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Sílvio Gallo
Universidade Estadual de Campinas
Resumo
Palavras-chave
Correspondência:
Sílvio Gallo
UNICAMP – Faculdade de Educação
Av. Bertrand Russell, 801
Cidade Universitária Zeferino Vaz
13083-865 – Campinas – SP
E-mail: gallo@unicamp.br
Modernity/postmodernity: tensions and repercussions in
the production of knowledge in education
Sílvio Gallo
Universidade Estadual de Campinas
Abstract
Keywords
Contact:
Sílvio Gallo
UNICAMP – Faculdade de Educação
Av. Bertrand Russell, 801
Cidade Universitária Zeferino Vaz
13083-865 – Campinas – SP
E-mail: gallo@unicamp.br
A constelação de questões das quais intensidade conceitual, discutindo como essa
parto para a confecção deste ensaio poderia ser tensão entre modernidade e pós-modernidade
resumida nas duas interrogações seguintes: pode influir positivamente na produção de
pensamento no campo da Educação. Envereda-
• Vivemos a crise da modernidade? rei por uma discussão de natureza epistemo-
• Vivemos um ‘momento pós-moderno’ como lógica para defender que não podemos permi-
muitos discursos propagam? tir que essa tensão nos leve a uma paralisação
do pensamento.
Seu pano de fundo é o debate sobre o Em Pós-estruturalismo e filosofia da
pós-moderno, suas implicações na filosofia diferença (uma introdução) , Michael Peters
contemporânea, suas decorrências para o cam- (2000) procura diferenciar conceitualmente
po da Educação, em especial no que respeita à pós-modernismo de pós-estruturalismo e, para
produção do conhecimento nesse campo. Não isso, retoma a discussão entre modernismo e
são poucos os que fazem a apologética da pós-modernismo. Argumenta que há dois sen-
chegada dos ‘tempos pós-modernos’ e da revo- tidos para o modernismo, que pode ser abor-
lução que eles causariam no pensamento, na dado como movimento artístico, situado no
pesquisa educacional, nos modos de educar; do final do século XIX e início do século XX, ou
outro lado, também não é pequeno o contin- como movimento histórico-filosófico, sentido
gente daqueles que criticam a ‘farsa pós-mo- no qual seria uma espécie de sinônimo para
derna’, esse canto de sereia que uma vez mais ‘modernidade’. Nesse segundo sentido, pode-se
encobre o sol e obscurece nossa visão. Muito afirmar que: “filosoficamente falando, o moder-
menor, porém, é o grupo daqueles que se dis- nismo começa com o pensamento de Francis
põem a pensar, com a coragem e a seriedade Bacon na Inglaterra e o de René Descartes na
necessárias, as transformações pelas quais pas- França” (Peters, 2000, p. 12).
sa o mundo e os desafios que se colocam a Assim, como termo derivado, o pós-
cada dia, para além da preocupação de classi- modernismo também apresentaria dois senti-
ficar ou nomear esse momento, como se isso dos: um como movimento artístico e outro
resolvesse os impasses. como movimento histórico-filosófico. O autor
No campo do pensamento social (pen- recorre então ao Oxford English Dictionary ,
so aqui na Filosofia e nas ciências sociais de buscando o sentido e a etimologia da palavra,
modo geral), fomos contaminados, desde me- encontrando um sentido originário como mo-
ados da década de 1970, por essa expressão – vimento artístico do campo da arquitetura
pós-moderno; pós-modernidade; pós-moder- (com datações de uso do termo entre 1959 e
nismo – que advém dos meios artísticos, em 1980), só sendo estendido ao campo das ciên-
especial da arquitetura, que faz todo o sentido cias humanas a partir de meados dos anos
nesse contexto, mas que, de fato, não tem a 1970, com mais ênfase na década de 1980.
força e a potência de um conceito. Alguns Se fizermos o mesmo movimento com
autores, em filosofia e em áreas afins das ciên- um Dicionário da Língua Portuguesa, encontra-
cias humanas, tomaram e têm tomado expres- remos a seguinte definição:
sões como ‘pós-moderno’, ‘pós-modernidade’
como se fossem conceitos; no entanto, tais Pós-modernismo: denominação genérica dos
expressões são filosoficamente vazias. movimentos artísticos surgidos no último quartel
Essa é uma das teses que procurarei do século XX, caracterizados pela ruptura com o
explicitar aqui. Para além disso, tentarei eviden- rigor da filosofia e das práticas do Modernismo,
ciar as reais contribuições que tal debate traz, sem abandonar totalmente seus princípios, mas
mesmo que um pouco ‘nublado’ pela falta de fazendo referências a elementos e técnicas de
estilos do passado, tomados com liberdade for- Nessa obra de Lyotard, duas são as
mal, ecletismo e imaginação. (Dicionário Eletrô- teses fundamentais: a alteração no estatuto do
nico Houaiss da Língua Portuguesa) saber e a falência dos ‘metarrelatos’, evidente-
mente inter-relacionadas. A primeira tese ele
Fica clara, portanto, a origem do termo no evidencia da seguinte maneira: “Nossa hipótese
campo da arte, como movimento artístico; apenas de trabalho é a de que o saber muda de esta-
depois de se ter consolidado nesse campo é que tuto ao mesmo tempo em que as sociedades
deriva para as ciências humanas, fazendo então um entram na idade dita pós-industrial e as cultu-
trajeto inverso ao do termo modernismo. ras na idade dita pós-moderna” (1986, p. 3). E
Na literatura filosófica, o termo foi utili- ela leva à segunda tese, como decorrência:
zado, não como substantivo, mas como adjetivo, nesta “sociedade pós-industrial” e nesta “cultu-
por Jean-François Lyotard em obra publicada em ra pós-moderna”, os metarrelatos (discursos
1979, cujo título original é A condição pós-mo- filosóficos pretensamente universais) já não dão
derna. A tradução brasileira, publicada em 1986 conta do real. Em suas próprias palavras:
e já no contexto de um razoável debate, optou
pelo título O pós-moderno, o que faz toda a Na sociedade e na cultura contemporânea, so-
diferença. Já na introdução à obra, o filósofo ciedade pós-industrial, cultura pós-moderna, a
delimita o campo de suas intervenções: o pro- questão da legitimação do saber coloca-se em
blema do conhecimento; e explica que a origem outros termos. O grande relato perdeu sua
do termo que optou usar é norte-americana: credibilidade, seja qual for o modo de unifica-
ção que lhe é conferido: relato especulativo,
Este estudo tem por objeto a posição do saber relato da emancipação. (1986, p. 69)
nas sociedades mais desenvolvidas. Decidiu-se
chamá-la de ‘pós-moderna’. A palavra é usada, Não é meu objetivo discutir uma vez
no continente americano, por sociólogos e críti- mais as teses de Lyotard, posto que isso já foi
cos. Designa o estado da cultura após as trans- feito quase à exaustão. Se as trouxe à tona, foi
formações que afetaram as regras dos jogos da apenas como registro daquela que muito pro-
ciência, da literatura e das artes a partir do fi- vavelmente foi a primeira utilização filosófica
nal do século XIX. (1986, p. xv, grifos meus) da expressão ‘pós-moderno’. No entanto, sali-
ento que seu uso é mais adjetivo que substan-
Ainda nessa introdução, o autor descul- tivo, fato que a tradução brasileira esconde.
pa-se pelas lacunas na análise: Coisa análoga aconteceu com outra
obra posterior. Em 1983, o crítico norte-ame-
Resta dizer que o expositor é um filósofo, e ricano Hal Foster, redator associado da revista
não um expert . Este sabe o que sabe e o que Art in América, publicou um importante livro,
não sabe, aquele não. Um conclui, o outro in- com o título The anti-aesthetic: essays on
terroga; são dois jogos de linguagem. Aqui eles postmodern culture1 , reunindo textos de vári-
se encontram misturados, de modo que ne- os críticos e historiadores da arte, mas também
nhum dos dois prevalece. de teóricos como Habermas, Jameson, Said,
O filósofo ao menos pode se consolar dizendo Baudrillard. Percebe-se que aparece, como sub-
que a análise formal e pragmática de certos título da obra, a expressão ‘cultura pós-moder-
discursos de legitimação, filosóficos e ético-po- na’, no mesmo uso adjetivo feito por Lyotard.
líticos, que sustenta nossa Exposição, verá a luz Já na tradução espanhola (não há versão para
depois desta. Ela a terá introduzido, por um
atalho um pouco socializante, que, embora a 1.Tradução para o espanhol: La posmodernidad. Barcelona: 1985, 5ª ed.
reduzindo, a situa. (1986, p. xviii) em 2002 (é a que utilizo como fonte das citações aqui presentes).
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de desregulamentação econômica, de ímpeto técni- escapa; e assim permanece, embora não seja
co-científico, cujos efeitos são tão carregados de sempre o mesmo. Não será algo análogo o que
perigos quanto de promessas. Tudo foi muito rápi- temos assistido nos debates em relação à
do: a coruja de Minerva anunciava o nascimento modernidade e sua superação? As novas fei-
do pós-moderno no momento mesmo em que se ções, talvez apressadamente demais denomina-
esboçava a hipermodernização do mundo. das de pós-modernidade, não serão nada mais
Longe de decretar-se o óbito da modernidade, do que as metamorfoses do projeto moderno,
assiste-se a seu remate, concretizando-se no li- que assume novas feições, na medida em que
beralismo globalizado, na mercantilização qua- suas realizações não nos satisfazem?
se generalizada dos modos de vida, na explora- Colocando de uma outra maneira: não
ção da razão instrumental até a ‘morte’ desta, estaríamos condenados a viver uma ‘eterna
numa individualização galopante. (Lipovetsky, modernidade’, como que presos a um infinito
2004, p. 53) crepúsculo, que nunca vê a noite cair, mas que
também não recupera o brilho do meio-dia?
Assim, Lipovetsky, que outrora foi um Abandonando essa discussão, que me
dos defensores da força explicativa do pós-mo- parece não termos condições de esgotar ou de
derno, afirmando a superação da modernidade, resolver, penso que para buscarmos as repercus-
revê suas teses, encontrando, de certa forma, a sões dessa tensão modernidade/pós-modernidade
posição defendida por Jürgen Habermas em O para o campo educacional, em especial para a
discurso filosófico da modernidade, de que essa pesquisa e a intervenção nesse campo, precisa-
é um projeto inacabado e que, não tendo sido mos recuperar um dos aspectos centrais do pro-
completado, ainda não pode ser superado. Um jeto moderno: o epistemológico.
ponto a ser assinalado, posto que mais adiante Sabemos que o projeto moderno cons-
enfrentarei a abordagem política da questão: tituiu-se em torno da construção de um méto-
Lipovetsky passa de uma postura politicamente do ‘universal’ para a produção do conhecimen-
otimista, de ver no pós-modernismo uma força to. Em termos filosóficos, essa busca se inicia
de renovação, de transformação, para uma po- com Descartes e com a defesa da universalização
sição pessimista, que vê no hipermodernismo o do método matemático e termina (se é que ter-
remate da modernidade naquilo que ela tem de minou...) com Husserl e a proposta do método
mais reacionário e conservador: a mercantilização fenomenológico, manifestamente querendo su-
da vida, a globalização do liberalismo, a explo- perar os problemas do cartesianismo, que o
ração da instrumentalização da razão até as úl- impediram de lograr êxito em seu intento, bus-
timas conseqüências. cando fazer da filosofia uma ciência de rigor.
Todavia, penso que tampouco as saídas Nesse contexto, assistimos à emergência e
propostas por Lipovetsky ou por Habermas re- à consolidação da lógica disciplinar, implicando
solvem o problema; no entanto, a noção de num determinado modelo de produção dos sabe-
hipermodernidade acrescenta uma perspectiva res e numa certa lógica da pesquisa. Parece-me que
importante: a da ‘elasticidade’ do projeto mo- um dos pontos centrais de tal lógica disciplinar é
derno. Retomo essa idéia que Deleuze e Guattari a busca, a um só tempo, de uma objetividade e
desenvolveram em O anti-Édipo (1976), quan- de uma universalidade do conhecimento, para
do mostram que o capitalismo é capaz de se que o mesmo possa ser reconhecido como válido
metamorfosear. Quanto mais nos aproximamos e verdadeiro. A produção do conhecimento na
de seus limites históricos, o que poderia signi- modernidade foi marcada por esses princípios e a
ficar uma crise e sua superação, mais os limi- pesquisa em educação não pôde ficar alheia a eles.
tes são alargados, elasticamente sendo coloca- Michel Foucault (1999) localiza no
dos mais além. O capitalismo escapa e nos século XVIII o processo político realizado pelo
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Nesse movimento, no campo da filoso- podem ser considerados os filósofos da pós-
fia, destacou-se a voz de Nietzsche, que fez a modernidade. O pós de pós-moderno indica,
crítica ao uso da razão tomada como absolu- com efeito, uma despedida da modernidade,
ta, procurando mostrar que o conhecimento é que, na medida em que quer fugir das suas ló-
sobretudo vida, é encarnado, é ligado ao mun- gicas de desenvolvimento, ou seja, sobretudo da
do, por mais que tentemos transformá-lo em idéia de ‘superação’ crítica em direção a uma
formas puras e abstratas. O movimento de nova fundamentação, busca precisamente o que
Nietzsche é justamente o de colocar em xeque os Nietzsche e Heidegger procuraram em sua pe-
procedimentos de universalização e objetividade culiar relação ‘crítica’ com o pensamento oci-
do conhecimento moderno, defendendo aquilo dental. (Vattimo, 1996, p. VI-VII)
que depois seria chamado de ‘perspectivismo’2 .
Gianni Vattimo identifica a crítica de No caso de Nietzsche, posto que não
Nietzsche como uma crítica à noção de funda- entraremos aqui no pensamento de Heidegger,
mento. Embora o filósofo italiano aponte o ale- a noção moderna de fundamento para o co-
mão como um ‘filósofo da pós-modernidade’, nhecimento é criticada e substituída não por
afirmação que me parece um tanto ou quanto um novo fundamento, mas justamente pela
apressada, penso ser relevante sua argumentação: idéia de perspectiva, como veremos adiante. Já
num texto de sua juventude, mais precisamente
Do ponto de vista de Nietzsche e Heidegger, de 1873, intitulado Acerca da verdade e da
que podemos considerar comum, não obstante mentira no sentido extramoral, o filósofo ale-
as diferenças nada ligeiras, a modernidade pode mão coloca o conhecimento como uma inven-
caracterizar-se, de fato, por ser dominada pela ção e a verdade como metáfora, com isso ques-
idéia da história do pensamento como uma ‘ilu- tionando a própria noção de fundamento e,
minação’ progressiva, que se desenvolve com portanto, a possibilidade de um conhecimento
base na apropriação e na reapropriação cada objetivo e universal. Começa demarcando a in-
vez mais plena dos ‘fundamentos’, que frequen- significância do homem no universo, num mo-
temente são pensados também como as ‘ori- vimento oposto ao do humanismo moderno:
gens’, de modo que as revoluções teóricas e prá-
ticas da história ocidental se apresentam e se Num certo canto remoto do universo cintilante
legitimam na maioria das vezes como ‘recupe- vertido em incontáveis sistemas solares havia
rações’, renascimentos, retornos. A noção de ‘su- uma vez um astro onde animais inteligentes in-
peração’, que tanta importância tem em toda a ventaram o conhecimento. Foi o minuto mais
filosofia moderna, concebe o curso do pensa- soberbo e hipócrita da ‘história mundial’, mas
mento como um desenvolvimento progressivo, foi apenas um minuto. Depois de a natureza ter
em que o novo se identifica com o valor através respirado umas poucas vezes, o astro enregelou e
da recuperação e da apropriação do fundamen- os animais inteligentes tiveram de morrer. Assim,
to-origem. Mas precisamente a noção de fun- alguém poderia inventar uma fábula como esta
damento, e de pensamento como fundação e e, no entanto, não ficaria suficientemente escla-
acesso ao fundamento, é radicalmente posta em recido quão lastimável, quão obscuro e fugidio,
discussão por Nietzsche e por Heidegger. Eles se quão desprovido de finalidade e arbitrário se
acham assim, por um lado, na condição de te- apresenta o intelecto humano no interior da na-
rem de distanciar-se criticamente do pensamen-
to ocidental enquanto pensamento do funda- 2. Sobre o perspectivismo de Nietzsche, ver os livros de António Mar-
mento; de outro porém, não podem criticar ques, A filosofia perspectivista de Nietzsche, e de Gilvan Fogel, Conhecer
é criar – um ensaio a partir de F. Nietzsche, ambos publicados pela Discur-
esse pensamento em nome de uma outra funda- so Editorial e Ed. Unijuí, na coleção Sendas e Veredas, organizada pelo
ção, mais verdadeira. É nisso que, a justo título, Grupo de Estudos Nietzsche da Universidade de São Paulo.
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Em outro aforismo desse livro enigmá- exemplo, é separada da Metafísica e da Teologia)
tico, Nietzsche afirma que o que importa ao e recebe uma ‘lógica’ própria. Um treinamento
conhecimento não é exatamente o quão verda- completo, nesse tipo de ‘lógica’, leva ao condicio-
deiro ele se apresenta, mas sua antiguidade, namento dos que trabalham no campo delimita-
isso é, o seu tempo de sedimentação, de ‘incor- do; isso torna mais uniformes as ações de tais
poração’ pelos homens, na medida em que vai pessoas, ao mesmo tempo em que congela gran-
se encarnando nas vidas dos indivíduos. E, des porções do processo histórico. ‘Fatos’ estáveis
conforme esses conhecimentos se incorporam, surgem e se mantêm, a despeito das vicissitudes
passam a ser parte de uma verdadeira luta pelo da História. Parte essencial do treinamento, que
poder, lembrando os processos de disciplinamento faz com que fatos dessa espécie apareçam, consis-
evidenciados por Foucault. te na tentativa de inibir intuições que possam
implicar a confusão de fronteiras. A religião da
Portanto, a força dos conhecimentos não reside pessoa, por exemplo, ou sua metafísica ou seu
no seu grau de verdade, mas sim na sua idade, senso de humor (seu senso de humor natural e não
no seu grau de incorporação, no seu carácter a jocosidade postiça e sempre desagradável que
como condição de vida [...]. Pouco a pouco foi- encontramos em profissões especializadas) devem
se enchendo o cérebro humano destes juízos e manter-se inteiramente à parte de sua atividade
dessas convicções e, nesse novelo, produziu-se a científica. Sua imaginação vê-se restringida e até
fermentação, a luta e a ânsia pelo poder. A uti- sua linguagem deixa de ser própria. E isso penetra
lidade e o prazer não foram os únicos a tomar a natureza dos ‘fatos’ científicos, que passam a
partido na luta pelas ‘verdades’, mas igualmen- ser vistos como independentes de opinião, de cren-
te todo o gênero de impulsos; a luta intelectual ça ou de formação cultural.
tornou-se ocupação, atração, profissão, dever, É possível, assim, criar uma tradição que se
dignidade; o ato de conhecer e a aspiração de mantém uma, ou intacta, graças à observância
atingir o verdadeiro passaram por fim a integrar- de regras estritas, e que, até certo ponto, al-
se, como necessidades, nas outras necessidades. A cança êxito. Mas será desejável dar apoio a
partir daí, não apenas a fé e a convicção, mas essa tradição, a despeito de tudo mais? Deve-
também o exame, a negação, a desconfiança, a mos conceder-lhe direitos exclusivos de manipu-
contradição tornaram-se um poder. (Nietzsche, lar o conhecimento, de tal modo que quaisquer
1998a, p. 126-127)5 resultados obtidos por outros métodos sejam, de
imediato, ignorados? (Feyerabend, 1989, p. 21)
A esse respeito, seria relevante voltarmos
também a Paul Feyerabend e seu ‘anarquismo Soa-me inequívoco o paralelismo da crí-
epistemológico’ de Contra o método, obra es- tica de Feyerabend com a crítica de Nietzsche,
quecida fora dos círculos epistemológicos. En- embora separadas por praticamente um século.
contramos um grande paralelismo entre as idéi- Desliga-se a ciência, o conhecimento da histó-
as de Nietzsche e as deste que foi um dos ria, fazendo-se com que se esqueçam suas ori-
grandes epistemólogos do século XX. Destaco gens, dando-lhe então uma completa autono-
um trecho da introdução dessa bela obra, em mia, como se tivesse uma ‘lógica’ própria. Outro
que isso fica claro: destaque para o trecho citado é sua proximida-
de com as teses apresentadas por Foucault, de
A educação científica, tal como hoje a conhece- que no século XVIII a ciência ganha o status de
mos, tem precisamente esse objetivo. Simplifica a ‘polícia disciplinar dos saberes’, na medida em
ciência, simplificando seus elementos: antes de que normaliza a produção de conhecimento e
tudo, define-se um campo de pesquisa; esse cam-
po é desligado do resto da História (a Física, por 5. A citação é de trechos do § 110.
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Foucault, Deleuze e Guattari, Derrida, por exem- universalizante. Para falarmos junto com
plo, impõe-se uma outra atitude frente ao pro- Deleuze e Guattari, poderíamos identificar o
cesso de produção de saberes e frente ao pró- primeiro estilo como uma espécie de ‘pesquisa
prio processo de pesquisa (no nosso caso, em régia ou maior’, feita de acordo com os
Educação). Uma atitude que implica num outro cânones, respeitando os paradigmas definidos
tipo de trânsito por entre os campos disciplina- pela máquina estatal e pelas agências de fo-
res, que já não dão conta da multiplicidade do mento, utilizando-se de métodos bem definidos
mundo, que insiste em escapar por entre os vãos e chegando a conclusões previsíveis e não
das grades disciplinares. Na mesma medida, perturbadoras (embora muitas vezes de grande
aquela ciência como ‘polícia disciplinar dos sa- importância e impacto). Já o segundo estilo,
beres’, apontada por Foucault, também já não poderíamos identificar com uma ‘pesquisa nô-
consegue controlar esses processos de escape, made ou menor’, que escapa, vaza, passa pe-
de fuga, de proliferação de saberes. las grades disciplinares, proliferando saberes
Penso que essa atitude pode ser menores, distintos, inusitados. Claro que esse
identificada com aquilo que, na companhia segundo estilo pode ser capturado; algumas
desses filósofos, chamo de transversalidade 8, vezes ele já é produzido, movido por um dese-
que implica numa postura não hierárquica (tan- jo de captura, querendo vir a fazer parte da
to vertical quanto horizontal); não predefinida; máquina de Estado, a definir políticas públicas,
não universalizante. Nessa direção, Deleuze e a fazer jus a gordas fatias de financiamento. No
Guattari desenvolveram, em Mil platôs , uma entanto, em outras vezes, ele é produzido
discussão em torno daquilo que chamaram de mesmo como desejo de fuga, ciente do risco de
uma ‘ciência régia’ (ou, ainda, ciência maior) e perecer, de ser apagado, negado, vilipendiado.
de uma ‘ciência nômade’ (ou, ainda, ciência Trata-se da tensão entre um paradigma
menor)9 . Enquanto o primeiro tipo é financia- moderno e um suposto paradigma ‘pós-mo-
do e gerido pelo Estado, funcionando como derno’? Parece-me difícil de dizer. Parece-me
aquela ‘polícia disciplinar’ da qual falava mais o conflito entre dois modelos de produ-
Foucault, o segundo tipo ‘vaza’ por entre as ção de conhecimento, entre duas imagens do
grades, escapa, resiste, subverte. É bem verda- pensamento10 , para usar o conceito de Deleuze,
de, porém, e Deleuze e Guattari o mostram, que de resto já muito antigas ambas, posto que che-
não é raro a ciência nômade ou menor ser gam a nós da antiguidade grega e das origens
capturada pela máquina de Estado, tornando- da filosofia (não é por acaso que Nietzsche
se ela própria ciência régia, trocando de papel; convida para uma volta aos gregos, para uma
mas também é certo que há aquelas que nun- volta ao agonismo pré-platônico).
ca se deixam capturar.
Após esse longo desfile de idéias e de
8. Várias foram as teorizações em torno do conceito de transversalidade
considerações críticas em relação ao conheci- como uma abordagem não disciplinar e não hierárquica aos campos de
mento e sua produção na modernidade, penso saberes empreendidas pelos filósofos citados acima. No entanto, talvez
tenha sido Félix Guattari quem lhe deu uma forma conceitual um pouco
estar em condições de fazer algumas afirmações mais trabalhada, curiosamente num ensaio escrito ainda no início da dé-
mais conclusivas. Parece-me que vivemos hoje, cada de 1960, em que se utiliza desse conceito para pensar a prática da
analítica institucional, então ainda em constituição. Guattari propõe subs-
na pesquisa em educação no Brasil, a tensão tituir o conceito psicanalítico de ‘transferência’, que ele considera hierár-
entre um estilo ‘clássico’ de pesquisa, articula- quico e normalizador, pelo de ‘transversalidade’, que seria não hierárquico
do com uma perspectiva positiva, disciplinar, e mais operativo. Esse ensaio foi publicado em português incluído na co-
letânea Revolução molecular, organizada por Suely Rolnik.
universalizante, e um estilo ‘transversal’ que 9. Em Mil platôs, ver especialmente o ensaio intitulado Tratado de
investe na errância da curiosidade, apostando nomadologia: a máquina de guerra. Na edição brasileira dessa obra, publicada
em cinco volumes pela Editora 34, esse ensaio encontra-se no volume 5.
na emergência de possibilidades distintas, arti- 10. Utilizo-me aqui do conceito de ‘imagem do pensamento’ inspirado
culado com uma lógica da diferença, não por Gilles Deleuze em Diferença e repetição .
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também da ‘falsa normatividade’ de um pós- Bem sei que este artigo mais abriu
modernismo reacionário. Em oposição (mas não questões do que as resolveu; penso ser essa,
somente em oposição), um pós-modernismo re- porém, a nossa possibilidade nesse momento
sistente se interessa por uma desconstrução crí- histórico. Procurei trazer elementos para o
tica da tradição, não por um pastiche instru- debate sobre a tensão modernidade/pós-
mental de formas pop ou pseudo-históricas, modernidade de modo a deslocá-lo dessa de-
uma crítica das origens, não um retorno a elas. cisão que me parece tão pouco operativa: optar
Em uma palavra, trata-se de questionar mais por um lado ou por outro lado.
do que de explorar códigos culturais, explorá- Procurei desmontar a lógica dos argu-
los mais do que ocultar filiações sociais e polí- mentos em torno do assim chamado ‘pós-mo-
ticas. (Foster, 2002, p. 12) dernismo’, na medida em que ele parece não ter
a força e a intensidade do conceito, em senti-
A tese de Foster parece avançar um pou- do filosófico. No entanto, não podemos nos
co no debate (embora se circunscreva ainda à fazer cegos às questões que ele nos coloca.
disjunção modernidade/pós-modernidade), por A meu ver, o desafio que se impõe a
colocar ênfase no aspecto político da questão. De nós consiste em viver essas tensões de forma
fato, o que importa mais é saber se as práticas criativa e produtiva. A tarefa imperativa é a de
culturais (educacionais, no nosso caso específico) investigar a fundo o projeto moderno, tanto em
estão voltadas para a manutenção das coisas ou seus aspectos epistemológicos quanto em seus
para sua transformação. O debate sobre a tensão aspectos políticos; investigar a fundo também
modernidade/pós-modernidade não pode obscu- as propostas contemporâneas, identificadas ou
recer nossa percepção para esse fato. não como pós-modernismo, também em seus
O problema que se abre para nós é aspectos políticos e epistemológicos. E nessas
saber identificar cada uma dessas imagens do investigações apreender os caminhos e as pos-
pensamento em seu aspecto político, clarean- sibilidades que se abrem para um saber
do seus objetivos e suas filiações, de modo a compromissado, comprometido, articulado em
permitir uma opção clara, uma aposta na pro- torno de um projeto claramente exposto.
dução de uma investigação, de um conheci- Em suma, agir de modo que a tensão
mento que esteja identificado com manutenção não nos impeça de pensar; que a ‘vitória’ de
ou transformação, seja ele baseado numa po- uma das posições não nos impeça de pensar;
lítica da transcendência (seguindo a hegemonia que o pensamento e a ação criativa e produti-
moderna) ou numa política da imanência (arti- va sigam possíveis em educação; esses parecem
culado com perspectivas mais recentes). ser o único sentido desse debate.
Referências bibliográficas
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anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
DICIONÁRIO ELETRÔNICO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA. Versão 1.0. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
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______. Genealogia da moral – uma polêmica. São Paulo: Cia. das Letras, 1998b.
Recebido em 12.05.06
Aprovado em 12.10.06
Sílvio Gallo é graduado em Filosofia (PUC-Campinas) e doutor em Educação pela Unicamp; professor do Departamento de
Filosofia e História da Educação da FE-Unicamp; pesquisador e coordenador do DiS - Grupo de Estudos e Pesquisas
Diferenças e Subjetividades em Educação.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 551-565, set./dez. 2006 565