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Escritos sobre mito e linguagem

Em carta a Ernst Schoen, de 28 de dezembro de 1917, Walter Benjamin diz que “a dúvida sobre
a essência do conhecimento, do direito e da arte é inseparável daquela sobre a origem de cada
expressão espiritual humana pela essência da linguagem”. Nota-se, a partir dessas palavras, que
Benjamin não separa a linguagem da razão, e o desdobramento dessa aproximação, de acordo
com Jeanne- Marie Gagnebin, é que, “sem uma reflexão sobre Sprache, ‘língua’ e ‘linguagem’,
(...) não há a possibilidade (...) de pensar a razão e a racionalidade humanas” (p. 10). Sob essa
perspectiva, razão e história devem ser pensadas de modo conjunto, já que a apreensão de
ambas só pode ser realizada por meio da linguagem. Para Gagnebin, somente a linguagem
permite “a invenção da história (humana) e de histórias (ficcionais ou não) (e por isso não seria
exagero afirmar que) o tema por excelência da filosofia e da crítica literária em Benjamin seja
essa ligação entre história e linguagem” (p. 10). Até porque, como diz a autora no texto de
apresentação dessa edição, para Benjamin não há “nenhuma formação de linguagem, obra
literária ou filosófica, que não seja trespassada pela história humana verdadeira (e que) não seja
objeto de reelaboração e transformação pela linguagem” (p. 10). Dito de outro modo, uma
existência que não tivesse nenhuma relação com a linguagem seria incapaz de se tornar fecunda.

A partir disso, pode-se dizer sem medo que o vigor filosófico dos Escritos sobre mito e linguagem
está precisamente na articulação entre linguagem, arte e história patente nesses textos da
juventude de Walter Benjamin. Ensaios como “Dois poemas de Friedrich Hölderlin” (1915) e “O
idiota de Dostoiéski” (1917), dedicados ao estudo de obras literárias específicas, e “Sobre a
pintura ou Signo e mancha” (1917), ou “Destino e caráter” (1919), o primeiro de visível natureza
estética, o segundo de caráter fronteiriço entre literatura e filosofia, demonstram a diversidade
de interesses que o jovem Benjamin já possuía e que se consolidaria como uma das
características mais marcantes do seu pensamento. Contudo, é válida a afirmação do caráter
fragmentário e multifacetado da filosofia benjaminiana, não menos válida é a afirmação de que
todos esses fragmentos, ou “cacos”, gravitam em torno do núcleo essencialmente filosófico
presente nos ensaios “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem” (1916) e “A
tarefa do tradutor” (1921).

Esses dois textos têm o mérito de expor uma faceta metafísica do pensamento benjaminiano,
que toma a linguagem como meio (Medium) de reflexão. Enquanto Medium, a linguagem se
constitui em matéria, ambiente e modo de comunicação que refuta não só a relação
instrumental com vista a um fim exterior mas também a necessidade de mediação que o
conceito de Mittel – um “meio para determinado fim” – necessariamente implica. Na sua
apresentação, Gagnebin aponta para o fato de que, embora “muitas vezes julgada supérflua ou
tratada como um erro de juventude, essa dimensão metafísica (do pensamento benjaminiano
faz com que) se combinem fundamente (na reflexão desse filósofo) aspectos religiosos,
teológicos, estéticos e políticos” (p. 9). A autora ressalta também que essa dimensão metafísica
permeia o pensamento de Walter Benjamin e “está presente ainda em seu último escrito, as
teses ‘Sobre o conceito de história’, de 1940” (p. 9). Além do mais, é patente nos Escritos sobre
mito e linguagem a preocupação de Benjamin com a problemática do mito, que na verdade
“parece ser justamente a outra vertente de sua preocupação com a história (e que nas suas
reflexões posteriores) só tenderá a crescer, adotando feições mais nítidas e materialistas a partir
do fim dos anos vinte” (p. 9). Consequentemente, longe de ser apenas uma crítica de certo
momento que a humanidade possa viver ou ter vivido, a crítica do mito em Benjamin é a “crítica
de uma concepção de vida e de destino que sempre ameaça, sob formas diversas, as tentativas
humanas de agir histórica e livremente” (p. 9).
Ensaios como “Destino e caráter” (1919) e “Para uma crítica da violência” (“Zur Kritik der
Gewalt”) (1921), por mais especulativos que possam parecer em uma primeira leitura, esboçam,
na verdade, a “problemática ao mesmo tempo crítico-hermenêutica e política do ‘historiador
materialista’ (que o Benjamin das teses “Sobre o conceito de história” deixa entrever)” (p. 10).
De acordo com as notas de tradução de Ernani Chaves, Benjamin emprega o conceito de Kritik
em “Zur Kritik der Gewalt” no sentido kantiano de “delimitação dos limites”. Desse modo,
qualquer leitura pacifista desse ensaio é invalidada, haja vista que “Para uma crítica da violência”
é antes de mais nada uma tentativa de refletir sobre o “poder como-violência” do direito e do
Estado, em contraposição à “violência como-poder” da greve revolucionária. 257 estudos de
literatura brasileira contemporânea, n.40, jul./dez. 2012, p. 251-260 259 Resenhas 257 Dentre
os sete ensaios reunidos em Escritos sobre mito e linguagem, “Dois poemas de Friedrich
Hölderlin” (1915) e “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem” (1916) são os
que contribuem mais diretamente para o aprofundamento do estudo do conceito benjaminiano
de crítica literária, desenvolvido e levado a cabo em livros como O conceito de crítica de arte no
romantismo alemão e Ensaios reunidos: escritos sobre Goethe. Para Benjamin, o crítico deve
evidenciar a necessidade de existir da obra de arte, de modo a apreender o seu ideal a priori.
Esse ideal a priori, por sua vez, é para ele a lei fundamental do organismo artístico, que só pode
ser redimida pelo reconhecimento de uma unidade estética fundamental entre forma e matéria.
Dito de outro maneira, o crítico deve ter consciência de que não há forma separada de teor
(Gehalt), termo fundamental na reflexão estética benjaminiana porque anula a oposição estéril
entre “conteúdo” e “forma”.

Nota-se assim que a consciência de que a forma nunca é sem teor surge de um desdobramento
da filosofia da linguagem desenvolvida por Benjamin, o que por sua vez atesta a importância da
reflexão sobre a linguagem para a reflexão estética benjaminiana. Para ele, “a língua de uma
essência espiritual é imediatamente aquilo que nela é comunicável (o que significa que) toda
língua se comunica em si mesma (e é) no sentido mais puro, o meio (Medium) da comunicação”
(p. 54). É a partir dessa abordagem fi losófi ca da linguagem que Benjamin desenvolve o conceito
de “poetificado” (“das Gedichtete”) no ensaio sobre Hölderlin, para designar justamente a
condição a priori do poema, ou seja, aquilo que, em certa medida, “preexiste a ele e nele se
realiza” (p. 48). Para ele, o “poetificado” revela-se como “passagem da unidade funcional da
vida para a do poema (de sorte que no) ‘poetificado’, a vida se determina através do poema; a
tarefa, através da solução” (p. 16).

Dessa maneira, percebe-se que as realizações mais frágeis da arte são precisamente “aquelas
que se referem ao sentimento imediato da vida, ao passo que as mais poderosas, de acordo com
sua verdade, referem-se a uma esfera aparentada ao mítico (a saber) o ‘poetificado’ (que por
sua vez oferece a possibilidade de) julgar a poesia conforme o grau de coesão e grandeza de
seus elementos” (p. 17). O “poetificado” se mostra assim como “a condição do poema, como
sua forma interna, como tarefa artística” (p. 17), e compete a ele a comprovação da “intensidade
do vínculo entre os elementos intuitivos e intelectuais, e isso, em primeiro lugar, em exemplos
singulares”. Justamente nessa comprovação, diz ele, “tem de estar evidente que não importam
os elementos, mas sim as relações, uma vez que o próprio ‘poetificado ’é uma esfera da relação
entre obra de arte e 260 estudos de literatura brasileira contemporânea, n.40, jul./dez. 2012, p.
251-260 Resenhas 257 vida, cujas unidades em si mesmas não são inteiramente apreensíveis”
(p. 17). A distinção decisiva entre o “das Gedichtete” benjaminiano e o esquema forma-matéria
reside no fato de o primeiro ser capaz de “conservar em si a unidade estética fundamental de
forma e matéria e, ao invés de separá-las, (cunhar) sua ligação necessária, imanente, (sendo ele
mesmo) construído segundo a lei fundamental do organismo artístico (e que se distingue do
poema) enquanto conceito-limite, enquanto conceito de princípio” (p. 15).

Os Escritos sobre mito e linguagem, quando contrastados com os demais textos de e sobre
Walter Benjamin publicados no Brasil até então, abrem espaço para uma percepção bastante
privilegiada do modo como a filosofia benjaminiana se constrói a partir da articulação de
elementos aparentemente díspares e inconciliáveis, tais como materialismo e messianismo,
mito e história, estética e reprodutibilidade técnica.

Os ensaios reunidos nesse volume mostram de maneira bastante sofisticada que, longe de ser
contraditória ou meramente especulativa, a articulação de conceitos materialistas com a
herança espiritual do messianismo feita por Benjamin, responsável por uma refutação poderosa
do historicismo e da crença irrefletida na técnica e no progresso, é atravessada por uma
concepção de linguagem como Medium no qual sua essência espiritual, e também a essência
espiritual das coisas, se comunica. Os ensaios do “jovem” Benjamin que o livro em questão
apresenta são, em última análise, textos fundamentais para compreender a organização
sistemática de uma filosofia que num primeiro momento ou numa primeira leitura se apresenta
elíptica, fragmentária e, por vezes, mesmo caótica.

Os cinco paradoxos da modernidade

A “tradição moderna” de que fala Antoine Compagnon seria absurda, pois seria uma tradição
feita de rupturas: na medida em que cada geração rompe com o passado, a ruptura em si torna-
se tradição. O autor inicia sua análise a partir de uma citação de Octavio Paz, segundo quem a
“tradição moderna” é uma aporia, um impasse lógico, uma tradição voltada contra si mesma,
que ao mesmo tempo afirma e nega a arte, que decreta, simultaneamente, sua vida e sua morte.
A tradição moderna seria então tradição da negação, consequência do reconhecimento do novo
como valor.

A “crônica intermitente” da tradição moderna passa pelo que Compagnon aponta como os cinco
paradoxos da modernidade: a superstição do novo; a religião do futuro; a mania teórica; o apelo
à cultura de massa; por fim, a paixão da negação. A cada um desses paradoxos da estética do
novo corresponderia, respectivamente, um momento de crise da dita tradição: 1863, ano em
que Manet pintou os quadros “Almoço na relva” [Déjeneur sur l’Herbe] e “Olympia” – momento
que Compagnon também data simplesmente como contemporâneo de Baudelaire; 1913, com
as colagens de Picasso e Braque, os caligramas de Apollinaire, os ready-made de Duchamp, os
primeiros quadros abstratos de Kandinsky e A la recherche du temps perdu de Proust; 1924,
data do primeiro Manifesto do Surrealismo, corresponderia à mania teórica; da guerra fria a
1968, corresponde ao apelo à cultura de massa e da relação da arte com o mercado através da
pop art e da atuação de artistas como Andy Warhol, Jasper Jones, Rauschenberg; a quinta crise,
correspondente ao quinto paradoxo, seria datada a partir dos anos 80, em que a consciência do
moderno teria se tornado mais aguda, chegando aos questionamentos sobre a pós-
modernidade.

Desenvolvendo e articulando questões postas pelas análises da modernidade de Hegel – o fim


da arte –, Nietzsche – o eterno retorno – e Walter Benjamin – a história dos restos da história e
o reconhecimento de Baudelaire como marco histórico de ruptura, para quem o novo é
desesperado pois arrancado do desastre de amanhã –, Compagnon constrói um interessante e
pertinente raciocínio filosófico e literário, pautado por reflexões sobre a história e a arte. Sua
perspectiva estética, baudelaireana, desenrola-se sobre a compreensão de uma dialética da
consciência do moderno e sua falência ou recusa. Assim, compreende a própria arte como
testemunho da ilusão do moderno, capaz de esvaziar a noção temporal de progresso e assim
abrir a história para um vazio.

OS CINCO PARADOXOS DA Modernidade cinco paradoxos da modernidade, de Antoine


Compagnon. A reflexão interdisciplinar promovida por essa obra aponta a Modernidade como
o espaço de quatro paradoxos fundamentais: 1) culto melancólico do sempre novo - fato que
desencadeia um processo incessante de produção de ruínas, conforme foi apontado por
Baudelaire; 2) posicionamento das vanguardas estéticas no sentido de transformar o futuro em
objeto de veneração e ao mesmo tempo desenvolver narrativas ortodoxas; 3) manutenção da
crítica e da auto-crítica como fundamento da arte moderna, embora tais práticas nunca tenham
produzido a arte canonizada pela própria Modernidade; 4) distanciamernto cada vez maior
entre arte de massa e arte de elite, apesar da crítica aos conceitos de obra original e artista-
gênio. A mesclagem dessas contradições resulta, atualmente, no beco sem saída do quinto
paradoxo: a ruptura da arte com o moderno resulta no paradoxo de se manter a tradição
moderna da ruptura. Indispensável para todos aqueles que pretendem compreender a
produção artística e cultural do final do século XX , a obra de Compagnon constitui um minucioso
levantamento dos impasses a que levaram, nos tempos modernos, as relações entre arte e
teoria crítica, cultura de massa e de elite, novidade e antiguidade.

A partilha do sensível

A partilha do sensível: obra recente do filósofo francês Jacques Rancière.1 Comum a


interpretação menos ressentida e ainda assim lúcida e viável, Rancière, sem perder de vista o
horizonte histórico das grandes desilusões modernas, revê com novos olhos os fundamentos
críticos das relações possíveis entre estética e política. Nesse sentido, por exemplo, ao pensar a
contemporaneidade, o autor aposta que não é preciso compreender a estética sob o viés da
cooptação de formadora – como simples registro de “uma captura perversa da política por uma
vontade de arte” (p. 16).

Em pólo oposto, aliás, e sem margear essa leitura imobilizadora, Rancière nota que é preciso ter
em conta que há já na base da política uma estética primeira, ou seja, um modo de, ao mesmo
tempo, dividir e compartilhar a experiência sensível comum. Para o autor, essa estética primeira
– a “partilha do sensível” – é uma espécie de forma a priori da subjetividade política, uma
distribuição conturbada de lugares e ocupações, um modo negociado de visibilidade que “faz
ver quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em
que essa atividade se exerce” (p. 16).

Além disso, é preciso dizer, Rancière tende a ver as próprias práticas artísticas como formas
modelares de ação e distribuição do comum, uma vez que, segundo ele, elas são “ ‘maneiras de
fazer’ que intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas relações com maneiras de
ser e formas de visibilidade” (p. 17). Dito de outro modo – e esse é o leitmotiv do livro –, Partilha
do sensível é uma defesa consistente do poder de exemplaridade política que as práticas
artísticas modernas têm tanto sobre as demais práticas quanto sobre os discursos históricos em
geral. A obra inicia com um prólogo e distribui-se depois em cinco pequenos capítulos, cada um
escrito em resposta a perguntas elaboradas pelos filósofos Muriel Combes e Bernard Aspe.

No Prólogo, logo de saída, Rancière constata que os grandes temas da espetacularização da


cultura, de um lado, e das mortes da arte e da imagem, de outro, “são indicações suficientes de
que, hoje em dia, é no terreno estético que prossegue uma batalha ontem centrada nas
promessas da emancipação e nas ilusões e desilusões da história” (p. 11-12). Desse modo, se o
campo das práticas artísticas modernas tem, como se disse, atuação modelar em relação aos
outros campos de atuação, é no território dos discursos que o pensamento político-utópico dos
anos 1960 se metamorfoseia em “pensamento nostálgico” das vanguardas (p. 12).No primeiro
capítulo – Da partilha do sensível e das relações que estabelece entre política e estética – o autor
inicialmente procura definir o conceito de “partilha do sensível” como o “sistema de evidências
sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência do comum e dos recortes que nele definem
lugares e partes respectivas.

Uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes
exclusivas” (p.15). Como se vê, “partilha” implica aqui tanto um “comum” (a cultura, os direitos
civis, a liberdade) quanto um “lugar de disputas” por esse comum –mas de disputas que,
baseadas na diversidade das atividades humanas, definem “competências ou incompetências”
para a partilha (p. 16).Ainda no primeiro capítulo, partindo de uma análise da condenação
platônica aos poetas, Rancière desenvolve uma densa tipologia estética das práticas artísticas
na história, um quadro inteligente embora infelizmente fluido e fugidio de suas partilhas.
Basicamente, a riqueza dessa taxonomia, afora a fertilidade evidente de sua profusão de ideias,
reside em deixar às claras uma contradição inerente às artes tradicional e moderna. Para tanto,
primeiro o autor reconhece três formas de partilha nas artes: uma ligada ao registro escrito ou
pintado, e outras duas ligadas ao “vivo”, ou seja, ao performático da ação e da palavra oralizada.
E só depois de cruzar tais partilhas com uma análise das artes na história é que Rancière deixa à
vista a contradição mencionada: se do ponto de vista da estética, a arte tradicional está próxima
à “vida” – pois a tematiza hierarquicamente –enquanto a arte moderna está dela afastada, já do
ponto de vista da política, todavia, a arte tradicional curiosamente afasta-se da “vida” – pois se
apresenta como um trabalho extraordinário frente ao ordinário dos demais trabalhos – na exata
mesma medida em que a arte moderna, agora um trabalho banal, dela se aproxima.

O capítulo seguinte – Dos regimes da arte e do pouco interesse da noção de modernidade – tem
início com a apresentação daqueles que seriam os três grandes regimes de identificação da arte
(o “regime ético das imagens”, o “regime poético” e o “regime estético das artes”), segue depois
com a análise dos dois principais discursos sobre a modernidade estética e termina com breves
apontamentos sobre a polêmica noção de vanguarda. Entre tantas questões, merece destaque
a lucidez da interpretação histórica que aqui Rancière faz da arte moderna – ou do “regime
estético das artes”(p. 34), como ele prefere.

Nesse ponto também, novamente, o mérito do autor reside em pôr a nu contradições


comumente veladas. A primeira delas toca nas condições sociais das revoluções modernas e
evidencia o contexto responsável pelo grande mito modernista da originalidade (para relembrar
Rosalind Krauss). Com a presteza habitual, o autor relativiza a potência revolucionária das
vanguardas ao lembrar que, na arte moderna, tanto as “formas de ruptura” quanto os “gestos
iconoclastas” são autorizados por uma conjuntura histórica determinada embora nem sempre
considerada, a saber “a reprodução generalizada, a interpretação, a história, o museu, o
patrimônio” (p. 37).Outra conclusão coerente, talvez a principal do capítulo, consiste na
verbalização do óbvio de que os dois principais discursos sobre a modernidade – o da autonomia
da arte e o de sua rejeição – fazem parte exatamente do mesmo processo histórico: são versos
da mesma moeda. E Rancière, aqui, tem absoluta razão. Se o discurso “formalista” para o qual“
cada arte afirmaria então a pura potência de arte explorando os poderes próprios do seu
medium específico” (p. 38) é sempre uma redução da noção de modernidade, o mesmo vale
para o discurso “modernitarista”, seu oposto, igualmente sectário em sua diluição utópica e
obsessiva da arte na vida .O terceiro capítulo – Das artes mecânicas e da promoção estética dos
anônimos – nasce alargando ainda mais a fortuna crítica já extensa do clássico texto “A obra de
arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, de Walter Benjamin. A ideia aqui é simples,
coerente e busca apoio na inversão de certos termos da equação benjaminiana – muito embora,
e que se diga logo, Jacques Rancière visivelmente possua pouca afinidade com a obra do filósofo
alemão. Segundo o primeiro, Benjamin teria afirmado que, na modernidade, as massas
adquirem visibilidade graças à aparição das chamadas artes mecânicas – respectivamente a
fotografia e o cinema. Entretanto, Rancière não só discorda dessa relação de causa e efeito como
é categórico ao afirmar que, nesse ponto, “é preciso que se tome as coisas ao inverso” (p. 46).

Daí por diante, não obstante as premissas não sejam incontestáveis, sua argumentação tem
notável poder de sedução. Primeiro, segundo o autor, é preciso que o anônimo, o banal, e por
extensão as massas se tornem objeto da arte e da literatura modernas para ganharem
visibilidade efetiva. Depois, e só depois, quando a fotografia já passa a registrar a vida ordinária,
é por essa porta que ela, a fotografia, entra no mundo da arte, e não o inverso. E Rancière vai
ainda mais longe quando afirma que não só as artes mecânicas se tornam “artes” graças ao
realismo moderno, como inclusive o próprio conhecimento histórico se abre ao anônimo e às
massas em função da “mesma lógica da revolução estética” (p. 49).

Assim, se a arte moderna autoriza e de algum modo torna visível a representação da vida
comum, e se a vertente utópica das vanguardas chega inclusive a sustentar que a partilha
democrática do sensível cabe ao mais anônimo dos atores sociais, não espanta que no quarto
capítulo, intitulado Se é preciso concluir que a história é ficção: dos modos da ficção, a
modernidade seja vista como “uma época em que qualquer um é considerado como cooperando
com a tarefa de ‘fazer’ a história” (p. 59, grifos meus).A essa altura do texto, aliás, Rancière
sente-se à vontade para reabrir uma ferida muito cara aos historiadores: a relação entre história
e literatura –entre realidade e ficção – e a consequente “impossibilidade de uma racionalidade
da história e de sua ciência” (p. 54).

A argumentação é novamente simples e tem apoio conhecido: quando, em oposição à


condenação platônica das imagens poéticas como simulacro, Aristóteles sugere que a poesia é
superior à história na medida em que a primeira pode conferir “uma lógica causal a uma
ordenação de acontecimentos”, enquanto a segunda está condenada “a apresentar os
acontecimentos segundo a desordem empírica deles”, Rancière conclui que a separação entre
realidade e ficção implica a imponderabilidade mesma do processo histórico (p. 54).

Da arte e do trabalho: em que as práticas da arte constituem e não constituem uma exceção às
outras práticas, por fim, é o quinto e último capítulo. Nele, o autor tanto reitera e prolonga a
ideia de que a prática artística não é uma exceção às outras práticas quanto afirma que se a arte
é eventualmente uma atividade exclusiva, isso decorre, na modernidade, do fato de que ela
consiste num trabalho comum, e que como tal tem apenas as especificidades tecnológicas
características de qualquer “fazer”. A revolução artística moderna, assim, ao propor a partilha
democrática do sensível, “faz do trabalhador um ser duplo”, dando tempo ao artesão-artista de
estar em nítida oposição àquela proscrição platônica que, ao impossibilitar o trabalhador de
ocupar no tempo outro lugar que não o do seu espaço doméstico de trabalho, impede-o, por
consequência, de partilhar o legado comum da esfera pública.

Deste modo, e para finalizar, creio que esteja aí, afinal, a tônica ou no mínimo a linha de força
que atravessa todo o livro de Jacques Rancière: a curiosa crença de que o sensível somente se
deixe partilhar naquele instante – ele próprio utópico, talvez – em que a oposição ainda sólida
entre “oculto estético da arte pela arte” e a “potência ascendente do trabalho operário” (p. 68)
perca força e, finalmente, se esvaeça.
Adorno notas de literatura

"O ensaio como forma", de Theodor W. Adorno

No ensaio, as satisfações que a retórica quer proporcionar ao ouvinte são sublimadas na ideia
de uma felicidade da liberdade face ao objeto, liberdade que dá ao objeto a chance de ser mais
ele mesmo do que se fosse inserido impiedosamente na ordem das ideias (p.41).

O ensaio “não admite que seu âmbito de competência lhe seja prescrito” (p.16), ele trata do que
deseja falar “diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim” (p.17),
vai se aproximar da arte por conta da autonomia estética, e se afasta da mesma por conta da
“pretensão à verdade desprovida de aparência estética” (p.18).

Contudo, o ensaio provoca resistência em ser aceito pela academia como parte dela, forma de
natureza científica, pois evoca uma certa liberdade de espírito por não se ater aos métodos
prescritos. É desenvolvida a partir dos impulsos psicológicos individuais do autor (p.17).

Se o ensaio se recusa a deduzir previamente as configurações culturais a partir de algo que lhes
é subjacente, acaba se enredando com enorme zelo nos empreendimentos culturais que
promovem as celebridades, o sucesso e o prestígio de produtos adaptados ao mercado (p.19).

E se tornando um produto, acaba por contradizer as reflexões da academia. É posto, pela ciência,
como objeto de uma ocupação de segunda ordem (p.44).

A “dúvida quanto ao direito incondicional do método foi levantada quase tão-somente


pelo ensaio” (p.25). Ele não almeja uma construção fechada, dedutiva ou indutiva e não se
intimida pelo “depravado pensamento profundo, que contrapõe verdade e história como
opostos irreconciliáveis” (p.26). O ensaio quer eternizar o transitório (p.27), é mais dinâmico do
que o pensamento tradicional, “quer desencavar, com os conceitos, aquilo que não cabe em
conceitos” (p.44).

O ensaio é mais aberto do que o pensamento tradicional, na medida em que nega qualquer
sistemática, mas por outro lado é mais fechado pois trabalha enfaticamente na forma da
exposição e é aí que ele é semelhante à arte, mas no resto, ele necessariamente se aproxima da
teoria, em razão dos conceitos que nele aparecem, trazendo de fora não só seus significados,
mas também seus referenciais teóricos (p.37).

A maioria dos textos que compõem a coletânea intitulada Notas de Literatura, do filósofo
alemão Theodor W. Adorno faz parte de uma produção que extrapola os âmbitos acadêmicos.
Nela figuram palestras radiofônicas e vários textos anteriormente publicados em revistas.
Contudo, “O ensaio como forma” foi escrito especialmente para o primeiro volume de Notas de
Literatura e é, por assim dizer, um de seus mais afamados ensaios. Ao que pese a defesa da
forma ensaística como expressão de um modelo teórico especialmente envolvido com o objeto
a ponto de destacar as singularidades deste, o ensaio é pensado como produção teórica: talvez
a que mais se aproxime da singularidade da produção literária, sem confundir-se com ela.
Destaca-se, assim no texto que segue, o caráter eminentemente conceitual do ensaio – o qual
não se fecha sob um método pré-estabelecido nem abandona o proceder metodológico – e sua
tentativa de falar sobre aquilo que, segundo Wittgenstein, se deveria calar.
A maioria dos ensaios que compõem Notas de literatura já havia sido publicada esparsamente
em revistas ou pronunciados em forma de conferência radiofônica; mas seu texto de abertura,
“O ensaio como forma”, era ainda inédito. Talvez seja possível pensá-lo como uma espécie de
prólogo, uma síntese do método que perpassa os demais textos; não fosse a ideia de síntese
incabível para um pensamento que, em seu método, quer abarcar ao mesmo tempo a
singularidade do objeto. Todavia, a leitura que segue pretende seguir a hipótese que há nos
escritos de Adorno certa “qualidade ensaística” que, enquanto forma, é a expressão de uma
leitura imanente que se propõe a proceder metodologicamente na abordagem do objeto, mas
sem coagular-se em “método autocrático”.

Antes de entrar nos meandros do ensaio, convém ressaltar que a situação de mal-estar causada
pela dificuldade em designar um lugar seguro para o ensaio, entre as produções teóricas e/ou
literárias, já não é mais tão evidente como o era em 1958. Sua aceitabilidade nos meios
acadêmicos é notória. Porém, se procurarmos por trabalhos que abordem metodologicamente
o ensaio, sobretudo na tentativa de pensar qual é afinal sua particularidade em relação às
demais produções acadêmicas, facilmente nos depararemos com posições distintas: por um
lado, a ausência3 de abordagens que tratem do gênero ensaio; por outro lado, a impressão de
que não há mais nada o que dizer sobre o ensaio, seu lugar “evidente” seria o intermezzo4 entre
o literário e o estritamente teórico. A situação confortável de hoje demanda que se reitere, ante
qualquer definição, que: “O ensaio, porém, não admite que seu âmbito de competência lhe seja
prescrito” (ADORNO, 2009, p. 16). Sendo assim, não se esquadrinhará qualquer classificação
acerca do ensaio, procurar-se-á antes compreender as condições de possibilidade do ensaio
enquanto produção teórica.

No ensaio “Sobre a ingenuidade épica”, Adorno menciona a ambiguidade entre o narrador e o


modelo de consciência do mundo administrado, de modo que “o discurso racional e
comunicativo do narrador, com sua lógica que subsume e torna semelhante tudo o que é
relatado, agarra-se ao mito em busca de algo concreto e ainda distinto da ordem niveladora do
sistema conceitual” (ADORNO,2008, p. 48). O mito não é, tomado desta forma, exatamente o
oposto da racionalidade: tal qual o modelo de razão autocrática, o mito é comportamento
coagulado. De modo que, se o mito parte da mesma natureza do modelo racional responsável
pelo mundo administrado, o narrador vive no limiar entre a fusão total ao mito e a singularidade
necessária para tornar a narrativa digna de ser contada. Mas o esfacelamento da experiência,
“enquanto vida articulada e em si mesma contínua” (ADORNO, 2008, p. 56), dilacerada pela
experiência da guerra e reduzida à mesmice pela sociedade administrada, já não permite o limiar
entre o singular e o universal.

Das regras cartesianas contestadas no “ensaio como forma”, talvez a que mais se ressalte a
necessidade do ensaio é a quarta regra com sua imperiosa exigência de que o pensamento
pudesse fazer uma revisão tão completa que nada omitisse. Contra essa regra, Adorno dirá que
“a revisão geral só seria possível se fosse estabelecido de antemão que o objeto a ser examinado
é capaz de se entregar sem reservas ao exame dos conceitos, sem deixar nenhum resto que não
possa ser antecipado a partir desses conceitos” (ADORNO, 2003, p. 34). Contestável é o
pressuposto segundo o qual o pensamento possui um curso lógico que corresponde ao curso da
própria natureza ou, mesmo para o empirismo, possa organizar a Graphos. João Pessoa, Vol
13, N. 1, Jun./2011 – ISSN 1516-1536 97 natureza de acordo com aquilo que toma por axioma.
A palavra “tentativa” [Versuch] designa, nesse caso, não uma intenção programada, mas “sim
uma característica da intenção tateante” (ADORNO, 2003, p. 35). A objeção de que o

ensaio poderia “tatear” indefinidamente é, segundo Adorno, tanto verdadeira


quanto falsa: é verdadeira porque “de fato, o ensaio não chega a nenhuma conclusão”
(ADORNO, 2003, p. 37); falsa porque o tatear do ensaio não é indefinido, pois o que “determina
o ensaio é a unidade do objeto, junto com a unidade de teoria e experiência que o objeto acolhe”
(ADORNO, 2003, p. 37). Daí resulta, ao mesmo tempo, a consciência da não-identidade, que
acompanha o ensaio desde sempre, e seu esforço ilimitado de exposição que só encontraria sua
conclusão se fosse realmente possível a unidade entre conceito e objeto. Assim “o ensaio toca
seu extremo, a filosofia do saber absoluto” (ADORNO, 2003, p. 38). Isso ocorre porque o ímpeto
do ensaio é, no fundo, o mesmo dos sistemas filosóficos: ele só se daria por satisfeito quando
abarcasse a totalidade do saber. Mas diferentemente daqueles, o ensaio “gostaria de poder
curar o pensamento de sua arbitrariedade, ao incorporá-lo de modo reflexionante ao próprio
procedimento, em vez de mascará-la como imediatidade” (ADORNO, 2003, p. 39). A dialética do
ensaio possui um aspecto – talvez exatamente aquilo que se denominou “qualidade ensaística”
– que, segundo Adorno, ultrapassa a própria dialética: nele “a pretensão da singularidade à
verdade deve, antes, ser tomada literalmente, até que sua inverdade torne-se evidente”
(ADORNO, 2003, p. 39). Na radicalização da singularidade da verdade, mesmo na sua
capitulação, o ensaio acaba por negar radicalmente o mito, isto é, o falso nexo conceito e objeto.
Para tanto a teoria teria de, sem abandonar o caráter conceitual, ultrapassar o mero conceito e
falar sobre aquilo que escapa às possibilidades do domínio conceitual.

Não se trata apenas de perceber, no levantamento destes paradoxos, quão liquidada se


encontra a teoria; mas a tentativa de superar a perspectiva de que, em decorrência dessa
liquidação, “Nenhuma teoria escapa mais ao mercado: cada uma é oferecida como possível
dentre as opiniões concorrentes, tudo pode ser absorvido, tudo é escolhido” (ADORNO, 2009,
p. 12). Assim, a teoria tem de lidar com uma sociedade que, ao mesmo tempo, realiza e falseia
o conceito de universalidade: talvez a mais cara ideia da filosofia. Tal ambiguidade foi
concretizada no momento em que o capitalismo tornou possível “a identidade por meio da
troca” (ADORNO, 2009, p. 17), porém a razão pela qual a troca se tornou o denominador comum
da sociedade permanece incógnita, de forma que a universalidade estabelecida é tanto
verdadeira quanto não-verdadeira: verdadeira, porque forma aquele ‘éter’ que Hegel chama de
espírito; não verdadeira, porque sua razão ainda não é razão alguma, a sua universalidade é o
produto de uma universalidade particular (ADORNO, 2009, p. 17). À falsidade do sistema de
trocas, assim também sua realidade totalizante, a teoria não se opõe sem ter em vista a
pretensão de universalidade de seu aparato conceitual. Como na metáfora do viajante, que em
terra estrangeira aprende o novo idioma a partir de seu uso, ao utilizar de conceitos o ensaio os
experimenta: no ensaio nenhum conceito é sólido o suficiente para ser imediatamente aplicado
e nenhum objeto tão evidente que não mereça ser interpretado. Mas a ingenuidade épica não
é apenas uma mentira, destinada a manter a mentalidade geral afastada da intuição cega do
particular. Por ser um empreendimento antimitológico, ela se destaca no esforço iluminista e
positivista de aderir fielmente e sem distorção àquilo que uma vez aconteceu, exatamente do
jeito como aconteceu, quebrando assim o feitiço exercido pelo acontecido, o mito em seu
sentido próprio. Ao apegar-se, em sua limitação, ao que aconteceu apenas uma vez, o mito
adquire um traço característico que transcende essa limitação. Pois o acontecimento singular
não é simplesmente uma teimosa resistência contra a abrangente universalidade do
pensamento, mas também o mais íntimo anseio do pensamento, a forma lógica de uma
efetividade não mais cerceada pela dominação social e pelo pensamento classificador que nela
se baseia: a reconciliação do conceito com seu objeto. Na ingenuidade épica vive a crítica da
razão burguesa (Adorno, 2003, p. 49-50).

A ingenuidade épica, tomada pela razão esclarecida como um engodo


cuja finalidade seria privilegiar o particular em detrimento do geral, ameniza o mistério do mito
por torná-lo singular. Assim, não está ocupada em expor uma verdade universal, como ocorre
com a razão esclarecida, a qual, ao contrário do discurso épico, não pode sustentar sua
explicação do mundo sem o pressuposto de uma verdade universal que dê conta da totalidade.
Por isso a ingenuidade épica “quebra o feitiço exercido pelo acontecido”, feitiço que a razão
esclarecida procura manter ao promover a crença de que por meio dela o mundo pode deixar
de ser obscuro – esse é o traço mítico inerente à razão esclarecida identificado na Dialética do
esclarecimento e que denuncia a falência da noção de progresso. O acontecido, no discurso
épico, está circunscrito a um universo fictício limitado, se fixa em um objeto particular, e por
isso mesmo transcende essa limitação ao problematizar a lógica por meio da qual o acontecido
tem lugar no discurso racional. No discurso épico conceito e objeto se reconciliam por se
singularizarem, por não pretenderem a universalização. Assim é que a ingenuidade épica
promove a crítica à razão burguesa. Ela é, na verdade, o que a razão esclarecida gostaria de ou
deveria ser: objetividade que se furta à lógica classificatória. No particular, a ingenuidade épica
busca dar sentido; no universal, a razão esclarecida renuncia a ele.

A ingenuidade épica é, por assim dizer, uma máscara. Por meio dela, o discurso narrativo
“corrige a si mesmo”: “a precisão da linguagem descritiva busca compensar a inverdade de todo
discurso” (Adorno, 2003, p. 52). Consciente de que a vinculação entre conceito e objeto redunda
em manipulação conceitual, a ingenuidade com que o discurso épico transforma a linguagem na
própria coisa a ser enunciada mostra-se uma atitude reflexiva constituinte da própria linguagem,
o que significa que a ingenuidade trai a si mesma, no sentido de que se revela um produto da
reflexividade; portanto, não ingênua. Vincular conceito e objeto é, segundo Adorno (2003, p.
51), “a tentativa já desesperada da linguagem, quando leva ao extremo sua vontade de
determinação, de se curar da manipulação conceitual dos objetos, o negativo de sua
intencionalidade, deixando aflorar a realidade de forma pura, não perturbada pela violência da
ordem classificatória”. A linguagem denuncia a impossibilidade de vinculação entre conceito e
objeto, mas na epopeia procura alcançá-la através da ingenuidade épica ao fazer com que a
descrição se transforme na própria coisa descrita.

A proximidade entre conceito e objeto na epopeia transforma-se em imagem. A linguagem,


enquanto nexo lógico entre as coisas, perde força. Da Odisseia, Adorno (2003, p. 51-53) cita para
exemplificar a força da imagem sobre a linguagem uma passagem em que a expressão conectiva
“a saber” nada expressa em relação às idéias entre as quais aparece, ou ainda um trecho de
Hölderlin em que o “ou” não conecta idéias alternativas. Com isso, Adorno quer assinalar que o
discurso homérico dissolve o “nexo entre as coisas” (2003, p. 53). Assim, a imagem ganha
autonomia, pois se liberta do juízo promovido pela lógica da linguagem. A imagem subsume
conceito e objeto. E por meio da imagem o particular torna-se universal.

“O narrador se caracteriza por um paradoxo: não se pode mais narrar, embora a forma do
romance exija a narração.” Esta é a frase com a qual Adorno inicia o seu texto. Ela faz citação
direta ao pensamento de W. Benjamim, em o Narrador, para quem o narrador tradicional está
em vias de extinção justamente por que o mundo contemporâneo, industrializado e
individualista, não crê mais nos contos de fadas, nos mitos como antes se cria. Na Antiguidade
e Idade Média, a crença no mito dava ao narrador um status de autoridade para que ele pudesse
narrar suas lendas e sagas de forma mágica, porém crível.
Entretanto, com o advento da máquina a vapor, o homem passou cada vez mais a ser relativista,
cético e individualista, o que o levou a ver no mito apenas histórias da “carochinha”, histórias
para fazer crianças dormir e nada mais. O narrador tradicional, então, perdeu seu posto para
um outro mais dinâmico e de acordo com as necessidades do homem contemporâneo: o
narrador de reportagens e o do romance. Este é extremamente individualista, fala de si sempre,
tenta entender o mundo a partir de sua perspectiva, e busca constantemente um fundamento
para a existência, um sentido para a vida.

Quantos poetas modernos e contemporâneos não buscaram a solução para a existência no


suicídio? E quantos o fizeram na Antiguidade e Idade Média? Os poetas destes últimos períodos
não narravam buscando o sentido da vida, mas buscavam a vida em si. Suas experiências não
eram pessimistas nem frustrantes, eram um cântico à luta pela vida, ao homem que crê
firmemente e nessa crença aprende com outros homens a como manter-se firme em suas
tradições.

A ciência moderna, e principalmente no Iluminismo, tornou cética grande parte da humanidade.


O ateísmo prevaleceu nos meios acadêmicos e intelectuais, tendo no materialismo a grande
fonte de inspiração. O crê em Deus, para muitos, virou coisa de gente “alienada” e sem
consciência de classe, pois como muitos dizem “a religião é o ópio do povo.” Mas o que é o
homem sem Deus?

Os poetas, distantes da crença pura e real em Deus, passaram a buscar por meio da razão um
consolo que só a fé pode dar. Ao perceberem o quanto todo o seu pensamento é vão, a
depressão e o pessimismo aparecem.

A ciência trouxe o progresso, mas levou a paz. As batalhas medievais eram constantes, e a guerra
contínua, mas quando estas cessavam, o homem encontrava-se em paz e no conforto de sua
família. Não se questionava atabalhoadamente: “De onde viemos, para onde vamos?”, pois não
precisavam de tais questionamentos: a única preocupação que tinham era a de conservar pura
e intacta a sua alma para poder alcançar o paraíso.

A ciência, ao contrário, além de aumentar a guerra, tirou do homem até mesmo esse consolo
espiritual e religioso. Deu mais sobrevida ao homem, mostrou-lhe coisas impensáveis, deu-lhe
status de semideus, mas ainda assim construiu armas poderosas e tanques de guerra que
destruíamem massa. Omercador marítimo foi substituído por grandes embarcações que
transportam toneladas e toneladas de produtos. O agricultor foi substituído pelo grande
produtor, o qual industrializou o campo e tornou este como se fosse uma fábrica capitalista. Não
há mais espaço para o diálogo, para a troca de experiências; nas grandes cidades, por exemplo,
extremamente povoadas, as pessoas se esbarram umas nas outras, mas não se comunicam. A
pressa é a grande conselheira.
Por tudo isso, o narrador tradicional calou-se. E o homem quando volta da guerra vem tão
humilhado e envergonhado que se cala também, mesmo por que suas histórias não teriam a
credibilidade que é dada à imprensa. É esta hoje a grande detentora do saber, não um saber que
leva ao conhecimento, mas a um saber que leva à mera informação. Quanto mais informados
estão os humanos, parece que menos sábios e éticos se tornam.

Como o homem não pode mais narrar as histórias mirabolantes, volta-se para dentro de si
mesmo e narra as suas próprias experiências. Fala de si mesmo. Mas busca um fundamento para
a vida, busca solucionar um problema insolúvel. Nessa linha, há a postura de alguns escritores
que acreditam ser a boa arte aquela que leva o leitor, o espectador à quebra conforto
existencial, a questionar-se sobre tudo, em suma, a angustiar-se. O papel que sempre foi da
Metafísica agora é a base da narrativa contemporânea.

Diante dessa situação, Adorno vai dizer que o romance é a forma de expressão típica desse vazio
existencial causado pela sociedade industrial. “Romance como forma literária específica da
burguesia;” romance que sempre trouxe em seu bojo um realismo e objetivismo inatos. A épica
antiga sempre foi objetiva; nunca tentou descrever ou relatar o lado subjetivo das personagens.
A aventura, a façanha e o mágico eram a intenção a alcançar. O romance também nasceu assim,
pois o seu realismo retrata as coisas com um tom de verossimilhança, verossimilhança esta
sempre desejada pela burguesia ascendente. Mesmo durante o Barroco e o Romantismo, nunca
o romance deixou de primar pela verossimilhança. Até mesmo em romances como as Viagens
de Gulliver, o primado do real está sob uma fina camada de alegórica realidade.

Entretanto, com o advento de alguns inventos, a máquina fotográfica, o cinema, por exemplo,
as artes em geral tiveram que fugir do realismo tradicional e criar uma nova linguagem. A
pintura, por exemplo, tornou-se mais abstrata e fugiu do realismo natural de outrora. As obras
dos Surrealistas são o exemplo mais acabado dessa abstração.

Com o romance não aconteceu o mesmo. Do ponto de vista do narrador, o romance não
conseguiu abandonar o realismo, apenas mudá-lo de foco: do objeto para o sujeito (subjetivismo
extremado). Influenciado por uma necessidade de conhecer o mundo inconsciente, os
romancistas embrenharam-se cada vez mais nesta realidade opaca e densa. Entretanto, sempre
tentando mostrar como essa outra realidade é. Para Adorno esse é o grande problema do
romance, pois este não consegue fugir ao seu destino, ou seja, precisa narrar, contar uma
história, e esta para ser uma história tem que ser verossímil. Daí a tentativa desesperada de
muitos romancistas do século XX de tentar descrever de forma fiel aquilo que se passava no
subconsciente das personagens. A posição do narrador é a de um semideus que tudo vê e
analisa. O narrador volta-se para dentro dos indivíduos e sonda-lhe as almas.

É por isso que as técnicas modernas têm que ser cada vez mais complexas para tentar revelar
esse mundo denso que é a psique humana. Técnicas como o fluxo de consciência e o monólogo
interior são criticadas por Adorno, pois no fundo tentam mostrar uma realidade impossível de
ser averiguada. Como conseqüência disso, muitos romancistas caem num intimismo que chega
a ser uma espécie de biografia. Esse tipo de literatura é considerada, por Adorno, algo sem muito
valor.

Vendo essa realidade, Adorno preconiza sobre o futuro do romance: “Se o romance quiser
permanecer fiel à sua herança realista e dizer como realmente as coisas são, então ele precisa
renunciar a um realismo que, na medida em que reproduz a fachada, apenas a auxilia na
produção do engodo.”

A ideologia da estética

Este livro pode ser melhor caracterizado como uma tentativa para encontrar na categoria da
estética um acesso a certas questões centrais do pensamento europeu moderno — iluminar, a
partir deste ângulo, um leque mais amplo de questões sociais, políticas e éticas.

A Estética nasceu como um discurso sobre o corpo. Em sua formulação original, pelo filósofo
alemão Alexander Baumgarten, o termo não se refere primeiramente à arte, mas, como o grego
aisthesis, a toda a região da percepcção e sensação humanas, em contraste com o domínio mais
rarefeito do pensamento conceitual. A distinção que o termo “estética” perfaz inicialmente,
emmeados do século XVIII, não é aquela entre “arte” e “vida”, mas entre o material e o imaterial:
entre coisas e pensamentos, sensações e ideias; entre o que está ligado a nossa vida como seres
criados opondo-se ao que leva uma espécie de existência sombria nos recessos da mente.

É como se a filosofia acordasse subitamente para o fato de que há um território denso e


crescendo para além de seus limites, e que ameaça fugir inteiramente à sua influência. Este
território é nada mais do que a totalidade da nossa vida sensível — o movimento de nossos
afetos e aversões, de como o mundo atinge o corpo em suas superfícies sensoriais, tudo aquilo
enfim que se enraíza no olhar e nas vísceras e tudo o que emerge de nossa mais banal inserção
biológica no mundo. A estética concerne a essa mais grosseira e palpável dimensão do humano
que a filosofia pós-cartesiana, por um curioso lapso de atenção, conseguiu, de alguma forma,
ignorar. Ela representa assim os primeiros tremores de um materialismo primitivo — de uma
longa e inarticulada rebelião do corpo contra a tirania do teórico.

Qualquer um que examine a História da Filosofia européia desde o Iluminismo será tocado pela
curiosa prioridade atribuída às questões estéticas. Para Kant, a estética guarda uma promessa
de conciliação entre a Natureza e a humanidade. Hegel dá à arte um estatuto menor no corpo
de seu sistema teórico, embora lhe dedique um tratado de exagerado tamanho. A estética, para
Kierkegaard, deve recuar diante das verdades mais elevadas da ética e da fé religiosa, mas não
deixa de ser uma preocupação recorrente em sua obra. Para Schopenhauer e Nietzsche, de
forma contrastante, a experiência estética representa a forma suprema do valor. As alusões
impressionantemente eruditas de Marx à literatura mundial combinam-se com a confissão
moderna

A ideologia da estética (1990) - que examina a constituição do estético na história do


pensamento ocidental, discutindo tanto as posições da tradição inglesa quanto da alemã, de
Kant a Adorno -, Eagleton não se exime da tarefa de publicar obras de caráter didático como
Marxism and literary criticism (1976), em que explica para não-iniciados os problemas centrais
de uma abordagem marxista da literatura, ou Teoria da literatura (1983), onde faz uma
apresentação crítica das principais correntes teóricas de nosso século. Fica evidente nas suas
exposições a diferença que faz uma abordagem da literatura marcada por uma visão histórica.
No confronto de teorias críticas que marcam o assim chamado pluralismo da produção teórica
contemporânea, a perspectiva marxista traz a vantagem adicional de iluminar as determinações
materiais das vogas crítico-literárias. Muitas adesões de primeira hora que infestam a produção
crítica brasileira, por exemplo, seriam evitadas se prestássemos alguma atenção à ironia
profilática de Eagleton. Mas ele sabe que o calibre de uma teoria se mede antes pelo seu valor
explanatório, e que sua contribuição para a tradição se dá na razão direta de 50 . TERRY
EAGLETON sua capacidade de a um só tempo conservar os achados do passado e superá-las
tomando efetiva sua atuação no presente. Grande leitor de Walter Benjamin - sobre quem
publicou em 1981 Walter Benjamin or towards a revolutionary criticism com o objetivo
declarado de livrá-Ia do perigo iminente de apropriação pelo establishment crítico -, Eagleton
enfatiza que uma de suas tarefas como crítico de cultura é "romper com o continuum da
História" e resgatar o passado, forjando novas conjunções entre nosso próprio momento e um
aspecto significativo do passado, conforme aprendeu nas "teses sobre o conceito de História".
Assim, além dos estudos "teóricos", ele recria para o presente alguns dos clássicos da literatura
inglesa por meio de instigantes releituras em obras como William Shakespeare (1986), em que
consegue ser original a respeito do mais explorado dos autores ingleses; Myths of power (1975),
um estudo perspicaz sobre as obras das irmãs Bronte; ou The rape of Clarissa (1982), de Samuel
Richardson, pioneiro do romance inglês descrito por Eagleton como um intelectual orgânico da
classe burguesa britânica do século XVIII. A relevância dessa produção, que aqui resumimos de
forma incompleta, atesta a vitalidade da tradição crítica marxista inglesa. Por certo pode-se
medir a distância que o separa de um Raymond Williams - que em The function of criticism
(1984) Eagleton considera o maior crítico britânico da cultura do pós-guerra - com a mesma
régua histórica que ambos manejam tão bem. Expressões de diferentes dominantes culturais,
Williams seria o crítico modernista enquanto Eagleton está imerso no pós-moderno. Disto
decorre muito de seu ar "eclético", de seus flertes com a psicanálise e o pós-estruturalismo ou
da facilidade com que ele "muda de faixa" entre Walter Benjamin e Althusser - seu Criticism and
ideology (1976) é marcado por um althusserianismo inflado do qual se penitencia mais adiante.
Seriam marcas de nossa era em que, segundo Eagleton, as teorias atingiram uma fase epidêmica.
Não estando seu trabalho teórico totalmente isento de alguns dos sintomas dessa epidemia, ele
nos oferece, entretanto, uma oportunidade de resgatar a substância e desconstruir um pouco o
estereótipo corrente do marxista "jurássico", que nossa era neutraliza como um sujeito mal
ajambrado, cujo arraigado espírito de contradição o leva a continuar insistindo teimosamente
em velhos dogmas - como o de que o capitalismo tem produzido mais concentração de renda
do que felicidade - quando todos os outros já saíram para se divertir no shopping center mais
próximo. Isso porque uma gratificação extra da leitura de sua obra é a comicidade. O leitor mais
idealista pode até se aborrecer com sua insistência em despir a cultura do glamour de repositária
de valores humanos eternos, mas poucos vão deixar de se divertir com a inventividade de
Eagleton. Ele é mestre nos achados irônicos e na construção de imagens reveladoras que
conquistam nossa cumplicidade pelo riso, nisso demonsCRÍTlCA MARXISTA . 51 trando ser um
continuador da tradição crítico-humorística inaugurada pelos autores da Sagrada Família. Ele é
capaz, por exemplo, de intitular um estudo certeiro dos limites da teoria de Jacques Derrida,
disponível em sua coletânea de artigos Against the grain (1986), citando, numa revelação
demolidora (a palavra de ordem não é desconstruir?), a canção infantil: "Frère Jacques e a
política da desconstrução", ou ainda de puxar uma nota de rodapé em seu livro sobre Richardson
em que explica a base material do ataque moralista de um contemporâneo (um certo Povey) ao
fogo da paixão que faz o sangue correr quente nas veias dos apaixonados, com a constatação
de que o tal cavalheiro trabalhava com seguros contra incêndios. Mas para quem se lembre de
que a ironia pressupõe um certo sentido arrogante de superioridade, vale ressaltar a
autoconsciência de Eagleton como expressa em uma conferência proferida nos Estados Unidos
e publicada em The significance of theory (1990): "É um erro imaginar que os teóricos
emancipatórios - os socialistas, feministas e outros - têm com suas crenças a mesma relação que
budistas e vegetarianos. Enquanto estes provavelmente querem continuar fiéis a suas crenças a
vida inteira, os primeiros querem se livrar delas o mais rápido possível. Seu objetivo é contribuir
para a realização das condições materiais nas quais suas teorias não seriam mais essenciais ou
até, após um certo tempo, sequer inteligíveis. Se ainda houver radicais daqui a cinqüenta anos,
isso será muito triste. Em uma sociedade justa não haverá necessidade de teóricos radicais (...)"
Enquanto esse tempo não vem, vale a pena procurar entender algumas das razões do atraso
lendo Terry Eagleton.

Paris capital do século XIX é um livro incompleto, uma obra inacabada1. Folheando este
conjunto de anotações dispersas e de citações múltiplas, o leitor, auxiliado pelo esforço de
montagem dos organizadores, consegue talvez ter uma idéia do esquema de redação do autor,
no entanto, a visão que se tem da totalidade do texto é sempre incerta, imprecisa. A margem
para dúvidas e interpretações é grande, de uma certa maneira pode-se sempre indagar em que
medida Benjamin nos autorizaria, ou não, esta ou aquela inferência. A fragmentação da escrita,
as repetições, a superposição de temas, nos encerram na incompletude da obra, deixando uma
sensação de arbitrariedade que o trabalho criterioso e diligente dos editores não consegue
dirimir. Minha intenção não é porém fazer uma análise integral e rigorosa do livro, se é que
podemos chamá-lo assim. Dele sublinho alguns aspectos que me permitem retomar questões
que já havia anteriormente abordado em meus estudos sobre a França no século XIX (cf. Ortiz,
1991). Interessa-me perceber como Benjamin compreende as transformações que ocorrem
durante este período e em que medida o processo de racionalização da sociedade (para
falarmos como Weber) incide sobre o próprio pensamento que se debruça para compreendê-
la.

Cabe porém, antes de enfocar a temática que escolhi, situar as intenções do autor. Em 1927,
fruto de uma breve estadia em Paris, Walter Benjamin escreve em co-autoria com Franz Hessel
um curto artigo sobre As Passagens. O texto, que não foi publicado na época, demonstra sua
curiosidade por este novo tipo de arquitetura urbana; entre 1927 e 1929, convencido da
importância do tema, ele se dedica a desenvolver uma proposta que denominou de As
Passagens de Paris: uma féerie dialética. O encontro com Adorno em 1929 irá alargar seu
horizonte de trabalho, o projeto se expande e torna-se mais ambicioso. Rolf Tiedmann,
organizador da edição original em alemão (Das Passagen-Werk), considera que a presença de
Adorno e Horkheimer foi determinante, são eles que levam Benjamin a se aproximar dos escritos
de Marx (cf. Tiedmann, 1989). Isso terá uma influência decisiva na reelaboração do esboço
inicial; primeiro, surgem novos temas: hausmannização, combate de barricadas, ferrovias, bolsa
de valores, história econômica, além das secções dedicadas a Marx, Saint-Simon e Fourier.
Segundo, no próprio tratamento da problemática em curso. O conceito de fantasmagoria,
amplamente utilizado por Benjamin, deriva de sua leitura do caráter fetichista da mercadoria.
Entretanto, apesar da abertura de novos horizontes, devido a problemas pessoais e políticos,
entre 1931 e 1934 o projeto se desacelera, é somente quando Benjamin se exila em Paris que o
ritmo de trabalho se intensifica. Ele tem agora à sua disposição o rico material bibliográfico da
Bibliotèque Nationale. Em 1935 há uma mudança de rumo. A proposta já não mais se intitula As
Passagens mas Paris capital do século XIX. Em uma carta a Scholen, Benjamin justifica a mudança
do título ponderando que, analogamente a seu estudo sobre o barroco, no qual tinha
desenvolvido seu pensamento sobre o século XVII a partir da Alemanha, ele gostaria de
compreender o XIX a partir da França2. O esclarecimento merece uma atenção especial pois nos
remete ao conceito de alegoria. Sabemos que a alegoria é uma figura de linguagem na qual diz-
se uma coisa para significar outra. Esta técnica é muito utilizada por Benjamin quando escreve
Origem do drama barroco alemão. Mas qual seria esta outra coisa significada através do
barroco? Em seus comentários à obra benjaminiana Sérgio Paulo Rouanet responde: em
essência, a alegoria barroca remete a uma coisa última, referente unitário que engloba todas as
significações parciais: a história (Rouanet, 1984, p. 38). Isto é, a uma concepção de história
dominante na Alemanha durante o século XVII. O barroco denota assim uma outra coisa; através
dele, é possível captar situações, uma sensibilidade artística, uma maneira de estar no mundo
característica de um momento histórico. O mesmo pode ser dito em relação a Paris. Talvez tenha
sido a proximidade a Baudelaire que tenha permitido a Benjamin conceber a que ponto a cidade,
no seu todo, pode constituir-se num objeto alegórico. Cito duas passagens sugestivas a esse
respeito: O talento de Baudelaire, nutrido com melancolia, é um talento alegórico. Tout pour
moi devient allégorie. Com Baudelaire, pela primeira vez Paris torna-se objeto da poesia lírica
Na poesia de Baudelaire o motivo da morte funde-se com a imagem de Paris. Os Tableaux
parisiens, o Spleen de Paris, Excursus sobre os elementos arquitetônicos da cidade de Paris
(Benjamin, 1986, p. 49). Centrar a análise sobre a cidade, sua configuração, seus eflúvios, sua
atmosfera, significa revelar algo que nela está contido mas que a transcende. Neste sentido
pode-se compreender, a partir de Paris, os mecanismos estruturantes da modernidade do XIX.
Se isso é verdade permanece uma dúvida: porque o autor abandona a metáfora das passagens
para substituí-la por outra?

Não é difícil perceber que as passagens têm também, em diferentes anotações ao longo do livro,
um valor alegórico. Nas páginas de um Guia Ilustrado de Paris pode-se ler o seguinte comentário:
as passagens formam um mundo em miniatura no qual o flâneur pode encontrar tudo o que
necessita (Benjamin, 1986, p. 77). Mundo contendo elementos diversos, parcelas de realidade
a serem decodificadas pelo olhar atento do intérprete. Uma outra referência reforça o aspecto
em questão. Balzac assegurou a constituição mítica de seu mundo determinando-o através de
seu contorno topográfico. O terreno de sua mitologia é Paris. Paris com seus dois ou três
banqueiros, Paris com o grande médico Horace Bianchon, o empreendedor César Birotteau, com
suas quatro ou cinco cocottes, o usurário Gobseck, o pequeno grupo de advogados e de
militares. O que conta é que os personagens deste circuito são comparsas nas mesmas ruas, nos
mesmos ângulos, nos mesmos quartos escuros. Isso significa que a topografia delineia o espaço
mítico da tradição, e, da mesma forma como para Pausania ela tornou-se a chave para a
compreensão da Grécia, as passagens seriam a chave deste século no qual Paris se enraíza
(Benjamin, 1986, p. 129). as passagens exprimiriam assim todo o século XIX, elas constituiriam
a chave de sua compreensão. Creio no entanto que Benjamin pouco a pouco se dá conta da
fragilidade desta proposição inicial. A Paris de Balzac é muito distinta da Paris de Baudelaire. A
distância que se interpõe entre elas é preenchida pelas transformações urbanísticas, pelo
advento da luz elétrica e dos bondes, pela invenção do cinema e dos novos estilos arquitetônicos
em ferro e vidro, estações ferroviárias e grand-magasins. Com o passar dos anos Paris se
metamorfoseia afastando-se de seu passado arraigado ao Antigo Regime. O esplendor das
passagens tem ainda uma vida curta confinando-se ao período que vai do final dos anos 20 ao
início dos 503. Seria pouco plausível eleger como argumento central de análise um elemento
em decadência. Benjamin, ao renomear seu projeto, desloca suas preocupações para uma
totalidade que contém em seu bojo traços nodais para ser a capital do século XIX, ou melhor,
um palco no qual se encenaria o drama da modernidade.

Uma alegoria é no entanto algo abstrato, para apreendê-la é necessário amarrar a análise a
elementos mais concretos. Benjamin irá encontrá-los em temas como: iluminação a gás, sistema
ferroviário, passagens, eletricidade, fotografia, folhetim, magasins de nouveautés, grand
magasins, etc. Sua escolha de assuntos aparentemente díspares não é casual, eles constituem
objetos heurísticos que alegoricamente exprimem uma realidade. Paris tornase assim um
mundo em miniatura. A estratégia benjaminiana privilegia portanto os pequenos objetos. O que
lhe prende a atenção são o traçado e os nomes das ruas, as catacumbas, as edificações, como
as pessoas se vestem, comem e vivem. Há algo de Simmel neste olhar posicionado ao lado dos
indivíduos e da paisagem. As relações sociais são captadas no fluir do dia a dia. Pode-se entender
o estilo de Benjamin como uma proposta de contraponto a uma forma mais abstrata de
trabalhar os laços sociais, ponto de vista que privilegiaria o que muitos historiadores denominam
atualmente de vida cotidiana. Nas edições alemã e francesa do livro, Rolf Tiedmann chama a
atenção para este aspecto da démarche benjaminiana. Tudo se passa como se ele deixasse se
envolver por um doce empirismo abandonando o pensamento à singularidade dos objetos. Visto
assim seu enfoque se encontraria na contracorrente de uma filosofia mais acadêmica (é desta
forma que muitos autores entendem o contraste entre Benjamin e Adorno) ou de uma
perspectiva sociológica macro cujo interesse focalizaria muito mais as estruturas do que
propriamente o dinamismo das interações sociais. Entretanto, é preciso ter claro que a temática
do cotidiano não é apenas fruto de uma construção intencional do autor, de sua postura
filosófica, ela permeia o próprio material por ele utilizado. É suficiente folhearmos os textos
citados ao longo do livro: Quand jétais photographe (Nadar, 1900), La photographie au salon de
1859 (Figuier, 1989), Histoire de la publicité (Datz, 1894), Ce quon voit dans les rues de Paris
(Fournel, 1858). Sem nos esquecer dos diversos escritos de Georges DAvenel sobre os
mecanismos da vida moderna, eles falam de alimentação, transformação do comércio, advento
do transporte urbano, publicidade, estações de trem, esgotos, etc. (cf. DAvenel, 1896). Trata-se
de um tipo de literatura, de crônica escrita na primeira pessoa, na qual a cidade se revela nas
suas entranhas. Nela se encontram inseridos os indivíduos com seus modos de vida, seus medos
e desejos. Basta olharmos as publicações da época para percebermos a que ponto os temas
elaborados por Benjamin se sobrepõem aos assuntos por elas descritos; por exemplo, na Revue
dês Deux Mondes encontramos artigos sobre o luxo, a distribuição da água em Paris, as
exposições universais, o telégrafo sem fio, a hora legal, a iluminação elétrica, etc.4 O ensaísmo
do século XIX mobiliza a imaginação de literatos, jornalistas, fotógrafos, filósofos e críticos de
arte. Paris, no seu dia a dia, é tematizada nos seus múltiplos aspectos5. A forma de escrita desses
autores desenvolve-se ao sabor da idiossincrasia de cada um, ela nada tem de universitária e
dificilmente poderia se encaixar nas exigências de uma ciência social que ainda mal existia. (a
sociologia e a história estavam em processo de estruturação como campos autônomos de
saber). O ensaísmo sobre a vida cotidiana era a linguagem dominante na qual se expressava a
maioria dos escritores da época. Benjamin, ao reapropriar-se deste legado bibliográfico, irá
certamente resignificá-lo, mas é difícil dizer que entre sua proposta e o material disponível existe
uma ruptura, pelo menos temática. Benjamin bebe na fonte da Bibliotèque Nationale para, aí
sim, elaborar sua interpretação pessoal.
É possível, mesmo de maneira imprecisa, datar o período no qual se desenrola o enredo de Paris
capital do século XIX. Metaforicamente, utilizando as anotações do autor, eu diria que ele se
estende de 1828, quando circula o primeiro ônibus ligando a Bastille à Madeleine, a 1913,
momento em que o último bonde puxado a cavalo é definitivamente superado pela tração
motora (cf. Benjamin, 1986, p. 554). Entre uma ponta e outra Paris passa por mudanças
profundas, sua história, marcada por diferentes cadências, revela como o ritmo lento dos
cavalos é substituído pela velocidade dos automóveis e dos bondes elétricos. Não diz Benjamin
que ainda em 1839 era elegante as pessoas passearem acompanhadas de tartarugas pelas
calçadas (cf. Benjamin, 1986, p. 552) (o que exprime o andar vagaroso do flâneur)! A rigor, talvez
fosse esclarecedor distinguir entre dois séculos XIX, duas modernidades. O primeiro é fruto da
Revolução Industrial: advento do vapor e das ferrovias, mecanização das fábricas, crescimento
da indústria, criação de grandes empresas industriais e comerciais, desenvolvimento do
patronato e do proletariado, migração rural, crescimento das cidades. Entre a Restauração e o
início do Segundo Império a sociedade francesa conhece uma transformação radical. Não é por
acaso que Louis Chevalier escolhe este período para estudar as classes perigosas (cf. Chevalier,
1984). É no interior de uma Paris superpovoada, sufocante e miserável (tão bem descrita por
Victor Hugo) que ele pode retratar a existência da classe trabalhadora. O florescimento da nova
ordem econômica e social pode ser ainda captado de maneira viva através da discussão sobre
as duas Franças. Entre 1822 e 1836 governantes e políticos franceses opõem uma França do
Norte, industrializada, moderna, urbana, a uma França do Sul, agrícola, tradicional, atrasada (cf.
Chartier, 1978). Caberia à parte esclarecida levar o progresso para os confins do país onde
predominavam ainda as forças obscuras do passado. As transformações da sociedade francesa
têm implicações na esfera cultural e social. A invenção da daguerreotipia em 1839 impulsiona o
mercado de retratos, fonte constante de atrito entre fotógrafos e pintores. O desenvolvimento
da imprensa, com as inovações técnicas e comerciais (introdução de um novo sistema de
impressão e da publicidade como fonte obrigatória de lucro dos jornais), dá origem ao romance-
folhetim, gênero que se populariza sobretudo entre as leitoras femininas (nesta esfera um outro
conflito, mobilizando escritores versus jornalistas, se instaura). O comércio de varejo conhece
também sua revolução. O fim das corporações elimina as vantagens que os alfaiates detinham
na determinação do preço das roupas. Surge assim a figura do negociante transformador. Eles
compram tecidos em grande quantidade, utilizam a mão de obra terceirizada das costureiras,
distribuem as mercadorias para os novos estabelecimentos. O surgimento dos magasins de
nouveautés nas décadas de 30 e 40 exprime este movimento de renovação do comércio (cf.
Faraut, 1983). Aí se vendiam tecidos e artigos de luxo: roupas, sedas, peças de lã, lençóis, botões,
luvas, ocasionalmente peles e guarda-chuvas. Dentro do espírito da época, o agrupamento de
mercadorias tão diversas era uma novidade; ele rompia com a especialização dos pequenos
comerciantes tradicionais. Em 1855 um Guia de Paris dizia: O que antes era preciso comprar em
trinta lojas, atualmente encontra-se reunido em vastas galerias, com seções de objetos para a
vestimenta e para a casa, desde o vestido ao boné confeccionado, das luvas aos guarda-chuvas
(citado em Jarry, 1948, p. 27). As novas lojas implantam ainda uma mudança na apresentação
das mercadorias, introduzindo exposições por seções e balcões especializados por ramos de
produto. Elas permitem também a livre circulação dos clientes no seu interior estimulando desta
forma uma nova prática social: fazer compras.

O segundo século XIX se distancia da Revolução Industrial para se apoiar num outro sistema
técnico: telégrafo sem fio, eletricidade, automóvel, indústria química, cinema, etc. (cf. Gille,
1978; Morsel, 1983). Por isso os economistas falam, a partir de 1880, de uma segunda revolução
industrial a indústria descola da agricultura, no interior do setor industrial diminui a produção
de bens de consumo (têxtil, alimentos) em benefício da produção de equipamentos,
desenvolvimento das indústrias vinculadas às cidades (água, eletricidade), da indústria de
metais (ligas) e produção de energia. Os historiadores franceses tendem a concordar que, a
partir de meados do século, o ritmo da história social se modifica (cf. Agulhon, 1983). O termo
em si é impreciso meados do século mas quando lemos sobre as diversas áreas específicas
(econômica, demográfica, urbana, técnica), parece haver uma convergência no sentido de se
localizar, dentro dos limites dessa duração, senão uma ruptura, pelo menos uma aceleração. O
corte meados do século pode ser ainda encontrado no setor das comunicações; não é por acaso
que se fala também em um segundo momento da história das ferrovias. Uma das dificuldades
na implantação das estradas de ferro na França dizia respeito à indefinição sobre quem deveria
construí-las. Até 1839 os empreendimentos estavam reservados ao capital privado mas devido
a múltiplos fatores a maioria das companhias não conseguiram cumprir suas promessas. Em
1842, após uma polêmica entre o setor privado e o Estado, chega-se a um acordo para se
estabelecer o mapa ferroviário francês. Porém, os acontecimentos políticos de 1848 e a crise
econômica irão retardar novamente a realização dos projetos. É somente no decorrer do
Segundo Império que as grandes companhias conseguem equacionar seus problemas; durante
a Terceira República as ferrovias se expandem e, pela primeira vez, passam a integrar um
sistema nacional de comunicação. Para se ter uma idéia: em 1847 a quilometragem explorada
era de apenas 1.832 km, em 1908 ela atinge 40.239 km, transportando um volume de 16 milhões
de passageiros por quilômetros (cf. Levasseur, 1912).

Evidentemente a distinção entre dois séculos XIX é puramente analítica, muito da primeira
modernidade se prolonga até a segunda (iluminação a gás, no transporte urbano a tração a
cavalo, etc.). Mas ela é útil na medida em que nos permite compreender como qualitativamente
a segunda modernidade se estrutura sobre bases materiais distintas da anterior. Um exemplo
significativo é o surgimento dos grand magasins. A passagem dos magasins de nouveautés para
os grand magasins corresponde a uma nova fase do capitalismo francês (cf. Bergeron, 1983;
Miller, 1987). Ela vinculase a transformações econômicas importantes e às mudanças que se dão
nos transportes (estradas de ferro), no sistema bancário e nos negócios. Isso implicou na criação
de mecanismos mais sofisticados de vendas e na gestão de grandes espaços nos quais as
mercadorias pudessem ser expostas e exibidas para o grande público. As novas lojas de
departamentos ultrapassam os antigos estabelecimentos comerciais em dois pontos: a
dimensão arquitetônica e o volume de negócios. Como empresas ndustriais elas funcionavam a
base de uma rápida rotação dos estoques, o que lhes permitia praticar uma política de preços
mais atrativa. O volume de vendas possibilitava ainda uma maior diversificação dos artefatos:
confecção, brinquedos, papelaria, etc. A estratégia comercial, calcada na publicidade de massa
(a rigor dirigida para as classes médias mais abastadas), requeria ainda a mobilização de uma
multidão algo em torno de quinze a dezoito mil pessoas entravam e saíam diariamente do Bon
Marché e do Louvre. Para abrigar toda essa gente os arquitetos tiveram de construir espaços
deliberadamente concebidos para a exposição e a venda de mercadorias. Arquitetura em ferro
e vidro capaz de superar os inconvenientes das construções de pedra pois uma das
características do novo estilo arquitetônico foi a criação de grandes vãos que lembravam as
antigas catedrais góticas6.
A cadência desses dois séculos XIX transparece claramente no texto de Benjamin. Há várias
formas de marcá-la. Primeiro, a superação das passagens. A esse respeito, uma citação, retirada
de um livro de Jules Claretie, La vie à Paris 1895, é sugestiva: Em Paris… as passagens que
estiveram tanto tempo na moda, delas as pessoas fogem como se sentissem enclausuradas. A
passagem, que foi para o parisiense uma espécie de salão lugar onde se fumava, se conversava,
hoje nada mais é do que um abrigo do qual nos lembramos quando chove. Algumas passagens,
por causa da celebridade desta ou daquela loja que aí se encontra, guardam ainda uma certa
atração. Mas é o renome do locatário que prolonga a voga, ou melhor, a agonia do lugar. Para
os parisienses modernos as passagens têm um grande defeito; pode-se dizer delas o mesmo que
de certos quadros de perspectiva sufocante: falta ar(Jules Claretie apud Benjamin, 1986, p. 176).
Fechamento, falta de ar. As qualificações procedem. As passagens exprimem uma modernidade
contida, uma intenção de mudança restrita a uma urbanidade ainda compartimentada. Como
nos lembra Philippe Ariès, até a segunda metade do século XIX, a velha Paris era constituída por
uma rede densa de pequenas células autônomas mas sem relação entre elas (cf. Ariès, 1971).
Cada zona da cidade era um mundo, um universo sem comunicação com os outros. As passagens
conseguiam no máximo estabelecer um contato entre uma rua e outra mas dificilmente
poderiam ser tomadas como a expressão de ruptura desses mundos estanques. É apenas com
as intervenções de Haussmann que Paris transforma-se numa cidade moderna, isto é, num todo
integrado. Hausmann racionaliza o espaço urbano, traça ruas, avenidas, pontes, praças,
interligando os pontos nevrálgicos da urbes. Um eixo norte-sul, leste-oeste, comunica o centro
à periferia, e as grandes vias de comunicação convergem para as estações de trem. Hausmann
inventa o boulevard multiplicando a escala urbanística até então conhecida (ruas com mais de
30 metros de largura). Não se pode esquecer que até 1828 Paris não dispunha de nenhum tipo
de transporte público. No entanto, mesmo após essa data, as várias sociedades criadas para
explorar a locomoção citadina tinham apenas uma existência rudimentar. O número de carros
disponíveis era pequeno, o trajeto percorrido irregular e o serviço oferecido descontínuo.
Somente em 1855 foi fundada a Companhia Geral de Ônibus cujo objetivo era unificar o
transporte público. As reformas urbanísticas e a generalização dos meios de transporte fazem
com que a cidade possa ser concebida como um sistema integrado. A noção de circulação se
sobrepõe assim à de fixidez. Mas para isso a velha Paris teve de ser destruída. Um testemunho
recolhido por Benjamin diz: Paris deixou de ser para sempre um conglomerado de pequenas
cidades que tinham sua fisionomia própria, sua vida, onde se nascia e se gozava a vida, lugar do
qual não se sonhava partir, onde a natureza e a história tinham colaborado para realizar a
variedade na unidade. E o autor acrescenta, na sua cidade transformada numa encruzilhada
cosmopolita, o parisiense tornou-se um ser desenraizado(Benjamin, 1986, p. 185). A passagem
marca dois aspectos de um mesmo fenômeno: o fim do isolamento no interior da cidade e o
desenraizamento do indivíduo de sua territorialidade local. Os dois movimentos se completam.
Na medida em que caem as antigas barreiras, em que as ruas se expandem, a mobilidade das
pessoas se intensifica. Como comenta um autor da época: Nossas ruas mais largas e nossas
calçadas mais espaçosas tornaram mais fácil a doce flânerie, impossível para nossos pais, a não
ser nas passagens (Benjamin, 1986, p. 79). O ritmo da história dilata e acelera os passos do
transeunte. Entretanto, o que se ganha em locomoção necessariamente não se traduz em
liberdade ou emancipação. O segundo século XIX desnuda as imposições de um mundo
capitalista cujos tentáculos se estendem sobre a vida cultural. Benjamin capta muito bem este
aspecto quando contrasta As passagens ao grand magasin. As passagens, em sua modernidade
restrita, ofereciam ao passante uma possibilidade de deslocamento ainda não inteiramente
imerso nas malhas da racionalidade comercial. As mercadorias expostas nas vitrines atiçavam
seu apetite de consumo mas essas ruas sensuais do comércio eram enclaves incrustados em
poucos lugares da cidade. Entre o apelo e a realização do ato propriamente dito faltava um elo:
a revolução dos transportes, a redefinição do comércio, a renovação urbana, a transformação
das finanças. É somente com o advento das lojas de departamento que pela primeira vez o
consumidor começa a se sentir massa(Benjamin, 1986, p. 87). Ou ainda: A identificação com a
mercadoria é fundamentalmente uma identificação com o valor de troca. O flâneur é o homem
virtuoso desta identificação. Ele põe em movimento o conceito de venalidade. Assim como a
loja de departamento é sua última aventura, o homem-sanduíche é sua última
encarnação(Benjamin, 1986, p. 582-583).

O segundo século XIX se apresenta assim sob o signo de uma modernidade comprometida. Nela,
o indivíduo cede lugar à multidão. O termo em si é sugestivo pois caracteriza o debate de toda
uma época. Ele significa primeiro produção em massa. A Revolução Industrial redefine as
relações produtivas, a fábrica torna-se o centro das atividades de uma sociedade que rompe
com os laços tradicionais. Isso tem implicações em diversos setores da vida social, da confecção,
padronizando a fabricação das vestimentas e influenciando a moda, à imprensa, que passa a se
organizar segundo critérios de eficiência técnica e produtiva voltada agora para uma difusão de
massa (a rigor isso ocorre somente no final do século quando jornais do tipo Le Petit Parisien
tem uma tiragem de mais de um milhão de exemplares). Assim, vários bens (esgoto, água, gás,
eletricidade, etc.), antes restritos a uma camada privilegiada de pessoas, pouco a pouco são
difundidos no conjunto da população (movimento que se completa no século XX). As
comodidades, como se dizia no Antigo Regime, antes vistas como objetos e serviços de luxo,
com o processo de mecanização, tornam-se cada vez mais acessíveis às diferentes classes e
camadas sociais. Mas multidão possui ainda um outro significado: o termo se contrapõe ao de
individualidade. Na aglomeração das grandes metrópoles ela absorve os traços de singularidade
integrando o indivíduo à massa anônima de pedestres. Anota Benjamin a esse respeito: A massa
em Baudelaire. Distende-se como um véu diante do flâneur: é a última droga do solitário.
Suprime portanto todo sinal de singularidade: seu último asilo é no meio do bando(Benjamin,
1986, p. 579). Aglomeração, bando, como é possível a singularidade neste contexto? A multidão
expressa uma concentração, um volume localizado num determinado espaço físico. Ela é
portanto homogênea. Nela, toda heterogeneidade se dilui em benefício do todo, do anonimato.
A multidão é inimiga da diversidade, tema amplamente explorado por Gustave Le Bon e Gabriel
Tarde (cf. Le Bon, 1980; Tarde, 1989). Benjamin o retoma de outra maneira, por um viés
marxista. Como as mercadorias que podem ser reduzidas a um mesmo denominador comum, o
dinheiro, equivalente universal, os indivíduos, no processo de consolidação da lógica capitalista,
se fundem a um mesmo padrão transformando-se em massa. O flâneur torna-se assim
mercadoria. Uma referência ao livro de Edmond Jaloux, Le Dernier Flâneur, é neste ponto
expressiva: Um homem que passeia não deveria se preocupar com os riscos que corre ou com
as regras de uma cidade. Se algo divertido lhe vem ao espírito, se uma loja curiosa cruza o campo
de sua visão, é natural que, sem enfrentar os perigos que nossos antepassados jamais
suspeitaram, ele queira atravessar a rua. Ora, hoje ele não pode fazê-lo sem tomar mil
precauções, sem antes interrogar o horizonte, sem pedir licença à prefeitura de polícia, sem se
misturar com um rebanho agitado e atordoado, para o qual o caminho já se encontra traçado
de antemão pelo brilho do vil metal. Antigamente, seus irmãos os badaud, que caminhavam
tranqüilamente pelas calçadas, e paravam em todos os lugares, davam a este fluxo humano uma
certa delicadeza e tranqüilidade que foi perdida. Agora é a torrente na qual você é engolfado,
apertado, jogado à torto e a direito. No final do XIX, o flâneur da primeira modernidade,
acostumado ao ritmo lento das passagens, encontra dificuldade em se deslocar. A circulação
pela cidade tornou-se certamente mais fácil e mais rápida, as ruas e o sistema viário lhe
permitem locomover-se sem maiores problemas, mas as imposições externas são também mais
coercitivas, cada vez mais ameaçam sua liberdade individual.

Logo no início de seu livro, Ce quon voit dans les rues de Paris, publicado em 1858, Victor Fournel
nos interpela a partir do conto de Edgar Allan Poe O homem da multidão (cf. Fournel, 1858).
Num diálogo imaginário com o leitor o autor confessa sua intenção, transformar-se num
personagem de Poe e traduzir para ele o que vê perfilar diante de seus olhos. Victor Fournel
quer inclusive inventar uma teoria do flâneur e para isso procura cuidadosamente discernir
entre sua atitude e a do badaud7. O homem que se desloca no meio da multidão o faz
impulsionado por sua curiosidade intelectual, ele deliberadamente toma a decisão de conhecer,
de escolher os caminhos, para apreender, como uma máquina fotográfica, os pequenos detalhes
da vida cotidiana. O badaud erra inconscientemente pela cidade, mendigo ou pedestre, ele é
matéria prima que constitui a massa, elemento homogêneo que flui pelas artérias urbanas. A
proposta de Fournel é sugestiva pois reflete sobre um personagem urbano até então
desconhecido na cidade de Paris. Sua resposta isola ainda um outro elemento, a liberdade de
consciência, como fator constitutivo do ato da flânerie.

Sociologicamente, a pergunta que se pode fazer é a seguinte: porque o flâneur surge apenas no
século XIX? Quais são as transformações que permitem o seu advento? Embora Benjamin não
formule explicitamente a questão, a resposta encontra-se ao longo de toda sua obra: ele é fruto
da modernidade. As sociedades do Antigo Regime eram formadas por conjuntos
compartimentados. Neles, a circulação de pessoas, mercadorias, idéias, objetos, foi sempre
restrita. A estabilidade da ordem estamental requeria esta compartimentação dos mundos e o
cerceamento da mobilidade, limites que separavam as classes sociais, a cidade do campo, a
cultura erudita da cultura popular. Antes da Revolução Industrial, das transformações políticas,
e do Estado-nação, cada país era constituído por uma série heterogênea de regiões, de universos
não integrados numa mesma totalidade. Paris, apesar de ser o centro da corte, traduzia na sua
urbanidade esta contenção espacial. Já em 1783 a Secretaria da Fazenda havia proposto a
construção de um novo muro para envolvê-la completamente. As antigas muralhas, edificadas
na Idade Média, há muito haviam sido ultrapassadas pela expansão da cidade. O intuito era que
as novas portas (hoje meros nomes de estações de metrô) conseguissem regular o fluxo de
pessoas e de mercadorias. Barreira material pretendia-se controlar os impostos locais (Polanyi
nos lembra que o surgimento de um mercado unificado nacional é fruto do século XIX) , elas
simboliza-vam como cada lugar, cada região, se via como uma unidade fechando-se ou abrindo-
se para o mundo existente lá fora. Mas vimos ainda como dentro de Paris esta segmentação se
reproduzia. A circulação entre um bairro e outro, o deslocamento das pessoas, era bastante
reduzido. Os estudos mostram que o quartier funcionava como uma unidade de trabalho, de
comércio, religiosa e de lazer (cf. Galabrun, 1983). Fora as profissões que exigiam uma certa
mobilidade, magistrados, médicos, tabeliões, a maioria da população encontrava-se presa à sua
localização territorial. A nova organização social, fundada na indústria, rompe com esses
constrangimentos promovendo o intercâmbio entre espaços até então voltados sobre si
mesmos. A circulação, princípio estruturante da modernidade, possibilita a emergência do
flâneur. Enquanto indivíduo, isto é, cidadão que vê seus direitos afirmados somente após a
Revolução Francesa, ele pode escolher seu destino sem se atrelar à sua origem estamental.
Desenraizando-se de sua territorialidade ele pode caminhar, mover-se segundo os objetivos
traçados por sua consciência individual.

Mas o que faz o flâneur? Olha e descreve. Personagem urbano, suas antenas sensoriais
privilegiam a visão, sentido associado por Simmel às qualidades desenvolvidas pelos indivíduos
na grande metrópole. Para ele a cidade é uniforme apenas na aparência, sob ela se esconde
todo um mundo, realidade subterrânea ao cotidiano do homem ordinário. Diz Benjamin:
Reconstruir topograficamente a cidade, dez, cem vezes, através das passagens e das portas, dos
cemitérios e dos bordéis, das estações de trem… como antigamente podíamos fazê-lo através
das igrejas e dos mercados. Os vultos mais secretos da cidade situam-se na sua parte mais
recôndita (Benjamin, 1986, p. 130). A cidade se apresenta assim como um labirinto, espaço cheio
de surpresas, porém, só o olhar perspicaz capta o que subjaz à sua manifestação epidérmica.
Observa-se o inesperado, o não corriqueiro8. Este é o traço distintivo entre o flâneur e o homem
que deambula pelos mesmos caminhos por ele percorrido. A flânerie pressupõe portanto a idéia
de distanciamento. Para compreender o que se vê é necessário que o observador se separe do
que está sendo observado. Neste ponto, uma primeira aproximação pode ser feita com o
viajante. A viagem é sempre um deslocamento através de espaços descontínuos. Aquele que
viaja sai de seu território, de um mundo que lhe é familiar, para encontrar outros lugares,
distantes, separados de sua vivência anterior. O viajante é um estrangeiro, alguém à parte do
universo descrito pelo relato da viagem. De alguma maneira o flâneur partilha com ele sua
condição de exterioridade. Baudelaire dizia que para o verdadeiro flâneur é um imenso prazer
habitar o indeterminado, o provisório… Estar fora de casa, e por isso sentir-se em casa em
qualquer lugar; ver o mundo, ser o centro do mundo e permanecer escondido do mundo, esses
são alguns dos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais…O observador
é um príncipe que goza de sua condição incógnita (Benjamin, 1986, p. 576). Existem no entanto
algumas discrepâncias que merecem ser sublinhadas. Para o viajante, a condição de
estranhamento está contida no próprio ato do deslocamento. O ponto de partida do olhar
encontra-se imediatamente afastado dos dados coligidos. Quem observa é naturalmente um
estranho. O flâneur deve compreender um elemento do qual ele é parte integrante pois viaja
sem sair do lugar. Para ele a cidade é moradia e paisagem. Moradia porque aí ele habita, ele
nela se insere como um nativo; paisagem pois a proximidade do quadro que o envolve deve ser
apreciada à distância. Por isso torna-se necessário construir mecanismos de estranhamento que
o desenraizem de sua percepção imediata das coisas. Neste sentido, ele se assemelha ao
sociólogo. Para entender sua própria cultura ele necessita precaver-se contra o habitualmente
conhecido, isto é, o senso comum. Todo seu esforço se concentra na elaboração de artifícios
que lhe permitam sair do mundo que pretende apreender. Sem isso sua visão perderia em
nitidez.

A flânerie é pois uma atividade intelectual. Em Benjamin isso se exprime através de duas
metáforas, o caçador e o detetive. Estudioso e caçador, o texto é uma selva na qual o leitor é
caçador (Benjamin, 1986, p. 992). A cidade-labirinto, no emaranhado de sua sinuosidade, se
apresenta como um texto espesso, este é o terreno no qual opera a razão que o decifra. Ela
segue as pegadas para descobrir o verdadeiro lugar da caça. O mesmo movimento é percorrido
pelo saber detetivesco. Na verdade, a figura do flâneur anuncia a do investigador(Benjamin,
1986, p. 574). Afinal os dois partilham o mesmo talento, revelar o que se esconde por detrás da
realidade aparente. Na sua origem o romance policial é muito distinto de sua versão
cinematográfica atual. Nele, a mente comanda a ação, e não os músculos como no estereótipo
hard-boiled inventado por Hollywood. Privilegia-se assim o espírito de observação. Como bem
o demonstra Régis Messac, o nascimento do romance policial é resultado do cruzamento de
duas dimensões: urbanidade e racionalidade (cf. Messac, 1972). A complexidade da trama
necessita da existência de uma sociedade moderna na qual a população se concentra dentro de
volumes espaciais relativamente restritos, onde todos se observam uns aos outros, e no qual a
perseguição da polícia se desdobra em esconderijos que muitas vezes escapam à sua autoridade
(não foi por acaso que os primeiros projetos de numeração das casas de Paris foram uma
iniciativa da polícia. A medida racionalizadora visava justamente reforçar o seu controle) (cf.
Pronteau, 1966). Por isso o tema da multidão encanta tanto a Poe, nela o assassino se esgueira
oculto pelo manto homogêneo que o protege. Mas o romance policial é também
contemporâneo da difusão do pensamento científico. O século XIX vê surgir inúmeros
movimentos que tomam a ciência, ou melhor, sua vulgarização, como referência fundamental,
por exemplo, o mesmerismo, a racionalização do mundo dos espíritos (Allan Kardec), a religião
universal de Auguste Comte, o hipnotismo como atração popular. Racionalismo validado pelas
inovações tecnológicas: fotografia, cinema, ferrovias, máquinas agrícolas. As exposições
universais desempenharam um papel fundamental neste processo de consagração e de
legitimação da ciência e da técnica (cf. Ory, 1982). Os literatos têm assim à sua disposição um
novo modelo para a construção do personagem central da narrativa detetivesca. Seu método
de conhecimento utiliza a dedução a partir das provas materiais encontradas nos locais do
crime, e a indução que lhe permite abstratamente articulá-las à resposta correta para a solução
do problema. Nas palavras de Sherlock Holmes: A partir de uma gota dágua, um lógico pode
inferir a possibilidade de um Atlântico ou de uma Niágara, sem ter visto ou ouvido falar deles. A
vida é uma grande cadeia, conhece-se sua natureza desde que nos seja mostrado um simples
elo deste encadeamento(citado em Ousby, 1997, p. 48). O detetive é portanto um especialista
na observação dos detalhes, em seu métier a razão é ferramenta essencial na elucidação dos
mistérios. Como qualquer cientista social ele deve lutar contra a ilusão da transparência do real
(cf. Bourdieu, Passeron & Chamboredon, 1973). Sua metodologia apóia-se na construção
paciente de uma cadeia interpretativa que foge à descrição superficial dos fatos.

Mas a flânerie é ainda uma arte, o que reforça sua aproximação com o trabalho intelectual.
Vimos como o flâneur se define a partir de um duplo desenraizamento, de sua condição
estamental e de seu local de moradia. Qualidades que o associam a um outro personagem: o
boêmio. Diz um desses escritores citados ao longo do livro: Entendo por boêmios esta classe de
indivíduos que não se encontram em nenhum lugar e que se encontram em todos os lugares.
Que não possuem um estado único mas exercem cinqüenta profissões; que a maioria deles
levanta-se de manhã sem saber onde irão jantar à noite; ricos hoje, famintos amanhã(Benjamin,
1986, p. 558). O boêmio caracteriza-se por sua mobilidade, vive entre as classes sociais, não
pertence a nenhuma delas, e não se fixa permanentemente em nenhum lugar (erroneamente
acreditava-se que ele era oriundo da Boêmia e seu nomadismo um traço herdado dos ciganos).
Entretanto, ser boêmio não é uma condição, mas uma eleição pessoal, uma maneira de se
colocar à margem da sociedade contrapondo-se aos valores dominantes (por exemplo, na
pintura o repúdio às instituições tradicionais como as academias). O universo da boêmia, que
em Paris envolve, literatos, teatrólogos, fotógrafos, pintores, encerra portanto uma visão de
mundo: valorização da individualidade e das qualidades artísticas, recusa dos ideais burgueses.
Muito da literatura escrita sobre o flâneur provém deste meio social no qual se cultiva um
comportamento à esquerda dos cânones estabelecidos. Não se pode esquecer que o conceito
de artista enquanto indivíduo dotado de um gênio criador é um produto do século XIX. Somente
após a Revolução Industrial a arte é concebida como uma realidade superior na qual se expressa
a idiossincrasia estética de cada um (cf. Williams, 1958). A metáfora da boêmia, enquanto
desenraizamento, não fixação às normas, revela justamente este traço de um individualismo
consciente. Como se pode ler numa das anotações de Benjamin: Sair quando nada nos força a
fazê-lo, seguir nossa inspiração como se o fato de virar à direita ou à esquerda constituísse em
si um ato poético (Benjamin, 1986, p. 567). Inspiração, liberdade, arte, escolha. Os termos se
encadeiam. Mas não devemos pensar que este ato impensado seja um ato desinteressado.
Pierre Boudieu tem razão quando diz que a escolha artística está fundada em critérios muito
claros: os interesses estéticos (cf. Bourdieu, 1996). Da mesma forma eu diria que a escolha do
flâneur não está isenta de intenções, na verdade, ela apenas se apresenta como tal. Ao distinguir
sua atividade das outras, em particular do hoORTIZ, mem da multidão, ele afirma uma vontade
específica: conhecer uma realidade que se subtrai à percepção da maioria das pessoas. Virar à
direita ou à esquerda, nada tem de gratuito, trata-se de um ato cujo objetivo foi previamente
traçado. Neste sentido, a arte da flânerie é homóloga ao conhecimento científico, dito em
termos de Robert Nisbet, seus agentes são movidos pelo desejo de escapar às pressões da vida
cotidiana (cf. Nisbet, 1979). É nesta viagem/deslocamento, guiada pelos ditames do campo
científico, que reside a força da imaginação sociológica.

O paralelo com a arte pode ser ainda desdobrado em outro plano. Sabemos que durante o
Antigo Regime a pintura e a literatura evoluíam dentro de universos controlados externamente
pelo mecenato e pelas exigências políticas (as academias). Por isso Sartre diz que os escritores
tinham nesta época dois caminhos possíveis a serem trilhados; ou se conformavam às
imposições de uma aristocracia que os sustentava materialmente, ou, enquanto burgueses,
tomavam partido contra ela. Em ambos os casos porém o elemento político era determinante,
a literatura se encontrava a serviço desta ou daquela classe social (cf. Sartre, 1972). O artista do
século XIX rompe com este vínculo de dependência. O ideal de Flaubert, lart pour lart, preconiza
um tipo de ajustamento no qual as injunções de ordem não estéticas são desconsideradas. O
escritor começa a escrever para um público de iniciados pois os critérios relevantes para a
apreciação de sua obra passam a ser determinados pelos pares. Afirma-se assim a existência de
estruturas intrínsecas ao campo artístico, ou seja, ele se destaca, se separa de outras instâncias
existentes na sociedade. No entanto, este processo de autonomização é contemporâneo ao
florescimento de uma cultura pautada por leis de um mercado ampliado de bens simbólicos. A
emergência do folhetim, do jornal diário, da fotografia, atividades vinculadas ao aspecto
produtivo e econômico, põem em causa justamente a autonomia recém conquistada. Daí o
desprezo de Flaubert pela literatura folhetinesca a serviço dos grandes jornais. Arte autônoma
e utilitarismo burguês são elementos historicamente concomitantes, movimento que afirma
tendências antagônicas.

A arte da flânerie não escapa a essa contradição. Podemos apreendêla através da oposição entre
ócio e trabalho. Benjamin, retomando uma expressão de Marx, nos lembra que na sociedade
burguesa a preguiça deixou de ser heróica (cf. Benjamin, 1986, p. 990). Ou seja, o lugar que o
ócio desfrutava nas sociedades anteriores foi definitivamente deslocado pela preeminência do
trabalho. Na França, a Revolução desempenhou um papel semelhante ao puritanismo anglo-
saxão. Ao derrotar a nobreza e proscrever a ociosidade ela impulsionou o desenvolvimento da
ética do trabalho. O controle do tempo, sinônimo de dinheiro, irá se contrapor às práticas que
o desperdiçam. Contenção e ascetismo tornam-se virtudes. O flâneur se contrapõe a esta
tendência dominante. Diz Benjamin: A espontaneidade que tem em comum o estudioso, o
jogador e o flâneur é forçosamente a mesma do caçador, isto é, do mais velho gênero de
trabalho com afinidades com o ócio (Benjamin, 1986, p. 998). Da mesma forma que o artista
desfruta sua atividade a partir do lazer, o flâneur, na escolha de seu próprio caminho, deve ser
autônomo. Sua liberdade não pode estar confina da às exigências estranhas à sua arte.
Entretanto, assim como a literatura se vê ameaçada pela proliferação da imprensa e a pintura
pela produção industrial da fotografia, o flâneur encontra seu lado obscuro no mundo da fábrica.
O ócio do flâneur é uma demonstração contra a divisão do trabalho(cf. Benjamin, 1986, p. 557);
A obsessão de Tylor, de seus colaboradores e de seus sucessores, é uma guerra contra a
flânerie(Benjamin, 1986, p. 567) . O ritmo da indústria, para falarmos como Georges Friedmann,
promove o trabalho em migalhas, anônimo, intercambiável. O fordismo pressupõe a anulação
do indivíduo, sua subordinação a uma engrenagem que o envolve e o ultrapassa. Caminhar,
olhar, descrever, tornam-se atos improdutivos.

Seria tentador interpretar a arte da flânerie como uma espécie de crítica à mercantilização do
conhecimento. Na verdade, o processo de autonomização das ciências sociais pode ser visto
como homólogo ao do campo da arte. No início elas se confundem com as atividades reflexivas
afins: religião, jornalismo, política, filosofia, literatura. Os intelectuais do XIX são marcados pelo
ecletismo, mesclando moralismo, saberes, opiniões, que os afastam de um controle mais
sistemático da escrita. Por isso Durkheim, na conclusão de As regras do método sociológico,
propõe que a sociologia se transforme numa ciência de caráter esotérico. Sua vocação
flaubertiana exigia o distanciamento dos interesses alheios ao saber científico. Durkheim atua
como um arquiteto, ele delimita um espaço, ergue fronteiras, separando um universo, com
regras, objeto e metodologia próprios, distinto do campo difuso do senso comum ou das outras
especializações existentes (filosofia, moral, etc.) (cf. Ortiz, 1989). Entretanto, se escrevi a frase
no condicional foi porque tenho algumas dúvidas a esse respeito. Um primeiro aspecto deve ser
sublinhado. A autonomização do campo das ciências sociais se faz somente no final do século
XIX, início do XX. Mesmo assim, sua institucionalização é um processo longo e conflitivo.
Durkheim pode ser visto como pai fundador de uma disciplina específica, mas sua proposta,
enquanto projeto intelectual, só pode se institucionalizar na França muito mais tarde, com o
advento dos institutos de pesquisa, pós-graduação, etc. Quando Benjamin escreve nos anos 30,
os intelectuais alemães, apesar dos traumas da I Grande Guerra e do advento do nazismo, ainda
são marcados pela idéia de Kultur, isto é, de um espaço autônomo que escapa às imposições da
civilização material e técnica. Ao contrário de Adorno e de Horkheimer, Benjamin não conheceu
a indústria cultural nem o autoritarismo do mercado; para os frankfurtianos, essa dimensão só
pode ser incluída em suas preocupações quando eles migram para os Estados Unidos. Aí, a
situação era inteiramente outra, este é o momento em que a publicidade, o cinema, o rádio, e
logo em seguida a televisão, tornam-se meios potentes de legitimação e de difusão cultural.
Quando Adorno trabalha em conjunto com Lazarsfeld, pela primeira vez, ele se dá realmente
conta de como o conhecimento se envereda por uma via distinta dos ideais da Kultur. O projeto
do Radio Research era teoricamente definido a partir de uma demanda externa (Rockefeller
Foundation) fundamentando-se na produção de dados empíricos susceptíveis de serem
transformados em informação9. Adorno pressentia que toda uma tradição européia,
universalizante, perdia 9 Sobre a polêmica entre Adorno e Lazarsfeld consultar: Adorno, 1973;
Lazarsfeld, 1969; Pollack, 1979. terreno para uma sociologia que se adequava aos interesses das
grandescorporações e do estado. Sua intuição era correta. É nos Estados Unidos que a produção
científica começa a ser ditada pelo utilitarismo tema retomado por Wright Mills na década de
50 (cf. Mills, 1972). Esta dimensão, estrutural à sociedade capitalista moderna, tornou-se hoje
um padrão difundido em todos os lugares. Ele torna a flânerie intelectual um ato improdutivo e
sem sentido. Este porém é um traço que transcende Paris capital do século XIX, trata-se de uma
faceta de um mundo globalizado no qual o flâneur viaja de avião e tem os seus passos mediados
pela técnica e pelo mercado. Ele já não é mais um observador da cidade, pois a própria idéia de
cidade como um todo integrado se desfez. Ao deslocar-se pelo espaço da modernidade-mundo
ele monta um quebra-cabeças constituído de partes de Paris, camadas do Rio de Janeiro, fatias
de Nova York. Sua cidade imaginária não corresponde a nenhuma materialidade integrada, suas
partes estão disjuntas, espalhadas pelo globo terrestre.

Certo é que as reflexões filosóficas levantadas por Michel Foucault ao longo de sua trajetória
acadêmica exerceram fortes influências em diversas áreas das ciências humanas como a
Sociologia, a Psicologia, a Antropologia, e é claro, a Filosofia. Isso porque os seus ditos e escritos
procuraram problematizar a visão de mundo proposta por algumas “epistemes”, como a
metafísica cristã, por exemplo, que enxerga no sujeito alguém marcado, sobretudo, pela
universalidade e pela abstração e que encontra em Nietzsche, uma forte crítica ao afirmar que
todos os valores são “humanos, demasiadamente humanos” (NIETZSCHE, 2005). Isso significa
que toda e qualquer espécie de conhecimento e forma de valoração são produzidos pelo e para
o homem servindo a algum propósito. Ao longo de sua trajetória, Foucault procurou dar
visibilidade àquilo que passava despercebido aos olhos da civilização ocidental, enxergando na
constituição dos saberes e dos poderes estratégias que atravessaram o sujeito e fizeram com
que dado fenômeno se desenvolvesse. Trata-se, portanto, e o próprio pensador francês explicita
isso em um de seus artigos, de uma interrogação da história, de uma minuciosa análise dos jogos
de verdade implícitos em diferentes épocas e que acabaram por produzir sujeitos e
subjetividades (FOUCAULT, 2004a). Comumente, a título de compreensão metodológica, os
intelectuais que estudam o pensamento foucaultiano adotam uma estruturação e uma
periodização que, se divide em Arqueologia, Genealogia e Ética (VEIGA NETO 2004b). No período
marcado pela arqueologia, o que está em jogo é a problematização das condições de surgimento
dos saberes que se configuravam tanto em instituições como os hospitais psiquiátricos, assim
como o estatuto das ciências humanas na modernidade. Entre as principais obras dessa fase
destacam-se: “História da Loucura na Idade Clássica”, “O Nascimento da Clínica”, “As palavras e
as Coisas”, e “Arqueologia do Saber” (FERREIRA, 2005). O segundo momento na trajetória
intelectual de Michel Foucault corresponde à fase marcada pela genealogia. É nesse momento
que toda uma teoria em torno da problemática do poder passa a ser analisada, a partir de uma
perspectiva que engloba o campo das práticas sociais na esfera micro, ou seja, que estão
presentes no cotidiano do sujeito e que se apresentam enquanto uma positividade. As principais
obras nesse período são: “Vigiar e Punir” e “História da Sexualidade I: a vontade de saber”. Os
objetivos tanto da genealogia, quanto da arqueologia não representam a estruturação de
teorias em torno da constituição histórica e social da civilização, mas sim a análise e a
problematização de verdades tidas como naturais (MACHADO, 1993). Uma das conseqüências
dessas problematizações realizadas pelo intelectual francês nesses dois períodos, consiste em
dar uma visibilidade por meio de suas pesquisas, a setores marginalizados pela sociedade
capitalista, mas que, ao longo da história, foram alvos de intensos estudos e preocupações por
parte da ciência e do Estado na elaboração de políticas de controle e poder sobre os corpos. É o
caso do doente mental, do presidiário ou do homossexual, por exemplo. Trata-se também de,
nesses dois momentos, delimitar uma crítica ao projeto de ciência moderna, caracterizado pelo
progresso intelectual e tecnológico, pois no período histórico conhecido por modernidade, as
ciências humanas só puderam se afirmar e se desenvolver tomando o homem como objeto de
conhecimento, e sujeitado ante uma série de saberes. O ÚLTIMO FOUCAULT:
PROBLEMATIZAÇÃO ÉTICA DO CUIDADO DE SI, DO USO DOS PRAZERES E DA CULTURA DE SI Em
seus últimos trabalhos, correspondente ao estudo da ética, Foucault procura saber como se dá
a constituição do sujeito a partir da relação deste consigo mesmo. Trata-se, portanto, de
escrever uma genealogia da subjetividade ocidental e de um questionamento dos diversos
modos de sujeição pelos quais o sujeito se reconhece e se afirma. Nesse sentido, o intelectual
francês recorre aos textos de pensadores antigos com o intuito de levantar o seguinte
questionamento: que jogos propiciaram que o homem se afirmasse sujeito do desejo em épocas
distintas (SOLER, 2006)? Estava posto, portanto, o problema que guiaria as reflexões levantadas
nas obras “História da Sexualidade II: o uso dos prazeres”, “História da Sexualidade III: o cuidado
de si” e do curso “A Hermenêutica do Sujeito”. Os estudos foucaultianos nesse período
acabaram por desenvolver toda uma problemática em torno da ética do cuidado de si presente
nas culturas grega e romana, através de diversas obras de pensadores importantes como
Sócrates, Platão, Marco Aurélio e Sêneca, por exemplo. O próprio Foucault, a respeito do
cuidado de si, diz [...] é preciso entender que o princípio do cuidado de si adquiriu um alcance
bastante geral: o preceito segundo o qual convém ocupar-se consigo mesmo é em todo caso um
imperativo que circula entre numerosas doutrinas diferentes; ele também tomou a forma de
uma atitude, de uma maneira de se comportar, impregnou formas de viver; desenvolveu-se em
procedimentos, em práticas e em receitas que eram refletidas, desenvolvidas, aperfeiçoadas e
ensinadas; ele constituiu assim uma prática social, dando lugar a relações interindividuais [...]
(FOUCAULT, 1985, p. 50). Observa-se, portanto, que na Antigüidade, o tema do cuidado de si
era fundamental para diversas escolas filosóficas. O enfoque dado à subjetividade por Michel
Foucault nas suas últimas obras, propiciou o desenvolvimento de uma analítica em torno da
subjetividade enquanto um processo transformacional e criativo do corpo, ou seja, a
investigação observada nessas obras problematiza de que maneira o discurso filosófico clássico
está relacionado ao modo de vida do sujeito (CARDOSO JR, 2005). Em que consistiam técnicas
prescritas como o exame de consciência, por exemplo, sugeridas por moralistas como Marco
Aurélio? Como se dava a produção da subjetividade tanto na Grécia antiga, como na Roma
clássica? (FOUCAULT, 1985). São questões essenciais contidas nessa analítica foucaultiana, que
percorre o pensamento dos filósofos gregos e romanos afirmadores da ética do cuidado de si.
Os dois últimos volumes da História da Sexualidade mostram como na antiguidade a questão
dos prazeres sexuais foi problematizada a partir de técnicas de si, que tinham como objetivo
maior fazer com que o sujeito fosse senhor de seu destino. Segundo Foucault, (...) a epiméleia
heautoû (o cuidado de si e a regra que lhe era associada) não cessou de constituir um princípio
fundamental para caracterizar a atitude filosófica ao longo de quase toda a cultura grega,
helenística e romana. Noção importante, sem dúvida, em Platão. Importante nos epicuristas,
uma vez que em Epicuro encontramos a fórmula que será tão frequentemente repetida: todo
homem, noite e dia, e ao longo de toda sua vida, deve ocupar-se com a própria alma (...) Entre
os cínicos a importância do cuidado de si é capital (FOUCAULT, 2004c, p.12). Na verdade, para
os filósofos antigos, o cuidado de si deveria ser implantado na alma do sujeito, devia inculcar no
homem uma reflexão sobre os seus modos de existência, para que, assim, a trajetória de vida
do sujeito fosse marcada pela felicidade e pelo domínio de seus instintos. Outra questão
importante diz respeito ao fato de que o sujeito, ao cuidar de si, estaria necessariamente
cuidando do outro. É o que diz Foucault ao analisar que (...) convém notar que as doutrinas da
conduta – e em primeiro lugar pode se colocar os estóicos – eram também aquelas que insistiam
mais sobre a necessidade de realizar os deveres com relação à humanidade, aos concidadãos e
à família, e que estavam prontas a denunciar nas práticas de isolamento, uma atitude de
frouxidão e complacência egoísta (FOUCAULT, 1985, p. 47). O sujeito virtuoso era, portanto,
aquele que possuía uma relação de reciprocidade com o outro tanto no âmbito familiar, como
profissional. Tal ética implicava numa responsabilidade do sujeito para com os outros, e esse
cuidar passava por estratégias não-repressivas de poder, como o diálogo, a persuasão e a
prescrição. Na Antigüidade só era possível cuidar de si a partir do cumprimento de regras e
condutas que se apresentavam enquanto prescrições para o sujeito. É por isso que Foucault diz
que a ética do cuidado de si era exercida no âmbito da racionalidade, pois a pessoa só poderia
exercitar os ensinamentos prescritos pelos moralistas gregos e estóicos mediante uma
memorização e uma dedicação em torno do cumprimento de verdades propostas (FOUCAULT,
2004 d). A ética para os antigos era relativa a toda uma maneira de ser e de se conduzir. O
homem virtuoso era aquele que conduzia sua vida mediante a prática do cuidado de si. Ser livre
significava não ser escravo de si mesmo, de seus instintos. Essa liberdade significava um domínio
do sujeito em relação a si mesmo. Como dito anteriormente, o interesse de Foucault em estudar
os processos de constituição do sujeito acaba por abrir, espaço para uma compreensão
ontológicohistórica da ética. Isso porque, ao recorrer aos antigos, o pensador francês acaba por
trazer para a contemporaneidade os modos de subjetivação pelos quais nos reconhecemos
enquanto sujeitos. (CARDOSO JR., 2005) Trata-se de mostrar que na época clássica a
subjetividade era produzida a partir de grandes preocupações com o uso dos prazeres e que na
modernidade os modos de subjetivação passam a ser cada vez mais produzidos por meio de
saberes institucionais capazes de delimitar, de fabricar indivíduos para um perfeito
funcionamento da máquina estatal. Em outras palavras, trata-se de mostrar como em algum
momento histórico a cultura de cuidado de si deu lugar a uma cultura de sujeição. É por isso que
Foucault, em seus últimos trabalhos, entrelaça a questão da subjetividade com a história dos
modos de sujeição. Enquanto na Antigüidade as formas de subjetivação se exerciam por meios
de técnicas de si, na contemporaneidade elas se estabelecem em estratégias de saber-poder
que procuram de toda maneira controlar a subjetividade por meio de biopolíticas que têm por
objetivo maior controlar, adestrar, através de mecanismos de poder 1 . CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se observar então que esse sujeito contemporâneo do qual Foucault fala é um sujeito
atravessado pela cultura, pela sociedade e por meio de relações de poder, que se afirma
enquanto indivíduo e permanece sujeitado ante os acontecimentos históricos. Neste sentido,
estudar o tema do cuidado de si como possibilidade de resistência e de enfrentamento ante os
modos de sujeição contemporâneos trata-se, portanto, de analisar e enxergar no pensamento
foucaultiano rotas de fuga, que permitam a existência de outra maneira de se enxergar o sujeito.
Não como algo estático e universalizante, mas sim a partir de uma compreensão relativa à
interação do indivíduo com o mundo e vice-versa, enxergando na pessoa a existência de um
corpo transformacional que se opõe ao corpo capturado pelo biopoder.

Philippe Lacoue-Labarthe (1940-2007), filósofo, germanista, tradutor e homem de teatro,


professor de estética na Universidade de Strasbourg, foi o autor de inúmeros ensaios sobre
filosofia e literatura, alguns em colaboração com Jean-Luc Nancy, dentre os quais podemos citar
Le titre de la lettre (une lecture de Lacan) (com J.-L. Nancy, tradução em português: O título da
letra. Escuta, 1991), e L’absolu littéraire (com J.-L. Nancy.) Seus interesses variados vão desde a
poesia de Paul Celan (La póesie comme expérience, 1986) à música de Richard Wagner (Musica
ficta (Figures de Wagner)), ao cinema de Pier Paolo Pasolini (Pasolini, une improvisation [d’une
sainteté], 1995]). Ele retraduziu para o francês as duas traduções de Friedrich Hölderlin das
tragédias de Sófocles (L’Antigone de Sophocle, 1978; Oedipe de Sophocle, 1998), peças que ele
codirigiu, respectivamente com Michel Deutsch e J.-L. Martinelli, no Théâtre National de
Strasbourg e no festival de teatro de Avignon, ambas pelo grupo permanente do Teatro Nacional
de Strasbourg. Escreveu inúmeros ensaios sobre Martin Heidegger, dando especial ênfase ao
problema do breve mas tenaz engajamento no nacional-socialismo deste último, em especial,
La fiction du politique. Heidegger, l’art et la politique (1987), e Heidegger. La politique du poème
(2002), e sobre Jean-Jacques Rousseau, La politique de l’histoire (2002). Em português há uma
coletânea de seus ensaios, A imitação dos modernos (coorganização de Virginia Figueiredo e
João Camillo Penna, Paz e Terra, 2000). Depois de seu falecimento, um certo número de obras
póstumas começaram a ser publicadas, como os seus textos de crítica de arte, Écrits sur l’art
(2009), e sobre Maurice Blanchot, Agonie terminée, agonie interminable. Sur Maurice Blanchot
(2011, editado por Aristide Bianchi e Leonid Kharnalov, 2011). O ensaio “O horror ocidental” foi
retirado da coletânea, La réponse d’Ulysse at autres textes sur l’occident (também editado por
Aristide Bianchi e Leonid Kharmalov, 2012). Agradecimentos a Claire Nancy são devidos. João
Camillo Penna (UFRJ) ALEA | Rio de Janeiro | vol. 14/2 | p. 327-337 | jul-dez 2012 philippe
lacoue-labarthe | 329 O horror ocidental O horror ocidental Philippe Lacoue-Labarthe Na origem
desta curta fala,1 há uma frase imprudente, uma espécie de declaração, como acontece quando
não podemos evitar fazê-la. E é, no entanto, uma convicção real, antiga e tenaz: No cora- ção
das trevas é um dos maiores textos da literatura ocidental. A fórmula é um pouco “brutal”. Um
pouco enfática também. Mas é isso, eu a utilizei tal qual. Não é exatamente a hora de se
arrepender. (A ocasião dessa declaração foi uma representação teatral desse texto, antes uma
leitura, pela sobriedade dos meios utilizados: David Warrilow, o ator preferido do último
Beckett, ele mesmo nos últimos momentos de vida, minado por uma doença grave, contava
simplesmente, em pé, apoiando-se à beira do palco, o tale de Conrad. Em francês. Nesta língua,
portanto, que Conrad quase havia escolhido. E foi impressionante: ouvia-se de repente esse
texto imenso como nenhuma outra leitura íntima e silenciosa, mesmo aplicada, teria permitido
ouvi-lo. Ele era compreendido em toda a sua amplitude e profundidade. A voz extenuada de
Warrilow, soberanamente desapegada, provocava uma emoção do pensamento que eu posso
dizer, até hoje ainda, incomparável. Na saída da apresentação, encontrei Pierre Lagarde.
Trocamos algumas palavras. Fiz, impactado pela revelação, essa declaração imprudente.)
Gostaria, diante de vocês, esta noite, de tentar me justificar. Não sei até que ponto o que vou
ser levado a dizer irá coincidir com as preocupações de vocês ou se inscrever na problemá- tica
geral que é a sua. Também não sei se conseguirei me explicar melhor sobre o que resta da
ordem, para mim, de uma fascinação. Este gênero de exercício, como se sabe, é perigoso. Minha
fala será, portanto, um pouco experimental. Peço a vocês, antecipadamente, que me
desculpem. Quando digo: No coração das trevas é um dos maiores textos da literatura ocidental,
penso, simultânea e indissociavelmente, 1 Esta conferência foi proferida no seminário
“Psiquiatria, Psicoterapia e Cultura(s) 1995-1996”, organizado em Estrasburgo pela associação
Palavras sem fronteira, por iniciativa de Karim Kehlil, Pierre-Stanislas Lagarde e Bertrand Piret.
Publicada em Lignes, n° 22, número “Philippe Lacoue-Labarthe”. Paris: Nouvelles Éditions Lignes,
maio de 2007. 330 philippe lacoue-labarthe | ALEA | Rio de Janeiro | vol. 14/2 | p. 327-337 |
jul-dez 2012 O horror ocidental em duas coisas: em sua potência mítica e naquilo que o constitui
como acontecimento do pensamento. É impossível, legitimamente, fazer a separação: o mito do
Ocidente, que essa história recapitula (mas para significar que o Ocidente é um mito), é
literalmente o pensamento do Ocidente: aquilo que o Ocidente “conta” que ele precisa pensar
sobre si mesmo: que ele é o horror – vocês sabem, vocês leram essas páginas. Para efeitos de
exposição, tenho, contudo, que dissociar. Vou fazê-lo da forma mais econômica possível. O que
há de mais marcante nesse texto, desde a primeira leitura, é a economia de sua enunciação: a
“narrativa” propriamente dita (a subida do rio Congo até o domínio de Kurtz, o enigmático herói
da fábula ou do mythos) é quase inteiramente assumida por Marlow, um personagem sobre o
qual não se sabe praticamente nada, exceto que ele é ou que ele foi, segundo uma lei
formalizada há pouco por Blanchot, o porta-voz (o “ele”) graças ao qual Conrad (o “eu”) pôde
entrar em literatura. Bastante tardiamente, como sabemos. Em grande parte, de fato, essa
narrativa é autobiográfica (escrita em 1899, ela relata uma viagem feita por Conrad entre a
primavera e o inverno 1890); Conrad nunca o escondeu. Lidamos, então, aparentemente, com
um dispositivo que se poderia qualificar, segundo a terminologia canônica de Platão, como
“mimé- tico” – isto é, penso na encenação de Jouanneau e no desempenho de Warrilow, como
quase “teatral”: o enunciador delega sua enunciação, o autor não fala em seu próprio nome, ele
“fabuliza”. Ora, isso não é tão simples: antes que Marlow comece sua narrativa, um “nós”
anônimo conta que é durante uma conversa entre amigos, no convés de um barco ancorado no
Tâmisa à espera da maré que lhe permitirá deixar Londres, que Marlow, meditando sobre a
colonização da Inglaterra pelos romanos, decide relatar sua aventura africana. O “romance”, se
é que é um, durará o tempo dessa maré – cujo refluxo, in fine, que teria permitido a partida,
será perdido pela falta de eloquência de Marlow –; e as últimas linhas, vertiginosas, são
assumidas pela voz narradora do próprio Conrad (o “eu” real, portanto) que mal se tinha ouvido
antes, de maneira furtiva, em duas (muito breve) ocasiões. Cito a tradução de Mayoux: “Olhei
para cima. O alto mar estava barrado por um banco de nuvens negras, e o tranquilo caminho de
água que leva até os últimos confins da terra fluía sombrio sob um céu nublado – parecia levar
ao coração de imensas trevas.”* Se somarmos a isso que a própria narrativa de ALEA | Rio de
Janeiro | vol. 14/2 | p. 327-337 | jul-dez 2012 philippe lacoue-labarthe | 331 O horror ocidental
Marlow é interrompida, pelo menos uma vez, por um de seus ouvintes, vemos com que
complexidade narrativa estamos lidando. Esse “romance” não é uma narrativa, nem mesmo a
narrativa de uma narrativa. Ele é constituído, se vocês me permitem utilizar as categorias de
Platão (na verdade, não temos outras), por uma diegese – mínima, mantida pelo “nós” das três
primeiras páginas e pelo “eu” (Conrad) cujas raras ocorrências acabo de assinalar – substituída,
em modo mimético, por uma nova diegese, ela própria entrecortada de passagens miméticas.
O todo relatando duas coisas, ou melhor, três: uma vigília noturna no porto de Londres, uma
viagem iniciá- tica ao coração da África – e o destino inteiro do Ocidente. Vocês vão me perdoar,
espero, por ter muito rapidamente cedido a essas considerações formais (seria necessário, de
fato, realizar uma análise bem mais minuciosa). Elas não são inúteis por pelo menos duas razões.
A primeira é que esse dispositivo é o próprio dispositivo do mito, em todo caso na sua versão
ocidental (digamos ainda mais uma vez: platônica já que, por comodidade e por necessidade,
apeguei-me a essa referência). Mito quer dizer aqui, além das ditas considerações formais: uma
palavra (nem simplesmente discurso, nem simplesmente narrativa) que se propõe por si própria,
mediante o procedimento de algum testemunho, como portadora de verdade. Uma verdade
inverificável, anterior a qualquer manifestação ou a qualquer protocolo lógico. Difícil demais de
enunciar diretamente. Pesada demais ou penosa demais. Sobretudo obscura demais. Ela é,
muito evidentemente, para Conrad, a própria obscuridade: as trevas, o horror. E é essa verdade,
a verdade do Ocidente, que ele tenta atestar de forma tão complexa. Todo o empreendimento
de Conrad consiste em encontrar uma testemunha daquilo que ele quer testemunhar. Os
Antigos invocavam os deuses. Ele inventou Marlow. Mas é para fazer passar a mesma verdade,
ou ao menos uma verdade da mesma ordem. A segunda razão é a simples consequência da
primeira: o “romance” de Conrad não comporta nenhum personagem (não digo: nenhuma
figura), mas somente vozes. Marlow, isso é manifesto, é só uma voz: a voz do “recitante”. Seus
ouvintes no convés do barco (“nós”, “eu”), são praticamente afônicos: eles escutam. Os
“personagens” que Marlow diz ter encontrado (o russo, por exemplo, ou a “noiva” de Kurtz no
final de sua narrativa), nós só os conhecemos por aquilo que eles disseram. Em um oratório (que
é provavel- * (CONRAD, Joseph. Au coeur des ténèbres, Amy Foster, Le compagnon secret.
Introdução e tradução de Jean-JacquesMayoux. Paris: Aubier-Montaigne, cole- ção bilíngue,
1980: 257.) 332 philippe lacoue-labarthe | ALEA | Rio de Janeiro | vol. 14/2 | p. 327-337 | jul-
dez 2012 O horror ocidental mente a verdadeira forma dessa obra, mas não posso me demorar
sobre isso aqui), a intervenção deles resultaria no máximo em duas melodias. A realidade é que
tudo é construído, deliberadamente, em torno da oposição de duas vozes: a do indistinto
“clamor” dos selvagens (o coro) e, bem entendido, a de Kurtz – que é certamente a figura desse
mito ou o herói dessa ficção. Precisamos ver um pouco mais de perto. Ainda mais do que
Marlow, Kurtz é ele próprio apenas uma voz. Primeiro, porque é assim – e por assim dizer
unicamente assim – que Marlow o evoca: “O homem se apresentava como uma voz”; “Uma voz.
Ele não passava de uma voz.”* É o que diz Marlow antes de encontrar Kurtz, e quando, de resto,
ele se desespera por jamais encontrá-lo. Se ele reconhece tê-lo sempre “ligado a alguma forma
de ação”, se lembra, sem negar um só instante a verdade, a lenda que o cerca (o aventureiro, o
ladrão de marfim, o déspota sanguinário ou o “rei” misterioso que sujeitou uma população
aterrorizada etc.), ele só retém, de todos os seus dons, sua “aptidão verbal, suas palavras, o dom
de expressão, desconcertante, esclarecedor, [...] as ondas abundantes de luz ou o fluxo
enganoso que emana do coração das trevas impenetráveis.” E, de fato, ao longo de toda a
narrativa, Kurtz permanecerá esta voz – desde o momento de sua aparição, há muito esperada
(ou preparada): a “voz profunda enfraquecida”,* até o momento de sua morte, no último
murmúrio onde tudo se revela: “The Horror! The Horror!”;* ou até o longo trabalho de luto que,
em seguida, governa a história de Marlow (“A voz tinha desaparecido...”* e deixa ressoar in fine
o eco silencioso da palavra final desde então proibida.* Mas, se Kurtz é apenas uma voz, Marlow
sabe muito bem disso, é porque no seu íntimo – na sua natureza ou na sua essência – ele é
apenas um homem de palavra. Quero dizer com isso um ser mítico, puramente mítico. E é
deliberadamente, bem entendido, que utilizo aqui essas fórmulas equívocas. Repetidas vezes,
Marlow insiste na eloquência de Kurtz, seu dom mais manifesto. Evoca também seus talentos
de escritor: ele não menciona apenas a monografia (“notável”) sobre a coloniza- ção redigida
por Kurtz a pedido da “Sociedade internacional para a supressão dos costumes selvagens” (cujo
manuscrito contém, vocês se lembram, rabiscado na última página, esta frase terrível: “Que se
exterminem todos esses brutos!”), ele alude também a seus poemas,* dos quais de resto nada
saberemos. E, em geral, fala dele como de * (Ibidem: 187-189.) * (Ibidem: 215 et seq.) * (Ibidem:
239.) * (Ibidem: 241 et seq.) * (Ibidem: 257.) ALEA | Rio de Janeiro | vol. 14/2 | p. 327-337 | jul-
dez 2012 philippe lacoue-labarthe | 333 O horror ocidental um artista. Isto é, como de um gênio:
extraordinariamente dotado, até mesmo na “ação” (ou na aventura) que ele terminou por
escolher. Temos, aliás, muita dificuldade, em se tratando do destino de Kurtz, em não pensar no
de Rimbaud – no qual Conrad talvez tenha pensado: a renúncia à literatura, o tráfico, o gosto
pelo dinheiro e pelo poder, o exílio desejado (sem retorno), a “realeza” conquistada, o estatuto
final de “semideus” (isto é, stricto sensu, de herói). Tudo isso compõe em suma a figura de um
artista maldito, desse mito que talvez seja o mais determinante do século XIX (e, portanto, em
grande medida, do século XX). O que é um artista? Ou o que é um gênio? Como se pode aprender
a partir de Platão, de Diderot, de Nietzsche, de toda a grande tradição ocidental (quero dizer
com isso: da tradição ocidental na medida em que ela sabe que o artista é a figura por excelência
do Ocidente), o artista ou o gênio é aquele a quem a natureza (physis) fez o dom – o dom inato,
ingenium – de possuir todos os dons que suprem à sua própria limitação (o que os gregos
chamam technè), começando pelo dom de todos os dons: a linguagem. Isso equivale a dizer que
o artista ou o gênio é aquele que é propriamente próprio para tudo; ou, se vocês preferirem,
que, não tendo nenhuma propriedade em si mesmo (senão esse dom misterioso), é capaz de se
apropriar de todas. Diderot o mostrou, de maneira canônica, a partir do exemplo do grande
ator. O artista ou o gênio é “o homem sem qualidades próprias”, que dá título à obra-prima de
Musil. Isso é exatamente o que “é” Kurtz. Ele não é apenas apresentado como uma espécie de
“gênio universal”,* ou até mesmo como “extremista” – comparável aos anarquistas russos, quer
dizer aos “niilistas”, e, por isso mesmo, pronto para tudo.* Ele é apresentado como ele próprio
não sendo nada. Ou ninguém, se pensarmos em Ulisses. Sua eloquência é ligada,
sistematicamente, às “trevas áridas do seu coração”, a seu “coração oco”, ao vazio que está nele
ou, mais exatamente, que ele “é”. É exatamente por isso que ele é só uma voz. Mas é também
por isso que, na ordem da arte propriamente dita, como na ordem do poder (ou da arte política,
se vocês preferirem), ele subjuga e fascina, atrai e seduz (ele suscita até mesmo o amor), sujeita:
ele é absolutamente soberano. Não sendo nada, de fato, ele é tudo. Sua voz é todo-poderosa.
Duas consequências resultam disso: * (Ibidem: 225.) * (Ibidem: 245.) * (Ibidem: 247.) 334
philippe lacoue-labarthe | ALEA | Rio de Janeiro | vol. 14/2 | p. 327-337 | jul-dez 2012 O horror
ocidental 1. Quanto à oposição, ou ao agôn, das duas vozes que estruturam a narrativa de
Marlow: o clamor selvagem indiferenciado e a voz de Kurtz. São, pura e simplesmente, a voz da
natureza (physis) e a voz da arte (technè). Uma frase os coloca rigorosamente em relação: “O
murmúrio da selvageria tinha tido nele um eco barulhento porque ele era oco no centro.” E é
isso, por um lado, o que explica, por trás de sua aparente selvageria ou de sua violência, a
profunda tristeza do clamor que ressoa regularmente ao longo da narrativa e a escande: é uma
lamentação (e penso, na verdade, mais do que na dor de exploração e da escravidão, que está,
contudo, inteiramente presente, na célebre frase de Benjamin: se a natureza pudesse falar, seria
para se lamentar; a exploração colonial é em primeiro lugar a exploração da natureza), mas isso
também explica, por outro lado, que o horror, à vertigem do qual sucumbe Kurtz, esse horror
sobre o qual nada se sabe (O que ele viu? O que sofreu? Do que fala?), é menos o próprio horror
“selvagem” do que aquele que o eco do clamor nele (em seu vazio “íntimo”) revelou: é o seu
“próprio” horror, ou melhor, o horror de sua ausência de todo ser-próprio. Tudo o que se pode
imaginar a título da selvageria, da pré-história, do reino do terror puro, da abominação e do
incompreensível, de um mistério sem nome, de uma crueldade, da potência das trevas; tudo
isso, que o arrasta para a vertigem (e com ele, todos os que ele fascina) e o leva até mesmo ao
êxtase, este “buraco negro”, o “cora- ção das trevas”, é “ele” – o seu vazio – como fora dele. Se
posso me permitir utilizar diante de vocês a terminologia de Lacan, quando ele fala
precisamente do trágico (penso no seminário sobre A Ética da Psicanálise), direi que o horror é
a Coisa – thing ou Ding (um nome para o ser, isto é, para o nada, o “nada de ente”, em Heidegger,
de quem Lacan o toma emprestado); ou, se vocês preferirem, que “o coração das trevas” é o
êxtimo – o interior intimo meo de Agostinho, Deus, mas em exclusão interna. Talvez o mal...
Deixo essa questão em aberto. Ao menos temporariamente. 2. Dizer que o horror é “ele”, Kurtz,
é dizer que o horror somos nós. Vocês terão notado que a fascinação do horror contamina todos
aqueles que, de uma maneira ou de outra, o abordaram ou ouviram: Marlow, é claro, mas
também o russo (o bufão, o duplo derrisó- rio de Kurtz: um bufão talvez sempre acompanhe
uma figura, que ela se chame Dom Quixote, Rameau ou o Amo de Jacques o fatalista, Zaratustra,
et alii), e até mesmo a “noiva” de Kurtz. Não há nenhum acaso se todos esses personagens,
presos na armadilha da ALEA | Rio de Janeiro | vol. 14/2 | p. 327-337 | jul-dez 2012 philippe
lacoue-labarthe | 335 O horror ocidental fascinação da Coisa, se defendem dela manipulando
objetos: rebites e alvaiade, manual de navegação, tricô ou piano. A resposta à vertigem da
technè é o afazer técnico. E é provavelmente também para conjurar o horror (da arte) que Kurtz
buscou “se” perder no tráfico de marfim e na realeza colonial. Mas é esse o logro por excelência:
o próprio logro ocidental, se o Ocidente – e Conrad sabia o que isso queria dizer: Sob os olhos
do Ocidente – sempre terá recuado diante do pavor do saber (uma palavra para traduzir, em
seu sentido pleno, a technè grega) refugiando-se no “savoir-faire”. E se ele sempre terá
confundido a capacidade (o dom) com o poder. No pensamento filosófico moderno, é o que se
terá revelado quando Nietzsche tiver nomeado como “vontade de potência” o dom (da arte) e
pensado sob esse nome a essência do homem como sujeito. Ele não terá podido evitar que
“potência”, que significa “capacidade” (ou até mesmo, simplesmente, “gênio”), reunida à
“vontade”, viesse a se confundir com “poder”: potentia com potestas. Sabe-se o que se seguiu
(que Nietzsche, de resto, era o primeiro a temer). O notável é que Conrad, que ignoro se tinha
lido Nietzsche ou não (e, aliás, pouco importa), tenha visto isso com tal precisão – e a partir do
exemplo da colonização. (Vocês sabem, mencionando de passagem, que esse livro causou
escândalo e que Gide teve a maior dificuldade para impor sua publicação na França nos anos
1920.) O recuo diante do horror é a barbárie ocidental porque ele é o inverso simples da
fascinação pela Coisa: aquilo de que Kurtz, até o final, faz a prova literalmente impossível,
desafiando qualquer potentia e qualquer potestas. Mas quando ele morre, ao mesmo tempo
santificado e maldito (aqui seria necessária uma longa análise), o mal está feito: a África está
destruída – e os ocidentais (nós) não se recuperarão. A implementação desse pensamento difícil
explica sem dúvida o extraordinário trabalho de escrita, como se diz, a que se entregou Conrad,
que sabia perfeitamente estar produzindo ali uma das mais poderosas figurações do Ocidente
jamais feitas. (Malraux, este anagrama quase perfeito de Marlow, se lembrará disso, ao menos
desde A Tentação do Ocidente até O Caminho Real.) Não posso me prolongar aqui, mas eu
gostaria apenas de mencionar os dois enunciados, aparentemente enigmáticos, com os quais
Conrad designa seu tale, isto é, seu mito, como ele próprio “oco”, a exemplo de seu herói.
Contento-me em citá-los antes de tentar concluir para me aproximar um pouco das
preocupações de vocês: 336 philippe lacoue-labarthe | ALEA | Rio de Janeiro | vol. 14/2 | p.
327-337 | jul-dez 2012 O horror ocidental Os contos de marinheiros são de uma franca
simplicidade, todo o sentido caberia na casca de uma noz aberta. Mas Marlow não era típico
(exceto por sua mania de recitar contos); e para ele o sentido de um episódio não se encontra
no interior, como de uma noz, mas no exterior, e recobre o conto [tale] que o suscitou, como
uma luz suscita um vapor, à semelhança de um desses halos nebulosos que é às vezes revelado
pela iluminação espectral do luar.* Não havia nenhum sinal na face da natureza deste conto
[tale] estupefaciente que me foi menos dito do que sugerido por exclamações desoladas,
completadas por movimentos de ombros, frases interrompidas, indicações terminando em
profundos suspiros.* Desde o capítulo dos Ensaios de Montaigne dedicado aos “Canibais”, uma
longa tradição da literatura moderna (ela conduz pelo menos até Lévi-Strauss e Pierre Clastres)
se interroga, pelo viés do que o Ocidente faz – aos “outros” –, sobre o que ele é. Tomada pela
vertigem, no fundo (mas é um fundo sem fundo, um abismo), relativa ao poder de destruição
infinito que é o seu: à sua propensão à exterminação. Conrad se inscreve nessa tradição. Só que,
esta é sua originalidade, ele faz dessa vertigem seu próprio objeto. Desde o início da narrativa –
desde a evocação do encontro da ordem romana e das “trevas” bárbaras ou selvagens da futura
Inglaterra (“E isso também, disse Marlow de repente, foi um dos lugares tenebrosos da terra”)
–, fica claro, se assim se pode dizer, que o Ocidente se define como uma gigantesca colônia. Era,
muito antes de Roma, o caso dos gregos. E que, sob essa colônia, há o horror. Mas esse horror
é menos aquele, de facto, da selvageria do que o poder de fascinação que ele exerce sobre os
“civilizados”, que ali reconhecem subitamente o “vazio” sobre o qual repousa – ou nunca
consegue repousar – sua vontade de conjurar o horror. É o seu próprio horror que o Ocidente
tenta fazer desaparecer. Daí a sua obra de morte e destruição, o mal que ele provoca e estende
até os confins da terra – até essas zonas deixadas “brancas” nos mapas da África e que, no início,
atraem irresistivelmente Marlow, ou seja, Kurtz. O Ocidente exporta seu mal íntimo: ele impõe
seu êxtimo. Essa é sua maldição; e essa é a opressão a que ele submete a terra inteira: dor,
tristeza, lamento interminável, luto que nenhum trabalho jamais reduzirá. No coração das trevas
é uma espécie de “estadia no inferno” ou de descida ao reino dos mortos, no modelo da nékyia
homérica. A alusão às Parcas, quando Marlow é acolhido na sede da Compa- * (Ibidem: 87-89.)
* (Ibidem: 209.) ALEA | Rio de Janeiro | vol. 14/2 | p. 327-337 | jul-dez 2012 philippe lacoue-
labarthe | 337 O horror ocidental nhia por mulheres que tricotam, é transparente e deliberada.
E as referências ao inferno são incessantes. A hybris ocidental, excesso ou transgressão, é a
vontade propriamente metafísica de atravessar a morte. A viagem de Marlow é uma viagem
iniciática. O que está em jogo, todos os detalhes materiais o sublinham, é a revelação de uma
técnica da morte – o que é afinal, se deixarmos a fórmula em sua equivocidade (tanto a que
afeta a palavra “técnica” quanto a que resulta do duplo valor do genitivo), a melhor definição
que se pode dar da vontade de potência ocidental. Aos ritos dos “selvagens”, que são talvez um
saber da morte, Kurtz, o artista (mas o artista fracassado), só terá sido capaz de opor uma técnica
– de morte. Quanto ao artista involuntário ou por procuração, Marlow, o mitômano, que o
destino de Kurtz terá realmente horrorizado (isto é, que terá realmente vislumbrado o horror),
nada lhe restará, na volta, além do artifício da “mentira piedosa”: ele não ousará dizer à
“prometida” quais foram as últimas palavras de Kurtz, ele deixará o amor recobrir e maquiar o
furor da transgressão, ele realizará a obra de santificação que desvia o olhar ocidental de sua
própria maldade. Os mitos, diz Schelling, não são “alegóricos”: eles não dizem nada além do que
dizem, e não têm outro sentido além daquele que enunciam. Eles são tautegóricos, uma
categoria que Schelling toma de Coleridge. No coração das trevas não infringe essa regra. Não é
de modo algum uma alegoria, por exemplo, metafísico-polí- tica. É a tautegoria do Ocidente. Ou
seja, da arte (da technè). Que essa arte seja nesse caso a própria literatura, o uso propriamente
mítico dessa technè originária que é a linguagem, deixa em aberto uma questão para a qual o
esboço de análise que acabo de propor a vocês não pode pretender responder. Eu me retenho,
portanto, aqui. Esperando que estas breves observações – incoativas, estou perfeitamente
consciente disso – tenham permitido vislumbrar o que há de horror, isto é, de selvageria, em
nós.

Sipnose
O filósofo francês Phillippe Lacoue-Labarthe analisa a questão da imitação e do original da arte
sob o ponto de vista da filosofia. A partir dos conceitos de mimese, Labarthe convoca uma série
de interlocutores como Platão, Diderot, Kant, Hölderlin, Nietzsche e Walter Benjamin, que são
confrontados de maneira crítica à questão do sujeito, do paradoxo e, finalmente como horizonte
de toda a reflexão labarthiana, ao teatro. Não o 'teatro dos filósofos', ou o especulativo, não como
a aplicação prática de uma teoria sobre teatro, mas como experiência de desapropriação da
teoria, como passagem ao limite do teórico.

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