste caso, como
isso afeta as mulheres, sendo elas as pessoas da “família” sobre quem
recaem as obrigações reprodutivas.
Para Falquet, “estes conceitos esclarecem a ideia de que as relações de
sexo, ‘raça’ e classe funcionam como vasos comunicantes: a globalização
neoliberal, mais do que libertar as mulheres da apropriação, condena-as
a navegar entre exploração e apropriação” (FALQUET, 2013, p.7).
Essa prerrogativa fica bastante clara quando nos voltamos para
conjuntura brasileira atual. Um olhar mais atento acerca da reforma
trabalhista13 proposta pelo governo Temer, revela a vulnerabilidade
e precarização do trabalho feminino. Se esta reforma atinge brutal-
mente a classe trabalhadora em seu conjunto, não podemos negli-
genciar a forma particular que impacta as mulheres trabalhadoras.
Sendo elas o estrato mais subalterno da classe, estão sujeitas a maior
exploração e opressão. Alguns pontos da dita reforma deixam clara
nossa afirmação. Entre eles, podemos destacar: (1) O fim do intervalo
de 15 minutos entre as horas extras – a CLT previa um descanso de 15
minutos para as mulheres antes das horas extras. Com a reforma, este
direito é abolido; (2) Insalubridade para mulher gestante ou lactan-
te – na legislação regida pela CLT, as gestantes e lactantes deveriam
ser afastadas, enquanto durasse a gestação ou lactação, de qualquer
trabalho ou atividade considerada insalubre e que acarretasse dano
para a mulher ou para o bebê. Com a reforma, as gestantes e lac-
tantes ficam impedidas de exercerem estas atividades apenas em
caso de insalubridade alta. Nos demais casos, o afastamento deverá

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ser dado por um médico, trazendo o ônus da prova para as traba-

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lhadoras; (3) Assédio sexual e moral – com a reforma, o dano moral
advindo do assédio no local de trabalho passa a ser precificado. Este
dispositivo da reforma exige que, necessariamente, o juiz classifique
o assédio em leve, moderado ou grave, e que a indenização este-
ja vinculada ao salário da vítima. Tendo em vista que as denúncias
por assédio sexual são as mais difíceis de provar, acarretando uma
subnotificação e uma submissão das mulheres a essa situação, este
dispositivo impacta sobremaneira as trabalhadoras dos cargos mais
baixos, haja vista que agora será mais barato assediá-las.
Voltamos, portanto, ao que falamos na introdução deste trabalho,
a luta pela emancipação das mulheres passa, necessariamente, pela
construção de uma sociedade de outro tipo distinto do que temos
hoje, porque no seio do capitalismo a emancipação humana é absolu-
tamente impossível, por tratar-se de um sistema que se retroalimenta
da exploração dos seres humanos e dos recursos da natureza.

Referências
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Notas
1 Assistente social. Mestra e doutoranda em Serviço Social pelo Programa de Pós-
-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Brasil. ORCID https://orcid.org/0000-0002-7189-0384. E-mail: acbvazquez@
gmail.com

2 Doutoranda em História Social pelo Programa de Pós-graduação em História So-


cial da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS-UFRJ). Mestre em História
Política pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (PPGH-UERJ). Professora de História da Secretaria de Educação
do Estado do Rio de Janeiro (SEEDUC). Brasil. ORCID https://orcid.org/0000-
0003-3010-2967. E-mail: taisafalcao@gmail.com

3 Behring (2008) nomeia esse processo como Contrarreforma do Estado.

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 371 - 392


Os impactos do neoliberalismo sobre as mulheres trabalhadoras: a esfera do ... 391

4 Apesar da crítica feita aos governos do PT no que tange ao aprofundamento

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da agenda neoliberal e sua política de conciliação de classe, reconhecemos o
caráter político do processo de encarceramento do ex-presidente Luís Inácio
Lula da Silva.

5 Sobre este tema ver: Vazquez, 2018.

6 De acordo com Fernandes (2005, p. 416): “[...] a articulação política entre os mais
iguais, democrático-oligárquica em sua essência e em suas aplicações, assume,
de imediato e irremediavelmente, a forma de uma cooptação sistemática e ge-
neralizada. A cooptação se dá entre grupos e facções de grupos, entre estratos
e facções de estratos, entre classes e facções de classe, sempre implicando a
mesma coisa: a corrupção intrínseca e inevitável do sistema de poder resultante.”

7 Cabe destacar que Michel Temer é o terceiro presidente do Partido do Movi-


mento Democrático Brasileiro (PMDB) na história do Brasil, sendo igualmente
o terceiro presidente desta legenda que não foi eleito diretamente. Em 1984, o
movimento pelas Diretas Já levou milhões de brasileiros às ruas pedindo pelo
direito de eleger o próximo presidente. Como de costume, o Congresso alheio
aos interesses do povo, mas sempre atento aos interesses da nossa elite, elegeu
por voto indireto o deputado Tancredo Neves como presidente. Já doente àquela
altura, Tancredo Neves falece e em seu lugar assume a presidência seu vice, José
Sarney, primeiro presidente do PMDB. Em 1989, vence as primeiras eleições di-
retas pós Ditadura, o presidente mais jovem da nossa história, Fernando Collor
de Mello. Este, por sua vez, envolvido num escândalo de corrupção, sofreu um
processo de impeachment e renuncia à presidência em 1992. Após a renúncia, o
vice-presidente Itamar Franco assume a presidência, sendo o segundo presiden-
te do PMDB. Em 2016, após dois anos de governo, Dilma Rousseff foi a primeira
presidenta mulher e segunda presidente a passar por um processo de impeach-
ment. Em seu lugar assumiu o governo Michel Temer, sendo, portanto, o terceiro
presidente do PMDB.

8 A PEC 241 foi aprovada em dezembro de 2016 constituindo-se como Emenda


Constitucional n. 95 (EC 95), instituindo um novo regime fiscal que congela os
gastos públicos por 20 anos. Para maiores informações, ver: http://www.planal-
to.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm

9 “Em algumas passagens de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes
fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por
assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como
tragédia, a segunda como farsa.” (MARX, 2011, p. 25).

10 Cabe ressaltar que o Chile foi o laboratório do neoliberalismo como modelo po-
lítico-econômico nos anos da ditadura de Pinochet, antes mesmo de ser implan-
tado como modelo na Inglaterra.

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ISSN: 2238-9091 (Online)
392 Ana Carolina Brandão Vazquez e Ana Taisa da Silva Falcão

11 Como as “necessárias” reformas trabalhista e da previdência apresentadas


pelo governo Temer, tidas como as possibilidades de salvação da economia
brasileira, mas que, na prática, representam uma violação dos direitos da
classe trabalhadora.

12 A pesquisa foi coordenada pela professora Clara Araújo e financiada pela FAPERJ.
Foram aplicados 1198 questionários em todo o estado do Rio de Janeiro.

13 A reforma trabalhista foi aprovada no congresso e sancionada como Lei n.13.467,


em 13 de julho de 2017. A Lei n. 13.467 altera a Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT), sancionada pelo governo Vargas, em 1943. De acordo com o texto da re-
ferida Lei, esta objetiva “adequar a legislação às novas relações de trabalho”. Ver:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm

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Violência contra a mulher em vias públicas

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Isabel Maria de Oliveira Ferraz1
Raquel Matos Lopes Gentilli2
Maria Carlota de Rezende Coelho3
Victor Israel Gentilli4

Resumo
A violência é um fenômeno de amplitude mundial, expressando múltiplos aspectos
da sociabilidade contemporânea, cujas manifestações incluem a violência contra a
mulher. A pesquisa objetivou demonstrar as formas da violência praticadas contra
a mulher em vias públicas e noticiadas em jornais. Metodologicamente foram estu-
dados 287 casos noticiados por dois jornais impressos no segundo semestre do ano
de 2015 e analisados por estatística descritiva. Os resultados apontam predomínios
de danos ao patrimônio e agressões. Concluiu-se que a violência em vias públicas
contra mulheres expressa, também, relações sociais transversais, impregnadas cul-
turalmente por questões afetas às configurações de gênero.

Palavras-chave
Violência; Violência contra as mulheres; Violência nas ruas.

Violence against women in publics streets

Abstract
Violence is a worldwide phenomenon, expressing multiple aspects of contempo-
rary sociability, whose manifestations include violence against women. The research
aimed to demonstrate the forms of violence practiced against women on public
roads and reported in newspapers. Methodologically, we studied 287 cases reported
by two newspapers printed in the second half of 2015 and analyzed by descriptive
statistics. The results indicate the predominance of property damage and aggression.
We conclude that violence on public spaces against women expresses cross-sec-
tional social relations, impregnated culturally with gender configurations.

Keywords
Violence; Violence Against Women; Violence on the streets.

Artigo recebido: maio de 2018


Artigo aprovado: agosto de 2018

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394 Isabel Maria de O. Ferraz, Raquel M. L. Gentilli,
Maria Carlota de R. Coelho e Victor Israel Gentilli

Introdução
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A violência é um fenômeno extraordinário para explicitação dos


paradoxos das relações de dominação e subordinação sociais funda-
mentais que operam a vida social, tanto na dimensão individual, quan-
to na coletiva, revelando aspectos dos jogos de força, de poder e da
dinâmica da sociabilidade do capitalismo e de seu processo civiliza-
tório. Neste sentido, as diversas formas de manifestação da violência
guardam uma articulação com os diferentes processos de manifes-
tação da sociedade capitalista atual como um todo, expressando-se
como um fenômeno multifacetado e multidimensional em suas diver-
sas particularidades e singularidades.
Neste trabalho busca-se apreender alguns aspectos de expressão da
violência contra mulheres na sociabilidade contemporânea, tendo como
palco as vias públicas das cidades, captadas através de informações
obtidas nos dois jornais impressos de maior circulação no estado do Es-
pírito Santo. Este estudo teve como objetivo traçar o perfil da violência
contra as mulheres praticada nos espaços públicos da Região Metropo-
litana da Grande Vitória, cuja coleta de dados foi realizada a partir de um
acompanhamento diário sobre os eventos de violência noticiados por
tais jornais, durante o segundo semestre de 2015. Para tanto, os jornais
foram lidos diariamente para a seleção das matérias, das quais foram
identificados 287 casos, analisados por estatística descritiva.
A partir desta coleta foi organizado um banco de dados de forma
quantitativa, considerando as seguintes variáveis: número absoluto de
crimes cometidos contra a mulher; tipo de crime; meios utilizados pelo
agressor; idade da vítima e do agressor; profissão do agressor; rela-
ção entre a vítima e o agressor. Considerou-se, também, os diferentes
valores dessas variáveis, nos seis municípios que compõem a Região
Metropolitana, ou seja, o número de vezes (frequência) que cada valor
aparece nos diferentes municípios. Com tais informações foi possível
descreve as características do crime, o perfil social dos agressores e
alguma inovação recente nas suas formas e práticas.

O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 393 - 412


Violência contra a mulher em vias públicas 395

Como resultado, foi possível identificar que o fenômeno da violên-

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cia – atualmente considerado como uma das mais importantes ex-
pressões da questão social no Brasil, por interferir substancialmente
na vida da população –, materializa-se como uma das trágicas facetas
das relações sociais em sua complexidade. Envolvendo, em suas di-
versas modalidades, expressões do fenômeno da cotidianidade, da-
das pela moral, que Heller (2000, p. 22) identificou como expressão
do homem que, individualmente, “dispõe de um certo âmbito de mo-
vimento no qual pode escolher sua própria comunidade e seu próprio
modo de vida, no interior das possibilidades dadas”, expressando ao
mesmo tempo o ser singular, nas condições de uma dada particulari-
dade e do ser coletivo, em sua genericidade.
Pode-se concluir que a institucionalização da violência social pratica-
da em vias públicas, reproduz aspectos do âmbito das relações sociais,
que expressam o ser genérico de nossa cultura, comparecendo por
meio de aspectos contraditórios das desigualdades sociais, assumindo
contornos que extrapolam a violência de gênero, de natureza intrafa-
miliar, e expressando aspectos da estrutura social, na medida em que
comparecem também nos atos violentos praticados aleatoriamente.

A violência na contemporaneidade
O aumento das atuais formas de expressão da violência reflete as
transformações sociais decorrentes das políticas de desregulamen-
tação da vida social de caráter neoliberal que conduzem ao avanço
da mundialização do capital. Tais transformações – que envolvem as
transformações tecnológicas de produção e organização da economia
– tem provocando desmedidas mudanças que, cada vez mais apro-
fundam as desigualdades regionais, os contrastes socioeconômicos,
as transformações em organizações e práticas sociais.
Em conjunto, tais eventos na esfera da economia e da política, têm
produzido transformações nas identidades sociais e culturais, nos valores
simbólicos e nas novas expressões ideológicas que esgarçam a sociabi-
pg 393 - 412 O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019
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Maria Carlota de R. Coelho e Victor Israel Gentilli
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lidade herdada da modernidade, constituindo novas expressões e estra-


nhamentos na vida contemporânea. Ianni (2002), analisando as raízes da
violência, identifica as expressões da violência contemporâneas vincu-
ladas à expansão da urbanização e de seu estilo de vida, à diversidade e
às desigualdades que produzem um conjunto de tensionamentos novos,
que criam condições de ruptura e conflito, que afeta a tudo e a todos.
Para o autor, a violência tem se disseminado no globo em diversas
formas, envolvendo sociedades tradicionais e modernas, indepen-
dentemente das perspectivas culturais, políticas, marcando profunda-
mente as sociedades contemporâneas como várias manifestações fe-
nomênicas, expressões cada vez mais radicais, de intolerância contra
o diferente. Não se trata, portanto, de um fenômeno brasileiro.
As expressões da violência ocorrem de forma desigual, revelam
riscos diferenciados e atos discriminatórios e englobam uma grande
gradação de expressões em relações à vida societária. Referem-se
às expressões dos conflitos sociais atuais e se manifestam nas “tra-
mas das relações sociais e [n]os jogos das forças político-econômicas,
conforme se desenvolvem nas sociedades contemporâneas, [que] são
também uma fábrica de violência” (IANNI, 2002, p.7).
Em outro trabalho, o autor estabeleceu uma clara relação entre
expansão urbana e produção da violência. À medida que se expan-
dem, as cidades tornam-se mais complexas devido às “diversidades
e desigualdades, acomodações e tensões, hierarquias e tensões, pro-
duzem-se e reproduzem-se as condições de ruptura, conflito e vio-
lência” (IANNI, 2003, p.19). A cidade aparece como lócus de oportu-
nidades de prática de delitos e de crimes de diversas naturezas, o que
se supõe, sejam decorrentes do crescimento urbano acelerado recen-
te, que oportunizou a aglomeração de pessoas no mesmo espaço. A
expansão da violência urbana estaria acompanhando a expansão da
produção econômica em termos mundiais.
Em sua hipótese, as formas, técnicas e práticas, desde as mais pro-
saicas às mais sofisticadas, emergem da própria experiência de mo-

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Violência contra a mulher em vias públicas 397

dernidade como forma de destruição do outro, considerado como di-

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ferente, ou estranho. São expressas em práticas criminosas diversas
como sequestros, narcotráfico, terrorismo, conflitos étnicos e religio-
sos, arbitrariedade policial e demais práticas que podem ser engloba-
das como violência urbana (IANNI, 2002).
No espaço urbano brasileiro cresce a violência percebida pelo ci-
dadão comum como geradora da insegurança cotidiana e que Ador-
no (2002) identificou como produtoras de medo. Estes atos, em ge-
ral, manifestam-se na forma de crimes comuns contra o patrimônio,
violações de direitos humanos, conflitos nas relações pessoais e in-
tersubjetivas, violência fatal contra a vida praticada por pessoas co-
muns, pela polícia e por segmentos identificados como ligados ao
crime organizado e ao narcotráfico.
Às ruas das cidades convergem várias formas de violência, que são
expressão da maioria das tensões, destruições, reconstruções e de-
sigualdades, atingindo tudo, do patrimônio público à vida privada. E
também a todos, afetando as diferentes classes e grupos sociais, de
diferentes formas variando como furtos, roubos, sequestros, assaltos,
estupros, tráficos e terrorismos diversos.
O mundo globalizado está cada vez mais aprofundando a pre-
carização das relações sociais e de trabalho, gerando assim, um
maior segmento de trabalhadores desprotegidos por sua condição
de inserção nas novas formas de produção, além de uma grande
quantidade de pessoas meramente sobrantes do jogo de forças das
relações atuais do capital. Insegurança, pobreza, miséria e vulnerabi-
lidades emergentes das atuais condições de existência nas cidades,
constituindo a realidade da grande maioria da população em todo o
planeta e expondo todos a todos os riscos originados das segrega-
ções, das diversas formas de exclusão, das desigualdades e de suas
respectivas visões ideológicas de mundo.
Em todo processo de violência, emerge um reflexo das relações so-
ciais que privam o indivíduo pela exclusão social, de natureza ideoló-

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Maria Carlota de R. Coelho e Victor Israel Gentilli
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gica, naturalizada e materializada nos costumes que roubam a cidada-


nia do indivíduo. Trata-se de uma exclusão invisível, que diz respeito
às restrições que limitam o acesso e a oportunidade aos bens coletivos
de forma equitativa. Uma violência como “expressão de intolerância e
de exclusão política e social, como um mecanismo para manutenção
de privilégios sociais” (SOUZA, 2004, p.58).
Neste sentido, o fenômeno da violência passa a ser referido de forma
polissêmica e imprecisa, descrevendo situações diferenciadas e de dife-
rentes gradações de danos contra o outro, configurando o que Bonamigo
(2008) denominara de homogeneização e generalização do fenômeno.
Mais recentemente, Bonamigo e Chaves (2014) identificam que o fe-
nômeno da violência consiste numa experiência de caráter plural, difuso
e sistemático que perpassa todas as dimensões da vida contemporâ-
nea. Apesar de o termo estar sendo usado para caracterizar fenômenos
distintos (porém correlatos), relativos a diversos conflitos de natureza
política, relativos a conflitos de autoridade, de vontade, de domínio e de
posse do outro e de seus bens, as diferentes gradações de suas formas
de expressão precisam também receber tratamento teórico adequado.
Lima et al (2014) observaram que o elevado índice de violência nas
cidades brasileiras, mesmo tendo gerado pressões no sentido da cria-
ção de ação conjuntas entre os governos federados, ainda provoca
muitas dúvidas sobre a capacidade de seu controle por parte das po-
líticas de segurança pública. Os resultados obtidos pelos instrumentos
administrativos, utilizados com a finalidade do controle da violência,
tem revelado a fragilidade e a incapacidade das políticas públicas de a
terem sob controle, sobretudo por sua complexidade e generalização
nas relações sociais.
A violência, que eclode nos espaços urbanos é retratada, diaria-
mente, nos noticiários nacionais e internacionais por todos os meios
de comunicação, originando informações abundantes, mas que, difi-
cilmente, conseguem explicar os fatores associados à sua origem. Fato
que gera percepção de insegurança na população sobre a eficácia das

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políticas de segurança pública e, não raro, uma visão estereotipada

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sobre os agentes que a perpetram.
A manifestação da violência ganha contornos também nas diversas
formas de intolerâncias e preconceitos, que têm origem nas relações
entre pessoas. São formas sutis ou nem tanto, relativas de intolerâncias
raciais, éticas, de gênero, entre gerações, posição social dentre outros,
tornando-se fundamental compreendê-los tanto em como um todo, em
sua complexidade, segundo seus pontos de convergência, suas múlti-
plas manifestações societárias, afetando particularmente os segmentos
mais pobres da sociedade em decorrência das condições materiais de
existência e de uma sociabilidade, que Cabral e Trujilho (2015) identifi-
cam como engendrados pelas expressões da questão social.
Assim, verifica-se que a violência constitui um fenômeno muito
abrangente, cujas determinações acompanham condições verifica-
das por razões objetivas, relacionadas às desigualdades sociais e às
condições de vida proporcionadas pelas situações do mundo atual,
como por características individuais do sujeito que a pratica, deter-
minado sua execução e consequências. Essa condição afeta e é afe-
tada pelas formas como as relações sociais geram os comportamen-
tos que acabam por naturalizá-la.
Violência e exclusão se articulam e se complementam. Materializam-
-se nas diversas formas de intolerâncias e nas condições de insuficiente
material, social e cultural em fatos da vida social que incluem alguns e
excluem outros. Tais paradoxos, nas palavras de Martins (2014, p. 571),
têm sido “naturalizada como uma resposta normal das pessoas aos seus
problemas”, sem estimular os indivíduos e grupos, mesmo que de forma
degradada, a se insurgirem contra aqueles que são identificados como
responsáveis pelas injustiças e opressões que os acometem.
A crescente individualização da sociedade contemporânea com
suas novas tecnologias parece estar transformando as formas de viver
em experiências estranhadas, onde não se consegue reconhecer no
outro diferente, uma humanidade como a sua. A violência vem des-

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ses esgarçamentos dos laços sociais que, presa a medos, incertezas


e solidão não consegue concebe uma forma de viver e se relacionar
coletivamente numa perspectiva de compartilhamento comum.

Violência contra a mulher


A prática da violência contra a mulher tem sido tradicionalmente
estudada como uma expressão histórica do patriarcalismo, consis-
tindo num dos tipos de violência mais comum, porque expressa um
modelo de civilização baseada dominação-exploração dos homens
(SAFFIOTI, 2001). Para além da violência explícita, que engloba as
violências física, psicológica, sexual, moral e patrimonial, existiria,
ainda, a violência simbólica, expressando a adesão do dominado à
dominação, que, de acordo com Bourdieu (2007), não só naturaliza
a relação de dominação da qual faz parte, mas também se torna
produtor social desta naturalização.
Historicamente, pode-se apontar um conjunto de forças sociais que
possibilitaram o avanço nos debates teóricos em relação a igualdade de
gênero, na discussão da violência contra a mulher – como uma questão
relevante para a sociedade –, na consolidação de movimentos sociais
que lutaram pelo fim das discriminações e, ainda, na emergência de no-
vas práticas sociais que avançaram no reconhecimento dos direitos das
mulheres, condenando as diversas expressões de violência elas.
Após muitos anos e avanços coletivamente reconhecidos, observa-
-se que a violência contra a mulher, apesar de ter conseguido ganhar
visibilidade, desafia a compreensão por suas múltiplas e complexas
expressões. Assim como a expressão do fenômeno da violência como
um todo. A violência contra a mulher, em sua particularidade atual no
caso brasileiro, também expressa discriminações e preconceitos na-
turalizados, que podem ser observados em comportamentos, valores,
crenças e práticas sociais.
Nesse sentido, reproduzem as mais diversas formas de violência,
onde as vítimas e os agressores – sejam individualmente, sejam nos
O Social em Questão - Ano XXII - nº 43 - Jan a Abr/2019 pg 393 - 412
Violência contra a mulher em vias públicas 401

grupos sociais – convivem nos mesmos cenários onde os segmentos

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mais vulneráveis estão sujeitos a certos tipos de violência. Pode-se,
entretanto, dizer que, a violência contra a mulher nas relações conju-
gais ou na vida familiar consiste numa expressão particular de práticas
culturais vividas no dia a dia das relações de poder e de desigualdade
entre os gêneros e que tem legitimidade social.
Os estudos sobre violência de gênero, no entendimento de Meira
(2014, p. 217), trazem uma contribuição para se pensar a relação ideológi-
ca subjacente às dominações a partir de processos de “naturalização das
diferenças”, cujos consentimentos, numa relação entre desiguais, nunca
são voluntários, mas decorrentes da própria condição da dominação.
Para o autor, tais estudos possibilitam a análise da realidade de su-
jeitos heterogêneos que “compõe ou que sofrem os efeitos de práti-
cas sociais, culturais e políticas baseadas num ideal de sociedade que
é, por princípio, excludente” (MEIRA, 2014, p. 217), podendo-se dizer
mesmo, que tais comportamentos consistem em formas conservado-
ras que são expressões das contradições que envolvem as práticas
sociais, atribuindo sentidos que são bem complexos e contraditórios.
Uma das formas de expressão da violência generalizada aparece
nas práticas intolerantes que se apresentam tanto na vida privada,
quanto na vida pública, e mais recentemente, nas redes virtuais. Mas
as formas de violência que mais afetam as mulheres, em sua particu-
laridade, são as violências praticadas contra sua intimidade afetiva e
sexual; seja nas formas de violência intrafamiliar, seja naquelas que se
caracterizam como abuso ou crime sexual.
Soares (2012, p. 191) identifica que “a passagem ao ato violento se
dá em contexto, em lugar e momento específicos, no vácuo de outras
possibilidades de comunicação”. Se pensarmos na dimensão privada,
evidenciam-se aspectos psicossociais e culturais, onde a violência
assume uma forma de expressão da “recusa a deixar a outra pessoa
existir plenamente como alteridade, seja na impossibilidade de colo-
car-se em seu lugar, ou na incapacidade de aceitar e reconhecer o

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402 Isabel Maria de O. Ferraz, Raquel M. L. Gentilli,
Maria Carlota de R. Coelho e Victor Israel Gentilli
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outro como interlocutor legítimo e autônomo” (SOARES, 2012, p. 191).


Entretanto, as situações que envolvem a relação de dominação na
vida íntima, conforme observa Soares (2012), envolve a relação de
dominação que pode combinar, além do domínio afetivo, o exercício
da violência, comportando combinações mesmo paradoxais. Tanto
as expressões de dominação, quanto as de violência, não se apre-
sentam livre de contradições.
A autora, com base em vários dados de pesquisas empíricas que
consultou observa que as mulheres, apesar de serem as principais
vítimas das violências mais graves praticadas por homens, também
praticam agressões físicas e emocionais e até mesmo sexuais, contra
crianças, adolescentes e até contra os homens “em proporções jamais
admitidas” (SOARES, 2012, p. 194).
Tal paradigma de que a violência decorre da impossibilidade de
interação nas relações entre as pessoas (impedindo a comunicação
no plano das ideias e dos afetos), também se encontra presente em
outras formas de manifestação da violência. Existe subjacente às
formas públicas e coletivas de violência, a expressão de processos
sociais correlatos à intolerância, ao preconceito, à estereotipia e à
desqualificação do diferente. Uma sociabilidade que interrompe as
possibilidades de diálogo e que inviabiliza social, cultural e politi-
camente a convivência entre os diferentes, a cidadania e a solida-
riedade democráticas.
Uma sociabilidade que por diversas razões políticas, ideológicas,
econômicas e culturais distintas têm favorecido o engendramento de
uma lógica educativa focada em valores individualistas, na socializa-
ção comunitária, essencialmente focada no treino violento (ROLIM,
2014) e na ética da sobrevivência (MENDONÇA, 2013).
As condições societárias que favorecem a emergência da violência
social, da qual as mulheres são vítimas, também as tem levado a pratica-
rem, elas próprias, atos violentos, evidenciando como as desigualdades
esgarçadas e deterioradas tem tornado ainda mais a frágil sociabilidade

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contemporânea, produzindo articulações que fazem sobreviver práticas

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tradicionais que convivem com procedimentos contemporâneos.
Esses aspectos, na prática, sejam no espaço íntimo, sejam no es-
paço público, constituem-se a partir de uma estrutura conservadora
e intransigente, que se associa a uma estrutura contemporânea para
reeditar no presente, privilégios e poderes arcaicos, que se querem
ainda reconhecidos. São decorrentes de um ordenamento ancorado
na organização social que ainda privilegia o poder masculino de ho-
mens violentos sobre mulheres (e também sobre outros homens), que
se subordinam a sua autoridade, vontade e poder.
A disseminação das formas de violência atual expressa uma particu-
lar visão de mundo, cujos modos de pensar instruem práticas sociais,
que são generalizadas pelo senso comum, envolvendo, assim, toda
a vida social nas mais diversas situações. Sobre tal visão de mundo,
observa-se que a mesma resguarda culturalmente justificativas para
a utilização de meios e instrumentos que demonstram poder, exibem
virilidade, justificam transgressões e consagram desigualdades.
Nesse sentido, entende-se como fundamental apreender as contra-
dições sociais que envolvem a prática da violência contra a mulher num
contexto mais amplo de violência, onde um segmento significativo de
homens que a exerce, também é vítima de práticas de violência, pro-
duzidas por outros homens, e, eventualmente, por mulheres. Revelam,
assim, uma sociabilidade deteriorada. O enraizamento da violência na
vida social atinge estruturas culturais, perspectivas ideológicas, práticas
jurídicas, políticas, aparatos policiais e repressivos. Seus paradoxos afe-
tam a concretude da vida material, desenvolve estereótipos e reforça
estigmas. Culturalmente pode estar associada a certas práticas de ex-
ploração das classes trabalhadoras e com situações existenciais de toda
população, cada vez mais precárias (GENTILLI, 2015).
A violência contra a mulher, decorrente de relações sociais tradicio-
nais, conservadoras e profundamente desiguais, tem sido reiterada-
mente reposta pelas contradições que envolvem o processo de traba-

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lho atual, que atrai a mesma para o espaço público, desempregando o


homem e aviltando ainda mais o valor da remuneração de um processo
de trabalho; o qual Antunes (2015) identificou como precário, fragmen-
tado e heterogeneizado, criador de uma nova sociabilidade que exclui
amplos segmentos da força de trabalho em decorrência das novas exi-
gências de capacitação e qualificação, configurando a expressão de no-
vas e dilacerantes contradições vivas do capitalismo atual.
Essa é a trama que coloca atores e vítimas da violência contra a
mulher num contexto social profundamente complexo e contraditório,
onde a atual reestruturação produtiva do capital e sua racionalidade se
associam às condições sociais tradicionais, produzindo uma nova ex-
pressão fenomênica de sociabilidade que agudiza e intensifica a “irra-
cionalidade social visível” e a “dessocialização” do já precário mundo
do trabalho, bem como de suas relações sociais (MÉSZÁROS, 2002).
Neste sentido, as condições materiais e de sociabilidade presentes no
fenômeno da violência, tomado em sua totalidade, afeta a todos, sendo
que em relação às mulheres, ocorrem particularidades, que envolvem
uma tradição, até hoje, difícil de ser superada. Estas contradições são
reproduzidas na mesma lógica em que são reproduzidas as contradi-
ções que materializam as condições materiais de acumulação geral de
produção, além de reproduzir esta visão de mundo que permite a per-
petuação das discriminações e dos preconceitos contra as mulheres.

A violência contra mulher nas ruas: o que os jornais revelam


Zaluar (2004) já observara que a violência mais visível é aquela das
práticas ilegais (assassinatos, roubos, assaltos, estupros, lesões cor-
porais, agressões, dentre outros), que ocorrem geralmente nos espa-
ços das vias públicas, mas não se extinguem nelas. Possui um enraiza-
mento profundo na vida social e, na sociedade contemporânea, vem
se apresentando de forma bem complexa, fortalecida por convicções
ideológicas consensuais que originam manifestações concretas.
A visibilidade midiática da violência é discutida por vários autores
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que questionam se o que aumentou foi a violência ou a divulgação

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da violência pela mídia. Desde a década de 1970, registram-se senti-
mentos de medo e insegurança associados às expressões da violência.
Observa-se, entretanto, que efetivamente, que a partir do final do sé-
culo XX. Adorno (2002) já havia observado que as estatísticas oficiais
sobre mortalidade, criminalidade e demais formas de violência esta-
vam indicando uma aceleração crescente de todos os tipos de delitos,
padrões da criminalidade e perfil dos delinquentes.
Nossa pesquisa foi realizada nos municípios que compõem a Re-
gião Metropolitana da Grande Vitória, do estado do Espírito Santo,
composta pelos municípios de Vitória, Vila Velha, Serra, Cariacica,
Viana, Fundão e Guarapari. Observou-se pela contagem ao longo
dos seis meses analisados, que foram noticiados um total de 287 ca-
sos de violência contra a mulher, praticados em vias públicas dos
municípios desta região.
Entre estes municípios, a violência praticada contra mulheres em vias
públicas ocorreu de forma mais frequente na cidade de Vila Velha, que
aparece em primeiro lugar como a cidade mais violenta nesta pesqui-
sa. Foram identificadas 77 notícias, compreendendo 26,82% dos casos
no período estudado. Em seguida, aparece a capital Vitória com 71 das
ocorrências noticiadas (24,73%). Serra aparece com 70 notícias (24,39
%) e Cariacica com 50 notícias (17,42 %) do total. Cidades mais distan-
tes do aglomerado da Região Metropolitana, como Viana registraram 17
ocorrências registradas nos jornais (5,92 %). Guarapari e Fundão regis-
traram uma ocorrência noticiada respectivamente, ou seja, 0,34%.
Dois aspectos chamam atenção em relação a estes dados. Um é a
relação entre cidades mais adensadas populacionalmente e a frequên-
cia de violências noticiadas, o outro está na relação entre cidades me-
nos adensadas e distantes da capital, com número menor de notícias
sobre violência. Sabe-se que um dos impactos da globalização tem
sido a intensificação das aglomerações, o crescimento desordenado
das cidades e a grande desigualdade social, fato que pode favore-

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cer também a concentração de atos violentos nestes locais. Por outro


lado, também as informações parecerem estar mais disponíveis para
serem noticiadas pelos jornais, quando estas ocorrem mais próximas
da localidade onde estes se situam, no caso, na capital do Estado.
Com relação aos crimes praticados, os jornais informam que os
danos ao patrimônio estão em primeiro lugar nas ocorrências, perfa-
zendo um total de 161 eventos (56,09%); seguido pela violência física,
com total de 84 notícias (29,26%); violência sexual com 28 notícias
(9,75%) e, por fim, formas de violência identificadas como psicoló-
gica com 14 informações (4,87 %). Dentre os crimes praticados, 21
ocorrências (7,13%) resultaram em crimes fatais.
Quanto ao sexo de quem agride, destacou-se o homem como o
principal agressor das mulheres, sendo noticiados 269 atos pratica-
dos, ou seja, 93,72% do total das notícias pesquisadas sobre violência.
No entanto, observou-se que, de acordo com as reportagens, as mu-
lheres também praticaram violência em vias públicas. Foram identifi-
cados que as mesmas, ao praticarem crimes, realizaram assaltos em
bandos formados por mais dois ou três indivíduos do sexo masculino
e, nos casos citados, eram líderes desses grupos.
Quanto à relação entre os atores da violência praticada em vias
públicas e a mulher que sofreu a violência, destaca-se o total de 191
(66,55%) episódios que relatam violência que foram praticados por
desconhecidos. Companheiros ou ex-companheiros se envolveram
em 51 (17,77%) dos atos violentos praticados nas ruas; conhecidos e
familiares compreenderam um total de 30 (10,45%) casos noticiados
e, das 287 reportagens, 15 (5,22%) estavam sem informações.
Sobre os tipos de violência praticadas nas ruas e noticiadas nos jor-
nais, destacam-se, nas praticadas por desconhecidos, o dano patri-
monial com 156 (54,35%) episódios noticiados; a violência física com
14 (4,87%) das ocorrências; a violência sexual com 12 (4,18%); e a vio-
lência psicológica com 9 (3,13%) das notícias analisadas. Já a violência
praticada por parceiros ou ex-parceiros encontram-se a violência físi-

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ca com 46 (16%) das notícias, seguida pela violência psicológica com 3

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(1,04%) das ocorrências e dano patrimonial com 2 (0,70%) episódios.
Quanto à faixa etária das vítimas que sofreram as violências, verifi-
cou-se que, um total de 130 (45,29%) reportagens se referiu à violência
contra mulheres jovens, com idade entre 18 e 34 anos de idade. Ou-
tras 71 (24,73%) reportagens se referiram à violência contra mulheres
com idade entre 35 a 64 anos. Violência sexual foi noticiada contra 28
meninas (3,83%) com idades entre 0 e 11 anos e, violência psicológica
contra 14 mulheres com idades entre os 25 e os 64 (4,87%).
No universo de 287 matérias analisadas, 161 (56%) foram sobre da-
nos patrimoniais e em relação a estas, não houve registros da idade
de todos os agressores. Foram realizados 127 (44,25%) registros que
deixaram de noticiar a idade dos agressores.
Apesar do número elevado de casos sem informações socioeconô-
micas, etárias, de raça, grau de instrução e moradia, principalmente re-
ferente ao agressor, pode-se observar nas notícias que: (a) em relação
aos agressores, são identificados homens jovens com idades entre 12 e
29 anos em sua maioria e as notícias sugerem que pertençam a uma po-
pulação de baixa renda, menos favorecida socialmente; e (b) em relação
às vítimas as notícias nos fazem crer que estejam distribuídas em todas
as classes sociais. As vítimas de dano ao patrimônio e violência física
são, na maioria, mulheres adultas com idades entre 18 e 64 anos e, as ví-
timas de violência sexual mulheres jovens com idades entre 0 e 24 anos.
Observa-se pelos dados da pesquisa que a violência praticada nas
vias públicas, recoloca as questões que se encontram presentes nos es-
tudos de gênero, onde a mulher é a vítima e o homem o agressor. Neste
sentido, observa-se que a questão cultural que se coloca nas relações
entre gênero, se recolocam no ambiente público, demonstrando que o
ato violento traduz uma certa configuração social da nossa sociedade.
Nos atuais padrões da violência praticada nas vias públicas contra
mulheres encontram-se predominantemente os crimes relacionados
a danos ao patrimônio, praticada por desconhecidos com uso de ar-

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mas de fogo. Verifica-se que no município de Vitória, a maioria das


notícias relatam as agressões físicas, geralmente, na forma de espan-
camentos praticados na rua, por parceiros ou ex-parceiros.
Verificou-se, por exemplo, que a natureza dos crimes noticiados
contra as mulheres nas vias públicas foi, preferencialmente, os relati-
vos aos danos ao patrimônio, praticado por homens desconhecidos e
que utilizam armas de fogo, sendo mais frequentes nesta modalidade
de crime ocorreu no município de Vila Velha.
Já nos municípios de Serra e Cariacica, as notícias relatam a predomi-
nância da violência sexual contra crianças de 0 a 11 anos de idade prati-
cadas, na maioria das vezes, sob ameaça e/ou por algum conhecido da
família. Aproximadamente 13% do total das notícias resultaram em morte.
A violência contra a mulher, realizada por meio das práticas con-
temporâneas dos delitos identificados acima, assume uma dimensão
cultural do conservadorismo atual, é legitimado pelo poder do homem
sobre mulher como sendo uma prática naturalizada independente da
condição social dos atores envolvidos, sendo que, no espaço público
– como no caso da violência praticada nas ruas –, a violência crimino-
sa se auto legitima independente das desigualdades sociais.
Em ambas manifestações da violência contra a mulher observam-se
expressões da sociedade contemporânea, cujos elementos sociocultu-
rais encontram-se enraizados nas práticas sociais e são determinadas
pela dinâmica dos processos de exploração e dominação, além de pro-
cessos socializadores de homens para a violência, apesar de cada uma
destas formas possuírem dinâmicas particulares de manifestação.
Sobre este aspecto, Rolim (2014) observa que na raiz da violência
no Brasil encontram-se na associação de quatro variáveis que se des-
tacam significativamente para o favorecimento da disponibilidade do
homem jovem à prática da violência: treinamento violento, experiên-
cia precoce com drogas ilegais e pequenos delitos, expulsão da escola
e subjugação violenta. Neste sentido, os delitos registrados nessa pes-
quisa lançam luz que corroboram estudos anteriores.

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Conclusão

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Notícias acerca da violência contribuem para informar o cidadão
sobre os acontecimentos que se processam na cidade, apesar de, ine-
vitavelmente, contribuir para a disseminação de informações sobre o
fenômeno tem se tornado cada vez mais frequente, banal e corriquei-
ro, provocando medo em relação à insegurança pública. Pelo acom-
panhamento sistemático realizado durante um semestre sobre os
acontecimentos noticiados, foi possível identificar várias ocorrências
violentas nas cidades, apesar de que, nem todos objetivos puderam
ser alcançados pela ausência de registro nas matérias. Nesse senti-
do, observam limitações da pesquisa no conhecimento do perfil social
dos envolvidos (agressores e vítimas), conforme já apontado anterior-
mente. Responderam de certa forma, pois foram noticiadas em jornais
e se tornaram de conhecimento público.
A violência, quando praticada contra a mulher, reflete relações de
força e de poder do homem em sua relação com a vítima, e parece claro
que se encontra no núcleo das construções culturais. Tais construções,
para Gomes e Nascimento (2008), significam para os homens jovens
marcas que dão sentidos à masculinidade associadas ao ser homem
como provedor, dominador, heterossexual e cuidador. Entretanto, o
homem violento identifica sua identidade a uma virilidade associada a
instrumentos de violência, que portam e que são capazes de manusear
para garantir seu poder e de seu bando sobre os adversários.
Apesar de a violência envolver toda a sociedade em seus diversos
mecanismos de conflito, somente são visíveis aquelas práticas que exi-
bem uma sociabilidade destituída da eficácia das mediações da cultura
e da linguagem e daquela decorrente do vigor dos fortes sobre os fracos
(GENTILLI, 2007). A outra violência, aquela mais difusa, que se expressa
na intolerância, no preconceito, na discriminação, no abuso de poder
das autoridades, nas formas de exclusão e nas desigualdades sociais,
apesar de subjacentes a toda trama social, não se anunciam com a faci-
lidade de um fato a ser noticiado. Ambas as formas estão ancoradas no

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esfacelamento de laços de solidariedade, que por sua vez, desmateria-


lizam práticas, discursos, ideias, afetos e certezas em relação ao Estado,
ao mercado, a família e a solidariedade dos amigos.

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FGV, 2004.

Notas
1 Mestra em Políticas Públicas e Desenvolvimento Local pela Escola Superior de
Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória (EMESCAM). Brasil. ORCID:
0000-0001-7697-0626. E-mail: isabel.emescam@gmail.com

2 Professora da Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitó-


ria (EMESCAM). Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP). Brasil. ORCID: 0000-0003-1673-8440. E-mail: raquel.
gentilli@emescam.br

3 Professora da Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitó-


ria (EMESCAM). Doutora em Enfermagem pela Escola de Enfermagem Anna Nery
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Brasil. ORCID: 0000-0002-
4556-5107. E-mail: maria.coelho@emescam.br

4 Professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Doutor em Ciências


da Comunicação Universidade de São Paulo (USP). Brasil. ORCID: 0000-0001-
9952-2959. E-mail: vgentille@uol.com.br

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