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Darnton e a boêmia literária

No livro Boemia literária e a revolução, Darnton investiga o submundo literário francês às


vésperas da Revolução Francesa, buscando analisar a trajetória dos homens que, com seus
escritos radicais, agitavam a cena política da época, levando até as classes populares as idéias
das Luzes. Descobrimos então que os libelles, com sua pornografia aviltante, apesar de
desprovidos de uma ideologia coerente, comunicava um ponto de vista revolucionário, posto
que mostravam a podridão social que consumia o Antigo Regime francês. Menos interessados
no Contrato Social de Rousseau, o público devorava ávido as narrativas sobre a perversidade
da nobreza, com seus delitos sexuais mais ignomináveis. A porno-política que infestava esta
sub-literatura roía as entranhas do regime, elaborando mitos, desfazendo outros, constituindo
uma opinião pública revolucionária. É bem verdade que o público francês do século XVIII não
existia de forma organizada, dado que estava excluído de qualquer forma de participação
política direta. Mas é esta exclusão que tornava este público permeável às estórias escabrosas
que eram narradas por esta variedade impressionante de literatos, dominados pelo ódio ao
Antigo Regime.

É precisamente o ímpeto emocional deles que tornava sua produção revolucionária, por mais
que lhes faltasse um programa político coerente. Iconoclastia radical, direcionada contra todos
os valores do Antigo Regime, que tendia a dessacralizá-los, corroendo as entranhas do sistema
político. A Revolução surge assim não nos tratados densos e áridos dos filósofos das Luzes, mas
na sub-literatura de gosto duvidoso, por vezes escatológica e abertamente pornográfica, que
se regozijava nas descrições sexuais da vida dos poderosos da época. Serviu ela como ponte
entre os grandes filósofos e o público espalhado pelas pequenas cidades e pelo campo,
disseminando entre eles os valores que, mais tarde, desencadeariam a Revolução. Gente
miserável, infeliz e desbocada que fazia da baixa literatura o seu ganha-pão, em tudo contrária
à imagem do filósofo da academia, sisudo e apartado do povo. A disseminação deste literatura
de underground só foi possível graças ao robusto comércio clandestino de livros sob o Antigo
Regime, que permitia a circulação deles de forma sub-reptícia, por mãos de personagens
sombrias, que arrastavam, pelas fronteiras francesas, pesados engradados de livros proibidos,
em sua maioria publicados pela Société Typographique de Neuchâtel (STN), que buscava suprir
os franceses de livros que não podiam ser produzidos legalmente na França. Obras obscenas
ou pirateadas que inundavam o universo dos leitores franceses, divulgando um vasto
repertório de assuntos, em edições frequentemente custeadas pelo próprio autor, e depois
adquiridas, por meio do contrabando, pelos livreiros das pequenas cidades. Os leitores não
queriam obras abstratas nem teóricas como os escritos de Montesquieu, Voltaire, Diderot e
Rousseau, preferindo antes os popularizadores e vulgarizadores do Iluminismo, além das
crônicas escandalosas nascidas da boataria em torno do mundo da política. Sucesso de
público, os libelles eram virulentos ataques aos indivíduos que ocupavam as posições de
prestígio e poder, como ministros, cortesãos, membros da família real. Luís XV reinava
soberano nestes libelles, com sua escabrosa e arrepiante vida sexual, que teria custado a
França mais de um bilhão de libras. O que estes literatos da sarjeta queriam - e o conseguiram
- era mostrar que o regime era podre e faziam uma propaganda radical onde os assuntos
políticos eram sobrepujados pelo crime e pelo sexo. O mote desta literatura girava em torno
da idéia de que a monarquia havia degenerado em despotismo.

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