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TÍTULO DO TRABALHO
EDUCAR PELA PESQUISA: SOCIOLOGIA E SAÚDE NO ENSINO DE
GRADUAÇÃO EM ENFERMAGEM
AUTORA
LUCIANA BERNARDO MIOTTO
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Este artigo toma por base teórica as discussões realizadas por Blades (2000) acerca
das habilidades necessárias aos estudantes do século XXI. Embora sejam as crianças o foco
de reflexão do autor, isto não nos impede de fazer uma analogia com os estudantes de
graduação das faculdades e universidades. Nossa reflexão tem como objeto de estudo a
pesquisa no ensino de graduação em Enfermagem e a importância que ela possui no
desenvolvimento das habilidades elencadas por Blades.
Conhecimento e ciência
A chamada revolução científica do século XVII foi uma mudança radical na forma
como o homem via a si mesmo e ao mundo, o que acabou gerando a moderna concepção de
ciência. Filosofia e ciência encontravam-se, até então, indistintas. O que irá separá-las na
Idade Moderna é o método a ser utilizado pela ciência. E conforme já afirmado, o método
científico é o que irá distinguir a ciência das demais formas de conhecimento.
O método científico
Método é derivado do grego methodos, formado pelos termos meta, que significa
para e hodos, cujo significado é caminho. O método científico possui as seguintes etapas:
levantamento de um problema; elaboração de hipóteses; definição de objetivos; escolha de
metodologia adequada e técnicas de coleta de dados; verificação de resultados e conclusão.
A definição de um método permite que o conhecimento científico se torne
sistemático, preciso e objetivo; assegura que os resultados obtidos pela pesquisa serão
válidos e confiáveis. De acordo com Gil (2002, p. 17), pode-se definir pesquisa “[...] como
o procedimento racional e sistemático que tem como objetivo proporcionar respostas aos
problemas que são propostos. A pesquisa é requerida quando não se dispõe de informação
suficiente para responder ao problema, [...]”.
Gil faz uma classificação das pesquisas de acordo com a finalidade a que se
propõem: pesquisas de ordem intelectual (conhecer para conhecer) e pesquisas de ordem
prática (aplicadas à vida cotidiana). Tanto uma quanto a outra se inter-relacionam, pois uma
pesquisa cujo objetivo é o conhecimento em si mesmo pode fornecer resultados passíveis
de aplicação prática e vice-versa.
No século XIX a pesquisa fundamental (ou o conhecer para conhecer) foi superada
pela pesquisa aplicada. As explicações saíam direto dos laboratórios para suas aplicações
práticas. Unindo-se à técnica, o pensamento científico transformou-se em tecnologia. O
homem do século XIX percebeu as mudanças causadas pela pesquisa aplicada e o
melhoramento que a tecnologia trouxe para sua vida. “É, aliás, provavelmente o primeiro
na história a morrer em um mundo profundamente diferente daquele que viu nascer”
(LAVILLE; DIONNE, 1999, p. 25). Podemos afirmar que, nos três últimos séculos, ciência
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e tecnologia foram capazes de alterar a face do mundo, tal o radicalismo das mudanças
ocorridas em nosso planeta.
Por isso, importante questionamento atual é sobre os limites da ciência e as
finalidades de suas tecnologias, especialmente em relação a três campos que Blades (2000)
considera fundamentais na sociedade do século XXI: a construção de robôs inteligentes
(andróides) semelhantes aos seres humanos; a clonagem e os computadores.
Segundo Blades, as inovações tecnológicas afetam a realidade, nossas relações
sociais e o modo como vivemos; também são rápidas e imprevisíveis, redefinindo nossa
maneira de pensar sobre o mundo. Para o autor, o século XXI nos traz imensos desafios
ligados à tecnologia, especialmente no que diz respeito ao que significa ser humano.
São as inovações tecnológicas o ponto de partida para o questionamento sobre como
educamos nossas crianças e como deveríamos fazê-lo. Tal idéia é transposta neste artigo
para os estudantes de graduação e sobre como educamos estes futuros graduados. Estariam
nossos estudantes conscientes do papel que possuem como cidadãos? Seriam
comprometidos com a possibilidade de mudança social, desde que conhecedores da
realidade social onde vivem? Como mudar uma realidade na qual os estudantes apenas se
interessam por empregos bem remunerados e nada se discute sobre temas que os afetam
diretamente?
A resposta pedagógica de Blades se apóia em três princípios: razão, revolta e
responsabilidade. São qualidades que deveriam ser cultivadas nos estudantes, de modo a
fazer com que se comprometam com a sociedade em que vivem.
Para o autor, a razão pode ser definida como o processo pelo qual a verdade ou
verdades são separadas de outros modos de se conhecer a vida, das crenças e das tradições.
As duas áreas do conhecimento nas quais o exercício da razão é fundamental são a
comunicação e a ciência moderna.
Na comunicação, por exemplo, a razão torna possível o desenvolvimento de
significados que nos permitem afirmar o que é verdade ou não em um determinado sistema
social. Na ciência moderna, a razão nos permite investigar o mundo natural e social de
maneira que o resultado pode confirmar ou modificar nossas idéias sobre o funcionamento
do mesmo.
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o celular provocou nas relações sociais; como as propagandas de celular são veiculadas e a
quem são dirigidas. Diante deste levantamento, os estudantes são levados a pensar, ao
mesmo tempo em que a revolta é neles encorajada, tornando livres suas escolhas. Neste
sentido, a revolta também auxilia os estudantes a encontrarem meios de como pensar e
viver em face de um ímpeto mundial que compromete sua liberdade ao insistir que eles
serão felizes se forem consumidores.
O celular é apenas um pequeno exemplo do uso das tecnologias. É preciso
ultrapassar o consumismo que não somente leva à venda de celulares, mas que pensa em
fabricar o ser humano do século XXI. Este é um tipo de visão que ameaça a essência do que
significa ser humano, na medida em que computadores são cada vez mais inteligentes,
humanos são clonados e robôs são fabricados à nossa imagem e semelhança. Deste modo, é
preciso ensinar aos nossos estudantes a pensar sobre a tecnologia para termos de volta o
senso de coletividade e a garantia de nossa sobrevivência futura.
Para Martins (1996), atualmente assiste-se a um “gnosticismo tecnológico”1, uma
visão que englobaria todos os sonhos e projetos de se transcender radicalmente a condição
humana. Não se trata apenas de melhorar os seres humanos ou habilitá-los a triunfar sobre
as forças da natureza, mas de ultrapassar a própria condição humana, sua finitude e
mortalidade. O ponto alto da tecnologia atual é a criação de novas formas de vida2,
descartando a natureza ao reduzir a vida aos laboratórios, em troca de um admirável mundo
novo (a “tecnosfera onipresente” leva à “miserabilização da natureza”) 3. Desta forma, as
possibilidades tecnológicas de transformação dos seres humanos levantam questões éticas
fundamentais.4
1
Martins (1996) atribui o termo a Victor Ferkiss.
2
A tecnologia atual expressa na biotecnologia, segundo Martins (1996), não tem buscado somente o
melhoramento cosmético dos organismos vivos, mas a criação de novas formas de vida, como resultado de
modificações genéticas. “De todas as tecnologias contemporâneas é talvez a biotecnologia a que tem uma
vocação mais decisivamente ontológica” (MARTINS, 1996, p. 188). A biotecnologia também prevê a criação
de formas de vida mistas, biológicas e mecânicas. Por exemplo, a criação de computadores orgânicos,
utilizando-se pastilhas (chips) biológicas em vez de micro-pastilhas de sílica. Acredita-se até mesmo que os
computadores irão progredir rapidamente numa seqüência de gerações tecnológicas, cada vez mais adquirindo
características da vida humana: reprodução, locomoção, metabolismo com o ambiente, além de atributos
semelhantes aos do cérebro.
3
Referência ao romance de Aldous Huxley, Admirável mundo novo, no qual uma parte dos seres humanos é
concebida em laboratórios.
4
Para Martins, falta controle ético e legal quanto ao avanço da biotecnologia.
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Dupas (2000) defende que é a sociedade civil quem deve ter o controle de seu
futuro. O autor discute especialmente as tecnologias ligadas à terapia genética e aos
alimentos transgênicos. Para Dupas, as tecnologias adquiriram autonomia e tendem a nos
fazer renunciar à liberdade de decisão. Deve caber à sociedade, de posse de uma ética
própria e do livre arbítrio das pessoas, a definição quanto às finalidades das novas
tecnologias, papel que vem sendo desempenhado pelas grandes corporações. O caminho da
tecnologia pode ser qualquer um, desde que a premissa seja o bem estar da maior parte das
pessoas. As novas tecnologias trazem importantes vantagens, mas podem facilmente ser
corrompidas, tornando-se perigosas à vida.
Blades destaca que a sociedade civil deve promover o debate sobre as inovações
tecnológicas. No entanto, existe o perigo de tornar superficial este debate, pois o
questionamento de nossa real necessidade da tecnologia esbarra nas análises de custo-
benefício das grandes corporações. Por outro lado, não se discute a relação entre a
tecnologia e a sociedade.
Na medida em que aumenta a velocidade da inovação tecnológica, a sociedade
precisará entender a ciência para saber lidar com as inovações. A validade do raciocínio
científico em relação ao conhecimento do mundo está no seu método de observação e de
abertura à interrogação. Por isso, a ciência trabalha com leis e conceitos, que podem ou não
ser testados pela ocorrência repetitiva de determinados fatos. A ciência é um meio legítimo
por meio do qual a sociedade pode investigar o mundo em direção ao conhecimento.
O breve relato dos dois trabalhos realizados é necessário para explicar a importância
do processo de pesquisa na formação destes alunos. Neste processo, destacou-se a
revelação proporcionada pela interpretação dos dados encontrados. A surpresa, o
desconforto frente à verdade revelada e a discussão da literatura foram de suma importância
na construção do conhecimento por parte dos alunos pesquisadores.
Segundo Caniato (1989), toda escola tem a ilusão de que forma competências
transponíveis a situações que não foram encontradas e exercitadas em aula. Ao final de uma
série de estudos, interessa apenas a aprovação ou reprovação do aluno. No entanto, o mais
importante na educação, para o autor, é o processo em que o aluno pratica o ato de
conquistar o conhecimento. Neste sentido, a aquisição do conhecimento envolve um
aspecto lúdico: o prazer de descobrir.
A pesquisa científica proporciona prazer ao sujeito, surpreende pela revelação. Ao
se depararem com os dados encontrados em relação aos estudantes de Medicina, os alunos
pesquisadores fizeram a pergunta: por que? e isto suscitou uma série de buscas e
necessidade de respostas. De acordo com Demo (2003), o questionamento propicia a
formação do sujeito competente. Por meio da pesquisa como prática cotidiana, a realidade é
sempre lida de maneira crítica. A pesquisa procura materiais, combate receitas prontas,
fomenta a iniciativa, fornece interpretação, compreensão e elaboração próprias da
realidade.
Pela pesquisa é possível exercitar a razão na investigação do mundo natural e social.
Nossas primeiras hipóteses sobre o funcionamento de ambos podem ser confirmadas ou
modificadas. A dúvida, suscitada pela curiosidade e leitura crítica do mundo, leva o sujeito
a buscar as respostas necessárias para explicar os dados sobre a realidade vivida.
Para Demo, educar pela pesquisa promove um conhecimento sempre inovador,
porque este se reconstrói continuamente. O questionamento da realidade, por meio da
pesquisa, combate a ignorância, a manipulação e a cópia; alia teoria e prática. A pesquisa é
um princípio científico e educativo. A educação por meio do questionamento reconstrutivo
promove a emancipação do sujeito, torna livres suas escolhas, propiciando-lhe encontrar
meios de como pensar e viver no mundo. Neste sentido, o ato de educar não promove
somente a instrução; ele forma, sobretudo, a autonomia crítica e criativa do sujeito histórico
competente.
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REFERÊNCIAS
DEMO, P. Educar pela pesquisa. 6. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2003.
(Coleção Educação Contemporânea).
GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
MARTINS, H. Hegel, Texas: temas de filosofia e sociologia da técnica. In: ______. Hegel,
Texas e outros ensaios de teoria social. Lisboa: Edições Século XXI, 1996. p. 167-198.
PITTA, A. M. F. Hospital: dor e morte como ofício. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1999.