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DO PONTO DE VISTA AO PONTO DE EXPERIÊNCIA

Sérgio Roclaw Basbaum, PhD - sergiobasbaum@pucsp.br


Depto de Ciências da Computação
Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP)

I.

A percepção é a filosofia silenciosa do cotidiano, a ordenação não dita através


da qual vivemos e que sustenta, em sua quietude, todos os nossos atos, palavras e
pensamentos.

A Fenomenologia da percepção (1945), de Maurice Merleau-Ponty, é


provavelmente o mais radical esforço empreendido pela filosofia do século XX na lide com
a questão da percepção. Seguindo os princípios da fenomenologia de Edmund Husserl
(1859-1938), e tirando proveito das então recentes descobertas dos gestaltistas alemães,
Merleau-Ponty desconstrói as teorias clássicas da percepção que dominaram a filosofia
ocidental desde de Descartes, e abre o campo perceptivo a um escrutínio renovado, por
meio da ênfase decisiva no papel da percepção na experiência vivida, e na maneira pela
qual estamos ligados ao mundo por laços perceptivos. Retomar o trabalho de Merleau-
Ponty abre possibilidades interessantes para pensarmos a nossa experiência contemporânea
nas sociedades tecnológicas − e, assim, os desafios que se colocam para a arte
contemporânea.

Seguindo a trilha aberta por Husserl, Merleau-Ponty nos remete continuamente à


inesgotável riqueza da experiência do mundo, ao mesmo tempo em que alerta para a
importância da superação de qualquer dualismo mente−corpo: nós somos o nosso corpo, e
tal experiência encarnada é a fonte primária de quaisquer significações que possamos
atribuir ao mundo e suas representações: "só encontramos nos textos aquilo que nós
colocamos ali" (Merleau-Ponty, 1994:2). Tal experiência vivida é entendida como a fusão
entre um sujeito e um certo cenário de objetos em que ele existe, para a produção de um
"mundo" que se define ao mesmo tempo pela singularidade de sua perspectiva e pela
circunstância que permite à sua consciência constituir-se enquanto tal: a partir de um certo
conjunto de relações existentes entre as coisas ao seu redor, ela ou ele ordena uma cena
coerente mas nunca completamente acabada ou determinada, na qual ele ou ela define-se a
si mesma(o). Aquilo a que chamamos "realidade" não é mais, então, um mundo pré-
existente e objetivo tal qual reivindicado pelo racionalismo e pela ciência, mas um acordo
aberto e sempre inacabado entre as múltiplas subjetividades que partilham este mesmo real,
gerando um "cosmos" senso-comum que assumimos como sendo o mundo "real". O
chamado de Husserl por um retorno "às coisas elas mesmas" é a tentativa de recuperar uma
experiência do mundo que precede toda a racionalidade e toda a linguagem, e que é a fonte
e o solo de todo conhecimento possível:

"Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de
uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da
ciência não poderiam dizer nada. Todo o universo da ciência é construído sobre
o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar
exatamente seu sentido e alcance, precisamos primeiramente despertar essa
experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda” (Merleau-Ponty,
1994:3)1

A percepção emerge assim como um contrato que assinamos com o mundo: ela nos
liga ao real, e eu posso dispor de um "mundo" somente porque percebo essa alteridade que
me afeta. Do mesmo modo, percebo o outro e sou forçado a reconhecer que seu mundo,
embora não necessariamente idêntico, é tão real quanto o meu - daí o acordo necessário ao
qual nos referimos. Antes de tudo, porém, é importante ressaltar que a percepção me dá um
mundo no qual eu acredito: a percepção funda em mim a própria noção de verdade. É a
partir dessa noção, nascida da fé com que invisto as minhas percepções de mim mesmo, dos
outros e das coisas, que a filosofia, e depois a ciência, poderão, mais tarde, trabalhar num
método capaz de garantir uma verdade "racional" e "matematicamente demonstrável".
Mesmo quando experimento uma ilusão, ela é verdadeira para mim até que seja provada
falsa por uma outra experiência; e esta última será experimentada como verdadeira, até que
uma outra experiência mostre igualmente os seus limites. Naturalmente, essas mesmas
palavras poderiam descrever o modo de operação da ciência, e é precisamente isso que

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Em seguida. “A ciência não tem e não terá jamais o mesmo sentido de ser do mundo percebido, pela simples
razão de que ela é uma determinação ou uma explicação dele"
Merleau-Ponty busca demonstrar: dado que a percepção não me oferece um "caos de
sensações puras", como as teorias clássicas da percepção sustentavam, mas um conjunto
coerente de relações dinâmicas banhadas de sentido − como as pesquisas da Gestalt
demonstraram −, senso comum, filosofia e ciência sustentam-se sobre uma tese do mundo
colocada pela percepção. Apenas explicitam, em diferentes níveis, essa tarefa de constituir
um mundo já realizada na experiência perceptiva. Assim, do mesmo modo como a
concepção husserliana da consciência já demonstrara que não pode haver oposição entre
sujeito e objeto − já que são as coisas visadas que permitem à consciência constituir-se
enquanto tal − não há também oposição entre razão e sensação, já que a percepção é o
berço a partir do qual a razão pode brotar. Mas enquanto a percepção me oferece "coisas"
que são uma fonte inesgotável de significação, definidas pelo contexto e pela circunstância,
a razão toma tais coisas como seus "objetos", representados de tal modo a serem constantes,
calculáveis, perfeitamente definidos e idealmente separados de qualquer circunstância
incontrolável. Este, é claro, é o nível de abstração exigido por um modo de lide com as
coisas cujo principal objetivo é ter poder e controle sobre elas, como demonstrou Heidegger
(1977).

Mas por que razão* ciência e filosofia clássicas foram incapazes de notar as
operações da percepção que Merleau-Ponty busca descrever? É porque a percepção oculta-
se a si mesma de modo a poder nos dar um mundo, esse play-ground no qual a razão pode
brincar. Entretanto, da mesma maneira como se esconde, a percepção pode mostrar-se,
desde que sejamos capazes de retornar a ela, suspendendo todo o julgamento e prestando
atenção a essa gênese do mundo e da razão no tecido vivo da percepção, a partir do qual a
realidade emerge para nós e que é a fonte primordial da consciência − há aqui, claro, certa
similaridade com aquilo que os budistas e outras doutrinas orientais chamam de
"meditação". Em síntese, enfim, a obra de Merleau-Ponty, nos permite sugerir que os
sentidos (percepção) nos lançam no sentido (direção) do mundo, e são a fundação do
sentido (significado) com o qual investimos nossa experiência. Essa associação entre
sentidos, sentido e sentido acontece, de modo similar, em diversas línguas ocidentais. De
fato, a linguagem comum está cheia de metáforas que testemunham as relações entre a
experiência perceptiva e a gênese da linguagem. A antropóloga canadense Constance
Classen escreveu mesmo um pequeno glossário de "palavras dos sentidos" (words of
sense), das quais um bom exemplo é a palavra "pensive" (pensativo), que vem do "latim
'pensare', significando 'pesar' e portanto 'ponderar', considerar"' (Classen, 1993:70).

II.

Day trippers: Huxley e Benjamin

Fazem, porém, já seis décadas desde a publicação da Fenomenologia da Percepção


e muita água passou sob a ponte. Entretanto, suas principais posições ainda se sustentam, e
muitos trabalhos recentes que têm investigado a natureza da consciência vêm retomando os
fundamentos de Husserl e Merleau-Ponty, e mesmo de Heidegger - um bom exemplo é o
grupo de neuro-fenomenologia fundado pelo falecido Francisco Varela nos anos 1990 na
França. Afora as ciências, o trabalho de Mer1eau-Ponty foi bastante criticado pela geração
que emergiu na cena filosófica francesa na década de 1950, trazendo toda uma nova agenda
de temas em que havia pouco ou nenhum espaço para discussões de caráter ontológico
como a da percepção. Entretanto, os limites decisivos de Merleau-Ponty não podem ser
denunciados nem pela ciência, nem pela filosofia, e estão mais adiante. Apesar de ter
demonstrado um continuum entre sensação e razão no pensamento Ocidental, e recolocado
a percepção como o berço da razão, Merleau-Ponty não foi capaz de dar-se conta de que
nem todas as culturas desenvolveram a razão nos termos e na forma como esta aconteceu
no Ocidente. A percepção que Merleau-Ponty descreve é, de fato, a percepção do Ocidente:
uma tradição comprometida, desde as suas origens gregas, com um modelo ocularcêntrico
de percepção do mundo, uma primazia da visão mais tarde formalizada na conhecida
expressão "ponto de vista". Heidegger, num texto bem conhecido, nomeou a Era Moderna a
"Era da imagem do mundo", e a ênfase da cultura ocidental na visualidade já foi
extensamente discutida por inúmeros autores. De fato, mesmo se Merleau-Ponty foi capaz
de afirmar que os sentidos humanos constituem um todo, em que os cinco sentidos se
"traduzem uns nos outros sem necessidade de um intérprete", ele também afirmou que
"nosso mundo é essencialmente visual: não seríamos capazes de fazer um mundo com
perfumes ou sons" (citado por Ceitil, 2001).
O poder da razão que se desenvolveu a partir deste modo particular de olhar para o
mundo e atribuir sentido a ele pode ser ilustrado pelo Objeto Indestrutível (1920), de Man
Ray. Sobre a haste de um metrônomo, um olho ciclópico − o mesmo da perspectiva
renascentista − oscila mecanicamente de um lado ao outro. Deste modo, seu oscilar desvela
diferentes perspectivas do real, sem jamais perder sua proeminência: trata-se do motivo
perpétuo, capaz de contemplar, separar, precisar, focar, enquadrar e portanto teorizar a
respeito de quaisquer fenômenos; visualidade e representação visual estão necessariamente
atadas à filosofia e à ciência ocidentais. De fato, reencontramos a primazia do olhar mesmo
em tentativas radicais de superar a sua tirania, como os transes de haxixe de Walter
Benjamin e as viagens de mescalina de Aldous Huxley, nas quais as operações da
percepção descritas por Merleau-Ponty estão ilustradas de modo exemplar. Em ambos os
relatos, o tempo e o espaço são reconfigurados, gerando "mundos" radicalmente distintos
daquele do senso comum coletivo − a doxa − ao mesmo tempo em que emanam da mesma
"realidade" − esse referente inesgotável de toda a percepção. Em ambos os estados
alterados, a paisagem é sempre a fonte inesgotável de significação, ao passo que a
intensificação da experiência perceptiva permite uma melhor compreensão da natureza da
razão. Ao tentar fazer uma síntese dos ganhos de sua experiência com o haxixe, Benjamin
escreve:

"... as formas isoladas, integrando-se nos mais diferentes grupos, permitem quase
sempre inúmeras configurações. Basta essa constatação para que se evidencie uma
das propriedades intrínsecas do êxtase: sua incansável disposição para emprestar a
um mesmo estado de coisas - por exemplo, um cenário ou uma paisagem - os mais
diferentes aspectos, conteúdos e significações.” (Benjamin, 1984:37 -8)

Enquanto descobre no campo perceptivo essas infinitas gestalts, e em conseqüência


infinitos significados, Benjamin percebe que sua leitura de um texto quando intoxicado
revela "significados mágicos", ao passo que, quando recuperado do transe do haxixe −
quando retoma do transe individual ao transe coletivo, poder-se-ia dizer −, esses
significados são apenas "racionais e políticos": algo da natureza da racionalidade se revela.
Em Huxley lê-se algo no mesmo registro:
"Raciocínio sistemático é algo sem o qual nós, seja como espécie ou
como indivíduo, não podemos passar. Mas creio que tampouco podemos
prescindir da percepção direta - e quanto menos sistemática melhor - dos
mundos interior e exterior que nos serviram de berço" (Huxley, 1965:49)

Assim como para Merleau-Ponty, tanto em Benjamin como em Huxley a percepção


é a fonte pré-racional, não sistemática, a partir da qual toda significação é possível, e a
racionalidade é experimentada como apenas uma das possibilidades de acessar o real, na
medida em que é confrontada a este tecido perceptivo normalmente esquivo, de cujo
trabalho derivamos todo conhecimento ordinário e formal. Retornar à percepção é o passo
necessário a uma razão capaz de compreender a si mesma.

Entretanto, o encontro de Huxley com a pintura assinala um dos momentos mais


intrigantes d'As portas da percepção. Normalmente, assumimos a Arte como o território da
cultura ocidental no qual a percepção cotidiana é desafiada e convocada a níveis diversos.
A Arte Moderna procurou uma contínua expansão do campo visual, e nós ainda
consideramos que as obras de arte ultrapassam de muitos modos a percepção cotidiana,
intervindo diretamente no sensível. Por esse motivo, inclusive, lhes atribuímos grande valor
cultural. O relato de Huxley, porém, parece tornar evidente o modo como a significação das
obras de arte é mais dependente do que imaginamos dos padrões perceptivos culturais que
elas supostamente desafiam. Ao deparar-se com a indiscutível força expressionista de Van
Gogh, ele escreve:

“A arte, creio eu, interessa apenas a principiantes, ou então a essas


obstinadas mediocridades que decidiram se satisfazer com a contrafação da
Peculiaridade, com símbolos em lugar daquilo que eles significam, com o
cardápio elegantemente apresentado ao invés da própria refeição." (Huxley,
1965:16)

Para o Huxley turbinado pela mescalina, a Arte parece não ser nada mais do que
uma prática inútil numa cultura viciada em sistemas de representação, incapaz de lidar com
o real senão através de estratégias de mediação que não são mais do que pobres simulacros
das coisas elas mesmas!
Mas mesmo se tanto Huxley como Benjamin empregaram substâncias químicas
para escapar da tirania do regime perceptivo imposto pela cultura, oferecendo-nos
testemunhos notáveis de uma experiência perceptiva intensificada, ambos os relatos ainda
são submissos à dominância do olhar, e parecem ser apenas oscilações radicais do
metrônomo de Man Ray. Mesmo se o relato de Benjamin descreve um campo de sensação
em que impressões táteis, auditivas e olfativas aparecem aqui e ali - há mesmo uma singular
descrição de sinestesia som-cor -, ele é predominantemente visual; quanto a Huxley, porém,
pode-se definitivamente afirmar que ele habita seus olhos: não importa quão determinado
esteja em liberar-se da prisão da percepção cotidiana, parece incapaz de ultrapassar as
fundações mais profundas estabelecidas em seu modo de perceber pela cultura em que
habita. Em sua experiência psicodélica, não há aromas, não há toques, não há sabores ou
sons. Somos então provocados a questionar se tal regime perceptivo é biologicamente
inevitável, ou se haveria diferentes arranjos hierárquicos dos cinco sentidos que pudessem
"fazer" um "mundo" individual, ou mesmo sustentar a cosmologia de uma cultura como um
todo.

III.

Para além do ponto de vista - Quando um Ongee, da llhas Little Andaman, na


Baía de Bengala, quer saber como você vai, ele pergunta: "Como vai seu nariz?".
[when/why/where is the nose to be]

Nos anos 1960, Marshall McLuhan sugeriu que as culturas orais experienciavam um
regime perceptivo acústico, radicalmente oposto ao da cultura de orientação visual que se
consolidou após a invenção da imprensa − e, a partir de Merleau-Ponty, poderíamos mesmo
sugerir que a escrita alfabética, e portanto a própria imprensa, já fora uma explicitação da
primazia da visualidade no pensamento grego.

O insight de McLuhan a respeito de diferentes arranjos do aparato sensorial tem


sido investigado e expandido nas últimas décadas por alguns antropólogos que têm lidado
com a questão dos sentidos na cultura. Classen ilustra brilhantemente o crescente domínio
do olho na Era Moderna, descrevendo o modo como as rosas eram valorizadas por seu
perfume até o século XVII, passando a serem consideradas apenas por sua beleza visual nos
concursos de flores do século XIX. Por outro lado, a ênfase de diferentes culturas nos
demais sentidos dá origem a cosmologias diversas, baseadas, por exemplo, nas sensações
térmicas, como com os Tzotzil, de Chiapas, no México; ou em sensações olfativas, como
no caso dos Ongees das ilhas Little Andaman, na Baía de Bengala; ou ainda numa
cosmologia intensamente sinestésica, como a dos Desana, da Amazônia, que significam o
mundo com base em correspondências multisensoriais experimentadas sob o transe
propiciado pela ingestão de chás alucinógenos. Tais arranjos sensoriais radicalmente
distintos, os significados que atribuem ao mundo, e os modos de lide com a experiência
vivida que deles emergem, tornam razoável que se fale não mais de um "ponto de vista",
característico da cultura ocidental, mas de um "ponto de experiência", o tipo de hierarquia
sensorial que estrutura ou funda as experiências e as cosmologias de diferentes culturas.
Desnecessário lembrar que não é mais possível sustentar qualquer superioridade do modo
ocidental de significar o mundo, visto que tais gestalts experienciais distintas não fazem
senão recordar a infinita riqueza da experiência vivida à qual Merleau-Ponty se refere: são,
diria o fenomenológo francês, diferentes modos de celebrar o vivido.

IV.

Percebendo a percepção (meta-percepção?)

A cultura contemporânea vive hoje a destinação inescapável da onipresença da


mediação tecnológica. Devemos supor que a tecnologia impõe seu próprio regime
perceptivo? Que ela conduz a cultura a um ponto de experiência específico? Normalmente,
as tecnologias de produção de imagens têm sido associadas ao ocularcentrismo a que nos
referimos há pouco. De acordo com a presente abordagem, eles são explicitações de uma
gestalt experiencial, de um ponto de experiência que conduz o modo como nossa cultura
significa o mundo, um modo que tais tecnologias reiteram e reforçam. Que as máquinas de
visão imponham um regime que lhes é próprio não é novidade. Muitos autores descreveram
os modos como as câmeras submetem as coisas e as pessoas às suas demandas, fortemente
relacionadas ao tipo de conhecimento de que emergem: enquadrando e focando,
transformam coisas e seres em meros objetos, da mesma forma que a ciência que os
concebeu. Estes são problemas que foram colocados inicialmente por Benjamin nos anos
1930, e discutidos décadas depois por McLuhan: as próteses tecnológicas moldam a nossa
percepção e possuem um papel decisivo nos modos como nós pensamos e formalizamos o
conhecimento. Assim, talvez devêssemos nos perguntar sobre o tipo de regime perceptivo
que vem sendo imposto pela crescente onipresença dos aparelhos digitais.

No ambiente saturadamente tecnológico das sociedades contemporâneas, em todos


os lugares e todos os níveis da experiência vivida, estamos cercados e estendidos pela
tecnologia digital. Como tal ambiente tecnológico está formando nossos modos de perceber
e, em conseqüência, significar o mundo? A percepção se oculta, dissemos, e fazer
afirmações a respeito de um tema tão escorregadio é bastante arriscado. Mas duas
tendências interessantes podem ser apontadas. Em primeiro lugar, com a crescente
possibilidade de se misturar diferentes estímulos perceptivos, graças ao modo "tudo
transformado-em-números" pelo qual operam os computadores, observamos um vasto
número de poéticas artísticas e fenômenos culturais que lidam com diferentes tipos de
sinestesias, ambientes imersivos, experiências que instalam um aqui-agora por meio da
saturação das sensações, misturando nossa incontrolável compulsão à produção de imagens
digitais a outras sensações, permitindo que falemos numa espécie de ponto de experiência
sinestésico. Entretanto, do mesmo modo como as câmeras foto-cinemato-videográficas
puderam impor uma experiência perceptiva obviamente relacionada ao tipo de
conhecimento do qual emergem, o mesmo se aplica à tecnologia digital: as idéias de
velocidade, produtividade, eficiência, precisão e calculabilidade universal de todas as
coisas e processos com vistas ao controle em rede − idéias que governam, em nome da
utopia de um perfeito fluxo informacional, a lógica dos computadores − estão mais e mais
sendo impostas por sobre nossa percepção, nossa subjetividade, e conseqüentemente sobre
o mundo que habitamos. Pode-se sugerir, então, que vivemos hoje no regime perceptivo de
uma sinestesia tecnificada.

Em meio a este ambiente saturadamente estésico, em que se dá instalação


incontornável e planetária de um suporte informacional que rejeita, em seu projeto, a
própria noção de ruído como fenômeno espúrio, novos desafios se impõem ao exercício da
Arte. Se tomamos a Arte − em grande medida, mas sem querer esgotá-la aí − como
intervenção no campo perceptivo; e se aceitamos a tese merleau-pontyana de que é no
sensível que se dá a gênese do sentido do vivido − o que o torna território de
enfrentamento, verdadeiro campo de batalha pela hegemonia da significação do mundo −,
então cabe à Arte permanecer nesse estado de alerta, de afrontamento, de enfrentamento e
de acordamento que é a prática de uma incessante guerrilha contra a entropia do campo
perceptivo − onde se definem os modos de significação do real. Por este motivo, pode-se
sugerir que a tarefa da Arte, nessa era do mundo sem ruído, é a prática incansável e
assistemática de uma guerrilha perceptiva: a desestabilização dos sentidos dominantes ali
onde se dá a sua gênese − a fundação do mundo na experiência sensível.

São Paulo, 2005/2006

REFERÊNCIAS:

BASBAUM, Sérgio: O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático.


Doutorado, PUC-SP, 2005.

BENJAMIN, Walter: A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. (tradução


de Carlos Nélson Coutinho). in Costa-Lima, Luiz (org.): Teoria da cultura de massa. Rio de
Janeiro: Paz e terra, 1982.

BENJAMIN, Walter: Haxixe. (tradução de Flávio de Menezes e Carlos Nélson Coutinho)


São Paulo: Brasiliense, 1984.

CEITIL, Maria João: Uma história aromática em Bagdade. in Phainomenon - revista de


fenomenologia do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. Número 2. Lisboa:
Edições Colibri, 2001. .

CLASSEN, C.: Worlds of Sense: Exploring the Senses in History and Across Cultures.
Routledge, 1993.

HEIDEGGER, Martin: The question concerning technology and other essays. (tradução de
William Lovitt). New York: Harper and Row, 1977.

HUXLEY, Aldous: As portas da percepção / O céu e o inferno. (tradução de Oswaldo de


Araújo Souza) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
JAY, Martin: Sartre, Merleau-Ponty, and the search for a new ontology of sight. In
LEVIN, David Michael (ed.): Modernity and the hegemony of vision. Berkeley: University
of California Press,1993.

Mc LUHAN, Marshall: Essential McLuhan ( ed. by E. McLuhan, F. Zingrone ). Concord:


BasicBooks, 1995.

MERLEAU-PONTY, Maurice: Fenomenologia da percepção (tradução de Carlos Alberto


Ribeiro de Moura). São Paulo: Martins-Fontes, 1994.

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