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substituição de assalariados registrados por terceirização irrestrita (também permitida por uma das
reformas do governo Temer). Assim, apelar para uma integração social pelo mercado de trabalho
regular, quando as normas de “empregabilidade” formal foram todas suprimidas oficialmente
(“flexibilizadas”), soa como um escárnio.
E isso não é um problema exclusivo do palavreado oficial. Também a esquerda se enreda
nessa contradição ao não perceber que as medidas adotadas pelo governo atual são a oficialização
de um processo anterior objetivamente em curso de desintegração da socialização baseada no
trabalho. Nesse sentido, tão grave quanto o cinismo das declarações oficiais, é a ingenuidade de
quem ainda confia apaixonadamente que o trabalho é o passaporte para a integração social, que o
estímulo subsidiado à geração de empregos seja a base para um novo ciclo de desenvolvimento ou,
pior ainda, que a subjetividade dos indivíduos deva ser determinada pela sua condição social
produtiva. Aquele que insiste que o “trabalho forma” diante de um mercado onde se multiplicam
flanelinhas, vendedores de balas, motoboys, vendedores de seguros, motoristas de
Uber, youtubers precarizados e empregados do crime deveria cegar os próprios olhos para ter a
desculpa de não enxergar a barbarização social crescente criada pela concorrência econômica
desenfreada.
A manutenção de uma compreensão da realidade em que o trabalho aparece como a única
possibilidade efetiva de dar significado às trajetórias individuais e compor, pelo seu somatório, um
conjunto social, reproduz e alimenta o discurso de que aqueles que, por algum motivo, estão de fora
desta socialização, são descartáveis. Em que pese a divergência nas interpretações de acordo com o
espectro político de partido, a conclusão é de que o indivíduo que não consegue se socializar por
meio do trabalho e do emprego – seja por falta de vontade, incapacidade própria (“falta de
empregabilidade”, diria um ex-presidente) ou pelas circunstâncias objetivas do mercado cada vez
mais restrito – é encarado cada vez mais como um peso para o restante da sociedade. Os não-
rentáveis são o problema a ser remediado ou combatido.
O governo anterior, deposto pelo impeachment, ainda guardava a preocupação oficial de que
aqueles que gostariam de se inserir no mercado de trabalho poderiam receber apoio temporário ou
qualificação para isso. Mas essas medidas de compensação social, criadas ou aprofundadas durante
os governos petistas, funcionavam exatamente como o reconhecimento de que a socialização pelo
trabalho já não era mais possível para todos, portanto, cabia ao Estado o papel de garantir
minimamente as condições de reprodução social das massas “sobrantes” – diferente da era tucana
em que um terço da sociedade era tomada imediatamente como descartável.
Depois de mais de uma década, a situação daqueles atendidos pelas medidas de
compensação foi compreendida muito mais como uma “condição”, um “estado”, do que
3
“O que é que ocorreu nesse país e que o descontrole das finanças públicas
é um dos aspectos reveladores? O que aconteceu nesse país foi o
aparelhamento do Estado, foi a ocupação de toda a administração pública
não baseada no mérito, não baseada no trabalho, não baseada no
aprendizado, não baseada na labuta diária, mas baseada no favoritismo, na
sinecura, baseada na difusão de que o que importa é ser malandro.”
arte e profissionais da cultura foi sustentado colericamente contra os “parasistas” mantidos pela
renúncia fiscal. Até mesmo a crítica da reforma da previdência aponta que seus principais defensores
são “vampiros” que se aposentaram muito cedo ou para a exclusão dos militares que têm gordas
pensões sem fazer nada, assim como os magistrados viraram alvo de indignação contra suas
gratificações desproporcionais ao serviço que prestam à sociedade. Enfim, uma caixa de pandora de
preconceitos seculares da sociedade do trabalho foi aberta e passou a pautar os debates
“intelectuais”, televisivos ou nas redes sociais, a fundamentar projetos de reforma de todos os tipos
e servir de conteúdo para as mesas de bar.
Os desdobramentos desse ressentimento liberado são meramente destrutivos e levam ao
ódio generalizado, pois é cada vez mais difícil distinguir o “cidadão trabalhador” do “cidadão
improdutivo”. E isso é evidente porque a capacidade de produção de capital fictício por parte do
Estado se tornou o fundamento mesmo da reprodução econômica atual, o que envolve a minguada
Bolsa Família – que garante ainda o alimento de milhões de brasileiros –, o salário do servidor
público, o bilionário crédito subsidiado para indústria e agronegócio ou a remuneração trilionária dos
investidores financeiros de todos os tipos – bancos, fundos mútuos e fundos de pensão. O conflito
distributivo se transforma pouco a pouco numa guerra de todos contra todos, cuja principal vítima
tem sido sempre as crescentes massas de excluídos nas favelas e periferias, que, paradoxalmente,
são muito fragilmente ou sequer têm amparo do Estado.
O ponto culminante desse processo de regressão social é exatamente a intervenção militar
no estado do Rio de Janeiro, cujo objetivo mais amplo é dar sobrevida política a um governo
impopular, invocando as forças armadas contra os “bandidos” e ocupando deste modo o espectro
político que confere popularidade crescente a um candidato de extrema direita – aquele que oferece
guerra aos “marginais” de todo o tipo, desde os “favelados” e os “vagabundos da política” até a
“escória imigrante”.4
Entretanto, é um equívoco considerar a escalada desse processo como um ponto de
descontinuidade frente aos governos anteriores. O “golpe” foi só a tampa levantada de uma panela
já sob forte pressão, para a qual contribuiu também as políticas aparentemente ambivalentes do
lulismo. Além do fato de o uso atual das forças armadas na segurança pública fluminense não
aparecer como nenhuma novidade – sendo inclusive a repetição de uma estratégia de dissimulação
política muito comum há pelo menos duas décadas no Rio –,5 a própria legitimidade dada ao uso da
força bélica durante os governos do PT foi amparada na ética do trabalho. Sempre esteve presente
nestes, como parte da vinculação categorial ao trabalho como elemento social básico, a conclusão de
que o desvio social para o crime equivale ao afastamento voluntário do mundo “produtivo” – e isso
só poderia ser enfrentado por meio da violência.6
5
convocou o exército para restaurar a “ordem”. O que se apresenta como uma necessidade é a crítica
radical da concepção de que o “mundo do trabalho” oferece uma alternativa à militarização.
A determinação social pelo trabalho torna-se uma centralidade negativa quando sua oferta é
escassa e a sua manutenção só pode levar à regressão. Hoje essa guerra tem como alvo prioritário as
favelas, a expressão espacial dos excluídos do mercado de trabalho, assim como, no interior destas,
os jovens negros, os mais afetados pela exclusão econômica. Mas os “trabalhadores” que se colocam
hoje ao lado da intervenção militar, contra os “vagabundos”, serão futuramente o inimigo nessa
guerra civil difusa, logo que o mercado de trabalho os expelir.9
Quem fala em nome do trabalho, fala em nome da guerra – historicamente, a principal fonte
de empregos na sociedade capitalista. A única paz possível está além de uma sociedade de mercado
que define a moribunda forma do trabalho como o único destino, individual e social.
Notas
1
“Em outros termos, em que pode consistir uma inserção social que não leva a uma inserção profissional, isto
é, à integração? Uma condenação à eterna inserção, em suma. O que é um inserido permanente? Alguém que
não se abandona completamente, que se ‘acompanha’ em sua situação presente, tecendo em torno dele uma
rede de atividades, de iniciativas, de projetos. Vê-se, assim, em alguns serviços sociais, desenvolver-se uma
verdadeira efervescência ocupacional (…). É uma questão de honra (mas talvez também de remorso) para uma
democracia não se resignar ao abandono completo de um número crescente de seus membros cujo único
crime é ser ‘não-empregáveis’”. Robert Castel. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário.
Petrópolis: Vozes, 1998, 555-556.
2
Trata-se de uma livre apropriação de uma frase de Paulo Arantes em “Beijando a cruz”, onde já se
ressaltavam os temores de uma classe média conservadora. Zero à esquerda. São Paulo: Conrad, 2004, p. 303.
3
“A privatização e o outsourcing desvalorizam o “capital humano” das qualificações inclusive no interior do
emprego e degrada o seu status. Intelectuais pagos ao dia, trabalhadores baratos e empresários da miséria na
figura de freelancers em mídias, universidades privadas, escritórios de advogados ou clínicas privadas não são
mais exceções, mas a regra”. Robert Kurz, O último estádio da classe média, disponível em português.
4
É significativo que o governo federal, apesar de tratar o problema da imigração em massa de venezuelanos
para Roraima como “crise humanitária”, tenha enviado o exército e os mesmos protagonistas da intervenção
militar no Rio para administrar a situação em Boa Vista: Raul Jungmann e a cúpula militar.
5
Marcos Barreira e Maurilio Lima Botelho, “O Exército nas ruas: da Operação Rio à ocupação do Complexo do
Alemão. Notas para uma reconstituição da exceção urbana”. Em: Pedro Rocha de Oliveira e Felipe Brito
(orgs.). Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social. São Paulo: Boitempo,
2013, p. 115-128.
6
“Tem gente que acha que é possível enfrentar a bandidagem com pétalas de rosas, jogando pétalas de rosas,
jogando pó de arroz. A gente tem que enfrentá-los sabendo que a maioria do povo que mora lá é gente
7
trabalhadora, gente do bem, e que não pode ficar refém de uma minoria”. Essas palavras de Lula, durante as
primeiras operações no Complexo do Alemão, em 2007 (que resultaram em dezenas de mortos), mostram que
os “não-rentáveis” devem ser excluídos também da possibilidade de acesso ao direito.
7
Se o trabalho é a única alternativa, como garanti-lo para mais 26 milhões de pessoas, se 22 milhões já o estão
simulando através de seu próprio esforço individual, como “empreendedores” por conta própria? Assim, “as
estruturas estatais de apoio e recondução de não-rentáveis para postos rentáveis de trabalho são
gradativamente desmontadas na mesma medida em que diminuem estes postos. Os não-rentáveis passam
então, gradativamente, de problemas de seguridade e assistência social a problemas de segurança pública, isto
é, os expulsos do espaço da rentabilidade econômica passam a ser apenas problemas da polícia e do judiciário”
(Joelton Nascimento, Crítica do valor e crítica do direito. São Paulo: PerSe, 2014, p. 255).
8 Não existem dados confiáveis ou estudos sistemáticos recentes sobre o desemprego em favelas. Isso se
justifica em parte pela própria dificuldade de determinação da “desocupação” num ambiente de elevada
informalidade e “autonomia profissional”. Um estudo da FGV, em 2007, apontava que nas maiores favelas do
Rio de Janeiro a taxa de desemprego era de 19,1%, enquanto nos bairros ricos da cidade, a média era de 9,9%.
Marcelo Neri. Trabalho e condições de vida nas favelas cariocas.
9
Como a prestação de serviço militar é uma das alternativas ao desemprego quase certo do jovem adulto, o
soldado de hoje será futuramente o alvo dos seus colegas militares, quando for dispensado.