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Revista Brasileira de História

On-line version ISSN 1806-9347

Rev. Bras. Hist. vol.26 no.51 São Paulo Jan./June 2006

http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01882006000100012

ARTIGOS

Patrimônio cultural: a percepção da natureza como um


bem não renovável

Silvia Helena ZaniratoI; Wagner Costa RibeiroII

I
Pós-doutoranda em geografia política pela USP, professora do Departamento de
História — Universidade Estadual de Maringá
II
Professor Doutor do Departamento de Geografia Política — USP

RESUMO

Neste artigo objetivamos apresentar algumas reflexões a respeito do patrimônio


cultural, destacando os contornos semânticos historicamente construídos em torno
dessa categoria. A partir de então, enfatizamos as discussões de ordem normativa
que envolveram e envolvem políticas de preservação dos bens patrimoniais,
sobretudo aquelas que se voltaram para a natureza como um bem, de modo a
mostrar que a emergência do chamado patrimônio natural está diretamente ligada
ao redirecionamento das preocupações de ordem mundial acerca dos recursos
naturais do planeta.

Palavras-chave: Patrimônio; Natureza; Cultura; Ordem mundial.

ABSTRACT

In this article we aim to present some thoughts regarding cultural heritage focusing
on the different linguistic meanings historically built around this category. From
then on we focus on the legal discussions which involve and once involved
preservation policy for patrimonial matters; specially those which dealt with nature
as a patrimony, thus showing that the emergency of the natural patrimony is
directly linked to the redirection of world concerning about the natural resources of
the planet.
Keywords: Heritage; Nature; Culture; World issues.

Nos últimos anos, o conceito "patrimônio cultural" adquiriu um peso significativo no


mundo ocidental. De um discurso patrimonial referido aos grandes monumentos
artísticos do passado, interpretados como fatos destacados de uma civilização, se
avançou para uma concepção do patrimônio entendido como o conjunto dos bens
culturais, referente às identidades coletivas. Desta maneira, múltiplas paisagens,
arquiteturas, tradições, gastronomias, expressões de arte, documentos e sítios
arqueológicos passaram a ser reconhecidos e valorizados pelas comunidades e
organismos governamentais na esfera local, estadual, nacional ou internacional.

Os bens materiais e imateriais, tangíveis e intangíveis que compreendem o


patrimônio cultural são considerados "manifestações ou testemunho significativo da
cultura humana",1 reputados como imprescindíveis para a conformação da
identidade cultural de um povo. Em se tratando do patrimônio natural, a avaliação
é ainda maior, posto que a salvaguarda dos recursos materiais e do conhecimento
tradicional sobre os usos desses recursos é tida como essencial para a garantia de
uma vida digna para a população humana. Apesar disso, outros interesses são
identificados na conservação do patrimônio natural, em especial a intenção de
reservar informação genética nas áreas protegidas para uso futuro.

Não obstante, há menos de um século o patrimônio compreendia os monumentos


nacionais, considerados por critérios estéticos ou históricos, que explicitavam a
importância que uma obra ou um objeto adquiria diante do desenvolvimento da
arte ou da história.

Tais alterações no entendimento do conceito nos incitam a refletir acerca dos


caminhos trilhados nesse processo, de forma a estabelecer relações entre as
transformações a respeito do que se entende por cultura e as modificações na
categoria patrimônio. Outrossim, procuramos mostrar a aplicabilidade do conceito
nas regulações produzidas em escala internacional, por organismos multilaterais,
em especial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura — Unesco, e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, no
que diz respeito às políticas de proteção do que se convencionou como patrimônio
cultural.

O PATRIMÔNIO CULTURAL

A preocupação com a definição de políticas para a salvaguarda dos bens que


conformam o patrimônio cultural de um povo remonta ao final do século XVIII,
mais particularmente à Revolução Francesa, quando se desenvolveu uma outra
sensibilidade em relação aos monumentos destinados a invocar a memória e a
impedir o esquecimento dos feitos do passado. Implementaram-se, a partir de
então, as primeiras ações políticas para a conservação dos bens que denotassem o
poder, a grandeza da nação que os portava, entre as quais uma administração
encarregada de elaborar os instrumentos jurídicos e técnicos para a salvaguarda,
assim como procedimentos técnicos necessários para a conservação e o restauro de
monumentos.2
De forma paulatina essa preocupação estendeu-se a outras partes do mundo
ocidental, sempre pautada no entendimento de que o bem abonava uma dada
história, afiançava o acontecido, posto ser um "testemunho irrepreensível da
história" a mostrar as etapas evolutivas da atividade humana. Tal compreensão
vinha ao encontro de um entendimento da história centrada em fatos singulares e
excepcionais, uma história pautada nas minúcias dos grandes acontecimentos,
capazes de mostrar a evolução das ações humanas, seu aprimoramento e seu
caminhar em direção à civilização, ao progresso.

Também a arte era concebida a partir de critérios que priorizavam a beleza


plástica, as formas artísticas. Seguindo esses critérios, um bem poderia ser
considerado um patrimônio desde que dotado de valor histórico e artístico que
explicitasse a importância para o desenvolvimento da arte ou da história. 3

Uma compreensão desse porte a respeito da história e de seus testemunhos


restringia a possibilidade de atribuir a outros agentes e às suas criações um sentido
histórico. Somado a isso, como as obras de arte eram consideradas dotadas de
muito mais valor do que um objeto de uso utilitário, sobretudo aqueles oriundos
das chamadas classes subalternas, inúmeros testemunhos da história se perderam,
em especial o material de uso cotidiano encontrado nas escavações arqueológicas
dos séculos XVIII e XIX. A lógica que presidia as escavações era a da busca de
objetos de interesse artístico que apresentavam interesses de mercado. Os
vestígios que não contemplavam tais interesses não foram conservados.

Há também que considerar que a obra ou o objeto elevado à condição de bem


patrimonial era isolado do uso e disponível apenas para a contemplação. O mesmo
entendimento se aplicava aos espaços urbanos portadores de uma arquitetura
considerada artística, vistos como monumentos históricos que não poderiam ser
utilizados, nem mesmo para a habitação. A cidade histórica destinava-se a uma
função propedêutica, por ser testemunha das ações do homem no passado, e assim
buscava-se "preservar os conjuntos urbanos antigos como se conservam os objetos
de museus".4

No curso do século XX os entendimentos de cultura e história passaram por


significativas modificações que repercutiram na compreensão dos bens
considerados patrimônios.

A aceleração da urbanização no decorrer do século XX fez que a cidade passasse a


ser compreendida como um tecido vivo, composto por edificações e por pessoas,
congregando ambientes do passado que podem ser conservados e, ao mesmo
tempo, integrados à dinâmica urbana. Ela tornou-se um nível específico da prática
social na qual se vêem paisagens, arquiteturas, praças, ruas, formas de
sociabilidade; um lugar não homogêneo e articulado, mas antes um mosaico muitas
vezes sobreposto, que expressa tempos e modos diferenciados de viver.

Também se constatou nesse tempo um outro entendimento de história que centra


seu interesse antropológico no homem e em sua existência, e assim busca
contemplar todos os atores sociais e todos os campos nos quais se expressa a
atividade humana. Tal compreensão implicou a valorização dos aspectos nos quais
se plasma a cultura de um povo: as línguas, os instrumentos de comunicação, as
relações sociais, os ritos, as cerimônias, os comportamentos coletivos, os sistemas
de valores e crenças que passaram a ser vistos como referências culturais dos
grupos humanos, signos que definem as culturas e que necessitavam salvaguarda.

Esses novos entendimentos levaram à reformulação do conceito de patrimônio. O


valor cultural, a dimensão simbólica que envolve a produção e a reprodução das
culturas, expressas nos modos de uso dos bens, foi incorporado à definição do
patrimônio. A alteração também se deu em face da constatação de que os signos
das identidades de um povo não podem ser definidos tendo como referência apenas
as culturas ocidentais, assim como a cultura campesina não pode ser vista como
menor diante das atividades industriais.

A INTERNACIONALIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO

Para proteger bens históricos e culturais em escala internacional foi preciso


promover diversos eventos no século XX. Ao mesmo tempo em que a
industrialização avançou e produziu cidades complexas e renovadas, surgia
também a inquietação com a conservação das formas urbanas do passado. A
edificação do novo passou, aos poucos, a incorporar o antigo, mesmo que para lhe
dar outros usos.

A internacionalização da preocupação com os bens patrimoniais e o reconhecimento


de que a salvaguarda destes era um assunto que extrapolava as fronteiras
nacionais acarretou a criação da Comissão Internacional de Cooperação Intelectual,
dentro da Sociedade das Nações. O objetivo da Comissão era o de potencializar as
relações culturais entre os países, e para isso procurou organizar a Conferência
Internacional de Atenas, em 1931, cujo resultado foi a elaboração da Carta de
Atenas, o primeiro documento de caráter internacional que dispõe sobre a proteção
dos bens de interesse histórico e artístico.5

A eclosão da Segunda Guerra Mundial e a instituição da Organização das Nações


Unidas em 1945 mostraram a emergência de estabelecer os direitos e os deveres
dos habitantes do planeta. Passo seguinte foi a criação da Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura — Unesco, em novembro de 1946,
para intervir, em escala mundial, nos campos da educação, da ciência e da cultura.
As prerrogativas da Unesco ganharam especial sentido após a emissão da
Declaração Universal dos Direitos Humanos em dezembro de 1948, que estabeleceu
o direito à educação e à cultura como prerrogativas mundiais.6

Essa organização assumiu o encargo de articular e regular de forma eficaz as


medidas de tutela e de ação internacional, de elaborar os textos jurídicos e
recomendações internacionais com conteúdos, objetivos e alcances distintos. A
preocupação central foi a de que a conservação do patrimônio se efetivasse dentro
de uma dimensão internacional.7

A Unesco se propôs a formular diretrizes, definir critérios e prioridades para a


proteção do patrimônio cultural. E um outro entendimento de bem cultural passou a
ser empregado nos foros internacionais ainda na década de 1950, quando a
Convenção de Haia, em 1954, convocada sob os auspícios da Unesco, definiu que o
patrimônio cultural compreendia os monumentos arquitetônicos, os sítios
arqueológicos, e os objetos e estruturas herdados do passado, dotados de valores
históricos, culturais e artísticos; bens que representavam as fontes culturais de
uma sociedade ou de um grupo social.8

Esses bens podiam ser abrigados em três categorias: dos bens móveis ou imóveis
que apresentassem uma grande importância para o patrimônio cultural dos povos;
dos edifícios cujo destino principal e efetivo fosse o de conservar ou expor os bens
culturais móveis, e dos centros monumentais que compreendessem um número
considerável de bens culturais. A partir de então, distintos documentos
internacionais passaram a adotar tal nomenclatura, num indicativo da propriedade
do novo conceito.

O PATRIMÔNIO NATURAL

Conservar um bem natural ou preservá-lo? Essa não é simplesmente uma distinção


semântica, ela nasceu no âmbito do debate entre ambientalistas norte-americanos
no final do século XIX. Para os conservacionistas, a conservação ambiental
representa manter uma área protegida, porém, utilizá-la sem colocar em risco sua
dinâmica natural e atributos físicos. Já os preservacionistas são radicais. Eles
entendem que áreas naturais protegidas devem ficar sem a presença humana para
que apenas processos naturais influenciem sua dinâmica. O debate entre essas
duas correntes permanece até hoje e divide tanto ambientalistas quanto técnicos e
acadêmicos. Uma de suas maiores conseqüências é a retirada ou não da população
que vive em áreas protegidas.

França, Brasil e Itália podem ser citados entre os pioneiros da conservação


ambiental, antecedidos pelos Estados Unidos da América. A França instituiu, em 2
de maio de 1930, uma lei que levou a proteção de monumentos naturais e sítios de
caráter científico à condição de interesse público. No Brasil, data de 1937 o
Decreto-Lei no 25, que instituiu o instrumento do tombamento, utilizado até hoje,
para delimitar uma área protegida. Já na Itália, a Lei no 1.497, de 29 de junho de
1939, foi a primeira a tratar da conservação ambiental relacionando-a a sítios
naturais de interesse humano.

O patrimônio natural pode ser definido como uma área natural apresentando
características singulares que registram eventos do passado e a ocorrência de
espécies endêmicas. Nesse caso a sua manutenção é relevante por permitir o
reconhecimento da história natural e, também, para que se possa analisar as
conseqüências que o estilo de vida hegemônico pode causar na dinâmica natural do
planeta. Uma área natural protegida é um laboratório de pesquisa que possibilita
estudar reações da dinâmica da natureza em si. Além disso, a singularidade que faz
a área merecer sua elevação à condição de patrimônio pode apresentar beleza
cênica ou, ainda, ser fundamental para o desenvolvimento de processos naturais,
como ocorre com o mangue, responsável pela reprodução de microrganismos que
servem de base da cadeia alimentar.

A INTERNACIONALIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NATURAL

A associação do patrimônio cultural com a natureza na escala internacional iniciou-


se em 1956, quando a Unesco, por meio do Iccrom — Centro Internacional de
Estudos para a Conservação e Restauração dos Bens Culturais, uma organização
intergovernamental, dedicou-se ao tema. Depois, na Conferência de Washington
em 1965, criou-se a Fundação do Patrimônio Mundial para estimular a cooperação
internacional a proteger "as zonas naturais e paisagísticas maravilhosas do mundo
e os sítios históricos para o presente e o futuro de toda a humanidade". 9

Em 1968, a União Internacional para a Conservação da Natureza e seus Recursos,


organização não governamental internacional criada em 1948, elaborou propostas
similares para seus membros, que foram depois apresentadas na Conferência das
Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, organizada em Estocolmo em
1972. Os debates ocorridos naquela ocasião indicaram a viabilidade da associação
entre natureza e cultura no que se refere aos bens patrimoniais.

Também foram relevantes, no processo de ampliação do que se compreende por


patrimônio, as conclusões de uma comissão italiana encarregada de realizar
estudos para a tutela e valorização do patrimônio histórico e artístico italiano, a
Comissão Franceschini. Essa Comissão realizou estudos entre 1964 e 1967 e
elaborou seus resultados em uma Declaração de Princípios na qual definiu um bem
cultural como "todo bem que constitua um testemunho material dotado de valor de
civilização" e reuniu um elenco das categorias de objetos integrantes dos bens
culturais, a saber: bens arqueológicos, artísticos e históricos, ambientais,
arquivísticos e bibliográficos. Os bens ambientais surgiam como "as zonas
corográficas que constituem paisagens naturais ou transformadas pela ação do
homem e as zonas delimitadas que constituam estruturas de assentamentos
urbanos ou não urbanos, que apresentem particular valor de civilização". 10

Segundo a comissão, esses bens podiam ser paisagísticos ou urbanísticos. Os


paisagísticos eram aqueles especificamente naturais, como as zonas territoriais em
estado de natureza que tivessem caráter geográfico ou ecológico unitário e de
relevante interesse para a historia natural, ou que documentassem a transformação
cívica do ambiente natural pela ação do homem, como exemplo as áreas naturais,
as áreas ecológicas e as paisagens artificiais. Os bens urbanísticos, por sua vez,
eram aqueles "construídos por estruturas de assentamentos de particular valor,
enquanto testemunhos vivos da civilização nas várias manifestações da história
urbana", como exemplo, os centros históricos. Em face ao reconhecimento da
importância do relatório da Comissão, o governo italiano criou o Ministério para os
Bens Culturais e Ambientais, em 1975, inaugurando a associação no que tange às
políticas de preservação dos bens culturais e naturais.

As conclusões desse relatório, bem como as deliberações da Conferência de


Estocolmo, reapareceram nas discussões dos representantes dos Estados Partes da
Unesco por ocasião da Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Cultural e
Natural, convocada por essa Organização em 1972. As deliberações desse encontro
foram de que o patrimônio cultural englobava os monumentos, o grupo de edifícios
e lugares que tivessem valor histórico, estético, arqueológico, científico, etnológico
ou antropológico. Segundo o entendimento dos convencionais, os lugares deveriam
ser entendidos como as obras do homem e as obras conjuntas do homem e da
natureza. As zonas seriam os lugares arqueológicos que tivessem um valor
excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico. O
patrimônio natural, nesse momento, compreendia os monumentos naturais
constituídos por formações físicas e biológicas ou por grupos dessas formações que
tenham um valor universal excepcional do ponto de vista estético ou cientifico; as
formações geológicas e fisiográficas das zonas estritamente delimitadas que
constituam o habitat de espécies animais e vegetais ameaçadas e que tenham valor
universal excepcional do ponto de vista estético ou científico; e os lugares ou as
zonas naturais estritamente delimitadas que tenham um valor excepcional do ponto
de vista da ciência, da conservação e da beleza natural.11

Essa Convenção definiu ainda que bens dotados de valor cultural ou natural
poderiam ser inscritos como patrimônio universal. A proteção destes caberia à
comunidade internacional. Tal entendimento visava estimular a cooperação
internacional a proteger "as zonas naturais e paisagísticas maravilhosas do mundo
e os sítios históricos para o presente e o futuro de toda a humanidade". Constata-
se que a Convenção buscava definir o patrimônio pelo duplo aspecto cultural e
natural, por entender que o homem interage com a natureza e se faz necessário
preservar o equilíbrio entre ambos.
Como se pode depreender, a Convenção acabou por incluir no rol de bens
patrimoniais as criações da cultura e da natureza. Essa definição foi resultante da
compreensão de que a identidade cultural de um povo é forjada no meio em este
vive, e de que as obras humanas mais significativas obtêm parte de sua beleza do
lugar onde se encontram instaladas. O patrimônio considerado no duplo aspecto
cultural e natural remetia à compreensão de que o homem interage com a natureza
e se faz necessário preservar o equilíbrio entre eles.

Consoante o documento emitido pela Secretaria da Convenção, as noções de


natureza e cultura, "tanto tempo consideradas como diferentes e inclusive
antagônicas", deveriam ser modificadas. A natureza e a cultura, apregoava o
documento, são complementares. Essa visão procurava alterar o entendimento da
natureza baseado apenas naquilo que instrumentos técnicos e científicos permitem
analisar, por meio da quantificação. Essa forma de apreender a natureza está
presente no Ocidente desde os primórdios da modernidade, cujo coroamento é o
uso dos recursos naturais que o utilitarismo assentou e que, combinado com o
capitalismo, transformou atributos naturais em fonte de acumulação de capital. 12

Ainda assim, cabe salientar a condição de excepcionalidade que justificava a


inclusão de um bem como patrimônio natural. Este deveria ser dotado de valores
excepcionais, o que acabava por restringir o que poderia ou não ser considerado
como patrimônio cultural.

Uma modificação significativa a esse entendimento se deu em 1985, por ocasião da


Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais, ocorrida no México. Nesse evento
se definiu que "o patrimônio cultural de um povo compreende as obras de seus
artistas assim como as criações anônimas surgidas da alma popular".13 Assim, as
obras modestas que adquiriram com o tempo uma significação cultural, passaram a
ser incorporadas ao rol de bens culturais.

Do mesmo modo a Carta de Nara, de 1994, reformulou a compreensão sobre o


valor dos bens quando estabeleceu que "o juízo sobre os valores atribuídos ao
patrimônio cultural, além de depender de credibilidade das fontes de informação,
difere de cultura em cultura e deve ser formulado dentro de cada âmbito
cultural".14 Através desse documento ficava reconhecida a existência de culturas
distintas, assim como valores diversos para a consideração de um bem.

Entre outras decorrências dessa nova situação países como China, Japão e Índia
passaram a integrar as partes da Convenção de Patrimônio, apesar da retirada dos
Estados Unidos. Essa flexibilidade confirma o dinamismo da ordem ambiental
internacional15 em relação às áreas naturais protegidas, que alterou a distribuição
geográfica dos monumentos da Unesco pelo mundo. Países como México e Brasil,
além de Japão, China e Índia, passam a integrar a lista daqueles que possuem bens
reconhecidos pela Unesco.

O entendimento a respeito da natureza e da cultura alargava-se e com isso o


patrimônio cultural convertia-se no "conjunto de elementos naturais ou culturais,
materiais ou imateriais, herdados do passado ou criados no presente, no qual um
determinado grupo de indivíduos reconhece sinais de sua identidade". 16

Por isso, surgem nas últimas décadas novas áreas naturais como patrimônio
natural, como o Parque Nacional do Rapa Nui, no Chile, o Lago Baikal, as
Montanhas do Cáucaso e Altai na Rússia, os Montes Pireneus, na divida entre a
França e a Espanha, o delta do Rio Danúbio, na Romênia, e a Serra da Capivara, a
Costa do Descobrimento e as Reservas da Mata Atlântica do Sudeste, no Brasil.17
Na década de 1980, o tema da sustentabilidade surgiu com grande evidência por
meio do relatório "Nosso futuro comum", obra da Comissão Mundial de Meio
Ambiente. Conciliar o desenvolvimento econômico e minimizar os impactos
ambientais passaram a ser imperativos perseguidos em diversas reuniões
internacionais. Era mais um aspecto a ser ponderado na conservação de áreas
naturais protegidas.

Os anos 90 confirmaram que a preocupação com a preservação dos recursos


naturais tornara-se internacional. Logo no início da década ocorreu a Conferência
das Nações Unidas para o Desenvolvimento e o Meio Ambiente, a Conferência do
Rio em 1992, que teve o objetivo de regular a ação humana em relação à emissão
de gases que afetam o efeito estufa e a informação genética. Nela foram celebradas
as Convenções sobre Mudanças Climáticas e sobre Diversidade Biológica e
assinados documentos que continham um conjunto de princípios a respeito dos
recursos genéticos e da soberania de cada país sobre o patrimônio existente em
seu território. Um ponto alto da Convenção sobre Diversidade Biológica ocorreu
quando se buscaram políticas destinadas a garantir os direitos dos povos indígenas
e das populações tradicionais sobre os recursos genéticos, haja vista a estreita
relação entre a preservação desses recursos e os conhecimentos, costumes e
tradições dessas populações.

Foi nesse contexto que emergiu uma outra compreensão do patrimônio natural,
com o reconhecimento da importância dos conhecimentos tradicionais para a
conservação e o uso sustentável da diversidade biológica.

A relação estabelecida entre a preservação dos recursos e a dos conhecimentos


tradicionais indicava o valor atribuído à diversidade, que advinha do conceito
antropológico de cultura e da importância que esta confere à diversidade cultural da
humanidade. As comunidades e a cultura, em sua diversidade, são vistas pelos
antropólogos como "ingredientes básicos da humanidade, que dão sentido e
conteúdo ao princípio abstrato da igualdade". A diversidade converte-se assim num
elemento constitutivo da universalidade.18

Verifica-se outra concepção de cultura, que tem um papel decisivo na realização de


uma nova leitura do território, entendido como patrimônio e como recurso que
necessita ser preservado.

Essa discussão permanece em foros das Nações Unidas, como em Curitiba, em


2006, quando da realização da Oitava Conferência das Partes da Convenção de
Biodiversidade. Na ocasião, milhares de delegados discutiram como valorar o
conhecimento das comunidades tradicionais e o uso que a apropriação pelo
Ocidente realiza.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Relacionar patrimônio cultural e patrimônio natural é resultado do amadurecimento


do conceito de patrimônio. Pode-se dizer que houve um desdobramento
possibilitado a partir da importante ruptura histórica que reconhecia como passíveis
de serem mantidos à posteridade apenas os feitos de heróis e das camadas
dominantes.

O patrimônio imaterial passou a ser objeto de análise, mesmo com as dificuldades


encontradas em sua manutenção e conservação. Diálogos, ritos e práticas religiosas
passaram a incorporar as obras da humanidade para a Unesco.
Já o patrimônio natural é conservado à luz da ciência. Menos por permitir uma
identidade a quem nele vive, mas sim pelos atributos que lhe conferem beleza
cênica, a possibilidade de novas experiências e a busca de informação genética. Ou
seja, a conservação de áreas naturais ainda obedece à visão utilitarista, que
predomina na sociedade capitalista. Ao mesmo tempo, possibilita reconhecer
nesses verdadeiros refúgios aos processos produtivos e de urbanização o foco de
alternativas à reprodução da vida.

NOTAS

1 GONZALES-VARAS, Ignácio. Conservación de bienes culturales. Madrid: Cátedra,


2003. p.44. [ Links ]

2 CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Ed. Unesp,


2001. [ Links ]

3 GONZALES-VARAS, op. cit., p.43.

4 CHOAY, op. cit., p.191.

5 GONZALES-VARAS, op. cit., p.458.

6 Ibidem.

7 UNESCO. Centro del Patrimonio Mundial de la. Carpeta de información sobre el


patrimonio mundial. Paris, 2005. p.2. [ Links ]

8 Convenção de Haia, 1954. Disponível em www.portaliphan.gov.br, acesso em


22.04.2006. [ Links ]

9 UNESCO, 2005, op. cit., p.5.

10 GONZALES-VARAS, op. cit., p.46.

11 UNESCO. Convenção para a proteção do patrimônio mundial natural e cultural.


1972. Disponível emwww.whc.unesco.org, acesso em 22.04.2006. [ Links ]

12 Para aprofundar a relação entre sociedade ocidental e natureza ver PONTING,


Clive. Uma história verde do mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1995. [ Links ]

13 Declaração do México, 1985.

14 Carta de Nara, 1994. Disponível em www.portaliphan.gov.br, acesso em


22.04.2006. [ Links ]

15 RIBEIRO, Wagner Costa. A ordem ambiental internacional. 2.ed. São Paulo:


Contexto, 2005. [ Links ]O autor discute como a temática ambiental passou a
ser tratada em escala internacional; SCIFONI, Simone. Patrimônio mundial: do
ideal humanista à utopia de uma nova civilização. GEOUSP — Espaço e Tempo, São
Paulo, n.14, p.77-88, 2003. [ Links ]A autora analisa como a Unesco
incorporou o patrimônio ambiental em suas ações.
16 CASTILLO-RUIZ. Hacia una nueva definición de patrimonio histórico? PH Boletín
del Instituto Andaluz del Patrimonio Histórico, Sevilla: IAPH, n.XVI, sept. 1996,
p.22. [ Links ]

17 SCIFONI, 2003, cit., p.82.

18 JELIN, E. Cidadania e alteridade: o reconhecimento da pluralidade. Revista do


patrimônio, Rio de Janeiro: Iphan, 1996, p.21. [ Links ]

Artigo recebido em 04/2006. Aprovado em 05/2006

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NOVAS FRONTEIRAS E NOVOS PACTOS


PARA O PATRIMÔNIO CULTURAL

CECILIA RODRIGUES DOS SANTOS


Arquiteta e Urbanista. Consultora para o Guia Cultural realizado pela Fundação Seade,
Coordenadora do Núcleo de Arquitetura do Centro Cultural São Paulo
Resumo: A abertura conceitual e a crescente abrangência da definição de cultura e
patrimônio cultural não foram acompanhadas, no Brasil, por uma reflexão sobre as formas
de proteção e de gestão do patrimônio. As conseqüências  além da destruição e da
amnésia  são a incompreensão sobre o papel dos órgãos de preservação oficiais e a
dificuldade de cidades e grupos de indivíduos em identificar e proteger seu patrimônio.
Discutir historicamente esse processo e situá-lo no âmbito da globalização aponta para a
importância crescente da afirmação das diferentes personalidades culturais do país e da
continuidade de seus valores.

Palavras-chave: patrimônio cultural; diversidade; preservação.

O Tejo é mais belo do que o rio que corre pela minha aldeia, Mas o Tejo não é mais belo que
o rio que corre pela minha aldeia Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

Fernando Pessoa

A palavra patrimônio está historicamente associada ou à noção do sagrado, ou à noção de


herança, de memória do indivíduo, de bens de família. A idéia de um patrimônio comum a
um grupo social, definidor de sua identidade e enquanto tal merecedor de proteção, nasce no
final do século XVIII, com a visão moderna de história e de cidade (Babelon e Chastel,
1994).

Se esse patrimônio, que é de todos, deve ser preservado, é preciso estabelecer seus limites
físicos e conceituais, as regras e as leis para que isto aconteça: "foi a idéia de nação que veio
garantir o estatuto ideológico (do patrimônio), e foi o Estado nacional que veio assegurar,
através de práticas específicas, a sua preservação (...). A noção de patrimônio se inseriu no
projeto mais amplo de construção de uma identidade nacional, e passou a servir ao processo
de consolidação dos estados-nação modernos" (Fonseca, 1997:54-59).

No Brasil, a promulgação do Decreto-Lei no 25, de 30 de novembro de 1937, organizou a


proteção do patrimônio histórico e artístico nacional e instituiu o instrumento do
tombamento. A inscrição, em um dos quatro livros do tombo, de bens móveis ou imóveis
cuja conservação é de interesse público impede legalmente que eles sejam destruídos ou
mutilados. O ato do tombamento, prerrogativa do poder Executivo, não implica
desapropriação e nem determina o uso, tratando-se sim de "uma fórmula realista de
compromisso entre o direito individual à propriedade e a defesa do interesse público
relativamente à preservação de valores culturais" (Fonseca, 1997:115).

Entretanto, o tombamento é apenas uma das formas legais de preservação, que incluem
toda e qualquer ação do Estado que vise conservar a memória ou valores culturais (Castro,
1991:5-8; Souza Filho, 1997). Hoje, um dos maiores desafios à gestão do patrimônio
cultural é definir conceitual e legalmente novas formas de acautelamento compatíveis com
sua abrangência, cada vez maior, e com o exercício dos direitos culturais do cidadão,
reconhecidos no texto da Constituição de 1988, particularmente no artigo 215: "O Estado
garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura
nacional (...)" e no artigo 216: "O Poder Público, com a colaboração da comunidade,
promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros,
vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e
preservação".

Durante praticamente um século de trabalho e discussões no âmbito internacional, e 64 anos


no Brasil, o caráter simbólico do patrimônio vem sendo ampliado. O patrimônio foi deixando
de ser simplesmente herdado para ser estudado, discutido, compartilhado e até reivindicado.
Ultrapassam-se a monumentalidade, a excepcionalidade e mesmo a materialidade como
parâmetros de proteção, para abranger o vernacular, o cotidiano, a imaterialidade, porém,
sem abrir mão de continuar contemplando a preservação dos objetos de arte e monumentos
eleitos ao longo de tantos anos de trabalho como merecedores da especial proteção. Passa-
se a valorizar não somente os vestígios de um passado distante, mas também a
contemporaneidade, os processos, a produção. Nesse contexto, por exemplo, não mais
apenas os conjuntos urbanos homogêneos, representativos de um determinado período
histórico, passaram a ser merecedores de proteção ou atenção oficial. O patrimônio cultural,
considerado em toda a amplitude e complexidade, começa a se impor como um dos
principais componentes no processo de planejamento e ordenação da dinâmica de
crescimento das cidades e como um dos itens estratégicos na afirmação de identidades de
grupos e comunidades, transcendendo a idéia fundadora da nacionalidade em um contexto
de globalização (Fonseca, 1997:72-79).

O órgão público federal ao qual cabe, desde a promulgação do Decreto-Lei no 25, a


competência legal da proteção no Brasil, bem como o trabalho técnico de inventário de
conhecimento, o estabelecimento de critérios e a execução de obras de restauração, é o
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, a mais antiga entidade oficial
de preservação de bens culturais na América Latina (MEC, 1980:25). A gestão do patrimônio
tombado e a execução das políticas culturais foram delegadas, a partir da criação do
Instituto, a representações regionais coordenadas por uma direção central. Desde a sua
criação, portanto, o Iphan organizou-se de forma desconcentrada, na tentativa de melhor
atender às diferentes regiões nas suas especificidades e na variedade das manifestações
culturais.

Em 1970, por iniciativa do então Ministério da Educação e Cultura, foi realizado um encontro
de secretários de Estados e Municípios para o estudo da complementação das medidas
necessárias à defesa do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; a oficialização de um
movimento em direção à descentralização. Na ocasião foi assinado oCompromisso de
Brasília, que, por um lado, apoiou a política de proteção dos monumentos encaminhada pelo
órgão federal e, por outro, reconheceu "a inadiável necessidade de ação supletiva dos
estados e municípios à atuação federal no que se refere à proteção dos bens culturais de
valor nacional" e que "aos Estados e Municípios também compete, com a orientação técnica
do Iphan, a proteção dos bens culturais de valor regional", recomendando a criação de
órgãos estaduais e municipais adequados à proteção, sempre articulados com o Iphan,
procurando uniformidade da legislação (MEC, 1980:139-142). A Constituição de 1988 veio
finalmente afirmar no seu artigo 30: "Compete aos municípios promover a proteção do
patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e
estadual".

Essa iniciativa, tal como foi proposta há 30 anos, tinha um caráter de abertura conceitual em
direção à abrangência na abordagem do patrimônio cultural e não
de desresponsabilização da União em relação à sua atribuição legal de proteger o patrimônio
nacional. Ao se falar de "ação supletiva" e de "articulação" com o órgão existente
encarregado da gestão do patrimônio, anunciavam-se, por um lado, novas alianças e, por
outro, "lealdades divididas" (Arantes, 1996:11) na construção de um novo equilíbrio entre o
nacional e o local. As condições para viabilizar esse plano eram não só a reforma e a
modernização administrativa, mas também a continuidade e o aprimoramento de um
sistema de trabalho que priorizava a produção de conhecimento, bem como a seriedade e a
autonomia na condução das questões técnicas. As dificuldades para dar seqüência a esse
sistema comprometeram ou adiaram o estabelecimento dos novos órgãos de preservação,
levando o Iphan a um lento processo de desarticulação e desmonte, até condená-lo à sua
limitada condição burocrática atual. Tratava-se, naquele momento, antes de tudo, de
formação de quadros, da produção e descentralização de conhecimento.
A abrangência conceitual na abordagem do patrimônio cultural está relacionada com a
retomada da própria definição antropológica da cultura como "tudo o que caracteriza uma
população humana" ou como "o conjunto de modos de ser, viver, pensar e falar de uma
dada formação social" (Santos, 1999), ou ainda como "todo conhecimento que uma
sociedade tem de si mesma, sobre outras sociedades, sobre o meio material em que vive e
sobre sua própria existência" (Bosi, 1993), inclusive as formas de expressão simbólica desse
conhecimento através das idéias, da construção de objetos e das práticas rituais e artísticas.
Apesar de todas as discussões teóricas conduzidas em âmbito internacional, somente em
1982 a Unesco conseguiu chegar a um acordo sobre a necessidade de uma definição mais
abrangente para a cultura, que passa desde então a ser referência: "conjunto de
características distintas, espirituais e materiais, intelectuais e afetivas, que caracterizam uma
sociedade ou um grupo social (...) engloba, além das artes e letras, os modos de viver, os
direitos fundamentais dos seres humanos, os sistemas de valor, as tradições e as crenças"
(Unesco, 2000).1

No Estado de São Paulo, desde 1968, já funcionava o Condephaat  Conselho do Patrimônio


Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo  um dos primeiros
órgãos de preservação estadual. Contou com o apoio técnico e político da diretoria do Iphan
em São Paulo que, desde a sua criação, passou a orientar o trabalho do Instituto de forma
complementar à ação da instância estadual de preservação. Um exemplo significativo é o
fato de o Iphan não ter tombado nenhum centro histórico no Estado de São Paulo, situação
única no Brasil, considerando, teoricamente, que essa proteção poderia ser mais eficiente se
conduzida pelo órgão estadual, mais próximo do município para efetivar parcerias e gerir o
patrimônio protegido das cidades.

Hoje, municípios paulistas como Santos, Campinas, São José dos Campos, entre outros, já
contam com seus conselhos municipais de patrimônio e respectivas legislações de proteção.
Porém, na maior parte das cidades, a questão do patrimônio cultural não foi compreendida,
aceita e nem priorizada. Dentre os 644 municípios do Estado de São Paulo  excetuando-se
a capital, que conta com um Departamento de Patrimônio Histórico e com o Conselho
Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São
Paulo, Conpresp , apenas 72 possuem bens tombados pelo próprio município, somando-se
341 itens de tombamento (Fundação Seade e Secretaria de Estado da Cultura, Temático II,
2001:500). Ausente da maioria das políticas públicas de planejamento físico-territorial e dos
planos de gestão municipal, o patrimônio foi sendo tratado como questão de
responsabilidade do Estado ou da União, divorciado do planejamento das cidades, visto
apenas sob o enfoque do desenvolvimento econômico ou simplesmente ignorado. A
descontinuidade administrativa dos municípios, a inexistência de políticas culturais locais, a
falta de investimento na formação de técnicos na área, a suscetibilidade às pressões de
grupos da comunidade, o forte jogo de interesses imobiliários, a aceitação generalizada de
uma noção de progresso e desenvolvimento associada à verticalização e a instauração de
processos de renovação contínua das cidades sobre elas mesmas são fatores que podem
esclarecer o fato de as cidades do interior do Estado de São Paulo estarem cumprindo o
mesmo destino da capital, já identificado por Claude Levi-Strauss em 1953: cidades que
passam do frescor à decrepitude sem conseguirem ser antigas (Levi-Strauss, 1985).

Para compreender esse processo, deve-se levar em conta a inexistência de um pensamento


urbano no âmbito dos órgãos de preservação, mesmo que estes tenham se ocupado do
tombamento e da gestão de núcleos urbanos desde 1938 e que sempre tenham considerado
o monumento tombado inserido em uma área envoltória maior, protegida como ambiência
(Sant'anna, 1995). Por outro lado, existe a predominância de uma concepção de
planejamento urbano que raciocina essencialmente em termos da economicidade dos
espaços, priorizando fluxos de tráfego, adensamento de tecidos, aproveitamento racional da
infra-estrutura urbana, e que renega a um plano secundário os componentes históricos e
estéticos do urbanismo ou mesmo nega sua inclusão entre os valores urbanos a serem
considerados (Argan, 1992). Esses dois fatores concorrentes foram suficientes para que as
cidades deixassem de ser vistas como uma questão cultural e passassem a ser parte de um
fenômeno que, apesar de não ser só brasileiro, aqui conheceu sérias dimensões, sendo
definido por Argan (1992) como a "rejeição da história pelo pragmatismo".

A negação da história e da memória em favor de uma suposta modernidade condenou


irremediavelmente as malhas urbanas tradicionais, as construções históricas oficiais, os
marcos e as referências das cidades, os conjuntos singelos de casario, a arquitetura
vernacular e a arquitetura modernista, os bairros e as sedes rurais, as capelas, os chafarizes,
os sítios arqueológicos, as paisagens, as estações de estrada de ferro, os cinemas, as praças
e, com eles, (contando com o crescimento dos meios de comunicação de massa) as festas,
as tradições, enfim, a alma das comunidades. Se é verdade que a cidade não é feita de
pedras, mas sim de homens (Marcilio Ficino apud Argan, 1992:223), também é verdade que
as lembranças se apóiam nas pedras da cidade (Bosi, 1979), e não é por outra razão que os
homens, ao longo dos séculos, têm lhes atribuído valor e trabalhado para que permaneçam
(ou desapareçam) enquanto expressões da memória coletiva, de uma identidade
compartilhada.

Tratar a cidade como um tecido vivo, como um organismo histórico em desenvolvimento,


como queria Argan (1992), significa promover ações de aproximação em relação à sua
história e à sua vocação, elaborar inventários locais do patrimônio de interesse histórico,
artístico, arqueológico e paisagístico que possam orientar as políticas urbanas e territoriais e
fazer leituras sistemáticas dos espaços e qualificar esses espaços através do desenho.
Sempre tendo como perspectiva: explicitar e valorizar o enraizamento das comunidades;
evitar a descontinuidade dos tecidos; manter a lógica de formação e de inserção em um
território e promover o crescimento equilibrado. Em outras palavras: sempre defendendo a
qualidade de vida.

Hoje, numa tentativa extrema para recuperar seu patrimônio cultural destruído, um atrativo
a mais para a promissora indústria do turismo, alguns municípios ensaiam
a construção de simulacros da própria história e da própria identidade perdidas. Multiplicam-
se processos de ressemantização de estruturas vazias com os novos ícones da florescente
indústria de cultura de massa, bem como a construção de cenários às vezes até animados
com personagens, mas isolados de qualquer contaminação com a realidade, espaços
esvaziados de vida e conteúdo cultural que, no máximo, poderiam ser identificados como
parques temáticos, todos iguais entre si. A justificativa é sempre a "criação de empregos",
quando deveria ser o exercício pleno da cidadania, ou a "abertura para o mercado", quando
deveria ser a abertura para a sociedade. Alguns exemplos, entre tantos outros, poderiam ser
citados, como o projeto da prefeitura de São Vicente, em andamento, de construir a vila do
século XVI, primeira cidade do Brasil, da qual não existe vestígio físico ou documental,
cenário imaginário animado por personagens a caráter. Ou a proposta surgida em Bertioga,
descartada em seguida, de construir uma "paraty" ao lado do Forte São João, monumento do
século XVII tombado pelo Iphan e pelo Condephaat. Um dos episódios recentes mais
significativos desse interesse pela identidade cultural dos municípios foi a disputa entre as
cidades de Capivari e Rafard como berço da artista plástica Tarsila do Amaral: a fazenda São
Bernardo, em cuja antiga sede do século XIX nasceu a artista, ficou fora dos limites de
Capivari com a emancipação de Rafard (Folha de S.Paulo, 05/06/2000).

Porém, também existem cidades que tentam elaborar inventários de perdas e inventários de
ganhos, recuperar documentos e testemunhos, reunir acervos, redescobrir "saberes e
fazeres" tradicionais desvalorizados e silenciados durante anos, estabelecer novos pactos
para enfrentar os desafios da relativização ou da porosidade das fronteiras. Estes municípios
procuram apoio de instituições e profissionais especializados para garantir a intervenção do
ponto de vista técnico e conceitual e da comunidade que dá sentido a este trabalho, criando
diretrizes para um crescimento mais harmônico, na perspectiva de um desenvolvimento
sustentável.

Na área de meio ambiente, é consenso que um desenvolvimento sustentável é aquele que


responde às exigências do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de
atender às próprias necessidades. Porém, apenas recentemente iniciou-se a discussão do
papel da cultura e do patrimônio cultural na construção de sociedades sustentáveis. A cultura
e sua relação com o desenvolvimento econômico e social só foram objeto de uma
conferência internacional específica promovida pela Unesco, em 1970. A partir desta
data  quando também teve início o questionamento geral da eficiência de um modelo de
desenvolvimento baseado essencialmente em critérios de rentabilidade econômica e
racionalidade técnica , os fatores de ordem cultural começaram a se afirmar como
estratégicos na busca de novos modelos. Em 1982, durante a Conferência Mundial sobre as
Políticas Culturais, a Unesco recomendou oficialmente que as políticas culturais para o
desenvolvimento deveriam estar centradas nas forças vivas da cultura: patrimônio,
identidade e criatividade (Unesco, 2000).2

Alguns princípios podem, no entanto, ser considerados como já sedimentados, estando,


entre estes, a diversidade cultural como garantia de qualidade de vida no contexto inevitável
da globalização e a continuidade dos valores do patrimônio como uma das garantias dessa
diversidade. Pode-se afirmar que a diversidade cultural, no processo de construção de
sociedades sustentáveis, implica a adoção de medidas que favoreçam o reconhecimento da
peculiaridade de cada local e que reforcem os vínculos de pertencimento entre o indivíduo e
seu grupo, entre este e o meio ambiente e a sociedade, satisfazendo as necessidades atuais
sem deixar de proteger os recursos humanos, culturais e naturais que garantirão o mesmo
direito às gerações futuras (Mallier, 1997). E anuncia-se a noção de conservação integrada:
"adotar a conservação do patrimônio assim como a continuidade de valores culturais no
âmbito de um processo de mudança, de maneira a que a personalidade cultural seja
conservada" (Laenen, 1997).

Também já se tornou consenso que não é mais possível considerar qualquer questão de
interesse nacional e internacional senão em termos de globalização, entendida não apenas
como a mundialização do capital, mas também como um processo de natureza histórico-
cultural que torna as fronteiras tradicionais porosas, que gera novas práticas e relações entre
as comunidades. Até mesmo os direitos dos cidadãos, que incluem os direitos culturais,
tendem a se transformar em grandes causas comuns da humanidade, sendo que a cultura
passa a ser um dos principais instrumentos de definição, particularização e mobilização das
comunidades (Arantes, 1996). Entretanto, se a globalização significa a abertura de novas
perspectivas para a criação por meio de intercâmbios cada vez mais facilitados e acelerados,
ela representa também uma ameaça real de uniformização e homogeneização, de imposição
de modelos de consumo, por parte de centros criadores cada vez mais fortes, a centros
consumidores passivos cada vez mais numerosos. Como alternativa à globalização  com
sua possível ameaça à alteridade e à diversidade , a aliança global, ou a criação de
espaços políticos supra-nacionais onde se reivindicam os direitos e se explicitam os deveres
dos cidadãos, é colocada como um dos princípios para uma sociedade sustentável (Arantes,
1996).

Por outro lado, o patrimônio cultural tem encontrado, no âmbito das organizações
internacionais, importantes fóruns para discussão de critérios e políticas. Em 1972 a Unesco
instituiu a Convenção do Patrimônio Mundial, que passou a estudar os parâmetros para
identificação de um bem cultural ou natural como de interesse universal. Durante seis anos
foram intensas as discussões sobre critérios como urgência, raridade, integridade,
autenticidade e universalidade. Prevaleceram principalmente os dois últimos como condições
para determinar se um bem seria merecedor de proteção especial e digno de fazer parte do
conjunto de bens materiais e imateriais considerados como aqueles mais representativos das
diferentes culturas, integrando a Lista do Patrimônio da Humanidade (Halevy, 2001). Além
das discussões conceituais, os encontros internacionais entre representantes dos diversos
países-membros geraram cartas internacionais de doutrina e compromisso, das quais o
Brasil é signatário, que tinham como objetivo orientar a gestão desses bens e os trabalhos
necessários à sua preservação.

A partir do início dos anos 90, o conceito de universalidade foi sendo substituído pelo de
representividade. A lista de bens considerados patrimônio da humanidade passou a
contemplar novas categorias de patrimônio cultural (pode-se mesmo dizer: todas as
categorias da expressão cultural), sensível à abertura conceital na área da cultura e à
reivindicação dos direitos culturais dos cidadãos do mundo na sua diferença e especificidade.
Porém, mais uma vez, as decisões não se fizeram acompanhar de discussões conceituais
sobre critérios. A listagem inchou, perdeu os contornos, pretendendo assumir a forma e a
dimensão da geografia cultural do planeta. Por outro lado, a inscrição na lista passou a ser
considerada uma espécie de "reconhecimento" e, portanto, um "direito" a ser reinvidicado,
ou então um "selo de qualidade", conferindo-lhe importância para alavancar inclusive
operações econômicas, como a exploração turística. Ao se lembrar que a Unesco é um
organismo internacional, composto por Estados que votam pela inscrição dos bens culturais,
é compreensível que as decisões tenham passado a sofrer crescente ingerência política, em
detrimento da argumentação técnica (Halevy, 2001).
Esses fatos somados fizeram com que o trabalho do fórum internacional para identificar os
bens patrimoniais da humanidade perdesse legitimidade e deixasse de ser o palco
privilegiado de debate sobre a idéia de patrimônio, no momento mesmo em que se colocam
a urgência e a atualidade desse debate. O Comitê do Patrimônio Mundial chegou a suspender
por um ano, qualquer nova inscrição na Lista de Patrimônio da Humanidade para que fosse
possível recuperar critérios e rever a sua ação nos últimos anos.

Na verdade, a decisão de se estabelecer uma listagem de bens considerados patrimônio de


todos os homens colocou cedo o problema da universalidade dos valores culturais no âmbito
de atuação do patrimônio. A rediscussão do seu papel hoje, com certeza, deverá apontar
para o estabelecimento de um grande pacto, o pacto necessário entre a comunidade onde se
situam os bens eleitos, a nação que eles representam, e o interesse de toda humanidade.
Portanto, não se deveria mais falar em descentralização e autonomia na proteção do
patrimônio cultural se não se conseguir ultrapassar as fronteiras dos Estados, dos municípios
e da própria federação para situar a questão em um plano internacional, que também
privilegie a diversidade e defenda o direito à diferença. Um plano que é de compromisso e
responsabilidade de todas as partes, de todas as instâncias, considerando-se, em um
extremo, a perspectiva de um pacto global e, no outro, a garantia do direito cultural de cada
cidadão.

Em outras palavras, de todos esses rios maravilhosos  o Amazonas maior em volume de


água, o Nilo maior em extensão ou o mais belo Tejo do poeta , fico com o rio que corta a
minha aldeia, o rio da minha infância, consciente de que ele é afluente de todos os outros,
que se juntam para formar todos os oceanos.

NOTAS

E-mail da autora: altoalegre@uol.com.br


1. Estas idéias foram desenvolvidas na Introdução do Guia Cultural do Estado de São
Paulo (Fundação Seade e Secretaria da Cultura do Estado, 2001).
2. Ver a Introdução do Guia Cultural do Estado de São Paulo (Fundação Seade e Secretaria
da Cultura do Estado, 2001).

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Fundação SEADE

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http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-88392001000200007&script=sci_arttext&tlng=pt
Festival de Arte de São Cristóvão: Projeção Nacional e Declinio.
Ficha-Resumo
FILHO, José Ribeiro. Festival de Arte de São Cristóvão: Projeção Nacional e Declinio. In:
FILHO, José Ribeiro. Eventos públicos e privados: a elaboração de politicas culturais voltadas
para a elaboração da festa. 2008. 145f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade
Federal de Sergipe. Cap.4, p.72-88.

A primeira edição do Festival de Artes de São Cristóvão (FASC) foi realizada em setembro de
1972. O evento foi concebido como parte das comemorações do Sesquicentenário da
Independência. Foi também um dentre diversos festivais universitários, de iniciativa do governo
federal, criados no país entre o final dos anos de 1960 e inicio de 1970, com o objetivo de
patrocinar intercâmbio cultural, difusão da produção cultural regional e como espaços abertos
para descobrir e projetar novos talentos.

Na dinâmica dos festivais consta a realização de oficinas de artes antes e durante o evento
principal, a participação de grupos experimentais (dança, teatro e música) criados dentro das
universidades brasileiras, voltados para temas da cultura popular (no caso dos primeiros
festivais).

Já no final dos anos 70, a grade de programação do FASC sofre modificações , passando a
contemplar espetáculos elaborados por profissionais e companhias alternativas dos diversos
segmentos, em detrimento dos grupos experimentais universitários.

Em termos de participação da comunidade de São Cristóvão no planejamento e execução do


evento, Ribeiro Filho afirma: “O municipio e a sua população participam do evento apenas
como cenário e na qualidade de figurantes. Todas as decisões sobre a estrutura do evento e a
sua grade de programação eram tomadas pela UFS, que nomeava uma comissão
organizadora formada por representantes dos diversos segmentos de arte de nosso estado.”
(p.78). Quanto alguns artistas locais se arriscaram a apresentar-se, entraram na programação
no horário da tarde, em que quase não havia público (p.78)

Em relação a imagem do FASC perante a populaçao da cidade, Ribeiro destaca três tipos de
conceitos: “As opiniões sobre o FASC, dividem-se na cidade, entre aqueles que vêem o festival
como ótima oportunidade para ganhar dinheiro com o movimento dos visitantes, os que gostam
da programação cultural, e os que se sentem invadidos por uma turba que vem para
revolucionar e transgredir o sossego secular da velha capital. (p.79)”

Com o objetivo de pensar aspectos da realização atual do evento e coletar sugestões para o
futuro foi realizado dentro da programação do edição de 1991, o seminário “Repensando o
FASC” . Nesta discussão tomaram parte representantes de todos os segmentos de arte do
estado.

Dentre os temas de destaque, destacou-se a questão da autonomia do festival e a captação de


recursos junto a iniciativa privada, prenuncio da decisão de suspensão do FASC, tomada em
1993 pela reitoria da UFS que alegou falta de recursos financeiros suficientes para continuar
bancando a realização do festival.

Sobre a relação entre a comissão organizadora do festival e a iniciativa privada, Ribeiro Filho é
taxativo: “A comissão organizadora tentava a cada ano realizar parcerias entre o público e o
privado, mas a falta de comunicação entre as partes ou de habilidade para convencer a
iniciativa privada a participar com recursos financeiros na preparação do evento quase sempre
abortou esse tipo de envolvimento. A prefeitura não atentou para a utilização de mecanismos
mais coercitivos para forçar , por exemplo a participação financeira das industrias de bebida
que tinham uma alta lucratividade com a venda de seus produtos durante a realização do
FASC, bastava que a prefeitura instituisse um sistema de cotas para que essas empresas
tivessem acesso as áreas e pontos de venda {exclusivos} durante os dias de realização do
festival ” (p.87) {acréscimo nosso}

Como fator de aumento de custos orçamentário, começa a acontecer uma mudança de postura
de muitos grupos experimentais, amadores, alternativos, academias de danças e grupos
folclóricos que evoluem para um comportamento mais profissional, passando a cobrar cachês e
assinatura de contrato.

Em 1996 a prefeitura de São Cristóvão resolve bancar a realização de uma nova edição do
FASC, contratando uma empresa local de produção de eventos, porém com uma programação
acanhada, sem nomes de grande projeção nacional e com um público menor, conforme afirma
Ribeiro Filho: “O festival assume as proporções de uma festa localizada de pequena monta”
(p.83).

Para o insucesso da empreitada concorreu o fato da prefeitura de São Cristóvão contar com
uma arrecadação pequena para poder assumir todos os custos financeiros de um evento como
o FASC e também: “a universidade, por ser uma instituição de ensino superior vinculada ao
Governo Federal, transitava livremente diante das mudanças na politica interna do estado. A
instituição tinha uma maior acessibilidade para a captação de recursos para o evento, até
mesmo por sua natureza apolitica. A prefeitura estava mais atrelada a um determinado grupo
politico localizado, e por isso acabava sofrendo influência na captação de recurso por parte do
Governo do Estado, a depender das coligações em que participou nas últimas eleições” (p.87).

Como última sugestão para garantir a viabilidade financeira do evento, Ribeiro Filho defende a
primazia do governo do estado na condução dos rumos do FASC, nos seguintes termos: “O
próprio governo estadual continuar a chamar para si a responsabilidade de principal
mantenedor das atividades culturais, e até mesmo, porque esse tipo de evento mobiliza uma
grande quantidade de visitantes o que gera empregos temporários e renda para as
comunidade de São Cristóvão e de Aracaju, locais onde ficam hospedados os artistas vindos
de outros estados. (p.88).

Elaborado por Zezito de Oliveira

Professor de História e Artes, Estudante de Pós-Graduação da Faculdade São Luiz –


Especialização em Arte-Educação e Produtor Cultural.
Postado por AÇÃO CULTURAL às 17:19

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