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Em carta a Ernst Schoen, de 28 de dezembro de 1917, Walter Benjamin diz que “a dúvida sobre
a essência do conhecimento, do direito e da arte é inseparável daquela sobre a origem de cada
expressão espiritual humana pela essência da linguagem”. Nota-se, a partir dessas palavras, que
Benjamin não separa a linguagem da razão, e o desdobramento dessa aproximação, de acordo
com Jeanne- Marie Gagnebin, é que, “sem uma reflexão sobre Sprache, ‘língua’ e ‘linguagem’,
(...) não há a possibilidade (...) de pensar a razão e a racionalidade humanas” (p. 10). Sob essa
perspectiva, razão e história devem ser pensadas de modo conjunto, já que a apreensão de
ambas só pode ser realizada por meio da linguagem. Para Gagnebin, somente a linguagem
permite “a invenção da história (humana) e de histórias (ficcionais ou não) (e por isso não seria
exagero afirmar que) o tema por excelência da filosofia e da crítica literária em Benjamin seja
essa ligação entre história e linguagem” (p. 10). Até porque, como diz a autora no texto de
apresentação dessa edição, para Benjamin não há “nenhuma formação de linguagem, obra
literária ou filosófica, que não seja trespassada pela história humana verdadeira (e que) não seja
objeto de reelaboração e transformação pela linguagem” (p. 10). Dito de outro modo, uma
existência que não tivesse nenhuma relação com a linguagem seria incapaz de se tornar fecunda.
A partir disso, pode-se dizer sem medo que o vigor filosófico dos Escritos sobre mito e linguagem
está precisamente na articulação entre linguagem, arte e história patente nesses textos da
juventude de Walter Benjamin. Ensaios como “Dois poemas de Friedrich Hölderlin” (1915) e “O
idiota de Dostoiéski” (1917), dedicados ao estudo de obras literárias específicas, e “Sobre a
pintura ou Signo e mancha” (1917), ou “Destino e caráter” (1919), o primeiro de visível natureza
estética, o segundo de caráter fronteiriço entre literatura e filosofia, demonstram a diversidade
de interesses que o jovem Benjamin já possuía e que se consolidaria como uma das
características mais marcantes do seu pensamento. Contudo, é válida a afirmação do caráter
fragmentário e multifacetado da filosofia benjaminiana, não menos válida é a afirmação de que
todos esses fragmentos, ou “cacos”, gravitam em torno do núcleo essencialmente filosófico
presente nos ensaios “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem” (1916) e “A
tarefa do tradutor” (1921).
Esses dois textos têm o mérito de expor uma faceta metafísica do pensamento benjaminiano,
que toma a linguagem como meio (Medium) de reflexão. Enquanto Medium, a linguagem se
constitui em matéria, ambiente e modo de comunicação que refuta não só a relação
instrumental com vista a um fim exterior mas também a necessidade de mediação que o
conceito de Mittel – um “meio para determinado fim” – necessariamente implica. Na sua
apresentação, Gagnebin aponta para o fato de que, embora “muitas vezes julgada supérflua ou
tratada como um erro de juventude, essa dimensão metafísica (do pensamento benjaminiano
faz com que) se combinem fundamente (na reflexão desse filósofo) aspectos religiosos,
teológicos, estéticos e políticos” (p. 9). A autora ressalta também que essa dimensão metafísica
permeia o pensamento de Walter Benjamin e “está presente ainda em seu último escrito, as
teses ‘Sobre o conceito de história’, de 1940” (p. 9). Além do mais, é patente nos Escritos sobre
mito e linguagem a preocupação de Benjamin com a problemática do mito, que na verdade
“parece ser justamente a outra vertente de sua preocupação com a história (e que nas suas
reflexões posteriores) só tenderá a crescer, adotando feições mais nítidas e materialistas a partir
do fim dos anos vinte” (p. 9). Consequentemente, longe de ser apenas uma crítica de certo
momento que a humanidade possa viver ou ter vivido, a crítica do mito em Benjamin é a “crítica
de uma concepção de vida e de destino que sempre ameaça, sob formas diversas, as tentativas
humanas de agir histórica e livremente” (p. 9).
Ensaios como “Destino e caráter” (1919) e “Para uma crítica da violência” (“Zur Kritik der
Gewalt”) (1921), por mais especulativos que possam parecer em uma primeira leitura, esboçam,
na verdade, a “problemática ao mesmo tempo crítico-hermenêutica e política do ‘historiador
materialista’ (que o Benjamin das teses “Sobre o conceito de história” deixa entrever)” (p. 10).
De acordo com as notas de tradução de Ernani Chaves, Benjamin emprega o conceito de Kritik
em “Zur Kritik der Gewalt” no sentido kantiano de “delimitação dos limites”. Desse modo,
qualquer leitura pacifista desse ensaio é invalidada, haja vista que “Para uma crítica da violência”
é antes de mais nada uma tentativa de refletir sobre o “poder como-violência” do direito e do
Estado, em contraposição à “violência como-poder” da greve revolucionária. 257 estudos de
literatura brasileira contemporânea, n.40, jul./dez. 2012, p. 251-260 259 Resenhas 257 Dentre
os sete ensaios reunidos em Escritos sobre mito e linguagem, “Dois poemas de Friedrich
Hölderlin” (1915) e “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem” (1916) são os
que contribuem mais diretamente para o aprofundamento do estudo do conceito benjaminiano
de crítica literária, desenvolvido e levado a cabo em livros como O conceito de crítica de arte no
romantismo alemão e Ensaios reunidos: escritos sobre Goethe. Para Benjamin, o crítico deve
evidenciar a necessidade de existir da obra de arte, de modo a apreender o seu ideal a priori.
Esse ideal a priori, por sua vez, é para ele a lei fundamental do organismo artístico, que só pode
ser redimida pelo reconhecimento de uma unidade estética fundamental entre forma e matéria.
Dito de outro maneira, o crítico deve ter consciência de que não há forma separada de teor
(Gehalt), termo fundamental na reflexão estética benjaminiana porque anula a oposição estéril
entre “conteúdo” e “forma”.
Nota-se assim que a consciência de que a forma nunca é sem teor surge de um desdobramento
da filosofia da linguagem desenvolvida por Benjamin, o que por sua vez atesta a importância da
reflexão sobre a linguagem para a reflexão estética benjaminiana. Para ele, “a língua de uma
essência espiritual é imediatamente aquilo que nela é comunicável (o que significa que) toda
língua se comunica em si mesma (e é) no sentido mais puro, o meio (Medium) da comunicação”
(p. 54). É a partir dessa abordagem fi losófi ca da linguagem que Benjamin desenvolve o conceito
de “poetificado” (“das Gedichtete”) no ensaio sobre Hölderlin, para designar justamente a
condição a priori do poema, ou seja, aquilo que, em certa medida, “preexiste a ele e nele se
realiza” (p. 48). Para ele, o “poetificado” revela-se como “passagem da unidade funcional da
vida para a do poema (de sorte que no) ‘poetificado’, a vida se determina através do poema; a
tarefa, através da solução” (p. 16).
Dessa maneira, percebe-se que as realizações mais frágeis da arte são precisamente “aquelas
que se referem ao sentimento imediato da vida, ao passo que as mais poderosas, de acordo com
sua verdade, referem-se a uma esfera aparentada ao mítico (a saber) o ‘poetificado’ (que por
sua vez oferece a possibilidade de) julgar a poesia conforme o grau de coesão e grandeza de
seus elementos” (p. 17). O “poetificado” se mostra assim como “a condição do poema, como
sua forma interna, como tarefa artística” (p. 17), e compete a ele a comprovação da “intensidade
do vínculo entre os elementos intuitivos e intelectuais, e isso, em primeiro lugar, em exemplos
singulares”. Justamente nessa comprovação, diz ele, “tem de estar evidente que não importam
os elementos, mas sim as relações, uma vez que o próprio ‘poetificado ’é uma esfera da relação
entre obra de arte e 260 estudos de literatura brasileira contemporânea, n.40, jul./dez. 2012, p.
251-260 Resenhas 257 vida, cujas unidades em si mesmas não são inteiramente apreensíveis”
(p. 17). A distinção decisiva entre o “das Gedichtete” benjaminiano e o esquema forma-matéria
reside no fato de o primeiro ser capaz de “conservar em si a unidade estética fundamental de
forma e matéria e, ao invés de separá-las, (cunhar) sua ligação necessária, imanente, (sendo ele
mesmo) construído segundo a lei fundamental do organismo artístico (e que se distingue do
poema) enquanto conceito-limite, enquanto conceito de princípio” (p. 15).
Os Escritos sobre mito e linguagem, quando contrastados com os demais textos de e sobre
Walter Benjamin publicados no Brasil até então, abrem espaço para uma percepção bastante
privilegiada do modo como a filosofia benjaminiana se constrói a partir da articulação de
elementos aparentemente díspares e inconciliáveis, tais como materialismo e messianismo,
mito e história, estética e reprodutibilidade técnica.
Os ensaios reunidos nesse volume mostram de maneira bastante sofisticada que, longe de ser
contraditória ou meramente especulativa, a articulação de conceitos materialistas com a
herança espiritual do messianismo feita por Benjamin, responsável por uma refutação poderosa
do historicismo e da crença irrefletida na técnica e no progresso, é atravessada por uma
concepção de linguagem como Medium no qual sua essência espiritual, e também a essência
espiritual das coisas, se comunica. Os ensaios do “jovem” Benjamin que o livro em questão
apresenta são, em última análise, textos fundamentais para compreender a organização
sistemática de uma filosofia que num primeiro momento ou numa primeira leitura se apresenta
elíptica, fragmentária e, por vezes, mesmo caótica.
A “tradição moderna” de que fala Antoine Compagnon seria absurda, pois seria uma tradição
feita de rupturas: na medida em que cada geração rompe com o passado, a ruptura em si torna-
se tradição. O autor inicia sua análise a partir de uma citação de Octavio Paz, segundo quem a
“tradição moderna” é uma aporia, um impasse lógico, uma tradição voltada contra si mesma,
que ao mesmo tempo afirma e nega a arte, que decreta, simultaneamente, sua vida e sua morte.
A tradição moderna seria então tradição da negação, consequência do reconhecimento do novo
como valor.
A “crônica intermitente” da tradição moderna passa pelo que Compagnon aponta como os cinco
paradoxos da modernidade: a superstição do novo; a religião do futuro; a mania teórica; o apelo
à cultura de massa; por fim, a paixão da negação. A cada um desses paradoxos da estética do
novo corresponderia, respectivamente, um momento de crise da dita tradição: 1863, ano em
que Manet pintou os quadros “Almoço na relva” [Déjeneur sur l’Herbe] e “Olympia” – momento
que Compagnon também data simplesmente como contemporâneo de Baudelaire; 1913, com
as colagens de Picasso e Braque, os caligramas de Apollinaire, os ready-made de Duchamp, os
primeiros quadros abstratos de Kandinsky e A la recherche du temps perdu de Proust; 1924,
data do primeiro Manifesto do Surrealismo, corresponderia à mania teórica; da guerra fria a
1968, corresponde ao apelo à cultura de massa e da relação da arte com o mercado através da
pop art e da atuação de artistas como Andy Warhol, Jasper Jones, Rauschenberg; a quinta crise,
correspondente ao quinto paradoxo, seria datada a partir dos anos 80, em que a consciência do
moderno teria se tornado mais aguda, chegando aos questionamentos sobre a pós-
modernidade.
A partilha do sensível
Em pólo oposto, aliás, e sem margear essa leitura imobilizadora, Rancière nota que é preciso ter
em conta que há já na base da política uma estética primeira, ou seja, um modo de, ao mesmo
tempo, dividir e compartilhar a experiência sensível comum. Para o autor, essa estética primeira
– a “partilha do sensível” – é uma espécie de forma a priori da subjetividade política, uma
distribuição conturbada de lugares e ocupações, um modo negociado de visibilidade que “faz
ver quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em
que essa atividade se exerce” (p. 16).
Além disso, é preciso dizer, Rancière tende a ver as próprias práticas artísticas como formas
modelares de ação e distribuição do comum, uma vez que, segundo ele, elas são “ ‘maneiras de
fazer’ que intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas relações com maneiras de
ser e formas de visibilidade” (p. 17). Dito de outro modo – e esse é o leitmotiv do livro –, Partilha
do sensível é uma defesa consistente do poder de exemplaridade política que as práticas
artísticas modernas têm tanto sobre as demais práticas quanto sobre os discursos históricos em
geral. A obra inicia com um prólogo e distribui-se depois em cinco pequenos capítulos, cada um
escrito em resposta a perguntas elaboradas pelos filósofos Muriel Combes e Bernard Aspe.
Uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes
exclusivas” (p.15). Como se vê, “partilha” implica aqui tanto um “comum” (a cultura, os direitos
civis, a liberdade) quanto um “lugar de disputas” por esse comum –mas de disputas que,
baseadas na diversidade das atividades humanas, definem “competências ou incompetências”
para a partilha (p. 16).Ainda no primeiro capítulo, partindo de uma análise da condenação
platônica aos poetas, Rancière desenvolve uma densa tipologia estética das práticas artísticas
na história, um quadro inteligente embora infelizmente fluido e fugidio de suas partilhas.
Basicamente, a riqueza dessa taxonomia, afora a fertilidade evidente de sua profusão de ideias,
reside em deixar às claras uma contradição inerente às artes tradicional e moderna. Para tanto,
primeiro o autor reconhece três formas de partilha nas artes: uma ligada ao registro escrito ou
pintado, e outras duas ligadas ao “vivo”, ou seja, ao performático da ação e da palavra oralizada.
E só depois de cruzar tais partilhas com uma análise das artes na história é que Rancière deixa à
vista a contradição mencionada: se do ponto de vista da estética, a arte tradicional está próxima
à “vida” – pois a tematiza hierarquicamente –enquanto a arte moderna está dela afastada, já do
ponto de vista da política, todavia, a arte tradicional curiosamente afasta-se da “vida” – pois se
apresenta como um trabalho extraordinário frente ao ordinário dos demais trabalhos – na exata
mesma medida em que a arte moderna, agora um trabalho banal, dela se aproxima.
O capítulo seguinte – Dos regimes da arte e do pouco interesse da noção de modernidade – tem
início com a apresentação daqueles que seriam os três grandes regimes de identificação da arte
(o “regime ético das imagens”, o “regime poético” e o “regime estético das artes”), segue depois
com a análise dos dois principais discursos sobre a modernidade estética e termina com breves
apontamentos sobre a polêmica noção de vanguarda. Entre tantas questões, merece destaque
a lucidez da interpretação histórica que aqui Rancière faz da arte moderna – ou do “regime
estético das artes”(p. 34), como ele prefere.
Daí por diante, não obstante as premissas não sejam incontestáveis, sua argumentação tem
notável poder de sedução. Primeiro, segundo o autor, é preciso que o anônimo, o banal, e por
extensão as massas se tornem objeto da arte e da literatura modernas para ganharem
visibilidade efetiva. Depois, e só depois, quando a fotografia já passa a registrar a vida ordinária,
é por essa porta que ela, a fotografia, entra no mundo da arte, e não o inverso. E Rancière vai
ainda mais longe quando afirma que não só as artes mecânicas se tornam “artes” graças ao
realismo moderno, como inclusive o próprio conhecimento histórico se abre ao anônimo e às
massas em função da “mesma lógica da revolução estética” (p. 49).
Assim, se a arte moderna autoriza e de algum modo torna visível a representação da vida
comum, e se a vertente utópica das vanguardas chega inclusive a sustentar que a partilha
democrática do sensível cabe ao mais anônimo dos atores sociais, não espanta que no quarto
capítulo, intitulado Se é preciso concluir que a história é ficção: dos modos da ficção, a
modernidade seja vista como “uma época em que qualquer um é considerado como cooperando
com a tarefa de ‘fazer’ a história” (p. 59, grifos meus).A essa altura do texto, aliás, Rancière
sente-se à vontade para reabrir uma ferida muito cara aos historiadores: a relação entre história
e literatura –entre realidade e ficção – e a consequente “impossibilidade de uma racionalidade
da história e de sua ciência” (p. 54).
Da arte e do trabalho: em que as práticas da arte constituem e não constituem uma exceção às
outras práticas, por fim, é o quinto e último capítulo. Nele, o autor tanto reitera e prolonga a
ideia de que a prática artística não é uma exceção às outras práticas quanto afirma que se a arte
é eventualmente uma atividade exclusiva, isso decorre, na modernidade, do fato de que ela
consiste num trabalho comum, e que como tal tem apenas as especificidades tecnológicas
características de qualquer “fazer”. A revolução artística moderna, assim, ao propor a partilha
democrática do sensível, “faz do trabalhador um ser duplo”, dando tempo ao artesão-artista de
estar em nítida oposição àquela proscrição platônica que, ao impossibilitar o trabalhador de
ocupar no tempo outro lugar que não o do seu espaço doméstico de trabalho, impede-o, por
consequência, de partilhar o legado comum da esfera pública.
Deste modo, e para finalizar, creio que esteja aí, afinal, a tônica ou no mínimo a linha de força
que atravessa todo o livro de Jacques Rancière: a curiosa crença de que o sensível somente se
deixe partilhar naquele instante – ele próprio utópico, talvez – em que a oposição ainda sólida
entre “oculto estético da arte pela arte” e a “potência ascendente do trabalho operário” (p. 68)
perca força e, finalmente, se esvaeça.
Adorno notas de literatura
No ensaio, as satisfações que a retórica quer proporcionar ao ouvinte são sublimadas na ideia
de uma felicidade da liberdade face ao objeto, liberdade que dá ao objeto a chance de ser mais
ele mesmo do que se fosse inserido impiedosamente na ordem das ideias (p.41).
O ensaio “não admite que seu âmbito de competência lhe seja prescrito” (p.16), ele trata do que
deseja falar “diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim” (p.17),
vai se aproximar da arte por conta da autonomia estética, e se afasta da mesma por conta da
“pretensão à verdade desprovida de aparência estética” (p.18).
Contudo, o ensaio provoca resistência em ser aceito pela academia como parte dela, forma de
natureza científica, pois evoca uma certa liberdade de espírito por não se ater aos métodos
prescritos. É desenvolvida a partir dos impulsos psicológicos individuais do autor (p.17).
Se o ensaio se recusa a deduzir previamente as configurações culturais a partir de algo que lhes
é subjacente, acaba se enredando com enorme zelo nos empreendimentos culturais que
promovem as celebridades, o sucesso e o prestígio de produtos adaptados ao mercado (p.19).
E se tornando um produto, acaba por contradizer as reflexões da academia. É posto, pela ciência,
como objeto de uma ocupação de segunda ordem (p.44).
O ensaio é mais aberto do que o pensamento tradicional, na medida em que nega qualquer
sistemática, mas por outro lado é mais fechado pois trabalha enfaticamente na forma da
exposição e é aí que ele é semelhante à arte, mas no resto, ele necessariamente se aproxima da
teoria, em razão dos conceitos que nele aparecem, trazendo de fora não só seus significados,
mas também seus referenciais teóricos (p.37).
A maioria dos textos que compõem a coletânea intitulada Notas de Literatura, do filósofo
alemão Theodor W. Adorno faz parte de uma produção que extrapola os âmbitos acadêmicos.
Nela figuram palestras radiofônicas e vários textos anteriormente publicados em revistas.
Contudo, “O ensaio como forma” foi escrito especialmente para o primeiro volume de Notas de
Literatura e é, por assim dizer, um de seus mais afamados ensaios. Ao que pese a defesa da
forma ensaística como expressão de um modelo teórico especialmente envolvido com o objeto
a ponto de destacar as singularidades deste, o ensaio é pensado como produção teórica: talvez
a que mais se aproxime da singularidade da produção literária, sem confundir-se com ela.
Destaca-se, assim no texto que segue, o caráter eminentemente conceitual do ensaio – o qual
não se fecha sob um método pré-estabelecido nem abandona o proceder metodológico – e sua
tentativa de falar sobre aquilo que, segundo Wittgenstein, se deveria calar.
A maioria dos ensaios que compõem Notas de literatura já havia sido publicada esparsamente
em revistas ou pronunciados em forma de conferência radiofônica; mas seu texto de abertura,
“O ensaio como forma”, era ainda inédito. Talvez seja possível pensá-lo como uma espécie de
prólogo, uma síntese do método que perpassa os demais textos; não fosse a ideia de síntese
incabível para um pensamento que, em seu método, quer abarcar ao mesmo tempo a
singularidade do objeto. Todavia, a leitura que segue pretende seguir a hipótese que há nos
escritos de Adorno certa “qualidade ensaística” que, enquanto forma, é a expressão de uma
leitura imanente que se propõe a proceder metodologicamente na abordagem do objeto, mas
sem coagular-se em “método autocrático”.
Antes de entrar nos meandros do ensaio, convém ressaltar que a situação de mal-estar causada
pela dificuldade em designar um lugar seguro para o ensaio, entre as produções teóricas e/ou
literárias, já não é mais tão evidente como o era em 1958. Sua aceitabilidade nos meios
acadêmicos é notória. Porém, se procurarmos por trabalhos que abordem metodologicamente
o ensaio, sobretudo na tentativa de pensar qual é afinal sua particularidade em relação às
demais produções acadêmicas, facilmente nos depararemos com posições distintas: por um
lado, a ausência3 de abordagens que tratem do gênero ensaio; por outro lado, a impressão de
que não há mais nada o que dizer sobre o ensaio, seu lugar “evidente” seria o intermezzo4 entre
o literário e o estritamente teórico. A situação confortável de hoje demanda que se reitere, ante
qualquer definição, que: “O ensaio, porém, não admite que seu âmbito de competência lhe seja
prescrito” (ADORNO, 2009, p. 16). Sendo assim, não se esquadrinhará qualquer classificação
acerca do ensaio, procurar-se-á antes compreender as condições de possibilidade do ensaio
enquanto produção teórica.
Das regras cartesianas contestadas no “ensaio como forma”, talvez a que mais se ressalte a
necessidade do ensaio é a quarta regra com sua imperiosa exigência de que o pensamento
pudesse fazer uma revisão tão completa que nada omitisse. Contra essa regra, Adorno dirá que
“a revisão geral só seria possível se fosse estabelecido de antemão que o objeto a ser examinado
é capaz de se entregar sem reservas ao exame dos conceitos, sem deixar nenhum resto que não
possa ser antecipado a partir desses conceitos” (ADORNO, 2003, p. 34). Contestável é o
pressuposto segundo o qual o pensamento possui um curso lógico que corresponde ao curso da
própria natureza ou, mesmo para o empirismo, possa organizar a Graphos. João Pessoa, Vol
13, N. 1, Jun./2011 – ISSN 1516-1536 97 natureza de acordo com aquilo que toma por axioma.
A palavra “tentativa” [Versuch] designa, nesse caso, não uma intenção programada, mas “sim
uma característica da intenção tateante” (ADORNO, 2003, p. 35). A objeção de que o
A ingenuidade épica é, por assim dizer, uma máscara. Por meio dela, o discurso narrativo
“corrige a si mesmo”: “a precisão da linguagem descritiva busca compensar a inverdade de todo
discurso” (Adorno, 2003, p. 52). Consciente de que a vinculação entre conceito e objeto redunda
em manipulação conceitual, a ingenuidade com que o discurso épico transforma a linguagem na
própria coisa a ser enunciada mostra-se uma atitude reflexiva constituinte da própria linguagem,
o que significa que a ingenuidade trai a si mesma, no sentido de que se revela um produto da
reflexividade; portanto, não ingênua. Vincular conceito e objeto é, segundo Adorno (2003, p.
51), “a tentativa já desesperada da linguagem, quando leva ao extremo sua vontade de
determinação, de se curar da manipulação conceitual dos objetos, o negativo de sua
intencionalidade, deixando aflorar a realidade de forma pura, não perturbada pela violência da
ordem classificatória”. A linguagem denuncia a impossibilidade de vinculação entre conceito e
objeto, mas na epopeia procura alcançá-la através da ingenuidade épica ao fazer com que a
descrição se transforme na própria coisa descrita.
“O narrador se caracteriza por um paradoxo: não se pode mais narrar, embora a forma do
romance exija a narração.” Esta é a frase com a qual Adorno inicia o seu texto. Ela faz citação
direta ao pensamento de W. Benjamim, em o Narrador, para quem o narrador tradicional está
em vias de extinção justamente por que o mundo contemporâneo, industrializado e
individualista, não crê mais nos contos de fadas, nos mitos como antes se cria. Na Antiguidade
e Idade Média, a crença no mito dava ao narrador um status de autoridade para que ele pudesse
narrar suas lendas e sagas de forma mágica, porém crível.
Entretanto, com o advento da máquina a vapor, o homem passou cada vez mais a ser relativista,
cético e individualista, o que o levou a ver no mito apenas histórias da “carochinha”, histórias
para fazer crianças dormir e nada mais. O narrador tradicional, então, perdeu seu posto para
um outro mais dinâmico e de acordo com as necessidades do homem contemporâneo: o
narrador de reportagens e o do romance. Este é extremamente individualista, fala de si sempre,
tenta entender o mundo a partir de sua perspectiva, e busca constantemente um fundamento
para a existência, um sentido para a vida.
Os poetas, distantes da crença pura e real em Deus, passaram a buscar por meio da razão um
consolo que só a fé pode dar. Ao perceberem o quanto todo o seu pensamento é vão, a
depressão e o pessimismo aparecem.
A ciência trouxe o progresso, mas levou a paz. As batalhas medievais eram constantes, e a guerra
contínua, mas quando estas cessavam, o homem encontrava-se em paz e no conforto de sua
família. Não se questionava atabalhoadamente: “De onde viemos, para onde vamos?”, pois não
precisavam de tais questionamentos: a única preocupação que tinham era a de conservar pura
e intacta a sua alma para poder alcançar o paraíso.
A ciência, ao contrário, além de aumentar a guerra, tirou do homem até mesmo esse consolo
espiritual e religioso. Deu mais sobrevida ao homem, mostrou-lhe coisas impensáveis, deu-lhe
status de semideus, mas ainda assim construiu armas poderosas e tanques de guerra que
destruíamem massa. Omercador marítimo foi substituído por grandes embarcações que
transportam toneladas e toneladas de produtos. O agricultor foi substituído pelo grande
produtor, o qual industrializou o campo e tornou este como se fosse uma fábrica capitalista. Não
há mais espaço para o diálogo, para a troca de experiências; nas grandes cidades, por exemplo,
extremamente povoadas, as pessoas se esbarram umas nas outras, mas não se comunicam. A
pressa é a grande conselheira.
Por tudo isso, o narrador tradicional calou-se. E o homem quando volta da guerra vem tão
humilhado e envergonhado que se cala também, mesmo por que suas histórias não teriam a
credibilidade que é dada à imprensa. É esta hoje a grande detentora do saber, não um saber que
leva ao conhecimento, mas a um saber que leva à mera informação. Quanto mais informados
estão os humanos, parece que menos sábios e éticos se tornam.
Como o homem não pode mais narrar as histórias mirabolantes, volta-se para dentro de si
mesmo e narra as suas próprias experiências. Fala de si mesmo. Mas busca um fundamento para
a vida, busca solucionar um problema insolúvel. Nessa linha, há a postura de alguns escritores
que acreditam ser a boa arte aquela que leva o leitor, o espectador à quebra conforto
existencial, a questionar-se sobre tudo, em suma, a angustiar-se. O papel que sempre foi da
Metafísica agora é a base da narrativa contemporânea.
Diante dessa situação, Adorno vai dizer que o romance é a forma de expressão típica desse vazio
existencial causado pela sociedade industrial. “Romance como forma literária específica da
burguesia;” romance que sempre trouxe em seu bojo um realismo e objetivismo inatos. A épica
antiga sempre foi objetiva; nunca tentou descrever ou relatar o lado subjetivo das personagens.
A aventura, a façanha e o mágico eram a intenção a alcançar. O romance também nasceu assim,
pois o seu realismo retrata as coisas com um tom de verossimilhança, verossimilhança esta
sempre desejada pela burguesia ascendente. Mesmo durante o Barroco e o Romantismo, nunca
o romance deixou de primar pela verossimilhança. Até mesmo em romances como as Viagens
de Gulliver, o primado do real está sob uma fina camada de alegórica realidade.
Entretanto, com o advento de alguns inventos, a máquina fotográfica, o cinema, por exemplo,
as artes em geral tiveram que fugir do realismo tradicional e criar uma nova linguagem. A
pintura, por exemplo, tornou-se mais abstrata e fugiu do realismo natural de outrora. As obras
dos Surrealistas são o exemplo mais acabado dessa abstração.
Com o romance não aconteceu o mesmo. Do ponto de vista do narrador, o romance não
conseguiu abandonar o realismo, apenas mudá-lo de foco: do objeto para o sujeito (subjetivismo
extremado). Influenciado por uma necessidade de conhecer o mundo inconsciente, os
romancistas embrenharam-se cada vez mais nesta realidade opaca e densa. Entretanto, sempre
tentando mostrar como essa outra realidade é. Para Adorno esse é o grande problema do
romance, pois este não consegue fugir ao seu destino, ou seja, precisa narrar, contar uma
história, e esta para ser uma história tem que ser verossímil. Daí a tentativa desesperada de
muitos romancistas do século XX de tentar descrever de forma fiel aquilo que se passava no
subconsciente das personagens. A posição do narrador é a de um semideus que tudo vê e
analisa. O narrador volta-se para dentro dos indivíduos e sonda-lhe as almas.
É por isso que as técnicas modernas têm que ser cada vez mais complexas para tentar revelar
esse mundo denso que é a psique humana. Técnicas como o fluxo de consciência e o monólogo
interior são criticadas por Adorno, pois no fundo tentam mostrar uma realidade impossível de
ser averiguada. Como conseqüência disso, muitos romancistas caem num intimismo que chega
a ser uma espécie de biografia. Esse tipo de literatura é considerada, por Adorno, algo sem muito
valor.
Vendo essa realidade, Adorno preconiza sobre o futuro do romance: “Se o romance quiser
permanecer fiel à sua herança realista e dizer como realmente as coisas são, então ele precisa
renunciar a um realismo que, na medida em que reproduz a fachada, apenas a auxilia na
produção do engodo.”
A ideologia da estética
Este livro pode ser melhor caracterizado como uma tentativa para encontrar na categoria da
estética um acesso a certas questões centrais do pensamento europeu moderno — iluminar, a
partir deste ângulo, um leque mais amplo de questões sociais, políticas e éticas.
A Estética nasceu como um discurso sobre o corpo. Em sua formulação original, pelo filósofo
alemão Alexander Baumgarten, o termo não se refere primeiramente à arte, mas, como o grego
aisthesis, a toda a região da percepcção e sensação humanas, em contraste com o domínio mais
rarefeito do pensamento conceitual. A distinção que o termo “estética” perfaz inicialmente,
emmeados do século XVIII, não é aquela entre “arte” e “vida”, mas entre o material e o imaterial:
entre coisas e pensamentos, sensações e ideias; entre o que está ligado a nossa vida como seres
criados opondo-se ao que leva uma espécie de existência sombria nos recessos da mente.
Qualquer um que examine a História da Filosofia européia desde o Iluminismo será tocado pela
curiosa prioridade atribuída às questões estéticas. Para Kant, a estética guarda uma promessa
de conciliação entre a Natureza e a humanidade. Hegel dá à arte um estatuto menor no corpo
de seu sistema teórico, embora lhe dedique um tratado de exagerado tamanho. A estética, para
Kierkegaard, deve recuar diante das verdades mais elevadas da ética e da fé religiosa, mas não
deixa de ser uma preocupação recorrente em sua obra. Para Schopenhauer e Nietzsche, de
forma contrastante, a experiência estética representa a forma suprema do valor. As alusões
impressionantemente eruditas de Marx à literatura mundial combinam-se com a confissão
moderna
Paris capital do século XIX é um livro incompleto, uma obra inacabada1. Folheando este
conjunto de anotações dispersas e de citações múltiplas, o leitor, auxiliado pelo esforço de
montagem dos organizadores, consegue talvez ter uma idéia do esquema de redação do autor,
no entanto, a visão que se tem da totalidade do texto é sempre incerta, imprecisa. A margem
para dúvidas e interpretações é grande, de uma certa maneira pode-se sempre indagar em que
medida Benjamin nos autorizaria, ou não, esta ou aquela inferência. A fragmentação da escrita,
as repetições, a superposição de temas, nos encerram na incompletude da obra, deixando uma
sensação de arbitrariedade que o trabalho criterioso e diligente dos editores não consegue
dirimir. Minha intenção não é porém fazer uma análise integral e rigorosa do livro, se é que
podemos chamá-lo assim. Dele sublinho alguns aspectos que me permitem retomar questões
que já havia anteriormente abordado em meus estudos sobre a França no século XIX (cf. Ortiz,
1991). Interessa-me perceber como Benjamin compreende as transformações que ocorrem
durante este período e em que medida o processo de racionalização da sociedade (para
falarmos como Weber) incide sobre o próprio pensamento que se debruça para compreendê-
la.
Cabe porém, antes de enfocar a temática que escolhi, situar as intenções do autor. Em 1927,
fruto de uma breve estadia em Paris, Walter Benjamin escreve em co-autoria com Franz Hessel
um curto artigo sobre As Passagens. O texto, que não foi publicado na época, demonstra sua
curiosidade por este novo tipo de arquitetura urbana; entre 1927 e 1929, convencido da
importância do tema, ele se dedica a desenvolver uma proposta que denominou de As
Passagens de Paris: uma féerie dialética. O encontro com Adorno em 1929 irá alargar seu
horizonte de trabalho, o projeto se expande e torna-se mais ambicioso. Rolf Tiedmann,
organizador da edição original em alemão (Das Passagen-Werk), considera que a presença de
Adorno e Horkheimer foi determinante, são eles que levam Benjamin a se aproximar dos escritos
de Marx (cf. Tiedmann, 1989). Isso terá uma influência decisiva na reelaboração do esboço
inicial; primeiro, surgem novos temas: hausmannização, combate de barricadas, ferrovias, bolsa
de valores, história econômica, além das secções dedicadas a Marx, Saint-Simon e Fourier.
Segundo, no próprio tratamento da problemática em curso. O conceito de fantasmagoria,
amplamente utilizado por Benjamin, deriva de sua leitura do caráter fetichista da mercadoria.
Entretanto, apesar da abertura de novos horizontes, devido a problemas pessoais e políticos,
entre 1931 e 1934 o projeto se desacelera, é somente quando Benjamin se exila em Paris que o
ritmo de trabalho se intensifica. Ele tem agora à sua disposição o rico material bibliográfico da
Bibliotèque Nationale. Em 1935 há uma mudança de rumo. A proposta já não mais se intitula As
Passagens mas Paris capital do século XIX. Em uma carta a Scholen, Benjamin justifica a mudança
do título ponderando que, analogamente a seu estudo sobre o barroco, no qual tinha
desenvolvido seu pensamento sobre o século XVII a partir da Alemanha, ele gostaria de
compreender o XIX a partir da França2. O esclarecimento merece uma atenção especial pois nos
remete ao conceito de alegoria. Sabemos que a alegoria é uma figura de linguagem na qual diz-
se uma coisa para significar outra. Esta técnica é muito utilizada por Benjamin quando escreve
Origem do drama barroco alemão. Mas qual seria esta outra coisa significada através do
barroco? Em seus comentários à obra benjaminiana Sérgio Paulo Rouanet responde: em
essência, a alegoria barroca remete a uma coisa última, referente unitário que engloba todas as
significações parciais: a história (Rouanet, 1984, p. 38). Isto é, a uma concepção de história
dominante na Alemanha durante o século XVII. O barroco denota assim uma outra coisa; através
dele, é possível captar situações, uma sensibilidade artística, uma maneira de estar no mundo
característica de um momento histórico. O mesmo pode ser dito em relação a Paris. Talvez tenha
sido a proximidade a Baudelaire que tenha permitido a Benjamin conceber a que ponto a cidade,
no seu todo, pode constituir-se num objeto alegórico. Cito duas passagens sugestivas a esse
respeito: O talento de Baudelaire, nutrido com melancolia, é um talento alegórico. Tout pour
moi devient allégorie. Com Baudelaire, pela primeira vez Paris torna-se objeto da poesia lírica
Na poesia de Baudelaire o motivo da morte funde-se com a imagem de Paris. Os Tableaux
parisiens, o Spleen de Paris, Excursus sobre os elementos arquitetônicos da cidade de Paris
(Benjamin, 1986, p. 49). Centrar a análise sobre a cidade, sua configuração, seus eflúvios, sua
atmosfera, significa revelar algo que nela está contido mas que a transcende. Neste sentido
pode-se compreender, a partir de Paris, os mecanismos estruturantes da modernidade do XIX.
Se isso é verdade permanece uma dúvida: porque o autor abandona a metáfora das passagens
para substituí-la por outra?
Não é difícil perceber que as passagens têm também, em diferentes anotações ao longo do livro,
um valor alegórico. Nas páginas de um Guia Ilustrado de Paris pode-se ler o seguinte comentário:
as passagens formam um mundo em miniatura no qual o flâneur pode encontrar tudo o que
necessita (Benjamin, 1986, p. 77). Mundo contendo elementos diversos, parcelas de realidade
a serem decodificadas pelo olhar atento do intérprete. Uma outra referência reforça o aspecto
em questão. Balzac assegurou a constituição mítica de seu mundo determinando-o através de
seu contorno topográfico. O terreno de sua mitologia é Paris. Paris com seus dois ou três
banqueiros, Paris com o grande médico Horace Bianchon, o empreendedor César Birotteau, com
suas quatro ou cinco cocottes, o usurário Gobseck, o pequeno grupo de advogados e de
militares. O que conta é que os personagens deste circuito são comparsas nas mesmas ruas, nos
mesmos ângulos, nos mesmos quartos escuros. Isso significa que a topografia delineia o espaço
mítico da tradição, e, da mesma forma como para Pausania ela tornou-se a chave para a
compreensão da Grécia, as passagens seriam a chave deste século no qual Paris se enraíza
(Benjamin, 1986, p. 129). as passagens exprimiriam assim todo o século XIX, elas constituiriam
a chave de sua compreensão. Creio no entanto que Benjamin pouco a pouco se dá conta da
fragilidade desta proposição inicial. A Paris de Balzac é muito distinta da Paris de Baudelaire. A
distância que se interpõe entre elas é preenchida pelas transformações urbanísticas, pelo
advento da luz elétrica e dos bondes, pela invenção do cinema e dos novos estilos arquitetônicos
em ferro e vidro, estações ferroviárias e grand-magasins. Com o passar dos anos Paris se
metamorfoseia afastando-se de seu passado arraigado ao Antigo Regime. O esplendor das
passagens tem ainda uma vida curta confinando-se ao período que vai do final dos anos 20 ao
início dos 503. Seria pouco plausível eleger como argumento central de análise um elemento
em decadência. Benjamin, ao renomear seu projeto, desloca suas preocupações para uma
totalidade que contém em seu bojo traços nodais para ser a capital do século XIX, ou melhor,
um palco no qual se encenaria o drama da modernidade.
Uma alegoria é no entanto algo abstrato, para apreendê-la é necessário amarrar a análise a
elementos mais concretos. Benjamin irá encontrá-los em temas como: iluminação a gás, sistema
ferroviário, passagens, eletricidade, fotografia, folhetim, magasins de nouveautés, grand
magasins, etc. Sua escolha de assuntos aparentemente díspares não é casual, eles constituem
objetos heurísticos que alegoricamente exprimem uma realidade. Paris tornase assim um
mundo em miniatura. A estratégia benjaminiana privilegia portanto os pequenos objetos. O que
lhe prende a atenção são o traçado e os nomes das ruas, as catacumbas, as edificações, como
as pessoas se vestem, comem e vivem. Há algo de Simmel neste olhar posicionado ao lado dos
indivíduos e da paisagem. As relações sociais são captadas no fluir do dia a dia. Pode-se entender
o estilo de Benjamin como uma proposta de contraponto a uma forma mais abstrata de
trabalhar os laços sociais, ponto de vista que privilegiaria o que muitos historiadores denominam
atualmente de vida cotidiana. Nas edições alemã e francesa do livro, Rolf Tiedmann chama a
atenção para este aspecto da démarche benjaminiana. Tudo se passa como se ele deixasse se
envolver por um doce empirismo abandonando o pensamento à singularidade dos objetos. Visto
assim seu enfoque se encontraria na contracorrente de uma filosofia mais acadêmica (é desta
forma que muitos autores entendem o contraste entre Benjamin e Adorno) ou de uma
perspectiva sociológica macro cujo interesse focalizaria muito mais as estruturas do que
propriamente o dinamismo das interações sociais. Entretanto, é preciso ter claro que a temática
do cotidiano não é apenas fruto de uma construção intencional do autor, de sua postura
filosófica, ela permeia o próprio material por ele utilizado. É suficiente folhearmos os textos
citados ao longo do livro: Quand jétais photographe (Nadar, 1900), La photographie au salon de
1859 (Figuier, 1989), Histoire de la publicité (Datz, 1894), Ce quon voit dans les rues de Paris
(Fournel, 1858). Sem nos esquecer dos diversos escritos de Georges DAvenel sobre os
mecanismos da vida moderna, eles falam de alimentação, transformação do comércio, advento
do transporte urbano, publicidade, estações de trem, esgotos, etc. (cf. DAvenel, 1896). Trata-se
de um tipo de literatura, de crônica escrita na primeira pessoa, na qual a cidade se revela nas
suas entranhas. Nela se encontram inseridos os indivíduos com seus modos de vida, seus medos
e desejos. Basta olharmos as publicações da época para percebermos a que ponto os temas
elaborados por Benjamin se sobrepõem aos assuntos por elas descritos; por exemplo, na Revue
dês Deux Mondes encontramos artigos sobre o luxo, a distribuição da água em Paris, as
exposições universais, o telégrafo sem fio, a hora legal, a iluminação elétrica, etc.4 O ensaísmo
do século XIX mobiliza a imaginação de literatos, jornalistas, fotógrafos, filósofos e críticos de
arte. Paris, no seu dia a dia, é tematizada nos seus múltiplos aspectos5. A forma de escrita desses
autores desenvolve-se ao sabor da idiossincrasia de cada um, ela nada tem de universitária e
dificilmente poderia se encaixar nas exigências de uma ciência social que ainda mal existia. (a
sociologia e a história estavam em processo de estruturação como campos autônomos de
saber). O ensaísmo sobre a vida cotidiana era a linguagem dominante na qual se expressava a
maioria dos escritores da época. Benjamin, ao reapropriar-se deste legado bibliográfico, irá
certamente resignificá-lo, mas é difícil dizer que entre sua proposta e o material disponível existe
uma ruptura, pelo menos temática. Benjamin bebe na fonte da Bibliotèque Nationale para, aí
sim, elaborar sua interpretação pessoal.
É possível, mesmo de maneira imprecisa, datar o período no qual se desenrola o enredo de Paris
capital do século XIX. Metaforicamente, utilizando as anotações do autor, eu diria que ele se
estende de 1828, quando circula o primeiro ônibus ligando a Bastille à Madeleine, a 1913,
momento em que o último bonde puxado a cavalo é definitivamente superado pela tração
motora (cf. Benjamin, 1986, p. 554). Entre uma ponta e outra Paris passa por mudanças
profundas, sua história, marcada por diferentes cadências, revela como o ritmo lento dos
cavalos é substituído pela velocidade dos automóveis e dos bondes elétricos. Não diz Benjamin
que ainda em 1839 era elegante as pessoas passearem acompanhadas de tartarugas pelas
calçadas (cf. Benjamin, 1986, p. 552) (o que exprime o andar vagaroso do flâneur)! A rigor, talvez
fosse esclarecedor distinguir entre dois séculos XIX, duas modernidades. O primeiro é fruto da
Revolução Industrial: advento do vapor e das ferrovias, mecanização das fábricas, crescimento
da indústria, criação de grandes empresas industriais e comerciais, desenvolvimento do
patronato e do proletariado, migração rural, crescimento das cidades. Entre a Restauração e o
início do Segundo Império a sociedade francesa conhece uma transformação radical. Não é por
acaso que Louis Chevalier escolhe este período para estudar as classes perigosas (cf. Chevalier,
1984). É no interior de uma Paris superpovoada, sufocante e miserável (tão bem descrita por
Victor Hugo) que ele pode retratar a existência da classe trabalhadora. O florescimento da nova
ordem econômica e social pode ser ainda captado de maneira viva através da discussão sobre
as duas Franças. Entre 1822 e 1836 governantes e políticos franceses opõem uma França do
Norte, industrializada, moderna, urbana, a uma França do Sul, agrícola, tradicional, atrasada (cf.
Chartier, 1978). Caberia à parte esclarecida levar o progresso para os confins do país onde
predominavam ainda as forças obscuras do passado. As transformações da sociedade francesa
têm implicações na esfera cultural e social. A invenção da daguerreotipia em 1839 impulsiona o
mercado de retratos, fonte constante de atrito entre fotógrafos e pintores. O desenvolvimento
da imprensa, com as inovações técnicas e comerciais (introdução de um novo sistema de
impressão e da publicidade como fonte obrigatória de lucro dos jornais), dá origem ao romance-
folhetim, gênero que se populariza sobretudo entre as leitoras femininas (nesta esfera um outro
conflito, mobilizando escritores versus jornalistas, se instaura). O comércio de varejo conhece
também sua revolução. O fim das corporações elimina as vantagens que os alfaiates detinham
na determinação do preço das roupas. Surge assim a figura do negociante transformador. Eles
compram tecidos em grande quantidade, utilizam a mão de obra terceirizada das costureiras,
distribuem as mercadorias para os novos estabelecimentos. O surgimento dos magasins de
nouveautés nas décadas de 30 e 40 exprime este movimento de renovação do comércio (cf.
Faraut, 1983). Aí se vendiam tecidos e artigos de luxo: roupas, sedas, peças de lã, lençóis, botões,
luvas, ocasionalmente peles e guarda-chuvas. Dentro do espírito da época, o agrupamento de
mercadorias tão diversas era uma novidade; ele rompia com a especialização dos pequenos
comerciantes tradicionais. Em 1855 um Guia de Paris dizia: O que antes era preciso comprar em
trinta lojas, atualmente encontra-se reunido em vastas galerias, com seções de objetos para a
vestimenta e para a casa, desde o vestido ao boné confeccionado, das luvas aos guarda-chuvas
(citado em Jarry, 1948, p. 27). As novas lojas implantam ainda uma mudança na apresentação
das mercadorias, introduzindo exposições por seções e balcões especializados por ramos de
produto. Elas permitem também a livre circulação dos clientes no seu interior estimulando desta
forma uma nova prática social: fazer compras.
O segundo século XIX se distancia da Revolução Industrial para se apoiar num outro sistema
técnico: telégrafo sem fio, eletricidade, automóvel, indústria química, cinema, etc. (cf. Gille,
1978; Morsel, 1983). Por isso os economistas falam, a partir de 1880, de uma segunda revolução
industrial a indústria descola da agricultura, no interior do setor industrial diminui a produção
de bens de consumo (têxtil, alimentos) em benefício da produção de equipamentos,
desenvolvimento das indústrias vinculadas às cidades (água, eletricidade), da indústria de
metais (ligas) e produção de energia. Os historiadores franceses tendem a concordar que, a
partir de meados do século, o ritmo da história social se modifica (cf. Agulhon, 1983). O termo
em si é impreciso meados do século mas quando lemos sobre as diversas áreas específicas
(econômica, demográfica, urbana, técnica), parece haver uma convergência no sentido de se
localizar, dentro dos limites dessa duração, senão uma ruptura, pelo menos uma aceleração. O
corte meados do século pode ser ainda encontrado no setor das comunicações; não é por acaso
que se fala também em um segundo momento da história das ferrovias. Uma das dificuldades
na implantação das estradas de ferro na França dizia respeito à indefinição sobre quem deveria
construí-las. Até 1839 os empreendimentos estavam reservados ao capital privado mas devido
a múltiplos fatores a maioria das companhias não conseguiram cumprir suas promessas. Em
1842, após uma polêmica entre o setor privado e o Estado, chega-se a um acordo para se
estabelecer o mapa ferroviário francês. Porém, os acontecimentos políticos de 1848 e a crise
econômica irão retardar novamente a realização dos projetos. É somente no decorrer do
Segundo Império que as grandes companhias conseguem equacionar seus problemas; durante
a Terceira República as ferrovias se expandem e, pela primeira vez, passam a integrar um
sistema nacional de comunicação. Para se ter uma idéia: em 1847 a quilometragem explorada
era de apenas 1.832 km, em 1908 ela atinge 40.239 km, transportando um volume de 16 milhões
de passageiros por quilômetros (cf. Levasseur, 1912).
Evidentemente a distinção entre dois séculos XIX é puramente analítica, muito da primeira
modernidade se prolonga até a segunda (iluminação a gás, no transporte urbano a tração a
cavalo, etc.). Mas ela é útil na medida em que nos permite compreender como qualitativamente
a segunda modernidade se estrutura sobre bases materiais distintas da anterior. Um exemplo
significativo é o surgimento dos grand magasins. A passagem dos magasins de nouveautés para
os grand magasins corresponde a uma nova fase do capitalismo francês (cf. Bergeron, 1983;
Miller, 1987). Ela vinculase a transformações econômicas importantes e às mudanças que se dão
nos transportes (estradas de ferro), no sistema bancário e nos negócios. Isso implicou na criação
de mecanismos mais sofisticados de vendas e na gestão de grandes espaços nos quais as
mercadorias pudessem ser expostas e exibidas para o grande público. As novas lojas de
departamentos ultrapassam os antigos estabelecimentos comerciais em dois pontos: a
dimensão arquitetônica e o volume de negócios. Como empresas ndustriais elas funcionavam a
base de uma rápida rotação dos estoques, o que lhes permitia praticar uma política de preços
mais atrativa. O volume de vendas possibilitava ainda uma maior diversificação dos artefatos:
confecção, brinquedos, papelaria, etc. A estratégia comercial, calcada na publicidade de massa
(a rigor dirigida para as classes médias mais abastadas), requeria ainda a mobilização de uma
multidão algo em torno de quinze a dezoito mil pessoas entravam e saíam diariamente do Bon
Marché e do Louvre. Para abrigar toda essa gente os arquitetos tiveram de construir espaços
deliberadamente concebidos para a exposição e a venda de mercadorias. Arquitetura em ferro
e vidro capaz de superar os inconvenientes das construções de pedra pois uma das
características do novo estilo arquitetônico foi a criação de grandes vãos que lembravam as
antigas catedrais góticas6.
A cadência desses dois séculos XIX transparece claramente no texto de Benjamin. Há várias
formas de marcá-la. Primeiro, a superação das passagens. A esse respeito, uma citação, retirada
de um livro de Jules Claretie, La vie à Paris 1895, é sugestiva: Em Paris… as passagens que
estiveram tanto tempo na moda, delas as pessoas fogem como se sentissem enclausuradas. A
passagem, que foi para o parisiense uma espécie de salão lugar onde se fumava, se conversava,
hoje nada mais é do que um abrigo do qual nos lembramos quando chove. Algumas passagens,
por causa da celebridade desta ou daquela loja que aí se encontra, guardam ainda uma certa
atração. Mas é o renome do locatário que prolonga a voga, ou melhor, a agonia do lugar. Para
os parisienses modernos as passagens têm um grande defeito; pode-se dizer delas o mesmo que
de certos quadros de perspectiva sufocante: falta ar(Jules Claretie apud Benjamin, 1986, p. 176).
Fechamento, falta de ar. As qualificações procedem. As passagens exprimem uma modernidade
contida, uma intenção de mudança restrita a uma urbanidade ainda compartimentada. Como
nos lembra Philippe Ariès, até a segunda metade do século XIX, a velha Paris era constituída por
uma rede densa de pequenas células autônomas mas sem relação entre elas (cf. Ariès, 1971).
Cada zona da cidade era um mundo, um universo sem comunicação com os outros. As passagens
conseguiam no máximo estabelecer um contato entre uma rua e outra mas dificilmente
poderiam ser tomadas como a expressão de ruptura desses mundos estanques. É apenas com
as intervenções de Haussmann que Paris transforma-se numa cidade moderna, isto é, num todo
integrado. Hausmann racionaliza o espaço urbano, traça ruas, avenidas, pontes, praças,
interligando os pontos nevrálgicos da urbes. Um eixo norte-sul, leste-oeste, comunica o centro
à periferia, e as grandes vias de comunicação convergem para as estações de trem. Hausmann
inventa o boulevard multiplicando a escala urbanística até então conhecida (ruas com mais de
30 metros de largura). Não se pode esquecer que até 1828 Paris não dispunha de nenhum tipo
de transporte público. No entanto, mesmo após essa data, as várias sociedades criadas para
explorar a locomoção citadina tinham apenas uma existência rudimentar. O número de carros
disponíveis era pequeno, o trajeto percorrido irregular e o serviço oferecido descontínuo.
Somente em 1855 foi fundada a Companhia Geral de Ônibus cujo objetivo era unificar o
transporte público. As reformas urbanísticas e a generalização dos meios de transporte fazem
com que a cidade possa ser concebida como um sistema integrado. A noção de circulação se
sobrepõe assim à de fixidez. Mas para isso a velha Paris teve de ser destruída. Um testemunho
recolhido por Benjamin diz: Paris deixou de ser para sempre um conglomerado de pequenas
cidades que tinham sua fisionomia própria, sua vida, onde se nascia e se gozava a vida, lugar do
qual não se sonhava partir, onde a natureza e a história tinham colaborado para realizar a
variedade na unidade. E o autor acrescenta, na sua cidade transformada numa encruzilhada
cosmopolita, o parisiense tornou-se um ser desenraizado(Benjamin, 1986, p. 185). A passagem
marca dois aspectos de um mesmo fenômeno: o fim do isolamento no interior da cidade e o
desenraizamento do indivíduo de sua territorialidade local. Os dois movimentos se completam.
Na medida em que caem as antigas barreiras, em que as ruas se expandem, a mobilidade das
pessoas se intensifica. Como comenta um autor da época: Nossas ruas mais largas e nossas
calçadas mais espaçosas tornaram mais fácil a doce flânerie, impossível para nossos pais, a não
ser nas passagens (Benjamin, 1986, p. 79). O ritmo da história dilata e acelera os passos do
transeunte. Entretanto, o que se ganha em locomoção necessariamente não se traduz em
liberdade ou emancipação. O segundo século XIX desnuda as imposições de um mundo
capitalista cujos tentáculos se estendem sobre a vida cultural. Benjamin capta muito bem este
aspecto quando contrasta As passagens ao grand magasin. As passagens, em sua modernidade
restrita, ofereciam ao passante uma possibilidade de deslocamento ainda não inteiramente
imerso nas malhas da racionalidade comercial. As mercadorias expostas nas vitrines atiçavam
seu apetite de consumo mas essas ruas sensuais do comércio eram enclaves incrustados em
poucos lugares da cidade. Entre o apelo e a realização do ato propriamente dito faltava um elo:
a revolução dos transportes, a redefinição do comércio, a renovação urbana, a transformação
das finanças. É somente com o advento das lojas de departamento que pela primeira vez o
consumidor começa a se sentir massa(Benjamin, 1986, p. 87). Ou ainda: A identificação com a
mercadoria é fundamentalmente uma identificação com o valor de troca. O flâneur é o homem
virtuoso desta identificação. Ele põe em movimento o conceito de venalidade. Assim como a
loja de departamento é sua última aventura, o homem-sanduíche é sua última
encarnação(Benjamin, 1986, p. 582-583).
O segundo século XIX se apresenta assim sob o signo de uma modernidade comprometida. Nela,
o indivíduo cede lugar à multidão. O termo em si é sugestivo pois caracteriza o debate de toda
uma época. Ele significa primeiro produção em massa. A Revolução Industrial redefine as
relações produtivas, a fábrica torna-se o centro das atividades de uma sociedade que rompe
com os laços tradicionais. Isso tem implicações em diversos setores da vida social, da confecção,
padronizando a fabricação das vestimentas e influenciando a moda, à imprensa, que passa a se
organizar segundo critérios de eficiência técnica e produtiva voltada agora para uma difusão de
massa (a rigor isso ocorre somente no final do século quando jornais do tipo Le Petit Parisien
tem uma tiragem de mais de um milhão de exemplares). Assim, vários bens (esgoto, água, gás,
eletricidade, etc.), antes restritos a uma camada privilegiada de pessoas, pouco a pouco são
difundidos no conjunto da população (movimento que se completa no século XX). As
comodidades, como se dizia no Antigo Regime, antes vistas como objetos e serviços de luxo,
com o processo de mecanização, tornam-se cada vez mais acessíveis às diferentes classes e
camadas sociais. Mas multidão possui ainda um outro significado: o termo se contrapõe ao de
individualidade. Na aglomeração das grandes metrópoles ela absorve os traços de singularidade
integrando o indivíduo à massa anônima de pedestres. Anota Benjamin a esse respeito: A massa
em Baudelaire. Distende-se como um véu diante do flâneur: é a última droga do solitário.
Suprime portanto todo sinal de singularidade: seu último asilo é no meio do bando(Benjamin,
1986, p. 579). Aglomeração, bando, como é possível a singularidade neste contexto? A multidão
expressa uma concentração, um volume localizado num determinado espaço físico. Ela é
portanto homogênea. Nela, toda heterogeneidade se dilui em benefício do todo, do anonimato.
A multidão é inimiga da diversidade, tema amplamente explorado por Gustave Le Bon e Gabriel
Tarde (cf. Le Bon, 1980; Tarde, 1989). Benjamin o retoma de outra maneira, por um viés
marxista. Como as mercadorias que podem ser reduzidas a um mesmo denominador comum, o
dinheiro, equivalente universal, os indivíduos, no processo de consolidação da lógica capitalista,
se fundem a um mesmo padrão transformando-se em massa. O flâneur torna-se assim
mercadoria. Uma referência ao livro de Edmond Jaloux, Le Dernier Flâneur, é neste ponto
expressiva: Um homem que passeia não deveria se preocupar com os riscos que corre ou com
as regras de uma cidade. Se algo divertido lhe vem ao espírito, se uma loja curiosa cruza o campo
de sua visão, é natural que, sem enfrentar os perigos que nossos antepassados jamais
suspeitaram, ele queira atravessar a rua. Ora, hoje ele não pode fazê-lo sem tomar mil
precauções, sem antes interrogar o horizonte, sem pedir licença à prefeitura de polícia, sem se
misturar com um rebanho agitado e atordoado, para o qual o caminho já se encontra traçado
de antemão pelo brilho do vil metal. Antigamente, seus irmãos os badaud, que caminhavam
tranqüilamente pelas calçadas, e paravam em todos os lugares, davam a este fluxo humano uma
certa delicadeza e tranqüilidade que foi perdida. Agora é a torrente na qual você é engolfado,
apertado, jogado à torto e a direito. No final do XIX, o flâneur da primeira modernidade,
acostumado ao ritmo lento das passagens, encontra dificuldade em se deslocar. A circulação
pela cidade tornou-se certamente mais fácil e mais rápida, as ruas e o sistema viário lhe
permitem locomover-se sem maiores problemas, mas as imposições externas são também mais
coercitivas, cada vez mais ameaçam sua liberdade individual.
Logo no início de seu livro, Ce quon voit dans les rues de Paris, publicado em 1858, Victor Fournel
nos interpela a partir do conto de Edgar Allan Poe O homem da multidão (cf. Fournel, 1858).
Num diálogo imaginário com o leitor o autor confessa sua intenção, transformar-se num
personagem de Poe e traduzir para ele o que vê perfilar diante de seus olhos. Victor Fournel
quer inclusive inventar uma teoria do flâneur e para isso procura cuidadosamente discernir
entre sua atitude e a do badaud7. O homem que se desloca no meio da multidão o faz
impulsionado por sua curiosidade intelectual, ele deliberadamente toma a decisão de conhecer,
de escolher os caminhos, para apreender, como uma máquina fotográfica, os pequenos detalhes
da vida cotidiana. O badaud erra inconscientemente pela cidade, mendigo ou pedestre, ele é
matéria prima que constitui a massa, elemento homogêneo que flui pelas artérias urbanas. A
proposta de Fournel é sugestiva pois reflete sobre um personagem urbano até então
desconhecido na cidade de Paris. Sua resposta isola ainda um outro elemento, a liberdade de
consciência, como fator constitutivo do ato da flânerie.
Sociologicamente, a pergunta que se pode fazer é a seguinte: porque o flâneur surge apenas no
século XIX? Quais são as transformações que permitem o seu advento? Embora Benjamin não
formule explicitamente a questão, a resposta encontra-se ao longo de toda sua obra: ele é fruto
da modernidade. As sociedades do Antigo Regime eram formadas por conjuntos
compartimentados. Neles, a circulação de pessoas, mercadorias, idéias, objetos, foi sempre
restrita. A estabilidade da ordem estamental requeria esta compartimentação dos mundos e o
cerceamento da mobilidade, limites que separavam as classes sociais, a cidade do campo, a
cultura erudita da cultura popular. Antes da Revolução Industrial, das transformações políticas,
e do Estado-nação, cada país era constituído por uma série heterogênea de regiões, de universos
não integrados numa mesma totalidade. Paris, apesar de ser o centro da corte, traduzia na sua
urbanidade esta contenção espacial. Já em 1783 a Secretaria da Fazenda havia proposto a
construção de um novo muro para envolvê-la completamente. As antigas muralhas, edificadas
na Idade Média, há muito haviam sido ultrapassadas pela expansão da cidade. O intuito era que
as novas portas (hoje meros nomes de estações de metrô) conseguissem regular o fluxo de
pessoas e de mercadorias. Barreira material pretendia-se controlar os impostos locais (Polanyi
nos lembra que o surgimento de um mercado unificado nacional é fruto do século XIX) , elas
simboliza-vam como cada lugar, cada região, se via como uma unidade fechando-se ou abrindo-
se para o mundo existente lá fora. Mas vimos ainda como dentro de Paris esta segmentação se
reproduzia. A circulação entre um bairro e outro, o deslocamento das pessoas, era bastante
reduzido. Os estudos mostram que o quartier funcionava como uma unidade de trabalho, de
comércio, religiosa e de lazer (cf. Galabrun, 1983). Fora as profissões que exigiam uma certa
mobilidade, magistrados, médicos, tabeliões, a maioria da população encontrava-se presa à sua
localização territorial. A nova organização social, fundada na indústria, rompe com esses
constrangimentos promovendo o intercâmbio entre espaços até então voltados sobre si
mesmos. A circulação, princípio estruturante da modernidade, possibilita a emergência do
flâneur. Enquanto indivíduo, isto é, cidadão que vê seus direitos afirmados somente após a
Revolução Francesa, ele pode escolher seu destino sem se atrelar à sua origem estamental.
Desenraizando-se de sua territorialidade ele pode caminhar, mover-se segundo os objetivos
traçados por sua consciência individual.
Mas o que faz o flâneur? Olha e descreve. Personagem urbano, suas antenas sensoriais
privilegiam a visão, sentido associado por Simmel às qualidades desenvolvidas pelos indivíduos
na grande metrópole. Para ele a cidade é uniforme apenas na aparência, sob ela se esconde
todo um mundo, realidade subterrânea ao cotidiano do homem ordinário. Diz Benjamin:
Reconstruir topograficamente a cidade, dez, cem vezes, através das passagens e das portas, dos
cemitérios e dos bordéis, das estações de trem… como antigamente podíamos fazê-lo através
das igrejas e dos mercados. Os vultos mais secretos da cidade situam-se na sua parte mais
recôndita (Benjamin, 1986, p. 130). A cidade se apresenta assim como um labirinto, espaço cheio
de surpresas, porém, só o olhar perspicaz capta o que subjaz à sua manifestação epidérmica.
Observa-se o inesperado, o não corriqueiro8. Este é o traço distintivo entre o flâneur e o homem
que deambula pelos mesmos caminhos por ele percorrido. A flânerie pressupõe portanto a idéia
de distanciamento. Para compreender o que se vê é necessário que o observador se separe do
que está sendo observado. Neste ponto, uma primeira aproximação pode ser feita com o
viajante. A viagem é sempre um deslocamento através de espaços descontínuos. Aquele que
viaja sai de seu território, de um mundo que lhe é familiar, para encontrar outros lugares,
distantes, separados de sua vivência anterior. O viajante é um estrangeiro, alguém à parte do
universo descrito pelo relato da viagem. De alguma maneira o flâneur partilha com ele sua
condição de exterioridade. Baudelaire dizia que para o verdadeiro flâneur é um imenso prazer
habitar o indeterminado, o provisório… Estar fora de casa, e por isso sentir-se em casa em
qualquer lugar; ver o mundo, ser o centro do mundo e permanecer escondido do mundo, esses
são alguns dos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais…O observador
é um príncipe que goza de sua condição incógnita (Benjamin, 1986, p. 576). Existem no entanto
algumas discrepâncias que merecem ser sublinhadas. Para o viajante, a condição de
estranhamento está contida no próprio ato do deslocamento. O ponto de partida do olhar
encontra-se imediatamente afastado dos dados coligidos. Quem observa é naturalmente um
estranho. O flâneur deve compreender um elemento do qual ele é parte integrante pois viaja
sem sair do lugar. Para ele a cidade é moradia e paisagem. Moradia porque aí ele habita, ele
nela se insere como um nativo; paisagem pois a proximidade do quadro que o envolve deve ser
apreciada à distância. Por isso torna-se necessário construir mecanismos de estranhamento que
o desenraizem de sua percepção imediata das coisas. Neste sentido, ele se assemelha ao
sociólogo. Para entender sua própria cultura ele necessita precaver-se contra o habitualmente
conhecido, isto é, o senso comum. Todo seu esforço se concentra na elaboração de artifícios
que lhe permitam sair do mundo que pretende apreender. Sem isso sua visão perderia em
nitidez.
A flânerie é pois uma atividade intelectual. Em Benjamin isso se exprime através de duas
metáforas, o caçador e o detetive. Estudioso e caçador, o texto é uma selva na qual o leitor é
caçador (Benjamin, 1986, p. 992). A cidade-labirinto, no emaranhado de sua sinuosidade, se
apresenta como um texto espesso, este é o terreno no qual opera a razão que o decifra. Ela
segue as pegadas para descobrir o verdadeiro lugar da caça. O mesmo movimento é percorrido
pelo saber detetivesco. Na verdade, a figura do flâneur anuncia a do investigador(Benjamin,
1986, p. 574). Afinal os dois partilham o mesmo talento, revelar o que se esconde por detrás da
realidade aparente. Na sua origem o romance policial é muito distinto de sua versão
cinematográfica atual. Nele, a mente comanda a ação, e não os músculos como no estereótipo
hard-boiled inventado por Hollywood. Privilegia-se assim o espírito de observação. Como bem
o demonstra Régis Messac, o nascimento do romance policial é resultado do cruzamento de
duas dimensões: urbanidade e racionalidade (cf. Messac, 1972). A complexidade da trama
necessita da existência de uma sociedade moderna na qual a população se concentra dentro de
volumes espaciais relativamente restritos, onde todos se observam uns aos outros, e no qual a
perseguição da polícia se desdobra em esconderijos que muitas vezes escapam à sua autoridade
(não foi por acaso que os primeiros projetos de numeração das casas de Paris foram uma
iniciativa da polícia. A medida racionalizadora visava justamente reforçar o seu controle) (cf.
Pronteau, 1966). Por isso o tema da multidão encanta tanto a Poe, nela o assassino se esgueira
oculto pelo manto homogêneo que o protege. Mas o romance policial é também
contemporâneo da difusão do pensamento científico. O século XIX vê surgir inúmeros
movimentos que tomam a ciência, ou melhor, sua vulgarização, como referência fundamental,
por exemplo, o mesmerismo, a racionalização do mundo dos espíritos (Allan Kardec), a religião
universal de Auguste Comte, o hipnotismo como atração popular. Racionalismo validado pelas
inovações tecnológicas: fotografia, cinema, ferrovias, máquinas agrícolas. As exposições
universais desempenharam um papel fundamental neste processo de consagração e de
legitimação da ciência e da técnica (cf. Ory, 1982). Os literatos têm assim à sua disposição um
novo modelo para a construção do personagem central da narrativa detetivesca. Seu método
de conhecimento utiliza a dedução a partir das provas materiais encontradas nos locais do
crime, e a indução que lhe permite abstratamente articulá-las à resposta correta para a solução
do problema. Nas palavras de Sherlock Holmes: A partir de uma gota dágua, um lógico pode
inferir a possibilidade de um Atlântico ou de uma Niágara, sem ter visto ou ouvido falar deles. A
vida é uma grande cadeia, conhece-se sua natureza desde que nos seja mostrado um simples
elo deste encadeamento(citado em Ousby, 1997, p. 48). O detetive é portanto um especialista
na observação dos detalhes, em seu métier a razão é ferramenta essencial na elucidação dos
mistérios. Como qualquer cientista social ele deve lutar contra a ilusão da transparência do real
(cf. Bourdieu, Passeron & Chamboredon, 1973). Sua metodologia apóia-se na construção
paciente de uma cadeia interpretativa que foge à descrição superficial dos fatos.
Mas a flânerie é ainda uma arte, o que reforça sua aproximação com o trabalho intelectual.
Vimos como o flâneur se define a partir de um duplo desenraizamento, de sua condição
estamental e de seu local de moradia. Qualidades que o associam a um outro personagem: o
boêmio. Diz um desses escritores citados ao longo do livro: Entendo por boêmios esta classe de
indivíduos que não se encontram em nenhum lugar e que se encontram em todos os lugares.
Que não possuem um estado único mas exercem cinqüenta profissões; que a maioria deles
levanta-se de manhã sem saber onde irão jantar à noite; ricos hoje, famintos amanhã(Benjamin,
1986, p. 558). O boêmio caracteriza-se por sua mobilidade, vive entre as classes sociais, não
pertence a nenhuma delas, e não se fixa permanentemente em nenhum lugar (erroneamente
acreditava-se que ele era oriundo da Boêmia e seu nomadismo um traço herdado dos ciganos).
Entretanto, ser boêmio não é uma condição, mas uma eleição pessoal, uma maneira de se
colocar à margem da sociedade contrapondo-se aos valores dominantes (por exemplo, na
pintura o repúdio às instituições tradicionais como as academias). O universo da boêmia, que
em Paris envolve, literatos, teatrólogos, fotógrafos, pintores, encerra portanto uma visão de
mundo: valorização da individualidade e das qualidades artísticas, recusa dos ideais burgueses.
Muito da literatura escrita sobre o flâneur provém deste meio social no qual se cultiva um
comportamento à esquerda dos cânones estabelecidos. Não se pode esquecer que o conceito
de artista enquanto indivíduo dotado de um gênio criador é um produto do século XIX. Somente
após a Revolução Industrial a arte é concebida como uma realidade superior na qual se expressa
a idiossincrasia estética de cada um (cf. Williams, 1958). A metáfora da boêmia, enquanto
desenraizamento, não fixação às normas, revela justamente este traço de um individualismo
consciente. Como se pode ler numa das anotações de Benjamin: Sair quando nada nos força a
fazê-lo, seguir nossa inspiração como se o fato de virar à direita ou à esquerda constituísse em
si um ato poético (Benjamin, 1986, p. 567). Inspiração, liberdade, arte, escolha. Os termos se
encadeiam. Mas não devemos pensar que este ato impensado seja um ato desinteressado.
Pierre Boudieu tem razão quando diz que a escolha artística está fundada em critérios muito
claros: os interesses estéticos (cf. Bourdieu, 1996). Da mesma forma eu diria que a escolha do
flâneur não está isenta de intenções, na verdade, ela apenas se apresenta como tal. Ao distinguir
sua atividade das outras, em particular do hoORTIZ, mem da multidão, ele afirma uma vontade
específica: conhecer uma realidade que se subtrai à percepção da maioria das pessoas. Virar à
direita ou à esquerda, nada tem de gratuito, trata-se de um ato cujo objetivo foi previamente
traçado. Neste sentido, a arte da flânerie é homóloga ao conhecimento científico, dito em
termos de Robert Nisbet, seus agentes são movidos pelo desejo de escapar às pressões da vida
cotidiana (cf. Nisbet, 1979). É nesta viagem/deslocamento, guiada pelos ditames do campo
científico, que reside a força da imaginação sociológica.
O paralelo com a arte pode ser ainda desdobrado em outro plano. Sabemos que durante o
Antigo Regime a pintura e a literatura evoluíam dentro de universos controlados externamente
pelo mecenato e pelas exigências políticas (as academias). Por isso Sartre diz que os escritores
tinham nesta época dois caminhos possíveis a serem trilhados; ou se conformavam às
imposições de uma aristocracia que os sustentava materialmente, ou, enquanto burgueses,
tomavam partido contra ela. Em ambos os casos porém o elemento político era determinante,
a literatura se encontrava a serviço desta ou daquela classe social (cf. Sartre, 1972). O artista do
século XIX rompe com este vínculo de dependência. O ideal de Flaubert, lart pour lart, preconiza
um tipo de ajustamento no qual as injunções de ordem não estéticas são desconsideradas. O
escritor começa a escrever para um público de iniciados pois os critérios relevantes para a
apreciação de sua obra passam a ser determinados pelos pares. Afirma-se assim a existência de
estruturas intrínsecas ao campo artístico, ou seja, ele se destaca, se separa de outras instâncias
existentes na sociedade. No entanto, este processo de autonomização é contemporâneo ao
florescimento de uma cultura pautada por leis de um mercado ampliado de bens simbólicos. A
emergência do folhetim, do jornal diário, da fotografia, atividades vinculadas ao aspecto
produtivo e econômico, põem em causa justamente a autonomia recém conquistada. Daí o
desprezo de Flaubert pela literatura folhetinesca a serviço dos grandes jornais. Arte autônoma
e utilitarismo burguês são elementos historicamente concomitantes, movimento que afirma
tendências antagônicas.
A arte da flânerie não escapa a essa contradição. Podemos apreendêla através da oposição entre
ócio e trabalho. Benjamin, retomando uma expressão de Marx, nos lembra que na sociedade
burguesa a preguiça deixou de ser heróica (cf. Benjamin, 1986, p. 990). Ou seja, o lugar que o
ócio desfrutava nas sociedades anteriores foi definitivamente deslocado pela preeminência do
trabalho. Na França, a Revolução desempenhou um papel semelhante ao puritanismo anglo-
saxão. Ao derrotar a nobreza e proscrever a ociosidade ela impulsionou o desenvolvimento da
ética do trabalho. O controle do tempo, sinônimo de dinheiro, irá se contrapor às práticas que
o desperdiçam. Contenção e ascetismo tornam-se virtudes. O flâneur se contrapõe a esta
tendência dominante. Diz Benjamin: A espontaneidade que tem em comum o estudioso, o
jogador e o flâneur é forçosamente a mesma do caçador, isto é, do mais velho gênero de
trabalho com afinidades com o ócio (Benjamin, 1986, p. 998). Da mesma forma que o artista
desfruta sua atividade a partir do lazer, o flâneur, na escolha de seu próprio caminho, deve ser
autônomo. Sua liberdade não pode estar confina da às exigências estranhas à sua arte.
Entretanto, assim como a literatura se vê ameaçada pela proliferação da imprensa e a pintura
pela produção industrial da fotografia, o flâneur encontra seu lado obscuro no mundo da fábrica.
O ócio do flâneur é uma demonstração contra a divisão do trabalho(cf. Benjamin, 1986, p. 557);
A obsessão de Tylor, de seus colaboradores e de seus sucessores, é uma guerra contra a
flânerie(Benjamin, 1986, p. 567) . O ritmo da indústria, para falarmos como Georges Friedmann,
promove o trabalho em migalhas, anônimo, intercambiável. O fordismo pressupõe a anulação
do indivíduo, sua subordinação a uma engrenagem que o envolve e o ultrapassa. Caminhar,
olhar, descrever, tornam-se atos improdutivos.
Seria tentador interpretar a arte da flânerie como uma espécie de crítica à mercantilização do
conhecimento. Na verdade, o processo de autonomização das ciências sociais pode ser visto
como homólogo ao do campo da arte. No início elas se confundem com as atividades reflexivas
afins: religião, jornalismo, política, filosofia, literatura. Os intelectuais do XIX são marcados pelo
ecletismo, mesclando moralismo, saberes, opiniões, que os afastam de um controle mais
sistemático da escrita. Por isso Durkheim, na conclusão de As regras do método sociológico,
propõe que a sociologia se transforme numa ciência de caráter esotérico. Sua vocação
flaubertiana exigia o distanciamento dos interesses alheios ao saber científico. Durkheim atua
como um arquiteto, ele delimita um espaço, ergue fronteiras, separando um universo, com
regras, objeto e metodologia próprios, distinto do campo difuso do senso comum ou das outras
especializações existentes (filosofia, moral, etc.) (cf. Ortiz, 1989). Entretanto, se escrevi a frase
no condicional foi porque tenho algumas dúvidas a esse respeito. Um primeiro aspecto deve ser
sublinhado. A autonomização do campo das ciências sociais se faz somente no final do século
XIX, início do XX. Mesmo assim, sua institucionalização é um processo longo e conflitivo.
Durkheim pode ser visto como pai fundador de uma disciplina específica, mas sua proposta,
enquanto projeto intelectual, só pode se institucionalizar na França muito mais tarde, com o
advento dos institutos de pesquisa, pós-graduação, etc. Quando Benjamin escreve nos anos 30,
os intelectuais alemães, apesar dos traumas da I Grande Guerra e do advento do nazismo, ainda
são marcados pela idéia de Kultur, isto é, de um espaço autônomo que escapa às imposições da
civilização material e técnica. Ao contrário de Adorno e de Horkheimer, Benjamin não conheceu
a indústria cultural nem o autoritarismo do mercado; para os frankfurtianos, essa dimensão só
pode ser incluída em suas preocupações quando eles migram para os Estados Unidos. Aí, a
situação era inteiramente outra, este é o momento em que a publicidade, o cinema, o rádio, e
logo em seguida a televisão, tornam-se meios potentes de legitimação e de difusão cultural.
Quando Adorno trabalha em conjunto com Lazarsfeld, pela primeira vez, ele se dá realmente
conta de como o conhecimento se envereda por uma via distinta dos ideais da Kultur. O projeto
do Radio Research era teoricamente definido a partir de uma demanda externa (Rockefeller
Foundation) fundamentando-se na produção de dados empíricos susceptíveis de serem
transformados em informação9. Adorno pressentia que toda uma tradição européia,
universalizante, perdia 9 Sobre a polêmica entre Adorno e Lazarsfeld consultar: Adorno, 1973;
Lazarsfeld, 1969; Pollack, 1979. terreno para uma sociologia que se adequava aos interesses das
grandescorporações e do estado. Sua intuição era correta. É nos Estados Unidos que a produção
científica começa a ser ditada pelo utilitarismo tema retomado por Wright Mills na década de
50 (cf. Mills, 1972). Esta dimensão, estrutural à sociedade capitalista moderna, tornou-se hoje
um padrão difundido em todos os lugares. Ele torna a flânerie intelectual um ato improdutivo e
sem sentido. Este porém é um traço que transcende Paris capital do século XIX, trata-se de uma
faceta de um mundo globalizado no qual o flâneur viaja de avião e tem os seus passos mediados
pela técnica e pelo mercado. Ele já não é mais um observador da cidade, pois a própria idéia de
cidade como um todo integrado se desfez. Ao deslocar-se pelo espaço da modernidade-mundo
ele monta um quebra-cabeças constituído de partes de Paris, camadas do Rio de Janeiro, fatias
de Nova York. Sua cidade imaginária não corresponde a nenhuma materialidade integrada, suas
partes estão disjuntas, espalhadas pelo globo terrestre.
Certo é que as reflexões filosóficas levantadas por Michel Foucault ao longo de sua trajetória
acadêmica exerceram fortes influências em diversas áreas das ciências humanas como a
Sociologia, a Psicologia, a Antropologia, e é claro, a Filosofia. Isso porque os seus ditos e escritos
procuraram problematizar a visão de mundo proposta por algumas “epistemes”, como a
metafísica cristã, por exemplo, que enxerga no sujeito alguém marcado, sobretudo, pela
universalidade e pela abstração e que encontra em Nietzsche, uma forte crítica ao afirmar que
todos os valores são “humanos, demasiadamente humanos” (NIETZSCHE, 2005). Isso significa
que toda e qualquer espécie de conhecimento e forma de valoração são produzidos pelo e para
o homem servindo a algum propósito. Ao longo de sua trajetória, Foucault procurou dar
visibilidade àquilo que passava despercebido aos olhos da civilização ocidental, enxergando na
constituição dos saberes e dos poderes estratégias que atravessaram o sujeito e fizeram com
que dado fenômeno se desenvolvesse. Trata-se, portanto, e o próprio pensador francês explicita
isso em um de seus artigos, de uma interrogação da história, de uma minuciosa análise dos jogos
de verdade implícitos em diferentes épocas e que acabaram por produzir sujeitos e
subjetividades (FOUCAULT, 2004a). Comumente, a título de compreensão metodológica, os
intelectuais que estudam o pensamento foucaultiano adotam uma estruturação e uma
periodização que, se divide em Arqueologia, Genealogia e Ética (VEIGA NETO 2004b). No período
marcado pela arqueologia, o que está em jogo é a problematização das condições de surgimento
dos saberes que se configuravam tanto em instituições como os hospitais psiquiátricos, assim
como o estatuto das ciências humanas na modernidade. Entre as principais obras dessa fase
destacam-se: “História da Loucura na Idade Clássica”, “O Nascimento da Clínica”, “As palavras e
as Coisas”, e “Arqueologia do Saber” (FERREIRA, 2005). O segundo momento na trajetória
intelectual de Michel Foucault corresponde à fase marcada pela genealogia. É nesse momento
que toda uma teoria em torno da problemática do poder passa a ser analisada, a partir de uma
perspectiva que engloba o campo das práticas sociais na esfera micro, ou seja, que estão
presentes no cotidiano do sujeito e que se apresentam enquanto uma positividade. As principais
obras nesse período são: “Vigiar e Punir” e “História da Sexualidade I: a vontade de saber”. Os
objetivos tanto da genealogia, quanto da arqueologia não representam a estruturação de
teorias em torno da constituição histórica e social da civilização, mas sim a análise e a
problematização de verdades tidas como naturais (MACHADO, 1993). Uma das conseqüências
dessas problematizações realizadas pelo intelectual francês nesses dois períodos, consiste em
dar uma visibilidade por meio de suas pesquisas, a setores marginalizados pela sociedade
capitalista, mas que, ao longo da história, foram alvos de intensos estudos e preocupações por
parte da ciência e do Estado na elaboração de políticas de controle e poder sobre os corpos. É o
caso do doente mental, do presidiário ou do homossexual, por exemplo. Trata-se também de,
nesses dois momentos, delimitar uma crítica ao projeto de ciência moderna, caracterizado pelo
progresso intelectual e tecnológico, pois no período histórico conhecido por modernidade, as
ciências humanas só puderam se afirmar e se desenvolver tomando o homem como objeto de
conhecimento, e sujeitado ante uma série de saberes. O ÚLTIMO FOUCAULT:
PROBLEMATIZAÇÃO ÉTICA DO CUIDADO DE SI, DO USO DOS PRAZERES E DA CULTURA DE SI Em
seus últimos trabalhos, correspondente ao estudo da ética, Foucault procura saber como se dá
a constituição do sujeito a partir da relação deste consigo mesmo. Trata-se, portanto, de
escrever uma genealogia da subjetividade ocidental e de um questionamento dos diversos
modos de sujeição pelos quais o sujeito se reconhece e se afirma. Nesse sentido, o intelectual
francês recorre aos textos de pensadores antigos com o intuito de levantar o seguinte
questionamento: que jogos propiciaram que o homem se afirmasse sujeito do desejo em épocas
distintas (SOLER, 2006)? Estava posto, portanto, o problema que guiaria as reflexões levantadas
nas obras “História da Sexualidade II: o uso dos prazeres”, “História da Sexualidade III: o cuidado
de si” e do curso “A Hermenêutica do Sujeito”. Os estudos foucaultianos nesse período
acabaram por desenvolver toda uma problemática em torno da ética do cuidado de si presente
nas culturas grega e romana, através de diversas obras de pensadores importantes como
Sócrates, Platão, Marco Aurélio e Sêneca, por exemplo. O próprio Foucault, a respeito do
cuidado de si, diz [...] é preciso entender que o princípio do cuidado de si adquiriu um alcance
bastante geral: o preceito segundo o qual convém ocupar-se consigo mesmo é em todo caso um
imperativo que circula entre numerosas doutrinas diferentes; ele também tomou a forma de
uma atitude, de uma maneira de se comportar, impregnou formas de viver; desenvolveu-se em
procedimentos, em práticas e em receitas que eram refletidas, desenvolvidas, aperfeiçoadas e
ensinadas; ele constituiu assim uma prática social, dando lugar a relações interindividuais [...]
(FOUCAULT, 1985, p. 50). Observa-se, portanto, que na Antigüidade, o tema do cuidado de si
era fundamental para diversas escolas filosóficas. O enfoque dado à subjetividade por Michel
Foucault nas suas últimas obras, propiciou o desenvolvimento de uma analítica em torno da
subjetividade enquanto um processo transformacional e criativo do corpo, ou seja, a
investigação observada nessas obras problematiza de que maneira o discurso filosófico clássico
está relacionado ao modo de vida do sujeito (CARDOSO JR, 2005). Em que consistiam técnicas
prescritas como o exame de consciência, por exemplo, sugeridas por moralistas como Marco
Aurélio? Como se dava a produção da subjetividade tanto na Grécia antiga, como na Roma
clássica? (FOUCAULT, 1985). São questões essenciais contidas nessa analítica foucaultiana, que
percorre o pensamento dos filósofos gregos e romanos afirmadores da ética do cuidado de si.
Os dois últimos volumes da História da Sexualidade mostram como na antiguidade a questão
dos prazeres sexuais foi problematizada a partir de técnicas de si, que tinham como objetivo
maior fazer com que o sujeito fosse senhor de seu destino. Segundo Foucault, (...) a epiméleia
heautoû (o cuidado de si e a regra que lhe era associada) não cessou de constituir um princípio
fundamental para caracterizar a atitude filosófica ao longo de quase toda a cultura grega,
helenística e romana. Noção importante, sem dúvida, em Platão. Importante nos epicuristas,
uma vez que em Epicuro encontramos a fórmula que será tão frequentemente repetida: todo
homem, noite e dia, e ao longo de toda sua vida, deve ocupar-se com a própria alma (...) Entre
os cínicos a importância do cuidado de si é capital (FOUCAULT, 2004c, p.12). Na verdade, para
os filósofos antigos, o cuidado de si deveria ser implantado na alma do sujeito, devia inculcar no
homem uma reflexão sobre os seus modos de existência, para que, assim, a trajetória de vida
do sujeito fosse marcada pela felicidade e pelo domínio de seus instintos. Outra questão
importante diz respeito ao fato de que o sujeito, ao cuidar de si, estaria necessariamente
cuidando do outro. É o que diz Foucault ao analisar que (...) convém notar que as doutrinas da
conduta – e em primeiro lugar pode se colocar os estóicos – eram também aquelas que insistiam
mais sobre a necessidade de realizar os deveres com relação à humanidade, aos concidadãos e
à família, e que estavam prontas a denunciar nas práticas de isolamento, uma atitude de
frouxidão e complacência egoísta (FOUCAULT, 1985, p. 47). O sujeito virtuoso era, portanto,
aquele que possuía uma relação de reciprocidade com o outro tanto no âmbito familiar, como
profissional. Tal ética implicava numa responsabilidade do sujeito para com os outros, e esse
cuidar passava por estratégias não-repressivas de poder, como o diálogo, a persuasão e a
prescrição. Na Antigüidade só era possível cuidar de si a partir do cumprimento de regras e
condutas que se apresentavam enquanto prescrições para o sujeito. É por isso que Foucault diz
que a ética do cuidado de si era exercida no âmbito da racionalidade, pois a pessoa só poderia
exercitar os ensinamentos prescritos pelos moralistas gregos e estóicos mediante uma
memorização e uma dedicação em torno do cumprimento de verdades propostas (FOUCAULT,
2004 d). A ética para os antigos era relativa a toda uma maneira de ser e de se conduzir. O
homem virtuoso era aquele que conduzia sua vida mediante a prática do cuidado de si. Ser livre
significava não ser escravo de si mesmo, de seus instintos. Essa liberdade significava um domínio
do sujeito em relação a si mesmo. Como dito anteriormente, o interesse de Foucault em estudar
os processos de constituição do sujeito acaba por abrir, espaço para uma compreensão
ontológicohistórica da ética. Isso porque, ao recorrer aos antigos, o pensador francês acaba por
trazer para a contemporaneidade os modos de subjetivação pelos quais nos reconhecemos
enquanto sujeitos. (CARDOSO JR., 2005) Trata-se de mostrar que na época clássica a
subjetividade era produzida a partir de grandes preocupações com o uso dos prazeres e que na
modernidade os modos de subjetivação passam a ser cada vez mais produzidos por meio de
saberes institucionais capazes de delimitar, de fabricar indivíduos para um perfeito
funcionamento da máquina estatal. Em outras palavras, trata-se de mostrar como em algum
momento histórico a cultura de cuidado de si deu lugar a uma cultura de sujeição. É por isso que
Foucault, em seus últimos trabalhos, entrelaça a questão da subjetividade com a história dos
modos de sujeição. Enquanto na Antigüidade as formas de subjetivação se exerciam por meios
de técnicas de si, na contemporaneidade elas se estabelecem em estratégias de saber-poder
que procuram de toda maneira controlar a subjetividade por meio de biopolíticas que têm por
objetivo maior controlar, adestrar, através de mecanismos de poder 1 . CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se observar então que esse sujeito contemporâneo do qual Foucault fala é um sujeito
atravessado pela cultura, pela sociedade e por meio de relações de poder, que se afirma
enquanto indivíduo e permanece sujeitado ante os acontecimentos históricos. Neste sentido,
estudar o tema do cuidado de si como possibilidade de resistência e de enfrentamento ante os
modos de sujeição contemporâneos trata-se, portanto, de analisar e enxergar no pensamento
foucaultiano rotas de fuga, que permitam a existência de outra maneira de se enxergar o sujeito.
Não como algo estático e universalizante, mas sim a partir de uma compreensão relativa à
interação do indivíduo com o mundo e vice-versa, enxergando na pessoa a existência de um
corpo transformacional que se opõe ao corpo capturado pelo biopoder.
Sipnose
O filósofo francês Phillippe Lacoue-Labarthe analisa a questão da imitação e do original da arte
sob o ponto de vista da filosofia. A partir dos conceitos de mimese, Labarthe convoca uma série
de interlocutores como Platão, Diderot, Kant, Hölderlin, Nietzsche e Walter Benjamin, que são
confrontados de maneira crítica à questão do sujeito, do paradoxo e, finalmente como horizonte
de toda a reflexão labarthiana, ao teatro. Não o 'teatro dos filósofos', ou o especulativo, não como
a aplicação prática de uma teoria sobre teatro, mas como experiência de desapropriação da
teoria, como passagem ao limite do teórico.