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CORPO, IDENTIDADE E IMAGEM: RELATOS E RETRATOS

DE MULHERES NEGRAS EM MARABÁ

AMANDA COSTA SILVA


RIANNE SOUZA ARAÚJO

Orientadora: Dra. Joseline Simone Barreto Trindade

MARABÁ-PARÁ
2016
A produção deste ensaio é resultado do trabalho final do curso de Especialização em
Saberes Africanos, que ingressamos em outubro de 2016, tendo por finalidade aprofundar
nosso entendimento acerca da temática, enquanto graduadas em Ciências Sociais com ênfase
em Antropologia, mas com trajetória de pesquisa em outros campos.
O ensaio constituiu-se a partir de uma experiência com jovens mulheres negras que
compreendeu diálogos, entrevistas, trocas de aprendizados, circulações de dádivas, e teve
como produto uma oficina e um ensaio fotográfico, além da própria escritura. A proposta que
norteou esses passos partiu da perspectiva de olhar, refletir e perceber os processos de
construção e desconstrução de “imagens” corporais das participantes que integraram o estudo.
Assim o corpo no entendimento africano possui um significado para além da matéria,
se caracterizando como um veículo de conexão entre o mundo visível e o mundo invisível.
Esta ligação do corpo com outra dimensão o torna participativo e humanitário, entendimento
distante do pensamento ocidental no qual o corpo é tido como único, particular e
individualizado. Este aspecto quando relacionado com o espaço estabelece a partir desta
compreensão uma identidade coletiva, na qual o corpo é portador da memória ancestral do seu
povo, e enquanto linguagem o corpo coloca em movimento a base cultural da tradição
africana, a oralidade, que ganha por meio dele, formas, gestos, expressões, ritmos, cores e a
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circulação de todos estes elementos. De modo que, as atividades corporais performáticas
parecem corporeificar a herança memorial metamorfoseando-a em uma “tradição viva”
(HAMPATÉ BÁ, 1987).
A memória corporal se manifesta através de danças, pinturas corporais, algumas
intervenções como a escarificação ou perfurações, em sua representação na arte africana
encontra-se sua forma em esculturas, bem como nas máscaras, que possuem uma simbologia
bastante importante e são um elemento em comum na diversidade dessa cultura, usadas em
diversos rituais, independente do gênero ou região, ressaltam formas geométricas, nas linhas
anatômicas da face humana; utilizam círculos concêntricos, desenhos em ziguezague,
helicoidais, em que num todo, cada um fazia parte de um movimento circular que remetem
aos signos da sua cosmovisão, principalmente a cerca do tempo (HAMPATÉ-BÁ, 1987).
O esforço deste diálogo perpassa pela articulação entre tempo, memórias, história e
espaços e caminham juntos em pontos convergentes como afirma Delgado (2000) em que o
tempo é uma convivência concreta, movimento de múltiplas faces, características e ritmos,
que implica em durações, rupturas, convenções, representações coletivas, entre outros; orienta
perspectivas e visões sobre o passado, avaliações sobre o presente e projeções sobre o futuro.
O tempo está ligado segundo a concepção africana ao desenvolvimento da própria energia
vital dos seres conectados ao cosmo, pois a ideia de tempo perpassa por dimensões sociais,
culturais e míticas.
A partir de nossas observações e dessas reflexões conceituais, descobrimos a beleza
desse pensar cosmológico do corpo ancestral africano e orientamos nossos trabalhos finais de
cada disciplina tendo por base este entendimento, por meio de perspectivas diversas, seja na
construções de textos didáticos que visavam abordar e descontruir a concepção hegemônica
sobre a escravização africana, as religiões de matrizes africanas, a própria história do
continente africano até questão do corpo no campo do direito.
Dessa forma resolvemos desenvolver o projeto a partir do dialogo com um grupo de
jovens negras que havia participado do “Projeto Negríssima”, idealizado por Bruna Soares,
uma jovem estudante de Artes-visuais, de apenas 20 anos, que há pouco tempo se afirmou
como negra. Tomamos conhecimento do mesmo por meio da ampla divulgação via mídias
sociais, que tem como intuito trabalhar a autoestima, a valorização da beleza negra e o
empoderamento destas mulheres, assim a vivencia realizada teve a finalidade de instigar um
debate sobre a relação que têm com os seus corpos, identidade e imagens.

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Corpos e Identidade: trajetórias e construções em Movimento

A ideia do projeto surgiu quando Bruna se deparou com a realidade das relações
sociais e seus imbricamentos no cotidiano acadêmico da UNIFESSPA, onde encontrou muitas
negras e negros e também um acentuado preconceito local e institucional, que visivelmente
oprime a cor, a identidade e, sobretudo a mulher negra. Neste cenário, começou a pesquisar
sobre a valorização dessa mulher tão estereotipada socialmente e vista como o inverso do
padrão de beleza imposto pela mídia, no sentido de servir de embasamento para a ideia do
ensaio fotográfico, em que a fotografia figuraria uma ponte para o empoderamento da
negritude feminina.
Talvez seja possível pensar a relação entre a ideia do projeto Negríssima e a recente
construção identitária de Bruna, como se a descoberta de sua identidade negra funcionasse
como um estímulo para que cooperasse com o processo de descobertas e aceitações de outras
jovens mulheres negras. Uma vez que em seus relatos ela conta que por ter traços faciais não
tão marcados, a pele clara, porém dentro da escala de tonalidades ao que comumente chamam
de morena, e o cabelo liso nunca se identificou como negra, embora seu pai e sua avó paterna
sejam, somado a isso a sua avó materna era indígena, miscigenação que confundia sua cabeça
quando intermediava sua identidade somente por meio da fisionomia.
Bruna relata que vários colegas e amigos se referiam a sua aparência a partir destas
duas identidades e desde então começou a refletir a cerca da problemática: “mas o que mesmo
que eu sou?” Residente na época em Salvador, Bahia, onde morou por sete anos exatamente
durante um período importantíssimo para a formação da identidade e personalidade, entre os
11 aos 18 anos, o fato de ser moradora da “perifa” lhe deixou muito próxima da realidade
social dos negros e lhe tornou parte dela, sofrendo preconceitos semelhantes mesmo não
tendo um fenótipo marcadamente negro, mas por viver em uma região periférica.
Este mesmo perfil de moradora da “comunidade” e estudante de escola pública lhe
abriu várias portas positivas através de ações afirmativas e políticas públicas, lhe dando
acesso a cursos e estágios, um destes foi o “Oi Kabum! Salvador” da Escola de Arte e
Tecnologia de Salvador, que integra o Programa “Oi Futuro” com o apoio da ONG Cipó-
Comunicação Interativa, tem como foco a formação técnica e inclusão no mercado de
trabalho, estímulos ao empreendedorismo e participação da comunidade, assim o curso
ofereceu formação em fotografia, vídeos, design e computação gráfica, funcionando como
extensão complementar do processo educativo escolar. Foi durante os dois anos do curso que

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Bruna descobriu sua identidade negra, somando as reflexões dos amigos e professores, o
contexto soteropolitano de uma população maciçamente negra e toda a expressividade de sua
cultura, foi que Bruna caminhou entre suas familiaridades, gostos e identificações, além desta
significativa construção, o curso colaborou para a execução das fotos.
O “Negríssima” contou as redes sociais como estratégia de divulgação, uma vez que
conseguem abranger um grande número de pessoas em um curto espaço de tempo. Após
publicar a proposta na página da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, Bruna
contou que sua caixa de mensagem ficou lotada a princípio, mas conforme as interessadas iam
descobrindo que o ensaio fotográfico se restringia as negras e não abarcava todas as mulheres
a procura foi gradativamente caindo. Segundo ela, muitas desistiam, por não terem tal
identidade mesmo com características negras, outras por acharem que seus corpos não se
encaixavam no “perfil” da modelagem, mesmo que ela explicasse que não havia perfil de
corpo ou rosto, mas de identidade, o receio ou vergonha, ou ainda pior a falta de aceitação
própria e o possível reprovamento social falou mais alto na maioria dos casos. Mesmo com
dificuldades e resistências, o “Projeto Negríssima” conseguiu reunir dezessete mulheres, com
idades que variaram de dezessete a trinta e seis anos, as sessões de fotos totalizaram quatro
encontros, cada um com “modelos” distintas. Depois de realizado os ensaios, Bruna procurou
apoio ou patrocínio em duas escolas particulares da cidade, bem como na Associação dos
Artistas Visuais do Sul e Sudeste do Pará- ARMA, tentativas frustradas, com observação a
esta última, que somada à negação ainda declarou não saber como o projeto poderia
acrescentar, fato que merece problematização.
Como parte do roteiro metodológico do trabalho, pensamos uma vivência intitulada
“Relatos e Retratos de Mulheres Negras”, que ocorreu no dia 27 de março, numa tarde
quentíssima de sábado, em uma sala da UNIFESSPA, reunindo um pequeno grupo de
jovens mulheres negras com idades entre 17 e 36 anos, com o intuito de discutir sobre o
corpo da mulher negra. O encontro foi organizado em três momentos, o primeiro deles
iniciou-se com abertura conceitual deste corpo a partir da perspectiva cosmológica
africana, com breves intervenções de algumas delas.
Nesse momento, a fim de familiarizá-las com as discussões em questão,
procuramos orientar o debate, a partir de teóricos vinculados à desconstrução da
centralidade das epistemologias hegemônicas de pensar o corpo. Para podermos perceber
como se manifesta coletiva e individualmente a corporeidade de matriz africana, a

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apreensão das suas simbologias e significados e/ou as novas adquiridas, como isso forma a
identidade étnica, e a reflexão entre a pessoa e seu próprio corpo.
Com isso pretendíamos expor o processo de negação da dimensão histórica e
humana do africano, mas que em contrapartida a historicidade do ser africano e do ser em
diáspora se manifesta mediante códigos outros, os quais são estranhos à mentalidade
ocidental colonizante. É o que destaca Maria Antonieta Antonacci (2014) em “Memórias
Ancoradas em Corpos Negros” ao questionar a colonialidade de pensamento, a qual
baseia-se os modos de agir e pensar centrados na epistemologia hegemônica, propõe a
revisão de tal aspecto para somente assim se chegar à interpretação da afro-brasilidade. E
principalmente para o entendimento das cosmologias africanas pautadas em formas
diversas de se relacionar com a natureza, o tempo e a memória. Nesse sentido há a
necessidade de pensar as cosmologias a partir delas mesmas, de sua própria dinâmica e
lógica para então pensar como tais
entendimentos se dão mediante o corpo
e a partir dele.

‘Descobrindo’1 o Véu: Relatos


de uma Vivência Antropológica

Seguindo então com nosso


encontro, elaboramos num segundo
momento, uma dinâmica memorial,
que consistiu na apresentação de um
objeto que pedimos que levassem, os
quais possuíssem uma forte ligação,
algo que remetesse a identidade e a
personalidade de cada uma. Em roda
sentadas no chão as falas começaram a
circular, antes do objeto, cada uma fez
uma pontual apresentação sobre si.

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O trocadilho joga com a multiplicidade de sentidos e aplicações da palavra neste contexto, pois equivale à
descoberta da existência de um véu que as sempre encobriu de maneira “invisível”, percepção que as levam a
revela-lo para outras mulheres, evidenciando a opressão, os males e encegueiramentos ocasionados por ele,
para por fim descobrir suas faces, removendo-o. Esse mesmo véu ainda encobria toda vivacidade e beleza de
ser mulher negra, logo sua retirada também significa a descoberta de tanta formosura e poder.
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Floreando uma Rosa Amarela2

Não tivemos a oportunidade de entrevistar Rosa, a conhecemos no dia da oficina,


que com várias intervenções pode nos ajudar no processo de captura. Casada, técnica de
enfermagem e estudante de Geografia, atua em um posto de saúde da mulher. Na dinâmica
de memória, Rosa levou um tapete, ainda inacabado de crochê, feito por ela, manualidade
que aprendeu com a mãe aos nove anos, e da infância até a vida adulta essa arte permeia de
modo palpável todo seu estado de espírito, funciona como uma terapia em que cada ponto
simboliza um pensamento ou uma construção, o crochetar é quase como um medidor
ansiogênico, quanto maior for a ansiedade mais rápido o “trabalho” ficará pronto. Ela nos
contou que em dias complicados chega a fazer até três tapetes, assim tela a agilidade das
mãos faz com que a sua aflição seja aliviada, juntamente com as dores e os problemas.
Sem meditação, silêncio ou quietude Rosa tranquiliza a mente à sua maneira. Entre pontos,
desenhos e formas, ela gosta mesmo é de fazer flores, ao ser indagada pelo motivo, revelou
mais uma estratégia mental de abrandamento emocional, disse que com pouco tempo e
esforço a forma já começa a aparecer, o que lhe dá a sensação de celeridade e em
contrapartida calmaria.

Notas sobre a Fran-Queza

Francirlene mais conhecida


por Fran, casada, com 36 anos,
também técnica de enfermagem e
estudante de Ciências Sociais, teve
uma grande identificação com a
história contada por Rosa, pois
também sofre de uma profunda
ansiedade e acaba por desconta-la
nos cigarros, consumindo até três
carteiras em um dia, transtorno que
a afeta de todos os modos, seja pela

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No estudo da cromoterapia o amarelo remete a ansiedade.
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tristeza seja pela alegria. A entrevista de Fran também não aconteceu, a dura rotina
feminina inviabilizou nossos agendamentos, universidade, emprego, casamento e três
filhos.
Na roda, o objeto de memória escolhido por ela foi um turbante, pois representa o
curso do seu trajeto de libertação das amarras sociais que naturalizou em si, relacionada à
cor, ao corpo, ao cabelo, a domesticação de ser mulher, do que pode ser dito, feito ou
vestido. Relatou que nunca, mesmo após de casada, antes deste ano colocou um short na
vida, porque aprendeu que suas pernas eram feias, relatou que passou longos anos usando
“saiões evangélicos”, feios segundo ela, por conta da religião dos pais. O turbante sempre
foi um objeto de repulsão para familiares e amigos, por ser “coisa de macumbeiro”, por ser
“coisa demoníaca”, assim antes pensar em usar, lhe dava pânico, pelos olhares,
julgamentos e inquisições, deste modo o substituiu por faixas de cabelo. Mesmo com
vontade de se adornar com o turbante não se sentia forte o suficiente para enfrentar os
conflitos que seriam inevitáveis, então hoje pô-lo em sua cabeça é sinal de quebras de
barreiras, de demarcação da sua identidade e força, coragem que só foi possíveis pelo
empoderamento trago através do Negríssima. Se descobrir linda aos trinta e seis de um
jeito que não se sentiu nem aos vinte, lhe trouxe uma vitalidade e uma garra imensa, no
que tange a sua relação consigo mesma e com os outros, com seu casamento, com sua cor,
corpo e pensamento de um modo complemente encantado, evidente e expressivo, na sua
fala foram comuns às lagrimas, o brilho nos olhos, os sorrisos esticados, à medida que
compartilhava sua história de vida, fatos íntimos, sentimentos, desabafos, em meio a uma
pulsante felicidade pela realização das descobertas. Transparência revelada pela palavra e
pelo corpo, o que nos levou a nomeação do relato, Fran-queza.

Dando voz ao silêncio, Natali

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Sempre muito introspectiva, Natali
só fez intervenção na roda de diálogos
quando foi apresentar seu objeto. Estudante
de Ciências Sociais, com 22 anos, nos
trouxe um pente que carrega consigo para
todos os lugares desde os onze anos e cuida
com muito carinho e ciúme, restringindo
seu uso em caso de empréstimo apenas a
pessoas especiais. Mais um objeto ligado ao
cabelo, pois assim como a “Fran”, a Rosa, a
Carla que ainda vai ser apresentada e tantas
outras, aprendeu que seu cabelo não podia
andar solto por aí, na verdade deveria
sempre estar o mais baixo possível e neste
ponto o que chama a atenção é que o pente
não é daqueles ideais para cabelo afro, mas
um com os dentes bem juntos como se seu cabelo liso fosse. A característica do pente a
que ela deu destaque foi à cor, o rosa, pois na maioria das vezes sempre está de preto e
nunca de rosa ou cores conhecidas como “de menina”. Ela relata que a coloração do pente
sempre choca as pessoas que ao verem dizem: “mas isso não tem nada haver contigo, não
parece com você”, e a resposta dela: “as pessoas não me conhecem, quase ninguém quem
eu sou”. Essas reações veem da leitura que comumente as
pessoas fazem umas das outras, e é importante salientar que
o corpo é quem serve de “escrito” para essa leitura. A
postura de Natali é fechada, distante, o corpo retraído, o
semblante sério, quase sempre de roupa preta e de poucas
palavras, diz que não era muito boa em fazer amigos e se
aproximar de alguém, dificuldade que o “Negríssima”
trabalhou aumentando sua segurança, talvez o próprio
exercício de memória com a exposição do pente seja uma
confirmação disto, pois pensar que a mensagem contida no
objeto revele uma sensibilidade escondida por trás dessa proposital aparência discreta e
reserva é perceber que hoje ela caminha em sentido contrário, que permite se mostrar, que

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consegue ser forte para isso, consente o risco, processo bem parecido com o de Fran. Para
ela o resultado não apenas das fotos, mas do processo desencadeado através delas foi de
fato surpreendente, se sente menos tímida, mais solta, bem mais forte e livre, qualidades
que possibilitaram a interação na roda, uma entrevista aberta, as trocas e o destemor de ser
vista. Graças às descobertas sobre si como na fala: “eu não sabia que eu era tão bonita”,
pelos comentários dos outros: “não parece com você, porque você é tão calada”, que
mesmo que aparentemente “negativo” fortaleceram sua pessoa, ou ainda envaideceram
quando pediam dicas de poses e caras porque as fotos haviam ficado tão perfeitas que
gostariam de saber como é que faz. Assim o projeto lhe permitiu retirar a carga que
acredita que a mulher negra carrega em si, a de não poder se sentir bonita, pois ousar
quanto a isso significa socialmente para ela, uma tentativa de sair do seu reservado lugar
subalterno. Hoje sente que pode se arrumar, se ver e se senti bela mas sem achar que está
ofendendo a visão de alguém ou passando por cima de algum limite imposto.

Por Yanna

...Me acho negra, mas não tanto assim, como se fosse uma negra falsa... Meus
amigos falam: “tu não é uma negra de verdade”.
Yanna, vinda de Altamira, com apenas dezessete anos, está no seu segundo ano em
Marabá, estudante de engenharia de produção, compartilhou com conosco um creme de
cabelo, que também o acompanha em toda parte. Embora tenha traços faciais que
notoriamente remetam a negritude, principalmente a boca, o seu cabelo não é cacheado,
diferente do cabelo da irmã que é muito cacheado e bastante volumoso, o qual pela
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proximidade virou seu sonho e na inviabilidade de tê-lo, se utiliza dos cremes em conjunto
com um movimento que inicia nas pontas e termina perto da nuca, num vaivém de baixo
para cima, ela conta que uma embalagem dura somente quatro dias, pois tem de encharcar
bem para conseguir o efeito desejado. Revelou que quando mais nova chegou a alisar sua
franja e que constantemente usava chapinha e sua irmã caçula, ao ver passou a incorporar
seus hábitos com o cabelo e hoje tenta fazer o processo inverso, para que assuma e aceite
os cachos tão desejados por ela.
A percepção de Yanna quanto à identidade negra ainda está(va) atrelada ao corpo
especificamente, ou melhor dizendo, ao corpo
estereotipado da mulher negra, a grande problemática
desta mediação corpo-identidade é que esta mulher
negra é vista pela ótica da objetificação e servidão
sexual, o estigma de um corpo cheio de curvas, com
seios, quadris e glúteos fartos. E é essa imagem que
lhe vem à mente ao falar de negra, como ela diz: “uma
mulher com corpão, sabe?”, em contrapartida, ela se
vê o oposto, por ser bem alta e magra, seu corpo é
longilíneo, perfeito para ballet, dança que praticou por
muito tempo e que significa um elemento
emblemático para entender essa confusão identitária.
Ela conta que participou de várias audições, inclusive
uma para Miami, em cada uma delas via colegas que
às vezes não dançavam tão bem como ela e outra
amiga negra, tão pouco possuíam o corpo ideal que tem, mas eram brancas, dos cabelos
lisos e não raro aloirado. Talvez por essas “frustrações” ela tenha desenvolvido uma
preferencia pela dança moderna, que é mais democrática que o ballet clássico quanto a
aparência, porém a falta de liberdade na escolha e desaprovação das professoras acabou
por lhe fazer desistir de ambas.
A simbologia do corpo de bailarina, alta e magra, remete ao corpo das modelos, que
é tão idealizado e quisto pelas jovens, mas não por Yanna, o fato de ter seu corpo alongado
e esguio colide com as duas representações do seu imaginário, uma perante o corpo
avantajado da mulher negra e outra do corpo de passarela, logo como ser negra sem ter um
corpo de negra? Aparentemente para ela quase impossível como sempre reclamaram seus

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amigos, onde fica autenticidade dessa negra? E de que adianta um corpo de modelo ou
bailarina se ele também não pode ser legítimo afinal é negro, como bem lhe mostrou o
ballet. Conflito de caracterização que faz com que Yanna não se veja corporalmente como
negra e nem como branca, como se fosse um corpo sui generis. Fazendo uma ponte dessa
reflexão com o seu objeto de memória é possível pensar que o apego de Yanna com o
cabelo, a necessidade de cachea-lo, seja uma estratégia de se ancorar em alguma
característica externa de ser negra.

Por Carla

Carla, jovem estudante de Ciências


Sociais, com apenas 19 anos, nos
apresentou um livro, na verdade se tratava
da Revista do Núcleo de Estudos, Pesquisa
e Extensão em Relações Étnico-Raciais,
Movimentos Sociais e Educação –
N’UMBUNTU da Universidade Federal do
Sul e Sudeste do Pará, conta que quando
ganhou o exemplar estava passando por um
momento muito importante de afirmação
enquanto negra, logo após as foto do
“negríssima”, e os artigos contidos na
revista contemplavam todos os assuntos
que ela gostaria de se aprofundar, a questão
do cabelo, da mulher, das conceituações acadêmicas, da religião, pesquisas sobre o bairro
que ela reside que é de predominância negra, reflexões múltiplas que lhe deram apoio em
uma fase impar de construção do seu corpo, da sua identidade e concepções.
É evidente em sua fala que o empoderamento adquirido com o projeto ao ver o
resultado das fotos trouxe também várias descobertas, assim como a Rosa, a Fran e a
Natali, a primeira delas é a beleza, com isso a autoestima, que sempre foi o grande
problema de Carla subiu consideravelmente, o que lhe conferiu segurança para estar aberta
para conhecer novas pessoas, a mudança no visual do comportamento a estética, como

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assumir os cachos, valorizar o cabelo, mesmo com certa dificuldade, e realçar sua beleza
como mulher, por meio de um dos principais ícones de feminilidade, o batom, que opta
sempre por cores vibrantes, ela revela que assistir a reação do público nas pré-exposições
contribui para isso, vê-los tirando fotos das fotos, ouvir os elogios e comentários. Anterior
ao projeto Carla se sentia feia, uma das frases que mais me impressionou foi: “eu nasci
toda errada”, o que quer dizer: mulher, negra, com cabelo “ruim”, teoricamente com o peso
acima e pobre, moradora da roça até o fim do ensino fundamental, não possuía espelho em
casa, e mesmo depois de vim para a cidade a falta de habituação com espelho permaneceu,
com o Negríssima, hoje se utiliza desse objeto, já até arrisca se vê com peças intimas em
sua frente, ato bastante significativo neste processo de construção e descoberta.
O empoderamento de Carla não se limitou “apenas” a sua percepção estética, mas a
uma espécie de engajamento frente às situações de tolhimento de outras jovens e crianças,
neste ponto cita muito sua família como referencial de contenção e espaço de
enfrentamento, uma vez que possui irmãs e sobrinhas mais novas que passam pelos
mesmos preconceitos e controles sociais e familiares, situações em que tenta desconstruir
tais visões e ensina-las a perceber a beleza de seus cabelos, corpos e cor. A descoberta
dessa beleza antes escondida e revelada por lentes acabaram por ajustar suas lentes
particulares resignificando o modo de ver a si, sua cor e o seu papel na sociedade. As faces
do preconceito continuaram a soar em seus ouvidos, nos corredores, nos transportes
coletivos, em casa, tudo porque o cabelo solto continua a insultar os olhos daqueles que
não aceitam a diferença ou ainda, não aceitam ver o negro assumir com orgulho suas
origens de modo a não perpetuar mais a subalternidade a que foram historicamente
destinados, mas diferente de outrora, falas, piadas e apontamentos não a abalam tanto,
força conquista nessa caminhada.

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Uma pessoa chave nesse processo foi a Raquel Reis que não pôde comparecer ao
nosso encontro, mas como homenagem a uma amiga e maneira de se fazer presente, fez o
desenho que virou capa deste ensaio a partir de uma fotografia feita no dia. Ela relata que
conheceu o projeto “Negríssima” a partir da página social da universidade e de pronto
estimou a ideia, por ver uma ação que movimentasse o debate, porém em sentido contrário
entrou em conflito com a realidade: “mas eu? Nunca vou passar na triagem. Baixinha desse
jeito, nem adianta tentar”. Felizmente a Raquel decidiu enviar uma mensagem a Bruna, que
logo tratou de explicar que não haveria triagem nem sequer um padrão de altura ou corpo,
o projeto estava aberto a todas as negras que quisessem participar. Neste momento a
Raquel começou a articular sua rede de amizade, convidando suas amigas negras a
participar também, as reações iniciais que ela recebeu foram às mesmas ou piores que a
sua, com paciência a Raquel foi desconstruindo as “verdades” que mulheres que fogem do
padrão de estética imposto são domesticadas a acreditar, que não são bonitas como já
vimos, que não possuíam o perfil, que não levavam jeito, ou mais, do julgamento social, “o
que as pessoas iam dizer de uma coisa dessas? Todo mundo vai ver o resultado” e o peso
de lhe dar com os enfrentamentos das relações sociais poderia piorar. E assim a ideia de
empoderamento que nasceu na Bruna, foi plantada na Raquel e semeada em mais seis
meninas, e dos quatro encontros, a Raquel esteve presente em dois, no primeiro para as
fotos, e no segundo para acompanhar e dar apoio às amigas que convidou.

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Algumas rupturas vieram naturalmente com o Negríssima, a elevação da autoestima
talvez seja a mais perceptível e mais pujante, com as fotos veio o mantra: “me aceitar”,
Raquel conta com muito brilho nos olhos que “se vê” daquele jeito abriu a possibilidade de
se perceber bonita, mesmo baixinha, magra, negra, mesmo longe do “perfil”. Fator que
talvez seja ainda mais significativo uma vez que as fotos não contaram com uma grande
produção estética, a maquiagem foi bem leve, ou seja, não tinham artimanhas nas fotos,
eram apenas elas com seus cabelos soltos, corpos à vontade e sorrisos estampados. Imagem
remeteu para a Raquel o atropelamento diário da rotina que nem sempre dá espaço para se
arrumar, fazer maquiagem ou colocar uma roupa mais elaborada, e a partir do resultado ela
conta que no seu dia-a-dia mesmo sem tempo para isso, se olha no espelho e se senti
“ainda aquela da foto” e que por isso se senti mais segura e aberta para se aproximar de
alguém ou estreitar algum vínculo.
Nos relatos de Raquel, que é estudante de Ciências Sociais da UNIFESSPA,
escolha influenciada também por seu interesse nas questões sociais, e principalmente a
racial, as leituras sobre o movimento negro, a situação histórica sofrida por essa população,
o preconceito e o racismo sempre esteve presente desde seu processo escolar. Durante a
vida educativa formal Raquel sempre se manteve distante, com poucas interações sociais,
muita dificuldade de estabelecer relações, fazer amigos, conhecer alguém, pois por ser
negra sempre “achava que o outro era melhor”, e para evitar a problemática de “ser
diferente” que significava a todo o momento ser menor, usava o isolamento como
subterfúgio, esse mesmo perfil de retração também foi observado em outras participantes,
como Carla, Yanna e Natali.
É necessário à luz das técnicas corporais de Marcel Mauss (2003), compreender
como esse proceder é pensado e usado como estratégia de proteção frente aos “riscos” que
o corpo enquanto mediador de interações e relações se coloca na medida em que é
concebido socialmente (RODRIGUES, 1983), evitando contando, aproximações, falas,
exposições, é como viver sempre à margem, na liminaridade de fazer parte da sociedade
sem se integrar a ela.
Ainda nesta perspectiva outro comportamento estratégico, possivelmente
inconsciente, é o refúgio dos livros, praticamente todas elas se dedicaram bastante aos
estudos, com ações bastante simbólicas, como sempre o fato de se sentarem na primeira
carteira da fila, tirar as melhores notas da turma, fazer amizade com os professores, o que
se traduz em uma exposição que as conferem reconhecimento, porém o motivo do prestígio

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figura como uma espécie de blindagem ou possibilidade de deixá-las “intocáveis”, afinal
quem vai praticar bullying com a queridinha do/a professor (a)?

***

O terceiro momento da vivência culminou nas fotografias sobre os corpos dessas


jovens mulheres, a intenção era dar continuidade ao processo de construção destes corpos,
que já vinham sendo trabalhados a partir de um contexto de inserção e reflexão acadêmica
que lhes revelou todo este processo de “descobertas” identitárias e rupturas dos grilhões
que foram ensinadas a se acorrentar e assim permanecerem.
É necessário destacar acerca do ensaio de imagens produzido, que não
intencionamos fazer uma “fotoetnografia” tal como direciona Achutti (1997, 2004), mas
apenas valer-se da linguagem simbólica contida na fotografia, que pode ser percebida
enquanto dotada de certa objetividade uma vez que enquadra o registro do “real”, mas que
na verdade é apenas um estilhaçamento de determinada realidade, um fragmento do
concreto a partir de uma dada ótica (2004), haja vista que a imagem criada se dá através de
uma lente que apreende a realidade, lente não no sentido literal, mas enquanto olhar.
Qualidade esta que faz refletir na fotografia a subjetividade daquele que a captura, deste
modo “fotografar não é apenas refletir a realidade, é também reflexionar sobre ela e nela
refletir-se” (2004, p. 71), logo a imagem conta com representações superficiais de um real
arraigado e guiado pelas nossas interpretações incorporadas a outras próprias,
metaforizando com a botânica, seria como a imagem de uma planta, que de acordo com um
plano pode incidir luz, vento, água, e sua representação acima solo pode ter como
paisagens as mais diversas possíveis, mas abaixo dele, estão elementos que não são
perceptíveis, como suas raízes, umas mais curtas outras mais profundas, ramificações,
reserva de energia, pode ser até ser hospedeira de outros organismos, porém com uma lente
de aumento ou um escavar pode-se trazer a tona os elementos antes não visíveis ou
referenciados.
Assim se dá a fotografia, que não fala por si, mas estabelece uma narrativa de
trajetórias, histórias e estórias do “objeto” fundida com o olhar e ouvir do observador-
fotografo, na imagem se integra seus sentidos e discursos, como em uma janela prismática
o leque de códigos é reinterpretado e ampliado na imagem e nos reflexos emitidos por ela,

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de modo que o seu processo de percepção incide prévia e ulteriormente, o que a revela
enquanto “uma forma de narrar nosso olhar para o Outro” (p. 87, 2004).
Partindo deste pressuposto, as fotografias aqui apresentadas se traduzem em um
modo de descrever e interpretar as falas, expressões e silêncios manifestados na coleta de
dados durante o campo da pesquisa, que nos permitiu ter a percepção sobre a identidade
dessas mulheres, que de acordo com suas falas está diretamente ligada, à seus corpos e a
aceitação deles, que perpassam por violências, sofrimentos, reflexões e a uma aceitação.
Assim como a construção dessa interpretação e da escrita se estabeleceu a partir da leitura
dos “textos visuais” dos quais partiu este estudo, as fotografias do “Projeto Negríssima”.
Entendendo que a fotografia também cumpre com uma função estética o conceito
artístico refletido aqui caminhou mais no sentido funcional que atraente. O processo de
criação conceitual foi cuidadosamente conduzido a partir das sensibilidades, emoções e
tolhimentos presentes nas falas das entrevistadas, algumas providências se faziam
necessárias para o bom andamento e sucesso das fotos. Deste modo, como conseguir
capturar de maneira natural um corpo que não quer ser visto? Como tentar transmutar os
sentimentos emanados de um corpo “cativo” ao expô-lo? Como tornar essa exposição um
ato libertador? Neste instante a sensação da necessidade de uma película pairava sobre tais
reflexões, de modo a fazer recorrer a uma técnica de fotografia com projeção, que consiste
em tomar um objeto ou pessoa que tenha em si a incidência de imagens refletidas com a
ajuda de um projetor; neste caso a seleção das ilustrações teve como base as estampas
africanas. Imagens entendidas aqui em um duplo sentido, tanto aquelas construídas pelas
mulheres e suas sombras, quanto às imagens projetadas através da fotografia.
A intenção das fotografias também era insuflar a criação de cenas fotográficas
representativas de alguns pontos principais deste processo de construção e rupturas, assim
elas partiram de alguns questionamentos que direcionavam a concepção de cada uma,
pensados com base nas entrevistas realizadas anteriormente com elas.
Como todo início o pudor fez vez, aos pouco foram brincando com suas sombras,
ensaiando gestos, poses, jogadas de cabelo, toques, saltos. A construção das cenas era fruto
de respostas vinham como que por um consenso coletivo sintonizado, todas se olhavam
harmonicamente como que se se entendessem, expressavam nos seus corpos e nos das
outras a representação da violência sofrida dias após dia...

Cena 1

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Aqui a violência foi expressa através do cabelo, característica que se mostrou
emblemática nesse processo, juntamente com todos os estigmas e simbologias construídas
em torno dele. Sem nenhuma exceção, todas passaram pela imposição de um padrão
estético a qual foram submetidas desde a infância quanto ao trato e aparência dos cabelos.
É perceptível a força empregada no ato de puxar os cabelos umas das outras, tal como
fizeram suas mães, ou como fizeram consigo mesmas para mantê-los baixos, bem presos,
de preferência, em coque ou em trança, ou ainda melhor, alisado para ter uma aparência
mais “aceitável”, porque afinal aprenderam que cabelo “ruim” só é “bom” se alisar, e ainda
que pensar diferente é errado e indigesto.

Cena 2

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Ao falar do corpo, de modo quase instantâneo elas se contorciam, para expressar o
fechamento corporal e consequentemente o psicológico que as levavam ao isolamento, pelo
receio da cor ou pela vergonha da forma dele. Isso porque o seio ou a barriga, ou as pernas ou
a bunda não se enquadravam também em um padrão de beleza, o que acarretou para elas um
entendimento pesado sobre si, o de que não eram atraentes, não eram sexys nem mesmo de
lingerie, que não havia o que mostrar, apenas o que esconder. Tal pensamento implicou
seriamente no desenvolvimento de suas sexualidades, de modo a lhes impedir se de relacionar
e descobrir o próprio corpo, de descobrir o corpo do outro e permitir que o outro também
descubra o seu, porque acham que a feiura de seus corpos não pode gerar prazer a alguém.
Uma das falas mais fortes nesse sentido foi de um relato em que a jovem manteve relações
com seu companheiro, mas sem se despir por completo.
Cena 3

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Da Violência

A imagem criada por elas tenta ilustrar as violências múltiplas sofridas. Dentre as
identificações percebidas diz respeito à violência sexual, praticamente todas as entrevistadas
sofreram algum tipo de abuso ou tentativa, e em alguns casos com mais de um episódio,
envolvendo um tio, um amigo da família, ou um amigo, fato que contribuiu para a retração de
suas sexualidades. Uma das entrevistadas descobriu há pouco tempo que havia passado por
um abuso na adolescência, ao contar o fato para uma amiga que cursa Direito. Ela relatou que
estudava em uma escola particular como bolsista e que o seu pai sempre era um dos
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empregados dos pais dos seus colegas de classe, por ser de família pobre, aos 13 anos,
tentando consolar um amigo de 19, que havia acabado de perder um ente da família, sofreu
inicialmente um abuso psicológico com relação à amizade dos dois, o que lhe levou a ceder
no princípio ao ato, porém logo em seguida veio à desistência que não foi atendida. Por no
começo ter aceitado, acabou se culpando por tudo, e talvez ainda hoje não tenha se livrado
definitivamente da culpa, mesmo entendendo que era uma criança e que isso se enquadra
enquanto crime, mas ao ser indagada quanto ao fato de ser negra e seu pai empregado deles,
será que ele havia continuado? Será que teria se sentido tão seguro em ignorar seu choro e
seus pedidos de "pare"? Apenas refletiu por algum tempo.
***

Elas esperavam silenciosamente as imagens que iam se revelando nos corpos a sua
frente e à medida que os viam cobertos pelas estampas o jogo de movimento e exposição ia

fluindo, sentiam-se mais livres para se trabalharem corporalmente.

E a percepção de um elo que as unia se tornando mais forte.


Cena 4
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União

Neste
momento a
frustração pessoal
por não atender aos
padrões estéticos foi
cedendo lugar à
leveza, a vergonha
de escondê-lo se
transformou em
vontade de torná-lo
tela, a limitação da
exposição abriu
caminho para a
nudez espontânea, num simples abrir do colchete do sutiã de uma jovem para uma única
foto de costas ele foi retirado por inteiro sutilmente.
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E o resultado funcionou um desencadear de encorajamento, à medida que viam a
beleza expressa em sua frente, passaram a despir a blusa, posteriormente o sutiã e
apresentar seus corpos a desconhecidas sem o temor do julgamento próprio e do outro,
uma após outra.

A liberdade e a descoberta se circulavam, criavam formas, aproximações e


cumplicidades, mas, sobretudo saberes e aceitação.

E a liberdade foi ganhando mais adeptas, modificando as duplas, movimentando


trios.

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Apenas uma participante se recusava a se desnudar-se, quase no último instante a
resistência renunciou, cedendo à luta contra a opressão. Atendo aos pedidos daquelas que
antes eram estranhas, mas que passaram a significar companheiras de trajetória.

Em um determinando momento dessa interação dialógicas todas diziam se sentir


em uma terapia e como isso estava sendo significativo nessa busca de si e de suas
ancestralidades.

Um desfecho possível: encontros de si

O desfecho do encontro foi regado com risos e expressões de surpresa, admiração,


encanto, impressionadas com o que tinham acabado de fazer com a poética dos seus
corpos, com a coragem expressa, com a aceitação de suas formas, com a naturalidade de
suas corporeidades e performances. As falas se guiam no mesmo contexto, juntamente com
a sensação de que aqueles momentos vivenciados via uma interação dialógica parecia ter
sido uma espécie de terapia que desencadeou significativamente o processo que já estavam
vivenciando nessa busca de si e de suas ancestralidades. Assim nota-se que a vivência
como foi pensada, dentro dos termos conceituais explicitados por Gadamer alcançou o
objetivo. Segundo o autor o aspecto imediatista que se pensa a cerca da vivência
inicialmente pela transitoriedade do seu tempo e espaço, os efeitos produzir a partir disto
se dão de modo contínuo no ser que o vivenciou, assim o que era passageiro, ganha
durabilidade, permanência e relevância numa relação que se estende por toda a totalidade
da vida e em suas consciências, pois significa um prolixo processo em construção, em que
uma vivência pode ressaltar outra. Logo, as vivências são por si mesmas unidades de
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sentidos, de significados, bem como, unidades teleológicas. A “vivência significa, pois
algo inesquecível e insubstituível, que é basicamente inesgotável para uma determinação
compreensível de seu significado” (GADAMER, 2002, p. 127), que pelo ar de aventura
que imprimir interrompe a uniformidade do cotidiano da vida fazendo nascer descobertas
internas, de modo enriquecer pelo viés do amadurecimento.

Referências Bibliográficas

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Editora da UFRGS: Tomo Editorial, 2004. 319 p.

ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. Fotoetnografia: um estudo de antropologia visual


sobre cotidiano, lixo e trabalho. Porto Alegre: Tomo Editorial: Palmarinca, 1997.

ANTONACCI, Maria Antonieta. Memórias ancoradas em corpos negros. – 2 ed. São


Paulo: Edusc, 2014.

DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. Memória e História: substratos da identidade.

FERNANDES, Ana Paula da Silva. Entre água e fogo: Vivências de cosmologias


africanas em Candomblé. XXVIII Simpósio Nacional de História. Florianópolis, 2015.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes, 1997

GONÇALVES, Maria A. Salin. Sentir, pensar e agir – Corporeidade e educação. 9a ed.


Campinas, SP: Papirus, 1994.

HAMPATÉ-BÁ, Amadou. A tradição viva. São Paulo. In: VERBO, JKI: História Geral
da África. Editora Ática: São Paulo, 1987.

KAGAMÉ, Alexis. A percepção Empírica do Tempo e Concepção de História no


Pensamento Bantu. Petrópolis e São Paulo, 1984.

LIGIÉRO, Zeca. Iniciação ao Candomblé. 8 ed. Rio de Janeiro: Nova Era, 2004.

LUCAS, Maria Elizabeth. Apresentação. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano


11, n. 24, p. 7-11, jul./dez. 2005.

MAUSS, Marcel. As técnicas do corpo. In:____ Sociologia e Antropologia. São Paulo:


Cosac Naify, 2003, p.399-422.

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