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Uma ou Duas Melancolias?

1917, 1968 e o Retorno à Questão da Organização


por Rodrigo Nunes

Acabamos por amar nossas paixões e razoes de esquerda, nossas análises e convicções, mais do que ama-
mos o mundo existente que presumivelmente pretendemos transformar com estes termos, ou o futuro
que estaria alinhado com eles... Aquilo que emerge é uma Esquerda que opera na ausência tanto de uma
crítica radical do status quo quanto de uma alternativa inspiradora à ordem existente. Mas talvez ainda mais
problemático, esta é uma Esquerda que se tornou mais apegada a sua impossibilidade que a sua potencial
fecundidade, uma Esquerda que se sente mais à vontade contemplando não a esperança, mas sua própria
marginalidade e fracasso, uma Esquerda presa numa estrutura de apego melancólico a uma certa vertente
de seu passado morto, cujo ânimo é espectral, cuja estrutura de desejo é voltada ao passado e punitiva.

Wendy Brown

crise e crítica

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Uma ou Duas Melancolias?

Já há alguns anos tem-se ouvido que aquilo que propostas. A segunda, como se pode perceber em
um dia foi chamado de Organisationsfrage – a algumas das citações acima, é uma associação au-
questão da organização – estaria de volta, após um tomática entre “organização” e “partido”, o que efe-
longo período de desaparecimento. Logo após as tivamente equivaleria a um retorno menos ao deba-
mobilizações que se espalharam pelo mundo em te em si do que a uma das formas específicas que
2011, Alain Badiou escreveu que levantes como a ele assumiu no passado. No que se segue, pretendo
Primavera Árabe, “brilhantes e memoráveis” tais igualmente afirmar a necessidade de voltarmos à
como eram em si e em sua capacidade de manter questão da organização, sem, no entanto, presumir
a ideia da emancipação viva em um “período inter- esta ou qualquer outra associação. Pelo contrário: o
valar” de sua história, acabavam por reencontrar-se que proponho é que o “retorno” deve se dar como
com “problemas universais deixados em suspenso uma volta ao problema e não a suas respostas pas-
no período anterior, no interior dos quais encontra- sadas. Não só não se deve supor que qualquer uma
mos aquele que é o problema da política por exce- delas seria automaticamente válida hoje, como a
lência, a organização”. Em relação àquele outro verdadeira condição para que o problema seja re-
retorno proposto por Badiou – o da ideia de comu- posto de verdade – isto é, concretamente – é evitar
nismo –, Peter Thomas observou que “a resposta qualquer ideia de um simples “retorno” a práticas
mais disseminada [a ele] (...) tem sido a proposta ou conclusões que foram tidas como solução em
de que uma investigação coerente do sentido do outros momentos; os motivos para tanto se tornarão
comunismo hoje exige uma reconsideração da na- claros a seguir. É só assim, acredito, que o proble-
tureza do poder político, da organização política e, ma da organização pode efetivamente voltar a ser
sobretudo, da forma-partido”. Ou, como resumiu pensado – não como questão teórica, mas direta-
Jodi Dean, uma das defensoras mais entusiasma- mente na prática, a partir do presente, daquilo que
das de um retorno à questão da organização (e à já existe e do que resta ainda por criar.
forma-partido), “a ideia do comunismo leva à or- O caminho que trilho para chegar a este ponto pas-
ganização do comunismo”. Mimmo Porcaro, por sa por uma discussão do conceito de “melancolia de
sua vez, argumentou que a situação de crise perma- esquerda” proposto por Walter Benjamin de modo a
nente em que o mundo vive desde a crise financeira oferecer um diagnóstico do debate atual no interior
de 2008 tornou obsoleta qualquer “visão evolucio- da esquerda que se relaciona diretamente à ques-
nária” segundo a qual a superação do capitalismo tão da organização e sua possível ressurreição. Na
poderia desenrolar-se linearmente e sem momentos primeira parte de minha exposição, contrasto duas
de ruptura; e que a necessidade destes momentos aplicações diferentes deste conceito, a de Wendy
demanda “ação coordenada, articulada em passos Brown no fim dos anos 90 e, mais recentemente,
e fases”, e portanto exige também um tipo de or- a de Jodi Dean. Ao invés de tentar escolher entre
ganização que, ainda que muito modificado, pode uma e outra, proponho que consideremos ambas
ser identificado com um nome próprio: “A crise faz verdadeiras – de onde resulta que aquilo que have-
soar, uma vez mais, a hora de Lênin”. Frank Ruda, ria compreender seria a condição que torna ambas
mais recentemente, propôs que superemos “a para- simultaneamente verdadeiras: seu fundo comum ou
lisia do imaginário coletivo e social” relativa a “no- o sistema de sua interrelação. Proponho identificar
vas maneiras de conceber a política emancipatória” aí duas melancolias distintas – que correspondem,
e que “a forma de conectar estas novas maneiras por sua vez, a duas esquerdas distintas – que se
tem necessariamente de estar ligada a um esforço mantêm presas numa relação simétrica e especular;
de repensar a questão da organização”. e que é esta relação que poderia explicar o eclipse
Duas características deste “retorno”, no entanto, da questão da organização. Se este é o caso, então,
chamam atenção até aqui. A primeira é um forte um retorno efetivo à questão da organização passa
caráter performativo, em que a discussão se ca- necessariamente por situar-se fora deste quadro; as
racteriza mais por um conjunto de injunções para consequências desta ideia são exploradas na seção
que retomemos a discussão do que uma retomada final.
propriamente dita, isto é, a apresentação de novas

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Melancolia – doença senil?


Em um artigo bastante conhecido de 1999, Wen- Em vez de uma esquerda apegada a uma ortodoxia
dy Brown recuperou o conceito benjaminiano de não-reconhecida, temos aqui uma esquerda que de-
“melancolia de esquerda” como modo de lançar luz sistiu de seu desejo por comunismo, traiu seu com-
na “crise da esquerda” que já naquele momento se promisso histórico com o proletariado, e sublimou
arrastava por duas décadas (ou mais, dependendo energias revolucionárias em práticas restorativas
de quem se consultasse). O termo se propunha a que fortalecem o domínio do capitalismo.
descrever “não apenas uma recusa a confrontar o
caráter particular do presente”, mas um “narcisis- A melancolia de esquerda diagnosticada por Dean
mo em relação à própria identidade e compromis- é uma na qual a derrota e posterior abandono do
sos políticos passados que excede qualquer investi- desejo revolucionário foi sublimada numa pulsão
mento contemporâneo em mobilização, construção cuja “atividade incessante” – “crítica e interpreta-
de alianças ou transformação política”. Compro- ção, pequenos projetos e ações locais, campanhas
metido “mais com uma análise política ou um ide- focadas e vitórias legislativas, arte, tecnologia, pro-
al – mesmo com o fracasso deste ideal – do que cedimentos e processo ... as práticas ramificantes,
com aproveitar as possibilidades de mudança ra- fragmentadas da micropolítica, do cuidado de si e
dical oferecidas pelo presente” , o melancólico de da conscientização em torno de temas específicos”
esquerda se protege de ter que encarar o fracasso – tem por objetivo não a vitória, mas o fracasso. O
substituindo a identificação narcísica com o objeto gozo, para esta esquerda melancólica, advém jus-
perdido pelo ódio a algo. Na conjuntura analisada tamente de sua incapacidade de vencer, seu “recuo
por Brown, em particular, este ódio era dirigido à diante da responsabilidade, sua sublimação dos
política identitária e ao chamado “pós-modernis- objetivos e das responsabilidades”. É isto que ex-
mo”, vilipendiados como vetores da dispersão que plica, finalmente, porque ela é incapaz de romper
solapara a solidez, coerência e certeza de um proje- os padrões repetitivos de comportamento que asse-
to de esquerda que deixara de ser viável. guram sua impotência continuada: ela deseja esta
Mais recentemente, Jodi Dean revisitou o argu- impotência, ela deriva prazer dela.
mento de Brown a fim de propor um diagnóstico
distinto. Ao mesmo tempo que elogia o ensaio de Quem tem razão, então – qual diagnóstico é o
1999 por oferecer “uma descrição de uma estrutura correto? Ou devemos considerar o diagnóstico de
de desejo própria à esquerda” e participar da ela- Brown, tal como Dean sugere, como um primeiro
boração das derrotas do século XX, Dean sugere momento da elaboração da melancolia, a ser com-
que ele não lograva identificar corretamente “o que pletado no momento presente?
se perdeu e o que se reteve, o que foi deslocado e
o que foi denegado”. São fundamentais para esta
diferença de avaliação entre as duas não somente os Quem são os melancólicos?
15 anos que separam seus respectivos textos, mas a A primeira coisa a notar, embora isto por si só não
ênfase de Dean no aspecto pulsional da compreen- seja um demérito, é que nenhuma das duas leituras
são freudiana da melancolia, por um lado, e sua in- permanece inteiramente fiel ao uso que Walter Ben-
terpretação distinta do próprio conceito de “melan- jamin faz do conceito. Ainda que o de Dean este-
colia de esquerda”, por outro. Para Dean, ao invés ja certamente mais próximo do original, ambos os
de ser o “epíteto sem ambivalências que Benjamin textos extrapolam criativamente a partir do termo
dedica ao burocrata [hack] revolucionário” , aquele introduzido pela primeira vez em 1931 numa rese-
que é incapaz de superar seus antigos investimen- nha de um livro de poemas de Erich Kästner, atri-
tos mesmo diante do fracasso, o termo deveria, ao buindo-lhe um novo sentido. Para início de conver-
contrário, ser tomado como descrição daquilo que sa, enquanto Brown e Dean entendem “melancolia”
é em certo sentido seu oposto, de onde resulta um como um qualificador de “esquerda” – como uma
diagnóstico quase simetricamente contrário àquele “estrutura de desejo” característica da esquerda do
de Brown: espectro político, como quer que a definamos –, a

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relação em Benjamin parece funcionar na direção que, em cada caso, Brown e Dean escolhem como
oposta: é “esquerda” que qualifica “melancolia”, e evidência de uma propensão melancólica, e que
não o contrário. Kästner não é criticado por ser um setor da esquerda encarna este comportamento em
velho burocrata de partido preso na mesma política cada caso. Fica evidente, analisados desta maneira,
de antigamente, nem acusado de ser um picareta que os dois textos se espelham mutuamente.
jornalístico que transformou suas antigas tendên- É fácil ver que aquilo que Brown tem em mente é
cias revolucionárias em mercadorias da moda, mas uma tendência a pôr a culpa das derrotas das últi-
por construir um nicho de mercado que atende a mas décadas não na incapacidade de mudar diante
uma melancolia disseminada entre a burguesia, que um mundo em mutação, mas nas “escolhas equivo-
seria apenas o último capítulo do mal-estar que de- cadas” supostamente tomadas pelos defensores de
vora a sociedade burguesa por dentro. É o público, um tipo de política surgida nos anos 60. O melan-
não o poeta, que é melancólico – ou antes, melan- cólico, para ela, é o esquerdista “velha guarda” que
cólica é a burguesia. “Os poemas de Kästner são prefere regozijar-se com os insucessos de gerações
para a faixa de renda mais alta, aqueles bonecos mais jovens de ativistas a questionar suas análises e
amargurados, melancólicos, que atropelam qual- prescrições de sempre.
quer coisa ou pessoa em seu caminho”, sofrendo da Por sua vez, a referência de Dean ao abandono “do
“amargura do homem saciado que já não pode de- antagonismo, da classe e do compromisso revolu-
dicar todo seu dinheiro a seu próprio estômago”. É cionário” inicialmente sugere um argumento mais
para este público burguês, em quem o vazio da vida amplo. Afinal, a sublimação do desejo revolucio-
comodificada é capaz até de despertar alguns “re- nário em “práticas repetitivas apresentadas como
flexos revolucionários”, que os aderentes da Nova democracia (seja representativa, deliberativa ou ra-
Objetividade como Kästner erguem o espelho de dical)” é algo que poderia ser dito tanto da Terceira
um “vazio abissal”. Mas isto não faz mais que Via quanto do anarquismo contemporâneo. Reunir
transformar a repulsa que reage a uma imiseração experiências tão diversas num mesmo pacote igno-
espiritual onipresente em “objetos de distração, de ra uma série de distinções importantes – como, por
diversão, que podem ser oferecidos ao consumo” , exemplo, se consideramos que esta foi uma opção
cancelando qualquer significância política que es- consciente ou inconsciente (abandono deliberado
tes sentimentos, e as obras de arte que respondem a da ideia de revolução ou escolha de métodos con-
eles, poderiam ter. Estas obras não fazem nada para traproducentes para realizá-la), estratégica ou tática
sugerir que as coisas poderiam ser diferentes, ou (rejeição da própria ideia de revolução ou apenas
como; o que elas oferecem tanto ao público quanto de sua viabilidade no curto prazo), em virtude de
ao artista é, ao fim e ao cabo, nada mais que o pra- uma aceitação de um “capitalismo inevitável” ou
zer de contemplar a própria vacuidade. É por isto da elaboração de “equívocos práticos” do passado.
que Benjamin conclui que O que uma referência genérica a “recuos e traições
realmente existentes” acaba por fazer é estabelecer
este radicalismo de esquerda está (...) à esquerda uma equivalência entre aqueles casos em que falar
não desta ou daquela tendência; mas simplesmente em traição não atrairia muita controvérsia (o New
à esquerda daquilo que é possível em termos gerais. Labour britânico, por exemplo) e aqueles em que
Pois, desde o início, tudo que ele tem em mente é um recuo mais ou menos inconsciente seria exata-
gozar-se a si mesmo numa quietude negativista. mente aquilo que o argumento deveria ser capaz de
demonstrar (o abandono do desejo revolucionário
Ele é, em resumo, uma expressão do niilismo bur- como estando na origem da melancolia e da pul-
guês, mas com verniz radical – e nada mais que são). Logo torna-se claro que estes últimos, e não
isso. Ele é tão somente a versão esquerdista deste os primeiros, são os verdadeiros alvos: não os “trai-
niilismo. dores” ostensivamente conscientes, mas aqueles
Nada disso, contudo, nos deixa mais perto de com- que se dedicam a “atividades que são experimen-
preender nosso próprio tempo. A segunda coisa a tadas como produtivas, importantes, radicais” mas
notar, então, é o tipo de comportamento observável em última análise não fazem mais que reproduzir

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“uma ineficácia que irá garantir-lhes as pequenas referem a outra pessoa, alguém que o paciente ama,
doses de satisfação que a pulsão supre”. Conforme amou ou deveria amar”. O curioso nas análises
deixam claro os exemplos escolhidos por Dean – da esquerda oferecidas tanto por Dean quanto por
uma ênfase no pessoal, no local e na pequena es- Brown (e na própria experiência que a maioria das
cala, campanhas focadas num único tema, a micro- pessoas têm dessa esquerda) é que a exegese atenta
política etc. –, o melancólico, neste caso, pode ser recomendada por Freud parece em geral desneces-
reconhecido por seu apego ao tipo de prática que se sária. Ao mesmo tempo em que tanto Brown quan-
costuma associar à esquerda pós-1968. to Dean identificam uma tendência da esquerda de
Devemos concluir, então, que o diagnóstico de tirar prazer de sua própria “impossibilidade (...)
Dean nada mais é que uma confirmação da atuali- marginalidade e fracasso” , elas também detectam
dade do diagnóstico de Brown? Ou deveríamos, ad- uma tendência a atribuir a responsabilidade por esta
mitindo a perspectiva histórica em que Dean situa paralisia a um outro. Em ambos os casos, escolhe-
ambos, ver a posição desta última como indicativa -se de modo mais ou menos consciente a ineficácia,
de um giro do pêndulo na direção contrária: o mo- mas a escolha é sempre apresentada como sendo
mento em que a crítica da “nova esquerda” à ”ve- em resposta ao estrago causado por um outro (“ati-
lha esquerda” tornou-se ela mesma objeto de crítica vistas anti-racistas, feministas e queer, pós-moder-
(em nome, presumivelmente, de uma terceira pers- nos, marxistas não-reconstruídos” ) ou à ameaça da
pectiva que não seria nem uma, nem outra)? Uma política que o outro pratica (“moralismo, dogmatis-
terceira opção seria, ao invés de escolher entre as mo, autoritarismo, utopianismo” ). Assim, ao passo
duas, decidir que ambas são verdadeiras: que esta- que o melancólico de Freud está realmente respon-
mos, com efeito, lidando não com uma, mas com sabilizando o outro quando ostensivamente culpa a
duas melancolias – e também, portanto, com duas si mesmo, o melancólico de esquerda abertamente
esquerdas diferentes. culpa o outro. É isto que produz o duplo efeito de
espelhamento que se dá entre os dois diagnósticos.
As duas esquerdas Na medida em que ambos veem um determinado
A principal característica que Freud busca explicar setor da esquerda como tendendo a reagir à experi-
na distinção entre luto e melancolia é o fato de que ência da derrota compartilhada responsabilizando o
o melancólico “representa seu ego (...) como sem outro, cada um destes diagnósticos poderia apontar
valor, incapaz de qualquer realização”, “censura e o outro como evidência de exatamente este tipo de
vilipendia a si mesmo e espera ser transformado em comportamento: como sendo culpado de transferir
pária e punido”. A razão para tanto é que, na me- a culpa a um outro a um outro ou, mais exatamente,
lancolia, a incapacidade de abrir mão do amor pelo de pôr a culpa de tudo no outro que põe a culpa nos
objeto perdido resulta numa identificação com o outros.
mesmo, de modo que “uma perda de objeto é trans- Esta estrutura especular sugere que, se a derrota
formada numa perda de ego”, abrindo “uma cisão histórica, a impossibilidade e o fracasso são com-
entre a atividade crítica do ego e o ego tal como partilhados por todo o espectro político que pode-
alterado por esta identificação”. O ódio dirigido ao mos chamar de “esquerda”, há pelo menos duas
objeto, que sempre esteve presente como ambiva- perspectivas diferentes desde as quais esta experi-
lência, mas que a perda permite vir à tona, é então ência é vivida. Que haja duas perspectivas significa
dirigido ao próprio eu: o “auto-tormento da melan- que, ainda que possamos dizer que a “perda dene-
colia, que possui sem dúvida um elemento de gozo, gada” em ambos os casos é formalmente a mesma
significa (...) a satisfação de tendências de sadismo – “a promessa de que [uma análise e investimento]
e ódio que se relacionam a um objeto e foram redi- conferiria a seus aderentes um caminho claro e se-
recionadas ao próprio eu do sujeito”. guro em direção ao certo e ao verdadeiro” –, o con-
Freud observa que, “[s]e escutamos pacientemente teúdo é distinto em cada caso. Em outras palavras,
as muitas e variadas auto-acusações do melancóli- a análise e o compromisso cuja promessa de certeza
co, não podemos finalmente escapar à impressão de e correção foi perdida não eram os mesmos. E se a
que frequentemente as mais violentas delas (...) se perda sendo lamentada é diferente em cada caso, é

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porque estas duas perspectivas já estavam suficien- consonância com sua valorização do social em de-
temente consolidadas quando a ascensão do neoli- trimento do político.
beralismo trouxe os “anos de inverno” (para tomar Reconduzir esta cisão a seu ponto de origem nos
emprestada a expressão de Félix Guattari) dos anos permite, primeiramente, trazer à mente algo que a
80 e 90. história posterior de “recuos e traições” poderia nos
Onde poderíamos situar a ruptura entre estas duas fazer esquecer. A saber: que, embora não fosse in-
posições? Dado que a questão da organização é comum nos anos 1980 que antigos soixant-huitards
aquilo que nos interessa aqui, deixemos que ela nos usassem a denúncia do socialismo real como ma-
guie. Depois que 1917 “deu no capitalismo mun- neira de racionalizar uma continuidade biográfica
dial o maior susto que ele já tomara” , por algumas em sua então recente adesão ao neoliberalismo , a
décadas havia pelo menos parecido que a questão oposição entre “esquerda 1917” e “esquerda 1968”
da organização fora essencialmente solucionada. não emergiu como uma dicotomia simplista do tipo
Ainda que a Revolução Russa não fosse exatamente “totalitarismo e democracia” ou “revolução e re-
aquilo que a teoria previra, os bolcheviques podiam forma”. Ela foi, isto sim, uma disputa em torno da
apresentar-se os primeiros a fundir teoria e prática natureza da política revolucionária, ou seja: sobre
em um partido vitorioso, demonstrando que era de como fazer a revolução.
fato possível para os comunistas tomar o poder e Em segundo lugar, este movimento retroativo
mantê-lo. Por volta do fim dos anos 60, no entan- também permite ver como, desde o início, as iden-
to, não apenas a experiência do “socialismo real” tidades de ambos os lados estiveram profundamen-
divergia cada vez mais de seus próprios objetivos te ligadas uma à outra, definindo-se ao longo do
e expectativas – sob o peso do estalinismo, duas tempo por meio de sua oposição mútua. Isto serve
guerras e uma “revolução mundial” que não se ma- para explicar porque, diante do fracasso histórico
terializara –, mas a maioria de seus epígonos fora de suas respectivas análises e compromissos, eles
do bloco soviético aparentava ter abandonado por se tornariam tão relutantes em aceitar ou mesmo
completo a própria ideia de transformação revolu- reconhecer a perda de suas certezas: abrir mão das
cionária. Para muitos que chegaram à maioridade próprias convicções seria eliminar a diferença que
em 1968, parecia que o modelo tinha dado errado os separa do outro, e na medida em que cada lado
onde não funcionara, e pior ainda onde funcionara se define por meio desta diferença, ceder ao outro
– o que os encorajava a inventar novos modelos, ou equivale a perder a própria identidade. A culpa pre-
busca-los em outras partes. Era a hora de uma revo- cisa, então, ser transferida, gerando a atitude regis-
lução na revolução, para usar uma frase que Chris trada por Brown: não podemos errados; a derrota
Marker descreveu como “chave” para entender a tem de ser culpa do outro. Mas pode-se igualmen-
política dos anos 60. te especular que culpar o outro ostensivamente é
Embora “1917” e “1968” obviamente não passem também (ao menos em parte) culpar-se a si mesmo.
de abreviaturas para as diversas fidelidades que Uma vez que realmente encarar a perda da certeza
estes dois eventos inspiraram ao longo dos anos, implicaria questionar as próprias convicções, aqui-
estas duas datas nos permitem nomear aquilo que lo que atacamos no outro – ao atacar exatamente as
permanece, sem sombra de dúvida, o cisma mais ideias que seria inevitável levar em consideração
importante no interior da esquerda. Para dizê-lo do caso este questionamento tivesse lugar – é nossa
ponto de vista da organização, embora haja vários própria vacilação e dúvida, o medo de estar erra-
outros ângulos desde onde seria possível fazê-lo: dos, a suspeita de que talvez sejamos os responsá-
o cisma entre uma esquerda que enfatiza o políti- veis por nosso fracasso afinal.
co em detrimento do social, o que se traduz num Isto quer dizer que estamos lidando não com uma
apego a formas organizativas tradicionais e, sobre- ortodoxia cujos limites são “protegidos do (...) re-
tudo, à forma-partido; e uma esquerda que, apesar conhecimento” por seus aderentes, mas duas. O
da variedade de formas organizativas com que ex- “pensamento 68” pode ser tão dado a defender-se
perimentou ao longo dos anos, geralmente prefere de perguntas difíceis deslocando a responsabilida-
permanecer próxima aos movimentos sociais, em de para cima dos ombros da “velha esquerda”

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quanto esta parece sempre pronta a fazer o mesmo dade poderia ter lugar – ainda que, em separado,
na direção contrária. Nem poderia ser diferente. A cada lado reconheça que este terreno existe e que é
constante (re)demarcação de dois lados definidos sobre ele que os problemas concretos precisariam
segundo uma série de termos que funcionam como ser postos.
a negação um do outro – unidade, centralismo, con- Quanto mais cada lado se identifica com uma de
centração, identidade, fechamento, a forma-parti- duas respostas abstratas possíveis para um conjunto
do; multiplicidade, conexão, dispersão, diferença, de problemas igualmente abstratos, morais (“qual
abertura, a forma-rede (ou forma nenhuma) – tende é o certo?” em vez de “o que é melhor nesta situ-
a tornar a autocrítica impossível. Se cada questão ação?”), menos visível se torna o fato de que, jus-
só admite duas respostas, uma das quais é a respos- tamente, os problemas concretos sempre apresen-
ta do Outro, o custo de duvidar de nossa própria tam questionamentos pertinentes a ambos: “como,
escolha se torna alto demais. Por outro lado, quanto aqui e agora, equilibrar um máximo de autonomia
mais eu decido que o outro está errado, menos eu com a capacidade de agir de maneira coordenada?”
preciso me perguntar se estou certo. Enquanto as “Como, nesta situação concreta, conciliar a capa-
duas perspectivas estiverem presas nesta oposição cidade de tomar decisões com um máximo de de-
mútua, portanto, a autocrítica e a crítica dirigida mocracia e participação?” Quanto menos cada lado
ao outro existirão necessariamente em proporção reconhece o outro como lidando com um mesmo
inversa. Mais que isso, o processo pode continuar conjunto de problemas comuns, mais fácil se torna
mesmo à medida em que as análises de Brown e recorrer a caricaturas (os estalinistas com sua ma-
Dean o tornam autorreflexivo. Cada lado pode ler nia de controle, os burocratas que não conhecem
os diagnósticos de ambas as autoras e concordar a realidade, os liberais bonzinhos, os anarquistas
que “sim, o problema é o outro que sempre bota a obtusos...). Mais fácil, também, discutir a própria
culpa nos outros” – aparentemente sem dar-se con- prática não como ela é, com seus limites e desafios,
ta que, da perspectiva do outro a quem eu culpo, o mas como a encarnação dos ideais que espera-se
outro que culpa os outros sou eu. que ela personifique ou possibilite (eficiência, disci-
Minha hipótese é que esta dança de melancolia e plina, horizontalidade, pluralidade etc.). Quaisquer
pulsão é o que explica o relativo desparecimento limites encontrados podem, então, ser descontados
da questão da organização. Este desaparecimento ou denegados como sendo sempre contingentes,
coincide com um período em que os debates na es- acidentais, temporários, culpa de um outro. Nossas
querda tomaram cada vez mais a forma de disjun- próprias crenças – cujo questionamento necessa-
tivas como contrapoder ou anti-poder, macro- ou riamente nos obrigaria a redescobrir algum terreno
micropolítica, unidade ou diversidade, etc. Se per- comum com o outro – podem, assim, permanecer
guntados, é provável que muitos diriam que é evi- intactas.
dente que é impossível, talvez até indesejável, ter Duas “melancolias de esquerda”, portanto, de-
apenas uma destas coisa; “claro”, seria a respos- marcando duas esquerdas distintas: uma melanco-
ta, “é preciso ter algum equilíbrio entre elas”. Mas lia própria à “esquerda 1917” e outra à “esquerda
isto apenas torna mais curioso que, na maior parte 1968”, cada uma das quais responde ao mesmo
do tempo, nossas “discussões” se deem em termos tempo a uma experiência comum de derrota (a as-
abstratos, como se de fato se tratasse de escolher censão da hegemonia neoliberal na virada dos anos
entre uma coisa e outra. Como o mecanismo para 80 e sua continuidade, com uma série de mutações
evitar a autocrítica descrito acima, este paradoxo se importantes, até hoje) e a derrotas que lhes são
explica como efeito de superfície de uma condição mais particulares (a ignomínia do bloco soviético
mais profunda, que é a relação especular pela qual e a dissipação do movimento altermundialista, por
cada posição constitui e sustenta a si mesma pela exemplo). Entre elas, uma relação de reforço mú-
negação da outra, situando-se relativamente a ela tuo que corresponde perfeitamente àquilo que Gre-
numa disjunção exclusiva. O que isto faz é justa- gory Bateson chamou de cismogênese simétrica:
mente eliminar a possibilidade do terreno comum uma “interação cumulativa” em que os membros
(“algum equilíbrio”) em que uma discussão de ver- de dois grupos respondem uns aos outros com um

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padrão de comportamento iguais e de mesma inten- pela derrota e pela perda de convicção denegada,
sidade, mas com orientações inversas, de modo que mas sem deixar, ao mesmo tempo, de extrair algum
gozo do fracasso – conscientemente atribuindo a
“cada grupo levará o outro a uma ênfase excessi- realidade deste fracasso a um outro, contudo, para
va no padrão [de comportamento em questão], um que não seja jamais necessário questionar nossas
processo que, se não for controlado, conduz apenas próprias crenças e escolhas. Ao preferir seguir en-
a uma rivalidade mais e mais extrema e, finalmen- contrando sempre os mesmos impasses a revisar as
te, à hostilidade e ao desmantelamento do sistema próprias certezas – o que implicaria, naturalmente,
como um todo.” reconhecer o terreno compartilhado com o outro –,
Talvez seja mais correto falar neste caso de “pers- mantemo-nos livres para continuar falhando.
pectivas” do que de “grupos”; as perspectivas pre-
cedem os grupos, no sentido de que são justamente Para (finalmente) voltar à questão da organização
o princípio de coesão que os organiza e sustenta, e Se a hipótese que correlaciona o desaparecimen-
podem inclusive coexistir num mesmo indivíduo. to da questão da organização com a consolidação
(Existiria, assim, também uma esquizofrenia de dessa estrutura cismogênica está correta, a possi-
esquerda: ela consistiria em pensar algumas ques- bilidade de um retorno da questão da organização
tões a partir de uma perspectiva e outras a partir da hoje estaria necessariamente ligada à superação da
outra.) A oposição entre as duas, no entanto, não mesma. Isto ajudaria a explicar o caráter até aqui
chega à ruptura total (o “desmantelando do siste- predominantemente performativo deste retorno –
ma”) por três motivos. Primeiro, porque ambas não a repetição de uma injunção para que se retome a
apenas compartilham uma derrota comum, mas se questão mais que sua retomada propriamente dita
identificam aos olhos do “mundo exterior” como –, ao mesmo tempo que indica o limite de qual-
uma coisa só; tal como um casal infeliz, mantêm-se quer tentativa de retomada que passe unicamente
juntas sob o mesmo teto, apesar de sentirem-se se- por repetir ou reafirmar qualquer uma das respostas
paradas. Segundo, porque a disputa por sua identi- já dadas a ela no passado: tudo que permaneça no
dade comum (o título de “verdadeira esquerda”) as interior do território já delimitado por esta estrutu-
mantêm comprometidas uma à outra de alguma for- ra de desejo tende apenas a reativá-la, sem lograr
ma, ainda que sua união seja em torno de um anta- romper com ela. Indica também, por último, onde
gonismo; se segundem vivendo sob o mesmo teto, procurar os sinais de uma efetiva retomada no tem-
é porque estão em permanente disputa para decidir po presente: naqueles pontos em que alternativas
com quem deveria ficar a casa. Terceiro, elas efe- são pensadas para além da mera repetição da ideia
tivamente precisam uma da outra. Não só porque de que “a culpa é do outro”.
suas identidades dependem de sua oposição, mas
porque cada uma delas tem, na presença da outra, Felizmente, sinais assim tipo podem ser identifica-
aquilo que a pode isentar de responsabilidades pe- dos hoje. Por exemplo, no modo como uma nova
los próprios erros; o conforto da infelicidade a dois geração de militantes formados nas práticas hori-
está justamente em proteger-se do risco de fazer-se zontais e multitudinárias do movimento estudantil
responsável por ser feliz (ou infeliz) sozinho. Por inglês de 2010-2011, do 15M espanhol e do Oc-
fim, é no sistema formado pelas duas melancolias cupy norte-americano se engajaram em campanhas
em sua interação que encontramos aquilo que as eleitorais sem que compreendessem aquilo que es-
mantêm presas na economia pulsional descrita por tavam fazendo como um mero “retorno” à política
Dean institucional ou à forma-partido, ou como retrata-
No sistema formado pelas duas melancolias en- ção de um “erro” anterior, mas como um verdadei-
contramos, então, a estrutura pulsional descrita por ro experimento político que testava, em um outro
Dean: continuar fazendo a mesma coisa a fim de terreno, as práticas e convicções aprendidas alhu-
obter os mesmos resultados, escolher constante- res. Por exemplo, ainda, numa série de análises dos
mente caminhos cujos limites já foram expostos ciclos de protestos dos últimos anos que reconhece
no passado, tudo isto é uma maneira de se punir abertamente seus limites sem abandonar alguns de

crise e crítica

volume I número 1 141


Uma ou Duas Melancolias?

seus compromissos fundamentais. Em suma, num cisamente porque a massa que está despertando de
exercício de flexibilidade tática e estratégica que maneira espontânea produzirá em seu próprio meio
incorpora práticas e valores que seriam associados um número cada vez maior de ‘revolucionários de
com o outro – o que chamamos aqui de “esquerda profissão’!”. Mesmo que o objetivo de Lênin seja
1917” – sem que isso implicasse “tornar-se o ou- reforçar um dos termos às custas do outro, nunca
tro”, isto é, abandonar as posições originais. se trata de escolher um dos dois, mas de criar uma
mediação entre, e a organização é justamente o
É precisamente este movimento, acredito, que pre- elemento do qual se espera este papel. Com efei-
cisa ser não apenas estimulado, mas pensado a fun- to, poderíamos ler o ato de enfatizar um termo em
do em suas condições de possibilidade. No espaço detrimento do outro como parte do trabalho de me-
que me resta, é isto que gostaria de fazer. diação, como sua performação mesma: enfatiza-se
No auge da discussão em torno da Organisations- um dos polos de um dualismo a fim de compensar
frage – que poderíamos situar entre o “debate so- aquilo que se percebe como uma ênfase indevida
bre o revisionismo” da social-democracia alemã no polo contrário.
no final do século XIX e o Quinto Congresso da Conforme vimos, a estrutra cismogênica que man-
Terceira Internacional em 1924 (o chamado “Con- tém as “duas esquerdas” paralisadas em sua nega-
gresso da Bolchevização”) – a organização aparece ção unilateral uma da outra tem como uma de suas
sempre como uma figura de mediação. Na conhe- operações principais a transformação de uma sé-
cida fórmula lukacsiana, a organização é “a forma rie de pares conceituais em disjunções exclusivas:
da mediação entre a teoria e a prática” e, “como anti-poder e contrapoder, micro- e macropolítica,
em toda relação dialética, os termos da relação só diversidade e unidade, horizontalidade e verticali-
adquirem concretude e realidade nesta e por meio dade, coordenação e autonomia, e assim por dian-
desta mediação”. Mas teoria e prática não eram os te. Ora, disjunções exclusivas são, precisamente,
únicos termos entre os quais cabia à organização oposições não-mediadas, ou entre as quais não se
mediar. O mesmo Lukács vê no partido a “media- admite mediação. Temos aqui uma causalidade cir-
ção concreta entre o homem e a história” e, na su- cular: se estes termos podem aparecer como se ex-
bordinação consciente a sua disciplina, a mediação cluindo mutuamente, é porque aquilo que deveria
entre vontade individual e coletiva. Mesmo uma fazer a mediação entre eles (a organização) desapa-
leitura rápida do clássico panfleto leninista sobre rece; e, enquanto elemento mediador, ela não pode
o tema, O Que Fazer?, indica que seus capítulos senão desaparecer, uma vez que aquilo que deveria
são governados já desde os títulos por uma série mediar se apresenta como imediável.
de oposições – espontaneidade e consciência, lutas Este “desaparecimento”, diga-se, é de ordem si-
econômicas e lutas políticas, organização “artesa- multaneamente teórica e prática, e a relação entre
nal” e “revolucionários de profissão” – que se des- estes dois aspectos também é de reforço mútuo:
dobram em outras tantas, como massas e líderes, um excesso de abstração impossibilita a prática, e
“desde dentro” e “desde fora”. É evidente que, em a falta de prática possibilita o excesso de abstração.
todas estas dicotomias, Lênin está argumentando Quanto mais os problemas são postos de maneira
em favor de um dos termos contra o outro. É igual- abstrata, mais as questões concretas são concebidas
mente evidente, porém, que este argumento nunca é de maneira mistificada, e mais se tende a conside-
unilateral ou disjuntivo, mas supõe justamente uma rar a prática não como ela é, mas como ela deveria
mediação entre os dois termos; caso contrário, Lê- ser segundo um padrão ideal. Desta maneira, trata-
nin estaria na estranha posição de argumentar con- -se aquilo que toda experiência política possui de
tra a prática ou contra as massas. E o que vemos é, necessariamente impuro, híbrido, confuso, como
com efeito, que ele não deixa de cantar os louvores algo de contingente, temporário, a ser superado; e
de ambas, celebrando os “praktiki” (ativistas) da atribui-se mais realidade ao modelo, ao valor abso-
social-democracia russa ou o levantar espontâneo luto, ao ideal sempre por ser plenamente realizado.
das massas, ou mesmo os dois ao mesmo tempo: Todavia, quanto mais se compreende os processos
“seremos capazes de fazer todas estas coisas pre- políticos organizados de maneira abstrata, mais di-

crise e crítica
142 volume I número 1
Uma ou Duas Melancolias?

fícil a prática se torna. Não só espera-se que ela Uma maneira de compreende-la consiste em con-
corresponda a parâmetros impraticáveis de pureza, ceber a relação entre os termos a serem mediados
como ela tem, por isso mesmo, que abrir mão da como uma oposição lógica: eles se negam mutu-
flexibilidade tática e organizativa de que depende- amente, não podendo, portanto, ser predicados de
ria para seu sucesso; o resultado é que ela tende não uma mesma coisa ao mesmo tempo e sob o mesmo
apenas a ficar aquém do padrão esperado, mas tam- aspecto sem que isto implique em contradição. A
bém a encontrar limites intransponíveis. A ambição mediação, neste caso, precisa reuni-los num tercei-
de corresponder ao ideal torna-se um fator inibidor ro termo que seria uma síntese superior dos dois.
da ambição de produzir realizações concretas, com Visto tratar-se de uma contradição lógica, o pro-
todos os limites que estas possam ter. O enfraque- blema (a contradição) já se encontra em princípio
cimento da prática leva, então, de volta ao reforço resolvido desde o momento em que sua solução (a
da (má) teoria: quanto mais longe estamos de cons- síntese) aparece; a partir daí, é possível, pelo inter-
truir experiências coletivas cuja potência nos obri- médio de um terceiro termo que simultaneamente os
garia a enfrentar a impureza do concreto, mais nos cancela e mantém numa unidade superior, predicar
é facultado pensar abstratamente – o que nos afasta os dois termos anteriormente incompatíveis de uma
da prática e assim sucessivamente. mesma coisa. Talvez seja por isso que Lukács não
Mas é por conta desta circularidade, justamente, diz que a organização media entre teoria e prática,
que a organização pode, por outro lado, aparecer ao mas que ela é a forma desta mediação: o partido co-
mesmo tempo como objeto perdido e o meio para munista, definido segundo o modelo bolchevique e
recuperá-lo. Quanto mais concretamente pensamos em ruptura com as organizações social-democratas
a organização, mais nos colocamos problemas prá- comprometidas com o “oportunismo” reformista,
ticos, ao invés de relações conceituais; e quanto seria a forma “finalmente encontrada” no interior
mais nos colocamos estes problemas, mais claro se da qual tendem a resolver-se as contradições lógi-
torna o território comum em que somos chamados cas entre teoria e prática, massa e líderes, história
a intervir e tomar decisões que dificilmente corres- e existência, vontade individual e vontade coleti-
ponderão a modelos abstratos. Encontramos, assim, va, lutas econômicas e luta política, etc. Pensar a
o espaço em que defensores da autonomia podem mediação como contradição lógica, portanto, nos
reconhecer que um fortalecimento da coordenação leva na direção de conceber o problema da orga-
se faz necessário num momento determinado, ou nização como versando sobre a forma que o resol-
em que partidários da macropolítica admitem que veria logicamente; um tipo determinado de forma
um impasse específico só pode ser superado se for organizativa em que estaria logicamente contida,
levada em conta sua dimensão micropolítica. Ao in- ao menos em princípio, sua solução. Está claro que
vés de cada um apenas interpretar seu tipo caracte- nada impede que “desvios” práticos venham a cor-
rístico (o estalinista, o autonomista...), martelando romper esta forma, impedi-la de funcionar como a
aquela única ideia que lhe seria própria (a centrali- mediação que por direito é; porém, como a própria
zação, a autonomia...), os participantes de uma dis- linguagem dos “desvios” já faz ver, estes são mo-
cussão desse tipo podem ao mesmo reconhecer que dificações acidentais daquilo que, na sua essência,
são interpelados pelos mesmos problemas e explo- seria a resposta ao problema.
rar soluções talhadas especificamente para aquelas Mas é possível pensar diferentemente a mediação
circunstâncias, simultaneamente mais complexas e entre os dois termos se entendemos sua oposição
mais precisas que qualquer modelo geral. de outra maneira; é esta, aliás, que está subentendi-
Mas o que seria necessário, então, para pensar- da quando dizemos que conceber a oposição como
mos a organização concretamente, esquivando-nos disjunção exclusiva (ou/ou) é concebe-la “abstra-
à tendência a reduzi-la a grandes dualismos concei- tamente”.
tuais? A resposta a essa pergunta passa por enten-
der melhor em que sentido falamos da organização Onde está a abstração aí? Tomemos os exemplos
como elemento mediador, e que sentido atribuímos propostos por Platão no Filebo, quando Sócrates
à própria ideia de mediação. afirma que “tudo que é dito existir consiste do um

crise e crítica

volume I número 1 143


Uma ou Duas Melancolias?

e do múltiplo, tendo em sua natureza o limite e o nova, situada em algum ponto novo entre as duas
ilimitado”: mais frio e mais quente, mais forte e qualidades extremas que media. Não há uma forma
mais gentil, mais seco e mais molhado... Em cada que seria, por si mesma, a resposta ao problema,
um destes casos, o que temos é uma díade de qua- essencialmente adequada a qualquer circunstância;
lidades intensivas cujos polos extremos são duas toda solução corresponde a um quantum adequado
qualidades que se negam entre si. Mas o “frio” e o às circunstâncias específicas nas quais intervém.
“quente” em si, propriamente falando, não existem. Cada situação concreta clama pela individuação de
Quando dizemos que “sentimos frio”, não estamos uma resposta que responde àquela situação, o que
dizendo que experimentamos a qualidade “frio” implica que a questão da organização não se re-
enquanto tal; o que fazemos é identificar uma sen- solve simplesmente com o encontro de uma forma
sação que exprime uma mudança de estado, uma “finalmente encontrada”. Não apenas toda forma
passagem de um estado anterior “mais quente” ao organizativa é sempre boa para um fim determina-
estado atual “mais frio”. Na glosa de Glibert Si- do, numa circunstância determinada, não existindo,
mondon: portanto, uma forma que seja boa em absoluto; mas
também toda forma, em seu interior, apresenta em
como Platão notou, toda qualidade realizada apare- diferentes momentos perguntas do tipo “quanto de
ce como inserida, segundo uma medida, numa día- autonomia?”, “quanto de coordenação?’, “quanto
de indefinida de qualidades contrárias e absolutas; de espontaneidade?”, “quanto de planejamento?”,
as qualidades vão por pares de opostos, e esta bipo- “quanto de macropolítica?”, “quanto de micropolí-
laridade se dá como uma possibilidade permanente tica?”, e assim sucessivamente.
de orientação para o ente qualificado e qualificante Isto deixa claro porque, embora a mediação seja
(...). aqui pensada como uma mediação entre dois termos
A “abstração” está, portanto, em tratar estas “qua- extremos, não estamos absolutamente tratando de
lidades absolutas” como reais em si, quando elas uma doutrina do meio-termo. Não existe meio-ter-
são apenas direções divergentes numa mesma es- mo em sentido absoluto, e mesmo o excesso pode,
cala contínua, e pretender escolher entre elas. Op- nas condições adequadas, ser a medida certa. Outra
tar pela “horizontalidade” ou pela “verticalidade” não era, aliás, a lição de Maquiavel. Se ele ensinava
em termos absoluto é como querer escolher entre o ao Príncipe que este deve aprender a fazer o mal,
“quente em si” e o “frio em si”, quando só o que há não é simplesmente porque “visualizou o surgi-
é a relação entre eles: o “mais quente” ou o “mais mento de um domínio puramente secular cujas leis
frio”. Neste esquema platônico, toda coisa existen- e princípios de ação eram independentes dos ensi-
te resulta da imposição de um limite (peiras) a uma namentos da Igreja – este domínio, como indicam
díade intensiva ilimitada (apeiron); o que existe os exemplos que ele toma da Antiguidade, sempre
“não é jamais este ou aquele elemento isolado, mas esteve presente –, mas por perceber que perguntar-
sempre mistos; (...) o ente não é mais unidade abso- -se sobre a “conduta correta” em termos absolutos é
luta, mas estabilidade de uma relação”. uma questão moral, não uma questão política, e um
O que significa mediar entre duas qualidades ex- modo de pensar potencialmente ruinoso do ponto
tremas, então? Enquanto a oposição lógica pede de vista prático. Em política não existe o sempre
uma solução lógica – a produção de um terceiro certo, o certo em termos absolutos, nem em termos
termo como síntese em que os dois primeiros es- de justiça, nem em termos da adequação dos meios
tejam de algum modo compatibilizados –, o que aos fins; se mudam as circunstâncias e os métodos
temos aqui é algo distinto. Da mesma maneira que mantêm-se os mesmos, o infortúnio é o resultado
cada “qualidade realizada (cada temperatura de um mais provável. É por isso que a virtù, para Maquia-
corpo ou cada sensação de frio ou calor) é a indivi- vel, não se situa no mesmo plano das virtudes (ser
duação de uma sensação particular a partir de uma misericordioso, ser generoso), mas é como que é a
díade intensiva indefinida, o problema da mediação capacidade de determinar quando, como e em qual
entre os termos aqui exige, proporção utiliza-las. “[O] momento, a medida e o
“a cada vez em que se apresenta, uma solução modo” são cruciais: “basta um passo a mais – um

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144 volume I número 1
Uma ou Duas Melancolias?

passo que parece ser na direção correta – e a verda- NOTAS


de se torna erro”. 1 Alain Badiou, Le Réveil de l’Histoire (Paris: Lignes),
Compreendida assim, a mediação não poderia, 65. Por “período intervalar” Badiou compreende aquele
portanto, resumir-se a uma forma; ela existe so- que vem entre a perda de validade de uma ideia clara e
mente em ato. Ao mesmo tempo, dado que me- distinta de política revolucionária e o aparecimento de
dia entre qualidades absolutas que são a negação uma ideia nova que a venha substituir. De acordo com
sua análise, é o fim de um tal momento que os protestos
uma da outra, ela se apresenta sempre como trade
desta década sinalizariam.
off: um incremento de autonomia tende a implicar
2 Peter Thomas, “The Communist Hypothesis and the
uma perda na capacidade de coordenação; a cen- Question of Organization,” Theory & Event 16:4 (2013).
tralização, em geral, acelera o processo de tomada 3 Jodi Dean, “Response: The Question of Organiza-
de decisão, mas reduz o controle dos líderes pela tion,” South Atlantic Quarterly 113: 4 (2014): 822.
base; a ênfase numa identidade de grupo aumen- 4 Mimmo Porcaro, “Occupy Lenin,” Socialist Register
ta a coesão, mas afasta potenciais aliados; e assim 49 (2013). Itálico no original.
por diante. Não se trata, note-se bem, de dizer que 5 Frank Ruda, “Organization and Its Discontents”, con-
estas qualidades, todas desejáveis em alguma me- ferência proferida no evento On Organization, Haus der
dida, são mutuamente excludentes; pelo contrário, Kulturen der Welt, Berlim, 17 de janeiro de 2015.
este é justamente o erro de quem as compreende 6 Wendy Brown, “Resisting Left Melancholy,” boun-
dary 2 26 (1999): 20.
abstratamente. Trata-se, isto sim, de entender que
7 Ibid.
elas coexistem sempre em alguma medida, isto é,
8 Jodi Dean “Communist Desire”, The Idea of Commu-
como um misto que possui uma ou outra coisa em nism, vol. 2, ed. Slavoj Zizek (London: Verso, 2013),
maior ou menor proporção; e que é por isto que não 81.
é possível ter tudo ao mesmo tempo (máxima iden- 9 Ibid., 84.
tidade e máxima abertura, máxima centralização e 10 Brown, “Resisting Left Melancholy,” 20.
máxima democracia, máxima autonomia e máxima 11 Jodi Dean, “Communist Desire,” 87.
coordenação etc.). 12 Ibid.
Se relemos o debate sobre a organização no in- 13 Ibid.
terior da tradição marxista sob esta luz, encontra- 14 A palavra inglesa “hack” é usada para descrever tan-
remos uma série de díades que ora se apresentam to o burocrata partidário (party hack) quanto um jorna-
lista ruim; o texto de Dean, fazendo referência ao uso
como um trade off entre qualidades que se opõem,
da primeira expressão por Brown, joga com este duplo
ora como a necessidade de calibrar as ações a fim
sentido.
de evitar extremos igualmente indesejáveis (“vo- 15 ”Estupidez torturada: esta é a mais recente figura de
luntarismo ou oportunismo”, “vanguardismo ou re- dois milênios de metamorfoses da melancolia”. Walter
boquismo”, “sectarianismo ou reformismo”, “aban- Benjamin, “Left-Wing Melancholy,” trad. Ben Brews-
donar as massas ou abandonar o objetivo final” ). É ter, Screen, 15 (2) (1974): 31.
por meio desta operação intelectual, acredito, que 16 Ibid.
podemos tornar esta herança nossa outra vez – não 17 Ibid., 29. A Nova Objetividade [Neue Sachlichkeit]
pela sacralização reverencial de suas lições, mas foi um movimento artístico alemão das décadas de 20 e
por reconhecer nela problemas que nos são fami- 30 que, reagindo às tendências idealistas, românticas e
liares porque ainda são, em grande medida, nossos. subjetivistas do Expressionismo, lançava mão de recur-
sos expressionistas para fins realistas, de sátira e crítica
Mais do que isso, é por meio desta operação que
social. Entre seus expoentes mais conhecidos estão os
podemos retornar a nossos problemas com outros
pintores George Grosz, Otto Dix e Max Beckmann.
olhos e pensa-los de maneira nova; e talvez assim, 18 Ibid.
finalmente, voltar verdadeiramente à questão da 19 Ibid., 30.
organização, passo necessário para a superação da 20 Para uma narrativa tão frequentemente empregada
melancolia. por autodeclarados materialistas, há um curioso idealis-
mo em ação aqui: a origem da derrota está numa escolha
(cultural) em favor de um idealismo culturalista ao in-
vés do materialismo, não nas transformações (materiais)

crise e crítica

volume I número 1 145


Uma ou Duas Melancolias?

que solaparam as bases de sustentação da antiga identi- seja responsabilizado pela perda. Ver Freud: “[O]s pa-
dade de classe. cientes em geral ainda conseguem, pelo caminho tor-
21 Dean, “Communist Desire”, 87-8. tuoso da autopunição, vingar-se do objeto original e da
22 Ibid. pessoa amada através de sua doença. (...) Afinal, a pes-
23 Ibid., 87. soa que ocasionou a desordem emocional do paciente,
24 Ibid. Minha ênfase. A implicação aqui é que, se es- e na qual esta doença é centrada, pode normalmente ser
tas atividades são experimentadas como produtivas, elas encontrada em seu ambiente imediato”. Ibid., 251. Esta,
são buscadas por aqueles que nelas se engajam porque como ficará claro em seguida, é uma alternativa rele-
estes conscientemente desejam fazer algo efetivo, ao vante para a leitura que estamos propondo aqui.
invés de simplesmente fingi-lo – o que os diferencia, 30 Brown, “Resisting Left Melancholy,” 26.
portanto, do “traidor” deliberado 31 Ibid., 23.
25 De modo geral, qualquer tentativa de empregar a 32 Dean, “Communist Desire,” 87.
psicanálise para a crítica social ou cultural depende 33 Brown, “Resisting Left Melancholy,” 22.
de constituir um sujeito coletivo que possa ser tratado 34 Jean-Jacques Lecercle, “Lenin the Just,” in Lenin
analogamente a uma psique individual (que perdeu um Reloaded. Toward a Politics of Truth, ed. Sébastien Bu-
objeto de amor, que é incapaz de fazer seu luto, etc.). dgen, Stathis Kouvelakis e Slavoj Zizek (Durham/Lon-
Faze-lo, por sua vez, implica comprimir neste único su- don: Duke University Press, 2007), 270.
jeito um grande número de agentes que podem ou não se 35 Ver Chris Marker, Le Fond de l’Air Est Rouge, 1977.
identificar uns com os outros em diferentes momentos; Fora o discurso do líder estudantil alemão Rudi Duts-
uma teia de processos que possuem trajetórias particu- chke em fevereiro de 1969 a que Marker faz referência,
lares; práticas cuja reprodução têm uma força inercial esta locução também se faz presente num discurso de
própria; indivíduos que experimentam de maneiras bas- 1966 do general chinês Lin Piao e dá o título ao best-
tante diversas aquilo que é predicado desta psique cole- -seller de Régis Debray sobre as guerrilhas latino-ame-
tiva; e assim por diante. Isto não quer dizer que tais ope- ricanas, publicado em 1967. Graças sobretudo a Debray,
rações abstrativas não possam identificar “semelhanças o “foco guerrilheiro” cubano e movimentos armados ur-
de família” verdadeiras e reveladoras entre os diferentes banos como os Tupamaros no Uruguai e a Aliança Li-
elementos que reúnem, mas sim que, enquanto opera- bertadora Nacional no Brasil se tornariam, junto com
ções, elas estão abertas a questionamentos quanto a se a Revolução Cultural chinesa, referências organizativas
abstraem de mais ou de menos – isto é, se aquilo que importantes (ainda que nem sempre muito práticas) pe-
elas predicam da unidade que compõem pode ser pre- los anos seguintes. Ver Régis Debray, Révolution dans
dicado corretamente e da mesma maneira para todos os la Révolution? et Autres Essais (Paris: Maspero, 1967).
componentes. Curiosamente, Daniel Cohn-Bendit, outra grande figura
26 Sigmund Freud, “Morning and Melancholia”, The do período, apresenta esta mudança não como inovação,
Standard Edition of the Complete Psychological Works mas renovação daquilo que o “socialismo real” fizera se
of Sigmund Freud, vol. 14, ed. J. Strachey (London: perder. Em seu balanço dos événéments de mai, afirma
Hogarth Press e Institute of Pyschoanalysis, 1957), 246. que “se Lefort, Morin e Coudray tinham razão em dizer
Modificado. Deve-se notar que a publicação, no Inter- que [maio de 68] viu uma ruptura na sociedade capi-
nationale Zeitschrift für Psychoanalyse, deste artigo que talista moderna e na velha autoridade da esquerda, ele
viria a tingir de modo tão significativo as reflexões sobre foi mais que isso: representou um retorno à tradição re-
o estado da política de esquerda esquerda é aproximada- volucionária que esses partidos haviam traído”. Daniel
mente contemporânea da Revolução de 1917 na Rússia, Cohn-Bendit, Obsolete Communism. The Left-Wing
ainda que os primeiros esboços de Freud datem de 1915. Alternative (Londres: Penguin, 1968), 16.
27 Ibid., 249. 36 Embora não esteja claro, como observado acima,
28 Ibid., 251. se estes casos estão incluídos na análise de Dean como
29 Ibid. 248. Esta frase é importante na economia do pertencendo àquilo que ela está chamando de “esquer-
texto como um todo porque, enquanto deste ponto em da”, estou deliberadamente excluindo-os de meu relato
diante Freud tenderá a identificar o alvo indireto de – não em nome de qualquer argumento essencialista em
recriminação com o objeto perdido (e assim, portanto, torno do que seria “realmente” de esquerda, mas sim-
como “alguém que o paciente … amou”), a passagem plesmente porque não me parece que Dean os tenha de
parece sugerir outra possibilidade: que o alvo indireto fato em mente.
que o melancólico tem em mente ao culpar a si mesmo 37 Ver a observação de Freud segundo a qual “não de-
seja não o objeto perdido, mas um terceiro que talvez vemos nos surpreender demasiado que algumas auto-

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146 volume I número 1
Uma ou Duas Melancolias?

-recriminações genuínas apareçam misturadas entre [as Pode-se, contudo, notar uma hesitação no próprio pen-
recriminações ostensivamente autodirigidas que são, na samento de Traverso relativa ao quanto de atualidade e o
verdade dirigidas a outrem]. Permite-se que estas se so- quanto de projeto estão contidos nesta descrição. Assim,
bressaiam na medida em que elas disfarçam as demais embora ele se refira a esta melancolia como já presente,
e tornam o reconhecimento da situação como um todo sua operatividade dependeria ainda de fazer-se visível:
impossível.” Freud, 248. “[p]ara que possa render frutos, todavia, esta melanco-
38 Brown, “Resisting Left Melancholy,” 23. lia precisa tornar-se reconhecível”. Ibid., xv. Suspenso
39 Ver, por exemplo, como Félix Guattari (que, justi- entre estes dois momentos, o diagnóstico de Traverso
ça seja feita, enfrentou as questões difíceis mais do que não parece, finalmente, tão distante daquele proposto
muitos outros) afirma que “cada vez” que os movimentos aqui; assim, por exemplo, sobre os levantes da Prima-
de prisioneiros, mulheres, imigrantes, pacientes mentais vera Árabe, ele escreve: “seus limites não estavam em
etc. fracassaram, isto fora porque “as velhas formas e seus líderes ou nas forças sociais que as compunham:
estruturas organizativas tomaram o poder, prendendo o eles são os limites de nossa época. Estes levantes e mo-
elemento rizomático do desejo num sistema de poder vimentos de massa carregam o peso das derrotas das re-
arborescente”. Félix Guattari, “Molecular Revolutions,” voluções do século XX, que são uma carga sobrepujante
Chaosophy. Texts and Interviews, 1972-1977, trad. Da- a paralisar a imaginação utópica”. Ibid., 4.
vid L. Sweet, Jarred Becker e Taylor Adkins (Los Ange- 43 Sobre o caso espanhol em particular, ver Rodrigo
les: Semiotext(e), 2009), 276. Nunes, “Espanha: das Redes aos Partidos... e Vice-
40 Gregory Bateson, “Bali: The Value System of a Ste- -Versa,” Carta Maior, 9 de junho (2015), https://www.
ady State,” Steps to an Ecology of Mind (New York: cartacapital.com.br/internacional/espanha-das-redes-a-
Ballantine, 1981), 112. os-partidos-2013-e-vice-versa-9141.html. É importan-
41 Gregory Bateson, “Culture Contact and Schismoge- te diferenciar o discurso da base e de simpatizantes do
nesis,” Steps to an Ecology of Mind, 68. Podemos (e outras agremiações, como Barcelona em
42 Até aqui, eu havia deixado de fora de minha exposi- Comú) do discurso de lideranças podemistas como Iñi-
ção o trabalho de Enzo Traverso, o autor mais recente go Errejón e Pablo Iglesias. Entre estas últimas, não é
a retomar o conceito benjaminiano; uma menção a seu raro ouvir afirmações sugerindo que o aprendizado pelo
excelente livro se faz agora necessária. Ao contrário de qual estes movimentos passaram nos últimos anos en-
minha análise, que propõe duas esquerdas em oposição volve o reconhecimento de seu “erro” original de re-
mútua, cada uma com sua própria melancolia, Traverso cusar a política institucional. Conforme argumento no
identifica três campos de memória e luto que correspon- texto aqui citado, contudo, minha impressão é que boa
dem aos três “setores” da revolução mundial tal como parte da militância oriunda do 15M que tem se engajado
a esquerda radical a compreendia nos anos 60 e 70: os nestas experiências institucionais tem delas uma visão
movimentos anticapitalistas do ocidente, os movimen- bem mais sofisticada, que projeta uma complementari-
tos antiburocráticos no interior do “socialismo real” e dade entre diferentes práticas ao invés da necessidade
os movimentos anticoloniais no Terceiro Mundo. Não de optar por esta ou aquela.
me parece, contudo, que nossos recortes sejam mutua- 44 Como exemplo destas reavaliações, numa gama di-
mente exclusivos, antes pelo contrário: não seria difícil versa de registros e orientações políticas, poderíamos
apontar como a memória de cada um destes três cam- citar, por exemplo: Caio Martins e Leonardo Cordei-
pos encontra-se cindida pela divisão que exploro aqui. ro, “Revolta Popular: o Limite da Tática,” Passa Pa-
Para ele, a “melancolia de esquerda” aparece como algo lavra (2014), http://passapalavra.info/2014/05/95701;
mais positivo que para Brown e Dean: inevitável num Lucas Legume, “O Movimento Passe Livre Aca-
contexto em que as expectativas utópicas foram substi- bou?,” Passa Palavra (2015), http://passapalavra.
tuídas por “um tempo de ameaças globais sem resultado info/2015/08/105592; Yotam Marom, “What Really
previsível”, esta melancolia não é “nem regressiva nem Caused the Implosion of the Ocupy Movement: an In-
impotente”, mas constitui um “criticismo melancólico sider’s View,” AlterNet, 23 de dezembro (2015), http://
que, ao mesmo tempo em que é aberto ao presente, não www.alternet.org/occupy-wall-street/what-really-cau-
foge à autocrítica de seus próprios erros passados”, es- sed-implosion-occupy-movement-insiders-view; Patri-
paço em que “a busca por novas ideias e projetos pode ce Maniglier, “Nuit Debout, une Expérience de Pensée,”
coexistir com a tristeza e o luto por um domínio perdido Les Temps Modernes, 691(2016): 199-259; Graham Jo-
de experiências revolucionárias”. Enzo Traverso, Lef- nes, “Shock Doctrine of the Left: a Strategy for Buil-
t-Wing Melancholia. Marxism, History, and Memory ding Socialist Counterpower,” Red Pepper, 3 de dezem-
(New York: Columbia University Press, 2016), xiv-xv. bro (2016), http://www.redpepper.org.uk/shock

crise e crítica

volume I número 1 147


Uma ou Duas Melancolias?

-doctrine-of-the-left-a-strategy-for-building-socialis- possibilidade. Ver Bruno Latour, Nous N’Avons Jamais


t-counterpower/; e o excelente dossiê organizado pela Été Modernes. Essai d’Anthropologie Symmétique (Pa-
revista espanhola Alexia, “De Tahrir a Nuit Debout: la ris: La Découverte, 1997), 20-1.
Resaca de las Plazas”, disponível em http://revistaale- 52 Platão, Philebus, J. M. Cooper (ed.), Complete Works
xia.es/de-tahrir-a-nuit-debout-la-resaca-de-las-plazas/. (Indianapolis: Hackett, 1997), 16c-d.
45 Foi este congresso da Internacional Comunista que, 53 Gilbert Simondon, L’Individuation à la Lumière des
após a aprovação das “Teses sobre a Estrutura dos Par- Notions de Forme et d’Information (Grenoble: Jerôme
tidos Comunistas” no Terceiro Congresso de 1921, im- Millon, 2013), 163.
pôs incondicionalmente às organizações-membro uma 54 Gilbert Simondon, “Histoire de la Notion d’Indivi-
versão enrigidecida do modelo organizativo russo. Foi du”, L’Individuation, 374.
também neste congresso que o livro costumeiramente 55 Propriamente falando, aliás, não há “medida certa”,
descrito como texto fundacional do marxismo ocidental no sentido de que haveria uma conduta objetivamente
– História e Consciência de Classe, de György Lukács adequada à situação que os agentes pudessem conhe-
– foi publicamente denunciado pelo presidente da exe- cer. Toda ação é sempre baseada numa estimativa do
cutiva da Internacional, Grygoryi Zinoviev, junto com que seria adequado a partir do conhecimento limitado
Marxismo e Filosofia, de Karl Korsch. que os agentes possuem, e é ao mesmo tempo passí-
46 György Lukács, History and Class Consciousness, vel de ser modificada pela ação de outros fatores que
trad. Rodney Livingstone (Cambridge, MA: MIT, não poderiam ter sido levados em conta anteriormen-
1997), 299. te. Um exemplo particularmente sangrento de como o
47 Ibid., 318. excesso pode funcionar como medida certa é oferecido
48 Esta última refere-se, naturalmente, à famosa (e infa- no sétimo capítulo de O Príncipe: Messer Ramiro d’Or-
me) discussão sobre como o proletariado poderia atingir co (o espanhol Ramiro de Lorca), tendo sido designado
o nível da consciência social-democrática “científica”. por Cesare Borgia para dominar a região da Romagna,
Embora não haja espaço aqui para aprofundar esta ques- e tendo nesta atividade demonstrado amplamente sua
tão, ponto nevrálgico na recepção do pensamento do lí- condição de “homem cruel e expedito”, foi, uma vez a
der bolchevique e da oposição entre as duas esquerdas, região pacificada, e para que o Duque Valentino pudesse
limito-me a observar que nenhum debate sério sobre o desvincular-se da brutalidade que seu vassalo demons-
tema hoje pode ignorar o monumental trabalho de Lars trara em suas funções, executado em praça pública na
Lih, Lenin Rediscovered. What Is To Be Done? In Con- cidade de Cesena, sendo cortado ao meio e tendo sua
text (Chicago: Haymarket, 2008). cabeça cravada numa estaca. Ver Nicolau Maquiavel, O
49 Estou trabalhando aqui a partir da nova tradução fei- Príncipe, trad. Lívio Xavier (São Paulo: Nova Cultural,
ta por Lars Lih em: Lih, Lenin Rediscovered, 774. 1987), 30.
50 Uma vez mais, ver Lih, Lenin Rediscovered, 26-7, 56 Hannah Arendt, On Revolution (Londres: Penguin,
a respeito do famoso comentário de Lênin em defesa 1973), 36.
de O Que Fazer? durante o Segundo Congresso do Par- 57 Maquiavel, O Príncipe, 105.
tido Social-Democrata Russo em 1903: “Obviamente, 58 Clodovis Boff, Como Trabalhar com o Povo (Petró-
confundiu-se aqui um episódio na luta contra o econo- polis: Vozes, 1988), 20.
micismo com uma apresentação fundamentada de uma 59 Lenin, “‘Left-Wing’ Communism – An Infantile Di-
questão teórica importante (...). Todos nós sabemos que sorder”, Selected Works, vol. 3 (Moscou: Progress Pu-
os ‘economicistas’ entortam o galho demais numa dire- blishers, 1975), 358.
ção. A fim de deixar o galho reto, era preciso entorta-lo 60 Rosa Luxemburgo, “Reform or Revolution”, Reform
na direção contrária, e foi isto que eu fiz”. or Revolution and Other Writings (Mineola, NY: Dover,
51 Esta mistificação opera de maneira perfeitamente 2006), 71.
comparável àquela dinâmica entre práticas de “tradu-
ção” (ou “mediação”) e práticas de “purificação” que Rodrigo Nunes é professor de filosofia moderna e contem-
Bruno Latour identifica como característica da moder- porânea na PUC-Rio, onde também coordena do grupo de
nidade. Por um lado, a “mediação” constitui uma série pesquisa Materialismos (CNPq). É autor de Organisation of
de híbridos entre natureza e cultura (objetos científicos e the Organisationless. Collective Action After Networks (Lon-
dres: Mute/PML Books, 2014) e diversos artigos publicados
técnicos); por outro lado, a “purificação” apaga os traços
internacionalmente. Recentemente, organizou para a revista
deste trabalho de mediação para chegar a uma separação francesa Les Temps Modernes um dossiê sobre a política bra-
absoluta entre natureza e cultura, humano e não-huma- sileira após junho de 2013.
no, ocultando o processo que é sua própria condição de

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