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Dea Loher

Barba azul, a esperança das mulheres


BLAUBART, Hoffnung der Frauen

Portugiesisch von Carola Saavedra


Rio de Janeiro 2011

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Os direitos da tradução estão com : Carola Saavedra, Email: carolasaavedra@gmail.com
Förderung der Übersetzung durch: / This Translation was sponsored by:

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Personagens:

Henrique Barba Azul


Júlia
Anna
Judite
Tânia
Eva
Cristiana
A Cega

Para Andreas Kriegenburg e as atrizes e atores, com os quais se estreou esta obra no
Bayerisches Staatsschauspiel em Munique (Alemania)

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Cenas:
Abertura. A Cega (I)
Prólogo. A profissão.

I. Júlia. Primeiro Amor


II. Monólogo da escada
III. Anna. A Amiga
IV. A Cega (II)
V. Judite. A Insone
VI. A Cega (III). Monólogo da virgem
VII. Tânia. Não se deve ceder ao amor
VIII. A Cega (IV)
IX. Eva. A mulher com o revólver
X. A Cega (V). Um pequeno monólogo da dor.
XI. Cristiana. Get the kick
XII. A Cega (VI)
XIII. Monólogo da Floresta
XIV. A Cega (VII). Último amor.

ABERTURA. A CEGA (I)


Henrique e a Cega em um banco de praça

A CEGA – O senhor ainda esta aí.


HENRIQUE – Sim, sim, eu ainda estou aqui.
A CEGA – O senhor está procurando alguém. Porque faz essas perguntas estranhas.
HENRIQUE – Não. Não, ao contrário.
A CEGA – O senhor esta sendo procurado.
HENRIQUE – Sim. Sim.

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A CEGA – Por quê.
HENRIQUE – Eu sou um assassino.
A CEGA – E agora. - Vai me deixar ir embora.
HENRIQUE – Sim. Vá.

A cega se levanta e vai embora. Henrique fica sentado um momento, depois se deita no
banco, enrolado no seu casaco. Vento (talvez), folhas (talvez). Ele adormece

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PRÓLOGO. A PROFISSÃO.

Depois que Henrique tentou a sorte como desafortunado aprendiz no negócio culinário
e no florescente ramo de floristas, exerce agora a simples, porém honesta e
inteiramente satisfatória profissão de vendedor no comércio de sapatos femininos. Na
sua algo prolongada e trabalhosa busca, todas as profissões se mostraram
desfavoráveis, exigindo-lhe cuidar de algo ou entregar-se com específica atenção a algo,
ou ter empatia por algo, o que talvez requeresse, além disso, seu talento de
improvisação, o uso do seu olfato, paladar ou tato, assim como sua capacidade de
imaginar. Poderia se presumir que lhe faltava fantasia.

Henrique não se tornou vendedor de sapatos femininos porque gostasse de valorizar as


belas pernas das mulheres. Ele não era do tipo que tinha prazer em sentar-se num café
no verão e admirar as mulheres passando. Se alguém lhe perguntasse, não saberia
sequer responder que tipo de pernas preferia.
As dinamarquesas, finas, porém musculosas, as italianas, bem cuidadas, porém sempre
curtas demais; as espanholas, pequenas e carnudas, ou as gregas, demonstrativamente
lascivas, as coxas se esfregando uma na outra (de tal modo, que era necessário envolvê-
las com amplas saias); as japonesas, em formato de meia-lua, a pele bem fina, ou as
inglesas, a pele branca sardenta, quase sem articulações ou músculos; as americanas,
vigorosamente bronzeadas, que parecem haver passado por uma cirurgia estética, mas
que, mesmo assim, já mostram indícios da inevitável herança,a gordura sem contornos
do futuro. Henrique é capaz de falar sobre o assunto, sem que isso o entusiasme.

No que diz respeito a sapatos, Herique interessa-se por sua estabilidade, seu bom
acabamento, que não seja grosseiro ou tosco, agrada-lhe também uma dinâmica leve e
elegante, porém, deve ser discreto, sem qualquer exagero artificial, aliás, deve ser
imperceptível. Na linguagem dos designers chama-se F-3 (Form follows function”).
Henrique não sabe nada sobre isso. Talvez ele usasse essa fórmula para escolher a
mulher mais adequada. Caso ele tivesse consciência das suas preferências e
necessidades, e se fosse ele a fazer as escolhas.

A postura adotada por Henrique aos ajudar as clientes a experimentar o sapato – de


joelhos, quase como num pedido silencioso de casamento -, e os gestos ao tirar o sapato
da caixa, desembrulhá-lo suavemente do papel-seda, num movimento rotativo,
depositá-lo sobre a palma da mão, para finalmente, com o salto virado para frente,
oferecê-lo àquela que está sentada diante dele, O sapato cuidadosamente aberto com
os três dedos da outra mão, alargando onde fosse preciso, de modo a que pareça ter
sido feita para isso, um cômoda abertura pela qual o pé da cliente tem apenas o trabalho
de deslizar para em seguida flutuar sem dificuldade por aí. Essa sua postura, então, faz
com que as mulheres se vejam obrigadas a lembrar da injustamente pouco valorizada
história da Cinderela, em quem o cavaleiro finalmente pode calçar o sapato de cristal –

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Quem pensaria numa situação dessas, que antes do final feliz, ouvira-se por aí:

Olhe para trás


Olhe para trás
Há sangue no sapato 1

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Na versão dos Irmãos Grimm, a irmã de Cinderela corta os dedão do pé para que o sapato caiba. Os
pombos avisam o príncipe, gritando à sua passagem, Ruckedigu, Ruckedigu, Blut ist im Schuh (Há
sangue no sapato).

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I. JÚLIA: PRIMEIRO AMOR.

Primavera. Jardim Inglês. Henrique em um banco de praça, comendo sorvete. Júlia,


também comendo sorvete, aproxima-se.

JÚLIA - Desculpe.
Ela indica interrogativa para o banco. Henrique faz um gesto. Ela se senta. Pausa.
JÚLIA - O senhor também gosta de sorvete.
HENRIQUE - Estou tomando hoje apenas por acaso. Os lenços refrescantes estavam
todos vendidos.
Pausa.
HENRIQUE – Normalmente, eu só tomo sorvete quando vou ao zoológico. – Sei lá,
combina.

JÚLIA – O senhor vai com frequência ao zoológico?


Pausa.
HENRIQUE – Nunca mais desde os meus sete anos.
JÚLIA - Por algum motivo especial.
HENRIQUE – Não aconteceu.
Silêncio.
JÚLIA - Munique tem um zoológico muito bonito.
HENRIQUE - Munique tem um parque de animais. Hamburgo tem um zoológico.
Também Berlim e Frankfurt têm zoológicos. Eu acho que até na Suíça eles tem um
zoológico em algum lugar, mas Munique tem um parque de animais.
Pausa.
JÚLIA - De qualquer forma, Munique tem um parque de animais muito bonito.
Pausa.
HENRIQUE - Munique tem também uma zona de pedestres muito bonita. Apesar disso,
eu nunca faço compras lá.
JÚLIA –Por que não.
Pausa.
HENRIQUE - Nunca aconteceu.
Silêncio.
JÚLIA - Mas o Jardim Inglês o senhor frequenta.
HENRIQUE - Às vezes.

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JÚLIA - Por quê.
HENRIQUE - Aconteceu desse jeito.
JÚLIA - Mas não é por causa das pessoas nuas.
HENRIQUE balança firmemente a cabeça num gesto de negação.
JÚLIA - Eu hoje vim ao Jardim Inglês só por causa das flores.
Silêncio.
JÚLIA – Sabe, hoje é o meu aniversário.
HENRIQUE – Como poderia, se a gente esta há apenas quinze minutos tomando sorvete.
JÚLIA – Hoje é o meu aniversário.
HENRIQUE - Qualquer um poderia dizer isso.
JÚLIA mostra sua identidade - Prova. Júlia Ederhofer.
Data de nascimento: 26.11.1980.
HENRIQUE - Coincidências existem.
Silêncio.
HENRIQUE - Parabéns.
Pausa.
HENRIQUE - Me permitiria convidá-la para tomar um sorvete.
JÚLIA – Agora, veja só,não fui beijada nem ao menos uma vez no dia do meu aniversário.
Pausa.
HENRIQUE - É órfã.
JÚLIA - Por quê.
HENRIQUE - Ficou órfã. Sozinha e solitária no mundo.
JÚLIA - E herdeira -
HENRIQUE - Desculpe, foi só porque disse que ainda não -
Silêncio.
HENRIQUE - Posso dar-lhe um beijo de aniversário pelo seu aniversário -
JÚLIA - Por favor.

Henrique a beija cuidadosamente na face. Silêncio. Beijam-se cuidadosamente na boca.


Silêncio. Eles gostam bastante. Eles o fazem novamente.

JÚLIA - Eu me chamo Júlia. 2

2
Até então eles estavam se tratando por senhor/senhora, a partir de agora o tratamento passa a ser “você”.
O diálogo perde o tom cerimonioso.

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HENRIQUE - Eu sei. Estava na sua identidade.
JÚLIA - E você.
HENRIQUE - Eu não estou com a minha identidade aqui.
Eles se beijam.
HENRIQUE - Eu me chamo Henrique.
Silêncio. Eles se beijam de novo.
HENRIQUE - Isso é tão fácil.
JÚLIA - Você nunca fez isso.
HENRIQUE - Não aconteceu com muita frequência.
Eles se beijam.
HENRIQUE - Tenho a impressão, com você é especialmente fácil.
JÚLIA - Eu vou casar com você.
Pausa.
JÚLIA - O meu horóscopo diz: hoje você vai encontrar alguém a quem será fiel o resto
da sua vida. - Henrique!
HENRIQUE - Tinha o meu nome lá?
JÚLIA faz que não com a cabeça.
HENRIQUE - Horóscopo é enganação. Tudo enganação.
JÚLIA - Me dá a sua mão.
HENRIQUE - Pra quê. Eu não vou deixar que, além de tudo, venham ler mentiras da
minha mão.
JÚLIA pega a sua mão - Eu, Júlia, aceito você, Henrique,
como meu fiel esposo aos olhos de Deus e do mundo;
Prometo amá-lo e respeitá-lo, ser fiel e permanecer ao seu lado nos momentos bons e
maus, na saúde e na doença até que a morte nos separe. Agora repete comigo: Eu,
Henrique.
HENRIQUE – Para com isso -
JÚLIA - Você tem que repetir comigo.
HENRIQUE - Nos conhecemos há apenas - uma hora e cinco minutos.
JÚLIA - É. Por isso mesmo temos que nos apressar. Quem sabe, quanto tempo ainda nos
resta.
HENRIQUE – Tanto quanto quisermos.
JÚLIA - Repete comigo: eu, Henrique...
Henrique repete com ela o texto acima, para que ela o deixe em paz.
JÚLIA - Agora somos marido e mulher. Qual é mesmo o meu novo sobrenome.
HENRIQUE - Blaubart.

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JÚLIA - Júlia Blaubart.
Silêncio.
JÚLIA – Senhor Blaubart, o senhor pode beijar a noiva e conduzi-la ao leito nupcial.
Henrique a beija cuidadosamente.
HENRIQUE - Uma brincadeira bonita.
JÚLIA - Não é brincadeira.
HENRIQUE - Só uma brincadeira, mas bonita.
JÚLIA - Se você acha que nós não estamos casados de verdade, você se engana. Em casos
de emergência, a gente mesmo pode celebrar o casamento, e ele é válido.
HENRIQUE - Seu aniversario de dezessete anos é uma emergência -
JÚLIA - Eu falei que eu tenho dezessete. Sim, eu tenho dezessete, completamente menor
de idade, virgem e com uma doença incurável.
HENRIQUE ri - E apaixonada - E minha mulher -
Ele a puxa do banco. Não se pode mais vê-los. Pequena pausa. Cá estão eles de volta.
HENRIQUE atordoado - Eu te amo.
JÚLIA - Eu também te amo.
HENRIQUE - Vamos tomar um sorvete.
Eles saem rapidamente para comprar sorvete, sentam-se no banco novamente, comem.
JÚLIA - Eu te amo.
HENRIQUE - Eu também te amo.
Eles se beijam. Pausa.
JÚLIA - Eu te amo além da medida.
HENRIQUE - Eu também te amo.
JÚLIA - Eu te amo além da medida.
HENRIQUE - Eu te amo também.
JÚLIA - Além da medida.
HENRIQUE – Agora nos conhecemos há - duas horas, quinze minutos e vinte e três
segundos.
JÚLIA - O amor desconhece o tempo.
Pausa.
HENRIQUE - Isso é verdade.
Pausa.
JÚLIA - Eu te amo além da medida.
HENRIQUE - Eu também te amo.
JÚLIA - Devo te provar o quanto eu te amo.
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HENRIQUE - Não.
JÚLIA - Você me ama tanto quanto eu te amo.
HENRIQUE - Não sei.
JÚLIA - Além da medida.
HENRIQUE - O que isso significa isso exatamente, além da medida.
JÚLIA - Tanto, que eu poderia morrer por você.
HENRIQUE - Isso eu considero burrice.
JÚLIA – Burrice -
HENRIQUE - A gente morre na guerra, por uma doença, de velhice, porque não tem
outro jeito, mas não de amor.
JÚLIA - Quando não tem outro jeito -
HENRIQUE - Por que você quer morrer a qualquer custo.
Silêncio.
JÚLIA - Porque não acontece de outra forma.
HENRIQUE ri.
JÚLIA - Você me ama como eu te amo?
HENRIQUE - Júlia,para com isso!
JÚLIA - Você me ama como eu te amo?
HENRIQUE - Essa é a pergunta que mata.
JÚLIA - Vamos morrer juntos.
HENRIQUE - Eu prefiro não morrer.
JÚLIA tira uma garrafinha da bolsa, engole o conteúdo - Eu vou provar o quanto eu te
amo.
HENRIQUE - Júlia, para com essa brincadeira, eu não quero que você morra -
JÚLIA - Hoje você encontrará alguém a quem será fiel o resto da sua vida.
HENRIQUE - Sim. Fica. Fica comigo.
JÚLIA - Aconteceu mesmo desta forma.
Sucumbe, morre.

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II. MONÓLOGO DA ESCADA

Ele entra em seu prédio, sobe as escadas para seu apartamento. O primeiro patamar.
Cem vezes ele chegou assim em casa. Isso, porém, ainda não basta. Ele entra no
prédio, sobe as escadas para seu apartamento. O primeiro patamar: mil vezes ele
chegou assim em casa. As escadas para seu apartamento. Se a tivesse trazido com
ele para casa, logo depois de tomar sorvete, o primeiro, ao menos então depois do
segundo sorvete, ter trazido ela para casa. Você não quer um café um chá um
pãozinho. O primeiro patamar. Em vez dessa brincadeira. Então ela não estaria
morta. Não é brincadeira. Ela não estaria morta agora. Sobe as escadas. Você viria
agora apaixonada para casa. Apaixonada e minha mulher. O segundo patamar. Cem
vezes você chegou assim em casa. Ou mil vezes você chegou assim em casa. Sem
palavras subiu as escadas para seu apartamento. Agora você estaria apaixonado.
Apaixonado como no banco da praça você teria você faria. O segundo patamar. Ela
está morta. Como isso foi acontecer. De repente. Ela engoliu o pó e sucumbiu. Ela já
ameaçou suicídio antes. Antes. Eu não sei. Eu a conhecia havia duas horas e meia
mais ou menos. Mas o senhor diz que a morta era sua esposa. Sim. Não. A morta não
anunciou seu ato. Não. Sim. O que ela disse então. Ela disse que morreria por mim.
Como eu devo interpretar isso. Por amor. Então o senhor é sim responsável pela sua
morte. Eu um assassino. Terceiro patamar. Subir as escadas para o seu apartamento.
O patamar da sua porta. Mil vezes você chegou assim em casa.

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III. ANNA. A AMIGA.

HENRIQUE - Você acha que estou - diferente.

ANNA - Não nos conhecemos há tanto tempo assim.

HENRIQUE - Sim. Eu não sabia mais a quem procurar.

Silêncio.

ANNA - Depois que perdi minha voz, temi que, junto com minha voz, pudesse perder
também os meus amigos, já que não poderia mais falar com eles. Mas, ao contrario.
Visitam-me cada vez mais pessoas, que afirmam ser meus amigos. Na verdade, eles
ficam aliviados em poder falar e não precisar ouvir.

Silêncio.

ANNA - Eu não disse isso com a intenção de te expulsar.

HENRIQUE - Eu queria saber se o que a gente fala acaba acontecendo de verdade.

ANNA - Superstição.

HENRIQUE - Se algo se torna mais claro, quando podemos pronunciá-lo. Pausa. Se as


coisas se transformam quando damos outro nome a elas. Se eu me transformo, quando
consigo dizer algo sobre mim, algo que eu ainda não sei se se é verdade.

ANNA - Como eu não falava, muitos nem percebiam que eu não falava. Porque eles não
prestam muita atenção ao que se diz, se preocupam apenas de que aquilo que dizemos,
não lhes doa o ouvido. Eles não querem ser feridos pelas palavras. Ou se transformar
porque uma palavra os atingiu.

HENRIQUE - Se por acaso você perceber alguma coisa em mim que tenha mudado, você
tem que me dizer.

ANNA - Não nos conhecemos há tanto tempo assim.

HENRIQUE - Não.

ANNA - Mas ainda somos jovens.

HENRIQUE - Ainda temos muito tempo para nos conhecermos.


Pausa. Mas o tempo passa tão devagar.

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ANNA - Eu comecei a fazer uma lista das palavras bonitas e uma das palavras feias. É
muito trabalho. Palavras belas são, por exemplo
Alabama
pimenteira
Panorama
Palavras horríveis são
Porta-seios
Carroçaria
Torsicolo

Eu encontro cada vez mais palavras horríveis. Tem dias em que as palavras horríveis não
param de correr atrás da gente. As belas vão desaparecendo. Você quer me ajudar a
encontrar palavras bonitas?

HENRIQUE - Sim.

Silêncio.

HENRIQUE - Cadarço. Pausa. Cadarço, eu acho, é uma das minhas palavras preferidas.
Pausa. Crocodilo é também uma palavra extremamente agradável, na minha opinião.

Anna anota.

HENRIQUE - Você acha que se a gente levar este trabalho mais um pouco adiante, a
gente pode ficar mais íntimo.

ANNA - Claro.

HENRIQUE - Então a minha presença não é desagradável para você.

ANNA - Não.

Pausa.

ANNA de repente Você se apaixonou.

Silêncio.

ANNA incrédula Você se apaixonou. Pausa. Por mim.

HENRIQUE - Eu fui hoje ao Jardim Inglês. E lá. Encontrei uma mulher. Uma mulher jovem.
Estávamos tomamos sorvete. Começou por causa disso, porque estávamos tomando
sorvete.

ANNA - E então aconteceu.

HENRIQUE - Dá para perceber.

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ANNA - Sim. Você parece apaixonado.

HENRIQUE - Apaixonado. Eu queria fazê-la feliz.

ANNA - Mas você pode.

HENRIQUE - Eu queria tanto estar com ela, eu adoraria acordar junto com ela, escovar
os dentes junto, tomar café da manhã junto, e dormir junto no fim do dia. É isso que
eles chamam de amor.

ANNA - Você vai conquistá-la.

HENRIQUE - Será que eu conseguiria. – Será que eu conseguiria acordar com ela, tomar
café da manhã, ler jornal, dormir junto, se não a amasse.

ANNA - Teria outro significado.

HENRIQUE - Sim. Silêncio. Então eu sei agora o que é o amor.

ANNA - Como ela é. Qual é o seu nome.

HENRIQUE - Ela é loira. Como você. Mas diferente. Ela tem uma boca maravilhosa e
suave. Como você. Mas diferente. Seus olhos são de um azul mar-profundo com uma
aura dourada. Ela é muito específica. Ela merece usar os sapatos mais macios, nos quais
ela nunca teria uma bolha. Todas as noites eu os tiraria suavemente dos seus pés e todas
as manhãs os poliria até brilharem, eu iria assoprar seus dedos inchados e se fosse
preciso fazer eu mesmo palmilhas sob medida.

ANNA - Eu me apaixonei uma vez por alguém, porque ele tinha umas têmporas tão
bonitas. Elas eram brancas e puras. Eu queria beijá-las.

HENRIQUE - E você fez isso.

ANNA - Quando ficamos juntos, eu não tinha mais essa necessidade.

HENRIQUE - Então você o amou somente por causa das suas têmporas.

ANNA - Eu ficava arrepiada quando escutava a sua voz. Quando ele dizia o meu nome,
não importava como, mandando, pedindo, sorrindo, então eu o amava muito.

HENRIQUE - Isto é tudo, belas têmporas e uma voz.

ANNA - Não uma voz qualquer. A voz dele.

HENRIQUE - Isso não é amor, de jeito nenhum, isso é um sussurro, um sussurro morno
ao ouvido, é o que é.

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ANNA - Isso é normal. O que é que você espera.

HENRIQUE - Eu, eu espero que o amor seja grande e forte, e fique cada vez maior e mais
forte, o cerne de tudo, o cerne da minha vida, Henrique, e da vida dela, Julia, e da nossa
vida em comum, Henrique e Julia.

ANNA - Sei. Então por que você não está com ela.

HENRIQUE - Porque acabou, e fui eu que terminei. Eu. Eu fiz isso. Eu.

ANNA - Por quê.

HENRIQUE - Ela me disse que me amava.

ANNA - Então não há problema.

HENRIQUE - É. Mas ela me ama além da medida.

ANNA - Além da medida. Além da medida. Não sei o que isso significa, além da medida.

HENRIQUE Tanto, que ela poderia morrer por mim, tanto, que ela morreu por mim,
tanto, que eu tive que deixá-la morrer - e eu não consegui dizer, eu não consegui dizer -

ANNA - Além da medida -

HENRIQUE - São apenas palavras, mas cadê o sentimento para isso.

ANNA - Depois se ajeita. Isso vem com as palavras. Primeiro a palavra, depois o
sentimento. Pausa. Eu também sou loira, eu também tenho olhos azul mar-profundo,
eu também tenho uma boca maravilhosa e suave - Pausa. Diz Anna, diz Anna para mim,
por favor, Annagrama, Annanás, annabólica, annarquia –

HENRIQUE - Não. Não vou dizer. Não vou dizer agora. Não vou mentir -

ANNA - Annaconda Annalgésica Annatomia.

Ele estrangula Anna. Silêncio.

HENRIQUE - Eu não fiz isso. Eu poderia ter feito, mas eu não fiz. Julia, eu não te matei.
Eu, eu não fui. Pausa. Então eu digo agora seu nome. Anna. Mas você é uma outra.
Outra. Também loura. Mas você não é além da medida e nunca vai vir a ser além da
medida.

Ele limpa, a boca e os olhos com as mãos.

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IV: A CEGA. (II)

Ela sente o seu cheiro. Será ele? O mesmo, porém outro. Ela o apalpa.

A CEGA - O senhor tem barba.

HENRIQUE - Sim.

A CEGA - Mas o senhor não cheira como se tivesse barba.

HENRIQUE - Como eu cheiro então.

A CEGA - Como um outro.

HENRIQUE - Não existe nenhum outro.

A CEGA - Qual a cor. Da sua barba.

HENRIQUE - Azul.

A CEGA - Azul azul. Me descreva o azul. Azul-celeste


azul-turquesa azul-noite azul-crocodilo azul-não-sei-o-quê azul-claro, azul-cinza, azul-
asfixia-da-morte, azul-jeans, azul-jeans stonewasched ou como.

HENRIQUE - Azul-barba-azul..

Silêncio.

A CEGA - Barba Azul. O senhor é o Barba azul. Pausa. Eu acho que eu li sobre você no
jornal. Henrique. É você? Ela o cheira. Sim. Acho que o encontrei uma vez num café. Há
muito tempo. Há sete anos. Acho que eu não o reconheço mais. Ela quer ir embora.

HENRIQUE - Se eu encontrasse as palavras certas, ficaria comigo?

A CEGA - Não.

HENRIQUE - Me escutaria.

A CEGA - Talvez.

HENRIQUE - Não iria querer ir embora como o outro dia no parque.

A CEGA – O senhor mesmo me mandou embora.

HENRIQUE - Não. Eu simplesmente deixei-a ir.

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A CEGA - E por quê -

HENRIQUE - A senhora quer saber como foi com as mulheres, as outras.

Pausa.

A CEGA - Sim. Conte-me.

HENRIQUE - Pense bem. Até agora a senhora esteve em segurança, porque não queria
nada de mim. Mas eu ainda sou um assassino.

A CEGA - O quê? O senhor agora quer me. Sim. Não. O senhor agora quer me. Me pegar
pelas mãos. Sim. Não. O senhor agora quer me. Abraçar. Sim. Não. O senhor agora quer
me beijar. Sim. Não. Sim... Ela vai embora correndo.

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V. JUDITE. A INSONE

Estação de trem. A hora depois da meia-noite. Henrique. Olha fixamente para os


trilhos. Depois, uma mulher com uma mala. Eles esperam em silêncio.

JUDITE - A hora depois da meia-noite.

HENRIQUE - Sim.

JUDITE - A essa hora não há mais trens.

HENRIQUE - Não.

Silêncio.

JUDITE - O senhor esta esperando o quê, então.

Henrique a olha com raiva.

JUDITE - Se eu não fosse obrigada, nunca ia querer passar a noite numa estação.

Henrique decidido a permanecer em silêncio.

JUDITE - Eu já tentei algumas vezes dormir numa estação, em cima desta mala. Mal eu
me deito um pouco, imagino ouvir um trepidar ao longe que vai se aproximando e faz a
minha mala tremer, então sou sacudida lentamente para o lado e, antes que eu seja
empurrada para baixo, tenho que levantar-me e olhar se esta vindo algum trem. Mas
não vem nenhum. E assim a noite inteira.

Silêncio.

HENRIQUE - Para onde é que a senhora quer ir?

JUDITE – Para a cidade.

HENRIQUE - Mas a senhora já esta na cidade.

JUDITE - Mas eu gostaria de entrar ainda mais na cidade.

HENRIQUE - Se a senhora for em frente nesta direção, vai acabar saindo da cidade pelo
outro lado.

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JUDITE - Mas em algum lugar tem que estar o olho da cidade, a estação com os trilhos,
onde os trens podem descansar e onde a gente pode dormir. Apesar de, a noite inteira,
tudo girar constantemente a nossa volta e o céu estar cheio de barulho.

Pausa.

HENRIQUE - A senhora tem uma ideia esquisita de uma cidade.

JUDITE - E o senhor parece não fazer a menor ideia da lentidão, que eu, infelizmente sou
obrigada a suportar.

HENRIQUE - Não. Como poderia.

JUDITE - Eu cresci nesse vilarejo no final da Rua da Montanha, nesse vilarejo no final da
Rua da Montanha, que se estende como um laço quase até o topo da montanha. De lá
de cima eu podia ver a cidade e os trilhos da estação, que vai do pé da montanha até a
cidade.
Pausa.
Toda vez que eu via o trem sair para a cidade eu corria corria corria montanha abaixo,
mas toda vez que eu chegava lá embaixo, o trem já tinha ido embora. Eu nunca pude ser
tão rápida a ponto de alcançá-lo.

Silêncio.

JUDITE - Eu quero um dia voar num concorde. Isso seria interessante. Mas de preferência
eu quero voar dormindo num concorde.

Henrique olha.

HENRIQUE - A sola do seu sapato esta toda destruída.

JUDITE – É. Eu sei.

HENRIQUE - Isso não causa uma boa impressão.

JUDITE – Isso, acima de tudo, deixa os pés gelados, tanto que a gente fica com frio e não
consegue dormir.

Silêncio.

JUDITE - O senhor acredita que o amor deixa a gente cansado.

HENRIQUE hesita - Não.

JUDITE - Até hoje eu sempre fiquei inquieta quando estive apaixonada. Mas quando a
paixão acaba, e a gente atinge a etapa do amor, coisa que eu ainda não consegui, então

21
eu desejaria que fosse um hábito amorosamente pacífico, algo confiável e seguro, algo
como, como uma vaca ao lado da outra no estábulo, as duas ali paradas, ruminando.

HENRIQUE - Mas isso é bem - banal.

JUDITE - Eu iria gostar. Sim, veja, e quando a pessoa fosse fazer amor no final do dia,
seria para tornar o sangue mais quente e cansado, para não ter mais que pensar, para
poder dormir melhor, para sonhar profundamente. Seria um método contra insônia,
como dar algumas voltas ao redor da casa ou tomar leite morno com mel.

Silêncio.

JUDITE - O senhor é um homem bastante calmo, não é.

HENRIQUE - Mais ou menos.

Silêncio.

JUDITE - Minha avó era costureira, máquina de costura Singer com pedal; quando ela
trabalhava, a máquina soava como o trepidar constante de um trem. Ela nasceu no
vagão de um trem.

Henrique olha.

JUDITE - Eu diria que ela estava à frente do seu tempo.

Silêncio.

JUDITE - Eu adoraria ser tão calma quanto o senhor.

Henrique tenta sorrir.


Judite abre sua mala, tira um travesseiro, dele caem algumas penas.

JUDITE - Este foi seu presente de despedida. No entanto ela morreu antes de terminar
de costurá-lo. A cada noite meu travesseiro fica mais fino.

Dorme minha criança


Eu te nino bem baixinho
Baiuski baju,
Lá fora estranhos cavaleiros
chamam-se na noite
Dorme minha criança
Eles cavalgam para longe
Baiuski baju
Um dia você também será um cavaleiro

22
Baiuski baju...

HENRIQUE - Mas aqui a senhora não pode ficar.

Ele se deita ao lado dela.


Ele se deita sobre ela.
E a sufoca.

HENRIQUE - Então eu não quis mais submetê-la ao tempo. Nenhum tempo mais comigo
e nenhum tempo mais. Porque todo o tempo seria demasiado. Silêncio. Eu não estou
falando de redenção. Silêncio. Se bem que - o tempo para ela era como uma dor, dor da
qual eu deveria livrá-la, porque continuar vivendo seria cruel e na sua crueldade não
teria sentido. Silêncio. Não é - bom.
Silêncio.
Mas quem pode dizer: é errado.

23
VI. A CEGA (III). MONÓLOGO DAS VIRGENS

Você já fez sexo com uma cega. Isso aumenta o campo de visão. Caso você não tenha
desfrutado desse prazer até agora, deixe-me proporcionar-lhe a ocasião única, desprovida
do qualquer risco, de participar do meu destino.

SENHORAS E SENHORES,CONHEÇAM AGORA A HISTÓRIA DA PERDA DA MINHA


VIRGINDADE!

Até os meus quinze anos, eu não tinha conhecido muitos homens. Faz agora sete anos,
e mesmo durante esses sete anos, porque estava a procura de um homem em particular,
não conheci muitos homens. Na verdade nenhum. Quero dizer, conhecer bem de perto,
de modo que, se eu não tomasse banho, andaria dois, três dias com o cheiro desse
homem, de maneira íntima. Mas, naquela época, eu estava completamente desesperada
porque já tinha quatorze anos e precisava urgentemente perder a virgindade, e era muito
difícil encontrar um homem cujo cheiro me agradasse. A situação tinha se agravado
porque na minha classe, além de mim, havia somente duas meninas que ainda não
tinham sido desvirginadas; uma era Mórmon e a outra dizia ser um homem e
economizava às escondidas para fazer uma cirurgia de mudança de sexo.

Por favor, não me entendam mal. Nada é mais simples do que ser comida quando se é
cega. Tentem para ver. Os caras adoram. Eles esperam ter uma experiência
particularmente sensual, até mesmo uma revelação, sim, a revolução sexual que eles
nunca experimentaram.
A cega é toda pele durante o sexo – eles imaginam que com você vão poder soltar a
franga, porém, querem que você os trate como os culhões do Khadafi amarrados a uma
bomba-relógio. Eu, de minha parte, não tinha grandes expectativas, desejava somente
resolver logo aquilo. De todo modo, a primeira vez não chega a ser uma experiência. A
experiência só começa na segunda vez. Sendo assim, eu não tinha nada contra me
oferecer a troco de nada, mas não ao primeiro que aparecesse. Não a qualquer um que
me visse como objeto de curiosidade depois de mostrar-lhe meus belos olhos: eu sei
como revirá-los de maneira tal que se vê apenas a parte branca, saltando da órbita como
uma bola de pingue-pongue, e um ruído de ventosa. Hah. Querida faz cara de Halloween
outra vez – pena que não pudesse ver isso eu mesma. Enfim, eu não era mais criança.
Queria um homem sensível, inteligente, compreensivo, experiente, tolerante, cheio de
humor, esportivo e, se possível, bonito, que cumprisse sua tarefa e que depois me
deixasse em paz.
Sem muito esperar, fui à loja de Reinhold. Reinhold era um comerciante de tapetes
marroquinos, conhecido por abordar as moças na rua e convidá-las para tomar chá na sua
loja. Nunca tinha bebido um chá tão forte. Sentindo um tapete macio nas costas eu
murmurei “estou tendo uma vertigem, não consigo enxergar mais nada”. Reinhold
desabou sobre meu ventre. Acordei agradavelmente entorpecida, mas não consegui me
lembrar de nada. Será que tinha acontecido ou não. Eu fungava. Reinhold, ao meu lado,
tinha um cheiro de almíscar, o que não significava nada tratando-se de um vendedor de
tapetes. Eu não ousava lhe perguntar nada, com medo de ferir seu orgulho. Para ter

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certeza do meu feito e ter a confirmação do resultado, resolvi consultar um ginecologista.
Era meu primeiro ginecologista e correspondia perfeitamente a minha expectativa,
porque ele se chamava Dr.Escavator e tinha cheiro de menta. Expus meu caso, ele me
pegou pela mão e disse: Feche os olhos, vai ser rápido. Apertei sua mão cheia de
esperança. “Sinto muito” eu o ouvi dizer, “ o seu hímem está absolutamente intacto”.
Apertei sua mão com todas as minhas forças, mas nada aconteceu. Nada aconteceu. Ele
não havia compreendido a gravidade da situação.

Não consegui avançar nem um milímetro e estava novamente limitada pelos meus
próprios meios. Foi então -

Foi então que me apaixonei. Estava sentada num bar, era o início do outono e ouvi ele
passando por mim. Ouvi seus sapatos lentos e leves sobre o pavimento, primeiro ele fez
um semicírculo em volta das mesas, depois voltou e sentou. Ele sentou à mesa ao lado e
pediu um sorvete. Sua voz. Deu um choque no meu corpo. Mas, sobretudo, havia um
cheiro, um cheiro delicado, despreocupado, novo, meus sentidos se aguçaram. Sorvete de
baunilha. Senti o cheiro de sorvete de baunilha, a cada bocado eu ouvia a colher batendo
contra a borda da taça, sua pele também tinha cheiro de baunilha, dos seus cabelos saía
um leve perfume de limão, o terno de lã virgem tinha um pouco de cheiro de cera, mas
ainda havia um outro cheiro, algo desconhecido, para a qual eu não tinha um nome, um
conceito. Meu coração nunca bateu tanto como naquele momento. Eu o fixei com os
olhos nele, meu rosto era uma chama, ele vai embora, pensei, ele vai embora, mas ele
não pode fazer isso, se eu o perder de vista hoje, como irei reencontrá-lo. Depois, ouvi
uma outra voz, a voz gritou Henrique! E mais uma vez, Henrique! e ele efetivamente se
levantou e foi embora. Corri atrás dele o mais rápido que pude, mas havia tanta gente,
tantas vozes, tantos ruídos, tantos cheiros, que me cercavam, me confundiam, me
empurravam, me agarravam, e me retinham que eu não podia me desvencilhar, avançar,
o ar me faltava, gritei Henrique! , tropecei, caí e o perdi de vista.

Eu não queria estar com nenhum outro homem a não ser ele, e não queria transar
com nenhum homem a não ser ele. Mas temia que no próximo encontro ele tivesse medo
de mim. Não por eu ser cega, mas porque ainda seria virgem. E, por esta razão, eu
também teria medo dele. Não é fácil ser ainda virgem quando se encontra o homem que
se ama.
Então. Naquela noite voltei para casa. Então naquela noite entrei no quarto do meu
irmão. Ele estava deitado na cama e lia. Meu irmão, disse, por favor me ajuda a deixar de
ser virgem. E ele me ajudou. Muito delicadamente como fazem os irmãos.

(Longo silêncio)

Em seguida eu procurei Henrique. Percorri toda a cidade procurando, a dança leve


dos seus sapatos, sua voz, e esse cheiro –. Às vezes ia a uma outra cidade para procurá-lo,
pois não sabia em que cidade ele morava.
Foi então que o encontrei.
(Sai de cena).

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VII. TÂNIA. NÃO SE DEVE CEDER AO AMOR.
(Uma rua tipicamente usada por prostitutas. Henrique observa Tânia durante alguns
momentos ao mesmo tempo em que toma pequenos goles de um copo de papel).

HENRIQUE – Você é mais do tipo esportivo não é?

TÂNIA – Sim.

HENRIQUE – Eu, por exemplo, sou mais do tipo não esportivo, infelizmente.

TÂNIA – Não se consegue nada sem esforço.

HENRIQUE – Sim é verdade. Muitas vezes eu gostaria de ser um pouco mais esportivo,
mas sempre esqueço de me exercitar.

TÂNIA – Escuta. Você pode jogar conversa fora o quanto quiser, mas comigo só olhar é
de graça. Afinal, é o meu tempo de trabalho.

HENRIQUE – Sim, eu compreendo, o fato é que sou vendedor de sapatos e é por isso
que sei reconhecer alguém que sabe movimentar as pernas de maneira esportiva.

TÂNIA – Genial, realmente genial. Você quer conversar ou prefere fazer ginástica?

(Henrique lhe estende uma quantia em dinheiro, mas percebe que não é o suficiente).

HENRIQUE – Não quero fazer ginástica.

TÂNIA – Monetariamente a diferença é zero!

HENRIQUE – ?

TANIA – Custa a mesma coisa.

(Henrique dá mais uma nota de dinheiro, mas percebe que ainda não é o suficiente e
entrega mais uma nota).

TANIA – Para onde?

(Henrique sacode os ombros)

TANIA – Lá pra cima.

(Henrique concorda. Um hotel. Eles estão sentados lado a lado na cama).

HENRIQUE – Gostaria de esclarecer uma coisa.

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TANIA – O que é.

HENRIQUE – Esse é o seu trabalho, não é. Quero dizer, você faz isso por dinheiro.

TANIA – Você já pagou, pode começar.

HENRIQUE – (Dá uns goles). Eu realmente só quero conversar.

TANIA – Ah! Então vai ser uma noite tranquila.


(Pausa). Assim está ótimo.
(Mesmo assim, ela tenta acariciá-lo).
Não precisa ter vergonha.

(Silêncio), (Henrique continua a bebericar).

TANIA – Qual é o seu problema.

HENRIQUE – Eu não quero que você se apaixone por mim.

(Tânia cai na gargalhada)

HENRIQUE – Não há nada de engraçado. Eu só trago ruína e decadência às mulheres que


se apaixonam por mim.

(Tânia continua rindo)

HENRIQUE – Eu poderia entrar em maiores detalhes, mas temo que isso fosse longe
demais, talvez isso a amedrontasse demasiadamente.

(Tânia pára de rir)

TANIA (Séria) – Está bem. Você não quer falar disso comigo.

HENRIQUE – Não, na realidade eu não tinha a intenção de fazê-lo, mas se você estiver
interessada posso falar. Mesmo que, como disse, não pretenda entrar em detalhes, isso
poderia perturbá-la e a única coisa que desejo esta noite é estar com uma pessoa
calorosa.

TANIA – Uma pessoa calorosa.

HENRIQUE – Entretanto, da sua parte não deverá surgir nenhum sentimento. Tudo deve
ser apenas uma questão de dinheiro.

(Tânia pega a mão de Henrique).

HENRIQUE – Eu me sinto muito nostálgico esta noite.

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TANIA – Eu não consigo imaginar que você possa fazer alguma coisa cruel a uma mulher.
Você é somente uma pessoa tímida que tem um bom coração.

HENRIQUE (Bebendo) – Eu não faço nada disso de propósito, quero deixar claro. Qualquer
observador externo poderia facilmente acreditar em premeditação. Esse não é
absolutamente o caso. Trata-se somente de...

TANIA – De que?

(Henrique de forma ausente, ruminando seus pensamentos)

TANIA – Pode falar sem pressa.

HENRIQUE (sobressaltado) – Você quer mais dinheiro!

TANIA – Não, está tudo ok.

HENRIQUE – Você faz tudo profissionalmente. Não. Você é cem por cento profissional.
Você é paga para não ter nenhum tipo de sentimento.

TANIA – Pois é.

HENRIQUE – Eu sou seu cliente. Você é uma mulher de negócios. Você não pode se
entregar ao amor.

TANIA – Quanto a isso, não se preocupe.

HENRIQUE (Bebe) – É. Então. A primeira mulher eu amava de verdade. Não, minto. Eu - eu


a amei. Sim. Eu a amei. Julia. (Bebe).

TANIA – E depois ela te largou.

HENRIQUE – Sim. Exatamente. Porque ela pensava que para mim tudo era apenas um
jogo. Porque eu não podia amá-la como ela me amava. Pausa. E foi assim que tudo
começou.

TANIA – Não esquenta a cabeça. Isso acontece com todo mundo. Daqui a pouco você
encontra uma outra. E essa Julia vai se morder de arrependimento.

HENRIQUE – Mas as outras também me abandonaram. A segunda me abandonou porque


a estrangulei, a terceira eu asfixiei.

TANIA –Bem que você gostaria de ter feito isso, eu entendo. Eu também tenho essas
fantasias de vez em quando. Meu Deus, mas você bebeu todas, hein. Vem cá meu bem.

Ela abraça Henrique com força, o embala e acaricia para

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acalmá-lo. Henrique fica realmente mais calmo, parece até que está dormindo, mas na
verdade ele curte o fato de estar nos braços de Tânia.

TANIA – Eu nunca amei ninguém. (Silêncio). E não quero amar jamais. (Silêncio). É tudo
uma chatice. (Silêncio). Quando a gente se apaixona a gente muda, não é. Tudo se desloca
um pouco, a gente começa a andar de maneira diferente, a gente olhar de forma
diferente, a voz se torna mais grave e eu até acredito que o cheiro da gente muda.
(Silencio). Talvez você pudesse me ensinar algumas coisas. Talvez você pudesse me
ensinar alguns gestos. Para que eu possa agradar meus clientes. Talvez você pudesse me
ensinar como age uma pessoa apaixonada.

HENRIQUE – Não

TANIA – Todas as minhas colegas têm um namorado fixo. Bom, quase todas. Eu não tenho
nenhum. Eu nunca tive. Jamais. Pausa. Quando eu tinha doze anos eu me deixava beijar
em troca de presentes porque achava que talvez alguém gostasse de mim e se tornasse
um namorado fixo. Mas, depois, um após o outro, me davam presentes e iam embora.
Pausa. Aí eu nunca mais deixei me beijarem e, quanto ao resto, eu pegava o dinheiro.
Então, um após o outro, eles pagavam e íam embora. Pausa. Por quê?

Silêncio.

TÂNIA – Há alguma coisa de repugnante em mim.

Silêncio.

HENRIQUE – Não.

TÂNIA - Mas você refletiu bastante. Refletiu bastante porque não queria me fazer mal.
Você me observou e me escolheu na rua porque achou que “com ela não corro o risco de
me apaixonar ou de me tornar um namorado fixo. Ela é repugnante” .

HENRIQUE – Eu te avisei. Eu te disse para não se render à nostalgia.

TANIA – Todos contam histórias que os impede de se envolver e de se tornar um


namorado fixo. Por que, justamente comigo, ninguém se envolve? Por quê.

HENRIQUE – E por que deveria ser eu. Por que deveria ser justamente eu. Por quê. Eu -
um vendedor de sapatos totalmente mediano, e ainda por cima, não esportivo, com um
salário anual nem um pouco espetacular.

TANIA – Está também querendo tirar o corpo fora e pensa que é esperto.

HENRIQUE – De maneira nenhuma.

TANIA – Então você não me acha repugnante.

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HENRIQUE – Não

TANIA – Então me beija.

HENRIQUE – Não. Isso não se faz.

TANIA – Só de brincadeira. Me diz o que eu faço de errado. Me mostra como devo fazer,
os gestos.

Ela o beija.

HENRIQUE – Você faz tudo certo, sem dúvida nenhuma.

TANIA – Eu não espero nenhum sentimento de você. Faça só de conta que sente algo por
mim.

HENRIQUE – Eu não quero. Eu não quero mais brincar.

TANIA – Garanto que não vou renunciar à minha independência. Eu vou cuidar de você.
Você nunca mais vai precisar trabalhar. Eu ganho o suficiente para nós dois. Eu sou uma
profissional.

Ela o beija.

TANIA – Me beija. Ela o beija. Me abraça. Ela o beija. Seja meu fixo. Ela o beija. Me ama.

Ela o agarra com força contra si, ele primeiro corresponde ao seu carinho, de maneira
mecânica e medrosa, e depois entra em pânico. Ele quer se desvencilhar dela mas não
consegue. Eles começam a lutar um contra o outro , ele tenta matá-la , ela tenta fugir , ele
a esfaqueia.

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VIII. A CEGA ( IV)

A CEGA – Como é que eu sou?

HENRIQUE – Baixa, cabelos pretos, pele cor de azeitona. Você se parece um pouco com
uma azeitona com cabelos em cima. Seu nome deveria ser Olívia.

A CEGA – Será que sou - feia.

HENRIQUE – Não.

A CEGA – Será que você tem uma concepção de feiúra?

HENRIQUE Pensando um pouco – Não, possívelmente não.

A CEGA – Então eu poderia ser feia, mas para você não.

HENRIQUE – É possível.

(Silêncio)

A CEGA – As outras mulheres, aquelas que você matou, você as achava bonitas.

HENRIQUE – Bonitas -

A CEGA – Belas.

HENRIQUE – Bom, cada uma era diferente da outra.

A CEGA – Isso significa que não eram belas. Você nunca fala nisso.

HENRIQUE – Belas ou não. Pare com essas perguntas. Morte é morte.

A CEGA – Então você não as matou porque eram belas.

HENRIQUE – Não

A CEGA – E também não as matou porque elas não eram belas.

HENRIQUE – Não

A CEGA – Então a aparência delas não poderia evitar suas mortes e não influíram em
nada.

HENRIQUE – Mas você é cega. Qual a importância que isso pode ter para você. Como é
que você vai ter uma ideia sobre a aparência de outras mulheres se não pode ter ideia
sobre a sua própria aparência?

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A CEGA – Sim. É verdade. É por isso que eu estou perguntando. O que eu deveria temer.
Pausa. Diga-me como sou, qual é a minha aparência.
(Ela vai embora).

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IX. EVA. A MULHER COM O REVÓLVER.

Entre quatro e cinco horas da manhã. O dia começa a despontar, Henrique se refugia em
um bar. Além dele, dois ou três notívagos e dois bancos mais adiante, uma mulher.

EVA – Eu adoro essa luz.

Henrique observa as lâmpadas amarelas, ruminando seus pensamentos.

EVA – Não da luz daqui. Olhe para trás. A luz lá de fora. A luz que você trouxe quando
entrou aqui. A luz que ainda se encontra nas dobras do seu casaco. Ela lhe cai bem. Lhe dá
um certo brilho. Eva ri.

HENRIQUE – É melhor você não me dirigir a palavra.

EVA – Quando eu tinha sua idade, eu também detestava aqueles velhos que não sabem a
hora de calar a boca e voltar para casa, que parecem esperar a noite inteira até que
chegue algum solitário, sobre o qual eles podem despejar suas histórias, porque esse
alguém é educado demais para lhes fazer parar de falar.

HENRIQUE – Eu não me envolvo mais com mulheres.

EVA – Oh.

HENRIQUE – Pode pensar o que quiser de mim.

EVA – Eu não estou mais a procura de homem.

HENRIQUE – E eu não lhe traria nada bom. Melhor nem chegar perto.

EVA – Uma vez que sei que você não se interessa por mulheres...

HENRIQUE – Eu também não me interesso por homens, se isso lhe serve de consolo.

Silêncio

EVA (docemente) – Eu só gostaria de conversar um pouco. Eu não vou importuná-lo.


(Silêncio). Olhe para fora. Veja como está silencioso. Você pode escutar as cores, as cores
desta hora, que a gente chama de azul, porque não se ouve nada além do silêncio das
pessoas dormindo e do murmúrio dos seus sonhos.

(Henrique olha para ela).

EVA – Você pensa que estou bêbada. Eu parei de beber há muitos anos.

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HENRIQUE – Por quê.

EVA – Olhe para mim. A bebida me serviria para quê.

HENRIQUE – Sei lá.

EVA – Eu também não sei.

(Silencio)

EVA – A luz, nessa hora matinal, é, em todas as cidades que visitei, ligeiramente diferente.
Um véu de fumaça azul nas ruas de Paris, um vermelho suave e límpido em Roma, e em
Viena...

HENRQUE – Em Viena, um bonde nervoso vem sempre cortar em pedaços os mais belos
pensamentos quando a gente volta para casa.

EVA – Mas existe uma coisa que nunca muda. Eu posso afirmar, mesmo que não tenha ido
mais longe que Paris, Roma ou Viena

HENRIQUE – (?)

EVA – A gente não te vontade de voltar para casa. Nesta hora a gente simplesmente não
tem vontade de voltar para casa e deixar que a tristeza que deixou para trás abra a porta.

HENRIQUE – Sim. Sim.

EVA – Você sabe quantas vezes fui casada?

HENRIQUE – Prefiro não entrar nesse assunto.

EVA – Por quê. Fui casada algumas vezes. Seguidas vezes. O suficiente para desistir.
Quatro vezes divorciada, três vezes viúva, mas isso não importa. Cada maldita vez eu me
livrei e destruí todos os objetos, todas as roupas e até mesmo um simples aparelho de
barbear. Mas sabe o que nunca consegui fazer? Nunca consegui arrancar da porta todas
as placas que contém o nome de cada um de meus maridos. Sempre que entro em casa
hoje em dia vejo sete nomes diferentes que brilham na porta e me cumprimentam, um
embaixo do outro. E quando coloco a chave na fechadura é uma sepultura que abro.

(Silêncio)

EVA – Vamos até minha casa.

HENRIQUE – O quê.

EVA – Por favor.

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HENRIQUE – De que forma morreram esses seus maridos mortos?

EVA (Ri) – Venha passear comigo. Por favor.

(Eles vão para rua).

EVA – Vamos dar uma volta pelo parque. Daqui a pouco os pássaros da noite vão se calar
e, antes que os pássaros do dia comecem a cantar, temos dois ou três minutos de silêncio
absoluto.

(Eles entram no parque. Henrique para e respira profundamente. Eva continua a andar).

EVA – Você gostaria que eu lhe fizesse um favor?

HENRIQUE – Sim

EVA (Tirando um revólver da bolsa) – Você quer que eu o mate.

HENRIQUE – Não. Sim.

EVA – Chega mais perto.

(Henrique não se aproxima)

EVA – Chega mais perto.

(Henrique não se aproxima. Eva dá um tiro para o chão. Henrique se aproxima).

EVA – Aqui. Pegue.

HENRIQUE – Não

(Ela coloca o revólver na mão dele)

HENRIQUE – Engraçado. Quando a gente toca parece uma barata fria

EVA – É uma ótima sensação.

HENRIQUE – Sim. Não. Sim. Tome ele de volta.

(Ela não pega o revólver).

HENRIQUE – Que eu faço com isso agora?

EVA – Atire em mim.

HENRIQUE – Como -

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EVA – É só apertar o gatilho.

HENRIQUE – Não -

(Ele atira sem querer e acerta na perna dela. Eva dá uma gargalhada e cai no chão)

EVA – Atenção. Na perna não. Tem que ser no coração meu amor, no coração. (Ela ri e se
encosta numa árvore). Você fez um buraco na minha meia.

HENRIQUE (Assustado) – Foi sem querer.

(Eva acende um cigarro)

HENRIQUE – Sinto muito pela sua meia, se quiser eu compro uma nova, se me disser qual
é a marca.

EVA – Não jogue fora o seu dinheiro. Em vez disso, você deve me matar.

HENRIQUE – Assim não dá. É preciso acabar com isso. Não sou obrigado a matá-la. Chega.
Acabou. Você certamente vai encontrar um outro cara, tão obstinado como você.

EVA – O fim. O fim. Toda noite eu saio e procuro o fim até que chega um imbecil e acende
a luz.

HENRIQUE – Eu pego um bonde, e ele sempre trafega em círculos e as malas caem no


chão, mas agora, agora eu vou saltar.

EVA (Faz cair as cinzas do cigarro no seu ferimento) – Puta, eu sou muito ridícula, eu sou
uma merda.

(Silêncio)

EVA – Será que aceita me dar um beijo?

HENRIQUE – De jeito nenhum.

EVA – Vem meu passarinho, vem.

HENRIQUE – Nem pensar.

EVA – Vem cá.

HENRIQUE – Não.

EVA – Cabeça dura. Primeiro você faz um furo na minha meia e, em seguida, você é
incapaz de me beijar, nem um beijinho de desculpa.

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(Henrique cede, vai até ela, lhe dá um beijo, ela o segura, ele a beija novamente).

EVA (Limpa a boca) – Porra, álcool de batata da terra, odeio Bolcheviks.

(Ela se levanta, pega o revólver e aponta para Henrique).

EVA – Atira ou morra, Django

Henrique (Se coloca em posição de duelo, afastando as pernas) – Sim!

EVA – Sim o quê?

HENRIQUE – Morrer.

EVA (Com desprezo) – Mau jogador.

(Ela atira o revólver longe, desistindo)

EVA – O sol vai aparecer daqui a pouco. Antes de mais nada, preciso comprar meias
novas.

(Henrique pega o revólver, aponta o revólver com emoção, mas não consegue atirar com
precisão e atinge o ombro de Eva. Ela desaba sobre um tronco de árvore).

EVA – No ombro não! No coração meu amor, no coração meu amor, no coração.

(Henrique mira de novo)

EVA – Stop. Espera. Me diga o seu nome.

HENRIQUE – Henrique. Henrique Barba Azul.

EVA – Belo nome. Vou morrer com seu nome nos meus lábios, o que você acha –
Henrique -

(Se ela não parar de falar, não será possível acertar. Henrique fecha um olho. Ela dá uma
última tragada e vira a cabeça de lado. Agora Henrique atira. No coração. Ela não precisa
dizer que está morta, dá para perceber claramente. Henrique olha para o revólver na mão
com uma expressão interrogativa. É preciso ir embora. Ele caminha até a morta, pega sua
bolsa e coloca o revólver com precaução, ajusta a bolsa no braço de Eva, nota que o
cigarro ainda está aceso, pega-o e se torna um fumante).

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X. A CEGA (V). UM PEQUENO MONÓLOGO DA DOR
A CEGA (Chora apalpando os olhos) – Uma vez, somente uma vez poder ver o céu.......

XI. CRISTIANA.

Uma encruzilhada.

CRISTIANA – Setenta e quatro, setenta e cinco, setenta e seis.

(Henrique atravessa a rua)

CRISTIANA – Setenta e sete.

(Ela vai até Henrique)

CRISTIANA – Com licença, sim você, como vai, por favor venha comigo, por favor.

HENRIQUE – Por quê.

CRISTIANA – Apostei comigo mesma que abordaria o septuagésimo sétimo homem que
passasse por aqui.

HENRIQUE – Então para você eu sou um acaso.

CRISTIANA – Nunca fiz coisa parecida. Eu não tinha certeza se teria coragem de fazer isso.
Mas, a partir de hoje, tomei a decisão de mostrar audácia.

HENRIQUE – Eu não permito que me usem para provar coragem. Quem você acha que
sou.

CRISTIANA – Não me importa. Tudo que quero é tomar uma bebida com você.

HENRIQUE – Por que você não conta até setenta e oito ou oitenta e oito ou mesmo até
noventa e nove.
Você não deve acreditar no acaso. Senão a culpa vai ser sua. Você está abrindo mão da
sua responsabilidade. Não faça isso. Procure alguém que tenha uma cara simpática e que
inspire confiança.

CRISTIANA – É, é verdade. Eu acho você simpático. Normalmente não faço este tipo de
coisa, mas de repente me lembrei de que um dia estava no metrô e um homem me
abordou. Era um estudante de Medicina que tinha se candidatado a um estágio na Nasa e
que tinha sido aceito naquele dia. Ele estava sozinho e queria festejar o acontecimento
com alguém. Nós nos divertimos muito naquela noite.

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HENRIQUE – Comigo você não passaria uma ótima noite, mas de qualquer modo, seria
uma noite inesquecível. Você decide, ainda há tempo.

CRISTIANA – Ele me ofereceu whisky, você conhece a diferença entre whisky e Bourbon, e
recitou Bau-de-Laire. Você conhece Bau-de Laire.

HENRIQUE – Sim. É aquele francês fabricante de palmilhas ortopédicas. Conheço.

CRISTIANA (recita Baudelaire)

“ A uma passante” 3

A rua em torno era um frenético alarido.


Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.


Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.

Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade


Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! "nunca" talvez!


Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!

A rua ensurdecedora uivava à minha volta.


Longa, magra, em grande luto, dor majestosa.
Uma mulher passou, de uma mão faustosa levantando, balançando, o festão da barra da
saia;
Ágil e nobre, com sua perna de estátua.
Eu, eu bebia crispado como um extravagante,
No seu olho, céu lívido onde germina o furacão,
A dor que fascina e o prazer que mata.
Um clarão... Depois a noite! Beleza fugidia cujo olhar me fez subitamente renascer,
Não te verei mais a não ser na eternidade?

3
Tradução Ivan Junqueira. In: As flores do mal. Editora Nova Fronteira. (Há outras traduções “oficiais”,
a de Ivan Junqueira me pareceu a mais adequada para o “espírito” da peça.)

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Algures, bem longe daqui!
Tarde demais! Talvez jamais!
Pois eu ignoro para onde tu foges, tu não sabes para onde vou,
Oh tu que eu teria amado, oh tu que o sabias.

Isso ficou gravado na minha memória. Se eu não tivesse feito a bobagem, naquela noite,
de querer voltar para casa a qualquer custo, na minha medrosa inocência, em vez de
passar a noite com ele, segundo me propôs, eu não estaria aqui agora, eu estaria nos
Estados Unidos, meu marido estaria trabalhando na Nasa e usaria camisas havaianas
durante as férias e nós teríamos uma piscina. E lembrar que ele chegou ao ponto de dizer
que me amava.

HENRIQUE – Comigo é que você não vai para a América.

CRISTIANA – Só que não tem mais volta. Eu abandonei o meu marido e os meus dois filhos
pequenos para poder viver alguma coisa, mais uma vez, antes que seja tarde demais.
Agora ou nunca. Eu não tenho escrúpulos e estou disposta a tudo. Silêncio. E você, o que
você espera da vida.

(Henrique de repente a abraça com desespero e arrebatamento apertando-a contra si)

HENRIQUE – Tranquilidade. Me dê tranquilidade.

CRISTIANA – Eu, por mim, prefiro nunca mais conhecer a tranquilidade, nunca mais, não
quero nunca mais ser obrigada a me entediar, não quero nunca mais assistir a televisão à
noite, eu queria um homem que fosse um criminoso perigoso e fugir com ele através de
toda a Europa, eu queria desembarcar em Tanger e, quando o sol se pusesse, beijar a
bunda dos meninos.

HENRIQUE – Não me provoque.

CRISTIANA – Eu gostaria de nunca mais me apaixonar, de nunca mais me casar, gostaria


de encontrar um homem que fizesse meu coração explodir de uma paixão tumultuada e
brutal, que revirasse o âmago do meu ser, que me pegasse sem pedir.

HENRIQUE – Que a beijasse e que mordesse seus lábios.

CRISTIANA – Sim.

(Henrique assim faz)

HENRIQUE – Que a beijasse e com a própria respiração sufocasse a sua.

CRISTIANA – Sim

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( Henrique assim faz)

HENRIQUE – Que em pleno dia e em plena rua arrancasse a roupa do seu corpo, com as
duas mãos, e dilacerasse sua pele.

CRISTIANA – Sim.

(Henrique assim faz)

HENRIQUE – Que enrolasse seus cabelos em volta de seu punho e a arrastasse ao longo
das valetas, jurando que a ama.

(Henrique assim faz)

HENRIQUE – Eu te amo. Eu te amo.

CRISTINA – Sim

HENRIQUE – Que enfiasse o pau nela tão profundamente que ela pensasse que ele iria
chegar até o coração.

CRISTIANA (Ri) – Sim

(Henrique assim faz)

HENRIQUE – Que amassasse seus seios, buscando o coração que grita dentro dela. Não
existirá amor mais poderoso que o nosso, jamais, e nós devemos morrer deste amor.

CRISTIANA – Sim -

HENRIQUE – Mas somente você vai morrer deste amor. Só você vai morrer.

(Ele bate com violência a cabeça dela contra a parede até matar).

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XII. A CEGA (VI).

O Jardim Inglês. Henrique sentado num banco. Uma moça (a cega) se aproxima tomando
sorvete. Ela se senta a seu lado hesitante.

A CEGA (Após um momento) – Eu adoro tomar sorvete.

(Silêncio)

HENRIQUE – Sorvete. Tomo sorvete somente quando vou ao Zoológico. Acho que um
combina.

A CEGA – O senhor vai muito ao Zoológico.

HENRIQUE – Nunca mais depois dos meus sete anos.

A CEGA – Por alguma razão especial.

(Pausa)

HENRIQUE – Não, aconteceu.

(Silencio)

A CEGA – Hamburgo tem um Zoológico muito bonito.

HENRIQUE – Hamburgo. Estamos em Hamburgo.

A CEGA – Você está perdido.

HENRIQUE – Não – é somente porque – sim, Hamburgo tem um Zoológico. Mas Munique
tem um Parque de animais.

A CEGA – O que há com você. Parece tão esgotado.

HENRIQUE – Qual é o seu nome.

A CEGA – Por que.

HENRIQUE – Não precisa ter medo. Mas por favor, me ajude, por favor.

(Pausa)

A CEGA – Julia

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HENRIQUE – É isso que eu temia.

A CEGA – Você está doente.

HENRIQUE – Você não consegue me ver, não é.

A CEGA – Não.

HENRIQUE – Você reconhece a minha voz? Por favor, pense bem.

A CEGA – Não, com certeza.

HENRIQUE (Docemente) – O que houve com seus olhos. Foi culpa de quem.

A CEGA – Culpa? De ninguém. Uma noite acordei, quis acender a luz e nada se iluminou.
Foi tudo. Para um desconhecido você é muito curioso. Isso é pouco educado.

HENRIQUE – Vou lhe mostrar meu passaporte.

A CEGA – Para quê. Eu não posso ler.

HENRIQUE – Vou ler para você. Se você quiser vai passando os dedos. Eu não vou mentir.

(Tira o passaporte do bolso e mostra)

HENRIQUE – Aqui está, com a foto.

A CEGA – E daí? Não me importa saber quem você é.

HENRIQUE – Como assim.

A CEGA – Você é um sujeito estranho. O que você quer comigo exatamente.

HENRIQUE – Por acaso o seu aniversário é hoje.

A CEGA – Por que você está dizendo isso?

HENRIQUE – Você gostaria de me beijar?

A CEGA – Você quer que eu grite por socorro.

HENRIQUE – Você quer ser minha mulher?

A CEGA – Acho que você é um pervertido.


HENRIQUE – Não

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A CEGA – Não. Nem conheço você.

HENRIQUE – Obrigado. Obrigado. Obrigado.

(Silêncio)

A CEGA – Você ainda está aí?

HENRIQUE – Sim, ainda estou aqui.

A CEGA – Você deve estar à procura de alguém. Faz cada pergunta esquisita.

HENRIQUE – Sim. Sim.

A CEGA – Por quê.

HENRIQUE – Eu sou um assassino.

A CEGA – E agora- Você vai me deixar ir embora.

HENRIQUE – Sim. Pode ir.

(A cega se levanta e vai embora. Henrique fica sentado um momento, depois se deita no
banco, enrolado no seu casaco. Vento (talvez), folhas (talvez). Ele adormece).

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XIII. MONÓLOGO DA FLORESTA.

É noite, noite, noite lá fora. Sinto em mim uma grande impaciência. Não quero dizer
impaciência quando digo impaciência, na verdade quero dizer - tristeza.
Chove na escuridão, ouço a chuva tamborilar sobre as folhas, eu saio e te sigo
primeiramente por uma trilha, depois pego um atalho pela parte de baixo do bosque até
encontrar o lugar certo. Deve ser aqui. Galhos quebrados e cobertos de brotos sobre uma
cruz enterrada no chão, um círculo de folhas e de pedras em volta, a terra
cuidadosamente alisada; talvez seja somente uma ilusão, eu me engano ou tenho a
lembrança de uma noite na qual a escondi na terra. E foi aqui neste lugar ou nunca em
parte alguma. Para me certificar eu me abaixo e remexo as folhas com as mãos. As folhas
estão molhadas e se colam entre meus dedos, aderem às minhas mangas. Arrancar os
galhos enterrados, eles resistem, raízes recentemente cortadas se voltam contra mim,
tentam me puxar para baixo, para onde não desejo ir, gavinhas folhudas, em torno de
minhas mãos, trepam pelos meus braços, enlaçam minhas pernas, eu te vejo sempre no
final do caminho, somente tua silhueta, mas sei que é você, diga-me o que há embaixo da
terra para que as plantas cresçam tenazes e com tanta resistência naquele lugar onde não
deveriam nascer, o que foi que eu fiz, fui eu, você não se aproxima, você não me ajuda, as
plantas me fazem cair, terra pesada de chuva, na qual eu desabo com todo o peso do meu
corpo, você vai embora e eu não te alcanço, não posso te impedir. Julia, eu grito, Julia,
fica, fica onde está, fica onde está, você não me ouve.

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XIV. A CEGA (VII). ÚLTIMO AMOR.

A CEGA – Você está fedendo como um cavalo velho esquecido na fazenda, o couro roído
pela sarna, os olhos vidrados, os dentes embotados, o cavalo foi abandonado, lá está ele,
dia após dia, na chuva, andando em círculos, noite após noite. Pausa. Cheira a matadouro.

(Silencio).

A CEGA – Eu te vi pela primeira vez num bar. No começo do outono. Sete anos atrás.

(Pausa)

A CEGA – Eu queria te reconhecer.

HENRIQUE – Você poderia me amar. Talvez.

(Silêncio)

A CEGA – Talvez.
Como eu gostaria de dizer Talvez.
Como gostaria de dizer Sim.
Eu parei de te amar.
Que frase simples. E não é verdadeira?
Um dia de primavera. Quando me sentei ao seu lado num banco. Eu queria te reconhecer.
Era a mesma voz.
Mas. O seu cheiro -

HENRIQUE – Me ama

(A Cega diz não com a cabeça).

HENRIQUE – Me ama como eu te amo.

(A Cega diz não com a cabeça)

HENRIQUE – Eu te amo, além da medida.

A CEGA – Não. Você está somente tentando.


Mas eu, eu vou te matar.
Para você será como uma Redenção.
Para mim, como minha própria morte.
Mas então. Me libertarei de você.
Do seu exagero. Da sua mediocridade. Das suas mentiras.
E nunca mais terei vergonha do meu amor.
Nunca mais terei vergonha do meu amor.

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Eu terei orgulho dele.

(Ela corta a garganta de Henrique).

Eu, que mato o amor.


E o desejo de amor.

Só uma vez, só uma vez,


Ver o Céu.

FIM

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