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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DE GOIÁS

CIÊNCIAS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS

Docente: Suzane Alencar


Disciplina: Antropoligia I
Acadêmica: Ana Carolina Cavalcante de Souza

Diário de Campo – Feijoada de Pretos Velhos – Aparecida de Goiânia/GO

CENTRO CCSAUE

Essa saída de campo foi realizada no dia 09/06/2018. Recebi o convite para participar dessa
festa por uma amiga que é trabalhadora desse centro. A festividade estava marcada para ocorrer
as 16h00 daquele sábado. Saí de casa as 14h00 e a ansiedade dominava meu ser. Aproveitei o
caminho que da minha casa até o centro é de 17km para pensar a respeito da devoção que as
pessoas possuem e em como se dedicam aquilo que acreditam. Pensei na minha amiga Fernanda,
que é trabalhadora nesse centro e que ela assim como outros membros haviam ido para lá no dia
anterior ao evento para o preparo da festividade que envolve toda uma ritualística conforme ela
havia me explicado no momento que me fez o convite.

Assim que lá cheguei, meu coração estava acelerado, pois a ansiedade de pela primeira vez
perceber o todo com um olhar “etnográfico” fazia minhas mãos transpirarem. Quando me coloquei
a frente do portão de entrada do centro, já era possível ouvir o toque dos tambores e o cheiro de
incensos com aromas de rosas e sândalo. Logo que o portão se abriu, fiz questão de entrar com o
pé direito, mera superstição, mas já para garantir boas energias, vou recebida por dona Creuza,
uma senhora muito simpática, de sorriso acolhedor e olhos negros cheios de vida, ela me abração
desejando muito axé e boas vindas, pediu que eu retirasse os sapatos e me acompanhou até onde
eu poderia deixá-los.

Após retirar os sapatos e pisar no chão de terra batida bem vermelha da cor das sementes
de urucum, senti o frescor da terra abaixo dos meus pés e me recordei de quando era menina e
morava no interior e corria livre e descalça pelas ruas...de repente ouço alguém emanar um grito
de “Salve São Benedito” e todos repetiam salve! Salve! Foi quando de volta da minha memória de
infância, é que percebi que já haviam na sala principal uma grande quantidade de pessoas, a maioria
delas usavam vestimenta branca, a estrutura da casa que abrigava o centro era bastante simplória,
arquitetura humilde onde mais uma vez me senti levada as minhas memórias de infância no interior
morando com meus avós, que eram em vida uma preta velha e um preto velho. Minha casa na
infância também em uma casa humilde, mas o amor que lá existiam era de valor imensurável.

De volta ao ambiente os sons dos três atabaques davam o ritmo a festividade, fiquei surpresa
ao perceber que os tocadores de atabaque eram três jovens que aparentavam ter em média 20
anos, a estranheza no meu olhar refletia um tipo de conceito em mim pré-estabelecido de que as
pessoas tão jovens, não estariam em uma festividade dessa e tampouco esperaria encontrar tais
jovens como trabalhadores em um centro de umbanda. Eles tocavam e cantavam seguidos de umas
dez mulheres vestidas de branco da cabeça aos pés segurando nas mãos um rosário. As músicas
falavam de dor, de tristeza e de muitas alegrias vividas pelas entidades denominadas de “pretos
velhos”, referia-se também a sabedoria e a paciência que muitas vezes somente a longa vida pode
nos proporcionar.

Encontrei minha amiga Fernanda, também vestida toda de branco, com um sorriso largo de
satisfação por eu ter aceitado o convite. Ela me levou até o Pai, o responsável pelo centro e por
todos os trabalhos que lá haviam, entramos em uma pequena sala onde ao invés de porta, havia
uma cortina feita de uma semente chamada lágrimas de maria, uma lindeza tal artesanato, após
passar a cortina que faz um barulho tranquilizador quando as sementes se tocam, estava agachado
no canto da pequena sala, todo vestido de branco, o Pai Fernando. Um homem de pele clara,
aparentando ter 30 anos ele usava roupa branca, as barras de sua calça estavam dobradas tinha
muitas pulseiras e colores e em sua cabeça havia algo parecido com um Quipá. Havia também no
outro canto da pequena sala muitas velas acesas, dando ao ambiente aquele tom amarelo
nostálgico.

O Pai, é assim que todos o chamam, fez sinal para que eu me agachasse para que pudesse
receber a benção dos meus ancestrais, assim disse ele. Eu me agachei ele tomou a minha mão
direita e me olhou profundamente nos olhos, como se buscasse algo além de mim. Ele me disse
algumas coisas sobre os meus protetores espirituais, falou da minha família (dos meus avós) por
quem fui criada e pediu que eu voltasse a casa sempre que sentisse vontade. Após isso, deixei a
pequena sala com uma sensação de tranquilidade fui para a sala principal onde a maioria das
pessoas estavam.

Decorrido acredito em média uns 20 minutos, o Pai adentra a sala grande, os atabaques
silenciam, e a cantoria emudece. O respeito pela figura que ele representa é facilmente percebido,
assim como os olhares de admiração. Pude então perceber que este homem que anteriormente
estava agachado na pequena sala, agora em pé, pude notar sua estatura de acredito 1m,80c. Ele
começou a falar e sua voz em tom moderado o único som em todo o ambiente e ressalto que
haviam crianças em média de idade entre 4 e 10 anos, mas elas estavam quietas e em completo
silêncio.

O pai começou a falar a respeito da do ritual da festa de preto velho, falou sobre o uso da roupa
simples e branca, típica dos praticantes da Umbanda, que remete a pureza. Enquanto ele falava eu
por um instante desviei a atenção para pensar em como eu gostaria de ter um celular para gravar
as explicações para assim posteriormente transcrever, entretanto fui informada por minha amiga
que o uso de eletrônicos é vedado na casa. Voltei minha atenção a fala do Pai tentando gravar em
minha mente o máximo possível.

Ele falou a respeito da figura dos pretos velhos, a figura do idoso com a experiência de vida
aquele que deve ser ouvido e cujos conselhos devem ser seguidos. Ressaltou a simplicidade e um
profundo sentimento de caridade. Só quem sofreu na carne as desventuras da vida, pode entender
ou se aproximar da compreensão do sofrimento alheio, disse ele.
O Pai falou de histórias, da vida dos pretos/pretas velhos (as) algumas histórias com um apelo
muito mágico, outras já mais ao alcance de minhas percepções, como a ideia de que foram pessoas
comuns que atingiram a evolução através do sofrimento no cativeiro. A sua tolerância ao martírio,
sem manifestar revolta ou ódio pelos seus algozes e o profundo amor indiscriminado pela
humanidade, os ascendeu a um patamar de mestres espirituais.

Isso me fez pensar naquele mesmo momento na figura de Jesus, que possui um grande número
de seguidores e adoradores no ocidente e também em alguns lugares do oriente, na sua pregação
de amor e na forma de dar a outra face e me perguntei no por qual motivo há tanta descriminação
com outras formas de culto que muitas vezes assim como está pregava o amor da mesma maneira?

O pai falou por mais alguns minutos e declarou aberto os trabalhos e a festividade.

As mulheres que antes cantavam, fizeram um círculo, o Pai se colocou ao meu, recitaram
algumas palavras que para mim eram desconhecidas e ele começou a caminhar em direção a cada
uma das mulheres que estavam no círculo e colocava a mão em suas cabeças uma a uma assim
cada uma dessas mulheres eram acompanhadas por outras trabalhadores a um ponto da grande
sala ali iam vagarosamente sentado um banquinhos previamente colocados, mudavam suas feições
suas costas ficavam curvadas, assim como a fala se transformava e um linguagem sem formalidades
com erros de gramática. E entre muita fumaça de cachimbos um a um era direcionado ao
aconselhamento dos pretos/pretas velhos (as).

Era possível ouvir alguns aconselhamentos: pessoas que precisavam de renovar suas energias,
tanto na parte física, com passes magnéticos, tratamentos espirituais e o auxílio de indicando ervas
curativas, muitos conselhos e amparo afetivo, numa prática de e amor sem julgamentos. Tudo isso
ao som de muitos cantos entoados pelo Pai e membros da casa, ao som dos atabaques.

Após finalizado a etapa de aconselhamentos foi realizado uma prece coletiva e após a mesma
o pai pediu que liberássemos a grande sala para que ele pudesse auxiliar no transporte espiritual
das entidades e na liberação dos médiuns.

Fomos todos para a alpendre que contornava a casa e o cheiro da comida é muito convidativo.
Dona Creuza convidou-nos a todos para nos servirmos e uma grande fila foi formada, todos
comemos à vontade, a comida era deliciosa que até podíamos ali em ambiente santo praticar o
pecado da gula, tomados pelo encanto do sabor.

Finalizada a festa, cada um dos participantes recebeu um rosário e um a um todo foram


deixando o centro. Me despedi de todos e de minha amiga Fernanda em especial, me coloquei de
volta para casa com tantos pensamentos acerca da devoção, da fé, do ritual que antecede o ritual
e com a sensação de respeito por tudo o que me é oferecido conhecer.

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