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Histórias de Aprendizagem

e algumas reflexões incomuns


sobre aprender e ensinar

Ana Lopes

2012
Capa
Jorge Luis de Sousa Azevedo

Revisão
Rosana Rogeri

Produção
VídeoAulas ByAna
http://www.videoaulasbyana.com.br
Direitos de cópia

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Obrigada!
As Histórias
Apresentação......................................................................1
Eu não preciso de um professor?!?....................................5
Meus professores: os livros...............................................11
Vida na Universidade.......................................................17
Recuperando o autodidatismo perdido.............................21
Cientista da Computação em um mês...............................28
Mestrado: garimpo e foco................................................34
Professora? Não, malabarista!.........................................39
Quer continuar no emprego? ...........................................45
Para curar gastrite, concurso público!.............................50
Professora Bombril: 1001 utilidades................................57
Um público (radicalmente) diferente................................62
O currículo que foi corroído pelas traças.........................69
PaD: “Pesquisa a distância”...........................................75
Fluente em inglês, finalmente!..........................................80
Cientista da Computação ou não?....................................89
Pesquisa: praticando caça a problemas ..........................95
Muitos artigos e nenhum diploma...................................102
Um diploma e um blog....................................................105
Reflexões “finais”..........................................................109
Apresentação
Esta pequena coleção de histórias mostra vários
episódios da minha vida que acabaram me levando a
tornar-me uma autodidata convicta, a ponto de
atualmente defender veementemente a ideia de que o
mais importante que alguém pode aprender na escola
ou fora dela é “aprender a aprender”.
A partir daí, acredito eu, tudo se acrescenta
naturalmente. E junto disso, nasce também uma
saudável autoconfiança e um incrível senso de
controle sobre o próprio destino.
As primeiras versões dessas histórias foram escritas
para o meu vídeo-blog 1 e depois passaram a ser
enviadas para aqueles que se inscreviam em minha
lista, na forma de e-mails independentes.
Confesso que no início fiquei preocupada em
compartilhar histórias e percepções de mundo tão
pessoais e, às vezes, tão particulares. Mas a recepção
foi – e continua sendo – simplesmente maravilhosa.
O blog e a minha caixa de e-mails estão cheios de
comentários carinhosos, entusiasmados e

1 http://www.videoaulasbyana.com.br
Histórias de Aprendizagem

encorajadores.
Quando comecei a escrever as primeiras versões
dessas histórias de aprendizagem, meu objetivo era
estabelecer um relacionamento genuíno com as
pessoas que estavam prestigiando o meu então
nascente vídeo-blog. Esse relacionamento ia
sendoconstruído na medida em que as pessoas
ficavam conhecendo um pouco da minha história
pessoal. Ou pelo menos, a parte da minha história
pessoal que envolveu momentos de grande
aprendizagem.
Outra ideia que eu tinha em mente era explicar para o
público de onde vinha a minha paixão por aprender,
ou para ser mais direta “porque diabos uma Cientista
da Computação tinha resolvido blogar sobre
aprendizagem”.
Mas a grande surpresa ainda estava para vir: de
repente, algumas pessoas começaram a escrever para
me contar o quanto tinham sido inspiradas por certas
histórias e (pasmem!), para me falar sobre decisões
que elas tinham tomado ou estavam considerando
tomar por causa delas.
No início, fiquei meio assustada: “quanta
responsabilidade, mudar assim o rumo da vida de
outras pessoas”! Mas aos poucos me lembrei dos
inúmeros livros que mudaram completamente o rumo

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Ana Lopes

da minha vida também. Até hoje, não me arrependo


de ter lido nenhum deles. Muito menos, culpo
nenhum autor por algo que tenha dado errado!
Então outra ideia começou a florescer: em um
primeiro momento, as histórias foram escritas quase
que como rascunhos, já que eu não tinha, àquela
época, a menor pretensão de atingir tanta gente, e de
forma tão intensa. Mas já que isso estava
acontecendo, achei que seria uma boa ideia revisar os
“rascunhos” e reuni-los em um pequeno livro.
Afinal de contas, sempre guardei com o maior carinho
os livros que me marcaram. Além disso, gosto de tê-
los sempre à mão para uma releitura à luz de novas
situações de vida. Talvez meus leitores também
gostassem da ideia.
Nesse contexto, nasceu este livro, que reúne não só as
histórias originais – a maioria reescrita – mas
também algumas que lembrei e achei que mereciam
ser contadas.
Tenha você tido ou não contato com as histórias
originais no blog, poderá apreciar este livro de várias
maneiras: seja como entretenimento, ou como ponto
de partida para reflexões sobre o papel da
aprendizagem na nossa vida.
Os primeiros leitores foram bastante criativos nas
formas como receberam cada uma das histórias. Não

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Histórias de Aprendizagem

tenho porque acreditar que com os novos leitores será


diferente.
Mais feliz ainda eu vou ficar se você resolver usar o
livro como um ponto de partida para estabelecer uma
relação comigo também. Convido você a falar comigo
por meio do blog, na página dedicada especialmente
ao livro:
http://www.videoaulasbyana.com.br/ebook-historias/
Agora, sem mais delongas, vamos às histórias!

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Eu não preciso de um
professor?!?
Quando eu estava terminando o Primeiro Grau – que
para quem é jovem demais para saber, corresponde
ao atual Ensino Fundamental 1 e 2 – achava que
queria ser médica. Aliás, tenho a impressão, que na
minha geração, todo mundo um dia já quis fazer
Medicina ou Direito. Será que é isso mesmo? Bom,
havia também os candidatos a astronautas... De toda
forma, acho que as gerações atuais são um pouco
mais originais nos seus sonhos infantis de profissão.
O fato é: eu realmente achava que queria fazer
Medicina. Muito provavelmente fui influenciada,
nessa ideia, por um tio dentista, que eu adorava, e
que para o meu profundo desespero e perplexidade
diante das injustiças da vida, morreu quando eu tinha
15 anos. Fazer medicina era uma forma meio tortuosa
de me aproximar dele, mas também me rebelar um
pouco, como seria salutar naquela idade. Eu iria para
a área de saúde, mas não iria fazer Odonto, como
tinha sido o sonho expresso daquele tio tão querido.
Deixemos a rebeldia juvenil de lado e voltemos à
Histórias de Aprendizagem

Medicina: para conseguir passar no vestibular, eu


precisava fazer um bom Segundo Grau (atual Ensino
Médio). Até então eu havia estudado em escolas
públicas – muito a contragosto, por sinal. Eu já era
bem “nerdezinha”, gostava (mesmo!) de estudar, e
sonhava em frequentar alguma das escolas “de ponta”
da minha cidade. Mas não “rolava”. Meus pais até
incentivavam meus estudos, sempre incentivaram,
mas não havia dinheiro para uma extravagância
daquelas.
Então, quando eu estava terminando o Primeiro
Grau, eu “surtei”. Foi um daqueles típicos surtos de
adolescente: eu “tinha” que fazer o Segundo Grau em
uma escola particular e sentia, no fundo da alma, que
minha vida e felicidade dependiam
irremediavelmente disso (eu disse que era um surto
típico de adolescente!).
Uma saída para a minha “provação” seria conseguir
uma bolsa de estudos em uma boa escola. Naquela
época, quase todas as escolas particulares da cidade
ofereciam bolsas de acordo com a nota que se tirasse
em uma prova de seleção feita no final do ano.
Como eu sempre tinha sido estudiosa, as minhas
chances eram boas. Mas tinha um pequeno problema:
matemática tinha um peso grande nessas provas e o
programa de matemática da minha lamentável escola
pública estava completamente atrasado: a professora

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Ana Lopes

não ia cumprir nem metade dele.


Eu até dava conta de matemática numa boa, mas
como eu poderia aprender o que a professora não
havia ensinado?
Então, com aquele poder de persuasão que só uma
adolescente de 14 anos consegue ter, fustiguei meus
pais até eles concordarem em pagar por algumas
aulas particulares. Autorizada por eles, procurei uma
antiga professora, de quem eu gostava muito.
E lá fui eu, uma aluna que nunca tinha tirado uma
nota vermelha na vida, fazer aulas particulares. Não
deixava de ser um contrassenso, mas eu estava
obcecada para ir para uma escola “decente”.
Eis que um belo dia, no meio de uma aula, no
momento em que eu acabei de resolver um exercício,
a minha professora deu um suspiro e falou: “Você
podia estudar isso sozinha, Ana! Não precisava estar
aqui, gastando dinheiro!”
Na hora eu nem respondi. Só fiquei olhando para ela,
provavelmente com uma interrogação perplexa
desenhada no meu rosto. No caminho de volta para
casa, fui elaborando a “novidade” na minha cabeça:
“como assim, estudar sozinha? Para aprender eu não
preciso necessariamente de um professor que me
ensine?”. Aquela ideia era simplesmente contra tudo
que eu sabia sobre aprendizagem. Na verdade, soava

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Histórias de Aprendizagem

praticamente como uma heresia.


Hoje, depois de um bocado de experiência
aprendendo e ensinando, eu vejo que esta ainda é,
infelizmente, a situação da maioria dos estudantes:
sequer passa pela cabeça deles que, no final das
contas, toda aprendizagem é, no fundo, uma
autoaprendizagem.
Outra coisa que eu percebo é que quando alguém
entende isso, e começa a perceber todas as
consequências desta realidade, a postura desta pessoa
diante da tarefa de aprender muda drasticamente,
para sempre.
Lembro-me de ter ficado com a tal frase na cabeça
por vários dias, em alguns momentos me sentindo
importante, até. A minha professora preferida de
matemática, que eu tanto admirava, achava que eu
não precisava dela para aprender! Isso era incrível!
Infelizmente, aquele único comentário, por mais
impactante que tenha sido naquela hora, não seria
suficiente para apagar anos de uma escolarização
baseada na dependência total do professor. Eu acabei
conseguindo uma bolsa parcial em uma escola de
renome, convenci (ou venci pelo cansaço) os meus
pais a pagarem o que faltava e lá fui eu fazer o meu
Segundo Grau que, na minha cabeça, seria de
“excelência”.

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Ana Lopes

Era muita novidade de uma vez e aquela ideiazinha


um tanto quanto revolucionária da minha querida
professora foi, por um bom tempo, para o fundo do
baú.
Ao longo dos três anos seguintes eu iria descobrir que
a tal “excelência” passava longe daquela que era
considerada uma das melhores escolas da cidade. Ou
seja, não é de hoje que a excelência é um grande mito,
incapaz de penetrar os muros de 99% das escolas.
Eu gostaria de finalizar esta primeira história com um
convite à reflexão: o quanto estamos condicionados à
ideia de que a presença física de um professor é
condição absolutamente necessária para que sejamos
capazes de aprender alguma coisa?
A minha vida depois me mostrou que a realidade é
MUITO diferente disso. Não é que os professores
sejam “inúteis”. Existem professores maravilhosos e
eu tive o privilégio de ter contato com vários deles.
Mas as fontes de conhecimento não estão somente na
sala de aula, em ambientes formais, nem em pessoas
com um pedaço de papel bonitinho dizendo que elas
são “donas” de um certo conjunto de conhecimentos.
Mesmo naquela longínqua época sem computador
pessoal e sem Internet, havia os livros. Eles custavam
caro e davam mais trabalho, já que era preciso “lê-
los”. Não havia vídeos nem animações e raramente

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Histórias de Aprendizagem

um estudante típico tinha acesso a mais de um autor


para comparar as explicações. Mas eles estavam lá, e
por séculos, foi por meio deles que a humanidade
evoluiu.
Mas tudo isso eu só fui descobrindo aos poucos,
através de várias outras histórias, que vou contar nos
próximos capítulos. Já no seguinte, vou contar como
aquele comentário de passagem da minha professora
me levou, três anos mais tarde, a passar no
vestibular, sem cursinho nem professor particular.
Tudo o que eu tinha era uma enorme vontade de
entrar na Universidade, meus livros e algumas táticas
que eu mesma inventei na fina-flor dos meus 17 anos.

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Meus professores: os livros
Na época do vestibular, eu já não pensava em fazer
Medicina, mas ainda queria ir para a Universidade.
Não deixava de ser um sonho muito ousado, porque
eu seria a primeira da família – de ambos os lados – a
realizar tal proeza.
A primeira questão era que curso fazer. Havia várias
carreiras que me interessavam, mas eu acabei
optando por Física (não me pergunte o porquê, isso
faz muitos anos e eu mal me lembro dos motivos que
me levaram a essa decisão um tantinho radical…).
Como sempre, havia uma pedra no caminho. Eu tinha
descoberto que a tal “escola de ponta”, pela qual eu
tanto havia lutado, era só um pouco “menos pior” que
a escola pública. Só que depois de quase “quebrar” os
meus pais para pagar pelo Segundo Grau em escola
particular, não tinha espaço muito menos moral para
pedir que me pagassem um cursinho.
Mas eu queria passar, e precisava passar para cursar
uma Universidade Pública. Foi aí que aquele insight
de três anos atrás (aquele da professora que falou que
eu podia estudar sozinha) entrou em cena.
Histórias de Aprendizagem

O processo todo aconteceu de forma meio


inconsciente na época. Só hoje, com a perspectiva do
tempo, eu percebo as interconexões entre os vários
momentos que eu fui aprendendo que era possível
aprender sozinha.
E na prática, o que foi que eu fiz? Na verdade, nada
muito complicado, mas levando em conta que eu
tinha tirado tudo da minha própria cabeça, foi uma
revolução.
Eu estudava pela manhã no colégio, então montei um
horário para estudar a tarde inteira, distribuindo as
disciplinas naqueles horários. Então, de segunda à
sexta-feira, eu estudava de duas às seis da tarde, uma
disciplina por hora, quatro disciplinas diferentes por
dia. Ainda lembro que tive a preocupação de
intercalar disciplinas mais simples de outras mais
exigentes, para não sobrecarregar um dia ou deixar
outro leve demais.
Aí surgiu outro problema: como eu ia saber se eu iria
dar conta de estudar tudo que eu precisava até o final
do ano?
Não lembro exatamente em que momento aconteceu,
mas um dia, ainda no início dos meus estudos, eu tive
essa “brilhante” ideia: peguei cada livro que eu
precisava estudar e fiz uma estimativa de quantas
páginas eu precisava “vencer” por semana para dar

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Ana Lopes

conta do livro todo até o final do ano.


Ninguém tinha me ensinado aquilo, mas me pareceu
o óbvio a fazer. Se você tem uma quantidade de
trabalho X e dispõe de Y dias para trabalhar, basta
dividir X por Y para saber o quanto você precisa
trabalhar por dia, certo? Porque não ensinam algo tão
básico para gente na escola?
Bom, o fato é que assim eu fiz: todos os dias eu dava
tudo de mim para cumprir os meus horários e
também as minhas metas em termos de quantidade
de páginas.
E quando eu digo dava tudo de mim, quer dizer que
eu fazia força mesmo! Eu estava obcecada com a ideia
de ir para a Universidade. Até porque a outra opção –
caso eu não passasse no vestibular - seria conseguir
um emprego no comércio local ou algo parecido, e
eventualmente fazer um cursinho à noite, para tentar
de novo no próximo ano. E eu confesso que a ideia de
virar balconista, mesmo que fosse temporariamente,
não fazia os meus olhos brilharem...
Nem sempre o meu horário de estudos dava certo. Às
vezes, tinha uma parte difícil que demorava mais para
estudar. Ou então algum pedaço de assunto que não
tinha sido dado pelos professores e eu tinha que
aprender por mim mesma. Outras vezes, eu estava
cansada e outras eu estava simplesmente com sono ou

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Histórias de Aprendizagem

lenta de raciocínio.
Ou seja, longe de funcionar como um relógio suíço, eu
enfrentei todo tipo de obstáculo nessa que era a
minha primeira grande jornada autodidata.
Lembro-me de um dia em que meu pai chegou em
casa mais cedo e me encontrou cochilando com o
rosto enfiado em cima do livro de Química. Ele fez
uma expressão que demonstrou tanto dó, que eu
fiquei com dó do dó dele. “Ah, minha filha, vai
descansar um pouco, você está estudando demais”.
Mas eu era teimosa, e não tinha mais idade para ficar
obedecendo cegamente ao papai: levantei, lavei o
rosto, dei uma volta e sentei de novo na frente do
famigerado livro de Química.
A minha determinação em passar no vestibular era
maior que qualquer outra consideração. De qualquer
forma eu estudava num ritmo forte, mas razoável
(quatro horas por dia além das aulas na escola). À
noite eu via televisão com a família, dormia cedo e
nem me passava na cabeça estudar nos finais de
semana. Duas vezes por semana, eu fazia natação.
Ou seja, era uma vida de muito estudo sim, mas
saudável. Todo esse grande esquema foi montado na
base da intuição. Com certeza, se eu tivesse feito um
cursinho pré-vestibular a história teria sido bem
diferente.

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Ana Lopes

E não apenas porque faz parte do negócio dos


cursinhos aterrorizar ao máximo os estudantes e fazê-
los achar que é “impossível” passar sem muito
sofrimento, e é claro, sem um curso pré-vestibular
bem caro Mas principalmente porque, sem ter
passado por todo aquele processo, eu não teria
adquirido as minhas primeiras habilidades de estudo
independente, nem a autoconfiança que aquela
vitória me deu.
Pois é, eu consegui: eu entrei na maior Universidade
do Rio de Janeiro, segunda maior do Brasil, tudo isso
pelas minhas próprias pernas!
No primeiro vestibular.
Sem cursinho.
E eu era a primeira universitária da família.
Aqui não cabe falsa modéstia: foi um feito e tanto, e
até hoje eu me orgulho bastante dele.
Também não cabe ingratidão: os meus pais, contra a
opinião irada de alguns membros da família e contra
todas as profecias catastróficas de que eu iria “me
perder”, permitiram que eu ficasse até aquela idade
sem trabalhar para poder me dedicar aos estudos.
Esse privilégio, incomum entre as pessoas da minha
convivência, foi igualmente fundamental para a
minha conquista.

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Histórias de Aprendizagem

Esse foi só um novo começo. Eu me mudei para o Rio


“de mala-e-cuia”. Feliz da vida, mas também
morrendo de medo. Eu iria morar em uma cidade
enorme e já na época, com fama de perigosa. Além
disso, eu iria estudar na “todo-poderosa” UFRJ. Eu
considerava minha educação anterior bastante
precária e cheia de furos. Será que eu iria dar conta
do recado?

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Vida na Universidade
Eu tinha chegado lá... a tão desejada Universidade
Federal do Rio de Janeiro era agora a “minha” escola!
Eu era agora aluna do Instituto de Física (IF), do
Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza
(CCMN). Era a minha estreia também com os nomes
pomposos e as sopas de letrinhas que povoam o
vocabulário da tribo acadêmica. Somente os
“iniciados” dominam as misteriosas siglas. Se
comunicar por meio delas é um sinal claro de status
acadêmico. Como bons adolescentes loucos para se
enturmarem, em pouco tempo, a gente já estava
falando em código uns com os outros.
Mas será que além de me enturmar, eu ia dar conta de
tudo aquilo? Eu não tinha feito cursinho, e aquele
auditório em desnível, parecendo um teatro, com
mais de 100 calouros na frente de um professor cheio
da mais pura ginga carioca, foi uma experiência
beeem assustadora!
Quando a gente está com medo, tende a buscar
proteção naquilo que é mais conhecido, né? E assim,
ao invés de usar toda a “independência cognitiva”
recém-adquirida no meu estudo para o vestibular, eu
Histórias de Aprendizagem

caí no “modus operandi” de estudante-padrão. Afinal,


ele havia me servido muito bem na vida escolar
formal até então.
Em resumo, eu ia às aulas religiosamente, anotava
tudo bem direitinho no caderno e fazia o máximo
possível das famosas (e gigantes) listas de exercícios.
Quando a coisa ficava feia, eu ia atrás dos
professores. Aliás, o acesso direto aos professores foi
um luxo novo que nem a escola particular me deu, e
eu usava sempre que podia, principalmente no início
do curso.
Como eu não tinha televisão no meu quarto (no
alojamento estudantil da Universidade), eu estudava
dia e noite. Lá para as 10h da noite eu entregava os
pontos e ia dormir para recomeçar tudo de novo no
outro dia às 8h da manhã. Eu não fazia uma atividade
física regular, já que eu tinha mudado de cidade e às
vezes usava uma parte do fim de semana para dar
conta de tanta coisa.
Uma parte disso foi motivada pelo terrorismo geral
feito pelos veteranos. As taxas de reprovação típicas
em Física e Cálculo eram altíssimas. Para piorar,
naquele ambiente novo, eu não sabia exatamente
quem eu seria como aluna. Era como se eu tivesse,
temporariamente perdido a minha identidade. Será
que esta seria a hora em que eu cairia em um algum
dos enormes buracos de formação que eu tinha?

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Ana Lopes

Para meu enorme alívio, depois das primeiras provas,


lá pelo meio do semestre, eu fui percebendo que o
meu “método” estava dando certo. A Universidade foi
aos poucos se revelando um pouco mais do mesmo
que eu já tinha enfrentado até então, só que em maior
volume.
Beeeemmm maior, aliás...
Até bem pouco tempo atrás eu achava que aquele
volume excessivo de tarefas era uma coisa normal e
até necessária da vida acadêmica. Mas hoje eu
começo a questionar esse modelo. Até porque vira
uma fantasia. No final das contas, a grande maioria
dos alunos não consegue realmente completar todas
as tarefas e ficam fazendo “escambo” com elas, para
poder entregar.
Só mesmo os mais nerds, (assim, tipo eu, sabe?),
tentavam de verdade fazer tudo. Mesmo assim,
raramente eu conseguia dar conta de uma lista
inteira. Dá o que pensar, né? Se nem os alunos mais
dedicados conseguem dar conta de tudo que os
professores despejam nas suas cabeças, qual o
objetivo daquilo?
Hoje eu começo a perceber que além de ser irreal, o
excesso de tarefas de alto nível de dificuldade acaba
sendo contraproducente. O aluno que não consegue
fazer os três primeiros problemas e vê que ainda tem

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Histórias de Aprendizagem

47 pela frente, acaba desistindo, geralmente com a


autoestima arrasada.
Mesmo os bons alunos acabam altamente estressados,
porque trabalharam no seu limite máximo e mesmo
assim não conseguem dar conta de tudo. Parece que
tudo é montado de forma a nos mostrar o quanto
somos incompetentes.
Sabendo hoje o pouquinho que eu sei de psicologia da
aprendizagem e neurociência, eu vejo um monte de
coisas erradas nesse modelo. Tantas que dariam outro
livro...
Alguns professores acham que alunos que sucumbem
diante desse paredão devem mesmo ser podados da
vida acadêmica. Será?
Como professora, eu já vi vários alunos antes
considerados medianos se transformarem em
estudantes exemplares depois de descobrirem um
interesse específico e começarem a perseguir o tal
interesse por motivação própria. Fico pensando se
não seria melhor para todo mundo se a gente os
ajudasse a encontrar essa chama dentro deles, ao
invés de jogá-los na fogueira à força...

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Recuperando o autodidatismo
perdido
Aos poucos, com os primeiros resultados positivos, eu
fui plantando os dois pés na Universidade. Na
verdade, eu me sentia cada vez mais “em casa”. Era a
primeira vez que eu estava entre outras pessoas da
minha faixa etária que valorizavam o estudo. E mais
importante (principalmente aos 18 anos!): a maioria
dos meus colegas agora me admirava pelos meus
resultados, ao invés de me tratar como uma leprosa,
uma maluca ou um ser de outro planeta.
Até hoje eu me pergunto se isso aconteceu porque o
próprio vestibular deixava de fora aqueles que eram
mais avessos ao estudo, ou se foi um resultado
natural do nosso amadurecimento como um todo.
Afinal, já tínhamos saído do colégio, estávamos
virando “gente grande”. Provavelmente, teve um
pouco dos dois ingredientes neste processo.
Enfim, depois de um primeiro ano observando o
terreno, e conseguindo não cair em nenhum buraco
negro, eu cheguei ao segundo ano mais segura de
mim. O efeito colateral disso foi eu me tornar
Histórias de Aprendizagem

também mais crítica do sistema, e começar a perceber


que ali também nem sempre a excelência vingava.
Tinha ótimos professores, mas também tinha os
péssimos, resguardados pela segurança de um
emprego público.
Um dia, aconteceu uma revolução silenciosa em mim:
eu estava em uma aula de Álgebra Linear. Para quem
não conhece, Álgebra Linear é um assunto
particularmente árido e abstrato da matemática (ou
ensinado particularmente mal, talvez).
Bem, o fato é que o nosso professor de Álgebra Linear
era claramente novato naquele negócio de ensinar e
estava literalmente copiando o livro didático no
quadro. Mas o pior, o pior mesmo, é que ele não
conseguia sair do script: ele simplesmente não
conseguia responder perguntas que não estivessem
nas notas de aula dele.
Hoje, tenho consciência de que este modo como os
professores universitários iniciantes são jogados aos
leões sem nenhum tipo de preparo prévio é
simplesmente criminoso, tanto para os alunos, como
também para os professores. O pobre infeliz
provavelmente estava tentando fazer o melhor
possível, com as poucas ferramentas que tinha.
Mas, na época, eu estava mais preocupada com a
enorme perda de tempo que aquela aula representava

22
Ana Lopes

para mim. Um belo dia, profundamente entediada e


indignada ao mesmo tempo, eu tive um estalo:
“Espera um pouco, se o cara só copia o livro e não
consegue responder uma única pergunta, não seria
mais produtivo se eu fosse para a biblioteca, pegasse
o mesmo livro e o lesse por mim mesma?” O meu
raciocínio era que, na biblioteca, quando eu não
entendesse, eu poderia parar e tentar tirar a dúvida
em algum outro livro. Já, na sala de aula, quando algo
não ficava claro, eu simplesmente passava o resto da
aula perdida.
Com essa ideia na cabeça e a ousadia de quem estava
conseguindo dar conta do recado mesmo naquele
lugar quase mitológico, tomei coragem e
simplesmente parei de assistir às aulas daquele
professor-calouro, de quem eu nem mesmo lembro o
nome.
Esta pequena aventura não foi nada fácil. O livro-
texto adotado não era nenhuma maravilha didática.
Aliás, na época eu não encontrei nenhum que fosse. E
ainda tinha o medo de estudar por um livro que não
fosse o adotado pelo professor e acabar perdida na
nomenclatura.
Para completar o cenário, eu ainda não conhecia
muitos métodos de estudo sistemáticos e não sabia
muito bem o que fazer daquele assunto cabeludo:
Álgebra Linear é beeeemm mais complicado que a

23
Histórias de Aprendizagem

Matemática do Segundo Grau.


Eventualmente, em momentos de dúvida (ou de
desespero mesmo), eu ia lá assistir uma aula do moço
para ver se as coisas tinham melhorado.
Mas ele continuou até o fim do semestre copiando o
livro no quadro e até o fim do semestre eu travei uma
luta feroz com aquele livro horroroso, com a falta de
métodos decentes de estudo e a falta de quem
pudesse me ajudar com as minhas dúvidas (nem
Internet tinha na época!). E para completar, um medo
danado de tomar uma “bomba” monumental na
disciplina, manchar o meu currículo e ainda ter de
voltar para a sala de aula com o meu rabinho entre as
pernas...
Felizmente isso não aconteceu. Depois de muito
sufoco, eu acabei passando. E, quando eu digo
“felizmente”, é menos pelo fato de ter passado na
disciplina e mais porque aquela experiência começou
a me mostrar, com mais clareza, que eu não precisava
MESMO depender de um professor para aprender,
ainda que o assunto fosse algo tão “ hard-core” como
Álgebra Linear.
Esse episódio marcou uma virada na minha vida
acadêmica. A partir dele, eu comecei a selecionar os
cursos que eu iria e os que eu não iria assistir. Por
sorte, não controlar a frequência era uma prática

24
Ana Lopes

comum entre os nossos professores.


Na primeira ou segunda semana de aula de cada
semestre, eu já rastreava quais professores valiam o
meu tempo em sala de aula e quais não valiam e
cortava os últimos sem piedade da minha lista de
aulas a assistir. Com isso, eu devo ter deixado de
assistir uns dois terços das aulas do curso inteiro!
Pois é... grave assim...
Meu orientador de Iniciação Científica ficava louco
comigo. E do ponto de vista mais tradicional, era uma
loucura mesmo. Mas com a arrogância própria dos 20
anos, alimentada por uma sequência de sucessos de
“produção independente”, eu respondia: “Mas o cara
não sabe dar aula! Porque eu vou perder o meu tempo
lá?”. Ele bufava, suspirava, olhava feio, mas me
deixava em paz. Como no final eu sempre acabava
dando um jeito de passar, ele ficava meio que sem
argumentos.
Claro que eu não contava para ele o sufoco tremendo
que eu passava em várias dessas aventuras. Em pelo
menos três ou quatro ocasiões eu estive à beira da
reprovação.
Às vezes porque o professor em questão se ressentia
da minha ausência e corrigia as minhas provas com
mais... “carinho”, digamos assim, às vezes, porque eu
perdia um pouco o controle da situação mesmo.

25
Histórias de Aprendizagem

Afinal de contas, eu tinha 20 anos, e Física não era a


única coisa que eu estava interessada em aprender na
vida!
O fato é que com esses altos e baixos fui aprendendo
mais uma lição de autodidatismo: o mais difícil de
estudar por conta própria não é aprender em si, mas
ter a disciplina de estudar todo dia, mesmo que não
tenha nenhuma prova cabeluda na semana que vem.
Uma dessas disciplinas que eu quase perdi foi no
último semestre. Eu já estava decidida a não
continuar na Física, mas já que eu tinha chegado até
ali, então resolvi fazer as três disciplinas que faltavam
para me formar. Foi uma tortura, porque eu tinha
perdido o interesse naquilo, e estava com a cabeça em
outros planos muito diferentes. Naquelas condições,
era dolorosamente difícil eu me motivar para estudar.
Há essa altura, eu já tinha os meus tiques de “diva
estudantil”: eu estudava e aprendia sozinha sim, em
grande volume e pouco tempo se necessário, mas eu
precisava acreditar no que eu estava fazendo. Caso
contrário, a coisa virava um grande e dramático
tormento. Esse, acredito eu, é um efeito colateral
praticamente inevitável do autodidatismo.
De um modo geral, eu acho que é bem interessante
ter essa necessidade de saber o porquê de se fazer
alguma coisa. Mas às vezes pode fazer a vida ficar um

26
Ana Lopes

pouco mais difícil do que precisaria.


Naquele momento, eu precisava fazer só três
disciplinas, que nem eram tão difíceis assim. Mas
foram, sem sombra de dúvida, as mais sofridas do
curso inteiro. Tudo isso porque eu tinha me
acostumado a estudar nos meus termos.
Doeu, mas eu dei o meu jeito. Fui até o final me
arrastando e bufando, mas cheguei lá, sem morrer na
praia. De quebra, aprendi na própria carne a
importância da motivação para a aprendizagem.
Enfim, peguei meu “canudo” e rumei para o Mestrado
em Informática, que era o meu mais novo interesse.
Com o pequeno detalhe de que tudo o que eu sabia de
Informática era programar em FORTRAN.
Obviamente, estava preparado o palco para mais uma
sequência de desafios de aprendizagem.

27
Cientista da Computação em
um mês
Um dia minha amiga Marisa entrou toda animada no
meu quarto do alojamento estudantil:
− Nossa, tem um Mestrado em Informática em
Curitiba, deve ser muito bom!
− Curitiba?!?
Se ela tivesse falado “Marte”, eu teria tido a mesma
reação... Mas ela continuou:
− É, meu pai diz que é uma das melhores cidades
que ele já conheceu. Tudo organizadinho, uma
beleza.
E lá foi ela, me contando e falando do tal Mestrado
numa empolgação bonita de se ver. Enquanto ela
falava, eu comecei a pensar que talvez aquilo me
interessasse também...
Àquela altura, eu já sabia que não iria continuar na
Física. Eu tinha programado em FORTRAN durante
os três anos na minha Iniciação Científica – uma
espécie de estágio para quem quer seguir a carreira
Ana Lopes

de pesquisa. Era mais ou menos na época em que eu


me arrastava para fazer as três disciplinas que
faltavam para me formar.
Acontece que depois do terrível sofrimento inicial
para aprender a programar sem ter muita ideia do
que eu estava fazendo (claro, praticamente sozinha de
novo!!), eu fui descobrindo que aquilo era MUITO
divertido. Conseguir controlar aquela maquininha
feia e caprichosa chamada computador e “mandá-la”
fazer o que eu quisesse dava uma sensação muito boa!
Não fosse a questão financeira, eu teria simplesmente
recomeçado a faculdade, só que agora fazendo Ciência
da Computação. Mas eu já estava meio “grandinha”
para depender dos meus pais. Foi um período
particularmente difícil na vida deles e sabia que
estava ficando inviável me sustentar como “estudante
profissional”.
Eu já tinha bolsa de Iniciação Científica há algum
tempo, e não dependia 100% deles, mas estava na
hora de começar a caminhar com as minhas próprias
pernas de verdade. Afinal, eu já tinha 21 anos!!
Então, naquele dia, com a Marisa na minha frente
pulando de entusiasmo sobre o tal Mestrado em
Curitiba, eu comecei a fermentar uma ideia que iria
mudar o rumo da minha vida completamente:
− Marisa, onde está o cartaz desse Mestrado?

29
Histórias de Aprendizagem

Ela me explicou direitinho a localização, e no dia


seguinte eu estava lá, anotando todas as informações
necessárias para me candidatar ao Mestrado em
Informática Industrial no CEFET do Paraná.
A vantagem de fazer um Mestrado ao invés de
recomeçar uma graduação era que no Mestrado, eu
teria direito a uma bolsa bem maior, pelo menos
grande o suficiente para me sustentar sozinha. Ou
seja, era exatamente o que eu precisava naquele
momento.
Claro que tinha uma pequena pedra no caminho.
Afinal, o que seria da vida se não fossem as danadas
das pedras para a gente brincar de se desviar delas?
E a pedra da vez era a seguinte: eu tinha que escrever
um texto, de umas três a cinco páginas, sobre uma
das áreas de pesquisa listadas no tal cartaz.
Obviamente, nenhuma delas era sobre programação
em FORTRAN, que era a única coisa que eu realmente
sabia sobre Computação.
Eu não me fiz de rogada: peguei a Marisa e o
namorado dela, que fazia Computação, também,
mostrei a lista de temas e perguntei:
− Qual destes assuntos vocês acham que eu
consigo aprender o suficiente em um mês para
escrever uma mega-redação?

30
Ana Lopes

Este era o prazo que eu tinha para me candidatar ao


Mestrado do CEFET. Eles analisaram, conversaram
entre si, fizeram umas caras-e-bocas e concluíram:
Inteligência Artificial era o candidato mais adequado
àquela minha proposta maluca de “virar Cientista da
Computação” em um mês.
E lá fui eu, apesar das expressões de “causa perdida”
dos meus amigos. Àquela altura, eu já confiava
bastante no meu “taco cognitivo” para não me deixar
desanimar pela incredulidade deles.
Felizmente, eu achei o assunto bem interessante e
encontrei livros muito bons sobre ele na biblioteca.
Foram dias de muita leitura e anotações “furiosas”.
Várias vezes eu olhava o que ainda faltava ler e
pensava “eu não vou dar conta disso”. Mas eu queria
ir para Curitiba, então eu continuava lendo e
anotando, lendo e anotando.
Eu não devo ter conseguido ler nem 30% do material
que eu tinha me proposto a ler. Apesar de muito
interessante, tudo era também muito novo e a leitura
e a compreensão eram lentas. Mas quando faltavam
poucos dias para o encerramento das inscrições, eu
reuni as minhas anotações e comecei a escrever o
melhor que eu podia, com aquilo que eu tinha
conseguido ler e entender até aquele momento. Eu ia
mandar para o CEFET o que dava para mandar, o
resto ficaria por conta do destino.

31
Histórias de Aprendizagem

E o destino me alcançou em casa, já no recesso perto


do Natal, em forma de uma carta (naquela época
ainda se enviavam cartas de verdade!).
A carta era assinada pelo então coordenador da Pós-
graduação do CEFET-PR, dizendo essencialmente o
seguinte: aquela área que eu tinha “escolhido”
(Inteligência Artificial) já tinha muitos candidatos,
mas ele tinha um projeto sobre simulação de fibras
ópticas e achava que o meu perfil era adequado para
participar deste projeto. Por acaso, eu estaria
interessada?
Eu pulava de alegria pela casa com aquela carta na
mão: eu estava dentro!!! Eu mal acreditava que o
próprio coordenador do curso tinha se dado ao
trabalho de me enviar uma carta perguntando se eu
queria trabalhar no projeto dele.
No final ele me perguntava se eu tinha e-mail, para a
gente se comunicar de forma mais fácil. Sim, o e-mail
já existia, mas somente em ambiente acadêmico, e
pouquíssimas pessoas tinham acesso.
Como aluna de Iniciação Científica da moderníssima
UFRJ, eu tinha o meu. Então, logo depois do Ano
Novo, fui correndo para o Rio, acessar meu precioso
e-mail. Dos computadores de lá, através da altamente
exclusiva rede bitnet, toda a minha ida para Curitiba
foi negociada com aquele que passaria a ser o meu

32
Ana Lopes

orientador de Mestrado pelos anos seguintes.


Em fevereiro eu estava de mochila nas costas e com o
pé na estrada, para descobrir a cidade onde eu me
tornaria Mestre, teria o meu primeiro emprego e
conheceria o meu marido. Tudo isso porque o pai da
Marisa achava que Curitiba era o próprio paraíso na
terra...
Bom, Curitiba pode não ser exatamente o paraíso –
afinal, não pode ser tão frio assim no paraíso!! Mas
que os anjos cantaram algumas vezes para mim por
lá, isso cantaram!

33
Mestrado: garimpo e foco
E eu fui mesmo lá, fazer o Mestrado em outro estado,
numa cidade onde eu não conhecia ninguém e mal
sabendo o básico do curso que eu tinha me proposto a
fazer.
Mas a experiência de estudar mais da metade de um
curso de Física praticamente sozinha se fez valer, pelo
menos na fase das disciplinas. Eu simplesmente
continuei fazendo mais ou menos a mesma coisa que
eu já tinha me acostumado a fazer: assistia às aulas
quando me convinha, e estudava sozinha quando
achava que esse seria um uso mais inteligente do meu
tempo.
Claro que eu comecei um pouco cautelosa, sendo mais
ortodoxa no início e assistindo todas as aulas para
“sentir o terreno”. Mas minha “ortodoxia” durou bem
menos tempo que na graduação: uns três meses, no
máximo. E de novo, lá estava eu selecionando aulas
que eu assistiria ou não. Neste ponto da vida, este já
tinham se tornado os meus hábitos “normais” de
estudo.
O desafio realmente novo veio na fase de elaboração e
execução do projeto. O meu orientador não era
Ana Lopes

Cientista da Computação, mas Engenheiro. Ele então


conseguiu um cooorientador para mim que era da
Computação. Só que o meu querido cooorientador,
apesar de ótima pessoa e muito inteligente, “viajava
loucamente na maionese”.
Ele me dava pilhas de coisas para ler, a maioria
extremamente interessante, mas também pouco
práticas para quem precisava desenvolver um
software de verdade e com prazo limitado.
Um dia esse meu cooorientador foi fazer uma pós no
Canadá, ou alguma coisa assim. E o que já não era a
situação ideal, ficou ainda mais complicado.
Na verdade, até hoje não tenho certeza se isso foi
melhor ou pior para mim. Eu perdi uma fonte valiosa
de leituras interessantíssimas, mas acabei aos poucos
conseguindo ver no que eu realmente precisava focar
para chegar ao final do mestrado com o meu software
funcionando.
No final, a coisa toda se resumiu ao estudo de dois
manuais do tamanho de uma bíblia cada um. O
problema é que manuais de referência não costumam
ser muito didáticos. Aqueles certamente não eram.
Eu não fazia ideia do que eu deveria ler naqueles
monstros. Para dizer a verdade, eu não sabia nem
mesmo o nome das coisas que eu deveria procurar no
índice. Ninguém por perto entendia daquilo para me

35
Histórias de Aprendizagem

ajudar. Quer dizer, havia o pessoal de outro grupo de


pesquisa que tinha experiência no assunto, mas não
gostava muito de gente “de fora”.
Acho que foi nessa época que eu comecei a entender
mais claramente que o mundo acadêmico não era
exatamente um paraíso “populado” por idealistas
puros e cândidos. Como em todo grupo social, está
também cheio de invejinhas bobas, competições
desleais, politicagens brabas, e tudo o mais que é
“humano, demasiadamente humano”. Tem até gente
boa lá também.
Mas, enfim, eu tinha que terminar o Mestrado que
tinha começado, fui lendo meus manuais na base do
puro faro, selecionando o que me parecia pertinente e
eventualmente encontrando pequenos pedaços de
código que se pareciam com pedaços das coisas que
eu precisava ter no programa. Cada pedacinho desses
era um começo.
Foi um longo e duro período de aprendizagem por
tentativa e erro. E de uma grande solidão, porque
agora eu não tinha nem o cooorientador que tinha ido
embora, nem colegas de disciplina para trocar pelo
menos alguns bocadinhos de informação. Era eu, o
meu programa e uma dissertação que tinha que ser
defendida antes que a minha bolsa acabasse.
Nos últimos três meses do Mestrado, consegui

36
Ana Lopes

autorização para entrar nos finais de semana no


prédio do CEFET. Eu trabalhava de domingo a
domingo, de 10h da manhã às 10h da noite. Era início
de ano, mas não vi o carnaval passar. Finalmente, na
véspera da Páscoa entreguei a dissertação impressa,
viajei para a casa dos meus pais e voltei para a defesa
que seria dali a uma semana.
Enfim, logo depois do feriado da Páscoa, eu era
Mestre em Informática.
A grande lição de aprendizagem do Mestrado foi
realmente diferente das que eu tinha tido até então.
Antes eu tinha livros didáticos, com um caminho
claro a seguir. Era só abrir na página 1 e começar a
ler. Tá certo, é claro que era um pouco mais que isso,
né? Mas o fato é que havia um roteiro bem definido a
seguir.
Desta vez eu tive que aprender a escolher o que era
relevante em meio a um mar de informações muitas
vezes desencontradas. Aprendi também que
“interessante” nem sempre é sinônimo de
“pertinente”.
E no final das contas, graças a tudo isso, acabei
aprendendo o verdadeiro significado da palavra
FOCO. Eu tinha o tempo todo que manter em mente
os meus objetivos finais: terminar o meu programa,
gerar resultados com ele e defender a minha

37
Histórias de Aprendizagem

dissertação. Disso dependeria minha sobrevivência


nos meses seguintes, pois havia uma oportunidade de
emprego que eu só poderia aproveitar se tivesse o
diploma.
Então esses objetivos que tinham que ser a base de
tudo o que eu escolhia fazer, a cada instante.
Obviamente, eu estava sempre escorregando,
perdendo o foco, gastando tempo com alguma coisa
que não ia me levar a nada, e depois caindo na real e
me obrigando a voltar para os meus objetivos. Ainda
bem que naquela época não tinha Twitter nem
Facebook...
Para finalizar a aventura com chave de ouro,
exatamente no mesmo dia da minha defesa, à noite,
entrei pela primeira vez em sala de aula como
professora de Programação em linguagem C. Era o
meu primeiro emprego, onde eu iria aprender muitas
coisas também.
Mas isso já faz parte de uma outra história.

38
Professora? Não, malabarista!
Dizem que os ricos trabalham para aprender. Bem,
como eu não era rica, então eu trabalhava era para
pagar as contas mesmo. Mas isso não impediu que o
meu primeiro emprego fosse altamente instrutivo...
O primeiro ano como professora foi enganosamente
fácil. Quer dizer, não é que tenha sido exatamente
“fácil”, mas foi bem mais tranquilo do que
normalmente seria um início de carreira no
magistério.
Eu tinha somente uma turma e ensinava algo com que
tinha trabalhado durante o Mestrado inteiro:
programação em linguagem C.
A turma era gigante, mas foi tão marcante que eu
ainda lembro-me de alguns rostos. Principalmente da
expressão de pouco caso de um sujeito que sentava lá
no fundo da sala, cruzava os braços, escorregava na
cadeira para ficar com jeito bem folgado e parecia ter
escrito na testa: “eu vou te desmascarar”.
Volta e meia o rapaz levantava a mão de forma bem
displicente, e fazia uma pergunta que eu desconfiava
fortemente que ele já sabia a resposta. Ou seja, o
Histórias de Aprendizagem

moço estava me testando.


Até hoje não sei se ele se convenceu de que eu
realmente sabia do que estava falando ou do
contrário, mas o fato é que depois de algum tempo –
que pareceu uma eternidade – o dito cidadão largou
do meu pé.
A sensação de estar sob o microscópio não era lá
muito agradável, mas como eu só passava por aquilo
uma vez por semana, então eu tinha tempo de me
preparar e de me recuperar daquela tensão.
Mas o que era inicialmente uma vantagem acabou
virando uma “pegadinha” da vida. Depois de ter
escapado daquele primeiro ano ilesa e influenciada
por alguns colegas, decidi que era hora de ser
professora em tempo integral: passei de quatro horas
de aula por semana para mais de trinta. E passei
também de uma única disciplina para quatro ou cinco
diferentes, algumas das quais eu estava quase que
aprendendo junto com os alunos.
Era sem dúvida uma situação bem diferente daquela
do ano anterior. Mas eu só fui me dar conta do
tamanho da diferença quando já era tarde demais e
eu já tinha me comprometido com todas aquelas
aulas. Agora, o jeito seria me virar para lecionar
muitas vezes no mesmo dia, disciplinas tão diferentes
quanto Geometria Analítica e Informática Básica.

40
Ana Lopes

Foi um passo certeiro em direção ao precipício em


que eu quase caí dois anos mais tarde. A minha vida
virou um continuum de preparar e dar aulas. Minha
última aula da semana terminava no meio da tarde de
sábado. Tinha um dia da semana em que eu dava
aulas nos três turnos, em duas cidades diferentes.
Saía de casa às 6h da manhã para voltar quase meia-
noite. E claro, no dia seguinte tinha aula às 7h de
novo...
Para tornar a situação um pouco mais “divertida”,
havia a imensa diferença de cultura entre as
Universidades Federais, onde eu havia me formado, e
as particulares em que trabalhava. O “modelo” que eu
seguia era o federal clássico: muitas aulas expositivas,
muitas exigências sobre os alunos e distribuição farta
de notas baixas.
Não havia maldade naquele comportamento. Era
simplesmente o modelo de “excelência” que eu tinha
aprendido a reconhecer como o único modelo válido
sobre a face da terra. Eu achava, do fundo do meu
coração, que estava fazendo o melhor pelos alunos.
Aliás, eu também achava que qualquer outra coisa
fora daquele modelão era uma corrupção inaceitável
do espírito acadêmico.
Claro que, com essa mentalidade, não demorou muito
para eu concluir que todo o sistema particular de
ensino estava corrompido, principalmente pela

41
Histórias de Aprendizagem

relação financeira direta entre a instituição e os


alunos.
Enfim, a “receita” que eu trouxe pronta da minha
própria formação não demorou muito a me trazer
problemas. No final daquele ano, um dos cursos onde
eu tinha praticamente um terço das minhas aulas
pediu explicitamente a minha substituição.
O problema era que eu levava Informática Básica
muito a sério e tinha cometido a ousadia de deixar
alguns alunos irem para a prova final naquela
disciplina insignificante para eles.
E agora eu estava em risco de perder uma boa parte
do meu salário, afinal, eu era paga por hora-aula (ou,
como dizia uma amiga, “hora-saliva”). Além disso,
aquela quase demissão me custou um desgaste
emocional enorme e me chamuscou bastante diante
dos meus superiores.
Para completar, assustada com a possibilidade de
queda repentina da minha renda, eu cometi um erro
grave: perdi a valiosa oportunidade de aprender com
o que estava acontecendo e botar o pé no freio.
Aqui eu definitivamente troquei os pés pelas mãos: ao
invés de dar um tempo para repensar o que estava
fazendo, eu fiz de tudo para substituir as aulas
perdidas, a qualquer custo. Isso me deixou com um
cardápio de disciplinas diferentes ainda maior e mais

42
Ana Lopes

complicado. Era um verdadeiro malabarismo, e


comecei o ano seguinte em um ritmo mais alucinante
do que nunca.
Resultado: ao final do meu terceiro ano de profissão
eu estava deprimida a ponto de chorar antes de sair
para dar aulas em algumas das turmas mais rebeldes.
Com tudo isso, no início do ano seguinte, estava
decidida a sair do sistema particular, que na minha
cabeça tinha virado o bode-expiatório para todas as
minhas mazelas.
Meus planos para sair daquela armadilha eram fazer
um concurso para uma Universidade pública ou então
começar um Doutorado e voltar a viver de bolsa. A
única certeza naquele momento é que eu não tinha
mais condições psicológicas de permanecer ali por
muito tempo. E para dizer a verdade, nem sei se me
deixariam ficar por muito tempo mais.
Comecei aquele ano de trabalho assombrada, com a
forte impressão de que não chegaria a completar
quatro anos naquele emprego. Caberia a mim a
decisão de sair pelos meus próprios pés ou esperar
ser jogada pela janela.
A essa altura, você já deve ter percebido que ficar
parada esperando uma bomba estourar na minha
cabeça não é exatamente o meu estilo de tocar a vida.
Mas antes de abrir o meu caminho para uma nova

43
Histórias de Aprendizagem

aventura, eu ainda teria tempo de aprender mais uma


coisinha ou duas por ali.

44
Quer continuar no emprego?
Quando eu já estava pegando o jeito de ensinar
linguagem C – o que é MUITO diferente de
“programar” em linguagem C – o meu coordenador
me deu, candidamente, o seguinte recado: “nós
resolvemos mudar a linguagem de programação para
Java em todos os cursos iniciais. Você vai querer
continuar trabalhando conosco no ano que vem?”
Eu juro que vi alguma coisa batendo asas pela janela
naquela hora. Eu só tinha que decidir se seriam as
minhas férias de verão ou o meu emprego que iria
viajar para bem longe...
No fundo era uma decisão relativamente fácil. A
execução é que era complicada.
Era fácil decidir por dois motivos muito simples e
elementares: primeiro porque eu precisava pagar o
aluguel (e o supermercado e a gasolina). Mas também
porque Java estava começando a emergir como uma
linguagem forte no mercado e eu tinha bastante
interesse em aprendê-la (eu sei, eu sou MUITO nerd,
mas eu já admiti isso, tá?).
A complicação da história é que eu teria três meses
Histórias de Aprendizagem

para terminar um semestre pesadíssimo, com todas


as correções de provas e trabalhos que desesperam
qualquer professor nessa época do ano e depois enfiar
o nariz, a cabeça, o pescoço e tudo o mais que fosse
possível na “missão” de aprender Java antes do início
do próximo semestre.
E lá fui eu, novamente, aprender por meus próprios
meios. E de novo, sem livros didáticos. Eles ainda não
existiam para Java na época. Mais uma vez, tive que
me virar com a secura de alguns manuais e uma
escassez desesperadora de informações mais
digestivas e esclarecedoras.
Em paralelo, eu tinha também que tentar entender
que diabos era programação orientada a objetos, a
que até então eu não tinha tido a oportunidade de ser
apresentada.
Em outras palavras, eu não precisava só aprender
uma nova linguagem de programação, eu tinha que
aprender uma maneira completamente diferente de
programar. Era mais ou menos como um médico que
além de aprender a operar um bisturi mais moderno,
tem que aprender uma técnica inteiramente nova de
cirurgia.
Tudo bem que a essa altura eu já tinha prática de me
arranjar sozinha para aprender em condições
adversas, mas o prazo era o mais curto que eu tinha

46
Ana Lopes

enfrentado para uma tarefa daquela magnitude.


Não posso dizer que consegui ou que não consegui
exatamente o que era esperado de mim. Mas posso
dizer que não fui demitida. Talvez porque a minha
situação não era muito diferente da dos outros
professores que também ensinavam programação.
Fomos todos pegos de calças curtas.
Cheguei ao início do semestre sabendo o suficiente
para dar mais ou menos um mês de aulas. O resto, eu
teria que aprender pelo caminho.
Isso significou que eu teria que continuar estudando
loucamente enquanto dava mais de 30 aulas por
semana, sempre com a corda no pescoço. Qualquer
gripe ou imprevisto me tiraria dos trilhos e me
deixaria sem nada para levar para sala de aula.
Qualquer aluno que resolvesse se adiantar um
pouquinho a mim poderia me tirar o chão com uma
pergunta para a qual eu não teria absolutamente
nenhuma resposta.
A palavrinha que eu aprendi dessa vez foi STRESS. Eu
nunca tinha tido que aprender alguma coisa sob tanta
pressão. Se por acaso em algum momento eu
começasse a não entender um conceito qualquer, ia
batendo um desespero, porque o tempo era curto
demais, eu não podia me dar ao luxo de “não
entender”.

47
Histórias de Aprendizagem

E eu não tinha só que aprender como um estudante


aprende. Eu era a professora! Eu tinha que entender
o assunto sob vários ângulos, praticar, preparar
aulas, prever dúvidas e criar exercícios. No meio
disso tudo eu ainda precisava dar conta de todas as
outras disciplinas que eu lecionava.
A boa notícia é que eu consegui terminar o ano sem
um grande desastre e sem ser demitida. Mas ganhei
de herança dessa loucura uma bela gastrite, que só
iria ser curada quando eu mudasse de emprego e de
cidade, quase dois anos mais tarde.
Meu gastro era japonês e toda vez que eu ia lá, ele me
dizia a mesma coisa, com aquela calma que só os
orientais conseguem emanar: “você está trabalhando
muito, minha filha, tem que trabalhar menos, se
cuidar mais”.
Eu olhava para ele como quem olha para um ET.
Como assim, trabalhar menos? Ele não sabia que eu
tinha contas para pagar? Que eu precisava comprar
uma casa? Que eu tinha que “vencer na vida”? Eu era
o retrato da “workahoolic” ensandecida.
Eu saía daquele consultório com ódio mortal do
japonês, que parecia não entender nada da vida lá
fora daquele consultório todo bonitinho e tranquilo.
Mas eu não trocava de médico e continuava indo lá,
para levar sempre a mesma bronca.

48
Ana Lopes

Provavelmente, eu fui ficando porque bem no fundo,


eu já sabia que ele estava certo. E de alguma maneira,
eu sabia que precisava ouvir aquilo umas 358 vezes,
para tomar coragem e correr atrás de uma solução
para aquele beco-sem-saída em que o meu trabalho
tinha se transformado.

49
Para curar gastrite, concurso
público!
No início do que seria o meu último semestre em
Curitiba e no meu primeiro emprego, eu estava
recém-casada, mas nem por isso o ritmo de trabalho
era menos enlouquecido.
Um dia, eu sentei no sofá da sala, exausta, e fiquei
olhando para a televisão desligada por alguns
instantes. De repente, comecei a me dar conta de que
eu não me lembrava de quanto tempo fazia que
aquela televisão não era usada. Eu só sabia que era
um bocado de tempo. Aliás, o sofá também, tinha
virado um mero enfeite naquela sala sem utilidade
prática. Eu passava meus dias ora na universidade,
dando aulas, ora no computador, preparando aulas,
ora na mesa do escritório, corrigindo provas e
trabalhos.
Com esses pensamentos na cabeça, virei para o meu
então “recém-marido” e soltei de supetão: “Isso não é
vida para se levar. Eu não consigo sentar no meu
próprio sofá. Há quanto tempo essa televisão não é
ligada?”.
Ana Lopes

Ele arregalou os olhos no início, provavelmente


achando que eu tinha surtado (o que no final das
contas, era mais ou menos verdade). Mas não
demorou muito para começar entender o que eu
estava falando e concordar. Ele estava mais ou menos
na mesma situação: igualmente sobrecarregado,
igualmente estressado e, por incrível que pareça,
igualmente padecendo com uma gastrite.
E eu continuei na minha epifania: “a gente precisa
mudar isso, mudar dessa cidade, mudar de vida. A
gente precisa fazer alguma coisa!”
Esse estouro repentino foi o pontapé inicial para a
decisão de procurar um rumo completamente
diferente. Depois de alguma conversa, concluímos
que a saída seria pela via de um Doutorado ou um
emprego público. O que não dava mais era para viver
aquela vida de semiescravidão, correndo feito loucos
de um lado para o outro o dia todo, todo dia.
A decisão foi tomada na hora certa. Alguns meses
depois, apareceu um megaconcurso, em uma
universidade relativamente nova, em plena expansão.
Tinha vagas tanto na minha área de trabalho quanto
na dele. Cidade pequena, litorânea e quente. Ou seja,
o completo oposto de onde estávamos. Era tudo que a
gente queria e precisava.
Aí, é claro, começou uma nova aventura de

51
Histórias de Aprendizagem

aprendizagem “daquelas”. Afinal de contas, o direito


de ir para o “paraíso” não ia sair de graça, né?
Em resumo, além de dar conta de tudo o que já estava
quase nos matando, a gente tinha que cavar tempo
para estudar para o tal concurso. Para completar, eu
ia fazer o concurso para uma vaga em Ciência da
Computação. Como não tinha feito graduação na área,
eu sabia razoavelmente bem mais ou menos metade
dos temas do concurso. A outra metade, eu tinha
apenas uma vaga ideia do que se tratava. Em um ou
dois casos, nem mesmo uma ideia superficial eu
tinha.
Para quem não conhece, concurso para professor
universitário é bem diferente de um concurso público
comum, daqueles com provas de múltipla escolha.
Funciona mais ou menos assim: são três avaliações: a
primeira é a avaliação de títulos, baseada no currículo
(ou seja, diplomas, publicações, experiência).
A segunda é a avaliação escrita, na qual é sorteado
um tema geral e os candidatos tem que escrever tudo
o que sabem sobre ele.
E finalmente a prova didática, em que um novo tema
é sorteado. Desta vez cada candidato pega um tema
diferente, tem 24h para preparar uma aula de 50
minutos sobre ele e apresentar para a banca de
avaliadores.

52
Ana Lopes

Em outras palavras, o tal concurso não é brincadeira


de criança.
Mas eu queria MUITO passar naquele concurso e me
livrar do emprego atual. Eu queria aquilo tanto
quanto eu tinha querido passar no vestibular alguns
anos antes, ou talvez até mais: eu estava doente e
odiando o emprego que tinha me deixado daquele
jeito. Além disso, eu não era mais uma adolescente
que podia jogar tudo para o alto e correr para debaixo
da saia da mamãe. Eu era uma mulher casada e já
tinha uma vida estruturada em torno do meu salário.
Ou seja, eu tinha que sair daquele horror, mas tinha
que manter a calma e a elegância. E lá fui eu: nas
super-hiper-mega-escassas horas vagas fui
pesquisando cada tema do concurso, e fazendo
resumos deles. Eu tinha que encontrar as fontes de
informação certas, tirar delas o que era relevante
para cada tema, estudar o material e desenvolver um
texto que seria a base da prova escrita, caso aquele
tema fosse sorteado.
Era uma montagem de quebra-cabeças, quase uma
mini-monografia sobre cada um dos temas do
concurso. Felizmente, nesse tempo já havia uma
Internet razoavelmente desenvolvida e posso dizer
que ela, literalmente, salvou a minha pele naquele
concurso.

53
Histórias de Aprendizagem

Havia dois temas sobre os quais eu não conseguia


achar nada. Comecei a ficar em pânico. Eu tinha me
matado para devorar 80% do conteúdo, mas se um
daqueles dois malditos caísse em uma das minhas
avaliações, eu estaria fora da disputa, sem direito a
choro nem vela.
Comecei a procurar feito louca na biblioteca e na
Internet. Para um dos temas, eu finalmente tive que
chamar um amigo mais próximo e contar que estava
me preparando para um concurso, para poder pedir
ajuda.
Ele indicou alguma literatura, mas não era bem o que
eu precisava. E para dizer a verdade, eu só entendi
isso completamente alguns anos depois, de tão por
fora que eu estava do assunto.
Eu preparei o famigerado tema do jeito que deu, mas
– só hoje eu sei – o texto estava muito ruim, além de
ter erros conceituais sérios. Mas como Deus, além de
brasileiro, é meu camarada, o danado do tema
confuso não caiu em nenhuma das provas.
Sobre o segundo tema misterioso, depois de muita
caça, eu encontrei na Internet uma apostila que, pelo
sumário, eu vi que tinha tudo, mas tudo mesmo que
eu precisava para aquele tema!
A apostila estava no site de uma empresa de São
Paulo. Era bom demais para ser verdade: uma única

54
Ana Lopes

fonte de informação, com tudo o que eu precisava, e


já bem organizadinho. Era só pegar e estudar.
Só tinha um problema (é claro que tinha um
problema!): a tal apostila estava esgotada, ou seja,
não estava mais à venda…
Aí eu apelei. Mandei um e-mail para o contato da
empresa, chorando todas as minhas pitangas, e
explicando bem direitinho a situação em que eu me
encontrava. O rapaz que me atendeu foi um anjo
caído do céu: ele mandou, na base da mais pura
confiança, uma cópia xerox daquela apostila enorme
pelo correio, com um boleto dentro para pagar o
custo da cópia e do envio.
Eu nunca paguei um boleto com tanta satisfação.
Mas o mais inacreditável nessa situação toda – e eu
sei que tem muita gente que vai achar que é mentira
minha – é que foi EXATAMENTE esse o tema
sorteado para a prova escrita do concurso.
Eu não sabia se ria ou se chorava quando vi o
resultado do sorteio. Quer dizer que se não fosse pelo
desprendimento daquela boa alma, eu teria sido
eliminada do concurso ali? É, exatamente isso.
Mas o meu anjo não tinha me deixado na mão, e
graças a ele, eu fiz a prova e passei no concurso.
De volta a Curitiba (agora para fazer as malas!!), fiz

55
Histórias de Aprendizagem

questão de mandar um email para o moço que tinha


garantido o meu emprego novo. Contei aquela
história inacreditável para ele e agradeci novamente
pela enorme gentileza que ele me havia feito. Ele
ficou feliz por mim, e deve ter dormido como o anjo
que tinha sido para naquela noite.
Mas a mágica não parou por alí. Para tornar a coisa
toda ainda mais fantástica, o tema da prova didática
foi “Introdução à programação orientada a objetos!!”
Se você não se lembra, esse era exatamente o assunto
que eu tinha sido obrigada a estudar para manter o
meu emprego, um ano e meio antes.
Depois de mais essa coincidência abençoada, eu tive
certeza: aquela vaga já era minha, estava escrito nas
estrelas!
Na cidade nova, eu nem cheguei a ter tempo de achar
um novo médico para o meu estômago, mas o fato é
que seis meses depois da mudança, mesmo sem
tratamento, eu não tinha mais sinais de gastrite.
Ah, você deve estar pensando, então a vida ficou fácil,
né? Aha, ledo engano.
Até porque, vou contar um segredo. Na verdade, um
fato básico da existência que eu ainda luto para
aceitar plenamente: a vida da gente nunca fica fácil,
pelo menos não por muito tempo.

56
Professora Bombril: 1001
utilidades
Lá estava eu, feliz da vida, caída de paraquedas em
um curso de Ciência da Computação que tinha 3
professores ao todo – contando comigo – e 6 meses
de vida.
No início foi tudo bom demais para ser verdade: a
minha carga horária em sala de aula era de um terço
daquela que eu estava acostumada anteriormente, e
eu fui escalada para lecionar duas disciplinas que eu
já conhecia bem. Não foi à toa que a minha gastrite
curou sem médico.
Mas, “não a mal que perdure, nem bem que sempre
dure”…
A cada semestre, a primeira turma avançava no curso.
Isso significava que nós precisávamos oferecer mais
disciplinas, sempre diferentes das anteriores. No
semestre seguinte ao que eu entrei, nós nos tornamos
quatro professores (uau!). Ainda assim, era muito
pouco para um curso inteiro e a coisa foi ficando cada
vez mais complicada.
Histórias de Aprendizagem

Finalmente, depois de alguma resistência, eu fui


obrigada a entrar em terreno novo. Só para não
perder o costume, né?
Fui escalada para lecionar uma disciplina que, se não
era uma completa novidade para mim, também não
era exatamente uma especialidade minha.
Obviamente também, para não perder o hábito, eu
fiquei ciente de que ia ter que lecionar a tal disciplina
bem em cima da hora.
Eu já sabia que o nível de stress iria aumentar. Bem,
aquela vida “mansa” que eu estava levando nos
primeiros meses não poderia mesmo durar para
sempre... Ia ficar sem graça, né?
De qualquer forma, eu sabia também que a disciplina
em questão é um pilar importante em Ciência da
Computação. A oportunidade de aprendê-la mais
profundamente, mesmo que sob pressão, me motivou
bastante.
O fato de que eu iria estudar novamente sozinha nem
era mais uma questão em si. Eu já fazia isso há tantos
anos que praticamente não imaginava mais outra
forma de aprender.
E hoje, na verdade, estou convencida de um fato que
hoje me parece elementar: se a aprendizagem é uma
coisa que acontece na cabeça de cada um, então a

58
Ana Lopes

única forma real de aprendizagem é a


autoaprendizagem. Professores, livros e Internet, no
final das contas, são meras ferramentas para me
ajudar a fazer a coisa acontecer.
Depois de pegar a tal disciplina nova, eu ainda
consegui resistir à pressão da chefia, durante algum
tempo, e manter duas disciplinas fixas por alguns
semestres.
Foi um período ótimo, já que assim eu consegui ir
refinando meus conhecimentos e minhas aulas
semestre a semestre. Mas uma hora a coisa começou a
ficar insustentável.
No início, o curso oferecia muitas disciplinas
“genéricas”, aquelas ligadas a outras áreas de
conhecimento. Coisas como Metodologia Científica,
Inglês Instrumental, por exemplo, aliviavam a nossa
necessidade por professores especialistas em
Computação.
O problema é que as disciplinas que deviam ser
oferecidas para a turma que avançava eram cada vez
mais específicas e nós precisávamos de gente com
conhecimento e experiência específicos naquelas
áreas.
Só tinha um probleminha: a gente fazia concursos e
não apareciam candidatos! A verdade é que nós
estávamos em uma cidade pequena, distante dos

59
Histórias de Aprendizagem

grandes centros do Sudeste e procurando gente


qualificada em uma área que seguramente dava mais
dinheiro que o Magistério...
Quer dizer, se parar para pensar com calma,
praticamente qualquer profissão de nível superior dá
mais dinheiro que o Magistério no Brasil. Em áreas
de tecnologia a coisa só é um pouquinho pior...
Quem já estava por ali, ou era nativo ou era meio
bicho-grilo, ou seja, era gente que tinha aberto mão
dos salários e oportunidades das grandes capitais e
estava em busca de uma vida mais tranquila, fora da
loucura da cidade grande. Esse, aliás, era o meu caso.
Enfim, a coisa começou a ficar feia: cada um de nós
tinha que pegar disciplinas novas todo semestre. Para
mim, isso quase sempre significava aprender do
“zero” (ou no máximo do “um” ou “dois”).
Mas não teve outro jeito: em um período de sete anos
ensinei pelo menos sete a oito disciplinas diferentes.
Claro que estavam longe de serem cursos perfeitos. A
primeira rodada em cada disciplina nova era
geralmente bastante precária e nem sempre eu tinha
chance de passar por uma segunda rodada, porque
aparecia outra disciplina nova que não tinha mais
ninguém para pegar.
O lado positivo? Bom, para variar, eu aprendi

60
Ana Lopes

muuuuito nessa época, ampliei muito meus


horizontes na área. A essa altura, eu já começava a
me enfezar se alguém insinuasse que eu não era uma
Cientista da Computação “de verdade”.
Em algum momento desse redemoinho, nós chegamos
a achar que o curso ia acabar fechando por falta de
professores. Felizmente, porém, aos poucos nós
fomos conseguindo atrair mais gente para os
concursos e a coisa foi se normalizando aos
pouquinhos.
Mais ou menos nessa mesma época vieram os meus
filhos. Gêmeos! Diante de tamanho desafio, que
talvez tenha sido maior do que todos os que eu já
tinha enfrentado, acabei me concentrando mais na
minha vida pessoal, enquanto que a vida profissional
foi deixada no “piloto automático”.
Claro que, em plena Era da Informação, esse piloto
automático me custou beeeeeem caro. Mas isso já é
assunto para outra história, que aconteceu alguns
anos mais tarde.

61
Um público (radicalmente)
diferente
Como uma boa “cria” de Universidades Federais, e
estando agora no ambiente mais protegido de uma
Universidade Pública, eu rapidamente me tornei
famosa como professora “durona”.
Não havia uma maldade intrínseca naquilo, como
alguns alunos muito provavelmente acreditavam. O
fato é que eu acreditava que ser bastante severa era
parte indispensável de fazer o meu trabalho bem-
feito.
Nas Universidades Públicas mais tradicionais, e
especialmente na área de Ciências Exatas, existe uma
mitologia de que se não houver sofrimento
considerável, a disciplina não valeu a pena. Embutida
nesta mitologia, está também a crença de que, nesses
casos de “sofrimento moderado”, o professor não é
sério e “deu moleza”.
Hoje, eu estou um pouquinho mais sabida e já sei o
quanto o cérebro aprende menos quando está sob
stress, apesar de muita gente acreditar no contrário.
Ou seja, é preciso urgentemente encontrar formas
Ana Lopes

mais criativas de motivar os estudantes a fazer o


trabalho duro que tem que ser feito para aprender
para valer.
Infelizmente eu ainda não encontrei um caminho
seguro para fazer isso, mas já tenho alguns indícios
de que tentar ser razoável naquilo que se pede dos
alunos ajuda bastante.
A essa altura, os mais tradicionalistas já devem estar
se perguntando: o que seria “razoável”?
Sinceramente, eu pessoalmente, como professora,
ainda não encontrei uma fórmula para definir
“razoável” em situações de aprendizagem. Por
enquanto, vou usando mais a observação e um pouco
do instinto também.
De todo modo, a neurociência, que eu tenho
acompanhado com muito interesse nos últimos anos,
parece estar encontrando algumas respostas bem
interessantes, com sugestões bastante práticas. Resta
saber quando nós – professores e aprendizes – vamos
começar a ouvir os neurocientistas e aplicar os novos
conhecimentos no nosso dia-a-dia, mesmo que
algumas delas desafiem o nosso tão estimado senso-
comum (ou o nosso ego de detentores de todo o
saber).
Bem, eu escrevi tudo isso sobre aprendizagem para
introduzir uma experiência muito rica e gratificante

63
Histórias de Aprendizagem

que eu tive quase por acaso, e que abalou todas as


premissas básicas que eu seguia sobre o que seria
uma professora séria.
Fui convidada para ensinar Informática Básica a um
grupo de professores da rede pública em serviço. Eu
tinha pouco mais que trinta anos, e eles eram um
bando de cinquentões. Para piorar, estavam
estressadíssimos.
Um dos motivos para tanta irritação era o fato de eles
estarem sendo praticamente “obrigados” a abrir mão
das suas férias para fazer aquela graduação.
Pairava sobre eles a ameaça de, no mínimo, começar
a ter dificuldades em manter os seus empregos e as
suas posições nas escolas, caso não completassem um
curso superior até uma determinada data,
determinada pela Lei de Diretrizes e Bases.
O segundo motivo era que a maioria estava
encontrando imensas dificuldades nas disciplinas.
Muitos deles davam as mesmas aulas há anos, e
tinham desaprendido como se estuda.
Informática Básica tinha tudo para ser um grande
monstro extra no pesadelo deles. Muitos deles nunca
tinham mexido em um computador. Alguns tinham
tentado e desistido, humilhados pela agilidade
impaciente de filhos e alunos. Quando eu entrei na
sala de aula pela primeira vez, os rostos deles

64
Ana Lopes

gritavam: “pânico”.
Eu não sei o que deu em mim. Mas quando eu me
deparei com aquele monte de adultos de cabelos
grisalhos e assustados como criancinhas, eu respirei
fundo e me vi fazendo uma aula inaugural
completamente diferente do que eu normalmente
faria.
A essência da minha fala foi mais ou menos a
seguinte: eu não estava preocupada com provas e
avaliações. Tudo o que eu queria era que cada um
deles evoluísse de alguma forma. Que saíssem dali
sabendo um pouco mais sobre o uso de computadores
do que quando entraram. Não importava muito o
quanto mais, cada um iria evoluir dentro das suas
possibilidades, e eu estaria ali para ajudar e
incentivá-los nessa evolução não para atormentar a
vida deles.
Aquilo era a antítese de tudo o que eu tinha até então
praticado na minha trajetória de professora durona. E
surpreendentemente até para mim, eu fui fiel ao meu
discurso inicial até o fim do curso.
Foi uma experiência incrível. Peguei na mão de boa
parte deles nos primeiros contatos com o mouse.
Explicava e reexplicava as coisas mais elementares
dezenas de vezes. Ia de mesa em mesa, atendia cada
um, mostrava de novo, duas, três, quatro vezes.

65
Histórias de Aprendizagem

Eu tinha que convencê-los que o computador não iria


quebrar, e se quebrasse, não seria culpa deles, nem
um problema insolúvel. Que eles podiam sim, futucar
à vontade naquele bicho.
Lembro bem de um professor-aluno que dizia o tempo
todo nos primeiros dias: “não adianta, eu já tentei
aprender várias vezes, não levo jeito para isso”.
Curiosamente, ele era um dos que evoluía mais
rápido.
O fato é que, aos poucos, percebendo que eu
realmente estava mais preocupada em ajudar do que
em infernizar a vida deles, o medo e o
constrangimento foi dando lugar a mais pura
curiosidade.
Eles começaram a parecer crianças em um parque de
diversões, o clima das aulas ficou leve e fluido.
O mais interessante, porém, foram os resultados
práticos: o curso terminou dois meses depois com boa
parte da turma editando textos e navegando na
Internet com um grau razoável de confiança. É certo
que alguns ainda estavam um pouco tímidos, mas
todos conseguiram ir bem além do que já sabiam
antes. Era bonito de ver a alegria deles mandando
mensagens de e-mail uns para os outros.
Enfim, a coisa correu tão tranquila entre nós, que
inicialmente eu não me dei conta do que tinha

66
Ana Lopes

acontecido ali. Mas, bem depois de encerrado o curso,


dois episódios me deixaram feliz e desconcertada ao
mesmo tempo. Eles também me deram a dimensão do
impacto que eu tinha causado com aquela postura
diferenciada.
Primeiro: uma das alunas me encontrou na
lanchonete e me deu um pequeno presente, como
agradecimento à paciência e ao carinho que eu tinha
tido com eles. “Paciência e carinho”? Como assim, eu
era uma professora durona!! Ou será que não era?
Várias semanas depois, recebi outro “presente”, esse
ainda mais gratificante. Aquele aluno que insistia que
“não levava jeito para aquilo”, me parou no corredor e
disse:
− Eu preciso te dizer uma coisa!
− Sim, pode dizer.
− Eu pedi a chave ao diretor da escola. Vou
colocar o laboratório de informática para
funcionar!!
Ele parecia um menino contando que ia fazer uma
travessura. Tinha os olhos brilhando. Eu o
parabenizei vivamente pela iniciativa e me despedi
dele completamente atordoada. Ficava pensando nas
consequências de tudo aquilo, em quantas vidas
aquele curso de verão despretensioso tinha tocado e

67
Histórias de Aprendizagem

ainda iria tocar pelas mãos daqueles professores.


Foi sem dúvida alguma a experiência de ensino mais
gratificante da minha vida. Mas eu ainda duvidava
que o mesmo sistema pudesse funcionar com a
garotada. Aquela era uma situação especial, eu dizia a
mim mesma.
Só fui ter a coragem de começar a fazer algo parecido
com o pessoal mais novo muitos anos depois, e
confesso que ainda hoje, continuo engatinhando e
tateando nesta arena.
É... Aprender de verdade, até o ponto de incorporar
um novo conhecimento no cotidiano não é nada fácil,
muito menos rápido... Mesmo com uma experiência
de impacto como aquela.
Tem que repetir e repetir, até que o corpo se
convença do que a cabeça já sabe.

68
O currículo que foi corroído
pelas traças
Pois é, os filhos foram crescendo e a carreira, mesmo
tendo sido deixada meio no “piloto automático”,
atingiu o topo daquilo que uma pessoa com Mestrado
poderia alcançar.
Isso era bom, mas também significava que, agora, o
único jeito de continuar me desenvolvendo na
carreira acadêmica seria fazendo o Doutorado. O que
implicava em fazer alguma grande mudança, já que
não havia um Doutorado por perto para eu fazer. E
iria ser uma mudança daquelas, já que a separação da
família, mesmo que temporária, estava fora dos
nossos planos.
Tivemos várias conversas sobre aquilo e aos poucos
fomos amadurecendo a ideia de que aquela era a
hora. Mas parece que o Universo não concordou com
nossos planos, pelo menos não exatamente do jeito
que a gente imaginou...
Depois de dez anos ensinando alunos de um curso
recém-nascido e criando filhos pequenos, eu me
deparei com a dura realidade de um mundo
Histórias de Aprendizagem

acadêmico transformado (ou seria “transtornado”?).


O ideal da descoberta científica era soterrado dia a
dia pelas exigências de “produtividade acadêmica”,
medida principalmente pelo número de publicações.
Descobri que artigos com mais de 5 anos de
publicados não tinham mais qualquer valor. Para
piorar, depois de passar por um período conturbado
de publicações por atacado e de qualidade duvidosa, o
mundo das publicações no Brasil tinha virado uma
selva chamada “Qualis”.
O famigerado Qualis é uma métrica de avaliação para
publicações acadêmicas criada pela Capes. A Capes,
por sua vez, é um órgão do MEC que cuida das pós-
graduações. Se as escolas e faculdades não podem
funcionar sem autorização do MEC, as pós-
graduações não podem funcionar sem autorização da
Capes.
A ideia por trás do Qualis é que os cursos cujos
alunos publicassem mais artigos, e em revistas de
maior impacto científico, eram melhores que aqueles
onde as publicações eram menos numerosas ou
aconteciam somente em publicações de “segunda
linha”.
Em teoria, esta medida serviria apenas para avaliar a
qualidade dos cursos de Pós-Graduação. Na prática,
porém, o Qualis tornou-se a medida de todas as

70
Ana Lopes

coisas no mundo acadêmico brasileiro.


Os currículos de todos os envolvidos em pesquisa são
avaliados segundo os critérios do Qualis. Eles podem
determinar, por exemplo, se um estudante é ou não
aceito em um programa de pós-graduação. E em
alguns casos, ter uma publicação com pontuação
excelente no Qualis é pré-requisito para terminar o
curso também.
Ter uma boa pontuação no Qualis é fundamental
também nos concursos para professores das
Universidades Públicas, principalmente as mais
cobiçadas.
E para completar, os projetos de pesquisa,
competindo por verbas nas agências de fomento a
pesquisa, são comparados, essencialmente, de acordo
com a pontuação Qualis dos currículos dos autores.
Volta e meia aparece nas listas de discussão de
pesquisadores uma grande polêmica sobre o mau uso
do Qualis como medida universal de qualidade
científica. Mas o fato é que ele está mais do que
estabelecido no inconsciente coletivo acadêmico.
Mesmo quem não concorda muito com os critérios do
Qualis, se quiser sobreviver e progredir nesse
ambiente, tem que dançar conforme a música.
Resumo dessa complicada ópera: se eu quisesse ter
alguma chance de ser aceita em um doutorado

71
Histórias de Aprendizagem

decente, não bastava ter publicado alguma vez na


vida. Tinha que ter publicado muito, recentemente e
em revistas com bom índice Qualis.
Foi aí que eu descobri que o meu currículo – que na
época em que eu terminei o Mestrado podia ser
considerado ótimo – não valia mais quase nada.
Em outras palavras, eu tinha que me reinventar como
pesquisadora. Ninguém estava interessado nas
minhas condições de trabalho (ou na falta delas).
Também não queriam saber o quanto eu tinha
aprendido e ensinado nos últimos anos fazendo
malabarismo para fazer um curso novo funcionar. E
obviamente, estavam menos interessados ainda no
fato de que, no meio disso tudo, eu tinha um casal de
gêmeos para cuidar...
Só o que importava eram os resultados recentes e
“mensuráveis” (segundo o Qualis, é claro!). E neste
caso, eu não tinha nada para mostrar.
Felizmente, chegou a hora de ter novamente um
pouquinho daquela pontada de sorte que, de vez em
quando, costuma cair sobre a minha cabeça como um
raio vindo de algum lugar misterioso.
O ex-orientador de Mestrado de um colega de
trabalho iria nos visitar em um evento local. O tal
colega me passou dicas preciosíssimas sobre os
interesses específicos daquela pessoa, e eu me

72
Ana Lopes

“armei” até os dentes para recebê-la.


Pesquisei sobre o assunto, me familiarizei com o
jargão da área em que o sujeito trabalhava e com o
atual estado das coisas. Quando o nosso visitante
chegou, eu parti para cima, cheia de ousadia: na
primeira oportunidade, fiz uma proposta de trabalho
de colaboração à distância exatamente naquele
assunto que ele tinha interesse.
A dificuldade seria justamente na palavrinha
“distância”. Se a EaD (Educação a Distância) ainda
hoje é um bicho de sete cabeças para muita gente,
pesquisa a distância era algo no mínimo inusitado.
Mesmo entre os pesquisadores supostamente
“moderninhos” da Computação não é muito fácil
achar um que tope fazer um trabalho
majoritariamente à distância.
Felizmente para mim, o cidadão em questão era um
moderninho de verdade e aceitou a minha proposta.
Eu quase não acreditei, mas também sabia que aquilo
era só o começo. Agora, eu tinha que provar que
poderia produzir algo decente naquelas condições,
caso eu quisesse – como eram os meus planos – que
ele fosse meu futuro orientador.
Para enfrentar tamanha prova de fogo, tirei dinheiro
do meu próprio bolso para comprar um computador
novo e me lancei no projeto de cabeça, tronco e

73
Histórias de Aprendizagem

membros.
Eu tinha agora a missão de reconstruir um currículo
que as traças tinham praticamente destruído ao longo
dos últimos anos (pelo menos na visão de quem iria
me avaliar).
Mais uma vez, um período de muita aprendizagem me
aguardava.

74
PaD: “Pesquisa a distância”
Então agora eu estava de volta à arena. E a luta seria
grande: eu tinha que escrever e desenvolver um
projeto de pesquisa com múltiplas finalidades.
Primeiro, eu precisava conquistar o meu candidato a
futuro orientador, fazendo um bom trabalho, mesmo
trabalhando a distância. E esse “bom trabalho”
incluía necessariamente publicar em algum evento ou
revista minimamente reconhecidos pelo Qualis.
Isso se eu pretendesse de verdade que os comitês de
avaliação nas pós-graduações chegassem a considerar
o meu currículo para análise.
A área na qual eu propus o projeto era uma área que
eu conhecia pouco, então tive que fazer algo muito
semelhante àquilo que eu tinha feito no Mestrado. Ou
seja, muito garimpo, muita informação
desencontrada organizar, muito retalho para
remendar num todo coerente que eu pudesse chamar
de “projeto de pesquisa”.
Mas eu tenho que confessar: eu adorava fazer aquilo.
Aliás, adoro até hoje. Acho que é por isso que eu me
encantei recentemente com o patchwork como hobby.
Eu acho incrível a sensação de juntar pedacinhos que
Histórias de Aprendizagem

parecem ter pouca relação entre si, e no final acabar


com um desenho tão bonito. Não que eu seja uma
artista do patchwork, mas são os meus trabalhos e eu
os adoro! São quase filhos para mim.
Com os meus projetos a sensação é parecida. Eu vou
juntando pequenos fragmentos de informação,
tentando fazer relações entre eles e descobrir formas
de fazer algo diferente, alguma pequena coisa que
ninguém nunca pensou antes.
No início, é difícil ter ideias que façam sentido. Mas
depois de um tempo de mergulho no assunto, alguma
ideia começa a se formar na nossa cabeça, quase que
como mágica. Ok, é mágica regada a muita leitura e
reflexão, mas isso não impede que esse momento em
que a lâmpada finalmente acende seja um momento
de pura euforia.
Enfim, apesar do trabalho ser duro, eu estava no meu
habitat natural, completamente à vontade.
Depois de escrito e aprovado o projeto, eu tive que me
voltar para atividades mais pragmáticas e aprender a
programar para a Web. As coisas no mundo do
software estavam migrando para a Web bem naquele
momento e eu não podia começar um projeto de
pesquisa que oferecesse uma solução dentro de um
paradigma velho, né?
E lá fui eu novamente: comecei a fuçar manuais,

76
Ana Lopes

livros e muitos tutoriais na Internet, para aprender a


fazer uma coisa que na época quase ninguém à minha
volta sabia fazer (alguém aí está com uma ligeira
sensação de dejà-vu?).
De novo, não foi moleza. Muita tentativa e erro, e
bota “erro” nisso! Mas depois de alguns meses
quebrando a cabeça, eu consegui colocar uma
primeira versão do software no ar. Também consegui
publicar o primeiro artigo sobre o trabalho em uma
boa conferência.
Eu estava no céu: adorava pesquisar, aprender coisas
novas e programar, o assunto era bacana, o software
estava funcionando e consegui logo de cara uma boa
publicação. Além disso, o meu colaborador (que a
essa altura eu já via como meu orientador) era ótimo
e estava gostando do trabalho.
Mas a minha felicidade durou só alguns poucas
semanas após a publicação do artigo. Ela acabou
quando fui rejeitada em TODOS os programas de
doutorado que tinha me inscrito.
Eu não conseguia acreditar. Foi um golpe e tanto: no
meu entender, eu tinha sido muito mais do que bem-
sucedida: em pouco mais de um ano, entrei numa
área nova, escrevi um projeto nela, tinha um software
rodando na web e um artigo Qualis publicado!
Mas parece que ninguém além de mim e do meu ex-

77
Histórias de Aprendizagem

quase-orientador conseguia se dar conta do tamanho


da minha proeza. Aparentemente, o que mais pesou
contra mim foi o fato de que eu tinha “só” um artigo
Qualis recente. E isso não foi considerado suficiente
para entrar em um bom programa de doutorado.
Recebi aqueles múltiplos “nãos” com um profundo
sentimento de injustiça e uma enorme frustração. Fui
para a beira da praia, sentei na areia, olhei para o
mar e chorei de raiva.
Depois de um bom tempo de “luto” por tantas
rejeições ao mesmo tempo, resolvi mostrar o quanto
eu era teimosa. Continuei a desenvolver o projeto do
ponto em que ele estava. No ano seguinte, emplaquei
mais dois artigos em conferências, um segundo lugar
num concurso de softwares e um artigo em revista
(para quem não conhece o sistema, publicações em
revistas são bem mais valiosas para a Capes que
publicações em eventos).
Eis a força de um ego ferido!
Aquele projeto de pesquisa funcionou praticamente
como se eu tivesse feito um novo Mestrado. Dois anos
de trabalho intenso, começando praticamente do
nada.
E ele acabou valendo mesmo como um segundo
Mestrado: com esse “novo currículo”, eu me inscrevi
em quatro programas de doutorado no ano seguinte.

78
Ana Lopes

Dos quatro, três me aceitaram.


Agora sim, eu estava nas nuvens: em 12 meses, eu
passei da rejeição total ao privilégio de poder
escolher para onde eu queria ir.
Escolhi aquele que eu considerava o melhor
programa, que por sorte, dentre as possibilidades que
eu tinha, ficava na melhor cidade para se viver.
Acabou sendo uma ótima escolha: no meio do meu
Doutorado, o nosso programa foi um dos poucos do
país a receber a nota máxima na avaliação da Capes.
Eu não só tinha emplacado uma vaga em um
doutorado, mas em um doutorado de primeira linha.
Dessa vez, a mudança foi de “mala, cuia e família a
tiracolo”. Na aula inaugural, o coordenador do curso
disse algo que me marcou bastante: “o principal
produto do doutorado não é a Tese, mas sim vocês.
Vocês são o produto mais importante desse processo
todo. Sairão daqui transformados em alguma outra
coisa que vocês hoje não são”.
Eu mal sabia o quanto ele tinha razão.

79
Fluente em inglês, finalmente!
Então, lá estava eu, “nos bancos da escola” de novo,
depois de vários anos do “outro lado”. O formato das
disciplinas no doutorado, como já era de se esperar,
era o mais tradicional possível. Afinal de contas, eu
estava numa escola de tradição!
Além do formato tradicional, as disciplinas eram
quase todas muito, muito pesadas. O volume de
informação despejado sobre nós em cada aula era
indecente.
Apesar de tudo isso, eu estava indo bem nesta
primeira fase do doutorado. Estava feliz por ter
voltado a estudar, achando que a vida agora ia ser
relativamente tranquila por um bom tempo. Afinal
“estudante” sempre havia sido meu status preferido!
Mas um dia, por acaso (ou por sorte mesmo), o
evento mais importante da área de pesquisa em que
eu estava trabalhando aconteceu na cidade. Foi uma
semana pra lá de interessante…
O evento era organizado por brasileiros, mas
acontecia 90% do tempo em inglês. Português
mesmo, só se ouvia nos corredores, isso se não
Ana Lopes

houvesse nenhum estrangeiro na roda. Havia também


umas poucas palestras voltadas para estudantes de
graduação que eram em português. E só.
Saí daqueles três dias realmente assustada: depois de
muita dor de cabeça para tentar entender tanto
inglês, havia ficado claro como água que somente
saber ler artigos técnicos em inglês não seria nem de
longe suficiente para completar o meu doutorado.
A maioria das áreas em Ciência da Computação no
Brasil não tem essa ênfase tão forte na
“internacionalização” ao ponto de fazer um evento
brasileiro em inglês. Mas parecia que eu tinha
conseguido escolher a dedo a minha nova área de
atuação...
Saí daquele evento seriamente preocupada: como é
que eu poderia pensar em publicar em uma área que
praticamente só existia em inglês, se me faltavam
competências básicas naquela língua?
Eu não tinha saída, dessa vez tinha que aprender
inglês pra valer. Não bastava ler “mais ou menos”. Eu
tinha que entender, falar e escrever bem. Mas apesar
de ter passado por alguns cursos de renome, nunca
cheguei a passar da fluência em leitura técnica.
Eu até gaguejava alguma coisa em caso de
necessidade, mas as minhas habilidades auditivas
eram bem precárias, o que inviabilizava qualquer

81
Histórias de Aprendizagem

conversa séria. Além disso, eu escrevia mal, quase tão


mal quanto os tradutores automáticos que a gente
acha por aí na Web.
Enfim, a situação era periclitante.
Para piorar, eu estava com sérias “restrições
orçamentárias” naquela época. E na verdade eu nem
queria muito fazer mais um curso de inglês. Fazia
tempo que eu não acreditava mais em sala de aula e
esta descrença se aplicava especialmente para
aprender línguas.
Afinal de contas, o meu fracasso nesse caminho era
patente: como é que uma pessoa pode ser uma ótima
aluna de inglês por vários anos e não conseguir se
expressar minimamente nessa língua?
Comecei então uma verdadeira caçada na Internet por
opções gratuitas para aprender inglês. No início do
processo, eu percebi um detalhe que foi fundamental
para o rumo que as coisas tomaram a seguir: a
principal origem da minha dificuldade para entender
o inglês falado era a falta de vocabulário.
Quando eu ouvia alguma coisa menos técnica, eu até
entendia algumas palavras soltas, mas não o
suficiente para entender o que estava sendo dito.
Quando eu pegava o texto, ou a transcrição do áudio,
eu via que não tinha mesmo como entender, por um
motivo quase simplório: as palavras que eu não

82
Ana Lopes

conseguia entender eram palavras que eu não


conhecia!
Ou seja, o meu vocabulário fora dos artigos técnicos
era paupérrimo.
Diante dessa constatação “genial”, que hoje me
parece óbvia, eu arquitetei um plano: eu iria estudar
vocabulário vorazmente através da leitura de livros e
estudo de “flashcards” (aqueles cartõezinhos com
uma palavra de um lado e a tradução do outro).
Iria também ouvir coisas diversas, como filmes e
músicas, até que eu conseguisse entender pelo menos
uma boa parte delas.
A ideia era que quando a minha situação financeira
melhorasse, eu faria algumas aulas de conversação, já
com um vocabulário mais ampliado e um ouvido mais
aguçado.
Mas aí aconteceu um daqueles acasos maravilhosos
da vida: eu descobri um site que pregava a
aprendizagem de línguas quase exatamente do jeito
que eu havia planejado: ouvindo muito e estudando
vocabulário. Para ficar ainda melhor, ele já tinha os
flashcards e dicas ótimas para aprender mais rápido.
O site era o LingQ, que foi criado por um adorável
maluco Canadense chamado Steve Kaufmann, que
tem a audácia de falar 9 ou 10 línguas. E ele teve a

83
Histórias de Aprendizagem

maravilhosa ideia de fazer do seu hobby um site com


um método de aprendizado de línguas completamente
diferente de tudo o que eu tinha encontrado até
então. Tão diferente, que até funcionava!
Para completar, o livro do Steve, que eu estudei como
uma das minhas fontes de vocabulário, foi também
uma fonte de dicas valiosíssimas sobre como
aprender uma língua na “vida real”.
A proposta dele era que aprender uma língua não é
algo que se faz para passar em algum tipo de prova,
mas sim, para cair no mundo mesmo: conversar,
escrever, ler livros, ver filmes. Enfim, a meta era usar
a língua para aquilo que ela foi feita: comunicar-se.
Eu confesso que fiquei meio obcecada com aquela
maravilha. E no fundo, acho que isso foi necessário.
Eu fiz uma imersão quase completa no mundo
anglófono. Eu vivia com um aparelhinho de mp3
pendurado no ouvido. As pessoas à minha volta
deviam achar que eu era louca por música…
Mas nesse aparelhinho, eu ouvia várias vezes os
textos que eu estava estudando, enquanto ia e voltava
da Universidade. À noite, eu criava e estudava os
flashcards no site do LingQ, para solidificar o
vocabulário novo.
E assim foi durante aproximadamente 18 meses. De
dia, doutorado. Em casa, no final da noite (depois de

84
Ana Lopes

ter posto as crianças para dormir), flashcards. Entre


um lugar e outro, mp3 no ouvido.
Não foi, nem poderia ser, uma caminhada linear. Eu
tive muitos momentos de cansaço, frustração e
dúvidas.
No início o avanço é muito rápido, a empolgação vai
tomando conta e realimentando a vontade de estudar.
Mas tem uma hora também que o ritmo de progresso
diminui e corre-se o risco de desanimar. Volta e meia
eu choramingava minha falta de progresso nos fóruns
do LingQ. Mas sempre vinha alguém dizer que eu
estava indo muito bem, e que esses momentos de
desânimo eram passageiros. Felizmente, eu consegui
persistir por tempo suficiente para tornar o inglês
uma verdadeira segunda língua para mim.
Só nos meses finais desse período de estudo intenso,
comecei a fazer conversações. Essa conversação
tardia também fazia parte da “filosofia” deles.
Com as conversações, eu fui ficando um pouco mais
confiante na língua. Mas a ousadia de dizer
abertamente que eu era fluente em inglês eu só
consegui mesmo depois de algumas experiências no
mundo lá fora.
A cada artigo que eu escrevia e era aceito, muitas
vezes com elogios a forma de escrever, ia fortalecendo
a minha autoestima linguística.

85
Histórias de Aprendizagem

E então, finalmente, veio a prova de fogo: um belo


dia, nós recebemos no laboratório a visita de alguns
pesquisadores estrangeiros. O inglês era a única
língua que todos tínhamos em comum. Depois de três
dias falando em inglês sem sequer notar que eu
estava falando outra língua, finalmente admiti: eu
tinha realmente atingido um grau de fluência em
inglês que antes eu imaginava ser praticamente
impossível.
Obviamente, meu inglês não é perfeito, mesmo hoje,
em que 70-80% do meu consumo diário de
informação está nesta língua. Normalmente eu
consigo me comunicar com facilidade em qualquer
meio, mas é incrivelmente fácil cometer erros bobos.
Mas depois de 18 meses de obsessão com os
flashcards, eu tive que dar um tempo. Mais por
questões pessoais do que por achar que sabia “tudo”.
Aliás, uma das coisas mais importantes que eu
aprendi naquele período foi que esse negócio de saber
“tudo” em uma língua (ou em qualquer outra coisa)
simplesmente não existe.
Você por acaso sabe tudo de português? Eu, por
exemplo, estou bem longe disso. Mas nem por isso eu
deixei de me meter a escrever um livro inteiro!
No final das contas, o importante é: eu não tinha
mais medo. Eu sentava e escrevia, eu ouvia e falava,

86
Ana Lopes

sem pensar muito no que eu estava fazendo. Para


coroar todo esse esforço, a minha Tese foi escrita e
defendida em inglês.
O que, aliás, me gerou uma grande economia de horas
de trabalho: os artigos que eu tinha escrito ao longo
do doutorado estavam todos em inglês e eu me livrei
da chateação de traduzir o material para o português!
Mais do que viabilizar minha vida profissional mais
imediata, aprender inglês de gente grande foi um
divisor de águas na minha vida como um todo. De
repente, 60% da Internet, até então inacessível para
mim, estava tão ao meu alcance quanto a Internet
brasileira.
E cá entre nós, a verdade nua e crua é que a Internet
em inglês tem uma variedade e, principalmente, uma
qualidade que a Internet em português ainda nem
sonha em ter.
Não me entenda mal. Eu não sou do tipo que acha que
tudo o que vem de fora é melhor. Muito pelo
contrário. Eu adoro o Brasil e amo a cultura
brasileira. E na verdade, a subserviência cultural que
parece tão escandalosa em algumas pessoas me irrita
bastante.
Mas sejamos realistas: os anglofalantes mundo afora
são muito mais numerosos que nós e tiveram acesso
mais cedo à Internet. E se você colocar na equação o

87
Histórias de Aprendizagem

nível educacional médio destas duas populações (a


que fala inglês e a que fala português), aí sim a
diferença realmente vira um grande abismo.
Infelizmente.
Isso não quer dizer que sempre será assim. Eu
acredito que uma virada é possível. Afinal de contas,
se tem uma coisa na qual eu acredito nesta vida, é na
aprendizagem e no seu poder de transformação (será
que já deu para perceber?).
Enquanto isso, aqui do meu cantinho do Universo, eu
faço o que posso para dar a minha contribuição de
formiguinha para melhorar a qualidade da Internet
brasileira.
Torcendo para que outras formiguinhas se estimulem
a entrar na brincadeira.

88
Cientista da Computação ou
não?
Ter sido aceita em um doutorado de alto nível em
Ciência da Computação era tudo o que eu precisava
para acabar como todas as dúvidas sobre qual era
mesmo a minha “área” de trabalho: apesar de atuar
somente nisso há vários anos, eu ainda sentia um
certo preconceito velado de alguns colegas contra
“esse pessoal de fora que ‘acha’ que sabe
computação”.
Além disso, confesso que esse preconceito fazia eco
com um certo complexo de inferioridade também. Ou
seja, eu mesma acabava “comprando” a ideia de que
talvez eu não fosse uma Cientista da Computação “de
verdade”.
Mas enfim, eu realmente cheguei a acreditar por
algum tempo que, uma vez dentro deste doutorado,
estaria a salvo do preconceito e do meu complexo de
vira-lata. Isso, até me deparar com a famigerada
“prova de qualificação” do doutorado.
Na verdade essa “primeira qualificação”, como era
chamada, era feita de duas provas, e cada uma
Histórias de Aprendizagem

abarcava metade do conteúdo do “núcleo duro” do


curso de Ciência da Computação. Eu tinha direito à
três tentativas dentro dos primeiros 3 semestres do
curso, ou seria desligada do programa. Simples e seco
assim.
O cenário não era nada tranquilizador, para dizer o
mínimo. Na verdade, era aterrorizante. Era MUITO
conteúdo para estudar. Sobre alguns deles eu já sabia
alguma coisa, depois de passar por tantas disciplinas
como professora (às vezes, parece que a minha vida é
uma sucessão de evidências de que “há males que vem
para bem”...).
Mas ainda tinha um monte daquelas coisas que eu
mal fazia uma vaga ideia do que se tratava.
Uma das partes mais difíceis da tal prova, Análise de
Algoritmos, eu cursei como disciplina regular do
próprio doutorado. Era um bom começo para os meus
estudos, porque eu juntava o útil ao agradável: eu
estudava para a prova de qualificação teria uma
disciplina a menos para cursar.
Mas tinha uma coisa mais difícil ainda nessa mesma
prova, que era a tal da Teoria da Computação. Essa
estava entre aquelas que eu praticamente só conhecia
de nome. Para completar, ela não foi oferecida como
disciplina no primeiro semestre.
Durante o período de aulas era virtualmente

90
Ana Lopes

impossível uma pessoa se dedicar a qualquer outra


coisa que não fossem as disciplinas. O nível de
exigência tinha um quê de surreal.
A coisa era tão assustadora, que mesmo com toda a
minha experiência em faltar aulas e dar o meu jeito,
eu resolvi que não era um bom momento para bancar
a independente.
Entre o fim do semestre e a maldita prova, havia o
recesso de julho. Lá fui eu, me virar sozinha de novo:
peguei o livro de Teoria da Computação na biblioteca
e comecei a escalar aquela verdadeira parede vertical
“na unha”.
Teoria da Computação é provavelmente a coisa mais
complicada dentro da área, com forte base em lógica e
matemática. E só para variar, eu estava partindo de
um ponto muito próximo do zero…
O livro que eu estava usando para estudar era – por
segurança e por pressa também – o livro do professor
que iria elaborar a prova. Não era exatamente o livro
mais didático que havia, pelo menos não em minha
opinião. Mas eu não podia me dar ao luxo de estudar
por outra bibliografia e me perder naquela sopa de
letrinhas gregas.
Fui para a minha primeira tentativa roendo as unhas:
não passar em pelo menos uma das duas provas seria
muito ruim. Não só pela tentativa perdida. Mas

91
Histórias de Aprendizagem

também, e principalmente, porque isso significaria


mais um semestre sendo obrigada a estudar aqueles
mesmos assuntos, ao invés de me dedicar àquilo que
eu tinha ido lá para estudar, que era processamento
de imagens e vídeos.
Para tornar as coisas mais enervantes ainda, a minha
turma pegou a primeira versão de um novo modelo de
prova de qualificação, que estava sendo implantado
naquele ano, e ninguém sabia muito bem o que
esperar daquilo.
Foi uma prova daquelas. Mais de três horas
escrevendo sem parar, e algumas vezes sem saber
exatamente o que eu estava escrevendo. De umas 15
vítimas daquela carnificina, só três se salvaram em
cada uma das duas provas de qualificação. Só Deus
sabe como eu consegui estar entre os “escolhidos” em
uma das provas.
Já foi uma vitória e tanto. Eu tinha riscado do meu
cardápio de obstáculos justamente a prova mais
difícil. A outra prova seria mais uma questão de
gerenciar o volume de informações do que a
dificuldade dos assuntos propriamente dita.
Claro que sempre tem um porém. Os assuntos desta
segunda prova eram mais distantes da minha área de
atuação e eu fiz verdadeiras acrobacias para cobrir
pelo menos uma parte substancial de cada tópico, já

92
Ana Lopes

que era impossível estudar tudo.


Eu tive que usar muita intuição para pinçar o que eu
iria estudar, e torcer bastante para não errar o alvo!
Não foi sem um bocado de aperto que eu passei na
segunda tentativa. Mas o fato é que eu acabei
passando. Seis meses antes do prazo final para não
ser expulsa do curso, eu conquistei a carta de alforria
daquelas malditas provas. E para minha surpresa,
ainda deixei alguns Cientistas da Computação “de
verdade” para trás.
Para fechar com chave de ouro, o meu orientador me
cumprimentou dizendo: “Agora sim, você é uma aluna
de doutorado de verdade”. Acho que só nesse
momento eu tomei consciência da real dimensão
daquelas provas.
Ainda bem. Eu já tinha sofrido o suficiente sem ter
consciência daquilo...
Passado o sufoco, agora era hora da diversão pela
qual eu tinha viajado de tão longe: era hora de
pesquisar! Essa sim seria a grande aventura do
doutorado, mas essa já é uma outra história.
Mas antes de terminar, um aviso: se você quer ser
meu amigo ou amiga, jamais duvide de que eu seja
uma Cientista da Computação. Depois dessa
aventura, isso é algo que eu não vou tolerar nem da

93
Histórias de Aprendizagem

minha mãe!!
De qualquer forma, ela não iria falar uma bobagem
dessas da própria filha, né?

94
Pesquisa: praticando caça a
problemas
Terminada a fase de qualificação, eu era agora uma
estudante de doutorado “de verdade”, segundo o meu
orientador. Agora sim, começava a grande diversão.
Estudantes de doutorado tem que desenvolver uma
pesquisa inédita, ou nas palavras da academia,
“produzir uma contribuição original à ciência”.
Muito bonito tudo isso, mas só tem um detalhe:
encontrar um tema inédito nesse mar de milhões de
cabeças pensantes mundo afora não é exatamente
uma tarefa trivial…
Daí que justamente neste momento do doutorado,
meu orientador conseguiu uma bolsa de pós-
doutorado no exterior e lá ficou por seis meses.
Pronto! Eu estava sozinha – só para variar! – diante
do maior desafio de aprendizagem da minha vida até
então: eu tinha que achar um tema de pesquisa
relevante e dentro desse tema, achar um problema
bacana e atual para resolver, de preferência de forma
criativa.
Histórias de Aprendizagem

Eu tinha lido um ou dois livros que davam uma ideia


de como era o processo de fazer um trabalho de
doutorado e alguma experiência em projetos de
pesquisa de menor porte. E foi com essa pequena
bagagem, que comecei a procurar um caminho para
fazer a minha “contribuição original à Ciência”.
Eu não sabia ao certo nem qual seria o tema. A única
coisa que eu tinha em mente, como ponto de partida,
é que eu queria fazer alguma coisa ligada a
processamento de vídeos.
Acabei desenvolvendo um processo razoavelmente
sistemático para a minha pesquisa: comecei por
pesquisar nas conferências mais importantes e mais
recentes da área, fazendo leituras rápidas de alguns
artigos que me chamavam a atenção. Os mais
interessantes, eu guardava.
Não era uma pesquisa profunda. Eu precisava
primeiro identificar um tema de trabalho, para depois
pensar em aprofundar. Mesmo assim, foram quase
dois meses de caçadas diárias até eu encontrar o
artigo que acendeu aquela luzinha que produziu o
momento “aha!” que iria ser o pontapé inicial do
projeto de doutorado.
A partir daí, começou o trabalho realmente duro:
coletei todos os artigos que pude encontrar
relacionados com aquele da “luzinha”. Em duas ou

96
Ana Lopes

três semanas, eu tinha uns 50 artigos selecionados e


armazenados dentro da minha pasta de “artigos para
ler com calma”.
Viva a Internet. Dez anos antes eu iria levar pelo
menos uns três meses para ter acesso aos mesmos
artigos...
Mas a caçada continuou, e até eu conseguir me
comunicar com o meu orientador, que ainda estava na
Europa, e convencê-lo de que o tema era bom, eu já
tinha uns 100 artigos na fila.
No início a leitura destes artigos foi muito, mas muito
penosa. Isso é natural, porque aquela área específica
era novidade para mim, e tudo era muito novo. Mas
quando eu via cada artigo levar até uma semana para
ser digerido com algum grau de compreensão, eu
ficava bem preocupada...
Eu começava a calcular quanto tempo eu levaria para
ler os tais 100 artigos naquele ritmo e ficava meio
desesperada. Lendo um artigo por semana, eu iria
levar dois anos só para completar a leitura!! Sem
levar em conta o pequeno detalhe de que nesses dois
anos, no mínimo mais 100 seriam publicados...
Mas eu era teimosa e fui em frente, mesmo me
sentindo absurdamente sobrecarregada diante de
uma tarefa que parecia impossível. Em momentos de
maior lucidez eu lembrava que se tanta gente fazia o

97
Histórias de Aprendizagem

Doutorado até o fim, eu também daria um jeito de


fazer o meu!
E aos poucos, um verdadeiro milagre da
aprendizagem foi acontecendo comigo. Conforme eu
ia acumulando conhecimento sobre aquele assunto,
os próximos artigos iam ficando cada vez mais fáceis
de ler. De repente eu passei a ler dois ou três artigos
por semana, e quando eu me dei conta, estava
devorando três ou quatro por dia!
Ou seja, eu estava vivenciando exatamente aquilo que
a neurociência previa: quanto mais você sabe, mais
rápido você aprende, porque as conexões acontecem
mais facilmente, já você vai adquirindo cada vez mais
“ganchos” onde pendurar o novo conhecimento.
Enfim, depois de uns 6 meses de leitura pra lá de
intensiva (ao invés de dois anos que eu havia previsto
antes), eu tinha bem mais de 100 artigos na minha
pasta de “artigos lidos”. Tinha também milhares de
anotações referenciadas e uma boa ideia geral da área
de conhecimento que eu tinha abraçado.
Mas o mais importante de tudo é que agora eu sabia
com bastante clareza o rumo que eu queria dar à
minha pesquisa, e estava empolgadíssima com o tema
que tinha escolhido.
Só que ler não era a única coisa que eu fazia da vida.
Eu precisava também programar para testar minhas

98
Ana Lopes

ideias na prática, se eu quisesse realmente construir


uma Tese. Nesta época me foi indicado um aluno de
Iniciação Científica para me ajudar com a
programação, enquanto eu ia organizando as minhas
ideias e as minhas anotações.
Essa etapa durou mais uns seis meses e foi riquíssima
em aprendizados diversos. Eu já tinha feito pesquisa
antes, mas nunca havia organizado uma quantidade
tão grande de informações.
No meio de tudo isso, eu tive também que aprender a
gerir a relação com o aluno. Para mim, este era um
desafio enorme. Depois de tantos anos de
autodidatismo, eu estava acostumada a fazer quase
tudo sozinha e tinha pouca paciência para me
sincronizar com o ritmo dos outros.
Mas desta vez seria impossível trabalhar sozinha.
Para dizer a verdade, não era nem mesmo desejável:
se eu queria mesmo me tornar uma pesquisadora, eu
tinha que aprender a delegar.
Felizmente, o rapaz era ótimo, tanto em relação ao
trabalho quanto em termos de relacionamento e
facilitou bastante a minha vida neste aspecto.
Eu também comecei a trabalhar em colaboração com
outros colegas. Aqui, as oportunidades foram
surgindo naturalmente. Primeiro, uma amiga que
fazia o Mestrado no mesmo laboratório começou a ter

99
Histórias de Aprendizagem

dificuldades no trabalho dela e eu me ofereci para


ajudá-la a encontrar uma solução para o impasse em
que ela tinha se enfiado.
Havia também seminários que tínhamos que
apresentar uns para os outros sobre o que estávamos
fazendo. Além de ter sido escalada para coordenar os
seminários daquele ano, às vezes eu dava sugestões e
ideias para os trabalhos de outros colegas.
Era o meu impulso natural: uma vez que eu entendia
o problema em que alguém estava trabalhando, a
minha cabeça começava a ferver de ideias e possíveis
soluções. E eu ia falando algumas delas para os donos
dos trabalhos. Às vezes a ideia fazia sentido para a
pessoa, e uma sugestão dada virava “oficialmente”
uma colaboração.
Enfim, foi um ano de muita preparação e
praticamente nenhum resultado concreto. Foi preciso
muita fé de que aquilo que eu estava fazendo iria
produzir frutos. Até então, eu não tinha certeza de
nada. Estava seguindo um caminho que era duro e
muito trabalhoso e só consegui me manter nele por
tanto tempo porque de alguma maneira eu acreditava
que ele iria me levar a algum lugar interessante.
Mas dizem que a fé move montanhas, né? No meu
caso, moveu mesmo. De repente, a leitura voraz de
artigos e as colaborações com os colegas começaram a

100
Ana Lopes

convergir para resultados palpáveis.


Em pesquisa, isso significa basicamente uma coisa:
artigos publicáveis. Só que para ser realmente
publicável, um artigo tem que ser escrito, né? E
naquela área de pesquisa, isso significava escrever em
inglês.
E foi aí que a história se complicou para o meu lado.
Eu era a única maluca entre os meus colegas que
tinha ficado um ano e meio estudando inglês
freneticamente. Meus parceiros e colegas geraram
muitos resultados bacanas, mas os artigos para
divulgar os tais resultados sobraram quase todos para
eu escrever.

101
Muitos artigos e nenhum
diploma
Enfim, era hora de começar a tentar publicar artigos
relatando os resultados das nossas pesquisas, que
começaram a pipocar de todos os lados. Agora sim, o
meu recém-adquirido “inglês fluente” seria posto a
prova. E também a minha capacidade de convencer
outros pesquisadores de que os nossos resultados
eram, de fato, dignos de serem tornados públicos
para a comunidade científica.
De repente, a minha vida virou um furacão. De todo o
trabalho do ano anterior brotavam os mais variados
frutos que tinham data para ser colhidos. A coisa
ficou bem doidona mesmo no laboratório, que às
vezes mais parecia um pregão da bolsa de valores.
Não era raro haver duas, três ou quatro máquinas
trabalhando para nós. E a cada resultado que saía
dessas máquinas, lá ia eu escrever um artigo para
submeter em alguma conferência da área, geralmente
com prazo final para o dia seguinte.
Aquilo era um círculo vicioso e viciante. Conforme os
artigos iam sendo aceitos – e quase todos foram
Ana Lopes

aceitos – a gente ia entrando num frenesi de fazer


mais e mais e mais. Mal a gente cumpria o prazo de
entrega de um artigo, aparecia outra conferência para
mandar o próximo. A adrenalina geral da galera
estava a mil.
Obviamente, aquilo não podia dar certo por muito
tempo... Seis meses e uns oito artigos publicados
depois, eu simplesmente caí de cama. Meu corpo
inteiro doía de cansaço, minha cabeça se recusava a
raciocinar sobre o que quer que fosse e parecia que
não havia horas suficientes no dia para eu dormir. Foi
o início de um “burnout” arrasador, ou, em bom
português, uma estafa arretada mesmo.
Hoje está claro como água para mim que eu abusei, e
muito, dos meus limites. Mas na época, eu não me dei
conta da gravidade da situação. O médico que me
atendeu, depois de uma bateria enorme de exames,
resolveu que eu precisava tomar um ansiolítico. A
princípio, eu não gostei nadinha da ideia, mas acabei
cedendo. Afinal de contas, eu tinha um doutorado
para terminar!
O fato é que a medicação revelou-se uma “faca de dois
gumes”: ela segurava a onda por alguns meses e
depois o corpo pedia mais. Foram três aumentos da
dose em um ano e meio, na tentativa de me manter de
pé para terminar o doutorado.

103
Histórias de Aprendizagem

O problema é que essa estratégia de ir aumentando a


dose e seguindo em frente fez com que, por muito
tempo, eu insistisse em não enxergar o óbvio: que
aquele ritmo de trabalho era física e psicologicamente
insustentável. Não era uma questão de descansar um
pouquinho para voltar a trabalhar depois. Eu não
poderia continuar voltando àquilo, ou ia ficar cada
vez mais doente.
Aliás, foi exatamente o que aconteceu.
Dois anos depois da primeira crise, eu não conseguia
mais sentar na frente do computador para escrever a
minha Tese. A essa altura, ela já estava quase
terminada. Mas “quase” significava sem diploma, sem
aumento, sem progressão na carreira.
E o mais incrível disso tudo é que nem a ameaça
tenebrosa de “morrer na praia” com o meu doutorado
conseguia mais me convencer a levantar da cama.

104
Um diploma e um blog
Desde os 20 e poucos anos eu conhecia a psicologia
de Jung e ela já me fascinava. Mas levar Jung a sério
na vida cotidiana não é algo para os fracos de alma.
Jung exige da gente uma postura incomum diante do
inconsciente e da própria vida. Não tem muito espaço
ali para o autoengano. Por isso, apesar do grande
fascínio pelas teorias do moço, eu segui me
esquivando dele por quase duas décadas.
Às vezes eu acho que eu tenho uma atração especial
por coisas difíceis. Além da dificuldade em si da
proposta da análise Jungiana, terapeutas Jungianos
são raros, e quase sempre, mais caros que os de
outras linhas. Achar um terapeuta Jungiano ao
alcance das minhas finanças em uma cidade pequena
era quase tão provável quanto ganhar na loteria.
Mas tem sempre alguém que ganha na loteria, né?
Bom, eu consegui: tirei a sorte grande e achei uma
verdadeira agulha de ouro em um palheiro pelo qual
eu não dava muita coisa.
Logo no início, a minha terapeuta já foi me avisando
para esquecer a minha tese por um bom tempo... E
Histórias de Aprendizagem

apesar de todos os protestos e objeções em que eu


pudesse levantar, eu não tinha mesmo outra saída
senão obedecer. Começaria ali um grande mergulho
para encontrar a raiz (ou melhor, as várias raízes)
daquilo que tinha me transformado naquele trapo
choroso e improdutivo.
No final de alguns meses de terapia, a tese saiu. Foi
um parto meio a fórceps, mas saiu. Não foi tudo o que
eu queria que ela fosse, mas foi aprovada sem grandes
sustos. Eu finalmente teria o meu diploma de Doutora
em Ciência da Computação.
Confesso que naquele momento de profunda confusão
mental, os únicos significados concretos que aquele
título tiveram para mim foram um pequeno aumento
de salário e um grande alívio da “carga” que aquela
tese inacabada havia se tornado nos últimos meses.
Mas a coisa não ia acabar por ali. A caixa de Pandora
do inconsciente tinha sido definitivamente aberta.
Não tinha mais como voltar atrás. O inconsciente, que
eu havia deliberadamente colocado para escanteio
por tantos anos, agora cobrava a fatura. E ela não está
sendo barata...
Muitas coisas interessantes e surpreendentes têm
surgido desse processo e muitas mais prometem
surgir. Várias delas não são exatamente do jeito que
eu gostaria que fossem, mas creio que uma grande

106
Ana Lopes

parcela do aprendizado aqui passa por aceitar a


minha própria natureza.
E no meio disso tudo, surgiu o blog. Primeiramente,
de forma meio tateante, quase clandestina. Eu tinha
muitas dúvidas e medos de colocar todo aquele
material no ar, mas ao mesmo tempo tinha uma
necessidade visceral e irreprimível de me expressar.
No início ele não tinha uma forma muito clara, nem
eu sabia muito bem onde eu queria chegar com
aquilo. Mas ele foi brotando com força, e eu só tive a
alternativa de abrir espaço para ele na minha vida e
observar.
Só para não perder o costume, fui obrigada a
aprender um monte de coisas na construção do blog.
Primeiro, foram as tecnicalidades necessárias para
fazer a coisa funcionar, que são muitas. Mas o mais
bacana mesmo foram as interações com os usuários e
colegas blogueiros.
Quase a totalidade dos comentários e e-mails que
recebo hoje devido ao blog tem elogios enormes, e
eles têm um efeito incrível. Mas ler uma história de
alguém que mudou o rumo da própria vida por causa
de algo que eu escrevi ou falei, por menor que seja a
mudança relatada, causa um impacto na gente que
não tem explicação.
É como aquela experiência do meu aluno-professor,

107
Histórias de Aprendizagem

que se motivou a abrir o laboratório da escola por


causa das minhas aulas, só que multiplicada muitas e
muitas vezes.
E está sendo graças a essas histórias com que vários
leitores do blog me presentearam nos últimos meses
que eu estou aprendendo mais uma grande lição: ser
fiel àquilo que você é lá no fundo da alma é a forma
mais inteligente e sensata de fazer a sua diferença no
mundo.

108
Reflexões “finais”
Uma das coisas complicadas de se escrever um livro
autobiográfico, quando se é ainda relativamente
jovem, é que é difícil chegar a uma conclusão. Tem
ainda tanta história acontecendo e para acontecer na
minha vida!
Obviamente, esta não é uma autobiografia no sentido
estrito do termo. As histórias descritas até agora
contam só uma pequena parte da minha vida, todas
relacionadas a momentos de grande aprendizagem. A
inspiração para esse formato surgiu daquele
momento em que eu descobri que o que eu gostava
mesmo, mesmo na vida, era de aprender coisas novas.
Foi a partir dali que eu entendi uma característica
minha que até então causava enorme conflito interno:
a inacreditável variedade de assuntos que me
interessavam, desde os trabalhos manuais mais
singelos, até os temas técnicos mais cabeludos. A
partir do momento que algo me chama atenção, a
minha sede por entender e tornar aquilo uma parte de
mim parece insaciável.
Esse traço de personalidade sempre gerou em mim
uma quantidade considerável de dúvidas: “Afinal de
Histórias de Aprendizagem

contas, do que é que eu gosto mesmo?”, “O que é que


me interessa de verdade nessa vida?”, “Será que eu
sou, simplesmente, uma pessoa inconstante?”
Quando eu finalmente consegui resumir todos os
meus interesses, aparentemente tão divergentes entre
si, sob uma única palavra – aprender – foi como se eu
tivesse visto “a luz”. Finalmente, eu tinha uma
explicação para a minha suposta inconstância e para
a minha inquietude permanente.
A criação do blog, onde apareceram as primeiras
versões destas histórias de aprendizagem, foi parte
fundamental desta aprendizagem sobre mim mesma.
Ao relembrar todos estes acontecimentos da minha
vida, foi ficando muito claro que a minha busca
sempre foi aprender mais e mais. E que o ato em si de
aprender muitas vezes era mais importante que o
assunto do momento.
Não espero nem tenho a pretensão de que as minhas
histórias sejam 'receitas' para ninguém. Aprender é a
minha busca, mas cada um precisa achar a sua.
Também não gostaria que essas histórias parecessem
um mero exercício de auto engrandecimento. Se elas
podem ser consideradas um exercício, que sejam
vistas pelo que representaram para mim: um
exercício de autorreflexão e auto expressão.
Na melhor das hipóteses, tenho a esperança de

110
Ana Lopes

inspirar algumas pessoas a descobrirem o prazer da


aprendizagem ou, melhor ainda, o prazer de descobrir
e trilhar os seus próprios caminhos.
Eu finalizo esse relato agradecendo o fato de você ter
chegado até aqui. Desejo de todo coração que você
também encontre o seu caminho e escreva a sua
história.
Depois me conte.

Este livro eletrônico foi editado e produzido por


VídeoAulas ByAna

Vou adorar se você quiser comentar o que você


achou sobre ele neste link:
http://www.videoaulasbyana.com.br/ebook-historias/

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