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BiléTatitSapienza

Do desabrigo á confian§a
Daseinsanalyse e terapia

Asábalo Urtó
Enano Kenwabl l|>lw - Asaupeio
Dala ^ de Chamada

Tumbo Regliradopor

escuta

- 8B6llo»ece -
© by Editora Escuta para edição em língua portuguesa
a
I edição: abril de 2007

EDITORES
Manoel Tosta Berlinde Sumário
Maria Cristina Rios Magalhães
CAPA
Imageriaestudio

PRODUÇÃO EDITORIAL
Araide Sanches

Apresentação
Introdução
Do desabrigo à confiança

Dados internacional de C a t a l o g a ç ã o na P u b l i c a ç ã o ( C I P )
Referências

S241d Sapienza, Bile Tatit.


Do desabrigo à confiança : Daseinsanalyse e terapia / Bile
Tatit Sapienza - São Paulo: Escuta, 2007.
132 p. ; 21 cm.

I S B N 978-85-7137-261-0

1. Psicoterapia. 2. Fenomenologia. 3. Daseinsanalyse.


I. Título.
C D U 615.851
159.964.2
CDD 157.9
616.8917
(Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo - C R B 10/1507)

Editora Escuta Ltda.


Rua Dr. Homem de Mello, 446
05007-001 São Paulo, S P
Telefax: (11) 3865-8950 / 3675-1190 / 3672-8345
E-mail: escuta@uol.com.br
www.editoraescuta.com.br
Apresentação

A autora deste livro comentou em particular sua surpresa


com os diversos relatos de pessoas que disseram ter se
emocionado em algum momento da leitura de seu primeiro livro,
Conversa sobre terapia. Surpresa por não ter imaginado que um
texto sobre este assunto pudesse tocar assim tantos leitores.
Este efeito é fruto de sua habilidade em conceber de
maneira convincente as histórias de pacientes e terapeutas que
inventa para apresentar sua visão do processo terapêutico e as
concepções filosóficas que fundamentam sua prática.
O que percebemos de verdadeiro nas situações que cria
justificaria a inclusão nestes livros da advertência comum em
romances e novelas de TV:
Esta história não é baseada em fatos reais.
Todos os personagens, lugares e situações
aqui representados são fictícios.
Qualquer semelhança é mera coincidência.
Porém, estes livros não se propõem a ser obras de ficção.
Foram construídos simultaneamente ao processo de elaboração
dos cursos oferecidos pela autora na Associação Brasileira de
Daseinsanalyse, concebidos como instrumentos para refletir sobre
a natureza da prática terapêutica fundamentada no Dasein.
Além de nova história imaginada para alimentar essas
discussões, Do desabrigo à confiança situa historicamente essa
Bile Tatit Sapienza

abordagem e introduz alguns dos principais conceitos filosóficos


que a orientam.
Tanto no primeiro livro quanto neste a terapia é apresentada
como uma situação de abertura do pensamento e do coração.
Assim, é coerente que estes textos, instrumentos de reflexão,
também possam mobilizar nossas emoções. Introdução
Tarcísio Tatit Sapienza

Do desabrigo à confiança: daseinsanalyse e terapia tem


como propósito contribuir para a fundamentação teórica da
terapia daseinsanalítica. Este trabalho aprofunda o tema de
Conversa sobre terapia.
Considero necessária esta fundamentação porque a
Daseinsanalyse c o m e ç a a se difundir entre p s i c ó l o g o s e
estudantes de psicologia. Isso nos obriga a explicitar suas bases
na fenomenologia e no pensamento heideggeriano, no intuito de
preservar a seriedade do trabalho terapêutico e para que essa
prática não se estabeleça num vazio de referências. Por isso,
parte do livro traz questões básicas de ordem filosófica.
Trago também um exemplo clínico que permite visualizar o
andamento de uma terapia. É um caso totalmente fictício, para que
não haja nenhuma quebra de segredo profissional. Nele retomo
personagens que já apareceram em Conversa sobre terapia.
Se este texto, de certa maneira, continua Conversa sobre
terapia, aqui aparece com mais evidência o referencial da
Daseinsanalyse. E quando se trata disto, a dificuldade já começa
no fato de que o pensamento de Heidegger não se organiza num
sistema de filosofia, não cabe num sistema. Não são conceitos
passíveis de definições simples, e a consistência interna entre eles
é de uma outra natureza.
Por isso, falo da Daseinsanalyse aqui deixando que minhas
ideias se organizem da forma como vão aparecendo e chamando

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Bile Tatit Sapienza

umas às outras. Assim, escolho uma apresentação que não segue


a tradição académica da divisão em capítulos.
Sei que muitas palavras usadas no texto são de difícil
compreensão para quem ainda não tem proximidade com o
pensamento heideggeriano. Mas tentar explicar cada uma delas
equivale a um outro livro. Como essas palavras são retomadas ao
Do desabrigo à confiança
longo do texto, o leitor pode se familiarizar com elas, e, aos
poucos, começar a compreendê-las. Uma compreensão maior só
virá, entretanto, com o estudo do filósofo.
O importante aqui é mostrar a possibilidade de uma prática
clínica fundamentada no pensamento de Heidegger; não só a
possibilidade, mas a fertilidade desse pensamento quando o que Por que o interesse pela fenomenologia? Ela não se constitui
se tem em vista é o cuidado da existência. formalmente como uma teoria, é principalmente um modo através
As aspas simples que aparecem em algumas palavras do qual nos aproximamos do que pretendemos investigar. Por que
indicam que, naquele momento, determinada palavra está sendo — exatamente nesta época em que o método científico tradicional
pensada ontologicamente, isto é: minha intenção ali é pensá-la já provou sua eficácia, eficácia essa que se baseia na objetividade
levando em conta essencialmente a sua relação com o ser — o do real, que deve poder ser quantificado, previsto para que possa
ser em sentido geral e o ser que caracteriza fundamentalmente o ser controlado — cresce o interesse por um modo de investigar
ser homem. que difere daquele tradicional?
Tentar falar da Daseinsanalyse fora desse pensar seria fugir A fenomenologia não é apenas um modo diferente de olhar
dos seus fundamentos. Seria pretender tirar dela o que a para a realidade. Ela se sustenta num pensamento filosófico para
caracteriza. o qual é o próprio conceito de realidade que é outro, numa
Ao mesmo tempo, quando tratamos da clínica, ali está um epistemologia que é outra. Quando a fenomenologia diz que olha
trabalho que diz respeito ao ôntico, ao concreto do que acontece para o fenómeno, isso não é uma mera substituição da palavra
na vida de uma determinada pessoa. fato pela palavra fenómeno; aqui o emprego da palavra fenómeno
Por isso, a todo momento transitamos do ontológico para o se baseia numa determinada compreensão do que é 'ser'.
ôntico e do ôntico para o ontológico, tanto na linguagem como no A concepção filosófica que dá base para a fenomenologia,
trabalho terapêutico. que permite a legitimidade desse modo de olhar o real, não traz
em si a exclusão da possibilidade e da necessidade das ciências
Bile Tatit Sapienza positivas. Essas continuam a ter seu lugar no mundo. Mas ela
amplia a possibilidade e a necessidade de um outro pensar, e nisto
talvez resida o interesse que a fenomenologia desperta.
O interesse pelo modo fenomenológico de pensar nota-se
especialmente no âmbito daquelas coisas que, de maneira direta
e profunda, dizem respeito ao que é especificamente próprio do

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Bile Tatit Sapienza

humano. Entre essas coisas se destaca o próprio fenómeno da


existência humana.
Quando o fenómeno da existência é trazido como foco de
uma reflexão fenomenológica, o que começa a se manifestar aí
são as questões fundamentais da existência, e essas questões, por
serem essenciais, surgem com um forte apelo para que sejam
pensadas e postas em palavras.
O fato de considerarmos fenomenologicamente a existência
permite que, ao olharmos para ela, afastemos de nosso olhar as
teorias psicológicas, as concepções prévias que se acumularam
em cima desse fenómeno de que tratamos, o existir humano. Ao
fazermos isso, o que aparece para ser visto e para ser falado é Em nosso caso, como terapeutas daseinsanalistas, nosso
o essencial, é a existência mesma, nua e crua. Nesse momento, olhar fenomenológico para a existência é iluminado por um
o que há de principal no existir começa a despontar com referencial heideggeriano. A palavra Dasein (Dasein), ser-aí,
prioridade como tema de estudo.
designa exatamente aquele ente para o qual 'ser' é sempre
questão; aquele ente que é o 'aí' onde se 'dá' 'ser'; aquele cujo
* modo de ser é ser sempre 'aí'.i Aí, onde? No 'mundo';. Aquele
cujo modo de ser é 'existindo'. É à existência humana que nos
referimos quando dizemos a palavra Dasein.
Esse é um modo de pensar para o qual o essencial do
homem não é ser racional, mas sim ser destinado ao 'cuidado'
(Sorge).É uma filosofia para a qual o homem permanece sempre
devedor à existência, facticamente destinado a realizar sua
existência no meio das possibilidades todas que se apresentam a
ele e, ao mesmo tempo, limitado pelo não poder tudo e pela morte.
É isso o que encontramos na base da existência humana quando
dirigimos o olhar para ela.

Para quem não sabe do que se trata, a fenomenologia e a


Daseinsanalyse parecem ser apenas propostas "alternativas" às
formas já consagradas, e alternativas naquele sentido de "vamos
tentar uma coisa diferente" do tradicional, um jeito mais direto e
mais simples de atender as pessoas que vêm só em busca de

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Bile Tatit Sapienza Do desabrigo à confiança

ó que, ao começar a atender seus pacientes, o psicólogo


resolver alguns desses problemas existenciais, ou seja, segundo
percebe, depois de algum tempo, o quanto é mais difícil trabalhar
essa opinião, aquelas questões que não necessitam ser muito
sem o respaldo de uma teoria de psicologia. Nem sempre é
pesquisadas, analisadas. É curiosa essa maneira de pensar, pois
cómodo manter o pensamento aberto; sentir-sé solto pode ser
o que poderia ser mais sério do que existir?
vivido como desamparo. Aqueles temas que encantam e são tão
Outros supõem que essa seja uma maneira mais "light" de
envolventes, quando tratados em grupos de estudo, são outra coisa
encarar as questões, e, "light", tanto num sentido de leve, de não
quando trazidos na condição do sofrimento concreto de alguém
aprofundar muito, como num sentido de mais iluminada, visto que
que está na sua sala e espera algo de você. A l i se rompe o
parece jogar mais luz nas possibilidades que se desdobram na
encantamento; aquilo só dói.^Aquelas ideias de possibilidade de
vida da pessoa em vez de aprofundar no escuro do destrutivo, ^
perda, de finitude, de limites, de culpa, ali, com aquela pessoa, já
censurado, do feio que está no fundo de cada um.
não são ideias. Aquilo está acontecendo na vida dela e é com
Essa ideia equivocada pode ser atraente para algumas
você que ela quer compaitilhar.^Uma pessoa conta que o amor da
pessoas que procuram terapia: "Quero me conhecer melhor, tenho
sua vida foi embora e agora a vida não tem mais nenhum sentido;
uns probleminhas pra resolver, você sabe, essa história de baixa
outra não pode ser feliz sentindo tantas culpas; há outra que
auto-estima, isso está me atrapalhando; hoje em dia a competição
carrega o peso de uma doença grave; aquela outra tem um amor
é grande, e, mesmo pra se arranjar emprego, essa coisa de não
impossível; outra acabou de perder um filho; há aquela que não
se ter autoconfiança já elimina a gente na primeira entrevista. E,
pode tolerar a injustiça que sempre recai sobre ela; vem alguém
além de tudo, nunca é demais a gente se conhecer melhor. Por
e diz que tem tudo o que quer, mas pergunta: "Por que viver?" E
isso, quero alguém que trabalhe nessa linha, não quero mexer e
cada pessoa conta a sua história, conta a sua vida. Se você estiver
nem tenho nada de muito profundo pra ficar mexendo..."
junto a cada uma delas, com o pensamento e o coração abertos,
Para alguns psicólogos iniciantes, a fenomenologia e a
o sofrimento poderá ser seu também. E, no entanto, você não está
Daseinsanalyse podem surgir, num primeiro momento, como um
ali para afundar junto. E agora? A única coisa certa é que não é
pensamento mais aberto, mais solto, que toca em questões
fácil.
interessantes, envolventes: "Que demais é tudo isso! Meu, a
gente vai longe pensando no que é pensar; no que é ser; no que
*
é existir; no ser-lançado — nossa, isto até arrepia; no cuidado —
é bonito isso do cuidado; é impressionante essa coisa da finitude
E o que tem a ver isso tudo com a fenomenologia ou, no
humana, pois, afinal, é porque o Dasein é finito, é mortal, que tudo
nosso caso, com a Daseinsanalyse? Pois não importa qual seja o
fica tão importante, e escolher é tão decisivo; a fragilidade da vida
referencial do terapeuta, aquelas questões surgem mesmo em
é que faz dela uma coisa valiosa. Legal colaborar para que a
qualquer terapia.
pessoa veja que pode ampliar suas possibilidades! É com isso que
Acontece que quando há uma técnica padronizada, bem
quero trabalhar com meus pacientes. É bom isso de a gente não
definida, quando existem os parâmetros de uma teoria de
precisar ficar preso a teorias..."
psicologia que possibilitam ver ali um certo "quadro" em que o
* paciente se encaixa, ainda que não resolva grande coisa, isso
coloca um algo mais em que pensar, um anteparo entre a

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tam a psicologia, aqueles mesmos que servem de base para as


experiência de sofrimento do paciente e a impotência que
ciências naturais, em geral, não são explicitados pelos psicólogos.
sentimos naquele momento.
Assim, para alguns, fica difícil distinguir em que consiste a dife-
Mas em nossa maneira de trabalhar, nossa disponibilidade
rença fundamental da proposta fenomenológica. Concebem a fe-
para o que chega é de tal forma que, a cada vez, sentimos como
nomenologia como uma maneira de trabalhar que se prende
se aquilo estivesse acontecendo pela primeira vez no mundo,
apenas ao que aparece, que descreve isso sem aprofundar em
como se não houvesse com o que ser comparado, como se aquele
nada, mesmo porque, para eles, fenómeno é "apenas" o que apa-
paciente estivesse inaugurando aquela possibilidade de sofrer.
rece. Acham que, ao descrever e tomar claro para o paciente o
Essa maneira de estar com o paciente é algo que
que se passa, a fenomenologia poderia até ajudá-lo a se entender
conquistamos aos poucos, pois a tendência mais comum do
melhor e a resolver alguns problemas; não mais que isso. A fe-
psicólogo é querer fazer o diagnóstico. Ele, em geral, quer
nomenologia lhes parece, então, simplesmente uma alternativa
encaixar o particular do paciente no geral da teoria. Em nosso
menos rígida, despreocupada com as causas dos problemas, com
caso, procuramos fazer um caminho oposto: nós nos
o passado, pois o que interessa é só o presente em vista do futu-
despreocupamos do geral da teoria e vamos em busca da
ro. Essa é uma maneira pobre de encarar a fenomenologia.
diferença peculiar que identifica aquele paciente.
(O que há ali são duas pessoas, uma que conta o que a faz Ao menos para aqueles que se propõem a trabalhar à luz da
sofrer e outra que escuta e procura compreender o que está fenomenologia, e especialmente da Daseinsanalyse, é importante
acontecendo naquela vida. O terapeuta não está ali lidando com que se dediquem a estudar o suficiente de filosofia para que
um psiquismo, querendo explicar como e por que ele funciona de tenham clareza de que sua escolha está situada, está
uma tal forma. A l i ele se encontra com a existência de um ser fundamentada num referencial filosófico e epistemológico que é
humano que quer ser compreendido por alguém e quer se radicalmente outro em r e l a ç ã o àquele mais aceito
compreender melhor. Esse modo do terapeuta estar na sessão faz tradicionalmente, e para que saibam que é isso que faz toda a
muita diferença.) Isso não deve, entretanto, ser confundido com a diferença.
mera expressão de um comportamento afável, de um jeito *
simpático de ser com o paciente.
É claro que o terapeuta, qualquer que seja seu referencial
Disse antes que na sessão de terapia o terapeuta
teórico, deveria mesmo ter uma postura de quem está ali para
daseinsanalista não está lidando com um psiquismo para ser
compreender, deveria ser capaz de empatia.
explicado. Isso porque, de acordo com os pressupostos de que
Para nós, porém, não se trata só de uma questão de postura.
partimos, nosso trabalho não visa a uma estrutura psíquica interna
É mais que isso.
com um mecanismo de funcionamento regido por determinadas
* leis. E, se não visamos a isso, não é porque resolvemos achar que
não é importante trabalhar com algo interno, ou porque achamos
que fazer isso seria mais difícil, ou por pressa de eliminar sintomas.
Algo deve ser comentado aqui. Comumente, psicólogos não
Se trabalhamos assim, é porque temos razões de ordem filosófica
se preocupam em saber em que filosofia, em que epistemologia
para tanto.
seu trabalho clínico está baseado. Os pressupostos que fundamen-

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Bile Tatit Sapienza Do desabrigo à confiança

Concebemos que o que temos diante de nós é uma o espaço físico com suas dimensões. Existir é ser esse 'aberto',
'existência', ou seja, nada mais e nada menos do que aquilo que que não pode ser fora do 'mundo', porque 'precisa' de 'mundo'
caracteriza o ser daquele ente chamado homem. Em nossa para ser, e não pode ser dentro do 'mundo' porque fora dele não
concepção podemos dispensar o conceito de psiquismo, mas não 'há' 'mundo' em relação ao qual ele pudesse ser d e n t r o í A
há como ignorar que ali diante de nós alguém existe. ) 'existência', sendo a própria 'abertura' em que 'há' 'mundo', já
Compreendemos a 'existência' de tal forma que para nós não é, de modo originário, 'compreensão' do mundo, e não apenas
é necessário acrescentar a ela aquela estrutura interna chamada uma compreensão no sentido intelectual, mas compreensão no
psiquismo, a qual só seria necessária se nossas concepções de sentido de abarcar o que se apresenta, e mais, é uma
homem e de mundo se fundamentassem no pensamento compreensão já sempre colorida por uma disposição afetiva
tradicional da metafísica, que separa homem e mundo, mente e ou 'afinação' relativa ao que é compreendido.)0 fato de a
corpo, sujeito que conhece e objeto do conhecimento. Se fosse 'existência', considerada ontologicamente, ser essa prévia
esse o caso, aquela estrutura seria necessária para tomar possível 'abertura' compreensiva e afinada é o que permite que,
a explicação de como instâncias, em princípio, tão separadas onticamente, haja todas as formas de conhecimento e todas as
passam a se pôr em contato, e de como, afinal, é possível que haja formas de emoção.
um eu que se põe em relação com a realidade extema. E seria
necessário também, nessas circunstâncias, conceber e explicar os *
mecanismos por meio dos quais tais coisas poderiam acontecer.
Em nossa abordagem, a existência humana é concebida Se o fenómeno que temos diante de nós é a existência de
como algo totalmente diferente da existência de todos os outros alguém, isso supõe termos de lidar com tudo que está implicado
entes. (A noção heideggeriana de ' e x i s t ê n c i a ' é tal que, naquele particular modo de ser-no-mundo. A l i estão todos os
rigorosamente falando, só o homem 'existe'. Os outros entes são. significados e todos os afetos que compõem aquele modo de
O ente montanha é, o ente árvore é, o ente gato é. O ente existir, com tudo o que eles trazem de esperança e de dor. Aquela
humano 'existe'.(Este é o ente a que chamamos Dasein, ser-aí, existência é a sua história já vivida e a que se faz momento a
que é 'ser-no-mundo'. E quando se trata desse ente, 'existência' momento. Ali está um ente que, dada sua condição de ser mortal,
significa 'abertura' para o 'ser' em geral, e é nessa 'abertura' que está sempre deixando de ser, mas está, ao mesmo tempo, sempre
se dá 'mundo', 'mundo' que é o entrelaçamento de significados.) vindo-a-ser, dada sua condição de ser história.
Se 'existência' já é 'ser-no-mundo', já é esse 'aberto' prévio em Termos diante de nós a existência de alguém parece óbvio.
que se dá 'mundo', onde caberia em tal contexto falarmos de Pode ser óbvio, mas não é pouco. E, quando começamos a pensar
interno e externo, de dentro e fora? Dentro ou fora de quê? em que consiste o existir humano, percebemos a seriedade do que
Se, onticamente no mundo, podemos nos referir a algo nos dispomos a fazer como terapeutas: com nossa falta de poder,
interno ou externo em relação a alguma coisa, j á é porque, compartilhar a vida de uma pessoa, procurar ajudá-la nessa coisa
originariamente, do ponto de vista ontológico nossa 'existência' é complexa, arriscada e transitória que é existir.
essa 'abertura' compreensiva, que tem como um de seus Num primeiro momento, com a ideia que temos da existência
caracteres existenciais básicos a 'espacialidade', o que permite ao como vir-a-ser, como desdobrar-se de possibilidades, parece que
Dasein poder dizer dentro, fora, perto, longe, aqui, ali, e conceber isso deve ser vivido ou sentido sempre como algo bom, leve, pois

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traz a ideia de não-aprisionamento no passado, de liberdade, de quais já são familiares também a muitos pacientes, pois elas estão
possibilidade de r e a l i z a ç ã o , de transformação. Mas nos na mídia. Quem não ouviu falar, por exemplo, da famosa "auto-
esquecemos de que o que vem-a-ser pode ser exatamente o que estima", que, segundo dizem, é um perigo quando está baixa? Fala-
não queríamos jamais. se disso como se se tratasse de uma baixa taxa de plaquetas ou
(Existir é sempre poder ser atingido pelo esperado ou pelo de glóbulos vermelhos no sangue. E do quanto é ruim não saber
inesperado, pelo desejado ou pelo indesejado. Conceber impor limites aos outros? Dizem que todo mundo invade quando
teoricamente isso a respeito da existência é uma coisa, mas não alguém não sabe pôr limites. E das chamadas vantagens
é fácil suportar o que chega e faz sofrer. Sabemos disso por nossa secundárias? Desconfie de quem é capaz de algum sacrifício,
própria experiência, e, por isso, sabemos o que o outro deve estar sempre há algo suspeito por trás, é o que dizem. E da clássica
sentindo quando isso acontece com ele.) insegurança? Aprendemos que ela está por trás daquele que
Esse outro que sofre pode ser o nosso paciente. Se não parece tímido, mas mostrar que é muito seguro também pode ser
tivermos embotado nossa sensibilidade, não podemos, mesmo insegurança. E da tão moderna somatização? "Engolir" as coisas
sabendo que é profissionalmente que estamos ali, apertar um botão de que não se gosta pode dar gastrite ou outros problemas de
que desligue em nós a compaixão, esse poder compartilhar um aparelho digestivo. Atualmente, todo mundo "sabe" disso.
sentimento. Quem não tem essa capacidade de compartilhar não Um pouco antes estava falando de filosofia, de existência, e,
deve ser terapeuta, pois é sinal de que não sabe de que seu de repente, estou aqui falando, se bem que de uma forma
paciente está falando. (A palavra "sabe", do verbo saber, tem a caricatural, de coisas como gastrite, auto-estima. Mas ter feito
mesma etimologia de "sabor", e, nesse sentido, o saber tem a ver essa passagem de um assunto para outro pode ser bom para nos
como "saber o gosto" daquilo que está sendo falado.) lembrarmos de que, quando se trata do existir humano, está tudo
(Compartilhamos, mas não é bom que permaneçamos junto mesmo.
quebrados na dor do paciente, pois ele precisa de nós inteiros. Ou Sofrer de gastrite, por exemplo, é uma possibilidade daquela
seja, não é fácil, e é bom que os jovens terapeutas saibam disso.) pessoa que existe diante de nós, visto que a 'existência' tem
como um de seus caracteres fundamentais a 'corporeidade' (um
* existencial), e ser corpo supõe ter um aparelho digestivo que pode
ser atingido. Mas o que significa o fato de aquela pessoa em
Trabalhar como terapeuta não é, como parece para alguns, especial manifestar sua gastrite ou piorar dela em certas
manusear Uma meia dúzia de conceitos. Conceitos que, quando situações? Que situações são essas? Como é essa forma de ser
foram pensados dentro de algumas teorias, tiveram sua razão de no mundo que tão nitidamente mostra a vulnerabilidade daquele
ser, têm ainda valor, mas, algumas vezes, só atrapalham o enca- corpo sob essa forma de mal-estar?
minhamento da compreensão ejn direção a coisas mais fundamen- E, quanto àquela outra pessoa que se queixa de uma auto-
tais no caso daquele paciente.j Eles atrapalham justamente porque estima baixa, por que ela se vê tão sem valor? Essa maneira como
parecem ser tão bons, e assim se instalam no pensamento do te- ela se compreende e a tristeza que sente por isso são modos
rapeuta e bloqueiam a procura por outros significados.^) possíveis de realizações ônticas de caracteres ontológicos básicos
Esses conceitos a que me refiro dizem respeito a algumas do Dasein (existenciais), no caso, 'compreensão' e 'afinação'.
ideias pertencentes ao repertório dos psicólogos, algumas das São maneiras concretas de compreender e de sentir si-mesmo e

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mundo. Concretamente, como aquela pessoa acha que ela


precisaria ser para então valer alguma coisa? Por que isso que ela
acha que precisaria ser é tão importante para ela? Por que em sua
vida ela está tão presa nesses parâmetros, quem vale mais e
quem vale menos?
É importante que o terapeuta se lembre de que as queixas
e as questões trazidas por alguém devem ser consideradas e
compreendidas junto àquela história pessoal.
/No enfoque da fenomenologia, dito aqui numa linguagem bem
simples e coloquial, a primeira recomendação para a compreensão
de questões que se colocam diante de nós é: livre-se da sedução
da facilidade das ideias já prontas que, à força de serem repetidas,
A palavra fenomenologia j á foi utilizada com sentidos
acabam por se impor a você e fique atento ao fenómeno. ]
diferentes do que tem hoje.
E o que é estar atento ao fenómeno? O que é fenómeno? O Lambert, em 1764, emprega essa palavra para se referir a
que é fenomenologia? uma teoria das aparências.
Podemos sentir algum embaraço para responder a essas Kant, numa carta a Lambert, em 1770, retoma o termo ao
perguntas quando elas nos são feitas de repente. É frequente que designar como phaenomenologia generalis a disciplina
depois da nossa resposta a pessoa não tenha entendido nada, ou, propedêutica que deveria preceder a metafísica.
ao contrário, conclua que a fenomenologia é alguma coisa Em 1807, Hegel escreve Fenomenologia do espírito, e a
completamente simplória. Sabemos que se trata de suspender as partir daí esse termo entra na tradição filosófica. Diferentemen-
teorias e voltar para as coisas mesmas. E o que são as coisas te de Kant, para quem o absoluto não é atingível pelo conhecimento,
mesmas? E o que mais? Hegel concebe o absoluto como cognoscível e qualifica-o como
o Espírito. A fenomenologia é para ele a filosofia do absoluto ou do
Espírito. É a retomada do caminho dialético que o Espírito percorre
no desenrolar da história; ela mostra como, em cada momento da
história, o absoluto está sempre presente em todas as formas de
experiência: religiosa, estética, ética, jurídica, prática, política etc^)
Historicamente, essa palavra aparece com alguns outros
significados também. Mas o movimento de pensamento que no
século XX traz o nome de fenomenologia se inicia com Husserl.

É com Edmund Husserl (1859-1938) que a fenomenologia


passa a se referir a uma filosofia mais completa e especialmente

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interessada na epistemologia, ou seja, na teoria do conhecimento. depois, Heidegger vai falar no ser aberto num sentido mais radi-
/• A questão de Husserl é principalmente chegar às essências dos cal. Dasein é a abertura em que se 'dá' mundo. Dasein é esse
atos de consciência pelos quais somos capazes de lembrar, de aberto, é ser-no-mundo.)
imaginar, de perceber, de julgar etc, e, enfim, chegar à essência Embora a fenomenologia que fazemos na Daseinsanalyse
do que é o conhecimento. Esse é o objeto principal de sua não seja a mesma de Husserl, não podemos nos esquecer de que
fenomenologia.) a fenomenologia deve a ele algumas características básicas do
m é t o d o de abordagem ao fenómeno que nos é dado para
Ao trabalhar com a n o ç ã o de intencionalidade da
compreender, por exemplo, a suspensão fenomenológica e o
c o n s c i ê n c i a , Husserl nos abre um caminho. Esse termo
"voltar às coisas mesmas".
intencionalidade foi usado na Idade Média, mas é redefinido pelo
filósofo e psicólogo Franz Brentano, com quem Husserl estudou. Para Husserl, a fenomenologia deverá seguir um caminho
Brentano, que queria fazer da psicologia uma ciência empírica, que não é aquele das especulações metafísicas nem aquele do
emprega o termo intencionalidade como o que distingue o psíquico: raciocínio das ciências positivas. Ele pede o retorno à intuição
toda experiência psicológica contém um objeto visado ou um objeto originária da essência do que se apresenta como evidência para
intencional. Por exemplo, pensamento é sempre pensamento sobre a consciência.
algo, é dirigido a algo; desejo é sempre desejo de algo, memória ( Em seu caminho para a análise dos fenómenos que queria
é sempre lembrança de algo. investigar (relativos à essência do conhecimento), Husserl propõe
um método que comporta dois momentos: a redução eidética
Pensar os atos de consciência (devemos lembrar que
(eidos-essênciã) e a redução fenomenológica.
consciência não está sendo considerada naquele sentido que
A redução eidética possibilita que possamos ir além da
adquiriu depois, como algo que se opõe a inconsciente) como
consciência de objetos individuais e concretos e cheguemos à
intencionais traz uma perspectiva diferente com relação a uma
consciência de puras essências, à intuição do eidos da coisa,
outra concepção de consciência, ou seja, de consciência como
aquilo que nela é essencial e invariável. Chegamos a isso quando,
encapsulada no sujeito, separada do objeto, que só num segundo
diante de um fenómeno, imaginativamente, retiramos dele tudo
momento entraria em relação com o objeto, com o mundo.
aquilo que pode ser retirado sem que com isso ele deixe de ser o
Considerar a consciência como intencional significa dizer
que é (variação eidética); ao nos depararmos com algo (o
que consciência já é sempre consciência de mundo, e mundo já
invariante) que não pode ser excluído dele, algo sem o que ele
é sempre mundo para consciência.^
deixaria de ser aquele fenómeno, nesse momento chegamos à sua
i Se o objeto é objeto para a consciência e a consciência é
essência.
consciência do objeto, o que temos é sempre objeto-percebido,
objeto-pensado, objeto-imaginado, objeto-rememorado etc. Fora da Para alcançar a essência, então, o que se faz é reduzir o
correlação consciência-objeto não há nem consciência nem objeto. fenómeno; reduzir, nesse caso, é purificá-lo de tudo o que ele
A fenomenologia deveria elucidar a essência dessa correlação, a comporta de inessencial.
essência do conhecimento, j (Quanto à redução f e n o m e n o l ó g i c a , esta suspende
A ênfase dada por Husserl à intencionalidade é muito impor- concepções e julgamentos prévios a respeito daquilo que se deseja
tante, pois nos aproxima da possibilidade de compreendermos a investigar e procura se prender à evidência do que se apresenta
consciência como aberta para o mundo. (Lembremos aqui que, para a consciência. Quando tudo aquilo que não é evidente à

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Bile Tatit Sapienza Do desabrigo à confiança

consciência é suspenso, o que sobra, ou seja, o resíduo da redução Nesse trecho ele diz que o conceito de fenómeno pode ser
fenomenológica, é o fenómeno na consciência. ^ pensado, num sentido formal, como o que se mostra em si mesmo.
No caso de Husserl, seu interesse é pelos próprios atos de Nesse caso, o sentido formal de fenomenologia é "permitir ver o
consciência, cuja evidência na consciência deve lhe dar as bases que se mostra, tal como se mostra por si mesmo, efetivamente por
de elaboração de sua teoria a respeito da essência da consciência si mesmo" (p. 45). Mas, fenomenologicamente, o que deve ser
ou do eu e da essência do que é conhecimento. chamado fenómeno é "aquilo que imediata e regularmente justo
O eu e o conhecimento aos quais Husserl se refere não são não se mostra, aquilo que, ao contrário do que imediata e
aqueles estudados pela psicologia.jSua preocupação vai além da regularmente se mostra, está oculto, mas é algo que pertence por
esfera da experiência psicológica do ato de conhecer, isto é, vai essência ao que imediata e regularmente se mostra, de tal sorte
além daquilo que seria imanente à experiência da consciência que constitui seu sentido e fundamento" (p. 46). O ser dos entes
empírica; ele parte para a c o n c e p ç ã o da consciência que é aquilo que permanece oculto, volta a estar encoberto ou só se
mostra "desfigurado". Pode estar tão encoberto que chega a ser
transcende a experiência empírica, ou seja, a consciência pura,
esquecido e então não se pergunta pelo ser e seu sentido.
consciência essa que é constituinte do mundo, a consciência
transcendental. 1 (Assim, para Heidegger, em Ser e tempo, é o ser dos entes
l Nesse nível, então, a redução fenomenológica torna-se o que deve tornar-se fenómeno, é isso o que a fenomenologia
redução transcendental, que consiste nesse esforço para deve "permitir ver". Justamente porque os fenómenos não são
suspender a atitude natural diante do mundo,] atitude essa que é dados imediatamente, é necessária a fenomenologia. Fenomeno-
própria tanto do homem comum em seu viver diário como do logia é a forma de chegar ao que deve ser tema da ontologia. "A
ontologia só é possível como fenomenologia" (p. 46). )
cientista, para os quais é óbvio que o mundo está aí fora e cabe
à consciência representá-lo. ^Na redução transcendental, fica Heidegger diz t a m b é m , em Ser e tempo, que para o
suspensa a maneira natural e cotidiana de ver o mundo, e este esclarecimento dos problemas da ontologia, de modo a chegar ao
passa a ser visto como fenómeno puro para a consciência pura. problema principal, que é a pergunta que interroga pelo sentido do
ser em geral, surge a necessidade de uma ontologia fundamental
Essa redução implica pôr entre parênteses todos os julgamentos
que tenha como tema aquele ente que é ôntico-ontologicamente
concernentes à existência do mundo, ou seja, implica a suspensão
especial, o "ser-af'(a fenomenologia do "ser-af' é hermenêutica,
(épokhê) de todo julgamento a propósito do mundo. (O mundo
no significado primitivo dessa palavra como interpretação^ E a
não é pressuposto, nem negado, nem afirmado.),
hermenêutica como interpretação do ser do "ser-af' tem também
* Um sentido de uma analítica da "existencialidade" da existência.
( Assim, para Heidegger a fenomenologia se torna uma
A fenomenologia passa a ter outras características com ontologia e uma hermenêutica.)
Heidegger (1889-1976), assistente e depois sucessor de Husserl
*
na Universidade de Freiburg.
(Heidegger (1971) expõe seu pensamento a respeito do que
devem ser considerados fenómeno efenomenologia no parágrafo É importante esclarecer em que sentido são tomadas as
7 de Ser e tempo, sua obra de 1927.\ palavras ontologia e hermenêutica.

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Do desabrigo à confiança
Bile Tatit Sapienza

Dilthey (1833-1911) adota o conceito de hermenêutica de


Em Ontologia: hermenêutica da facticidade, livro anterior
a Ser e tempo, Heidegger (1999) diz que a palavra ontologia que Schleiermacher, definindo-a como "formulação de regras de
aparece no título apenas indica que aquilo que vai ser investigado entendimento".
e a respeito do que se vai falar é o ser.
Nesse livro há um histórico do uso da palavra hermenêutica, ( E m relação ao termo hermenêutica, Heidegger não o
cujo resumo veremos aqui. emprega no significado moderno; emprega-o ligado ao seu
Hermeneutiké, hermenêutica, como saber ou arte, deriva-se significado original, isto é, como interpretação, como comunicação.
de hermeneuein, hermeneia, hermeneus (interpretar, interpretação, E o que ele visa nessa interpretação é a facticidade da existência.)
intérprete). A existência, em seu próprio caráter ou estrutura de ser, é
Essa palavra ganha vários sentidos no decorrer do tempo. 'aí', é o 'aí', é 'ser-aí'. E o modo ou o "como" ela é 'aí' é tendo
Liga-se primeiramente ao nome do deus grego Hermes, o de ser "em cada caso"/A expressão facticidade significa que a
mensageiro dos deuses. existência é sempre esta, a minha, a de cada um; é cada um de
O sentido de hermeneus como mensageiro, intérprete, nós que é lançado na existência, no ser-possibilidade de si mesmo,
aquele que comunica, j á aparece em Platão: Os poetas não são no ter de arcar com o seu existir.)
outra coisa que os mensageiros dos deuses. E os rapsodos, que Sendo fácueamente o 'aí', a existência interpreta, a partir de
recitam o que foi composto pelos poetas, são mensageiros dos si mesma e para si mesma, seu 'ser-aí'.
mensageiros. (A facticidade da e x i s t ê n c i a é n ã o só suscetível de
Um escrito de Aristóteles, que trata do logos como o que interpretação, mas também necessitada de interpretação; ela ' é '
revela os entes e nos familiariza com eles, nos foi transmitido com na interpretação.)
o título Peri hermeneias. Neste nosso contexto, a palavra Na temporalidade cotidiana, o possível ser-com-propriedade
hermeneia nesse título só é importante para nós pelo que ela nos da existência se mantém oculto ou encoberto, e o que prevalece
diz sobre a história dos significados desse termo. é um modo de ser na impropriedade que se expressa, por
Com os bizantinos, hermeneuein passa a corresponder ao que exemplo, em concepções a respeito do que é a existência (em que
chamamos "significar". se incluem as contribuições da filosofia e da consciência
Filon apresenta Moisés como hermeneus, intérprete, histórica). Há concepções sobre ela, mas a existência, ela-mesma,
mensageiro de Deus. se distancia de si e então Dasein se aliena de si.(Caberá à
Santo Agostinho fala de como o homem deve se aproximar hermenêutica da facticidade a tarefa de perseguir e encontrar a
da interpretação de passagens ambíguas das Escrituras: com alienação de si mesmo em que Dasein é enredado, isto é, a tarefa
piedade, temor a Deus e também equipado com o conhecimento de fazer o Dasein, que é em cada caso, acessível a ele mesmo
de línguas.
com relação ao caráter de seu ser, de comunicar Dasein a si
No século XVII aparece o título Hermenêutica sacra, a mesmo^m outras palavras, a hermenêutica tem a tarefa de fazer
interpretação de textos sagrados.
a existência acessível a ela mesma (Heidegger, 1999).
Com Schleiermacher (1768-1834), hermenêutica toma-se a
A hermenêutica de Heidegger diz respeito a uma questão
arte de entender o discurso do outro, uma disciplina em conexão
relativa à facticidade como caráter ontológico do Dasein. De sua
com a gramática, a retórica e a dialética.

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fenomenologia hermenêutica resulta, em Ser e tempo, a analítica


da 'existência'.

^Quanto a nós, como terapeutas, o foco do nosso trabalho é


a pessoa que nos procura porque a existência dela, exatamente
a dela, está precisando ser cuidadalj É o seu ser, é o sentido da
sua vida que está em jogo, que precisa ser mais bem
compreendido; algo ali naquela história se complicou. E a analítica
do Dasein, ou seja, da 'existência', tal como foi feita em Ser e
tempo, nos ajuda na compreensão do existir daquela mulher,
O fato de ter trazido a existência do Dasein para a cena ao
daquele homem, daquela criança que chega até nós.
fazer filosofia tem favorecido que Heidegger seja visto como um
E importante lembrarmos aqui uma confusão que geralmente filósofo existencialista, embora ele mesmo não se considere como
surge. O fato de mantermos esse foco e o uso frequente da tal, visto que sua questão principal é outra.
palavra existência têm possibilitado que o que fazemos na clínica Sendo assim, é importante que nos aproximemos aqui daquilo
seja equivocadamente chamado por alguns de psicologia que o pensamento dos filósofos existencialistas tem representado.
existencial. Isso pode nos ajudar a compreender melhor o que distingue a
Mas a Daseinsanalyse não é uma forma de psicologia que Daseinsanalyse do existencialismo.
se distinguiria pela preocupação com a existência de cada um. Ela
não é uma teoria de psicologia. *
Como psicólogos que somos, e devemos ser por formação,
conhecemos o que é a psicologia; sabemos que, como uma (o existencialismo é um movimento filosófico e literário que
ciência, a psicologia tem suas bases nos alicerces que se desenvolve no século XX, particularmente na França. De um
fundamentam as ciências, que se derivaram da tradição que veio modo bem geral, caracteriza-se como um pensamento que não se
da metafísica. Fazemos uso das contribuições que vêm da preocupa em se organizar em sistemas; não se atém a definir
psicologia, mas o lugar de nossa origem é outro. qualidades humanas universais abstratas, mas se detém no fato de
Nossa proveniência é de um modo de pensar para o qual cada indivíduo ser único; distancia-se do primado da razão;
existir é 'ser-no-mundo'. Partir dessa concepção heideggeriana de tonsidera a'existência como um estar lançado no mundo,
'ser-no-mundo' significa partir de algo totalmente diferente do que, precisando fazer escolhas e ao mesmo tempo sempre imerso na
tradicionalmente, tem sido o fundamento filosófico e situação concreta; chama a atenção para o existir de modo
epistemológico das teorias psicológicas. a u t ê n t i c o ; traz para o centro da c o m p r e e n s ã o da vida a
* fragilidade, a liberdade, a angústia, o ser destinado a morrer.)
Pascal e Kierkegaard são considerados precursores do
existencialismo.

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*
113 - Caniço pensante
"Não é do espaço que devo procurar a minha dignidade, mas
Blaise Pascal, pensador do século XII, importante em todas
da ordenação do meu pensamento. Não terei vantagem em pos-
as áreas às quais se dedicou, destaca-se como matemático, físico,
suir terras. Pelo espaço, o universo me compreende e me engo-
filósofo e escritor francês. Convertido ao cristianismo, em seus
le como a um ponto: pelo pensamento, eu o compreendo" (p. 40).
cinco últimos anos de vida anota seus pensamentos, que seriam
destinados a compor uma obra sobre religião. Essas anotações,
114 - "A grandeza do homem é grande por ele conhecer-se
embora incompletas, foram reunidas e publicadas com o nome de
miserável; uma árvore não se conhece miserável. »
Pensamentos (2001).
É então ser miserável conhecer-(se) miserável, mas é ser
Alguns exemplos de seus pensamentos:
grande conhecer que se é miserável" (p. 40).

622 - Tédio 427 - ... "Não sei quem me colocou no mundo, nem o que
"Nada é mais insuportável para o homem do que estar em é o mundo, nem o quê sou eu mesmo; estou numa ignorância
pleno repouso, sem paixões, sem afazeres, sem divertimento, sem terrível de todas as coisas; não sei o que é o meu corpo, nem
aplicação. meus sentidos, nem minha alma e mesmo essa parte de mim que
Ele sente e n t ã o todo o seu nada, seu abandono, sua pensa o que eu digo, que faz reflexão sobre tudo e sobre si
insuficiência, sua dependência, sua impotência, seu vazio. mesma, e não se conhece mais do que o resto (p. 167).
Imediatamente -nascerão do fundo de sua alma o tédio, o Vejo esses espantosos e s p a ç o s do universo que me
negrume, a tristeza, a mágoa, o despeito, o desespero" (p. 268). encerram, e me encontro atado a um canto dessa vasta extensão
(Pascal emprega o termo "divertimento" para tudo aquilo que sem que saiba por que estou colocado neste lugar de preferência
distrai o homem de pensar em seu nada (di-vertere = se afastar a outro, nem por que esse pouco de tempo que me é dado para
de), em que se incluem não só as distrações como os jogos, a viver me é atribuído neste ponto de preferência a outro de toda
dança, as conversas, mas também as atividades mais sérias como a eternidade que me precedeu e de toda aquela que vem após
o trabalho, as altas funções, as pesquisas da ciência.) mim. Só vejo infinidades por todas as partes, que me encerram
como a um átomo e como a uma sombra que não dura senão um
200 - "O homem não é senão um caniço, o mais fraco da instante sem retorno. Tudo que conheço é que devo em breve
natureza, mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo morrer; mas o que ignoro mais é essa morte mesma, que não
inteiro se arme para esmagá-lo; um vapor, uma gota de água posso evitar..." (p. 168).
bastam para matá-lo. Mas, ainda que o universo o esmagasse, o
homem seria ainda mais nobre do que aquilo que o mata, pois ele
423 - "O coração tem razões que a razão desconhece; sábe-
sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre ele; o
se disso em mil coisas..." (p. 164).
universo de nada sabe.
Toda a nossa dignidade consiste pois no pensamento..."
424 - "É o coração que sente a Deus, e não a razão. Eis o
(p. 86)
que é a fé. Deus sensível ao coração, não à razão" (p. 164).

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199 - Desproporção do homem Ele descreve a existência religiosa como interioridade,


"... Pois afinal que é o homem na natureza? Um nada com diálogo íntimo entre o homem e Deus, o Todo-Outro. A existência
relação ao infinito, um tudo com relação ao nada, um meio entre é a tensão angustiada em direção à transcendência.
o nada e o tudo, infinitamente afastado de compreender os Diz que o cristianismo, como uma religião da transcendência,
extremos; o f i m das coisas e seus princípios estão para ele funda-se sobre um paradoxo para a razão, ou seja, a afirmação
invencivelmente escondidos num segredo impenetrável... (p. 80). de que Deus, o eterno, se encarnou em Jesus Cristo. Mas quando
... A nossa inteligência ocupa, na ordem das coisas está presente a paixão da fé, a razão pode reconhecer seus
inteligíveis, a mesma posição que o nosso corpo na extensão da próprios limites e aceitar esse paradoxo. Isso, que é um escândalo
natureza..." (p. 82). para a razão, é o caminho para a fé. A fé não é a certeza diante
de ideias claras e distintas, mas um risco; é preciso um salto para
* a fé. Ela é entremeada de incerteza e de não-crença.
Kierkegaard frequentemente usa o verbo existir (at
Sõren Kierkegaard, filósofo e teólogo dinamarquês do século existere), num sentido especial, para se referir à existência
XIX, escreve contra os sistemas filosóficos tradicionais, especial- humana. Assim, Deus n ã o "existe", embora seja a eterna
mente o hegelianismo. Diz que os sistemas são formas de procu- realidade. Descreve a existência humana como um processo
rar a objetividade; a verdade, porém, não está na objetividade. No inacabado, no qual o "indivíduo" (um conceito-chave em seu
pensar, o que há é um esforço constante, em que as questões não pensamento) deve se responsabilizar por conquistar uma
recebem respostas, mas permanecem no estado de questionamen- identidade como um eu por meio de escolhas livres.
to. O resultado inevitável da reflexão é chegar a paradoxos. Ao se referir ao indivíduo autêntico, fala de como isso custa
sofrimento e da necessidade de esse indivíduo permanecer só, e,
Para ele, Deus ou qualquer relação do indivíduo com Deus
não cabem dentro de nenhum sistema filosófico. se necessário, contra a "multidão".
O homem se caracteriza pelo desespero, que tem origem *
nas contradições da sua existência e na sua distância de Deus: "O
homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de
eterno, de liberdade e de necessidade." (É após a Segunda Guerra Mundial que o existencialismo se
Diante do "penso, logo sou" de Descartes, ele escreve: afirma como um movimento cultural importante^ Não só faltam
"Mais eu penso, menos sou, e menos eu penso, mais sou." respostas para tanta perplexidade diante daqueles acontecimen-
Entre seus livros estão Conceito de angústia e Tratado do tos como a própria maneira de perguntar parece que precisa ser
desespero. Diz que só depois de ter atravessado a angústia e diferente. Não bastam os grandes sistemas filosóficos de até então.
depois de ter sofrido os assaltos do desespero o homem atingirá (Do ponto de vista filosófico, é a fenomenologia que possibilita
o que é verdadeiro. o desenvolvimento do existencialismo. As ideias de Husserl já
Kierkegaard distingue três estados de vida: o estético (do estão presentes, por exemplo, a proposta da r e d u ç ã o
prazer), o ético e o religioso. Vive uma existência cristã, e quando fenomenológica, que suspende os sistemas de interpretação e
diz "eu não sou cristão" é que não se sente digno do cristianismo pretende ir "às coisas mesmas". A existência humana pode, então,
profundo tal como ele concebe. passar a ser alvo de uma reflexão fenomenológica. \

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* i Sartre dedica muitas reflexões a respeito da questão do


corpo humano.
( Jean-Paul Sartre (1905-1980), filósofo e escritor francês, é "... o corpo — nosso corpo — tem como caráter particular
influenciado pela fenomenologia de Husserl e pelo pensamento de ser essencialmente o conhecido pelo outro: o que eu conheço
Heidegger. j é o corpo dos outros, e o essencial do que sei do meu corpo vem
Publica ensaios: A imaginação, O imaginário, Esboço de da maneira como os outros o vêem. Assim, a natureza de meu
uma teoria das emoções. Suas principais obras filosóficas são O corpo me remete à existência do outro e ao meu ser-para-o-outro.
ser e o nada e Crítica da razão dialética. Na literatura, o (...) pois a realidade humana deve ser em seu ser, num só e
romance principal é A náusea. Entre as peças de teatro estão mesmo surgimento, para-si-para-o-outro" (p. 255). )
Entre quatro paredes, As moscas, Mortos sem sepultura, O Segundo ele, o homem não possui uma essência definida a
diabo e o bom Deus. priori (por exemplo,, animal racional). O ser humano surge na
(Em sua obra filosófica O ser e o nada, Sartre (1943) se espontaneidade e só depois se define por aquilo que ele vem a ser
dedica a fazer uma fenomenologia do ser. Considera o ser como no devir da existência. Nesse sentido, a existência precede a
ser-em-si, como ser-para-si e como ser-para-o-outro. São regiões essência.
do ser. ) Quanto à liberdade, ele diz que ela não é algo que o homem
- Ser-em-si tem como uma capacidade humana. A liberdade é algo que o
, 0 ser-em-si é o ser repleto de si mesmo, e, precisamente por homem é. Ela é originária. Entre suas possibilidades o homem
isso, é opaco a si mesmo, e não poderia ser presente a si. ) escolhe, assume um projeto de existência, o seu modo de ser no
/ - Ser-para-si — consciência^ mundo, ij
Para que o ser possa ser presente a si, é preciso que haja O paradoxo da liberdade consiste em que "... só há liberdade
algum afastamento, pois "presença a" implica dualidade, alguma em situação e só há situação pela liberdade. A realidade humana
separação ao menos virtual. "A presença do ser a si implica um encontra em toda parte resistências e obstáculos que ela não
descolamento do ser com relação a si. (...) a presença a si supõe criou; mas essas resistências e esses obstáculos só têm sentido
que uma fissura impalpável se introduziu no ser. Se ele é presente na e pela escolha livre que a realidade humana é" (p. 534). E só
a si, é que ele não é completamente si.^Á presença é uma diante de um fim livremente posto pela realidade humana que o
degradação imediata da coincidência, pois ela supõe a separação. dado do mundo pode se mostrar como algo capaz de constranger
Mas se perguntarmos agora: que é o que separa o sujeito de si a liberdade ou como algo favorável a ela.
mesmo, somos obrigados a confessar que é nada" (p. 113). (...) (Sartre diz: "... é na angústia que o homem toma consciência
"O nada é o pôr em questão do ser pelo ser, quer dizer, justamente de sua liberdade ou, se se prefere, a angústia é o modo de ser da
a consciência ou o para-si" (p. 115).
liberdade como consciência de ser; é na angústia que a liberdade
Ao abordar isso que ele chama de ser-para-si, ou seja, a é em seu ser em questão para ela mesma" (p. 64). )
consciência, Sartre traz como tema a realidade humana. O homem é condenado a ter de escolher. Ele é sempre
-, Ser-para-o-outro responsável. O ato "autêntico" é aquele pelo qual o homem
"... tenho necessidade do outro para apreender plenamente assume sua situação e a ultrapassa por sua ação.
todas as estruturas de meu ser; o para-si remete ao para-o-outro" Nossos atos nos julgam e são irreversíveis. E em vão, diante
(p. 260). de nossos atos, querermos justificá-los apelando à boa intenção ou

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BilêTatitSapienza Do desabrigo à confiança

dizendo que foram feitos inconscientemente. Isso seria "má fé", Nossa preocupação, entretanto, é a Daseinsanalyse, que tem
que é testemunhada pela consciência do outro, cuja existência como base a fenomenologia hermenêutica que, em Ser e tempo,
aparece como uma ameaça insuportável. Não podemos escapar se.dedica à analítica do Dasein — aquele ente cujo caráter
do "olhar" do outro. essencial é o 'cuidado' (Sorge) pelo ser em geral e pelo seu
O homem é comprometido com o contexto real e concreto próprio ser.
em que vive, e, mesmo se for indiferente a isso, esse ser No referencial heideggeriano, 'ser' j á é sempre 'doação' a
indiferente é uma escolha, é seu modo de responder às Dasein, e precisa de Dasein como destinatário de sua 'doação'.
solicitações de seu mundo, de seu tempo. Não há a desculpa de Esse referencial implica profundas diferenças diante da ontologia
se dizer determinado pelos fatos que configuram uma situação. e da epistemologia tradicionais.

* Embora ao empregarmos o termo Dasein estejamos nos


referindo ao ente humano, o nome Dasein permanece para
indicar que esse ente se distingue exatamente por seu caráter de
Nessa amostra de algumas ideias de filósofos ligados ao ser-aí: 'aí' no 'mundo', e o 'aí' do ser.^)
existencialismo, podemos ver que há pontos semelhantes ao
pensamento de Heidegger. Mas o pensamento deste filósofo não
significa o mesmo que o existencialismo.
Heidegger (1967) diz em Sobre o humanismo que a
importante frase de Sartre sobre a precedência da existentia
frente à essentia justifica o nome de "Existencialismo" como um
título adequado a essa filosofia. Ele acrescenta que essa frase do
"Existencialismo", entretanto, nada tem em comum com a frase
que está em Ser e tempo.
Nesse mesmo livro, Heidegger diz que a frase que está
grifada em Ser e tempo é: " A essência do Dasein está na
existência." E isso quer dizer: "O homem se essencializa de tal
sorte que ele é o lugar (Da), isto é, a clareira do ser (p. 43) (...)
"O homem é, enquanto ec-siste" (p. 49).
Ao falar da existência como ec-sistência, Heidegger evoca
"a determinação do que o homem é no destino da Verdade do ser"
(p. 45). O foco de seu pensamento está principalmente no t
considerar o homem como o destinatário da doação de ser.

Percorremos aqui, ainda que ligeiramente, um caminho que


passa por algumas ideias da fenomenologia e d o existencialismo.

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Do desabrigo à confiança

portanto, é preciso que p e r m a n e ç a m o s no esforço para a


interpretação e a explicitação do seu sentido naquela existência
em particular, percebemos o quanto teria sido pobre se tivéssemos
apressadamente nos restringido a algum conceito psicológico
prévio, desses que servem para todo mundo. Quando paciente e
terapeuta se aproximam da compreensão de um sentido mais
"próprio" de algo que foi trazido para a sessão, isso tem o sabor
de uma coisa verdadeira.

*
A terapia daseinsanalítica so faz sentido dentro do referencial
filosófico heideggeriano. E, assim, soa estranho quando ouvimos (A explicitação de um sentido, entretanto, não é algo que se
perguntar se, em nossa clínica, trabalhamos com determinados dê com a garantia de não mais voltar para o encobrimento.jA 'doa-
conceitos psicológicos bastante conhecidos pelos psicólogos em ção' de ser comporta a 'ocultação'. E é próprio do Dasein, ain-
geral. Tais conceitos a que me refiro são importantes e têm da que ele seja a 'abertura'em que se ' d á ' 'ser', poder ter,
sentido nas teorias que precisam deles para explicar como onticamente, uma restrição na sua possibilidade de compreensão;
funciona o psiquismo do homem. Mas eles ficam ociosos em nossa ele pode permanecer na ou voltar para a penumbra de uma com-
concepção de homem como Dasein, que j á é sempre 'ser-no- preensão obscura — nem sempre faz sol de meio-dia na clareira...
mundo'; o 'aí' onde se 'dá' 'ser'; a 'abertura' que 'compreende' Mas por que algo que na terapia j á estava desocultado,
'ser' — 'ser', que se dá e se encobre. explicitado, pode voltar a se encobrir? Nosso paciente
Se levamos a sério a fenomenologia que fazemos junto ao frequentemente volta a ter como questão algo que parecia j á
nosso paciente, mesmo que conheçamos aqueles conceitos compreendido, já aceito.
tradicionais da psicologia, eles devem ficar em "suspensão".]Nós Compreender alguma coisa é a realização ôntica do
nos detemos no que se manifesta, num esforço — e é um esforço existencial ' c o m p r e e n s ã o ' , que está sempre imbricado no
mesmo — para a compreensão do sentido daquilo que, ao mesmo existencial 'afinação', o qual se traduz onticamente em alguma
tempo, se desoculta e se oculta. Vamos rodeando, numa escuta emoção.
pacienciosa, com perguntas simples, com pequenas observações. Então, compreender alguma coisa pode vir carregado de
Nisto que o paciente está dizendo agora, o que mais pode estar
emoções pertencentes a uma 'afinação' existencial que, naquele
implicado? Que modo de ser-no-mundo é esse que possibilita que
caso do paciente, corresponde ao encontrar-se desabrigado, ao
tal coisa exista nele? Em que chão isso se assenta? Como isso
encontrar-se na inospitalidade. E Dasein tende a fugir do estar
que ele conta entra em sua história? Para onde isso aponta? Junto
desabrigado refugiando-se no cotidiano. Não é estranho que se
a que outros significados isso que ele diz faz sentido? Que
afaste de certas compreensões que apontam para o inóspito da
manifestação corporal acompanha sua fala?
existência.
Quando nos acostumamos a pensar assim, sabendo que é
Compreender algo a respeito de si, se aproximar da
próprio do fenómeno tanto o mostrar como o ocultar e que,
possibilidade de ser mais 'propriamente' si-mesmo pode ser

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Bile Tatit Sapienza Do desabrigo à confiança

i n c ó m o d o , porque talvez essa compreensão tire do abrigo / Quando Dasein compreende, e aceita, que ele é finito, que
proporcionado pelo "ser como todo mundo é". O "ser como todo ele acaba, compreende que não é só no tempo que ele acabará
mundo é" não está sendo tomado aqui como o que caracteriza um dia, mas que ele acaba também num outro sentido, isto é, há
aquele sobre quem se diz: é um tipo "sem personalidade", é um um limite para o "até onde" ele chega, há um limite para o "até
tipo "maria-vai-com-as-outras". Ao contrário, o "ser como todo onde ele pode", porque ele não pode tudo. j
mundo é" pode se expressar exatamente no dizer "a gente tem Esse "até onde" não se refere ao espaço físico (isso a
que ser autêntico", "a gente tem que ter personalidade", pois Internet resolveria...), mas ao "até onde" vai seu controle. Quando
essas mensagens estão presentes o tempo todo em nossa cultura. seu poder se amplia e ele consegue coisas antes inimagináveis,
O se aproximar da possibilidade de ser mais 'próprio' tem a por isso mesmo ele penetra em áreas dentro das quais, de novo,
ver com o poder ouvir um chamado que vem de si mesmcj — E haverá sempre algo que ele não pode ter, não pode fazer, não pode
eu? A mim, sendo no mundo em que sou, com a história que é a ser. O próprio Dasein, como 'abertura' que é, abre esses novos
minha, o que é pedido? — e responder a esse chamado. âmbitos em que a 'doação' de ser continua, isto é, em que
Compreender, ouvir o chamado e responder a ele pode não ser continua o acontecer das coisas, em que continua se abrindo o
confortável, porque nessa hora a pessoa se expõe, e isso traz mundo, que o solicita; novas possibilidades se apresentam e novas
consequências, ou porque a resposta, uma vez dada, pode custar escolhas são necessárias, e, de novo, Dasein não pode realizar
muito esforço ou mesmo alguma renúncia. escolhas que se excluem.
Quanto mais se ampliam os limites de seu poder, mais
*
complicada se toma a responsabilidade de precisar escolher entre
alternativas. Isso se aplica a todas as áreas da vida, e em todas
O incómodo de se aproximar do ser mais 'propriamente' si elas levanta preocupações éticas.
mesmo acontece também porque, ao se aproximar do seu ser
mais próprio, Dasein 'se encontra' na sua condição fundamental *
de ser 'lançado' na existência sem garantias, e, além disso,
responsável por ela, 'devedor' à existência. O ser 'devedor', O "até onde" chega seu poder não diz respeito a distâncias,
frequentemente, no cotidiano da vida surge como sentimento de pode acabar ali bem perto mesmo, ao seu lado. Ele não pode, por
culpa diante do que se fez ou do que se deixou de fazer. exemplo, obrigar nem impedir que o outro goste dele; não pode se
iMais que um incómodo, a 'angústia' se anuncia quando, obrigar a gostar do outro nem se impedir disso.
compreendendo quem ele é mais 'propriamente', Dasein Seu controle acaba mais perto ainda, acaba no seu próprio
compreende que seu tempo acaba, que ele é mortal, não como corpo, no corpo que ele é. Apesar do aumento de conhecimentos
sempre soube que "tudo que é vivo morre", ou como quando sobre o corpo humano, o que amplia muito o controle possível
aprendeu um exemplo de silogismo: "Todo homem é mortal; sobre ele, a cada momento processos corporais estão em
Sócrates é homem; portanto Sócrates é mortal." Compreende que andamento, dos quais Dasein nem se dá conta. "O ser corporal
n ã o vai morrer "como" todo mundo, é "ele" quem vai de Dasein é o existencial que, mais de perto, nos conta que existir
necessariamente morrer, sem saber quando, de que jeito, e sem é ao mesmo tempo indigência e potência (Pompeia, 2003, p. 33).
saber bem o que é morrer. Dessa mesma forma sabe que os que A indigência, no que este termo pode significar o não se
ele ama também vão morrer. bastar, o não se garantir, o ser necessitado, expressa a condição

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Bile Tatit Sapienza

do Dasein, que tem como um de seus existenciais o ser um corpo


destinado a morrer. A indigência assusta. E a potência de ser
também assusta.

Dasein é aquele ente que existe sendo sempre o seu já sido,


a sua história, e aquele a quem falta ser. Faltar-lhe ser significa
o seu ser incompleto (até que morra) e, ao mesmo tempo, significa
que, por ser ele a 'abertura' em que se 'dá' 'ser', sempre há lugar
para que nessa abertura continue a se dar a 'doação' de 'ser';
para que, onticamente, mais coisas venham ao seu encontro. Se, (Temos para cada paciente um olhar que é dirigido para ele
por um lado, o acontecer das coisas tem a ver com possibilidades em particular, para aquela história de vida, para as possibilidades
que se realizam e tornam mais plena a existência, por outro, o de desdobramento daquele futuro. Mas não perdemos de vista a
realizar-se de algumas possibilidades é exatamente perda. compreensão que temos de tudo aquilo que, ontologicamente,
(Desabrigado, devedor, finito, angustiado, vivendo na falta, caracteriza o Dasein, ou seja, os existenciais ou seus caracteres
com as perdas, e, contudo, podendo responder ao chamado para fundamentais.,
ser mais propriamente si-mesmo e corresponder à sua destinação Todos os existenciais, de algum modo, se expressam no viver
existencial, fazendo planos, alimentando sonhos, querendo ser feliz. concreto (ôntico) do paciente, seja nos momentos em que ele está
Assim é o Dasein em sua indigência e potência de ser. Esse é o mais próximo de sua 'propriedade', seja nos momentos em que
ser humano que está junto a nós na terapia.) estáp mais possível perdido na 'impropriedade' do cotidiano.
Cada ser humano carrega em si todos hs paradoxos e todos São, por exemplo, caracteres fundamentais do Dasein:
os conflitos que significam existir: sentimentos contraditórios; 'compreensão', 'afinação', 'temporalidade', 'espacialidade',
querer e não querer ao mesmo tempo; precisar se tornar si 'corporeidade', 'ser-com'. I
mesmo e se afastar de si mesmo; precisar de um sentido para a Todos os existenciais são sempre imbricados uns nos outros.
vida e, muitas vezes, não conseguir se dedicar a ele; saber de sua Vejamos alguns exemplos dessa imbricação.
necessidade do outro e sentir o difícil que pode ser conviver com
o outro; precisar de proteção e saber de seu desabrigo. 'Ser-com' e 'afinação'

Dasein é ser-com mesmo quando escolhe estar só ou é


obrigado a issoJ E esse ser-com acontece sempre numa
determinada afinação. Em cada caso, quem é o outro para este
Dasein? Pois o outro não é meramente "um outro", como uma
coisa qualquer. Percebo e sinto o outro como aquele que me
protege, aquele de quem preciso sempre suspeitar, aquele a quem

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BilêTatit Sapienza Do desabrigo à confiança

devo temer, aquele que eu engano, aquele que me engana, aquele movimentos ágeis ou lentos, tamanho, com fome ou saciados,
que eu controlo, aquele de quem não quero depender, aquele que cansados ou não, gordos ou magros, com sorrisos ou carrancudos
me persegue, aquele que eu abandono, aquele que me abandona, e assim por diante, que interagimos uns com os outros, que somos
aquele que eu amo, e assim por diante. No seu ser-com o outro, uns com os outros.
Dasein sempre 'se encontra', ou está numa determinada afinação. Sendo o corpo que somos, nossas necessidades estão aí
O modo prevalente de alguém ser com ps outros marca presentes e temos de nos haver com elas. A sexualidade está
grandemente a tonalidade afetiva de sua vida. ) entre as necessidades mais básicas do ser humano. E o interesse
sexual pelo outro se inclui também entre as possibilidades
'Ser-no-mundo', 'corporeidade' e 'ser-com' concretas de Dasein em seu ser-com-os-outros. Em torno do
amor erótico gira grande parte das preocupações humanas. Por
Quando dizemos que 'corporeidade' é um existencial, não causa desse amor, as pessoas sofrem, são felizes; alguém
estamos dizendo algo que parece óbvio, isto é, que Dasein "tem" encontra sentido na vida, alguém quer morrer. Histórias de amor,
um corpo ou existe "em" um corpo, esse corpo material objeto da da forma como são vividas, ou como não são vividas, por qualquer
Física, da Química, da Biologia. Também não estamos repetindo que seja o motivo, perpassam a terapia.
a atualmente tão bem lembrada relação entre corpo ou processos
corporais e questões emocionais. |'Compreensão' e 'afinação'
( Compreender a corporeidade como um existencial significa
dizer que o ser corporal é para o Dasein uma determinação A imbricação entre elas é o que faz com que tudo aquilo que
ontológica. Dasein é seu corpo. E corporalmente que Dasein é- compreendemos venha sempre acompanhado com algum tipo de
no-mundo. E, além disso, o mundo que temos só é este que sentimento, ainda que seja de indiferença Assim, por exemplo,
v

temos porque a nossa corporeidade é esta que somos.) alguém que, em sua vida pessoal, compreende a possibilidade de
Compreendemos isso quando nos damos conta de que as cores, os acontecimentos da vida se darem independentemente de seu
as formas, os sons, os cheiros, enfim, tudo o que caracteriza os controle pode viver isso de uma forma afinada na desproteção, no
entes com que nos deparamos poderia ser diferente se, por desabrigo que significa o não ter garantias de nada, que aponta
exemplo, nossos olhos, nossos ouvidos, nosso olfato fossem outros. sempre para o perigo iminente; e aí um sentimento de medo está
E, se fossem outros os processos cerebrais, como seria a quase sempre presente. Um outro vive essa mesma compreensão
compreensão humana dos fenómenos todos, inclusive da nossa do não poder controlar tudo como sendo o caráter da gratuidade
própria vida, e, a partir dessa compreensão que então teríamos, do dar-se das coisas, o que significa desabrigo e desproteção, mas
o que iríamos dizer a respeito das coisas e de nós mesmos? Que significa também algo que o libera da necessidade de ter de
questões teríamos? Que outras dimensões estariam abertas para controlar tudo, e isso pode ser vivido como um sentimento maior
o humano e como seria isso a que chamamos mundo? de liberdade, de não precisar viver sempre em estado de alerta.
/ Dasein é corporalmente-no-mundo-com-os-outros. ) E um outro, ainda, talvez viva esse não poder controlar tudo como
^ É sendo o corpo que somos, com tudo o que nos caracteriza um sentimento de indiferença, como um "tanto faz eu ser ou fazer
de modo momentâneo ou de modo mais permanente como sexo, de um modo ou de outro, visto que nada está sob meu controle,
cor, se com saúde ou não, se bonitos o u não, se velhos ou moços, é tudo fruto do acaso". Mas, por outro lado, um sentimento de

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Bile Tatit Sapienza

indiferença pode também vir junto com um modo oposto de


compreender a e x i s t ê n c i a , isto é, a e x i s t ê n c i a como
completamente predeterminada, em que também "não importa o
que eu faça, pois o que tiver de ser será". Ainda um outro vive
o compreender que não controla tudo como um sentimento de
humildade diante do imponderável, que não o desobriga de fazer
a sua parte, e que o faz se sentir alegre pelo tanto que,
gratuitamente, tem recebido.

A maneira como trabalhamos em terapia se dá como um


compartilhar a interpretação da facticidade daquela existência que
temos junto a nós no consultório. Interpretação aqui não quer dizer
encaixar aquilo que o paciente traz no referencial de uma teoria
de psicologia. Quer dizer, diante do que ele traz, tendo como
horizontes, ao mesmo tempo, os existenciais e aquela história
particular, empenhar-se não só na explicitação do sentido do que
aparece como na ampliação desse sentido, na procura do que
pode estar encoberto — pois o que é se dá e se oculta —,
propiciando assim que o paciente possa alargar e aprofundar a
compreensão de como está sendo seu modo de existir.
Mas, frequentemente, deparamo-nos com uma pergunta:
Como o pensamento de um filósofo, cuja intenção não é fornecer
subsídios para a clínica, pode servir de base para uma prática
terapêutica?
Isso é possível porque, como já vimos, ao se dedicar à sua
questão principal, Heidegger se detém na análise do ente para o
qual ser é questão, o Dasein. A partir daí, podemos ter uma
profunda compreensão dos caracteres básicos da existência
humana. Esses existenciais servem de referência para a nossa
compreensão do paciente.
Sabemos que o Dasein se caracteriza por ser 'fáctico', isto
é, ele ' é ' lançado na existência, tendo de ser, tendo de 'cuidar' da
sua existência. Cada um tem a sua existência como questão, deve
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Bile Tatit Sapienza

a si mesmo esse cuidado. E esse cuidado inclui si mesmo, o outro,


as coisas todas do mundo; abrange o passado, o presente e o
futuro. Destinado ao cuidado e, ao mesmo tempo, tendo de contar
com a falta de garantias e com a transitoriedade de tudo: esse é
o nosso paciente, que se aflige pelas escolhas que tem de fazer;
sofre por suas perdas; tem de se haver com seus amores e
desamores; se angustia diante da finitude e não tem como não se
preocupar com sua vida.
A compreensão que temos do Dasein como o ente que
realiza a sua essência nesse 'cuidar' do 'ser' permeia todo o
nosso cuidado com a existência concreta do paciente.
Vamos agora chegar mais perto da clínica, pois é nesse
O pensamento de Heidegger repercutiu entre psiquiatras que cotidiano que nos encontramos face a face com o fenómeno que
viram aí uma nova possibilidade de compreensão de seus nos diz respeito: a existência do paciente.
pacientes. Diferentemente do professor que prepara uma aula, que
Os suíços Binswanger (1881-1966) e Boss (1903-1990) decide o que quer falar naquele dia, que atividade vai propor para
foram alguns desses. os alunos, o terapeuta não escolhe previamente o que vai ser
Medard Boss, que manteve contato pessoal com Heidegger tratado. O assunto da terapia surge na hora. O paciente até pode
desde 1947, organizou os Seminários com o filósofo em Zollikon, pensar: "Hoje quero falar de tal coisa." Mas o terapeuta está
a partir de 1959. Esses Seminários c o m e ç a r a m com uma disponível para o que vier.
conferência de Heidegger no auditório da clínica de psiquiatria da A terapia pode seguir, durante um tempo, um rumo mais ou
Universidade de Zurique. Esses encontros favoreceram a entrada menos estável, mas a possibilidade das surpresas está sempre ali.
da Daseinsanalyse na clínica. Medard Boss fundou a Sociedade Isso porque podem mudar tanto a percepção que o paciente tem
de Daseinsanalyse na Suíça. das coisas como a percepção que ele tem de si mesmo, e, além
Em 1971, Sólon Spanoudis (1922-1981), psiquiatra grego disso, porque acontecimentos na sua vida podem modificar tudo.
radicado no Brasil, entrou em contato com Medard Boss. A partir A cada dia o terapeuta sabe quem vem para a terapia, mas não
daí e dos encontros que se seguiram entre esses dois psiquiatras sabe como vem.
e alguns psicólogos de São Paulo, teve origem a Associação
Brasileira de Daseinsanalyse, filiada à da Suíça. Como exemplo de uma terapia, vamos nos aproximar de um
caso que não é verdadeiro, mas não é impossível.
A psicóloga de um hospital, j á quase no fim de seu dia de
trabalho, foi visitar uma paciente que estava internada desde cedo.
Tinham lhe dito que se tratava de uma moça que havia sofrido um
grave acidente de carro na estrada e que, após os primeiros
socorros, esperava em seu quarto para ser removida para outro

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Bile Tatit Sapienza Do desabrigo à confiança

hospital. Disseram que a paciente tinha estado muito agitada, e — Que foi? Você não está bem.
depois de um sedativo havia dormido, e agora seria bom que Ela respondeu:
alguém fosse falar com ela u m pouco. — Estou bem agora, mas o dia foi pesado no hospital.
Chegando ao quarto, bateu na porta, pediu licença e entrou. Também, por que eu tinha de entrar naquele quarto? Se eu
— Oi, eu sou fulana, trabalho aqui como psicóloga. Estou deixasse pra amanhã ficaria livre de ver o que vi. Nunca tinha
vindo para saber como você está. Caso você queira falar com visto alguém tão machucado. Meu, não dá pra aguentar. Não sai
alguém, estou disponível para conversar com você. da minha cabeça aquele rosto. Foi um acidente de carro. Você
E parou de falar. Viu os hematomas, os ferimentos e as fica feito uma pasmada ali na frente da pessoa, sem ter o que
lágrimas no rosto da mulher. De imediato, não dava para saber se fazer, sem ter o que dizer. O que adianta ser psicóloga? Qualquer
era jovem, mas, aos poucos, percebeu que era jovem sim. coisa que a gente diga não faz sentido. E tudo uma papagaiada.
A moça falou com voz sonolenta: Estou sendo chata, desculpa, agora não é hora pra falar disso. Mas
— Dói tudo... Meu rosto... é que me pegou fundo mesmo. E eu aqui, tomando cerveja,
A psicóloga permaneceu algum tempo no quarto aguardando falando que não dá pra aguentar; daqui a pouco esqueço e a
que ela ainda quisesse falar mais alguma coisa, e depois disse minha vida continua igual. E ela? O que vai ser dela?
apenas: Os amigos entraram na' conversa e cada um tinha uma
— Descanse, volto outra hora. história sobre algo referente a esse assunto. O peso inicial foi
Saiu e foi tomar café. Encontrou o médico que havia sendo aliviado. Ela não demorou muito para ir embora porque
atendido a paciente e ele lhe disse: precisava levantar cedo para ir trabalhar.
— Viu a moça? Fiz só o mais urgente para evitar infecção
nos ferimentos, dei a ela um sedativo, ela estava num estado... Vai
*
ser preciso um plástico. Será removida para um outro hospital.
A psicóloga sentiu um mal-estar meio indefinido. No dia seguinte, na entrada do hospital, informou-se sobre
Em seguida pegou seu carro e foi para casa. A estrada aquela paciente, e disseram-lhe que ela já havia sido levada para
estava boa, mas dirigiu meio preocupada. Pensou em como era outro hospital. Conversou com a funcionária da portaria, que lhe
difícil ter de viajar todos os dias para trabalhar naquele hospital, deu algumas informações sobre a moça acidentada. Disse que,
mas esse era o jeito agora. segundo o homem que a acompanhava, que também tinha tido uns
Chegou em casa, tomou banho e depois se olhou no espelho. ferimentos leves, eles voltavam do litoral quando o carro
Viu seus cabelos bem lavados. Os da paciente do hospital ainda derrapou, quebrou uma grade e rolou na ribanceira. A moça
tinham alguma coisa meio empastada que devia ter sido usada para estava dirigindo. Esse acompanhante avisou alguns parentes dele
remover o sangue. Viu seu rosto harmonioso e gostou do que viu, e foi liberado algumas horas depois, pois com ele nada havia de
mas não ficou alegre. Pensou: "Ontem ela deve ter se olhado no grave. Ele pagou os atendimentos, inclusive as despesas com a
espelho como eu agora." Enquanto secava os cabelos, chorou remoção da moça, mas não sabia dar informações sobre ela, pois
lembrando-se da moça. não conhecia sua família. Mas encontraram na bolsa dela uma
Ligou para os amigos e foi encontrá-los no mesmo bar de agenda com um telefone que era o de sua mãe. A mãe foi vê-la,
sempre. Conversaram e tomaram cerveja como nos outros dias, mas não conseguiu conversar com ela; apenas falou com o moço,
mas ela não estava igual. Um dos amigos reparou e disse: seu acompanhante, e foi embora.

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Bile Tatit Sapienza Do desabrigo à confiança

A psicóloga saiu dali pensando nos imprevistos da vida, Depois que ela saiu da sala, a tia ainda falou para quem
achando que os dois tinham estado provavelmente numa festa, e, estava lá:
de repente, a moça lá, naquele estado.... Depois foi cuidar do seu — Nos primeiros tempos de clínica é assim mesmo. Ela está
trabalho daquele dia. impressionada. Mas se você se deixar levar assim pelos problemas
Quando voltou para casa nessa noite, estava lá sua tia, que dos outros, você está perdida. A gente precisa esfriar a cabeça
era psicóloga também. Comentou seu encontro com a paciente do e pensar com objetividade. Cada coisa sempre tem sua
hospital, o quanto ela havia sido tocada pela situação. A tia então explicação, não dá para se fugir disso.
falou: Cada um deu ainda mais alguma opinião até que a conversa
— Esse é um desses casos em que, depois de passar a noite tomou outro rumo.
na balada, a pessoa sai dirigindo, ainda pega uma estrada, e depois
dá nisso. São irresponsáveis, e ainda bem que, ao menos, o *
companheirc dela não se machucou. Até que ele foi legal de pagar
as despesas dela. Aquela paciente foi removida para outro hospital, e, como a
— Pode ser, tia. Mas mesmo assim, é um horror! Se você plástica de que necessitava era uma cirurgia reparadora, foi logo
visse como ela estava! Num momento, quanta energia, quanta atendida, e teve a sorte de ser atendida por um ótimo cirurgião.
vida, e de uma hora pra outra ... Ele se comoveu com o rosto desfigurado da jovem e tratou dela
— Quanta vida! É o que você pensa. Não sei, não. Sempre com um cuidado especial. Ela ficou no hospital os dias que podiam
por trás desse "quanta vida" o que existe é uma destrutividade ser cobertos pelo seu seguro de saúde e depois foi para casa. Sua
muito grande. Por que uma menina sai dirigindo desse jeito, mãe j á havia comunicado seu acidente à empresa onde ela
certamente depois de beber muito e, quem sabe, com alguma trabalhava.
droga? Por quê? Você não vê que aí há no fundo uma vontade de Em casa não havia muito o que fazer a não ser pensar,
acabar com a vida? chorar, responder o menos possível ao que era perguntado,
evitando sempre olhar no espelho. Não tinha esperança de voltar
— Ah, tia. Você não está exagerando em concluir assim
para o mesmo trabalho; sabia que era fundamental a aparência.
sobre essa destrutividade da moça? A gente nada sabe sobre ela.
E havia outra coisa que a fazia sofrer: saber que o fulano que
— Mas a gente consegue sacar essas coisas. E digo mais:
estava com ela na hora do acidente, não havia procurado ter
você não disse que o companheiro dela não sabia nada a seu
notícias suas. Ela se lembrava de que lhe haviam dito, no primeiro
respeito? Pois é, as meninas saem com caras mais velhos, ricos,
hospital, que ele não tinha se machucado muito. Chegou a ligar
vão à procura de facilidades na vida. Acabam exagerando em
para seu celular mas ninguém atendia.
tudo, e ainda essa aí acaba pondo a vida do outro em risco, além
Um dia uma colega de trabalho foi visitá-la, e, num certo
da sua própria. E isso não é destrutividade? A destrutividade tem
momento, falou para a colega que ela não sabia como tinha
muitas formas! A destrutividade vem disfarçada de...
acontecido aquilo, pois quantas vezes tinha saído com ele de carro
A moça parou de prestar atenção e pensou: "Que coisa e ele dirigia muito bem. A amiga lhe disse então:
chata! Acabou com a minha vontade de conversar..." — Mas me disseram que era você quem estava dirigindo!
Alguma coisa que ela não sabia bem o que era tinha se E ela respondeu:
esvaziado naquela hora, e se sentiu sozinha. — Não, era ele.

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Bile Tatit Sapienza Do desabrigo à confiança

A mãe dela, que estava por perto, fez um sinal para que a *
amiga parasse com o assunto. Depois, longe dela, disse:
— Ela está meio confusa nessa história. Sabe, não é por mal Passaram-se alguns dias e a moça começou a fazer os
que ela diz que não era ela. Já me disseram que isso é por causa retornos ao hospital para acompanhar a evolução das várias
do trauma do acidente. Me explicaram que, quando uma coisa é cirurgias que precisou fazer no rosto. Tinha vergonha de mostrar
muito ruim, a pessoa, às vezes, começa a achar que aquilo não foi o rosto ainda inchado, as cicatrizes recentes.
por causa dela, mais ou menos isso, não sei te dizer direito, meio No hospital havia um serviço de psicologia. Foi encaminhada
que esquece como foi tudo. Mas lá no hospital o homem que para um apoio psicológico destinado a alguns pacientes muito
estava com ela me contou que ela estava dirigindo. Até que ele necessitados de ajuda. E a ajuda que recebeu foi preciosa. Teve
foi muito bom, pagou os primeiros socorros, facilitou a remoção oportunidade de falar do desastre, de reclamar da vida, de chorar
dela pro outro hospital. muito. Começou a entender que sua vida não seria mais a mesma,
A amiga ficou mais um tempo e depois foi embora. No dia que algumas mudanças viriam; grandes e pequenas mudanças.
seguinte comentou com o pessoal da empresa o quanto tinha Algumas pequenas ela já começou a fazer, por exemplo, passou
ficado chocada com a aparência da colega. Os outros disseram a usar o cabelo de modo a esconder um pouco o rosto, sempre
coisas como: "Que loucura! Justo ela, bonita daquele jeito! E de óculos escuros. Não se sentia em condição de manter seu
agora, como vai ser? Que horror!" trabalho, em que uma aparência impecável era exigida. Seu chefe
Uma das colegas falou: colocou-a para trabalhar no escritório da empresa.
— Ela estava tão feliz! Há poucos dias me contou que estava Infelizmente esse atendimento psicológico tinha um tempo
saindo com um cara muito legal. Estava encantada, apaixonada. limitado. Na última sessão ela disse à terapeuta:
Disse que nunca em sua vida tinha recebido tantas flores como — Sabe, nunca tinha pensado em terapia. E agora, veja, me
agora. E machucou muito mesmo o rosto dela? abri tanto com você, não sei como teria aguentado isso sozinha.
— Nem dá pra descrever — respondeu a outra. Ia ser bom continuar. Me lembrei de uma outra psicóloga que
— Mas com uma plástica dá pra recuperar? apareceu no meu caminho nesses últimos tempos. Até já tinha me
— Difícil. Ela já foi bem atendida por um ótimo cirurgião esquecido. Foi no mesmo dia do acidente, quando eu estava no
plástico que dava plantão naquele dia no hospital pra onde foi primeiro hospital em que fui atendida. Estava péssima ainda, em
removida. Mas, mesmo assim, o estrago foi muito grande. Ela estado de choque, como se diz. Cuidaram de meus ferimentos, e,
está arrasada. A mãe dela disse que ela está ainda muito confusa. depois que consegui relaxar um pouco à custa de um remédio que
Também, não é pra menos! me deram, eu me lembro de que, numa certa hora, entrou no
Alguém disse: quarto uma moça dizendo que era psicóloga; nem sei direito o que
— De uma hora pra outra a vida vira de cabeça pra baixo! falou; devo ter dito alguma coisa pra ela; eu quase não podia falar.
O que vai ser dela? Depois perguntou se a terapeuta poderia atendê-la em outro
Uma das moças comentou: consultório.
— Estranho isso que foi dito sobre ela estar dirigindo. Ela A terapeuta respondeu que não seria possível, pois estava
dizia que não gostava de dirigir e m estrada. E ele também se com uma viagem marcada e ficaria um ano fazendo um curso em
machucou muito? outra cidade. E a moça disse:
— Que nada! Só uns arranhões. — Que pena! Ia ser muito bom continuar com você.

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Bile Tatit Sapienza Do desabrigo à confiança

— Mas eu vou dar pra você o nome de uma pessoa em gente não quer ver ninguém. A psicóloga lá do hospital me
quem confio muito. Você vai se acertar com ela, tenho certeza. aguentou. Mas a terapia lá é só por três meses. Então ela me
indicou você. Não vim logo em seguida, não sei por quê.
* — Mas agora você está aqui. E antes disso você já havia
feito alguma terapia?
— Não, nunca senti necessidade. Tinha amigas que faziam,
A moça só foi procurar a nova psicóloga depois de dois ou
mas eu brincava com elas, dizia que eu não precisava disso, não
três meses.
era louca. Mas agora, de uma hora pra outra, mudou tudo. Não
Chegou e disse logo por que estava ali, como quem está com
sou mais quem era, não tenho mais o que tinha. Não é que eu
pressa. Falou que fez três meses de terapia num serviço
tenha perdido coisas, não, é a minha vida que está perdida. Minha
psicológico de um hospital onde havia feito cirurgia plástica, aliás,
vida acabou. Você está me vendo viva aqui sentada na sua
várias intervenções por causa de um acidente de carro que
frente. Mas eu não estou viva. O que sobrou de mim é resto. O
sofrera. E em seguida toda a sua amargura começou a aparecer
que fiz pra merecer isso? Você entende? Não há o que fazer.
nas palavras, na postura, na expressão do rosto, que, apesar dos Todo dia acordo de manhã e vejo que a minha vida é isso. A vida
óculos escuros, estampava sua tristeza. de todo mundo continua, e eu tenho que aguentar isso sozinha.
A terapeuta perguntou quando tinha sido o acidente e a moça Nesse momento a moça já'chorava muito.
disse a data e o lugar. A terapeuta, depois de um tempo, disse para ela:
"Meu Deus, é ela!", pensou a terapeuta. — É tudo muito triste. E a gente fica se perguntando como
Ouviu ainda o nome do hospital onde havia sido o primeiro é que se continua a viver depois disso, não é? De repente,
atendimento. acontece alguma coisa que faz a vida desabar e, em seguida, não
Na surpresa, perdeu algumas coisas que a moça dizia; difícil há mais como escapar do acontecido. A vida está marcada por
prestar atenção tão presa estava na sua aparência. E pensou: aquilo que aconteceu. Deve haver mil perguntas sem respostas:
"Faz quase seis meses, agora dá pra ver como ela é." "Por que isso? Por que assim? Por quê? E agora?" E nem sempre
Alguém poderia dizer aqui que isso só acontece em novela. a gente pode compartilhar essas coisas com as pessoas, mesmo
Mas o fato é que naquele dia em que sua colega lhe telefonou e com as mais queridas. Então a gente fica só.
disse que havia dado seu nome para uma moça que iria procurá- Quando conseguiu parar de chorar, a moça disse:
la, ela foi informada de que se tratava de alguém que tinha feito — Na verdade eu sei que nada pode ser mudado, não tenho
cirurgia plástica por causa de um acidente. Naquela hora, ela o que esperar. Mas eu preciso falar; pode ser que assim eu
chegou a se lembrar do caso da moça vista no hospital. Mas... isto entenda alguma coisa dentro desse absurdo todo. Foi por isso que
agora era demais. eu vim.
E enquanto ela se refazia da surpresa, a moça continuava — Conversar ajuda. Você deve estar cheia de perguntas, e
falando: todas as perguntas cabem aqui, se bem que nem sempre a gente
— ... se você visse como eu fiquei, agora até que está bom encontre as respostas. Algumas vezes, o que se compartilha é o
em vista de como foi. No meio de tanta coisa ruim não posso me não-entendimento. Outras vezes é só a dor.
queixar do meu atendimento. Mas logo em seguida eu pirei — De dor eu entendo... Mas tenho estado muito só. A outra
mesmo. Não tinha mais chão. O que passei não tem nome. A terapeuta me indicou você, e eu quero tentar.

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Bile Tatit Sapienza Do desabrigo à confiança

— Estou disponível pra atender você. Mas antes há uma exagerando. Mas, pensando bem, podia mesmo acontecer que
coisa que quero que saiba. É o seguinte. Está acontecendo uma alguma pessoa não gostasse de ter sido vista no dia mais horroroso
enorme coincidência aqui. No dia do seu acidente eu vi você. É de sua vida, em que ela se sentia como um monstro. Mas, no meu
isso. Há pouco você me disse "se você visse como eu fiquei", não caso, não me importo com isso.
é? Então você sabe agora que eu vi. Não sei se isso a incomoda. Já tinha também passado pela cabeça da terapeuta, logo nos
— Como é isso? Você estava no hospital? No primeiro ou primeiros momentos em que percebeu quem era a paciente, a
no outro onde fui operada? pergunta: "Eu quero atendê-la?" Pois ainda se lembrava do quanto
— No primeiro. Eu trabalhava lá. Quando foi socorrida em havia ficado impressionada naquele dia. Mas hoje estava certa de
seguida ao acidente, você teve um atendimento de emergência, que queria fazer esse atendimento, que não seria fácil.
tomou um sedativo, dormiu um pouco. Depois que acordou, fui ao A moça falou em seguida de sua dificuldade financeira no
seu quarto pra perguntar como estava, saber se queria falar com momento. Disse que continuava trabalhando ná mesma empresa
alguém. Você não tinha condição de falar com ninguém, estava de antes do acidente, mas numa outra função. Era uma empresa
com muita dor e com muito sono. Então eu disse que voltaria que lidava com cosméticos. Antes trabalhava em vendas, mas
depois, mas no dia seguinte você já havia sido removida pra outro fazia também demonstrações dos produtos em feiras, lojas, salões
hospital. Então, foi assim, eu a vi lá por uns minutos. Só agora, ao de beleza; maquiava modelos, artistas, e era exigido que ela
ouvi-la contar o dia e o lugar onde aconteceu tudo, me dei conta também estivesse sempre impecavelmente maquiada. Agora
de que era você. estava só no escritório, e perdera as comissões que recebia antes.
— Mas isso é muito doido! Tenho uma lembrança de que Não podia nem reclamar, porque já tinha tido sorte de não perder
entrou alguém no quarto e disse que era psicóloga, mas isso se o emprego depois de ter precisado faltar tanto tempo, e sabia que
mistura com uma porção de outras lembranças. Naquele dia eu sua aparência não correspondia mais às exigências do trabalho.
estava fora de mim. Que coisa! Não podia contar com a ajuda de ninguém, ao contrário, era ela
— Pra mim também isso é muito estranho. E estamos aqui quem ajudava a mãe. Enfim, tinha receio de não poder pagar a
podendo conversar agora. Pra você tudo bem que eu já a tenha terapia.
visto naquele dia? A terapeuta lhe disse que poderiam fazer um acordo quanto
— Tudo bem. Por que haveria problema? Acho até bom. a isso. Pagaria o que fosse possível agora e depois fariam novos
Também não sei por que acho bom. Você me conheceu no pior acertos. Combinaram que ela viria duas vezes por semana.
dia que eu já vivi. Ela disse:
— Quis deixar isso claro para que, se começarmos uma — Eu tinha seu telefone na minha bolsa, mas estava adiando
terapia, não haja, de minha parte, alguma coisa que eu esteja a vinda aqui. Queria tentar sair disto sozinha, mas está
sabendo a seu respeito sem que você saiba que eu sei. Poderia complicado.
ser o caso de uma pessoa não querer ter sido vista naquela — Quando você diz "sair disto", o que é mais precisamente
condição de precariedade de alguém que acabou de sofrer um esse "disto"?
desastre daquele jeito. Não sei o que você pensa disso. Se não — Ora, é tudo o que se passou comigo. Minha vida não é
contasse isso agora, eu não ficaria à vontade com você. mais a mesma; tem hora em que não me conheço mais. Tenho
— Estou entendendo. Já disse que, por m i m , não há muita confusão na minha cabeça. Se começo a pensar muito, me
problema. Até pode ser bom, assim você sabe que não estou afundo numa depressão que não tem tamanho. Estou ficando com

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medo, a gente não sabe onde isso vai parar. Se não fosse a preender é abarcar, de alguma forma ela compreende o que acon-
terapeuta lá do hospital, acho que eu não ia aguentar. Era só com teceu na sua vida, alguma coisa que modificou tudo, mesmo que
ela que eu conseguia falar, era só ela que me ouvia. As outras olhe pra isso e só veja confusão na sua cabeça; e tenho de ad-
pessoas não suportam. A gente não tem com quem dividir. mitir que, de algum modo, eu também compreendo o que acon-
— Compartilhar ajuda a aguentar. E nós vamos poder teceu, compreendo como deve estar se sentindo. Se isso é
continuar a conversar aqui. horrível pra mim, imagino pra ela. Que vivência de medo deve
Conversaram mais um certo tempo e ela ficou de voltar dali carregar! Jogada na desproteção, no desabrigo de um mundo hos-
a dois dias. til, na dor de ter perdido tanto! É isso. Ela perdeu muito. Tristeza
e medo. Um medo ligado ao acontecido e que vai também para
o futuro. É isso. É a tal história da temporalidade. .O passado dela
Depois que a paciente saiu, a terapeuta permaneceu na sala não volta. O que ela pode esperar do futuro? O desejo é de sair
por um longo tempo. Estava admirada da coincidência. disso, é como o desejo de acordar de um pesadelo. Mas ela não
Sabia que precisaria de força para estar junto de alguém vai acordar desse pesadelo, porque isso não é um sonho. Ela não
sofrendo tanto. Sentiu um certo medo, mas não teve dúvida de tem mais o rosto perfeito que tinha. O que é mesmo corporeida-
que queria mesmo atender essa moça. de? Complicado. É isso. O fato de sermos corpo escancara nos-
Começou a pensar: "Ela quer ajuda pra sair disto, mas esse sa fragilidade!... Tem hora que não me conheço mais, disse ela.
sair disto precisa passar ainda por um longo entrar nisto. Não será Como deve ser difícil perder-se assim!... Ela quase não falou so-
possível cortar caminho. Diz que não se conhece mais, mas o que bre sua relação com as pessoas, a não ser que ajuda a mãe e que
é para ela esse não me conheço mais? Sei que tem a ver com a a terapeuta do hospital aguentou com ela coisas pesadas. O ser
alteração do rosto, mas o que mais? E a sua confusão? E a sua com os outros... E agora, eu com ela? Ela espera algo de mim.
tristeza? E o seu medo? Como é a sua história, e como ficará essa Eu estou com ela. Ainda não sei o que posso fazer por ela. Ela
história agora tão profundamente modificada?" está tocando a vida. Passo agora a fazer parte da sua vida. Como
Lembrou-se do encontro no hospital, do sofrimento que a me preocupei com ela no dia daquela visita no hospital! Naquele
impressionara tanto. "E agora, como vai ser esta terapia? Será que dia eu pensava nela, mas pensava também em mim. Aconteceu
vai dar certo? O que é mesmo que espero com esse dar certo? com ela, podia ter acontecido comigo. Sei o que eu estaria sen-
Minha vontade é ajudá-la; mas o que poderia ser ajuda? Não faço tindo se tivesse sido comigo. E se ela me perguntar: Por que eu?
ideia. Nunca vou poder devolver pra ela as coisas que perdeu... Não vou saber responder. Será que alguém sabe? O tal dar-se das
O que faço com a fenomenologia aqui? Nesta hora, o que vale coisas que ouvi naquela palestra! Mas tem cada coisa que se
aquilo tudo de que a gente fala — ser-no-mundo, ser-com e es- dá!... Deixa pra lá. Ah... aceitação. Era essa a palavra que o pro-
sas coisas todas que a gente estuda? O que faço com os tais exis- fessor falou naquele dia...; difícil entender isso. Também, estou
tenciais? Ontem mesmo a gente falava dessas coisas no grupo de querendo demais agora. Foi só uma primeira entrevista."
estudo. Compreensão é um existencial. E daí? Nem sei por que
pensei nisso agora. Acho que é porque não estou entendendo
nada, ela não está entendendo nada, ninguém entende nada quando
Mais tarde, já em casa, a terapeuta voltou a pensar no
acontece uma coisa dessas. Sem noção!... É, mas... se com-
atendimento que tinha aceitado fazer. "Será que isso de eu ter

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ficado tão emocionada naquele dia no hospital não vai atrapalhar? moça, ainda que ligeiramente num primeiro momento, como ela,
E a neutralidade do terapeuta, como fica? Preciso estar atenta pra particularmente, estava vivendo a sua dor.
não deixar que meus sentimentos se misturem com os dela. Isso Foi assim que surgiram aqueles: minha vida não é mais a
eu posso fazer. Deixar de sentir, ignorar o quanto essas desgraças mesma; não me conheço mais; confusão; depressão; medo.
súbitas mexem comigo, isso eu não posso. E nem acredito que o Apareceram também o seu querer sair daquele estado e a sua
terapeuta deva ser uma parede. Por que deveria ser? Eu e ela capacidade de confiar em alguém, quando ela se referiu à outra
somos gente, e, como gente, nós temos nossos sonhos. Não posso terapeuta. Uma pequena pergunta — o que é esse "disto"? —
fazer de conta que não sei o que significa pra uma moça o que tinha contribuído para uma aproximação daquele modo de existir,
ela está passando neste momento. Eu só não posso me afundar para abrir um caminho de pensamento.
na dor que é dela, que eu compartilho porque, sendo gente, dói Naquela hora bastava isso. Não era para aprofundar nada.
também em mim ver gente sofrendo. Mas é ela quem tem de se A terapeuta apenas deixou clara a sua disponibilidade para
apropriar da dor pelo que ela perdeu. Foi ela quem perdeu. Só conversar e compartilhar com ela o que viesse. Dizer mais teria
assim vou poder ajudá-la a se reencontrar, quem sabe." sido excessivo.

* *,

Era com aquela existência que a terapeuta tinha entrado em Na sessão seguinte, logo ao sentar-se, a moça começou a
contato. Aquele era o fenómeno que se manifestava na juventude, falar:
nas cicatrizes, nas lágrimas, nos gestos, nas palavras da moça. — Eu não sei por onde começo. Com a outra psicóloga,
Uma existência num momento de abalo, de corte, de interrupção estava tudo ainda tão perto, fazia só uns quinze dias; acho que o
do rumo planejado para a vida, de esvaziamento de sentido, uma que mais fiz foi chorar. Tinha ainda constantemente diante de mim
existência literalmente ferida. Ainda haveria muito para aparecer. a cena do acidente; todas as noites sonhava com isso. Era quase
Deixar que aparecesse, no meio de todos os encobrimentos que só disso que eu falava o tempo inteiro com ela. Precisava me
também viriam, poder pensar e p ô r em linguagem o que lembrar bem de como tinha sido tudo. Sabe que não me lembro
aparecesse; logos penetrando a manifestação: elas estariam direito dele na hora do acidente? Ora, nem contei ainda pra você.
fazendo uma fenomenologia. Eu estava com meu namorado. Sabe que nunca mais soube dele?
Num certo momento a paciente havia dito algumas coisas Só me disseram, ainda no primeiro hospital, que ele quase não se
que chamaram a atenção da terapeuta: estava adiando a vinda; machucou. Acho que me machuquei daquele jeito porque a lataria
queria poder sair daquilo sozinha. entrou no meu rosto. Sei lá. Também nem adianta querer saber
A terapeuta poderia ter se detido no porquê do adiamento da por quê. Já aconteceu mesmo. Eu fiquei desacordada na hora. Em
vinda, ou no sentido do querer sair daquilo sozinha, ou seja, sem seguida, por muito tempo, duas imagens não saíam da minha
ajuda. Mas escolheu outro caminho. Deteve-se no sair "disto", cabeça: o carro rolando e depois eu mesma, quando já estava no
dando ênfase para o que seria este "isto" do qual a paciente hospital, acho que algumas horas depois, passando a mão no meu
queria sair. Obviamente, ela sabia que essa palavra se referia à rosto e percebendo os ferimentos. Naquela hora, além da dor já
situação sofrida que estava sendo vivida. Mas ela queria ouvir da compreendi o estrago que tinha acontecido. Vou dizer uma coisa

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Bile Tatit Sapienza Do desabrigo à confiança

pra você: eu preferia ter morrido naquela hora. O que adianta como é agora; quando penso em como as coisas vão ser de agora
continuar vivendo desse jeito? Se eu digo isso, as pessoas falam em diante, fica tudo ligado a isto de agora. E isto de agora é tão
que não é certo a gente dizer isso. Mas só quem passa é que mim... O que vai ser de mim? Tenho sobrevivido dia por dia, mas
sabe... Estava falando do meu namorado. Ele simplesmente tem hora em que acho que não vou aguentar passar a vida desse
sumiu. Eu queria muito ter notícia dele. Eu gostava mesmo dele. jeito... Vai haver um momento em que não vou saber o que fazer.
Mas não quero que ele saiba de mim. Deus me livre de ele me Quando tento falar disso com alguma pessoa, já sei o que vem:
ver agora. Mas você não acha estranho ele nunca mais procurar "Você está viva, isso é o mais importante; aparência não é o que
saber de mim? Ele poderia perguntar por mim a algum conhecido. conta; você vale pelo que você é." Mas eu é que sei o que é
Ele sabe onde trabalho. Ele tinha meu telefone. Acho que ele não amanhecer de um jeito e na manhã do mesmo dia... Eu me
quer mesmo saber. Eu conhecia um ou outro amigo dele, mas conhecia do jeito que eu era antes. E agora? Não sou a mesma.
nunca mais vi ninguém. A gente em geral saía só os dois. Ele dizia Não é questão de aparência. Falei pra você há pouco que acho
que não queria me dividir com outras pessoas, que eu era só dele estranho ele não ter querido saber de mim. Não é nada estranho.
e ele era só meu, essas coisas, você sabe. Romântico como só Ele não pode mesmo querer mais nada comigo. Nenhum homem
ele. Olhe só, vim aqui hoje achando que não ia saber como vai se interessar por mim.
começar, e não parei ainda de falar. Não sei se pra começar a Isso tudo, de um ponto em diante, ela disse chorando.
terapia a gente deve contar primeiro algumas coisas assim como A terapeuta permanecia atenta e tocada pelo que via, pelo
idade, quem são os pais, se tem irmãos, essas coisas. Não sei se que escutava. E o pior era se sentir como quem nada tem a dizer.
é importante você saber disso antes de começar. Já fui falando Bem que se lembrou de alguma coisa referente a questões, por
de qualquer jeito.
exemplo, de auto-estima, de identidade: ela sente que não vai mais
A terapeuta ouvia. Percebia na paciente o seu querer saber ser querida, valorizada; com a mudança de seu rosto ela não está
qual era o modo certo de fazer terapia, mas o que aparecia mais podendo se reconhecer como sendo ela. Mas pensou:
principalmente eram o peso que o acidente tinha em sua vida e "Nossa, como isso é pouco! Tenho até vergonha de dizer pra ela
o incómodo com a indiferença do namorado. A terapeuta também alguma coisa desse tipo. Como aquilo tudo pelo que ela está
pensou: "Estranho isso de ele não querer saber o que aconteceu passando vai caber em conceitos?" Então disse apenas:
com a namorada." Mas não falou nada sobre isso, pois não vinha — Você pode falar todo o tempo que quiser sobre o seu
ao caso esclarecer uma possível maneira estranha de ser de outra sofrimento, que estou vendo que é muito grande.
pessoa que não a sua paciente. O importante era que a moça — Tem sido difícil suportar sozinha a tristeza que sinto. Pois
pudesse falar do quanto ela achava isso estranho. Depois disse: a verdade é esta: estou sozinha. Ainda nos primeiros dias, as pes-
— N ã o se preocupe em falar numa certa ordem ou soas estavam muito abaladas com o que tinha acontecido e me
sequência. Fale o que você tiver vontade. davam espaço pra que eu pudesse estar infeliz; eu tinha dores no
— Acho que vou falar muito da mesma coisa, porque a corpo, as cirurgias do rosto eram recentes, enfim, é isso. Mas nin-
minha vida está resumida nisto: o que aconteceu e o que vai ser guém está aí pra ficar suportando tristezas dos outros por muito
de mim agora. Parece que as outras coisas, pois é óbvio que tempo. As pessoas têm mais o que fazer na vida além disso, não é?
existem outras coisas na minha vida, foram todas engolidas por Conversaram algumas outras coisas até o final da sessão, e,
isso. O jeito como tudo era antes é sempre comparado com o quando acabou, ela disse:

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— Obrigada por ter me ouvido. É uma pessoa que se feriu gravemente num acidente. Já não
estamos mais no domínio da mera objetividade neutra. A
existência dela caiu sob o foco do nosso olhar. E, quando a
A moça, depois que saiu, pensou: "Falei mais do que existência entra em foco, abre-se o mundo humano, o mundo dos
imaginava. Ela parece legal, é tranquila. Do jeito que estou, acho significados. O que é um acidente assim para essa pessoa? Como
que é duro pra a l g u é m me aguentar. Nem eu estou me fica o mundo dela? Como tem sido a sua história? Como vai ser
aguentando. Mas uma coisa ficou bem clara pra mim: não esqueci de agora em diante? Por que acontecem coisas assim? Como isso
ainda o fulano e não engulo isso de ele não ter se preocupado em repercutiu nas pessoas que a conhecem?
saber de mim. Tinha a impressão de que já era caso encerrado, Por exemplo, como ficou a pessoa que dirigia o carro na
mas o assunto foi ele. Fazia tempo que não falava dele. Nem hora do acidente? Sei que era seu acompanhante quem dirigia.
gosto de contar essa mágoa pra ninguém. Remoer coisas sem Aliás, uns dias antes, ele havia dito a seu terapeuta: "Tenho saído
solução me dá raiva. Ninguém pode me dar de volta o que eu tinha, com uma gata, coisa fina." Após o acidente, não sei qual foi seu
o que eu era. O que é que vai adiantar ficar falando pra ela? Pode comentário com outras pessoas, mas, com o terapeuta, o que ele
ser que eu acabe pior de tanto remexer. Dá vontade de entregar conseguiu exprimir de mais profundo foi: "Cara, a gata deu zebra."
os pontos, deixar como está." Isso mostra um modo de ser-no-mundo-com o outro. E como seria
Foi para casa e avisou a mãe que não queria jantar. Disse o modo de ser dela com relação a ele?
que estava com dor de cabeça e foi para o quarto. Chorou como Como terá se sentido a mãe dela? E seus amigos?
nos primeiros dias após o acontecido e pensou: "Voltei pior de lá." Para aquela psicóloga, que a viu machucada e agora é sua
terapeuta, isso tudo foi motivo de muitas indagações sobre a vida,
* não só o desastre em si, como também a coincidência de encontrá-
la de novo como sua paciente.
Agora, você que está lendo, olhe isso tudo com bastante Neste começo de terapia, a terapeuta está se sentindo
objetividade. O fato é que na estrada tal, no dia tal, um homem e insegura. Depois do primeiro atendimento, teve a impressão de que
uma mulher viajavam num carro que rolou numaribanceira.Com não sabia nada. Pensou: "Nem sequer consigo ver qual é a queixa
ele não aconteceu quase nada, e ela ficou gravemente ferida, principal dela. Parece que toda ela é uma queixa só. Não sei por
principalmente no rosto. Foram atendidos no hospital X. Ele foi onde a gente vai começar. O que eu tenho pra dizer a ela? O que
logo liberado e ela, após os primeiros socorros, foi removida para será que ela acha que posso fazer por ela? Será que ela não vai
outro hospital, onde sofreu algumas cirurgias no rosto. ficar cada vez mais deprimida, e, se for assim, o que pode
Esse é o fato, que pode aparecer numa notícia de jornal como acontecer? Nem quero pensar!"
tantas outras equivalentes e até piores. Já estamos acostumados
com tantas tragédias; lemos, pensamos um pouco nos perigos que *
nos rodeiam, lastimamos que seja assim, e vamos cuidar da vida.
Mas, neste caso, estamos aqui envolvidos com essa moça No dia marcado para a próxima sessão, a paciente teve
que sofreu o acidente. Não é a ocorrência de número tal entre vontade de não ir. Lembrou-se de que no outro dia havia voltado
outras naquele mês, naquela estrada. J á não é mais um mero fato. mais triste de lá. Mas, em seguida, mudou de ideia: "Eu vou hoje.

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Preciso falar pra ela uma coisa. Não posso ficar sozinha com Enquanto isso a terapeuta pegou outra caixa, deu para ela e
isso. Pra quem mais posso falar? Só espero que ela me entenda." falou:
Foi para a sessão. Quando chegou, entretanto, em vez de — Chorar pode fazer bem.
entrar logo no assunto que havia planejado, começou a falar de — Eu sei. Não há mesmo mais nada que eu possa fazer. Só
outra coisa. Achou importante contar o que tinha sentido ao voltar que não sei até quando suporto viver desse jeito. Não vejo solução
para casa no outro dia. pra minha vida. Está difícil, entende? Não tenho mais direção,
— Na sessão passada, depois que saí daqui, me senti muito porque eu tinha um caminho pra seguir, mas agora acabou tudo
mal. Será que vale a pena a gente ficar remexendo no que já em nada. A minha vida ficou muito sem graça. Não há sentido em
passou? Não há nada que possa ser mudado na minha vida. Vou nada. Sabe que de uns tempos pra cá tenho um sonho que se
falar, você vai me ouvir, mas o que adianta? Já faz seis meses que repete muito? Não sei bem como é a história do sonho, mas
tudo aconteceu. Nos primeiros dias, nas primeiras semanas, eu sempre há um pedaço em que escurece o céu e, de repente, é
estava como alguém que explodiu. Parece que havia pedaços de noite..., e me dá muito medo aquele escuro..., muito medo. Não
mim jogados pra todo lado. De um dia pro outro minha vida tinha vejo nada. Acordo sempre nessa hora, e é difícil dormir de novo.
se transformado numa coisa que eu não sabia o que era. De No dia seguinte, me levanto cansada. Quando acontece isso, fica
repente, eu estranhava tudo, eu me estranhava, não sabia como complicado trabalhar. Acho que esse sonho tem tudo a ver
lidar comigo mesma; não queria me olhar no espelho; não queria comigo. Sabe que é assim mesmo que me sinto? Eu estou no
que me vissem. Via que as pessoas também não sabiam como agir escuro. É assim: nunca mais vai amanhecer o dia... Nunca mais.
comigo. Algumas ficavam com pena, outras queriam parecer que Ontem mesmo tive esse sonho. Você não concorda comigo?
não achavam nada tão terrível. O médico que me operou foi — Você quer saber se concordo com a sua compreensão do
superlegal comigo. Ele sim, parece que ele via o quanto eu estava sonho ou pergunta se acho que nunca mais vai amanhecer o dia?
mal. Disse que eu tinha me machucado muito, que seria preciso — Tinha perguntado sobre o sentido do sonho, porque acho
reconstituir meu rosto. Eram vários os cortes que ele teria de que o sonho da gente sempre quer dizer alguma coisa, não é? Eu
suturar. Fiquei o maior tempo na sala de cirurgia. E depois, então, já li sobre isso nas revistas. Agora, quanto à outra coisa que você
quando já tinha voltado pro quarto, que susto levei na hora em que falou, sei que nunca mais vai amanhecer o dia. Você entende o
fui ao banheiro e olhei no espelho. Parecia um monstro. Chorei que quero dizer?
muito. Nessas primeiras noites me davam um remédio pra dormir. — Entendo o que você está dizendo. Parece que o seu
E quando, já livre dos pontos, pude enxergar bem as cicatrizes! sonho mostra mesmo o momento que você vive agora: momento
Nossa, naquela hora pensei: "Por que não morri?" de uma mudança repentina, a impossibilidade de enxergar
A terapeuta ouvia, atenta ao que era dito e à emoção que qualquer coisa, porque falta luz. O escuro assusta. E você acorda
estava ali. de tanto medo. O medo é de quê? Medo daquilo que j á
A moça parou um pouco e pegou a caixa de lenços na aconteceu? Medo do que está por vir? Ou será medo porque não
mesinha que estava ao lado. Só então a terapeuta percebeu que há nada por vir? Medo porque não há futuro?
os lenços estavam quase no fim. — É medo de tudo. Mesmo quando não tenho sonho
— Acabei com seus lenços. E só começar a falar e dá nisso. nenhum, muitas vezes acordo assustada. Faz muito tempo que nâo
Virei uma chorona. durmo direito. Você falou de futuro. Eu não tenho mais futuro.

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Quando não se tem o que esperar, mesmo que a gente ache que enxergar alguma coisa que não tenha se estragado por completo,
vai continuar vivendo, não importa por quanto tempo, isso não é ou, talvez, alguma coisa não esperada possa acontecer.
a mesma coisa que ter futuro. Como é que a gente vive sem — Não sei o que é pior, se é o vazio, o escuro onde não há
futuro? nada pra se ver ou se é o mim que pode vir a qualquer hora. Sabe,
— Será que não há futuro ou será que você não vê futuro na verdade, eu não quero esperar nada. Esperança é coisa que
porque está escuro agora? não existe pra mim.
— De um jeito ou do outro, é a mesma coisa. Não posso ver — É isso. Ainda está tudo escuro. Vamos viver algum tempo
nada porque está escuro, e, ao mesmo tempo, porque não há nada no escuro.
lá na frente pra ser visto. Eu sei que é assim. Tudo o que eu A moça já tinha parado de chorar. Recolocou a caixa de
pretendia da vida, desde menina, acabou aqui nesta escuridão que lenços em cima da mesa e disse:
me dá medo. E como na noite do meu sonho. E eu queria tanta — O pior é que, esteja claro ou esteja escuro, a vida não quer
coisa! saber disso. Com ânimo ou sem ânimo tenho de dar conta do meu
— E se, na sua noite, ao menos surgisse a lua pra clarear trabalho. Pensando bem, até é bom. Se não fosse isso, minha
um pouco, uma luazinha, só quarto crescente, depois, quem sabe, cabeça já teria estourado. Quando estou muito envolvida com o
uma lua cheia? Será que daria pra enxergar alguma coisa? E, se trabalho, consigo me livrar um pouco dos meus pensamentos
desse, o que você veria? mins. Nos fins de semana fico pior. Ainda bem que tenho umas
— Imagine só! A minha noite não tem lua nenhuma. E, amigas que me chamam pra fazer qualquer coisa, quase sempre
mesmo que tivesse, não ia adiantar nada. Pode ser até que desse um cinema. Não curto mais ir a lugares movimentados.
pra ver alguma coisa, mas seriam só coisas ruins. Não me iludo — Que pensamentos mins são esses que você tem?
mais. Não espero mais nada de bom. — Tudo o que aconteceu. Isso me tira a vontade de viver...
— E as coisas que acontecem na vida são só aquelas que Ter obrigações na vida é o que me segura. O trabalho tem sido
a gente espera? a minha salvação.
— Certamente não. Você pergunta isso justo pra mim! Não Ela passou a falar da sua rotina diária de trabalho, de um ou
vale a pena fazer planos. Quem passou pelo que eu passei não outro colega, do filme a que tinha assistido no último fim de
espera nada. A gente não sabe de nada, não sabe do dia seguinte, semana.
não sabe nem do minuto seguinte. Bobo é quem fica imaginando: E assim a sessão tomou um ramo mais leve.
"Vai ser assim, assim, vou fazer tal coisa, isso, aquilo." Tudo A paciente olhou no relógio e disse:
besteira. Sem mais nem menos, sabe-se lá o que está por vir. — Passou rápido. Já estamos terminando, não é? Engraçado,
— Pois então! hoje eu tinha vindo com vontade de falar especialmente sobre uma
— Então o quê? coisa, e acabei falando de outra. Fica pra outra vez.
— Ora, como saber o que pode ainda acontecer?
— Eu só sei que na minha frente o que há é só um vazio.
— Quem sabe, se você começar a aprender a perceber as A moça foi para casa e, antes de dormir, ao fechar a janela
coisas mesmo no escuro, você vai poder distinguir um pouco mais do quarto, viu um risquinho de lua. Lembrou-se da conversa que
o que ainda faz parte da sua vida, e, no meio disso, talvez possa houve na terapia e olhou de novo. "Era só o que faltava, eu aqui

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prestando atenção nessa bobagem", pensou. E olhou mais uma vez


antes de fechar a janela.
Na outra sessão a paciente demorou uns dez minutos para
chegar. A terapeuta pensou: "Será que ela não vem?"
A terapeuta permaneceu ainda mais um tempo no consultório
Logo ao chegar, ela se desculpou pelo atraso; disse que
e começou a se lembrar da sessão: "Ela repete tanto que não sabe
precisou ficar mais um pouquinho no trabalho. Em seguida
até quando aguenta, que preferia ter morrido. Será que pensa
começou a falar:
realmente em morrer? Pode ser só força de expressão, e pode
— Queria conversar sobre uma coisa aqui. Isso me
não ser. Disse que tem obrigações na vida. A que será que ela se
incomoda muito. Já contei pra você que estava com meu
refere? Interessante o sonho. Parece um sonho exemplar. Não
namorado naquele carro. Meu namorado..., já nem sei se ele era
vai mais amanhecer. Se o dia não amanhece não há o dia seguinte.
meu namorado. Saíamos juntos muitas vezes, todos os dias ele me
Ela perdeu o futuro. Viajei no sonho dela. Parece que senti o
mandava flores. Não sei mais se isso é namorar. Mas o fato é que
medo que ela sente do escuro repentino. Também sinto uma coisa
estava com ele naquele dia, voltando da praia. Saímos de uma
meio estranha quando o tempo fecha de repente. É opressivo. Dá
a impressão de que vai cair uma tempestade. Mas parece que a festa quase de manhã, tomamos café na padaria e pegamos a
ameaça que ela sente é diferente, a tempestade dela já houve. O estrada. Tá certo que eu tinha bebido, mas ele tinha bebido muito
que assusta é nunca mais poder sair disso. Acabei falando aquela mais, isso sem contar o resto. Em resumo, ninguém ali tinha
história de lua. Será que foi meio bobo? Será que ela percebeu o condição de dirigir. O certo teria sido descansar ao menos um
que eu quis dizer pra ela? Acho que essa história ainda vai voltar. pouco antes. Foi loucura. E ainda havia neblina. Mas ele insistiu
Como é mesmo o nome daquele texto? A h . . . é Desfecho: em vir. E aí deu no que deu. Não vi como foi o acidente, acho que
encerramento de um processo. Foi aí que l i alguma coisa sobre peguei no sono um pouco antes. Numa certa hora, só v i o carro
a compreensão que começa na penumbra, sobre a necessidade de virando morro abaixo, e, quando parou, vi que havia sangue. Acho
não ter pressa. Ainda bem que hoje isto caminhou; estava com que eu tinha tentado proteger o rosto com as mãos. O cinto de
medo de me sentir perdida na sessão. Ah, se acontecesse alguma segurança impediu que eu fosse jogada pra fora, mas assim
coisa boa na vida dela! O que é que poderia ser bom? Não faço mesmo devo ter me batido muito dentro do carro. Depois não vi
ideia. Neste momento, se alguém me perguntasse pra que serve mais nada. Daí só me lembro de estar no hospital, alguém limpava
a terapia, ia ser difícil dizer. A gente pode tão pouco! Por que uma meu rosto, me deram algum remédio e dormi. Não o vi mais.
pessoa que está tão infeliz pega o carro, enfrenta o trânsito, e Quando consegui melhorar daquele estado, perguntei por ele, e me
vem se encontrar com a gente? Vou levar este atendimento pra disseram que ele estava bem e já tinha tido alta. Soube também
supervisão. Do jeito que ela estava no dia do acidente..., é incrível que minha mãe tinha estado lá. A tarde fui removida pro outro
o quanto ela está melhor. Naquele dia, pensei que não houvesse hospital, onde fiz as cirurgias. Aí minha mãe me contou que ele
o que fazer. O médico dela deve ser bom mesmo. Hoje dá pra havia sido muito bom, tinha pago os primeiros socorros, a
perceber como ela é. Falou que o médico havia dito que teria de remoção de ambulância, enfim..., e que depois entraria em
reconstituir seu rosto. Isso que é técnica! Ainda bem que isso contato comigo. Estou esperando até hoje... Só tinha o número do
existe. E a nossa técnica? Não dá pra pensar por aí. Não posso celular dele. Ele me dizia que seu trabalho era prestação de
pensar em reconstituir a vida dela. O que será que eu posso?" serviço de informática pra várias empresas, não tinha um lugar

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fixo de trabalho. Então, fiquei sem nenhuma referência. Começo perdido a memória. Daí ela me disse que tinha comentado isso na
a falar e me desvio; o que queria comentar hoje com você é isto. cabeleireira, e uma psicóloga que estava lá explicou que, mesmo
Já aconteceu de, em conversa comigo, pessoas do meu trabalho sem perder a memória, eu devia ter me esquecido disso porque
me dizerem qualquer coisa que indica que elas acham que era eu pra mim era difícil admitir que eu tivesse feito uma coisa tão
quem estava dirigindo naquela hora. Elas falam como quem tem horrível. Então, veja, não tenho saída. Você vê saída?
certeza. De onde será que vem essa ideia das pessoas? E tem — O que você considera como saída? Seria conseguir que
mais. Minha mãe também j á me disse isso. E não era eu. Não que acreditem em você?
isso faça diferença agora. Mas não era. Não estou ficando louca — Acho que mereço que acreditem em mim. Veja bem,
pra inventar isso. Sabe o que minha mãe chegou a me falar? "Tudo quanto a tudo o que aconteceu, sei que não vai mudar nada se
bem que você não se lembre; você bateu muito a cabeça..." Isso acreditarem ou não. Mas pra mim faz muita diferença. Chego a
é um absurdo! Como se n ã o bastasse tudo o mais, isso me ter medo de começar também a desconfiar de mim. Será que vai
incomoda muito. Digo pra pessoa que era ele quem estava acontecer isso?
dirigindo; a pessoa acaba dizendo que isso não é o importante e — Ninguém pode testemunhar a seu favor, não é?
fica com uma cara de quem tolera que eu esteja mentindo, ou que
— É isso. Estou sozinha até nisso. Pensando agora. Você...
esteja com a cabeça atrapalhada, sei lá. E fico com isso só pra
você acredita em mim?
mim. Por que tenho de passar por isso também? Será que, de
— Não tenho nenhum motivo pra não acreditar em você...
repente, vou ter de acreditar mais nos outros do que em mim? Às
Mais que isso. Acredito em você.
vezes penso: "Como será que socorreram a gente? Será que
Quando a terapeuta disse isso, não foi para tranquilizar a
quem ajudou a gente a sair lá de baixo não viu que eu estava do
moça. Era realmente o que sentia. Ao dizer "acredito em você",
lado do passageiro?" Não v i nada, estava desacordada. Mas não
ela pensou: "Até agora nada me dá motivo pra não acreditar nela."
posso duvidar de mim. Pense bem: por que eu iria inventar uma
coisa dessas? A moça teve uma expressão de alívio. Ficou quieta por algum
tempo e disse depois:
Diante disso, a terapeuta se percebeu sem ter o que falar. — Já estava desistindo disso. Que bom!
A paciente ficou quieta por algum tempo. A terapeuta se lembrou Isso foi o que aconteceu de principal na sessão desse dia.
de que o modo como a pessoa vê uma situação pode ser mais
importante que o fato acontecido. Mas pensou também que, neste
caso, a q u e s t ã o da paciente era diferente; dizia respeito Depois que acabou, a terapeuta começou a refletir sobre o
exatamente ao fato de ela estar passando por mentirosa ou por andamento daquele encontro e pensou: "Será que estou sendo
incapaz de se lembrar de algo tão importante. Essa era a questão ingénua nisso? E se isso for uma invenção meio delirante? Ou até
da paciente no momento. E a questão da terapeuta era: como é uma mentira mesmo? Mas por que também n ã o pode ser
que eu entro nisso? verdade? Se o acidente foi no início da manhã, ainda devia estar
A moça continuou: escuro, com neblina; se ninguém viu o que aconteceu, só vale a
— Não é fácil. Posso ter muitos defeitos, mas mentirosa palavra do namorado. Por que ele seria mais confiável que ela?
nunca f u i . Também não quero que pensem que estou É verdade que ele deve ter providenciado o resgate, talvez tenha
desmemoriada. Um dia falei pra minha mãe que eu não tinha chamado gente pra ajudar; também pagou o hospital. Mas

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também é verdade que sumiu depois. É estranho alguém sumir sério, pois para ele as mulheres eram todas iguais, só mudando a
desse jeito. Ela não parece de nenhum modo alguém fora da embalagem. Na sessão seguinte ao acidente, diante da pergunta
realidade. Acho que é por isso que acredito nela. Pelo menos do terapeuta a respeito do que havia sentido quando viu o rosto
agora é assim. Também não é minha função ser detetive. Deve dela desfigurado, respondeu: "Sou muito sensível pra essas coisas,
ser duro saber que os outros suspeitam assim da gente. Como se não aguento ver sangue. Senti nojo."
não bastasse tudo o mais, como diz ela. Sem contar com a Sei também que a partir desse dia seu terapeuta sentiu que
primeira entrevista, hoje foi nosso terceiro encontro. Ainda é muito não tinha mais condição de atender esse paciente.
pouco pra saber como isto vai caminhar." Fizeram mais algumas sessões até que um dia o terapeuta
disse a ele mais ou menos isto:
— Temos de conversar sobre uma coisa. Faz j á algum
A moça foi para casa, conversou um pouco com a mãe, e tempo que estamos juntos neste processo de terapia. Acho que
depois folheou uma revista que estava por ali. Fazia muito tempo conseguimos falar sobre uma porção de coisas da sua vida, seus
que não lia nada. Ainda com a revista nas mãos pensou: "Ela interesses, algumas questões de trabalho, enfim, parece que
disse que acredita no que digo. Ainda bem. Parece que acredita conseguimos... Bem, mas agora, estou sentindo que alguma coisa
mesmo. Será que disse isso só pra eu me sentir melhor? Mas se não está caminhando como acho que deveria. Certamente que é
fosse só isso, acho que ela iria falar só a primeira parte, quando
limite meu. Em alguns momentos não estou à vontade com você
disse que não tinha motivo pra não acreditar; mas ela acrescentou
em questões que esbarram muito de perto com valores que são
que acredita em mim. Também acho que uma psicóloga não fala
meus. Isso prejudica o andamento da terapia. Acho que outro
coisas só pra agradar. Aquela que me atendeu lá no hospital me
profissional poderia atender melhor você. Não é certo prolongar
disse algumas vezes coisas duras de ouvir, mas que eu precisava
a terapia deste jeito. N ã o sei se você percebe o que está
ouvir."
acontecendo da mesma forma como eu percebo.
Foi pensando coisas assim que ela dormiu nessa noite um — Pra falar a verdade, nunca reparei nisso. Acho que a
pouco menos infeliz.
gente conversa legal. Se bem que, às vezes, você sai com umas
perguntas muito caretas. Mas nem todo mundo pensa como eu,
*
sei disso. Se você não quer mais me atender, ora ... não tem
problema nenhum. Valeu. Acho que até já durou tempo demais!
Até agora estivemos falando sobre essas duas pessoas, a Foi bom pra eu ver bem quais são mesmo os planos que tenho pra
moça acidentada e a psicóloga que passou a atendê-la como minha vida. E isso, é legal a gente se ouvir falando. Mas, cara, isso
paciente. Outra pessoa muito importante nesse caso, entretanto, me pegou de surpresa. Essa história de que é limite seu, de que
é o homem que estava com ela naquele carro. não é certo continuar a terapia desse jeito, é tudo um jeito de me
A respeito dele, sei muito pouco. Sei que quando aquilo mandar embora. E chato isso, sabia? Não acho legal ser mandado
aconteceu fazia pouco mais de um ano que ele estava em terapia. embora. É traição da sua parte.
Ao começar o caso com a moça, contou para seu terapeuta que — Se esse tempo serviu pra você pensar realmente quais
ele estava saindo com uma garota linda, corpo perfeito e "o rosto,
são os seus planos pra sua vida, que bom! Quanto ao mais,
então, difícil um mais bonito". Acrescentou que não era nada
acredite: não posso continuar seu atendimento. Tenho aqui os

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nomes de duas pessoas que você poderá procurar. E espero, de — Quantos anos você fez?
verdade, que dê certo. — Vinte anos.
O paciente colocou no bolso o papel com os nomes e disse Chorou ao dizer isso, e acrescentou:
com ironia: — Não pensava que seria assim. Fazer vinte anos era pra
— Vou pensar no seu caso com carinho. ser um marco na minha vida. Desde pequena eu achava que era
A conversa acabou aí, porque em seguida o paciente se o máximo fazer vinte anos: a gente já não é uma menininha, e a
levantou, abriu a porta e saiu sem se despedir. vida está inteira. Cheguei deste jeito... Só desilusão.
Depois disso, não soube mais dele. Não sei se procurou outro — Muita desilusão. Mas será que assim mesmo a sua vida
terapeuta. não está aí? É certo que ela tomou outro rumo, mas...
— Que é isso...? Não é que só tenha tomado outro rumo.
* Minha vida acabou. Isso sim! Estou viva, mas nada tem sentido.
Não posso planejar nada. E a gente não vive sem planos.
Quanto à terapia da moça, que j á dura uns três meses, as — O que aconteceu não cabia nos seus planos. O que não
sessões têm decorrido num clima depressivo, em que predominam é planejado também acontece. A gente não se dá conta do quanto
pensamentos como estes: "Que coisa é essa, a vida, em que, de a vida está em aberto, até que topa com o imprevisto.
uma hora pra outra tudo muda? Por que essas puxadas de tapete? — Ponha imprevisto nisso! Justo comigo, um imprevisto
Por que comigo? Sofrimento tem alguma finalidade?" desse tamanho! Por quê? Sempre planejei a minha vida. Sabe,
A terapeuta acompanha suas falas atentamente, com um desde pequena nunca fui maria-vai-com-as-outras; sabia o que
interesse genuíno, e, frequentemente, tem a impressão de que nada queria. Até pra comprar roupa eu preferia juntar algum dinheiro
tem para oferecer à paciente. E pensa: "Essas perguntas também que desse pra comprar o que era do meu gosto. As vezes
são minhas. Qualquer coisa que eu quisesse dizer a ela com a acontecia de nunca chegar a hora de comprar porque, quando
pretensão de responder soaria falso."
tinha juntado o dinheiro, aquilo já tinha acabado na loja. Nem sei
A moça sempre compara a sua vida de antes com a vida de por que estou falando disso, não vem ao caso agora. Já sei. Estava
agora. Antes, o maior prazer em ir a festas, em sair com amigos, dizendo que tinha vontade própria. Fazer planos era comigo!
muitas paqueras. Hoje, raramente sai. Vai uma vez ou outra ao
Nossa, quanto devaneio! Mas não eram coisas absurdas. Sabia
cinema, de vez em quando vai com uma amiga para a praia. Não
que não podia contar com minha família. Quando meu pai morreu
tem vontade de conhecer ninguém. Não gosta quando encontra
eu tinha dez anos e minha irmã cinco. Foi muito duro pra minha
velhos conhecidos.
mãe criar a gente. Ainda bem que me deram uma bolsa no colégio
* onde eu estudava e consegui acabar o segundo grau. Minha irmã
ainda está lá. Mas não pude ir em seguida pra faculdade; cursinho
é caro. Além disso, me envolvi muito com meu trabalho. Minha
Outro dia ela falou para a terapeuta:
mãe sozinha não dá conta de tudo. Ela já trabalhou muito e não
— Ontem foi meu aniversário. Minha mãe fez um bolo pra
tem boa saúde. Eu pago o curso de inglês da minha irmã. Não
mim. Eu não quis chamar ninguém pra ir lá em casa. Mas tive
estou reclamando, não. É só pra dizer que, desde cedo, percebi
uma surpresa lá no meu trabalho. Eles levaram bolo com velinha
que a vida não era fácil e que eu dependia de mim mesma.
e tudo.

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Entende? Isso faz a gente não ficar à espera do que aconteça. A — Você fala sobre seus planos de trabalho. E fala também
gente tem de fazer acontecer. que perdeu a confiança na vida, perdeu a confiança na
— E, não dá pra ficar só esperando sem fazer nada. possibilidade de seus planos darem certo. Essa desconfiança vem
— Eu não tenho dúvida. Nada cai do céu. a partir do seu acidente, não é? Mas por que o acidente a
— A gente tem de fazer o que pode ser feito pra conseguir impediria de realizar o trabalho de que você tanto gosta?
o que acha importante. Mas isso não dá garantia de que aquilo se — Dói ter de admitir isto. Dói dizer isto com todas as letras:
realize. O que acontece resulta da ação da gente e também de eu fiquei feia. Veja bem: f-e-i-a. É a primeira vez que pronuncio
uma porção de outras coisas que a gente não controla. Você não essa palavra em voz alta pra me referir a mim. Sempre falo coisas
concorda com isso? como "o que aconteceu comigo", ou "já não sou como era antes",
— E. Infelizmente às vezes é assim mesmo. As coisas ou "não me reconheço", coisas mais ou menos assim. Me dói
podem fugir do controle da gente. Disso eu sei. Mas, no meu dizer isto. Hoje eu sou feia. É assim que estou comemorando
caso, foi demais! Quando uma coisa acontece a tal ponto fora de meus vinte anos. N ã o é só uma questão de poder ter um
qualquer expectativa, tão absurdamente, dá vontade de largar de determinado trabalho. Mas o trabalho com que sempre sonhei me
tudo. A gente se desilude completamente, perde a confiança na lembra a toda hora o que me aconteceu, quer dizer, me lembra que
vida. Eu estou assim. estou feia. Não me acostumo-com isso. Sabe, de manhã eu tomo
— Vejo que você perdeu a confiança. Mas como era a sua banho, escovo os dentes, passo um pente no cabelo de qualquer
confiança antes? Em que você confiava e depois deixou de jeito, um batom e saio, mal me olho no espelho. Eu não era assim.
confiar? Não gosto mais de me ver. Você acha que posso achar graça em
— Ora, eu sempre achei que a gente andando direito, fazen- circular pelos lugares onde só se fala de beleza, eu, com esta
do as coisas como devem ser feitas, a vida tinha de dar certo. cara?
— O que você considera que é dar certo a vida? Com aquela pergunta relativa a planos de trabalho, a
— Cada um sabe o que considera que é dar certo a sua vida. terapeuta tinha tido a intenção de aproximar para a moça a ideia
Acho que dar certo é realizar o que faz a pessoa feliz, é poder de que sua vida não estava completamente fechada. Aliás, ela
seguir o caminho que a gente planejou. continuava a trabalhar na mesma empresa de antes, e, segundo
— E o que você planejou pra sua vida? o que havia contado, estava se dedicando muito às suas novas
— Ah, tanta coisa! Sempre quis ser uma mulher com uma funções. Mas o que aconteceu foi outra coisa: o pensamento da
profissão, e há muito tempo decidi que queria trabalhar nessas paciente seguiu outro mmo, entrando fundo no foco de sua dor.
coisas que dizem respeito à estética facial, corporal. Eu me E, chorando, a paciente continuou:
imaginava lidando com cremes, maquiagem, produtos pra cabelos, — Vinte anos ontem, e deu tudo errado.
tudo que se refere à beleza. Isso pode parecer uma futilidade, mas E a terapeuta pensou: "E agora? Ela tem razão no que está
pra mim não. Quando era criança e me perguntavam o que eu falando. Uma vida toda baseada no fato de ser bonita. O que eu
queria ser quando crescesse, dizia que queria ser dona de salão digo pra ela?"
de beleza. Talvez essa ideia tenha vindo porque parece que já Enquanto ainda pensava no que diria, ouviu da paciente:
nasci vaidosa. Gostava de brincar de arrumar o cabelo das — Você sabe o que significa dar tudo errado? Aquilo em que
meninas, de maquiar as bonecas. a gente apostou, de repente, diz: isso não é pra você, você não

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serve mais; bate com a porta na cara da gente. Falando assim, — Esse era um génio; já ouvi falar dele, mas eu não sou
você pode até pensar que fui sempre fútil. As pessoas costumam Beethoven.
dizer que beleza não é tudo, nem é o mais importante. Mas era — Não, não é. Você é você. Mais bonita ou menos bonita,
assim que eu me conhecia. E nunca tirei vantagem da minha você é você. Ainda se tivesse ficado feia, você é você. O que
aparência. Você entende? Não faltam homens dispostos a fazer você tem pra dar ao mundo?
de tudo por causa de mulher bonita. Ficam bobos. E há alguns — Nossa! Eu levei a maior paulada do mundo. Se tiver de
velhos ricos, então, que são piores. Ainda mais depois que dar alguma coisa vai ser só a minha revolta. Não tenho mais nada.
inventaram o viagra. Coitados, eles se sentem tão poderosos!
Me tomaram tudo.
Qualquer dia te conto as cantadas que já levei. Mas tive uma boa
— E o que você pretende fazer pra manifestar a sua revolta?
formação. Acho que isso vem da educação que minha mãe me
deu. Eu sabia que era bonita, e procurava fazer disso uma coisa ^ — Sei lá!
que me abrisse portas para o trabalho. Não nego que sentia muito — Pense um pouco. Se revoltar contra o mundo, ora, isso
prazer quando as pessoas me olhavam, me elogiavam, é natural. é muito vago. O mundo vai se importar com a sua revolta? Que
Qualquer mulher sabe que isso é muito bom. Eu pretendia amar coisas do mundo vão ser atingidas por ela? Árvores, casas, carros,
uma pessoa, queria casar, sabe? Como é que vai ser isso agora? cachorros, ou o quê? São as pessoas? Que pessoas?
Não sei como começaria um namoro. E não é só por causa das — Sei lá! As pessoas más.
minhas cicatrizes. Há uma outra coisa. Como é que vou acreditar — Pessoas más não costumam se importar com isso.
num homem agora? Estava gostando dele, entende? Não sei o que — Depende. Mas, de alguma forma, essas pessoas têm de
pensar dele. Como é que uma pessoa some assim? Confiar em pagar pelo que fazem.
quem? — Ao dizer isso, você pensa mais exatamente em quem?
— Nele. Ele não pode simplesmente fazer o que fez e ficar
— Você tem razão nisso tudo. É duro levar da vida uma
tudo por isso mesmo. O desastre foi culpa dele. Depois pagou o
puxada de tapete como essa que você levou. Veja, mesmo
sabendo que o sofrimento de cada um é único, sabe o que me hospital, grande coisa! Queria ver se eu tivesse morrido. Como é
vem à lembrança neste instante? Um compositor, um grande que ele ia fazer pra se ver livre de mim? Ia me deixar largada lá?
músico que fica completamente surdo. Olhe o que a vida apronta! Pensei muito em morrer depois. Quando comecei a vir aqui eu
Já pensou no que significa para um grande músico não poder ouvir pensava nisso. Tenho ainda em casa uma caixa dos remédios que
a música que compõe? Você j á ouviu a Nona Sinfonia de tomei pra dormir no hospital. Era só tomar tudo de uma vez. Ou
Beethoven? Pois ele mesmo não ouviu. Ele tinha consigo os sons, podia fazer qualquer outra coisa; há muitos jeitos de morrer. Só
a melodia, e deu aos outros essa música, deu ao mundo. E ainda não faço isso porque tenho minha mãe e minha irmã. Elas não
acrescentou no final a Ode à Alegria, melodia para os versos de merecem passar por isso. Já pensou? O que ia ser delas? Mas,
um poeta, Schiller. Não é demais? Justamente Ode à alegria. se eu morresse, quem sabe ele ficaria sabendo da notícia e teria
Quando começou a ficar surdo, podemos imaginar que talvez ele remorso. Sabe, por um tempo, pensei que, mesmo se resolvesse
tenha pensado: "Justo comigo; como é que vou fazer música?" morrer, queria contar essas coisas todas pra você, assim, pelo
Pois ele fez. Agora, com você, não sabemos ainda como vai ser. menos iria existir no mundo alguém sabendo de tudo. Alguém
Mas acredito que a vida vai mostrar no tempo certo. precisava saber do quanto não aceito isso tudo. Não aceito estas
cicatrizes. Não aceito ter de passar por uma irresponsável que
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causou o acidente e não é capaz de assumir isso. Não aceito ter realmente não é Beethoven, não tem de dar música ao mundo.
tido um homem que, depois de tudo, some como se tivesse Olhe, tomara que você perceba que o que tem pra dar ao mundo
evaporado, como se eu tivesse sonhado que ele existiu. Isso não continua sendo a realização da sua vida da maneira mais plena
é justo comigo. Mas você tem razão. Quem vai se importar com que você puder.
isso? Neste ponto, a moça já não chorava Sua expressão tinha mu-
— Quando perguntei se o mundo iria se importar com a sua dado. E a terapeuta estava meio assustada com o que tinha aca-
revolta, queria que você tivesse a clareza de discriminar qual é o bado de dizer. "De onde saiu tudo isso que eu falei?", pensou ela.
alvo dela, quem você quer atingir. Você quer atingir alguém. Mas Depois que a sessão acabou, já fora da sala, a terapeuta
tem uma capacidade de amar que faz com que não queira abraçou-a e disse: "Parabéns pelos seus vinte anos. Desejo que
prejudicar certas pessoas; não quer, por exemplo, que sua mãe e você seja muito feliz."
sua irmã sofram por você. Apesar da sua revolta, você mantém A expressão da moça era a de quem percebia que esse
essa capacidade de ter consideração, de ter cuidado para com os cumprimento era sincero, e, também com sinceridade, disse
seres humanos. Isso é sinal de que o que aconteceu não arrasou apenas:
você completamente. Você disse há pouco que tinha perdido a — Obrigada.
confiança na vida. Mas veja, você tem confiado em mim, senão
não estaria aqui abrindo todas essas coisas. Não acho que você
me conta essas coisas só pra que haja uma pessoa sabedora de Quando chegou em casa sua mãe lhe disse que havia um
suas desgraças. Mesmo porque, o que eu faria com essas recado do hospital para que ela entrasse em contato com a
informações? Você me vê como alguém que se importa com sua secretária do seu médico. Como já era noite, deixou para ligar no
vida, que pode compartilhar seu sofrimento. Então, você consegue outro dia.
sentir o que significa o outro ser humano, e isso mostra que alguns
aspectos do seu mundo, de você mesma, estão preservados, e, se *
é assim, a vida ainda pode recobrar algum sentido. Você disse que
não é Beethoven. E não é mesmo. Quem é você? Como você é? Na outra sessão houve este diálogo:
O que é próprio de você? Acho que seria bom você se conhecer
— Sabe, aquela música de que você falou? No outro dia,
mais, saber que outras características também são suas, além
depois que saí daqui, comprei o CD e escutei quando cheguei em
daquelas, como a vaidade, por exemplo. O que mais faz parte de
casa. Aquele p e d a ç o do final a gente às vezes ouve nos
você? De seu ser? Será que a sua história acabou aí? Você tem
casamentos, na saída dos noivos, não é? Eu não sabia qual era o
consciência de que faria falta pra sua m ã e , pra sua irmã.
nome. Superlindo. E o cara surdo! Nunca tive costume de ouvir
Certamente faria falta pra muitas pessoas que gostam de você.
música desse tipo. Minha mãe me disse: "O que deu em você?
Quando eu disse que você é você, eu queria dizer que, embora
O maior tempo sem ouvir nada e hoje vai ouvir logo Beethoven!
possa ter mudado alguma coisa em sua aparência física, você não
Estou gostando de ver." E verdade mesmo, nunca mais tinha
deixou de ser quem é, e sua história continua. Isso quer dizer
ligado o som.
também que, quanto aos seus projetos de vida, eles vão continuar
A terapeuta disse:
aí cobrando você, pedindo pra que sejam realizados. Você
— Que bom que você gostou! E lindo mesmo.

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E acrescentou, meio cantarolando: pro seu trabalho de pós-doutorado, e que ele dispõe de uma verba
— E aquela do tchan-tchan-tchan-tchan, você já ouviu? pra isso. Ficou de me avisar quando devo voltar lá pra tratar desse
E a paciente, também cantarolando: assunto.
— Esse pedaço do tchan-tchan-tchan-tchan já. Ela acrescentou ainda:
Foi inevitável que as duas rissem. — Você é a primeira pessoa pra quem estou contando isso.
— Essa é dele também, é a Quinta. Não sei se acho bom ou se fico com medo. Dá medo de depositar
— Quinta o quê? muita esperança e depois não dar certo. Mas se der certo mesmo,
— Sinfonia não vou nem acreditar. Não esperava mais nada. Na hora em que
Alguma coisa nova tinha surgido. Parece que veio do nada. ele falou, e ele falou com tanta certeza, fiquei emocionada. Por
um momento me passou a ideia de que eu poderia voltar a ser
como antes.
Na ida para casa a moça pegou um trânsito muito lento, e, — Você está feliz então com essa possibilidade.
num certo momento, com o carro parado, ela olhou para o céu e — Não digo que não esteja, mas não quero embarcar em
viu a lua; era quarto crescente. Uma bobagem, mas isso a fez se expectativas.
lembrar do dia em que a terapeuta, a propósito do seu sonho com
a noite repentina, tinha lhe falado da possibilidade de haver uma
*
lua em sua noite, ainda que fosse quase nada, só quarto crescente.
Ela se surpreendeu quando sentiu que tinha sorrido um pouco. "Eu Numa sessão que ocorreu uns dois meses depois, a moça
aqui presa neste trânsito. Rindo por quê? Devo estar mal contou o seguinte. Seu chefe pediu sua ajuda na preparação e na
mesmo", pensou. execução de um evento, quando começariam a divulgar um novo
produto. Ela achou difícil responder na hora, ficou confusa, tentou
* recusar. Disse a ele que poderia ajudar permanecendo no
escritório. Diante disso, o chefe falou então: "Você não acha que
já está há tempo demais entocada nesse escritório? A gente
Uns dias depois, ela falou:
precisa de você lá fora também. As meninas que vão fazer as
— Tinha me esquecido de contar pra você. Na semana
demonstrações precisam de alguém como você, que tenha mais
passada recebi um recado do consultório do meu cirurgião. É que
experiência e capacidade de liderança. Até quando pensa que
estava na hora do retorno pra uma avaliação de como tinha ficado
pode ficar fugindo do que é preciso fazer? Não estou querendo
meu rosto depois desses meses. Fui lá, e ele me falou que está
pressionar você. Tenho respeitado esse seu tempo de
contente com o resultado, mas que ainda há o que ser feito. Agora recuperação, sei que passou por um trauma grande, mas você não
que meu rosto está desinchado é hora de alguns procedimentos espera que isso dure pra sempre, não é? Além de tudo, isso não
que podem melhorar mais minha aparência. Ele não entrou muito faz bem pra v o c ê . Pense sobre isso. Quero sua resposta
nos detalhes do que deve ser feito, mas disse que há técnicas afirmativa, certo?"
incríveis atualmente. Quando eu disse que, provavelmente, isso
Acabou de relatar isso e acrescentou:
tudo sairia muito caro, ele falou que havia chance de fazer meu
< — Fiquei aflita com essa história. Ele foi muito compreensivo
tratamento entrar como parte de uma pesquisa que está realizando íMse tempo todo. É verdade que tenho produzido bastante; o

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trabalho lá nunca esteve tão bem organizado e em dia como depois perdeu. Talvez, num primeiro momento, a lembrança venha mais
que comecei a ficar no escritório. Por que agora ele vem com intensa mesmo. Mas me parece que, a todo momento, você já
isso? E ele estava falando sério. Tenho até medo de não fazer o carrega essa lembrança do que foi perdido. Mais que uma
que está pedindo. E se ele me manda embora? Não posso correr lembrança, parece que isso ocupa sempre o centro de tudo. E no
esse risco. que você mais pensa. Sua aparência. Pode ser que, conseguindo
— E. Você tem aí uma questão pra resolver. Ou escolhe se aproximar mais das pessoas, perceba que elas não estão
aceitar o trabalho, colaborar com seu chefe e as colegas que pensando em você o tempo todo. Elas pensam em outras coisas
precisam de você, ou, escolhe continuar a se esconder. Do que também. É pra você mesma que você tem sido preocupação todo
você está se escondendo? o tempo. E você tem se visto sempre como se estivesse reduzida
— Não estou propriamente me escondendo. Acontece que a essas cicatrizes.
não tenho mais a mesma desenvoltura pra aparecer em público. — Você está sendo dura.
Se bem que, nesse evento, eu estaria mais nos bastidores — Estou dizendo o modo como vejo as coisas neste
orientando e preparando as meninas. Mas, mesmo assim, pra mim momento. Não dizer isso seria, de pena de você, contribuir pra que
é duro, sabe? continue a se esconder. E, pelo que você contou, parece que, por
— Você tem medo do quê? meio de seu chefe, o mundo está dizendo que precisa de você.
— Não é medo. É que não gosto de saber que vão fazer — Já disse que não quero que ninguém tenha pena de mim.
comparações. Nesses ambientes dão muito valor pra essas coisas. Falei que você foi dura porque é duro ouvir isso. Sempre achei
Uma espinha que surge na testa de alguém j á é motivo pra
feio gente que só pensa em si. E você me diz que só me preocupo
comentário, fulana engorda meio quilo e já dizem que está gorda.
comigo, que estou me achando o centro de tudo. Pode ser que eu
E assim.
esteja me achando no centro, mas não é por me sentir importante;
— O pessoal que vai estar lá sabe do seu acidente?
é por causa da tristeza que sinto; isso me impede de pensar noutra
— Ah, sim. Todo mundo sabe. Aliás, depois disso, já estive
coisa.
com quase todas aquelas pessoas. O pessoal sempre foi muito
simpático comigo. — E é uma tristeza revoltada, que não pode aceitar o que
se alterou em seu rosto. Mas o fato de não aceitar não muda em
— Então? O que acha que vai acontecer se, nesse ambiente
nada o acontecido. Você apenas se esconde e se fecha. Não
de meninas bonitas, você exibir seu rosto?
— Meu rosto era perfeito. Veja agora. Esta marca na minha gostaria de, mesmo triste, deixar entrar mais ar na sua vida?
testa, está até um pouco afundada aqui — e pela primeira vez — Bem que gostaria. Tenho saudade da minha vida. E
ergueu a franja para mostrar —, cicatriz aqui, aqui, aqui. Você engraçado isso de se ter saudade de si mesma. Pensando bem,
queria mais? Você não deve saber o que é isto, porque seu rosto não é só do meu rosto que tenho saudade. É também de como eu
está intato. O que vai acontecer é que vou me lembrar mais ainda era. Tinha o maior pique, tanto pra me divertir como pra trabalhar.
do que perdi. Não venha me dizer que a beleza não é tudo, que Acho que é por isso que meu chefe quer que eu volte a participar
a beleza vem de dentro. Isso eu j á ouvi demais. E também não das atividades. Mais um pouco e já vai fazer um ano do meu
quero que tenham pena de mim. acidente, e desde então estou neste desânimo. O que tenho feito
— Concordo com tudo o que diz. Só não concordo quando é trabalhar, saio muito pouco; ainda bem que minhas amigas me
diz que, se você se expuser, vai se lembrar mais ainda do que procuram; vou ao cinema. Mas nunca mais saí com rapaz nenhum.

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Outro dia estava com um colega de trabalho numa lanchonete no dada por coisas assim e entrar por aí. É isto. O desenrolar-se da
prédio da empresa. Pedimos café e pão de queijo. Na hora de vida é a matéria-prima da terapia. É essa a matéria com que a
pegar o pão de queijo no balcão, pusemos as mãos na mesma gente trabalha. Mas é o que se desenrola fora ou dentro da
hora. Ele segurou minha mão por um momento. Eu me assustei. pessoa? Ora, esta pergunta não tem sentido, se estou pensando
Ele pediu desculpa e disse: "Não leve a mal, por favor." Fiquei na existência como ser-no-mundo; se só 'há' 'mundo' para o
sem jeito e respondi que não era nada, que tinha sido um acaso. Dasein; se o Dasein 'precisa' de 'mundo' para ser. O que seria
Daí ele disse: "Não foi acaso. E já que fiz isso, quero te dizer uma o fora e o que seria o dentro? Acho que isso do desenrolar-se da
coisa. Por que a gente não sai um dia pra comer uma pizza, tomar vida deve ter a ver com aquele tal acontecer das coisas, a tal
qualquer coisa? A gente podia se conhecer melhor fora do doação de ser de que o professor falava na palestra. E para o
trabalho. A gente se dá tão bem. A não ser que algum namorado Dasein que tudo que ' é ' se manifesta, é para ele que a 'doação'
ciumento não te deixe sair." Fiquei atrapalhada. Não esperava. de 'ser' se dá. Nossa, espero que eu não esteja extrapolando.
Disse que agora não, quem sabe algum dia, enfim, nem sei direito Mas é isso, a vida não pára de acontecer. O paciente vem porque,
o que falei. Ele disse que estava bem e ficou tudo por isso nesse acontecer, alguma coisa se complicou muito pra ele. E,
mesmo. Mas sabe que depois fiquei me lembrando do toque da durante a terapia, tudo continua acontecendo, tanto dentro da
mão dele? Há quanto tempo não tenho ninguém que me faça um sessão quanto fora dela. Hoje, por exemplo, ela trouxe coisas que
carinho. Tenho saudade disso. tinham acontecido lá no seu trabalho. Olhamos para isso, e esse
olhar é também um acontecer. Nós duas estávamos atentas a
— Parece que você começa a querer ser feliz de novo.
algo que começou a se manifestar ali na sessão, algo que, como
A sessão já estava no final.
sempre, mostra alguma coisa e oculta alguma coisa. E o que a
Ao sair a moça disse:
gente tem de fazer é ampliar a desocultação; é permitir que aquilo
— Valeu!
possa ser pensado, possa ser posto em linguagem. Será que estou
no caminho da fenomenologia? Houve um momento em que me
pareceu que ela ficou meio brava comigo, na hora em que ela
Depois, a terapeuta pensou: "Nossa, como foi duro dizer
disse que eu estava sendo dura com ela. É compreensível que,
aquilo. Me lembro do que senti ao vê-la pela primeira vez naquele
depois de tudo, ela encare como sendo rudeza qualquer coisa que
hospital. Naquela ocasião, como é que eu iria pensar que algum
pareça uma cobrança; a vida é que tem uma dívida com ela. Só
dia falaria isso pra ela? Mas a vida dela tem de ser retomada. É
que a gente sabe que as coisas não são assim. A vida é sempre
aquela história do 'cuidado'. O modo como ela está cuidando da
credora. Ela pode dar no máximo uma moratória, um prazo pra
própria vida acaba por reduzir muito sua existência. Ela ainda tem
que a pessoa se reorganize. E é duro mesmo ouvir isso. Ela não
muito pela frente, não é justo que murche desse jeito. O fato de
esperava o que eu disse. Eu podia ter comentado isso com ela, ter
ter conseguido se dedicar tanto ao trabalho, de pensar tanto na
falado do que ela sentiu com relação a mim; mas privilegiei outra
mãe e na irmã, isso já mostra que ela tem garra. Mas ela tem mais
coisa, achei que devia falar dela com relação a ela mesma, com
o que viver. Como ela é diferente daquela descrição feita pela tia
relação àquilo que diz respeito à vida dela fora da sessão. A vida
fulana naquela noite em que contei da moça que eu tinha visto no
dela não gira em tomo de mim; o terapeuta não é o centro da vida
hospital. Esse aperto que o chefe deu pode ter sido uma coisa
do paciente; não que isso não possa acontecer e que não deva ser
boa. Curioso isso de terapia. A gente tem de aproveitar a chance

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conversado quando acontece; mas não precisa ser alimentado. Mesmo não tendo muita roupa, é sempre bom ter a roupa certa.
Chega de pensar por hoje. Amanhã levo isso pra supervisão." Você não acha? Minha irmã, ela tem quinze anos, sabe, ela é um
pouco exagerada, mas espero que aprenda. A gente estava
falando de maquiagem, não é? Então, não é só ir passando bases
e sombras, essas coisas, mas a pessoa precisa cuidar do estado
A moça saiu da sessão pensando: "Hoje estou cansada. Não
da pele. Aprendi, acho que foi numa aula de biologia, que a pele
estou bem. Vou só tomar um leite e cair na cama; preciso dormir."
é um órgão. Não é incrível? Então, a gente tem de cuidar. Veja
* só, a pele está em contato com o mundo externo, sofrendo
agressões de fora o tempo todo, essa poluição e tudo o mais.
Falar em agressão..., veja o que aconteceu comigo. Ponha
Num outro dia, num certo momento da sessão a conversa
agressão nisso que me aconteceu. E foi de uma hora pra outra.
tomou este rumo:
O esperado é que a pele vá se transformando aos poucos; a
— Hoje participei de uma reunião com o pessoal lá do
pessoa envelhece. Mas não isso de a gente amanhecer de um
trabalho. Era pra tratar do lançamento da linha de produtos que
jeito e no fim do mesmo dia estar desfigurada. Que ódio eu tenho
vem aí. A gente tem de começar a campanha logo, pra ver se sai
daquele desgraçado. Maldita,hora em que conheci aquele cara.
ainda este ano. Você sabe, isso envolve contato com pessoal de
Não dá pra aceitar isso tudo que aconteceu.
publicidade. Eles precisam conhecer o produto. Eles também
querem saber pra que público o produto é destinado. O fulano, — Essa é uma dessas coisas que a vida joga pra gente.
colega nosso, já ficou de procurar um publicitário amigo dele. E, Diante de algumas coisas que a vida oferece, ou até mesmo
junto com isso, a gente precisa continuar vendendo a linha de empurra pra gente, é possível dizer "não quero", é possível
maquiagem. É por isso que meu chefe me falou naquele dia que escolher recusar. Diante de outras, não. Ela não deixa alternativa.
eu ia ter de trabalhar com as meninas que desfilam. Já contei pra Acontece e pronto. Não cabe escolha nesse momento. O que
você que sou boa nisso. Elas sempre dizem que tenho mão boa cabe escolher depois é o modo como se vai viver com o
pra maquiar. Adoro isso. A mesma facilidade que tenho pra acontecido. Ninguém escolhe ter os ferimentos que você teve.
maquiar as outras tenho também pra me maquiar, aliás, tinha. Mas teve. E agora? Agora aparece um novo campo de escolha.
Agora não uso mais nada. É rosto lavado e um batom de leve. Às Como é que você vai querer viver com isso que aconteceu?
vezes olho o rosto de uma mulher, pode ser em qualquer lugar, na — Pra quem está de fora é fácil dizer isso. Eu não sei. Eu
fila do banco, no supermercado, e já imagino como ficaria se não tenho escolha.
fosse bem maquiado. Acho que a pessoa tem de ter bom senso — Mas ter de escolher faz parte da vida. E se você não
pra isso. Você não pode usar pra ir trabalhar, pra ir a uma reunião escolhe, está escolhendo não escolher. Você quer transformar o
de amigos, o mesmo que usaria pra uma festa à noite, um resto da sua existência num grande lamento por suas cicatrizes?
casamento, por exemplo. Fica ridículo. Cada coisa na sua hora. Você já me falou várias vezes de seus planos de vida, de suas
Não gosto desse estilo perua. Acho que as coisas têm de ter metas, e de como elas foram interrompidas. Ter planos, saber o
harmonia, têm de ser adequadas. A mesma coisa é com roupas. que quer conseguir, claro que isso faz parte da vida. Mas o que
Lá em casa, a gente nunca teve dinheiro sobrando, mas eu sempre mais pra você significa existir? Será que era só mostrar o seu rosto
cuidei de me vestir de um modo que tivesse a ver com a ocasião. bonito? O que eu quero dizer é isto. O que mais existe pra nortear

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a sua existência? Tudo o que você tinha pra realizar no mundo gostam. E, se é alguém que não me conhecia deve pensar "o que
teria de passar, necessariamente, por um rosto absolutamente será que aconteceu com ela?", e, mesmo que não fique me
perfeito? perguntando, sei que depois vai perguntar pra alguém. Isso me
— Pensando assim, eu sei que, tudo, não. Mas na prática é chateia, ser objeto de curiosidade para os outros, entende?
assim. A pessoa aprende a se ver a vida inteira de um modo, a — Ser objeto de curiosidade sempre chateia? Antes você
vida se encaminha por ali, a história da gente vai sendo de um achava muito ruim quando as pessoas ficavam curiosas a
jeito, e a gente não sabe viver de outro jeito. respeito, por exemplo, do perfume que você usava, ou de quem
— Será que é só questão de não saber viver de outro jeito? era seu novo namorado, ou coisas assim?
Será que, no seu caso, isso não tem a ver com a vergonha que — Isso é diferente. É até estimulante saber que estão
você sente do seu rosto? prestando atenção na gente. Mas no meu* caso agora é
— Não, não é vergonha. Não acho que a pessoa deva ter completamente outra coisa. Não é propriamente a curiosidade que
vergonha de alguma coisa que não é desonra. Mau-caratismo sim incomoda. É que ninguém gosta de se sentir inferior.
é que é vergonha. Não uma doença ou outra coisa assim. — Então, o que incomoda, tanto na comparação que as
— Outra coisa assim. Você quer dizer cicatrizes no rosto? pessoas podem fazer como na curiosidade que elas podem ter, é
— É... se sentir inferior. Será que a vergonha começa por aí? Acho que
— Se não é por vergonha, quando você não quer mais sair, a vergonha é esse incómodo, não é?
não quer conhecer gente, não quer rever pessoas, não quer — Mas você acha que alguém pode gostar de se sentir
aparecer junto às outras meninas sem cicatrizes, por que é então? inferior?
— Eu acho que tenho vergonha mesmo. — Acho que n i n g u é m gosta de se sentir inferior,
E depois de um tempo: especialmente naquelas coisas que valoriza. Se a pessoa valoriza
— Por que a gente sente vergonha? muito a inteligência, não vai gostar de se sentir inferior nessa área;
— Não sei exatamente por quê. Talvez seja porque a beleza, se valoriza muito o dinheiro, mesma coisa; o bom mecânico não
a perfeição de formas, e isso sempre segundo alguns padrões, é quer perder em comparação com outro mecânico. Mas é razoável
um valor. Isso pode ser visto na história toda da humanidade. E poder admitir que outro possa ser mais inteligente, mais rico,
principalmente a beleza feminina. No seu caso, se você sente melhor mecânico; admitir a possibilidade de não ser o máximo,
vergonha, como é essa vergonha? mesmo naquela coisa que se valoriza tanto. Será que você não
— É a comparação que me incomoda. Me incomoda o olhar pode admitir não ser o máximo em matéria de beleza? E aquilo
da outra pessoa. Se é alguém que já me conhecia, acho que está que eu perguntei há pouco pra você. Será que tudo que você pode
pensando "nossa, como ela mudou, coitada"; ou pode ser que, por e quer fazer na vida precisa depender de um rosto absolutamente
dentro, ela diga "bem feito", ou, mesmo que não seja tanto assim, perfeito?
pelo menos vai pensar "veja como a vida é, essa aí, toda bonita, — Não. Absolutamente perfeito, não. Mas também você há
vaidosa, olha só agora". Você sabe como s ã o as pessoas. Você de concordar que não precisava ter estas marcas que ficaram. E
sabe que tem gente que gosta quando o outro se ferra. Tem gente minhas marcas não são só no rosto... Sabe, elas ficaram na minha
que não suporta ver que a outra pessoa tem alguma coisa que ela alma... Na estante lá de casa onde estão os livros que foram do
não tem, ou que ela tem menos. Então, quando a gente perde, elas meu pai, vi um livro em francês com o nome La mort dans l 'âme,

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quer dizer, A morte na alma. É de um autor chamado Sartre, não Ah, não sei mais nada... Agora, ele..., ele sim, tinha que saber que
sei se você conhece. Eu não sei qual é o assunto do livro, mas na estava sem condição de dirigir. Tem hora em que não sei o que
hora em que vi esse título, pensei: "E isso o que eu tenho." Sabe, pensar dele. Como ele pôde me abandonar desse jeito? Às vezes
alguma coisa muito profunda em mim morreu, e a dor é muito sabe o que começo a imaginar? Imagino que ele teve alta do
intensa. Você sabe o que é isso? São sonhos perdidos, e quem está hospital, foi pra casa, que, aliás, nunca soube onde era, e depois
de fora poderia dizer: "Amime outros sonhos." Mas não é fácil. ele pode ter tido alguma coisa como uma hemorragia interna, por
Porque os sonhos da gente envolvem outras pessoas; a gente exemplo; então ele morreu, e ninguém pôde me avisar; nem
precisa poder confiar em alguém, senão como é que se pode ser sabiam que eu existia. Penso coisas assim. Tudo é possível. Nem
feliz? É horrível não poder acreditar em ninguém. Pior ainda, não tenho certeza do nome dele pra poder perguntar. Sabia o nome,
poder confiar nem em si mesma. Pois como é que vou confiar em é lógico, mas não o sobrenome. A gente se chamava por apelidos
mim, se pude me enganar daquele jeito? Como é que a gente ama carinhosos. E o trabalho, eu j á contei pra você, ele dizia que
uma pessoa daquele tipo? Se depois, até numa coisa tão concreta, prestava serviço de informática a algumas empresas. Nunca vi um
de tanto todo mundo falar, quase perco a certeza de que não era documento dele. Também era só o que faltava, a gente pedir o
eu quem dirigia o carro? Quando a gente se arrisca a perder até documento de alguém com quem vai sair! Isso não tem
uma certeza como essa, o que sobra? Que papel eu fazia nessa cabimento. Bom, mas sei que tudo isso é viagem minha. Ele deve
história? Quem era eu? Tem hora em que piro um pouco e acho é estar muito bem por aí. Eu é que estou perdendo meu tempo
que essa história não existiu, ele não existiu. Se ele ao menos pensando nisso. Claro que, quando saiu do hospital, ele tinha sido
tivesse me procurado depois, nem que fosse só pra saber como bem examinado, não ia acontecer de morrer em casa. O pessoal
eu estava... Ele não precisava continuar comigo, eu ia lá era cuidadoso. Eu, por exemplo, fui muito bem tratada. Mas não
compreender. Mas sumir assim foi cruel. E isso. Foi cruel. Como adianta ficar lembrando disso agora; hoje nem dá mais tempo.
é que a gente vive depois, quando se perde toda a confiança, Você não se cansa de me ouvir falando sempre da mesma coisa?
quando não se espera nada? Há quanto tempo venho aqui e o assunto é só esse. Mas se não
— Será isso a morte na alma? Continuar se movendo, for com você, com quem vou falar dessas coisas?
falando, cumprindo as tarefas do dia-a-dia, mas sem encontrar — O que você fala é o que teria mesmo de falar. Não acho
nenhum "para quê" que valha a pena. E isso? que seja sempre a mesma coisa, não é uma repetição. A nossa
— É. Alguma coisa essencial na gente morre... conversa está caminhando. Você não vê como está tendo
Depois de um pouco de silêncio, ela continuou: coragem de tocar mais de perto nessas coisas tão doloridas?
— Sabe, ultimamente tem me vindo um outro pensamento: — Vejo. Mas até que ponto isso é bom? Não quero me
"Será que eu também colaborei pra que isso tudo acontecesse? afundar mais. Está na hora de ir embora.
Como pude me enganar tanto?" Fico com esta questão comigo:
"Por que topei entrar num carro com alguém totalmente bêbado
dirigindo? Como me descuidei desse jeito?" As vezes me pego Depois da sessão, a terapeuta pensou no quanto é inesperado
pensando isso. E duro, sabe? Isso tem me incomodado. Mas como o rumo que toma a conversa na terapia e como é importante estar
é que eu podia não vir com ele? Eu tinha que voltar pra cá. E todo atenta para acompanhar o que surge. Quando começou o assunto
mundo bebe mesmo, e a gente tem que voltar pra casa, não é? sobre a reunião de trabalho, ela imaginou que a moça fosse

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comunicar alguma decisão que tivesse tomado referente ao aceitar Ficou quieta um pouco e depois disse:
ou não o que seu chefe havia pedido, mas sua fala passou a ser — Tive um sonho que quero contar pra v o c ê . Foi
sobre maquiagem, cuidados com a pele, moda, e daí chegou à sua anteontem. Sabe, aquele tipo de sonho que contei uma vez
falta de sorte. Ela aproveitou alguns momentos para tocar na continua. Aquela sensação de escuridão repentina; só varia o lugar
necessidade de reencontrar novos caminhos de realização da vida, onde estou. Mas o de anteontem foi diferente. Havia muita terra,
tentou fazer com que a paciente entrasse em contato com seu mas terra marrom mesmo, cor de terra quando a gente pinta a
sentimento de vergonha pela aparência. Mas os toques dados por terra num desenho. Aqueles desenhos que a gente faz quando é
ela relativos a essas importantes questões da existência da moça, criança: tem um verde que a gente diz que é a grama; tem umas
mais do que terem servido para que essas questões fossem florzinhas; eu fazia sempre umas florzinhas coloridas de cinco
pensadas no momento, abriram caminho para que outras coisas pétalas; e tem um marrom que a gente diz que é a terra. Então,
se manifestassem: o cerne daquela dor, aquilo que a paciente era um marrom assim. Muita terra, mas o diferente é que era terra
chamou de morte na alma; e uma possível parcela de sua mexida, toda revirada. Sabe quando num lugar a terra está
responsabilidade pelo acontecido. revolvida? Era assim. O sonho é só isso. Muita terra marrom.
Acordei em seguida e pensei "Que sonho sem pé nem cabeça,
* vou contar pra ela."
A terapeuta pensou: "O que será isso? Por que ela salientou
tanto essa cor do desenho de criança?" E a paciente continuou:
Num outro dia, ao chegar, a moça foi logo dizendo:
— O que você acha?
— Hoje vou deitar nesse divã. Mas se não me sentir bem
— Vamos pensar no seu sonho. Acho interessante o seu
eu sento, tá bom? Acho que vai ser esquisito falar sem olhar pra
você. modo de explicar a cor da terra dizendo que é cor de terra de
desenho de criança. Por que não é só cor de terra e pronto?
— Experimente.
— É que no sonho era importante a terra, mas a cor também
— Será?
era muito nítida. Tem um marrom nas caixas de lápis de cor que
Acomodou a almofada e deitou-se. Ficou uns minutos de é meio feio, mas tem um marrom cor de terra que é bonito. Olhe
olhos fechados e calada, e depois abriu os olhos e falou: o que estou falando: a terra marrom cor do marrom cor de terra.
— É estranho. Vou ficar olhando pro teto? Nunca tinha Eu via bem essa cor no sonho.
reparado no revestimento desse teto. É outra a visão da sala. Mas — Então a terra do seu sonho era bonita?
sabe, hoje resolvi que queria experimentar. Nos filmes a gente vê — Era bonita. O estranho era estar toda revolvida.
essa história de divã. Os pacientes todos deitam pra falar? — Revolvida como? Teria havido alguma coisa lá?
— Nem todos. Alguns deitam algumas vezes e outras vezes — Não sei. Estava revolvida em toda a extensão.
não. Mas deitar facilita que a fala fique mais solta, que a pessoa A terapeuta ligou essa terra revolvida com o sentimento da
se preocupe menos com a coerência lógica daquilo que está moça de ter tido sua vida toda mexida nos últimos tempos. Mas
falando. não disse isso. Apenas perguntou:
— Se eu tiver vontade de olhar pra trás, posso olhar? — Você já viu terra desse jeito?
— Pode, sempre que quiser. — Assim, inteiramente mexida, não. Mas já vi quando em
— Sumiu tudo. Parece que não tenho nada pra falar. algum lugar vai haver uma plantação e então eles mexem a terra

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antes, ou quando vão construir alguma coisa numa região e Depois que ela saiu, a terapeuta disse baixinho para si
revolvem tudo pra nivelar, pra preparar o terreno. Entende? Acho mesma: "Isto está caminhando, que bom."
que era assim. É possível que fossem plantar ou, quem sabe,
construir lá naquela terra. *
A terapeuta pensou: "Ainda bem que não falei o que tinha
pensado antes." E disse: Num certo dia, logo ao se deitar no divã, a moça iniciou esta
— É, parece que sim. Numa terra bonita, marrom-cor-de-
conversa:
terra, alguma coisa está pra ser plantada ou construída. E tem a
— Ontem as meninas foram fazer uma apresentação dos
cor dos desenhos de criança. Desenhos de criança. Isso diz
nossos cremes e da linha de maquiagem num salão de chá aí num
alguma coisa pra você?
clube. Foi um chá beneficente, e essa apresentação foi pra atrair
— Ora, desenhos de criança a gente só faz quando é a compra de convites pelas sócias do clube. Pra nós isso também
criança. Depois, nunca mais. Outras coisas também a gente perde foi bom. É uma superpropaganda. Houve sorteio de umas
quando cresce.
cestinhas com alguns produtos. Há uns três dias, quando
— Por exemplo? planejamos como iria ser, dei a ideia de que, em vez de só fazer
— Confiança. um desfile das meninas já maquiadas, seria legal que elas, durante
— Mas no seu sonho há um toque de criança, há a cor de o chá, num lugar visível para as convidadas, começassem a ter a
terra dos desenhos de criança. Será que há um toque de pele preparada para a maquiagem, quer dizer, alguém iria
confiança? limpando, fazendo uma massagem, hidratando a pele delas. Em
A moça rapidamente olhou para trás. Havia lágrimas em seu seguida elas começariam a ser maquiadas, e, depois, andariam
rosto quando ela disse para a terapeuta: pelo salão mostrando o resultado. Todo mundo lá gostou da ideia,
— Será possível? e meu chefe disse: "Você vai com elas como supervisora." Ele
— E possível. falou isso tão sério que não tive como não concordar. Então, ontem
Ela voltou a olhar para a frente e ficou quieta por uns cinco cedo, resolvi cortar umas pontas do meu cabelo, fiz um banho de
minutos. creme, essas coisas. Fazia o maior tempo que nem me lembrava
Depois a terapeuta perguntou: de cabelo. Depois fui pro trabalho pra sair de lá com o pessoal.
— Você quer contar em que está pensando agora? Antes de sairmos meu chefe falou: "Como você não vai se
— Estava me lembrando da última sessão. Mas acho que já maquiar lá, vai ter de chegar j á bem produzida. Trate de se
pensei bastante sobre isso. embelezar." Eu não tinha pensado em fazer isso nem lá, nem hora
Ela passou a falar do fim de semana na praia com amigos nenhuma. Já tinha feito muito em ter dado um jeito no cabelo. Mas
de seu trabalho. fazer o quê? Peguei a caixa com os produtos que a gente
No final da sessão, ao se sentar, ela disse. costuma usar e fui em direção a um espelho. Nessa hora, chegou
— Estou um pouco atordoada, acho que me levantei muito um meu amigo e disse: "Sente aí que sou eu que vou maquiar
depressa. Estranhei logo no começo, mas acho que foi bom. você hoje." Nem deu tempo de eu dizer que não precisava e ele
já estava protegendo a minha roupa com uma toalha. Eu sentei,
ele pegou meu cabelo e puxou meio pra trás, prendeu mais ou

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menos, e, nessa hora, pensei: "Minha testa! Ele está vendo a da minha vida um lamento pelas minhas cicatrizes; aquilo doeu,
minha testa." Isso foi muito ruim por um momento, mas em sabe? Mas acho que eu precisava ouvir isso de alguém, não de
seguida me acalmei e o que veio à minha cabeça foi isto: "Agora, qualquer pessoa, mas de você. No começo eu não iria aguentar.
seja o que Deus quiser." E parei de me preocupar. Me entreguei Mas, de uns tempos pra cá, sinto que não quero que tenham pena
à sensação boa de ter alguém cuidando de mim; não fazia mal que de mim. Então como é que vou ficar, eu mesma, me lamentando?
ele pudesse observar bem de perto as cicatrizes, que ele pusesse Agora eu penso, por que será que fiquei tanto tempo sem querer
as mãos nelas. Há quanto tempo nem eu mesma me olho direito. cuidar do meu rosto?
Meu rosto vê só água e sabonete. Ele passou um creme — Vejo aí aquela história do ou tudo ou nada: não aceito
hidratante, massageou bem devagar, com a maior paciência; nada menos do que o absolutamente completo, perfeito; o que for
passou base, pó, blush, uma sombra leve nos olhos, delineador, menos que isso não é digno de mim. Mas vejo outra coisa também.
rímel, tudo. Depois, deu uma boa ajeitada no meu cabelo e pôs um Tendo os recursos de que você dispõe — e a prova disso está no
espelho na minha frente. Disse: "Agora olhe." Eu olhei, e como resultado do trato que seu amigo deu no seu rosto ontem —,
foi bom! Eu me reconheci; por um momento, vi que eu estava ali insistir em não minimizar as marcas que tanto a perturbam pode
de novo. Você sabe como é isso, não é? As lágrimas nessas ser um jeito de dizer sempre a si mesma: "O que foi feito de
horas... Ele percebeu e disse: "Chorar justo agora, não! Você quer m i m ! " De alguma forma você está sempre deixando muito
manchar tudo e me fazer perder o meu trabalho?" Ele falou evidentes os danos que sofreu, lembrando a sua condição de
como quem brinca que está bravo, cheio de carinho. Senti que foi vítima de coisas injustas, vítima de um mundo injusto. Pense um
com carinho que ele tratou do meu rosto. Sabe que eu beijei as pouco. Qual pode ser o sentido dessa, vamos dizer, greve de
mãos dele? Eu disse: "Obrigada por tudo." E ele falou: "Eu é que beleza que você tem feito? Está certo que, nos primeiros meses,
estou agradecido a você, menina. Há tempo estou esperando pra era compreensível que não quisesse nem olhar no espelho pra não
ver esta minha amiga assim, linda, cheia de charme." Ele enxugou ver seu rosto inchado, as manchas roxas e tudo o mais. Mas já
meus olhos, deu uns retoques e disse: "Chega de conversa, anda faz algum tempo que você, cujo trabalho é exatamente esse,
logo senão a gente atrasa tudo." Desci a escada numa correria, corrigir imperfeições, ajudar a beleza, já podia estar cuidando de
quase caí... nossa, já pensou se eu caio? O pessoal já tinha ido. se ajudar nesse aspecto. Não fazer isso que sentido pode ter?
Mas deu tempo. O salão de chá ainda estava meio vazio. Eu Exatamente você pra quem ser bonita sempre significou tanto?
queria muito contar isso pra você. Foi um sucesso. A ideia que eu — Eu fui vítima sim. Mas não ponho isso como culpa de um
tinha dado funcionou super. Hoje cedo fizemos uma avaliação de mundo injusto. Não seria certo eu pensar isso, porque no mundo
ontem e todo mundo achou que foi um dos melhores eventos que tem gente boa também.
a empresa já fez. Mas o principal que eu quero dizer pra você é — Mas um mundo que permite acontecer o que aconteceu
que, nos momentos em que estive lá, quase não me lembrei de com você; um mundo em que é possível uma menina sair de
cicatriz nem de nada. Eu estava absorvida olhando o andamento manhã de uma festa, linda, e, na tarde do mesmo dia, ter de evitar
das coisas. o espelho pra não ver seu rosto ferido; um mundo que abriga tanto
— Que coisa boa você está contando. essas pessoas boas, como você acabou de dizer, como abriga
— Foi bom mesmo. Parece que aconteceu um pouco daquilo também pessoas capazes de agir como seu ex-namorado agiu,
que você falou há algum tempo. Aquilo... se eu ia escolher fazer talvez você considere esse um mundo culpado.

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— Não tinha pensado com essas palavras, mas é isso no caminho, aqueles de polvilho. É uma especialidade daquela
mesmo. É muita injustiça. padaria; já tinha comprado lá na semana anterior. Eu ia começar
— Se a vida, ou se o mundo aprontou isso com você, será a comer. Quando me viu abrindo a embalagem dos biscoitos, ele
que ao menos você não poderia tratar a si mesma com mais disse: "Não coma isso no meu carro; vai fazer a maior porcaria."
carinho atenuando as marcas da injustiça que sente que sofreu? Deu um tapa nas minhas mãos e os biscoitos caíram. Eu disse:
"Pára de ser grosso comigo." E ele falou: "Se não está gostando,
Ela olhou para trás e permaneceu um pouco de tempo
é só dizer; eu paro o carro e você desce." Acho que me lembro
olhando para a terapeuta, que continuou a falar:
disso porque na hora eu estranhei muito; foi a primeira vez que
— Será que você não pode se desarmar um pouco e
ele falou desse jeito comigo; ele era um doce de pessoa. Fiquei
permitir que as pessoas se cheguem a você? Seu amigo, ontem,
quieta, porque estava magoada. E, além disso, estava com muito
precisou ser muito decidido pra conseguir que você lhe desse a
sono. Devo ter dormido em seguida. Hoje, contando isso aqui, eu
chance de poder ajudá-la. E olhe que o que ele fez por você foi
penso: "Será que ele estava começando a se cansar de mim?"
muito mais que uma maquiagem... Você percebe o alcance disso
Fazia um mês que a gente estava saindo, e ele era o máximo em
que seu amigo fez por você?
gentileza. Eu dizia para minhas amigas: "Encontrei o homem da
Olhando de novo para a frente, a moça falou:
minha vida." E era isso mesmo'. Estava apaixonada de fato, e
— Claro que sim. Não consigo nem dizer. Se eu contar isso certa de que ele também estava por mim. Sabe que a lembrança
pra alguém, vai parecer uma banalidade: meu amigo me maquiou que me vem dele hoje me traz saudade? Eu gostei mesmo dele.
pra eu ir a um evento. Mas só eu sei o que significou pra mim
A moça ficou quieta. A terapeuta pensou: "Pelo que ela está
esse gesto dele. Sei, e não sei. Não sei se foi o sentir o toque
contando, era ele mesmo quem estava dirigindo." Esperou que ela
cuidadoso daquela mão no meu rosto tão maltratado, ou se foi o
se referisse a isso, mas não foi o que aconteceu. O que a paciente
fato de eu sentir que era como se ele estivesse me dizendo, sem
disse foi isto:
falar nada, alguma coisa como: "você importa pra mim". Alguma
coisa se reabriu. Ele apareceu na hora certa. Estava pensando — Nem eu me entendo. Como posso ainda me lembrar dele
agora também na decisão do meu chefe de me mandar pra um com saudade? Foi só um mês. Mas nunca fui tão feliz como
trabalho externo. Ele deve ter insistido nisso por achar que seria durante aquele mês. Todos os dias o rapazinho da floricultura lá
bom pra mim. E pra falar a verdade, foi bom mesmo. Se de perto do meu trabalho ia me levar um botão de rosa vermelha
dependesse só de mim, não sei se eu tomaria a iniciativa. em nome dele. Ele deve ter deixado pago o mês inteiro. Eu punha
o botão num vasinho solitário, sabe, aquele em que só cabe uma
A conversa continuou, mas o principal que aconteceu foi
flor. Ele dizia que mandava uma única flor porque eu era única.
isso.
Era para eu me lembrar disso. Depois eu ia colocando os botões
* juntos num vaso maior. Minhas amigas iam todos os dias ver se
já tinha chegado o botão do dia. Veja, eu aqui me lembrando
dessas bobagens. Um dia perguntei por que ele não tinha se
Num outro dia, a moça começou a falar logo que deitou:
casado ainda, pois ele tem uns trinta e cinco ou quarenta anos, não
— Um ano hoje. No ano passado era segunda-feira. Saímos parece nem trinta, e ele disse que nunca tinha encontrado a
da balada e fomos tomar café da manhã numa padaria próxima. mulher certa. Sabe que pensei que poderia ser eu essa mulher?
Nossa, hoje está tudo tão claro! Comprei uns biscoitos pra comer

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Bem, em seguida acabou-se o tempo dos botões de rosa e agora — Depois que meu chefe me falou da minha promoção, e
estou eu aqui falando de um homem que parece que não existiu. ele disse que tenho jeito pra essas coisas, me veio a ideia de fazer
A terapeuta não falou nada. Deixou que ela ficasse com a faculdade de administração. Se eu ganhar melhor, vou poder
suas recordações. pagar a faculdade. Mas sabe que tem hora que me dá vontade de
Depois a paciente continuou:
estudar psicologia?
— Agora, pondo os pés no chão, sabe o que meu chefe me — Há muita coisa que está em aberto pra você.
disse hoje? Ele falou que vou ter uma promoção. Na verdade, vou
— Isso é tudo muito novo. Minha cabeça está lotada de
continuar fazendo a mesma coisa, mas de um modo mais formal.
coisas em que preciso pensar.
Quero dizer, agora passo a ter oficialmente um cargo no escritó-
rio, alguma coisa que tem mais a ver com a administração da *
empresa. Vou precisar ter contato com os fornecedores, os reven-
dedores. Você já viu, não é? Não posso evitar o público. Isso ainda
Duas semanas depois, ela disse para a terapeuta:
me assusta, mas não tanto como antes. Ainda me vêm à cabeça
— Você se lembra de eu ter contado que meu médico falou
aquelas ideias: "O que será que tal pessoa está pensando do meu
de uns tratamentos que pretendia fazer no meu rosto? Pois é,
rosto? Será que está me achando feia?" Mas vou em frente. Você
ontem a secretária dele me chamou pra ir até lá. Ele reviu tudo,
deve ter notado que tenho me pintado um pouco, não é?
achou que a evolução foi muito boa, melhor do que ele esperava.
— Tenho notado, sim. Foi a partir do dia daquele trabalho
Disse que, quando me viu naquele dia no hospital, ele não tinha
durante o chá naquele clube.
muita esperança. Ontem ele me explicou o que foi preciso fazer
— Foi mesmo. Aconteceu alguma coisa especial naquele
dia. Meu amigo foi demais. Depois daquele dia pensei: "Por que naquela hora. Eu tinha vários cortes, e dois deles muito profundos.
não? Maquiagem é pra isso mesmo." Não se tratava só de dar pontos. Acho que foi por isso que me
— Sim, mas a questão é mais que se maquiar ou não. O removeram do primeiro hospital para o outro. Era preciso fazer
que vejo se passando com você é uma modificação mais profunda aproximações de camadas mais profundas de pele, foi mais ou
no seu modo de ser diante da sua vida. Você está podendo encarar menos o que entendi. Ele disse que, felizmente, minha pele é boa
as pessoas sem se sentir tão envergonhada e infeliz. Talvez haja pra cicatrização, e isso ajudou. Aquele médico do primeiro hospital
nisso uma recuperação da possibilidade de confiar, seja nas foi consciencioso quando preferiu não mexer e me mandou pra um
pessoas, seja no que as situações podem trazer pra você. Sei que lugar com mais recursos. Agora ele quer usar uma técnica que,
boba você não é pra acreditar que todo mundo é bom. Mas, quer segundo ele, melhora muito a cicatriz. Nem me pergunte, porque
você queira quer você não queira, as coisas continuam não sei direito como é. De um ponto em diante, não prestava mais
acontecendo na sua vida. Então, por que não abrir os olhos, os atenção na explicação dele. Estava pensando em como cheguei
ouvidos e o coração, pra ver, ouvir e sentir se chega alguma coisa lá naquele dia. Pensava na sorte que tive de encontrar esse
boa no meio disso tudo? Por que não haveria de chegar? Você médico... Que homem! Ah, e pra este afundamento aqui na minha
está começando a poder estar de um modo diferente no seu testa, ele disse que vai retirar um pouquinho de osso de alguma
mundo: o mundo do seu trabalho, o mundo das amizades, o mundo parte do meu corpo mesmo, pra não haver rejeição, e vai colocar
das pessoas desconhecidas, o mundo da sua relação com a beleza, aqui. Disse que vai ficar perfeito. Ele é muito otimista. Não sei
o mundo da dor, o mundo da saudade, enfim..., é isso. como isso tudo pode fazer parte do seu trabalho de pós-doutorado,

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Do desabrigo à confiança
Bile Tatit Sapienza

pra trabalhar, porque não podia faltar de jeito nenhum hoje.


como ele falou uma vez. Mas não compete a m i m ficar
Bandido. Por que nunca mais me procurou? Como é que um ser
perguntando isso, não é? Perguntou se concordo com tudo. Eu
disse que sim. Marcamos pra fazer isso daqui a duas semanas humano abandona outro ser humano desse jeito?
mais ou menos. Ótimo isso, não? Depois disso deitou, virou para o canto, se encolheu, e só
— Ótimo mesmo. chorou, até o final. A sessão desse dia consistiu no acolhimento
— Sabe em que estou pensando? Não sei falar do jeito como silencioso dessa tristeza.
você falou uma vez, mas é alguma coisa sobre aquela história de *
eu estar me vendo como vítima de um mundo culpado; mas é do
mundo mesmo que vem a ajuda pra mim. Várias coisas que a
gente já falou aqui me voltam agora à cabeça. Ah, sabe, uma hora
o Dr. Fulano falou pra assistente dele que estava perto: "Veja que
menina bonita, ainda bem que não estraguei o rosto dela." A
médica riu da brincadeira. Eu pensei: "Imagine, ele estragar o
meu rosto. Justo ele! Ele foi um anjo." Não falei nada, nem
consegui dizer "obrigada". Estava com um nó na garganta.
— Era gratidão, não era?
— E isso mesmo. A você também sou grata.
— Gratidão é uma qualidade humana muito importante. E
rara. Mas tudo o que temos feito aqui é trabalho de nós duas.
Depois disso, ficaram um bom tempo em silêncio.

Uma semana depois, antes de deitar, ela se sentou no divã,


e disse:
— Hoje vi a foto dele na coluna social, com uma moça que
não sei quem é. Vi o sobrenome dele: Fulano de Tal e Tal, um dos
diretores da empresa Tal. Dizia o nome dela também, da alta
sociedade. Levei um choque! Todo bonitão. Eu estava em pé
folheando o jornal enquanto esperava minha irmã acabar de tomar
café, porque eu ia dar carona pra ela até o colégio. Passei mal.
Me segurei na cadeira pra não cair. Minha irmã se assustou,
minha mãe veio correndo. Mostrei o jornal pra minha mãe: "Mãe,
olhe ele aqui." Ela disse: "É mesmo, o moço que falou comigo no
hospital naquele dia." Desandei a chorar. Só consegui sair à tarde

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Do desabrigo à confiança

desconectado de mundo. Mesmo quando o paciente está vivendo


fora da realidade que os outros compartilham, ainda assim é
mundo. Ainda assim, ali está o acontecer da vida, da sua vida.
Considerado ontologicamente, Dasein é sempre o 'aí' onde se 'dá'
'ser'. E 'ser' se 'dá' para Dasein nos acontecimentos, nos entes,
se mostrando e se ocultando. Onticamente, existir significa poder
ser afetado por tudo e ter de se haver com o que se deu, com o
que se dá e com o que pode vir a se dar. O trazido pelo paciente
para a sessão de terapia diz respeito ao seu viver, ao seu ser-no-
mundo.
Uma determinada terapia só faz sentido quando referida ao
Paremos, por enquanto, essa história e deixemos em aberto existir de alguém que concretamente existe. Por isso, para
os desdobramentos da vida dessa moça.
exemplificar um processo terapêutico, quis trazer também a vida
Vamos refletir a respeito dessa terapia que imaginamos como que se passa fora do consultório, pois é diante disso que tem
exemplo.
sentido o que é posto em linguagem e é vivido como sentimentos
na terapia.

Vocês repararam que, para descrever as sessões, trouxe aqui *


acontecimentos exteriores ao espaço da terapia. Será que não
bastaria termos nos concentrado apenas no ocorrido nas sessões? A moça que serviu de exemplo foi imaginada como alguém
O que conta para compreendermos o processo terapêutico não cujo sentido da vida se rompe de forma súbita e violenta. De uma
seria apenas aquilo que se passa no consultório, ou seja, a fala do hora para outra, tudo o que compunha sua existência se
paciente e a fala do terapeuta, as emoções ali presentes? desarranja, e seu futuro se fecha. O que fazemos diante de
Mas pensemos. Alguém, por exemplo, cujo trabalho consiste alguém que vive um momento assim? Nosso primeiro sentimento
em fazer objetos de barro, tem o momento, tem o espaço onde é de total impotência. Mesmo que o terapeuta acredite que existir
lida com o barro, tem o modo de lidar com o barro. O barro é a é vir-a-ser, que possibilidades estão em aberto, não leva a nada
matéria-prima com que ele trabalha. Seu trabalho supõe que haja a pressa em querer que a outra pessoa também acredite nisso.
o barro. E a terapia? Ela se passa num certo momento, num certo Diante de perdas muito grandes, insistir em que o paciente veja
espaço, de um certo modo. E a matéria-prima do trabalho de que o futuro está aberto, ou é algo que não chega até ele — ele
terapia é a vida. O trabalho do terapeuta supõe que haja o não tem ainda como aceitar isso —, ou é algo que chega até ele
acontecer da vida, e a vida é maior, é mais que o momento de como um descaso ou incompreensão por parte do terapeuta. Há
terapia. Aliás, a terapia também entra como parte da vida, o
dores ou desilusões que podem durar muito, muito tempo. As vezes
momento privilegiado em que se cuida do seu sentido; em que se
podem durar a vida inteira...
cuida do acontecer de tudo o que afeta aquela existência. A
Neste exemplo, a terapeuta consegue trazer um elemento
terapia não trata de um "psicológico", como se isso fosse algo
novo para ser pensado quando, uma vez, depois de concordar com

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o quanto é sofrido levar da vida uma grande puxada de tapete, procurados junto ao contexto da sua vida. É só aí que um sonho
introduz na conversa uma alusão a Beethoven, que, depois de sur- pode ter sentido, e não dentro de uma teoria de psicologia. E o
do, compõe uma grande sinfonia. E quando a paciente responde sentido explicitado deve servir para ampliar a compreensão que
que ele era um génio, e ela não é ele, a terapeuta aproveita para o paciente tem de como ele está sendo-no-mundo.
perguntar o que, exatamente não sendo ele, ela tem para dar ao A terapeuta do nosso exemplo tem essa preocupação de
mundo. A ênfase aí não está nas possibilidades abertas, mas sim perguntar, de permanecer junto àquilo que a paciente tem a dizer
no 'ser devedor'. A reação da paciente mostra alguma surpresa sobre as imagens com as quais ela compõe seu sonho. No sonho
com a fala da terapeuta, tanto que responde em seguida — pro- do céu que escurece de repente, a própria moça fala do seu estar
vavelmente meio brava — que já tinha levado a maior paulada uu no escuro, do nunca mais amanhecer o dia. Parece que não há
mundo, e, se tivesse de dar ainda alguma coisa, seria a sua re olta. muito o que acrescentar aí, mas a terapeuta traz à luz outros
A terapeuta não insiste e, só mais adiante, diz a ela: "Quanto a desdobramentos dessa primeira compreensão: o aspecto brusco
seus projetos de vida, eles vão continuar aí cobrando você." da mudança, o não poder ver, o medo, a ausência de futuro, e, por
fim, abre a pergunta sobre o que ela veria se, com um mínimo de
Ela considera que isso poderá vir a ter sentido para a
luz, pudesse enxergar um pouco. E chega à perda da esperança.
paciente, que, em outros momentos, ao se referir ao valor do seu
trabalho, às obrigações que tinha na vida, à consideração pela No sonho da terra revolvida, ela se detém na terra que é cor
mãe e pela irmã, já havia se mostrado como alguém capaz de se de terra pintada com o marrom cor de terra de desenho de
sentir responsável. Então, acha que talvez aquela sua fala possa criança. Com perguntas e paciência, se aproxima de algo que,
ser acolhida. para a moça, diz respeito ao ser criança: a confiança. E sugere
a ela: "Será que aí há um toque de confiança?"
Com um outro paciente, provavelmente, a terapeuta teria
encaminhado a conversa de uma outra maneira.
Embora seja difícil para a pessoa que perdeu muito começar
a encontrar alguma abertura para o futuro, a terapeuta está atenta
Não só no que se refere aos sonhos relatados, mas em toda
para o que possa favorecer a entrada nessa direção. Há uma
a fala da moça, a terapeuta se esforça para que aquilo se
sessão em que a paciente diz que tem saudade da sua vida e conta
desdobre em significados ao mesmo tempo mais precisos e mais
a história do pão de queijo na lanchonete. Isso surge como ocasião
amplos. Há um momento, por exemplo, em que elas percorrem um
para lembrá-la de que há vida para ser vivida.
caminho que passa pela possibilidade de fazer da vida um grande
* lamento, pela vergonha do rosto, pelo valor da beleza, pelo ser
objeto de curiosidade, pelo temor da comparação, pelo sentir-se
inferior, pela necessidade de perfeição. Acabam por chegar ao
Havia dito antes que uma terapia só faz sentido com
sentimento da crueldade daquela forma de abandono e àquilo que
referência ao existir concreto de alguém. O mesmo vale para o
a paciente chama de morte na alma. Em seguida, a moça
significado dos sonhos que um paciente conta. Mesmo que, pelo
consegue se aproximar de algo que, até aquele momento, estava
fato de compartilharmos a linguagem, possamos dispor de
encoberto: sua parcela de responsabilidade pelo acontecido.
significados compartilhados culturalmente, ainda assim, os
significados contidos no sonho de um paciente devem ser "Como me descuidei desse jeito?"

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Bile Tatit Sapienza Do desabrigo à confiança

Se, como no dizer de Heidegger, a h e r m e n ê u t i c a da sem afirmar, sugere que isso possa ser um modo de manter viva
facticidade tem a tarefa de fazer o Dasein acessível a si mesmo a marca do que sofreu por culpa de um mundo injusto, um jeito
com relação ao caráter de seu ser, embora o dito por ele se refira de dizer sempre a si mesma: "O que foi feito de mim!" Mas como
a um outro contexto, onticamente é isso também o que está ela sugere isso, se antes havia dito que a paciente quer esconder
acontecendo nessa terapia. O esforço aqui é para tornar a suas marcas, quer se esconder? E que sentimentos se misturam.
facticidade de uma existência particular, ou seja, a existência Alguém pode não querer que vejam ou saibam o que o faz sofrer,
daquela moça que procurou a terapia, acessível a ela mesma. e sentir, ao mesmo tempo, que precisa conservar cuidadosamente
Terapeuta e paciente estão ali num processo de interpretar e registrado tudo o que diz respeito a esse sofrer. Mas por que
explicitar o que se manifesta ocultado naquilo que aparece. alguém pode querer manter a lembrança de algo ruim? No caso
A terapeuta faz algumas considerações e perguntas, muito dessa moça, se ela sofre com sua aparência, por que não cuidar
simples, que têm a ver com o que está sendo falado. Por exemplo, de melhorá-la? E que tentar melhorar alguma coisa significa dar
quando a moça diz que ficou muito aflita por seu chefe tê-la espaço para a esperança, e esperar supõe, em algum grau, confiar
encarregado de um trabalho fora do escritório, ela mostra que aí que algo possa vir, ou seja, "se iludir de novo", e isso pode ser
está uma questão que a paciente não pode deixar de resolver: arriscado. Não investir na melhora pode ser um jeito de dizer a
colaborar com o chefe e as colegas ou continuar a se esconder. si mesma: "Sei agora que a vida é cruel; que bobagem é acreditar
E ainda pergunta em seguida do que ela tem medo. A moça não na vida!" E assim ela se instala na amargura, e, de alguma forma,
havia dito nada sobre se esconder, ao contrário, ela acha que não ali está o seu protesto. Vemos que o pensamento da terapeuta vai
está propriamente se escondendo, apenas não tem a mesma à procura de um sentido mais amplo que poderia estar encoberto
desenvoltura, e também diz que não tem medo, apenas não gosta naquele não se cuidar. E depois acena com uma possibilidade.
de comparações. A terapeuta, entretanto, interpreta o "ficar aflita" "Será que ao menos você não poderia tratar a si mesma com
diante do pedido do chefe como manifestação do querer se mais carinho?"
esconder e do medo, e a conversa se encaminha de modo a
mostrar o quanto a paciente tem se fechado na preocupação *
consigo mesma. Em que a terapeuta se baseia para dizer à
paciente que ela está se escondendo, tem medo e está o tempo Notamos que, em alguns momentos, o encaminhamento da
todo fechada na preocupação consigo? Ela se baseia em tudo o conversa poderia ter sido outro. Assim, quando a terapeuta fala
que vem aparecendo na terapia: desde o começo, no sonho em que para a paciente o quanto ela tem estado preocupada consigo
anoitece de repente, lá está o medo; ela se esconde ao evitar as mesma, a paciente diz: "Você está sendo dura." A terapeuta
pessoas, se esconde até de si mesma, mal se olha no espelho. Com poderia ter se detido nessa fala da paciente, algo que tinha a ver
medo e precisando se esconder, faz sentido que ela se torne para com um sentimento relativo à terapeuta naquela hora. Considera,
si mesma o centro de sua preocupação: ela "sabe" que as entretanto, que o problema da moça não é basicamente com ela,
pessoas, quando a vêem, ficam curiosas por saber o que lhe a terapeuta; sua questão é outra. Prioriza, então, a entrada em
aconteceu e vão perguntar a alguém; o trabalho com o qual outra coisa mais importante para a paciente: a relação que está
sempre sonhou faz com que se lembre, a toda hora, que está feia. sendo vivida com o mundo num sentido mais abrangente.
Quando, certa vez, a paciente pergunta por que será que ela
passou tanto tempo sem cuidar de seu rosto, a terapeuta, embora *

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Bile Tatit Sapienza Do desabrigo à confiança

Importante nessa terapia é o vínculo que se forma, e isso se aquele Dasein, tudo o que pode ser já tivesse se esgotado naquilo
mostra em várias situações. Mesmo que em alguns momentos que foi; aquela abertura compreensiva está afinada no modo
surja alguma irritação, parece que a moça sente que é possível amargo da desilusão, em que se estreitam demais as possibilidades
confiar na terapeuta. Já no início, um dia ela pensa em não ir à de as coisas acontecerem de outro modo, de 'ser' se 'dar' de
terapia (quem sabe, até não voltar mais), mas muda de ideia outro modo, de continuar a 'doação de ser'.
quando se lembra de que precisa contar uma coisa para a
terapeuta, e pensa: "Pra quem mais posso falar?" Num outro dia, *
vemos como para ela é significativo saber que a terapeuta
acredita nela, quando diz que não estava dirigindo o carro. A Essa terapia ainda continua. Vimos como a moça chegou,
ligação com a terapeuta se mostra também quando ela diz: como ela e a terapeuta começaram um percurso que será longo.
"Mesmo se eu resolvesse morrer, eu queria contar essas coisas É o percurso do trabalho terapêutico. Esse trabalho parte de um
todas pra você, assim pelo menos ia existir no mundo alguém sentimento de estar desabrigado e "caminha na direção da
sabendo de tudo." Está sempre presente a sua necessidade de confiança, a afinação na qual Dasein se abre para a manifestação
compartilhar. Da parte da terapeuta está presente a solicitude que dos acontecimentos que se dão, que se deram e que se darão em
acolhe. sua história, acolhe-os, e, ao mesmo tempo, se entrega à doação
que tudo doa, se entrega à sua própria existência, se entrega à sua
* destinação existencial" (Pompeia, 2004, p. 19).
Caminhar na direção da confiança é difícil para quem está
A vinda dessa moça para a terapia exemplifica, num grau vivendo com a única certeza de que não pode confiar em ninguém,
muito intenso, o sentimento de estar desabrigado, de se encontrar em nada, de que está rodeado pela indiferença ou pela hostilida-
na inospitalidade da existência, isso que caracteriza, em geral, a de do mundo. Para quem está vivendo assim, não há o que espe-
procura de terapia. Embora algumas coisas ainda tenham sentido rar; a única dimensão da vida que se desvela é a da falta de
para ela, por exemplo, manter seu trabalho porque precisa ajudar sentido. Diante da impossibilidade de se dedicar a um sentido, ou
a mãe e a irmã, os seus sonhos de mulher jovem foram cortados a pessoa sucumbe de uma vez, ou se põe a, desesperadamente,
de repente. Não há mais um futuro em que ela possa ser feliz. Ela procurar estratégias de sobrevivência que possam preencher o
confiava em si mesma, nas pessoas, na vida que viria, e deixou vazio de sua vida.
de confiar. Deixar de confiar é não mais acreditar, não mais Aquela expressão 'doação de ser' pertence a um contexto
esperar. O que aconteceu em sua vida fez com que se petrificasse filosófico ligado à questão relativa ao 'ser', contexto esse em que
a capacidade de esperar por qualquer outro acontecimento de 'ser' é considerado como sempre 'doado' ao homem, cuja
natureza diferente daquele vivido, isto é, a sua vida parou ali, o 'existência' consiste em ser sempre a 'abertura' para o 'ser'.
acontecido engole qualquer possibilidade diferente dele mesmo. Mas, como terapeutas, podemos compreender a expressão numa
Não há, para ela, o poder ser diferente do que ela está sendo referência à história vivida de cada um. Aí, então, cada vez que
agora (sentir-se feia, abandonada, infeliz); o poder ser diferente alguém fala ou pensa coisas como: "Que é isso que me acontece?
na atitude de um homem (sedução e abandono); o poder ser Como foi mesmo que se deu tal coisa? Que significou tudo aquilo?
diferente da vida (a vida que puxa o tapete). É como se, para O que será que vai acontecer comigo? Não entendo o que

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acontece. Que bom que aconteceu isto! Não espero que aconteça
nada de bom. Para onde caminha o mundo? ele pode não ser
filósofo, mas o que está sempre em questão para ele é o ser: o
que é, o que f o i , o que será; é sempre ser se dando nos
acontecimentos da vida. O homem não tem como deixar de ser
essa abertura que, essencialmente, em algum grau e de algum
modo, compreende ser. Mas, em algum grau e de algum modo
também, sua compreensão não é completa, por isso ele continua
perguntando pelo que é, pelo que foi, pelo que vai ser. Mesmo
quando, na desilusão, não quer mais saber de nada, a pergunta
emudece pela perplexidade ou pelo desânimo, mas é perplexidade
ou desânimo diante da questão. Voltemos à nossa moça. No dia em que falou da foto no
Quando dizemos que a terapia deveria caminhar na direção jornal, depois de ter chorado a sessão inteira, já em pé, ela disse:
do sentimento de confiança, de entrega à 'doação de ser', — Parece que estou acordando de um pesadelo pra entrar
queremos realçar como é importante que o paciente possa vir a numa realidade pior. Não há mais nada nublado; está tudo muito
sentir que sua história está se fazendo, ela não acabou ainda; que, claro. Por eu ser bonita, ele me quis. Da parte dele, essa foi a
dia a dia, é inevitável que novos acontecimentos se dêem; que é única coisa verdadeira. Nenhum afeto por mim.
possível que o sentido da sua vida venha a ser rearticulado. Isso
supõe primeiramente que ele possa desenvolver uma capacidade *
de aceitação — e isso é difícil — do que foi, do que está sendo,
do que pode vir a ser, e de acolhimento do que é dado, até como Nas sessões que se seguiram, o assunto principal foi sempre
condição para poder transformar alguma coisa. esse, a frieza dele. As perguntas que apareciam eram sobre o
porquê das mentiras a respeito do seu trabalho, da sua vida
* particular: "Será que ele tinha medo de que eu quisesse explorá-
lo de alguma maneira? Será que dou a impressão de ser esse tipo
de mulher? Será que eu tinha como perceber as mentiras e fui
muito tonta?"

Passado algum tempo, surgiu este diálogo numa sessão:


— Estou pensando naquele dia do acidente. Por muito
menos, é aberto processo nesses casos. Como foi que ele se saiu
disso? Já sei de onde veio essa história de que era eu quem estava
dirigindo. Nossa, será que o dinheiro pode tanto assim?

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Bile Tatit Sapienza
Do desabrigo à confiança

— Pode. Dinheiro não pode tudo, mas pode muito.


seu médico propôs, por que será isso? Você estava animada com
— Dinheiro não pode dar paz de consciência..., mas isso é
a ideia. Por que será que você se recusa a melhorar ainda mais
pra quem tem consciência.
sua aparência? Quer garantir que os homens não se aproximem
Ficou um pouco quieta e em seguida falou: de você por achá-la bonita? Beleza se transformou numa coisa
— Um dia ainda acerto esse cara. Sabendo agora quem ele perigosa?
é, eu poderia ir atrás dele; mas não quero fazer isso. Só sei que
— Não é isso, é que estou assumindo agora a vida do jeito
ainda vai chegar a hora desse acerto de contas. Ah, se vai! que ela é, e ela é assim. É dura mesmo. Tudo o que me aconteceu
serviu pra me mostrar que eu era sonhadora demais, que eu
acreditava nas pessoas. Minha mãe vivia me prevenindo; ela me
dizia pra ter cuidado com os homens. É o mesmo que ela diz pra
O tratamento planejado para ser feito em seu rosto deveria minha irmã agora. Parece que ela estava adivinhando o que iria
ter acontecido uma semana depois do dia em que viu a foto dele me acontecer. Já meu pai era diferente. Quando ele teve o enfarte
no jornal. Ela não quis fazer mais nada naquela ocasião. Só uns eu tinha dez anos. Meu pai me dizia sempre, meio brincando, mas
dois meses depois voltou a falar sobre esse assunto. Então a ao mesmo tempo falando sério: "Que filhinha bonitinha essa que
terapeuta perguntou se ela havia desistido do tratamento. E ela eu tenho." Uma vez minha mãe disse pra ele: "Pare de estragar
respondeu: a menina com essa bobagem de bonitinha." Nesse dia, me lembro
— Acho que o susto que levei com aquela foto e tudo mais de ele ter dito: "Ela não vai se estragar por causa disso. O que
que começou a vir ao meu pensamento me deixaram meio ela tem é um dom." Que saudade eu tenho do meu pai! Se ele
atordoada. Eu me afundei no trabalho, ainda mais depois que tive estivesse vivo, iria me dar o maior apoio nisso tudo. Sabe, ele era
a promoção. Depois daquele dia em que v i a foto dele fiquei professor de literatura. Uma pessoa muito sensível. Deu aula no
diferente. Antes, era uma tristeza muito grande, uma amargura, colégio onde estudei. Por isso me deram a bolsa de estudos depois
mas agora o que sinto é raiva: raiva dele sempre, e, às vezes, raiva que ele morreu. Minha m ã e era diferente, sempre muito
de mim, por ter sido tão boba. Perdi o ânimo de voltar ao médico preocupada e aflita com tudo. Ela era boa do jeito dela. Mas me
pra tratar das minhas cicatrizes. Você pode me achar meio louca, diga você. O que fiz de errado nessa história que me aconteceu?
mas parece que até comecei a querer que fique tudo como está. Se não tivesse havido o acidente, e se ele passasse a me tratar
Em vista de como poderia ter ficado, até que está ótimo. Já me mal como fez na hora em que bateu nas minhas mãos e fez voar
acostumei, converso com naturalidade com as pessoas. Pra que o pacote de biscoitos, eu teria percebido, eu não iria continuar com
mais? Tenho saído com as meninas, fui outro dia a uma festa. A ele. Maldita hora em que entrei naquele carro com ele bêbado
única diferença é que namorar não faz mais parte dos meus daquele jeito. Foi aí que eu errei... Estou me lembrando do meu
planos. pai: "O que ela tem é um dom." Se estivesse aqui, ele iria dizer
— E por que não faz parte? para eu ir, sim, fazer o tratamento que o médico propôs. Sabe de
— Ora, você sabe o porquê. uma coisa? Amanhã mesmo vou ligar pra ele.
— Imagino que tenha medo de que os homens sejam todos — Pois é, seu pai chamava de dom alguma coisa que foi
como aquele. Não quer correr o risco de topar com um outro dada sem você pedir, sem ir atrás. Aconteceu de você ter nascido
igual, não é? E agora, quanto a não querer fazer o tratamento que assim. Por que não aceitar, por que não manter uma coisa que

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você sempre sentiu como sendo boa? Por outro lado, outras coisas sabia que havia essa saída pra mim. Mas isso foi sendo adiado até
sentidas como muito ruins também aconteceram sem que você que, quando me dei conta, essa hora já tinha passado..., não que
fosse atrás delas. Essas também foram dadas como se deram. E a minha dor fosse menor. Não sei o que aconteceu. Bem, eu sei
essas, mesmo que custe, não há como recusar, porque elas se que tem a ver com o fato de eu vir aqui. Será que falar ajuda?
impuseram. Então, se você está sendo capaz de aceitar a vida Só sei que muita coisa mudou na minha vida, algumas coisas
dura como ela é, como você disse hoje, por que não aceitar, por perderam a importância que tinham, e outras se tornaram
que não receber também o que pode chegar de bom pra você? importantes. Ah, por falar nisso, na próxima semana eu não venho.
— Pensando bem, não tem cabimento, é até feio não Deu certo a abertura daquela filial da empresa. Você se lembra
aceitar uma coisa que meu médico me ofereceu de boa vontade, de que falei disso há um tempo? E isso, vou ter de viajar pra dar
que faz parte do trabalho dele. Isso é até fazer pouco caso da uma força para o pessoal de lá. A gente se vê só na outra semana.
sorte que tive de encontrar uma pessoa como ele. Bendita hora O problema vai ser na faculdade, tenho provas marcadas. Mas eu
em que, ao entrar naquele hospital, era ele quem estava de converso depois com os professores, a gente dá um jeito.
plantão. Ele é uma pessoa especial. Gosto muito dele. Ela falou um pouco mais sobre o trabalho e a faculdade até
— Imagino que goste mesmo. acabar a sessão.

*
Nesse dia, depois que ela saiu, a terapeuta ficou se
Depois disso, mais de dois anos já se passaram. Foram lembrando de quando, no começo da terapia, tinha se perguntado:
excelentes os resultados dos tratamentos feitos pelo seu médico. "O que posso fazer por ela?" Até agora ainda não sabia dizer
Ficaram algumas marcas ainda, muito mais leves, nada que exatamente o que tinha feito, mas gostou dessa ideia de ter
estrague o conjunto do seu rosto. Ela se cuida também com uma contribuído para aquele adiamento da morte. E pensou: "Enquanto
dermatologista que trabalha no consultório dele. E a terapia isso, deu tempo de tanta coisa acontecer! Onde foi mesmo que
continua. Depois de o mais urgente ter se acalmado, começaram eu l i dá-se tempo, dá-se serl Lembrei. Está naquele texto Tempo
a chegar as lembranças mais antigas, alegrias e tristezas da e ser, de Heidegger. Se bem que lá o sentido dessas expressões
infância e da adolescência. Apareceram também as coisas novas, é outro. Lá se trata de 'tempo' e 'ser' como as questões do
como ela cwstuma dizer, algumas j á sendo realizadas, como o
pensamento, as questões da filosofia... Mas por que essas
progresso que ela tem tido na empresa em que trabalha, e outras
expressões me vieram à cabeça agora? Eu estava pensando no
com as quais ela não sabe ainda o que fazer, coisas que se
dar-se de tempo e no dar-se de ser para cada ser humano, pois,
anunciam... O que importa é que ela está sendo capaz de retomar
afinal, cada um tem de se haver constantemente com o sentido
o cuidado da sua vida.
do seu ser e do ser de tudo que se apresenta a ele e o afeta de
Outro dia ela contou para a terapeuta que, ao fazer uma
algum modo; tem de se haver com o sido, o estar sendo e o
limpeza de armário, encontrou a caixinha quase cheia de remédios
poder ser de sua existência, e o poder não ser... E isso. Pensando
que havia trazido do hospital e jogou os comprimidos na privada.
na terapia, quanta coisa se deu nesse espaço de tempo!... Só sei
Disse então:
que, durante a terapia, ela foi escolhendo viver..., e, enquanto isso,
— V i os remédios e me lembrei de que, mesmo depois que
tivemos tempo... Mas, afinal, o que se deu aqui na terapia? Ela
comecei a vir aqui, por algum tempo eu ainda queria morrer. Eu

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Bile Tatit Sapienza

não conseguia mais ver sentido em sua vida. Me lembro de quando


ela falou da morte na alma. Sinto que atravessamos um lugar
muito árido. Mas em algum momento o sentido começou a ser
rearticulado. Como é difícil falar disso! Não sei dizer em que
momento começou a se dar uma transformação, mas sei que
houve uma transformação. Ela era a própria imagem do desabrigo
Referências
quando a conheci. Não sei bem quando e como foi que ela
começou a aceitar e a acolher aquilo que pôde ter sido dado,
aquela possibilidade que, mesmo tão indesejada, se realizou — o
doloroso de sua vida —; nem quando e como foi que ela começou
a aceitar e a acolher o que pode ser dado dia a dia, num
ressurgimento da confiança que possibilita a entrega ao que se HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Trad. Emmanuel Carneiro
apresenta a ela e a solicita. Parecia impossível. Mas aconteceu. Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.
Sinto que hoje, ainda que com momentos de grande tristeza — isso El ser y el tiempo. Trad. José Gaos. México: Fondo de Cultura
faz parte da vida —, a existência dela pode conter, pode abarcar Económica, 1971.
tanto aquela desilusão tão grande, um pedaço de sua história, Ontology - The Hermeneutics of Facticity. Trad. John van
como a dimensão de futuro, em que sua história continua. Estou Buren. Bloomington, Indiana: Indiana University Press, 1999.
me lembrando agora daquele seu antigo sonho, em que nunca PASCAL, Blaise. Pensamentos. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Mar-
mais o dia iria amanhecer..." tins Fontes, 2001.
POMPEIA, João Augusto. Corporeidade. Revista da Associação Brasi-
leira de Daseinsanalyse, São Paulo, n. 12,2003.
POMPEIA, João Augusto. Aspectos emocionais na terapia daseinsana-
lítica. Revista Brasileira de Daseinsanalyse, São Paulo, n. 13, 2004.
SARTRE, Jean-Paul. L'être et le néant. Paris: Gallimard, 1943.

Os textos "Desfecho: encerramento de um processo" e "Tempo e ser",


cujas referências aparecem no pensamento da terapeuta imaginada no
exemplo, estão em:
HEIDEGGER, Martin. Tempo e ser. Trad. Ernildo Stein. In: Os Pensado-
res. São Paulo: Nova Cultural, 1989.
POMPEIA, João Augusto e SAPIENZA, B i l e Tatit. Desfecho: encerramen-
to de um processo. In: Na presença do sentido. Uma aproximação feno-
menológica a questões existenciais básicas. São Paulo: Educ/Paulus,
2004.

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As bases do amor materno, Margarete Hilferding, Teresa Pinheiro e Helena B.
LIVROS PUBLICADOS PELA EDITORA ESCUTA Vianna
Transferências, Abrão SIavutzky
Do sujeito à imagem. Uma história do olho em Freud, Hervé Huot
O sentimento de identidade, Nicole Berry
Gigante pela própria natureza, Emilio Rodrigué
Psicanálise, judaísmo: ressonâncias, Renato Mezan (esg.) Freud e o homem dos ratos, Patrick J . Mahony
Do gozo criador, Carlos D. Perez Nome, figura e memória, Pierre Fedida
O manuscrito perdido de Freud, H. Haydt de S. Mello A supervisão na psicanálise, Conrad Stein et al.
O psicanalista e seu ofício, Conrad Stein Perturbador mundo novo, SBPSP (org.)
Elementos da interpretação, Guy Rosolato Cidadãos não vão ao paraíso, Alba Zaluar (Co-ed.Edunicamp)
A pulsão de morte, André Green et al. Casal e família como paciente, Magdalena Ramos (org.)
Psicanálise de sintomas sociais, Sergio A. Rodriguez/Manoel T. Berlinck (orgs.) Mancar não é pecado, Lucien Israel
Família e doença mental, Isidoro Berenstein Crónicas científicas, Anna Verónica Mautner
Narcisismo de vida, narcisismo de morte, André Green Penare, Celia Eid e Maria Lúcia Arroyo
As Erínias de uma mãe, Conrad Stein A histérica, o sexo e o médico, Lucien Israel
Notas de psicologia e psiquiatria social, Armando Bauleo Olho d'água. Arte e loucura em exposição, João Frayze-Pereira
Trauma, amor e fantasia, Franklin Goldgrub Vida bandida, Voltaire de Souza
Clínica psicanalítica: estudos, Pierre Fedida Figuras da teoria psicanalítica, Renato Mezan (Co-ed. Edusp)
Psicanálise da clínica cotidiana, Manoel Tosta Berlinck Em busca da escola ideal, Neda Lian Branco Martins
O acalanto e o horror, Ana Lúcia C. Jorge A casca e o núcleo, Nicolas Abraham e Maria Tõrok
A Representação. Ensaio psicanalítico, Nicos Nicolaidis Ah! As belas lições!, Radmila Zygouris
O desenvolvimento kleiniano I. Desenv. clínico de Freud, Donald Meltzer Sigmund Freud. O século da Psicanálise (3 vols.), Emilio Rodrigué
Édipo africano, Marie-Cécile e Edmond Ortigues A dialética da falta, Alba Gomes Guerra e Patrícia Simões
Comunicação e representação, Pierre Fedida (org.) A interpretação, Elisabeth Saporiti
Ensaios de psicanálise e semiótica, Miriam Chnaiderman Fato em psicanálise, UPA
Freud e o problema do poder, Leon Rozitchner O corpo de Ulisses. Modernidade e materialismo em Adorno e Horkheimer, Pau-
Melanie Klein: evoluções, Elias M. da Rocha Barros (org.) lo Ghiraldelli Jr. (esg.)
Figurações do feminino, Daniele Brun Considerações sobre o psiquismo do feto, Therezinha G . de Souza-Dias
14 conferências sobre Jacques Lacan, Fani Hisgail (org.) Isaías Melsohn. A psicanálise e a vida, Bela Sister e Marilsa Taffarel (orgs.)
Introdução à psicanálise, Luis Hornstein Outra beleza. Estudo da beleza para a psicanálise, Cláudio Bastidas
O aprendiz de historiador e o mestre-feiticeiro, Piera Aulagnier O sítio de estrangeiro, Pierre Fedida
O desenvolvimento kleiniano II. Des. clínico de M. Klein, Donald Meltzer Psicoterapia breve psicanalítica, Haydée C. Kahtuni
Tausk e o aparelho de influenciar na psicose, Joel Birman ( org.) O processo analítico, UPA
A construção do espaço analítico, Serge Viderman Elaboração psíquica. Teoria e clínica psicanalítica, Paulina Cymrot
Um intérprete em busca de sentido - I, Piera Aulagnier A linguagem dos bebés, Marie-Claire Busnel
Um intérprete em busca de sentido - II, Piera Aulagnier Uma pulsão espetacular, Psicanálise e teatro, Mauro P. Meiches
Ter um talento, ter um sintoma, Denise Morel Freud. Um ciclo de leituras, Silvia L . Alonso e Ana M. S. Leal (orgs.)
A dialética freudiana I: Prática do método psicanalítico, Claude Le Guen Cadernos de Bion 1, Júlio C. Conte (org.)
O inconsciente: várias leituras, Felícia Knobloch (org.) O estrangeiro, Caterina Koltai (org.)
Psicose: uma leitura psicanalítica, Chaim S. Katz (org.) Eu corpando. O ego e o corpo em Freud, Liana Albernaz de M. Bastos
História da histeria, Etienne Trillat Diálogos, Gilles Deleuze e Claire Parnet
A rua como espaço clínico, Equipe de A.T. do Hospital-Dia A C A S A (org.) O sintoma da criança e a dinâmica do casal, Isabel Cristina Gomes
A clínica freudiana, Isidoro Vegh A escuta, a transferência e o brincar, UPA
O título da letra, Jean-Luc Nancy e Philippe Lacoue-Labarthe Sexo, Rosely Sayão (Co-ed. Via Lettera)
Quando a primavera chegar, M. Masud R. Khan A prova pela fala, Roland Gori (Co-ed.UCG)
O Deus odioso. O diabo amoroso. Psicanálise e representação do mal, Mareio O instante de dizer, Marie-Jose Del Volgo (Co-ed.UCG)
Peter de Souza Leite e Jacques Cazotte 0 desenv. kleiniano III. O significado clínico da obra de Bion, Donald Meltzer
Achados chistosos da psicanálise nas crónicas de J.Simão, Jane de Almeida ( C o - E d u c )
Os gregos e o irracional, E . R. Dodds
A história de Tobias. Um estudo sobre o animus e o pai, Fabíola Luz
Vínculos e instituições. Uma escuta psicanalítica, Olga B. Ruiz Correa (org.)
Freud e a consciência, Oswaldo França Neto
Em torno de O mal-estar na cultura de Freud, Jacques Le Rider, Michel Plon,
Pulsões de vida, Radmila Zygouris
Gerard Raulet, Henri Rey-Flaud
Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi, Luis Cláudio Figueiredo
Personalidade, ideologia e psicopatologia crítica, Virgínia Moreira e Tod Sloan
Transferência, sedução e colonização, UPA
Encontros e desencontros entre Winnicott e Lacan, Perla Klautau
Febem, família e identidade. O lugar do Outro. Isabel Kahn Marin
Figuras clínicas do feminino no mal-estar contemporâneo, Silvia Alonso et.al. (orgs.)
A criança adotiva na psicoterapia psicanalítica, Gina K. Levinzon
Psicopatologia psicanalítica e outros estudos, UPA
Mosaico de letras. Ensaios de psicanálise, Urania Tourinho Peres
O gozo en-cena. Sobre o masoquismo e a mulher, Eliane Z. Schermann
Cadernos de Bion II, Júlio César Conte (org.)
Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da hospitalidade, Anne
Memórias de um autodidata no Brasil, Mauricio Tragtemberg
Dufourmantelle/Jacques Derrida
Ética e técnica em psicanálise, Luís Cláudio Figueiredo e Nelson Coelho Jr.
Os rumos da psicanálise no Brasil: um estudo sobre a transmissão psicanalítica,
A arte do encontro de Vinícius de Moraes, Sónia Alem Marrach
Eliana Araújo Nogueira do Vale
Educação para o futuro. Psicanálise e educação, M. Cristina M. Kupfer
Psicanálise. Elementos para a clínica contemporânea, Luís Cláudio Figueiredo
Política e psicanálise. O estrangeiro, Caterina Koltai
Psicologia do desempenho. Corpo pulsional & corpo mocional, José Luis Moraguès
Nas encruzilhadas do ódio, Micheline Enriquez
Memória e exílio, Sybil Safdie Douek
Aids. A nova desrazão da humanidade, Henrique F . Carneiro
Desafios para a psicanálise contemporânea, Lúcia B. Fuks e Flávio C. Ferraz (orgs.)
O problema da identificação em Freud, Paulo de Carvalho Ribeiro
Os caminhos do trauma em N. Abraham e Maria Torok, Suzana P. Antunes
Catástrofe e representação, Arthur Nestrovski e Márcio Seligmann-Silva (orgs.)
Universidade e governo. Professores da Unicamp no período FHC, Mônica Tei-
Conformismo, ética, subjetividade e objetividade, UPA
xeira (org.)
A histérica entre Freud e Lacan, Monique David-Ménard
Envelhecer com desenvolvimento pessoal, Ana Maria S. R. Varella
Como a mente humana produz ideias, J. Vasconcelos
Mudanças no relacionamento afetivo-sexual, Tânia da G . Nogueira (co-Fumec)
Mulher no Brasil. Nossas marcas e mitos, Marisa Belém
Falar em público. Experiência de mal-estar na trajetória profissional contempo-
A clínica conta histórias, Lúcia B. Fuks e Flávio C. Ferraz (orgs.)
rânea, Nazildes Lobo
O olhar do engano. Autismo e outro primordial, L i a Ribeiro Fernandes
TPM - Tensão, paixão e mal-estar. A subjetivação de uma mulher em tensão
Doença ocupacional, Marina Durand
pré-menstrual, Juçara Rocha Soares Mapurunga
Os avatares da transmissão psíquica geracional, Olga B. R. Correa (org.)
Melanie Klein. Estilo e pensamento, M. Elisa de Ulhoa Cintra e Luis Cláudio F i -
Abertura para uma discoteca, Roland de Candé
gueiredo
A conversa infinita -LA palavra plural, Maurice Blanchot
Ética e finitude, Zeljko Loparic
A morte de Sócrates. Monólogo filosófico, Zeferino Rocha
Transferência, contratransferência e outros estudos, UPA
Cenários sociais e abordagem clínica, José Newton Garcia de Araújo e Teresa
A formação do psicólogo, João L . Ferreira Neto (Co-Fumec)
Cristina Carreteiro (orgs.) (Co-Fumec)
A dominação do corpo no mundo administrado, Conrado Ramos
O que é diagnosticar em psiquiatria, Jorge J. Saurí
O analista trabalhando, UPA
A constituição do inconsciente em práticas clínica na França do século XIX, Sid-
Prostituição: o eterno feminino, Eliana dos Reis Calligaris
nei José Cazeto
Cruzamentos 2. Pensando a violência, Fernando Kunzler e Bárbara Conte (orgs.)
Narcisismo, superego e o sonhar, UPA
A violência no coração da cidade. Um estudo psicanalítico, Paulo Cesar Endo
Psicofarmacologia e psicanálise, M. Cristina Rios Magalhães (org.)
Winnicott na clínica e na instituição, Renate Meyer Sanches (org.)
A Escola Livre de Sociologia e Política. Anos de Formação 1933-1953. De-
Perversão em cena, Eliane Chermann Kogut
poimentos, íris Kantor, D é b o r a A. M a c i e l , Júlio Assis Simões (orgs.)
Linha de horizonte - por uma poética do ato criador, Edith Derdyk Autoritarismo afetivo. A Prússia como sentimento, Gisálio Cerqueira Filho
Diagnóstico compreensivo simbólico. Uma psicossomática para a prática clíni- Dialética da vertigem. Adorno e a filosofia moral, Douglas Garcia Alves Júnior
ca, Susana de Albuquerque Lins Serino (co-Fumec)
O carvalho e o pinheiro. Freud e o estilo romântico, Ines Loureiro A festa tecnológica, Glaucia Dunley (Co-Fiocruz)
O conceito de repetição em Freud, Lúcia Grossi dos Santos ( c o - F u m e c ) História da psicanálise. São Paulo 1920-1969, Carmen Lúcia M. V. de Oliveira
Driblando a perversão. Psicanálise, futebol e subjetividade brasileira, Cláu- Memória da língua. Imigração e nacionalidade, Maria Onice Paye
dio Bastidas Sobre arte e psicanálise, Tânia Rivera e Vladimir Safatle (orgs.)
O sintoma e suas faces, Lucía B. Fuks e Flávio C. Ferraz (orgs.)
O cálculo neurótico do gozo, Christian Ingo Lenz Dunker
Controvérsias psicanalíticas, UPA
Psicanálise e educação. Questões do cotidiano, Renate Meyer Sanches
Tornar-se herdeiro. A transmissão psíquica entre gerações, Tatiana Inglez-
Espinosa. Filosofia prática, Gilles Deleuze
Mazzarella
Gozo, Néstor A. Braunstein O que a psicanálise pode ensinar sobre a criança, sujeito em constituição, Leda
COLEÇÃO Mariza F. Bernardino (org.)
BIBLIOTECA D E PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL Cata-ventos. Invenções na clínica psicanalítica institucional, Paulina S. Rocha
(org.)
Melancolia, Urania Tourinho Peres (org.)
Histeria, Manoel Tosta Berlinck (org.) COLEÇÃO — O SEXTO LOBO
Autismos, Paulina S. Rocha (org.) Hello Brasil!, Contardo Calligaris
Depressão, Pierre Fédida Clínica do social. Ensaios, Luiz Tarlei de Aragão (org.)
Pânico e desamparo, Mario Eduardo Costa Pereira Exílio e tortura, Maren e Marcelo Vinar
Anorexia e bulimia, Rodolfo Urribarri (org.) Extrasexo. Ensaio sobre o transexualismo, Catherine Millot
Dor, Manoel Tosta Berlinck (org.) Alcoolismo, delinquência, toxicomania, Charles Melman
Toxicomanias, Durval Mazzei Nogueira Filho Imigrantes. Incidências subjetivas das mudanças de língua e país, Charles
Diferenças sexuais, Paulo Roberto Ceccarelli Melman
Os destinos da angústia na psicanálise freudiana, Zeferino Rocha Fantasia de Brasil, Octávio Souza
Hysteria, Christopher Bollas Modos de subjetivação no Brasil e outros escritos, Luis Cláudio Figueiredo
Psicopatologia fundamental, Manoel Tosta Berlinck (Co-Educ)
Culpa, Urania T. Peres (org.) A face e o verso. Estudos sobre o homoerotismo - //, Jurandir Freire Costa
O que é ser brasileiro? Carmen Backes
A paixão silenciosa, Maria Helena de Barros e Silva
Clínica da melancolia, Ana Cleide G. Moreira (Co-Edufpa) COLEÇÃO — ENSAIOS
Depressão, estação psique. Refúgio, espera, encontro, Daniel Delouya
Merleau-Ponty. Filosofia como corpo e existência, Nelson Coelho Jr. e Paulo
Hipocondria, M. Aisenstein, A. Fine e G. Pragier (orgs.)
Sérgio do Carmo
Dos benefícios da depressão. Elogio da psicoterapia, Pierre Fédida
Superego, Marta Rezende Cardoso O inconsciente como potência subversiva, Alfredo Naffah Neto
O pensamento japonês, Hiroshi Oshima
Angústia, Vera Lopes Besset
Comunicação e psicanálise, Jeanne Marie Machado de Freitas
Doenças do corpo e doenças da alma, Lazslo A. Avila.
Clarice Lispector. A paixão segundo C.L., Berta Waldmann
Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Edilene Freire de Queiroz e Antonio
A pulsão anarquista, Nathalie Zaltzman
Ricardo Rodrigues da Silva (orgs.)
Escutar, recordar, dizer, Luís Cláudio Figueiredo (Co-Educ)
Violências, Isabel da Silva Kahn Marin
Sintoma social dominante e moralização infantil, H e l o í s a Fernandez (Co-
Psicopatologia dos ataques de pânico, Mário Eduardo Costa Pereira Edusp)
Masoquismo mortífero e masoquismo guardião da vida, Benno Rosenberg Na sombra da cidade, Maria Cristina Rios Magalhães (org.)
A bulimia, B. Brusset, C. Couvreur, A. Fine (orgs.) Estados-da-alma da psicanálise, Jacques Derrida
A neurose obsessiva, Bernard Brusset e Catherine Couvreur (orgs.) O vínculo inédito, Radmila Zygouris
Limites, Marta Rezende Cardoso (org.) Nem todos os caminhos levam a Roma, Radmila Zygouris
O eu e o corpo, Lazslo A. Avila
COLEÇÃO — TÉLOS
A clínica da perversão, Edilene Freire Queiroz
Psicopatologia e disfunção erétil, Maria Virgínia Filomena Cremasco Grassi Ensaios de clínica psicanalítica, François Perrier
Obsessiva neurose, Manoel T. Berlinck (org.) A formação do psicanalista, François Perrier
Adolescentes, Marta Rezende Cardoso (org.) Afeto e linguagem nos primeiros escritos de Freud, Monique Schneider
Imperativos do supereu, Marta Gerez Ambertin Como a interpretação vem ao psicanalista, René Major (org.)
Traumas, Ana Maria Rudge (org.) COLEÇÃO — LINHAS D E F U G A
A fenomenologia das psicoses, Arthur Tatossian A invenção do psicológico, Luís Cláudio Mendonça Figueiredo (Co-Educ)
COLEÇÃO — INFÂNCIA E PSICANÁLISE Limiares do contemporâneo, Rogério da Costa (org.)
A psicoterapia em busca de Dioniso, Alfredo Naffah Neto (Co-Educ)
Rumo à palavra. Três crianças autistas em psicanálise, M.-Christine Laznik-Penot
As árvores de conhecimentos, Pierre Levy e Michel Authier
Sublimação da sexualidade infantil, Paulo A. Buchvitz
As pulsões, Arthur Hyppólito de Moura (org.) (Co-Educ)
A criança e o infantil em psicanálise, Silvia Abu-Jamra Zornig
A história da psicanálise de crianças no Brasil, Jorge Luís Ferreira Abrão COLEÇÃO — TRANSVESSIAS
O lugar dos pais na psicanálise de crianças, Ana Maria Sigal de Rosemberg O corpo erógeno. Uma introdução à teoria do complexo de Édipo, Serge Leclaire
COLEÇÃO — PLETHOS
A palavra insensata. Poesia e psicanálise, Eliane Fonseca
Contratransferência, Suzana Alves Viana
Poética do erótico, Samira Chalhub
A Escola. Um enfoque fenomenológico, Vitória Helena Cunha Esposito
Psicanálise, política, lógica, Célio Garcia
A eternidade da maçã. Freud e a ética, Flávio Carvalho Ferraz
A cara e o rosto. Ensaio de Gestalt Terapia, Ana Maria Loffredo (esg.)
Pacto Re-Velado. Psicanálise e clandestinidade política, Maria Auxiliadora de Al-
meida Cunha Arantes
A poesia, o mar e a mulher: um só Vinícius, Guaraciaba Micheletti
Psiquismo humano, Marco Aurélio Baggio
Semiótica da canção. Melodia e letra, Luiz Tatit
A cientifwidade da psicanálise. Popper e Peirce, Elisabeth Saporiti
A força da realidade na clínica freudiana, Nelson Coelho Júnior
Corpoafecto: o psicólogo no hospital geral, Marilia A. Muylaert
Crianças na rua, Ana Carmen Martin dei Collado
Um olhar no meio do caminho, Sônia Wolf
Os dizeres nas esquizofrenias. Uma cartola sem fundo, Mariluci Novaes
C O L E Ç Ã O - F I L O S O F I A NO B R A S I L
Freud na filosofia brasileira, Leopoldo Fulgêncio e Richard T. Simanke (orgs.)
Kant no Brasil, Daniel Omar Peres (org.)

Origem: C O M P R A
Livr. Cia dos Livros
Preço: R$ 11,95
Solic. Coordenação
Data: 16/11/09

Título Do desabrigo à confiança. Daseinsanalyse


e terapia
Projeto Gráfico Diogo Angelozi Rossano »
Diagramação Diogo Angelozi Rossatto
Revisão Tereza Cristina P. Teixeira
Formato 14 x 21 cm
Tipologia Times New Roman (11/13)
Papel Cartão Royai 250g (capa)
Off set 75g (miolo)
Número de páginas 132
Tiragem 2.000
Impressão Editora e Gráfica Vida e Conscência

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